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7/17/2019 Mia Couto_ ‘Não Teremos Futuro Se Mentirmos Para o Passado’ - Jornal O Globo http://slidepdf.com/reader/full/mia-couto-nao-teremos-futuro-se-mentirmos-para-o-passado-jornal-o 1/6 Mia Couto: ‘Não teremos futuro se mentirmos para o passado’ Escritor moçambicano acredita que, 40 anos após a declaração de independência, efeitos da guerra civil ainda são sentidos no país e que elite predatória é responsável por parte das mazelas nacionais POR FELIPE BENJAMIN 26/06/2015 7:00

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Mia Couto:

‘Nãoteremosfuturo se

mentirmospara o

passado’Escritor moçambicano acredita

que, 40 anos após a

declaração de independência,efeitos da guerra civil aindasão sentidos no país e que

elite predatória é responsávelpor parte das mazelas

nacionaisPOR FELIPE BENJAMIN

26/06/2015 7:00

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Filipe Nyusi, presidente moçambicano, acende tocha para celebrar o 40º aniversário da independência

do país - Sergio Costa / AFP

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RIO - A capital, Maputo, ainda carregava o nome do navegador português

Lourenço Marques quando, em 25 de junho de 1975, o comandante militar

Samora Machel — que se tornaria o primeiro presidente do país e ganhariaa alcunha de “Pai da nação” — proclamou “a independência total e

completa de Moçambique”, no Estádio da Machava. Na quinta-feira, no

mesmo local, com arquibancadas lotadas e a presença de diversos líderes

africanos, o atual presidente, Filipe Nyusi, celebrou o 40º aniversário da

independência moçambicana, à frente de uma nação marcada pela forte

contradição entre um impressionante desenvolvimento econômico e níveis

ainda preocupantes nos avanços sociais.

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Moçambique, um longo caminho a percorrer 

O país ficou marcado por dez anos de guerra antes que um cessar-fogo,

estimulado pelo sucesso da Revolução dos Cravos em Portugal, permitisse

que Moçambique e as colônias africanas pudessem dar o tão sonhado

passo rumo à libertação do domínio colonial. Dois anos depois, conflitos

 voltaram a assolar o país, que se viu mergulhado numa guerra civil até

1992.

Nascido sob o domínio português, o escritor Mia Couto, autor de “Terra

Sonâmbula” e vencedor do Prêmio Neustadt no ano passado, disse ao

GLOBO, por e-mail de Lisboa, que o processo de libertação do país ainda

não terminou e depende de um olhar honesto sobre o passado nacional.

Portugal é um dos principais investidores da economia

moçambicana. Como as relações de Moçambique com os antigos

colonizadores afetam a identidade moçambicana pós-colonial?

Não afetam. Os antigos colonizadores nunca foram tão colonizadores como seacredita de um e do outro lado. Portugal era uma nação pequena para administrar 

tanto território e sempre teve dificuldade de se erguer como centro de um impérioque era mais sonhado do que real. As relações de hoje são aquelas que se podemesperar. Do lado de Portugal e do lado de Moçambique, houve uma maturidade quefoi alcançada pela distância e pela percepção, sempre presente na luta delibertação nacional, de que ambos os povos lutavam contra um mesmo inimigo.

 Apesar do impressionante crescimento econômico, números

apontam que o país não registrou grandes avanços na

eliminação das desigualdades sociais e na erradicação da

pobreza. Quais têm sido os principais empecilhos para queMoçambique supere esses desafios?

Primeiro, foi a guerra civil e a instabilidade militar e política associada a

essa violência. É preciso não esquecer que o país esteve paralisado durante

16 anos. Hospitais e escolas foram queimados, professores e enfermeiros

foram eliminados, e as infraestruturas foram destruídas. A guerra fez um

milhão de mortos, e deixou uma ferida que não cicatrizará nos próximosanos. Mas embora ela tenha sido o principal fator de atraso, não se pode

culpar apenas essa guerra. Existe uma elite que pensa o país como sua

propriedade e que está disposta a usar os recursos não como fator de

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progresso social, mas de enriquecimento fácil e rápido de uma pequena

minoria.

Raio-x da situação de Moçambique - O Globo / Editoria de arte

Em recente entrevista, o senhor afirmou que a Frente de

Libertação de Moçambique (Frelimo), da qual fez parte nos anos1970, “se distanciou do sentido de militância que caracterizou a

luta de libertação nacional moçambicana”. Como e quando crê

que o grupo se desviou da proposta original?

 Aconteceu em Moçambique como em todos as nações recém-libertadas. As

forças que fizeram a revolução rapidamente se converteram no seu próprio

oposto: um grupo fechado com medo do futuro e com receio de serconfrontado com o seu próprio passado. No caso de Moçambique, existem

ainda na Frelimo forças que reivindicam legitimamente esse ideal de

 justiça e de liberdade que fez nascer a Frente de Libertação.

Nas eleições moçambicanas de 2009, partidos de oposição

acusaram a Frelimo de fraude eleitoral, e observadores

internacionais reconheceram que o processo eleitoral do paísapresentava falta de transparência. Até que ponto a corrupção é

parte da política moçambicana?

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 A corrupção é parte da política em todo lado. Querem-nos sugerir que é um

processo natural, que a corrupção faz parte do sistema, que é um efeito

colateral de uma dieta ontológica de que não se pode fugir. No caso das

nações pobres, como Moçambique, essa corrupção gera sentimentos de

revolta mais evidentes e imediatos. Mas a corrupção que é patente nos

países ricos não deixa de ser moralmente menos condenável.

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O que creio ser importante

reconhecer é que deixou de se

poder dizer que a corrupção é umacoisa da África. A diferença é

apenas de grau. E as diversas

corrupções, no centro e na

periferia do capitalismo neoliberal,

fazem parte de um mesmo

sistema. São as duas mãos de um

mesmo corpo.

Qual foi o papel das mulheres

na luta pela independência de

Moçambique, e de que

maneira elas se enquadram

no futuro da sociedade

moçambicana do século XXI?

 As mulheres foram, sem dúvida,

uma das forças sociais com mais

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dinamismo e cujo papel se tornou mais evidente nestes últimos 40 anos.

São as mulheres que sustentam a verdadeira economia nacional — a

erroneamente chamada de “economia informal”. Creio que os

moçambicanos estão conscientes que a violência contra a mulher é um dos

males a corrigir na nossa sociedade. As agressões contra a mulher

constituem uma verdadeira guerra silenciosa que coloca em risco apossibilidade de sermos felizes e termos uma nação estável e justa.

É possível dizer que, de certa forma, a luta pela libertação de

Moçambique nunca terminou totalmente?

Não terminou. E não se podem inventar culpados. Essa luta demora o seu

tempo, e a primeira coisa que se deve exigir é que façam as coisas com

 verdade. Não se pode inventar um passado de que somos apenas vítimas, e

continuar justificando os fracassos atuais como se não houve

responsabilidades dos nossos próprios dirigentes e das estratégias que

abraçamos. Não se pode continuar a dizer que está tudo bem e que a

oposição é que inventa aquilo que deveria nos envergonhar. Não teremos

futuro verdadeiro se continuarmos a mentir para o passado.