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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA MICHELLE BIANCA SANTOS DANTAS TRAGICIDADE NO CANTO XI DA ODISSÉIA: ANTICLÉIA, AGAMÉMNON, AQUILES E ÁJAX João Pessoa PB 2011

MICHELLE BIANCA SANTOS DANTAS

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Page 1: MICHELLE BIANCA SANTOS DANTAS

1

UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAIacuteBA

MICHELLE BIANCA SANTOS DANTAS

TRAGICIDADE NO CANTO XI DA ODISSEacuteIA

ANTICLEacuteIA AGAMEacuteMNON AQUILES E AacuteJAX

Joatildeo Pessoa ndash PB

2011

2

MICHELLE BIANCA SANTOS DANTAS

TRAGICIDADE NO CANTO XI DA ODISSEacuteIA

ANTICLEacuteIA AGAMEacuteMNON AQUILES E AacuteJAX

Dissertaccedilatildeo apresentada para avaliaccedilatildeo da obtenccedilatildeo

do tiacutetulo de Mestre na Aacuterea de Concentraccedilatildeo

Literatura e Cultura e Linha de Pesquisa Tradiccedilatildeo e

Modernidade Aleacutem dos elementos preacute e poacutes

textuais essa trabalho pesquisa constitui de trecircs

capiacutetulos Esta pesquisa doi desenvolvida atraveacutes do

Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Letras pela

Universidade Federal da Paraiacuteba

Orientador Prof Dr Arturo Gouveia de Arauacutejo

Joatildeo Pessoa ndash PB

2011

3

D192t Dantas Michelle Bianca Santos

Tragicidade no canto XI da Odisseacuteia Anticleacuteia Agamecircmnon Aquiles

e Aacutejax Michelle Bianca Santos Dantas - - Joatildeo Pessoa [sn] 2011

149f

Orientador Arturo Gouveia de Arauacutejo

Dissertaccedilatildeo (Mestrado) ndash UFPBCCHLA

1 Literatura e cultura 2 Literatura claacutessica 3 Homero 4 Gecircnero

traacutegico 5 Homero

UFPBBC CDU 82(043)

4

MICHELLE BIANCA SANTOS DANTAS

TRAGICIDADE NO CANTO XI DA ODISSEacuteIA

ANTICLEacuteIA AGAMEacuteMNON AQUILES E AacuteJAX

Dissertaccedilatildeo apresentada agrave Univesidade Federal da

Paraiacuteba como requisito parcial para obtenccedilatildeo do

tiacutetulo de Mestre na aacuterea de Literatura e cultura e

Linha de Pesquisa Tradiccedilatildeo e Modernidade

Aprovado em __________________________

BANCA EXAMINADORA

Prof Dr Arturo Gouveia de Arauacutejo (Orientador)

Universidade Federal da Paraiacuteba - UFPB

Profordf Drordf Sandra Luna (Examinadora)

Universidade Federal da Paraiacuteba - UFPB

Prof Dr Alzir Oliveira (Examinador)

Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN

Profordf Drordf Marinalva Vilar de Lima (Suplente)

Universidade Federal de Campina Grande - UFCG

5

A todos que comigo compartilharam as dificuldades e alegrias desta jornada

dedico este meu trabalho de Dissertaccedilatildeo

6

AGRADECIMENTOS

A Deus primeiramente agradeccedilo pelo dom da vida pelo amor e por toda

proteccedilatildeo Sem a forccedila divina eu natildeo conseguiria ultrapassar os obstaacuteculos enfrentados ao

longo deste mestrado

Agrave minha matildee D Bernadete agradeccedilo por ter me dado a luz iluminando-me no

meu nascer e no meu desenvolver assim como fez tambeacutem com minha irmatilde Mileyde a quem

agradeccedilo pela torcida

Ao meu esposo amado e fiel amigo agradeccedilo cada dia e cada segundo de

companheirismo e amor Juntos suportamos os desafios e renuacutencias juntos brindamos as

conquistas Por isso a Faacutebio agradeccedilo o amor que palavras natildeo tenho para expressar

Aos amigos agradeccedilo pelo apoio prestado pois estando perto ou distante sempre

torcem pelo meu sucesso e que naturalmente se reconhecem neste agradecimento

Agradeccedilo aos professores que foram importantes desde os passos iniciais da

minha vida acadecircmica Graccedila Martins Camen Servilla Elisalva Madruga Arturo Gouveia

como tambeacutem aos professores Milton Marques e Juvino Alves especialmente pela iniciaccedilatildeo

aos estudos claacutessicos

Ao meu orientador Prof Dr Arturo Gouveia agradeccedilo as pertinentes

consideraccedilotildees todo o aprendizado e a orientaccedilatildeo imparcial e efetiva

Agradeccedilo ao Prof Dr Fabriacutecio Possebon por dispor-se a revisar algumas

traduccedilotildees Ao Prof Dr Alzir Oliveira por aceitar a avaliar meu trabalho assim como a Profordf

Drordf Marinalva Vilar e a Prof Drordf Sandra Luna que atraveacutes de sua obra e de suas aulas

muito me ensinou sobre o traacutegico claacutessico

Agradeccedilo a Profordf Drordf Ana Marinho coordenadora do Programa de Poacutes-

Graduaccedilatildeo em Letras (PPGL) pelo apoio nesta jornada

Agrave Capes agradeccedilo o investimento que viabilizou a realizaccedilatildeo desta pesquisa

7

ὢ πόποι οἷον δή νυ θεοὺς βροτοὶ αἰτιόωνται

ἐξ ἡμέων γάρ φασι κάκ᾽ ἔμμεναι οἱ δὲ καὶ αὐτοὶ

σφῆισιν ἀτασθαλίηισιν ὑπὲρ μόρον ἄλγε᾽ ἔχουσιν

Oh grandes deuses Agora os mortais culpam os deuses

Pois de noacutes dizem vir a causa de todos seus males

quando]

eles mesmos por suas loucas presunccedilotildees suportam dores

contra o destino]

(Odisseacuteia I 32-34

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RESUMO

O presente trabalho Tragicidade no Canto XI da Odisseacuteia Anticleacuteia

Agameacutemnon Aquiles e Aacutejax visa analisar os aspectos traacutegicos observados no Canto XI da

Odisseacuteia e consequentemente sua relevacircncia na estrutura da referida eacutepica homeacuterica Esses

aspectos seratildeo estudados a partir dos encontros de Odisseu no Hades com a sua matildee

Anticleacuteia Agameacutemnon Aquiles e Aacutejax Para tanto utilizaremos entre outras obras A

Poeacutetica de Aristoacuteteles e suas consideraccedilotildees sobre o gecircnero eacutepico e o traacutegico Esta obra seraacute

fundamental para o desenvolvimento do nosso trabalho por ser um legado dos mais

importantes que temos sobre a definiccedilatildeo dos gecircneros e da estrutura da poicenthsij Aleacutem do

mais nela tambeacutem encontramos consideraccedilotildees sobre os elementos traacutegicos como aatildeth

Moiordfra asup1namacrgkh daimacrmwn aumlmartia uAacutebrij fomacrboj esup1leoj asup1nagnwiquestrisij e

principalmente sobre a katarsij Tais elementos como analisaremos tambeacutem podem ser

reconhecidos na eacutepica homeacuterica Assim constataremos em nossa pesquisa a assertiva de

Aristoacuteteles no seacuteculo V dC acerca da intergenaricidade Como vemos esse fato natildeo eacute

privilegio das literaturas modernas mas ao contraacuterio pode ser contemplado desde o Periacuteodo

Arcaico da Literatura Grega no seacuteculo VIII aC a partir de Homero e no caso especiacutefico do

nosso estudo no Canto XI da Odisseacuteia Neste observamos a manifestaccedilatildeo da tragicidade

que mais tarde no seacuteculo V aC seraacute o fundamento miacutetico das trageacutedias gregas Utilizaremos

tambeacutem para fundamentar-nos compreensatildeo do traacutegico autores como Vernant Pierre

Grimal Jacqueline de Romilly Sandra Luna Junito Brandatildeo entre outros A fim de que

possamos melhor abarcar o objetivo do nosso trabalho dividimo-lo em trecircs capiacutetulos o

primeiro intitulado ―Contextualizaccedilatildeo miacutetica e religiosa da Odisseacuteia o segundo ―Traacutegico

aspectos teoacutericos e conceituais e por fim o terceiro ―Tragicidade no Canto XI da Odisseacuteia

Anticleacuteia Agamecircmnon Aquiles Aacutejax em que analisaremos o aspecto traacutegico desses

encontros

Palavras-chave Literatura Claacutessica Homero Odisseacuteia Traacutegico

9

REacuteSUMEacute

Le preacutesent travail Tragiciteacute dans le Chant XI de lrsquoOdysseacutee Anticlea

Agamemnon Achilles et Ajax vise agrave analyser les aspects tragiques observeacutes dans le Chant XI

de llsquoOdysseacutee et en conseacutequence sa pertinance dans la structure de llsquoeacutepique homeacuterique

rapporteacutee Ces aspects seront eacutetudieacutes a partir des rencontres dlsquoOdysseus dans llsquoHadegraves avec

sa megravere Anticlea Agamemnon Achilles et Ajax De telle faccedilon nous utiliserons entre autres

oeuvres La Poeacutetique dlsquoAristote et ses consideacuterations sur le genre eacutepique et le tragique Cette

oeuvre sera fondamentale pour le deacuteveloppement de notre travail par ecirctre un heacuteritage des plus

importants que nous avons sur la deacutefinition des genres et de la structure de la poicenthsij En

outre dans cette oeuvre nous trouvons aussi consideacuterations sur les eacuteleacutements tragiques comme

aatildeth Moiordfra asup1namacrgkh daimacrmwn aumlmartia uAacutebrij fomacrboj esup1leoj asup1nagnwiquestrisij et

principalement sur la katarsij Tels eacuteleacutements comme nous analyserons peuvent aussi ecirctre

reconnus dans llsquoeacutepique homeacuterique Ainsi nous constaterons dans notre recherche llsquoassertive

dlsquoAristote au Ve siegravecle ap J-C concernant llsquointergeacuteneacutericiteacute Comme nous voyons ce fait

nlsquoest pas privilegravege des litteacuteratures modernes mais au contraire cela peut ecirctre envisageacute depuis

la Peacuteriode Archaiumlque de la Litteacuterature Grecque au VIIIe siegravecle avJ-C agrave partir dlsquoHomegravere et

dans le cas espeacutecifique de notre eacutetude dans le Chant XI de llsquoOdysseacutee Dans celui-ci nous

observons la manifestation de la tragiciteacute que plus tard au Ve siegravecle av J -C ce sera le

fondement mythique des trageacutedies grecques Nous utiliserons aussi pour se baser

compreacutehension du tragique auteurs comme Vernant Pierre Grimal Jacqueline de Romilly

Sandra Luna Junito Brandatildeo entre autres Afin que nous puissions mieux embrasser llsquoobjectif

de notre travail nous llsquoavons diviseacute en trois chapitres le premier intituleacute laquo Contextualisation

mythique et religieuse de llsquoOdysseacutee raquo le deuxiegraveme laquo Tragique aspects theacuteoriques et

conceptuels raquo et finalement le troisiegraveme laquo Tragiciteacute dans le Chant XI de llsquoOdysseacutee

Anticlea Agamemnon Achilles Ajax raquo ougrave nous analyserons llsquoaspect tragique de ces

rencontres

Mots-cleacute Litteacuterature Classique Homegravere Odysseacutee Tragique

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SUMAacuteRIO

INTRODUCcedilAtildeO________________________________________________________11

1 CONTEXTUALIZACcedilAtildeO MIacuteTICA E RELIGIOSA DA ODISSEacuteIA___________17

11 Representaccedilotildees e significados do mundo homeacuterico___________________17

12 Apresentaccedilatildeo da Odisseacuteia_______________________________________23

121 A Estrutura do poema___________________________________ _28

122 Odisseu o heroacutei multifacetado _____________________________36

2 TRAacuteGICO ASPECTOS TEOacuteRICOS E CONCEITUAIS_____________________47

21 Uma breve consideraccedilatildeo sobre o nosso estudo do Traacutegico______________47

22 O traacutegico e a trageacutedia___________________________________________48

23 O Traacutegico na Poeacutetica___________________________________________60

24 A busca do traacutegico outras reflexotildees teoacutericas ________________________79

3 TRAGICIDADE NO CANTO XI DA ODISSEacuteIA ANTICLEacuteIA AGAMEcircMNON

AQUILES AacuteJAX________________________________________________________89

31 Odisseacuteia momentos de tragicidade_________________________________89

32 Tragicidade no Canto XI da Odisseacuteia Anticleacuteia Agamecircmnon Aquiles

Aacutejax___________________________________________________________________115

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS______________________________________________144

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS______________________________________146

11

INTRODUCcedilAtildeO

A Odisseacuteia (do grego Obrvbardusseia) cuja autoria eacute atribuiacuteda a Homero pertence

juntamente com a Iliacuteada ao chamado periacuteodo arcaico da literatura grega que compreende do

seacuteculo VIII aC ao seacuteculo V aC Ambas as epopeacuteias homeacutericas satildeo ―os mais antigos poemas

em grego que sobreviveram ateacute noacutes (HAUSER 1995 p55) e constituem verdadeiros

legados artiacutesticos Isso entre outros fatores explicaria o fato de em pleno seacuteculo XXI essas

epopeacuteias ainda nos trazerem a possibilidade de pesquisas e estudos demonstrando a

inesgotabilidade de leituras literaacuterias

Logo ao iniacutecio da narrativa percebemos que a Odisseacuteia canta o noacutestos o regresso

ao lar e a paacutetria Assim o argumento da Odisseacuteia eacute o regresso de Odisseu a Iacutetaca apoacutes vinte

anos em metade deste tempo o heroacutei ocupa-se nos combates travados na Guerra de Troacuteia e

nos outros dez anos passa errante por mar e terra Com base nessa narrativa homeacuterica

pretendemos realizar um estudo de aplicaccedilatildeo do traacutegico na Odisseacuteia especificamente no

Canto XI quando Odisseu em sua passagem pelo Hades encontra-se respectivamente com

Anticleacuteia sua matildee cuja morte ele ignorava Agamecircmnon que sofre pela traiccedilatildeo armada pela

sua esposa com o amante Egisto Aquiles inconformado preferindo ser um trabalhador

campestre a ter que reinar sobre os mortos e Aacutejax ressentido ainda com o ocorrido na

disputa das armas do filho de Peleu

Para que realizemos essa anaacutelise estudaremos diversos autores desde os claacutessicos

como Platatildeo ateacute os mais modernos como Jean-Pierre Vernant Junito Brandatildeo entre outros

Contudo ressaltamos que nossa fundamentaccedilatildeo teoacuterica seraacute a Poeacutetica de Aristoacuteteles

Na Repuacuteblica como sabemos Platatildeo nega o traacutegico e a poesia para a organizaccedilatildeo

estatal argumentando que a sociedade deveria vigiar ―() os que se aventuram a tratar desse

gecircnero de faacutebulas () pois natildeo apenas eacute falso tudo que contam como de tudo inuacutetil para os

futuros combatentes (PLATAtildeO 2000 p 117) Jaacute Aristoacuteteles em A Poeacutetica ao contraacuterio

refere-se agrave poesia natildeo apenas como instrumento de educaccedilatildeo mas como um ato de criaccedilatildeo

delineado por estruturas e caracteriacutesticas proacuteprias que deve ser antes de tudo verossiacutemil O

estudo aristoteacutelico da poihsij natildeo estaacute centralizado ao contraacuterio de Platatildeo nos valores que

ela veicula e sim na organicidade estrutural e interna Desta forma em A Poeacutetica Aristoacuteteles

define a epopeacuteia e a trageacutedia como ―imitaccedilatildeo de homens superiores (ARISTOacuteTELES 1988

p 109) No entanto ele tambeacutem nos informa que esses gecircneros diferem visto que a epopeacuteia

12

tem metro uacutenico forma narrativa e maior extensatildeo enquanto a trageacutedia por se realizar dentro

de um periacuteodo do sol eacute mais breve O pensador grego diz ainda que apesar de todas as partes

da epopeacuteia estarem na trageacutedia e a reciacuteproca natildeo ser verdadeira haacute alguns elementos da

trageacutedia que podem ser encontrados nas epopeacuteias E esse argumento seraacute fundamental para

nosso trabalho pois observaremos jaacute na epopeacuteia homeacuterica especificamente no Canto XI da

Odisseacuteia aspectos de tragicidade que seratildeo mais tarde no seacuteculo IV aC a essecircncia miacutetica

das trageacutedias sejam elas de Eacutesquilo Soacutefocles eou Euriacutepides

Deste modo nossa pesquisa justifica-se pela necessidade de sugerir uma leitura

criacutetica que promova uma atualizaccedilatildeo dessa obra claacutessica Isso porque esse poema homeacuterico

ultrapassa os limites geograacutefico-temporais da Greacutecia Antiga constituindo-se assim numa

obra universal Inclusive sabemos da importacircncia dos textos homeacutericos dentro da proacutepria

cultura grega sendo sempre citados pelos filoacutesofos como por exemplo Platatildeo em A

Repuacuteblica e em Iacuteon e Aristoacuteteles em A Poeacutetica Os textos homeacutericos influenciaram tambeacutem

a produccedilatildeo poeacutetica que os sucedeu a exemplo das contribuiccedilotildees dos tragedioacutegrafos Neste

caso especiacutefico podemos ver o Canto XI da Odisseacuteia como um prenuacutencio das peccedilas

Agamecircmnon de Eacutesquilo componente da Oresteacuteia e Aacutejax de Soacutefocles jaacute que estas

desenvolvem as circunstacircncias jaacute pronunciadas no canto eacutepico citado Agamecircmnon sofrendo

por uma armadilha montada pela proacutepria esposa e Aacutejax sentindo-se desonrado por ter sido

preterido na disputa das armas de Aquiles permanecendo-se indiferente a Odisseu Desta

maneira entendemos nosso trabalho como relevante para o aprofundamento das pesquisas na

aacuterea da Literatura Claacutessica especificamente no que diz respeito agrave eacutepica homeacuterica Odisseacuteia e

aos estudos do traacutegico Aleacutem do mais temos consciecircncia de que nossa pesquisa seraacute tambeacutem

importante aos estudiosos da literatura em geral os quais natildeo devem perder de vista o berccedilo

literaacuterio ocidental

Atraveacutes de nossa pesquisa ―Tragicidade no Canto XI da Odisseacuteia Anticleacuteia

Agameacutemnon Aquiles e Aacutejax analisaremos como jaacute foi dito aspectos traacutegicos na citada

epopeacuteia de Homero a partir da ida ao Hades de seu heroacutei Odisseu em busca do adivinho

Tireacutesias No Hades ele encontra natildeo soacute o adivinho que o auxiliaraacute no trajeto de retorno agrave

paacutetria como tambeacutem a sua matildee Anticleacuteia e os destacados heroacuteis que combateram ao seu

lado na Guerra de Troacuteia Agamecircmnon Aquiles e Aacutejax

Para fundamentarmos o nosso trabalho aleacutem de Aristoacuteteles utilizaremos outros

autores que vatildeo auxiliar-nos na compreensatildeo da estrutura da eacutepica e da manifestaccedilatildeo do

traacutegico O estudo destes temas sugere-nos a ocorrecircncia da interrelaccedilatildeo entre os gecircneros

literaacuterios fazendo-nos compreender que este procedimento natildeo eacute um qualificativo especiacutefico

13

das literaturas modernas jaacute que pode ser constatado desde a Antiguidade Claacutessica O proacuteprio

Aristoacuteteles (1449a) chega a afirmar que o cocircmico estaacute para a Iliacuteada assim como a trageacutedia

estaacute para Odisseacuteia

Deste modo versando sobre os aspectos dos gecircneros claacutessicos e de suas

caracteriacutesticas auxiliar-nos-atildeo outros autores como por exemplo Anatol Rosenfeld Em O

teatro eacutepico (1985) Rosenfeld conceitua as caracteriacutesticas substantivas ou adjetivas dos

gecircneros dizendo-nos que ―No fundo toda obra literaacuteria de certo gecircnero conteraacute aleacutem dos

traccedilos estiliacutesticos mais adequados ao gecircnero em questatildeo tambeacutem traccedilos estiliacutesticos mais

tiacutepicos dos outros gecircneros (ROSENFELD 1985 p 18) Albin Lesky em A trageacutedia grega

(2006) ao tratar sobre o problema do traacutegico ressalta que nas epopeacuteias homeacutericas ―jaacute se

encontram germes em que se prepara a primeira e ao mesmo tempo a mais perfeita

objetivaccedilatildeo da visatildeo traacutegica do mundo no drama do seacuteculo V (LESKY 1976 p 18) E

assim como Platatildeo no Livro X da Repuacuteblica destaca a referecircncia de Homero como o pai da

trageacutedia

Utilizaremos tambeacutem a obra Arqueologia da accedilatildeo traacutegica o legado grego (2005) de

Sandra Luna para dar-nos respaldo teoacuterico-criacutetico acerca das origens e conceitos do traacutegico

A autora considera ―ser possiacutevel identificar nos versos homeacutericos momentos de intensa

tragicidade (LUNA 2005 p 30) Satildeo estes momentos de tragicidade que analisaremos no

Canto XI da Odisseacuteia por percebermos que haacute neste canto especificamente uma maior

potencialidade traacutegica apesar de termos momentos de tragicidade por toda a obra A presenccedila

do traacutegico revela-se ateacute mesmo pela circunstacircncia por Odisseu na porta do Hades buscando

Tireacutesias para que possa indicar-lhe o caminho de volta para casa que jaacute tentava haacute anos

Todavia encontra imagens muito mais desoladoras ndash sua matildee morta por saudades suas e seus

amigos de combate Agamecircmnon Aquiles e Aacutejax O primeiro foi encontrar a morte ingloacuteria

em casa pela proacutepria esposa o segundo havia conquistado a bela morte em campo de batalha

mas preferia ser um trabalhador do campo e o terceiro mantinha-se ainda tomado pelo

sentimento de desonra por natildeo ter ficado com as armas de Aquiles Aleacutem do mais muito do

que Tireacutesias iraacute revelar eacute bastante traacutegico mesmo Odisseu sabendo que cumprindo todos os

desiacutegnios conseguiraacute voltar para casa Isso porque apesar de Odisseu ter a revelaccedilatildeo de que

teraacute o esperado retorno fica tambeacutem tendo o conhecimento de que deveraacute enfrentar ainda

muitos outros obstaacuteculos a exemplo do combate que travaraacute contra os pretendentes jaacute em

Iacutetaca

Sobre a origem da trageacutedia Junito Brandatildeo (2007) seguindo o jaacute afirmado por

Aristoacuteteles reafirma a ligaccedilatildeo de Dioniso com esse gecircnero dramaacutetico por isso diz ldquoA

14

trageacutedia nasceu do culto de Dioniso isto apesar de algumas tentativas ainda natildeo se

conseguiu negar Ningueacutem pocircde ateacute hoje explicar a gecircnese do traacutegico sem passar pelo

elemento satiacuterico (BRANDAtildeO 2007 p 9) Em ―Homero e seus poemas deuses mitos e

escatologia Junito Brandatildeo (1998) tambeacutem nos respalda ao dizer que a maior novidade

trazida pela Odisseacuteia ―estaacute no embriatildeo da ideacuteia de culpa e castigo em que a hyacutebris a

violecircncia a insolecircncia a ultrapassagem do meacutetron que seraacute a mola mestra da trageacutedia

comeccedilam a despontar (BRANDAtildeO 1998 p 134)

Com a realizaccedilatildeo da pesquisa supracitada pretendemos contribuir para a

ampliaccedilatildeo dos estudos sobre a Odisseacuteia de Homero enaltecendo a sua importacircncia literaacuteria

mas tambeacutem miacutetico-religiosa e sua inter-relaccedilatildeo traacutegica especificamente no Canto XI Para

tanto iremos expor as discussotildees acerca dos conceitos da epopeacuteia e do traacutegico realizadas

primeiramente por Aristoacuteteles que nos deu valiosas contribuiccedilotildees acerca dos gecircneros

claacutessicos e suas especificidades Tambeacutem realizaremos a traduccedilatildeo dos versos a serem citados

da Odisseacuteia para que entremos em contato com o texto original na perspectiva de nos

aproximarmos mais de sua estrutura morfossintaacutetica e semacircntica Seratildeo realizadas as

traduccedilotildees das citaccedilotildees da Poeacutetica por considerarmos este o texto teoacuterico base para a nossa

produccedilatildeo analiacutetica centralizada justamente na tragicidade do Canto XI da Odisseacuteia

Tracicidade esta que funciona como prenuacutencio das trageacutedias Aacutejax de Soacutefocles e Agamecircmnon

de Eacutesquilo

A fim de que melhor possamos abarcar o estudo do traacutegico no jaacute citado canto da

epopeacuteia homeacuterica dividimos o desenvolvimento do nosso trabalho em trecircs capiacutetulos que

seratildeo descriminados a seguir

No primeiro intitulado ―Contextualizaccedilatildeo miacutetica e religiosa da Odisseacuteia

realizaremos a apresentaccedilatildeo desta eacutepica destacando suas caracteriacutesticas e especificidade

temaacutetica e estrutural Assim discorreremos acerca das representaccedilotildees e significaccedilotildees comuns

ao mundo homeacuterico aleacutem de realizarmos uma apresentaccedilatildeo do poema a partir de sua

estrutura e de seu heroacutei Odisseu Deste analisaremos o caraacuteter multifacetado que eacute revelado

tanto em suas accedilotildees como preconiza Aristoacuteteles na Poeacutetica bem como atraveacutes dos seus

epiacutetetos polutropoj polumhtij entre outros Estes e outros epiacutetetos seratildeo aprofundados

estrutural e semanticamente no momento propiacutecio todavia os jaacute citados podem ser traduzidos

por o de muitas voltas e o muito astuto

O tiacutetulo do nosso segundo capiacutetulo eacute ―Traacutegico aspectos teoacutericos e conceituais

em que pretendemos discorrer acerca do traacutegico tanto pelo aspecto teoacuterico como tambeacutem

15

conceitual para que possamos entender melhor sua constituiccedilatildeo e manifestaccedilatildeo natildeo apenas

nas trageacutedias como tambeacutem na eacutepica homeacuterica principalmente no Canto XI da Odisseacuteia

Para tanto desenvolveremos primeiramente um subtoacutepico sobre o traacutegico e a trageacutedia

estabelecendo as relaccedilotildees existentes entre ambos Entatildeo partiremos para observar e discutir a

partir da Poeacutetica e posteriormente faremos a anaacutelise das perspectivas que outros teoacutericos tecircm

sobre o traacutegico e ateacute que ponto eles se aproximam distanciam ou auxiliam no entendimento

do traacutegico ressalta-se no entanto que o conceito de traacutegico para noacutes relevante eacute o claacutessico

especificamente o realizado no mundo grego

No terceiro capiacutetulo intitulado ―Tragicidade no Canto XI da Odisseacuteia Anticleacuteia

Aquiles Agamecircmnon e Aacutejax faremos a anaacutelise dos elementos motivadores de nossa

dissertaccedilatildeo Por isso consideramos conveniente logo no iniacutecio de nossa proposta dedicarmos

um subtoacutepico para ilustrar que ao decorrer de toda a obra podemos identificar momentos de

tragicidade Desta maneira veremos que o aspecto traacutegico natildeo se restringe ao Canto XI

objeto central de nossas ponderaccedilotildees tanto que poderemos encontraacute-lo em outros Cantos

Entretanto justificamos nossa escolha pelo Canto XI por enxergarmos como o que possui a

manifestaccedilatildeo mais traacutegica ao longo de toda a Odisseacuteia estes motivos e consideraccedilotildees seratildeo

discutidos no momento propiacutecio E no segundo toacutepico deste terceiro capiacutetulo ―Tragicidade

no Canto XI da Odisseacuteia Anticleacuteia Aquiles Agamecircmnon Aacutejax realizaremos a anaacutelise de

toda a nossa proposta inicial jaacute que ateacute laacute teremos maior possibilidade de apreendecirc-lo de uma

maneira mais consistente Ateacute mesmo porque nos capiacutetulos e toacutepicos anteriores discutiremos

com clareza necessaacuteria os elementos que nos ajudaratildeo a entender a proposta geral da

dissertaccedilatildeo e sua efetuaccedilatildeo analiacutetica

Partindo da perspectiva do traacutegico presente na Poeacutetica objetivamos realizar uma

aplicaccedilatildeo desse estudo no Canto XI da Odisseacuteia E assim tentarmos (fazer) compreender a

realizaccedilatildeo do traacutegico neste Canto homeacuterico Pois mesmo sabendo que o traacutegico soacute foi

desenvolvido efetivamente pelos tragedioacutegrafos gregos percebemos que sua realizaccedilatildeo eacute

comum jaacute nas epopeacuteias homeacutericas Desta maneira poderemos ver Homero como o poeta que

nos legou natildeo apenas as duas primeiras obras literaacuterias do Ocidente Iliacuteada e Odisseacuteia mas

tambeacutem as primeiras manifestaccedilotildees traacutegicas de nossa literatura

Ao longo de nossa pesquisa utilizamo-nos de diversas ediccedilotildees de uma mesma obra

tanto para realizaccedilatildeo das leituras como das traduccedilotildees (em que cotejamos as jaacute editadas

traduccedilotildees) Por isso indicaremos a seguir todas as ediccedilotildees usadas apesar de todas elas jaacute

constarem nas Referecircncias Bibliograacuteficas Acreditamos que tal procedimento facilitaraacute

16

metodologicamente a construccedilatildeo e a leitura do nosso trabalho Logo no decorrer do nosso

texto citaremos soacute o nome das obras e natildeo as datas de ediccedilotildees

Assim utilizamos para entendimento da Poeacutetica Repuacuteblica e Odisseacuteia aleacutem do

texto original as ediccedilotildees que listaremos a seguir Para Poeacutetica usamos Les Belles Lettres de

1979 com traduccedilatildeo de Hardy Cultrix de 1988 traduzida por Jaime Bruna Ars Poeacutetica de

1992 com traduccedilatildeo de Eudoro de Sousa Para Repuacuteblica fizemos uso das ediccedilotildees de I

mammut em Tutte le opere de 2009 e da Editora Universitaacuteria da UFPA de 2000 cuja

traduccedilatildeo foi feita por Carlos Alberto Nunes Para Odisseacuteia utilizamos Otoo Pierre Editores

de 1980 com traduccedilatildeo de Jaime Bruna a Livraria Saacute da Costa de 1980 traduzida por Dias

Palmeira e Alves Correia Les Belles Lettres 2002 por Victor Beacuterard e Ediouro de 2009

traduzida por Carlos Alberto Nunes

17

1 CONTEXTUALIZACcedilAtildeO MIacuteTICA E RELIGIOSA DA ODISSEacuteIA

11 Representaccedilotildees e significados do mundo homeacuterico

Segundo a tradiccedilatildeo Homero eacute o autor das duas primeiras obras literaacuterias do Ocidente

que nos chegaram Iliacuteada e Odisseacuteia Tal afirmaccedilatildeo contudo natildeo nos soluciona

problemaacuteticas como por exemplo o de sua bibliografia que ateacute hoje eacute um grande desafio

Mas se a ciecircncia moderna natildeo consegue provas de sua existecircncia permitindo-nos afirmar

seguramente quem foi Homero como viveu quando e onde nasceu Para a tradiccedilatildeo claacutessica

sua existecircncia eacute inquestionaacutevel por isso autores como Platatildeo Aristoacuteteles e Hesiacuteodo referem-

se claramente agrave sua figura Vejamos o que diz Platatildeo

() ῥεηένλ ἦλ δ᾽ ἐγώ θαίηνη θηιία γέ ηίο κε θαὶ αἰδὼο ἐθ παηδὸο ἔρνπζα

πεξὶ κήξνπ ἀπνθσιύεη ιέγεηλ (PLATAtildeO X 595 b-c)

Preciso falar dizia eu contudo o afeto e o respeito certamente que tenho

sobre Homero desde a infacircncia impede-me de falar1

Isso tambeacutem o faz Aristoacuteteles (Poeacutetica Livro III 1448 a 22-26) porque

discutindo acerca da poesia e de seus objetos de imitaccedilatildeo tambeacutem se refere objetivamente a

Homero e a sua poesia comentando sua produccedilatildeo eacutepica e caracteriacutesticas Como podemos ver

parece indiscutiacutevel para os gregos claacutessicos a existecircncia de Homero

No entanto deixando as incertezas biograacuteficas de lado compreendamos que o

autor da Odisseacuteia nosso objeto de pesquisa existiu provavelmente no periacuteodo arcaico da

literatura grega que compreende o periacuteodo do seacuteculo VIII ateacute V aC Homero produziu suas

eacutepicas no dialeto jocircnio com alguns empreacutestimos do eoacutelico e apesar de terem surgido

oralmente por volta do seacuteculo VIII aC soacute em VI aC eacute que passam para escrita a mando do

tirano Pisiacutestratos que acreditava descender de Nestor de Pilos Neste mesmo seacuteculo como

nos informa Hauser (1995 p63) havia uma lei que estabelecia obrigatoriamente a recitaccedilatildeo

completa dos poemas de Homero no Festival de Panateneacuteias Como no seacuteculo VI aC as

eacutepicas homeacutericas passaram para a forma escrita aleacutem de terem seus recitais como

1 Ressaltamos que as traduccedilotildees utilizadas ao longo do trabalho satildeo nossas Contudo quando natildeo o forem

indicaremos seus respectivos autores Aleacutem disso a finalidade das traduccedilotildees feitas eacute operacional sem fins

esteacuteticos

18

obrigatoacuterios crecirc-se que desde entatildeo os poemas homeacutericos natildeo sofreram tantas mudanccedilas em

relaccedilatildeo aos poemas orais iniciais

Para Albin Lesky em Historia da Literatura Grega (1995) Homero eacute iniacutecio e

resultado herdeiro e criador Ele eacute o iniacutecio e criador da poesia grega influente ao mesmo

tempo eacute o fim e o herdeiro de um longo resultado de desenvolvimento poeacutetico e miacutetico

Diante disso o que nos importa mesmo entender eacute que muito do que sabemos

hoje sobre o mundo grego arcaico veio-nos por meio das eacutepicas homeacutericas Iliacuteada e Odisseacuteia

que nos legaram as visotildees sobre os mitos os deuses os heroacuteis a organizaccedilatildeo social enfim O

que natildeo podemos esquecer eacute que natildeo haacute tatildeo facilmente uma uacutenica visatildeo de mundo sobretudo

quando contrapomos as duas eacutepicas pois aiacute as diferenccedilas comeccedilam a aumentar

Assim como vimos anteriormente existem ainda discussotildees acerca da

comprovaccedilatildeo histoacuterica de Homero suas nuances e complicaccedilotildees Isto faz com que natildeo

possamos afirmaacute-lo como autor da Iliacuteada e da Odisseacuteia e sim que estas obras tecircm sua

autoria atribuiacuteda a Homero No entanto uma nova incongruecircncia surge quando centralizamos

nosso estudo para a Odisseacuteia Resumindo entendamos entatildeo que se a autoria de Homero

para a Iliacuteada eacute incerta esta se amplia ainda mais em relaccedilatildeo agrave Odisseacuteia A causa desse fato

daacute-se porque analisando-se ambas as eacutepicas percebem-se diferenccedilas natildeo apenas temaacuteticas

mas estruturais e conceituais que nos fazem deduzir que aleacutem de a Odisseacuteia ter sido escrita

depois da Iliacuteada poderia inclusive natildeo ser homeacuterica Na verdade natildeo nos importa muito

saber se Homero foi o autor ou natildeo da Odisseacuteia ateacute porque nossa anaacutelise basear-se-aacute no texto

mas nos interessa sim perceber quais satildeo estas diferenccedilas entre a Iliacuteada e a Odisseacuteia

principalmente as de cunho estrutural e de concepccedilatildeo de mundo

Uma destas diferenccedilas por exemplo pode ser vista a partir da representaccedilatildeo da

a)reth Para W Jaeger (2001 p 27) Homero deu-nos o mais antigo testemunho da cultura

aristocraacutetica grega principalmente atraveacutes da a)reth 2 cent Seja ela manifestada pela excelecircncia

guerreira como ocorre na Iliacuteada seja pelas qualidades intelectuais como ocorre na Odisseacuteia

E ainda completa ―a Odisseacuteia exalta sobretudo no seu heroacutei principal acima da valentia que

passa a lugar secundaacuterio a prudecircncia e a astuacutecia (JAEGER 2001 p 27) Muitas outras

2 De acordo com Renato Romizi (2007) o tema deste nome abrvbarre eacute oriundo de abrvbarreskw piaccio ou seja

agradar seu radical abrvbarr indica superioridade daiacute abrvbarrethcent significa excelecircncia de bravura coragem no sentido

militar ou virtude meacuterito no sentido moral O Le grand Bailly daacute-nos a traduccedilatildeo meacuterite ou qualiteacute ou seja

meacuterito e qualidade num sentido de excelecircncia e tambeacutem nos aponta para abrvbarreiwn que se relaciona a coragem

valentia E o Liddell and Scottrsquos Greek-English Lexicon relaciona a abrvbarrethcent grega a uirtus latina e aponta

tambeacutem para uma diferenccedila de sentido em relaccedilatildeo ao valor guerreiro valour e o moral for virtue merit da

virtude ou do meacuterito Assim podemos entender abrvbarrethcent como a qualidade guerreira eou a distinccedilatildeo do meacuterito

da virtude de um homem nobre

19

diferenccedilas podem ser observadas mas por hora nos deteremos neste exemplo jaacute que no

proacuteximo toacutepico ―Apresentaccedilatildeo da Odisseacuteia discutiremos mais sobre essas questotildees

De todo o modo apesar de especificidades diversas o que importa eacute percebermos que

os heroacuteis homeacutericos buscam a timh a honra como meio de assegurarem sua a)reth

qualidade do guerreirodo nobre Isso porque ―() o homem homeacuterico soacute adquire consciecircncia

do seu valor pelo reconhecimento da sociedade a que pertence () ele mede a Arete proacutepria

pelo prestiacutegio que disputa entre seus semelhantes (Ibidem p 31) Portanto se tudo o que

almeja o homem homeacuterico eacute a timh para atraveacutes dela alcanccedilar a a)reth que eacute perpeacutetua daiacute

a sua negaccedilatildeo ou ultraje torna-se um grave problema pois ―Para o homem homeacuterico e para o

mundo da nobreza desse tempo a negaccedilatildeo da honra era em contrapartida a maior trageacutedia

humana(JAEGER 2001 p 31)

Muitos satildeo os exemplos na literatura grega a respeito dessa honra ultrajada

inclusive como disse Jaeger (2001) resultando em trageacutedia Aliaacutes o grande tema das

trageacutedias gregas seraacute justamente a queda de um heroacutei Em Aacutejax de Soacutefocles por exemplo o

heroacutei ao vecirc-se desonrado por ter sido preterido na disputa das armas de Aquiles parte para

vingar-se dos chefes gregos mas iludido por Atena mata animais do rebanho Ao reconhecer

a falha cometida resolve entatildeo matar-se por vecirc-se totalmente desonrado

Bem provavelmente estaacute no Canto I da Iliacuteada um dos maiores exemplos de

desonra da literatura grega Neste Canto Aquiles retira-se da guerra quando tem seu geraj

ou seja seu precircmio de guerra3 tomado por Agamecircmmnon Este geraj distingue o heroacutei dos

demais e sem ele natildeo pode ter a sua timh logo sem esta natildeo poderaacute alcanccedilar a a)reth A

importacircncia da timh fica bem clara nas palavras reclamantes de Aquiles a matildee vejamos

μῆτερ ἐπεί μ᾽ ἔτεκές γε μινυνθάδιόν περ ἐόντα

τιμήν πέρ μοι ὄφελλεν Ὀλύμπιος ἐγγυαλίξαι

355 Ζεὺς ὑψιβρεμέτης νῦν δ᾽ οὐδέ με τυτθὸν ἔτισεν

ἦ γάρ μ᾽ ἈτρεἸδης εὐρὺ κρείων Ἀγαμέμνων

ἠτίμησεν ἑλὼν γὰρ ἔχει γέρας4 αὐτὸς ἀπούρας5

(Iliacuteada I 353-357)

Matildee como me geraste de curta existecircncia

3 O referido precircmio era Briseide escrava de Aquiles que eacute tomada por Agamecircmnon ao ter que ceder a sua

escrava Criseide a fim de aplacar a fuacuteria de Apolo 4 Os destaques satildeo nossos

5 Texto disponiacutevel em

httpwwwhsaugsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_il01html acessado em 22 de

abril agraves 1604 hs

20

seria justo o Oliacutempio Zeus a minha honra fazer aumentar aquele que

355 ressoa do alto ceacuteu Agora em verdade ele natildeo me honra nem um

[pouco

pois o Atrida Agamecircmnon o poderoso senhor desonrou-me

jaacute que capturando tem o meu precircmio de guerra tendo ele mesmo

[arrancado-me

Esta busca de Aquiles em ter seu geraj e consequentemente sua timh eacute

natural e justificaacutevel pois este mundo grego arcaico girava em torno desses elementos Nesta

cena em que reclama agrave matildee sua honra e questiona o compromisso de Zeus com sua causa natildeo

haacute arrogacircncia por parte de Aquiles ele busca a realizaccedilatildeo de aidwj e nemesij ou seja do

pudor e da justiccedila Pois natildeo eacute justo que ele aleacutem de morrer jovem tenha tambeacutem que morrer

desonrado E tanto aidwj quanto nemesij ―satildeo em Homero conceitos constitutivos do

ideal eacutetico da aristocracia (JAEGER 2001 p28) Devemos perceber a significaccedilatildeo que estes

conceitos tecircm para o mundo homeacuterico e como satildeo representados a fim de que entendamos

seus valores e significados A citaccedilatildeo abaixo eacute bastante esclarecedora deste fato

Os heroacuteis travavam-se mutuamente com respeito e honra constantes

Assentava nisso toda a sua ordem social A acircnsia de honra era neles

simplesmente insaciaacutevel sem que isto seja caracteriacutestica moral peculiar aos

indiviacuteduos como tais Era natural e indiscutiacutevel que os heroacuteis maiores e os

priacutencipes mais poderosos exigissem uma honra cada vez mais alta Ningueacutem

receia na Antiguidade reclamar a honra devida a um serviccedilo prestado

(JAEGER 2001 p 31)

Como vemos eacute natural dos heroacuteis buscarem sua timh a fim de alcanccedilarem a

a)reth e isso para os gregos natildeo se confunde com vaidade mas pelo contraacuterio relaciona-

se agrave aspiraccedilatildeo do valor pessoal Na Odisseacuteia como jaacute foi dito essa a)reth estaacute relacionada agrave

virtude intelectual e natildeo guerreira como ocorre na Iliacuteada Por isso Odisseu destaca-se como

o polumhtij o muito astuto que remete a um valor intelectual diferentemente do epiacuteteto de

Aquiles aOacuteristoj a)xaiwcurrenn o melhor dos aqueus que se refere a sua qualidade guerreira de

superioridade de batalha em relaccedilatildeo aos demais

Aleacutem de observarmos essa modificaccedilatildeo conceitual que existe na a)reth da Iliacuteada

para a Odisseacuteia vecirc-se tambeacutem nesta a busca da gloacuteria feita atraveacutes da sobrevivecircncia e natildeo da

morte como ocorre na Iliacuteada Aquiles por exemplo pretende para ser imortalizado morrer

em campo de batalha jaacute Odisseu busca natildeo soacute viver mas sobreviver a todos os obstaacuteculos

para que em sua casa e em sua paacutetria alcance a gloacuteria domiciliar Esses fatos satildeo importantes

21

para que enxerguemos a natildeo homogeneidade nas representaccedilotildees e significaccedilotildees homeacutericas e

devem ser compreendidos em sua completude e diversidade O mundo grego representado por

Homero natildeo eacute homogecircneo assim sendo tambeacutem natildeo pode ser homogecircneo o mundo homeacuterico

de que tantos falam

A respeito da religiosidade Walter Friedrich Otto em Os deuses da Greacutecia (2005)

diz haver em Homero uma clara e natural expressatildeo religiosa Neste mundo de Homero vecirc-se

tambeacutem a organizaccedilatildeo divina a partir da religiatildeo oliacutempica que era segundo Otto mais

paternalista diferente da primordial relacionada agrave Gaicurrena a Terra e portanto mais ao

feminino Otto diz-nos tambeacutem que no mundo homeacuterico o contato com o morto natildeo vai

significar contaminaccedilatildeo ao contraacuterio do que comeccedila a ocorrer nas trageacutedias gregas Ao fazer

uma comparaccedilatildeo entre Hesiacuteodo e Homero ou seja dois representantes do mundo grego

arcaico Otto observa que em Hesiacuteodo temos narrativas mais proacuteximas do fantaacutestico do que

em Homero Segundo o autor Hesiacuteodo aproximar-se-ia do fantaacutestico com suas narraccedilotildees

sobre o surgimento do universo dos deuses dos poetas enfim Jaacute Homero ao contraacuterio

poupar-nos-ia de descriccedilotildees mais proacuteximas do fantaacutestico Para exemplificar sua tese Otto cita

o fato de que Atena mesmo epitetada por o)brimopater ou seja a filha do pai poderoso

natildeo teraacute em nenhum momento descriccedilatildeo do seu nascimento Atena como sabemos eacute

concebida a partir da cabeccedila do proacuteprio pai Zeus inclusive jaacute nascendo adulta e armada

Homero pode ateacute natildeo descrever este episoacutedio mas Hesiacuteodo o faz na Teogonia Vejamos o

excerto abaixo

Ζεὺς δὲ θεῶν βασιλεὺς πρώτην ἄλοχον θέτο Μῆτιν

πλεῖστα θεῶν εἰδυῖαν ἰδὲ θνητῶν ἀνθρώπων

ἀλλ ὅτε δὴ ῥ ἤμελλε θεὰν γλαυκῶπιν Ἀθήνην

τέξεσθαι τότ ἔπειτα δόλωι φρένας ἐξαπατήσας

890 αἱμυλίοισι λόγοισιν ἑὴν ἐσκάτθετο νηδὺν

Γαίης φραδμοσύνηισι καὶ Οὐρανοῦ ἀστερόεντος ()

Αὐτὸς δ ἐκ κεφαλῆς γλαυκώπιδα γείνατ Ἀθήνην

925 δεινὴν ἐγρεκύδοιμον ἀγέστρατον ἀτρυτώνην

πότνιαν ἧι κέλαδοί τε ἅδον πόλεμοί τε μάχαι τε

Ἥρη δ Ἥφαιστον κλυτὸν οὐ φιλότητι μιγεῖσα

γείνατο καὶ ζαμένησε καὶ ἤρισε ὧι παρακοίτηι

ἐκ πάντων τέχνηισι κεκασμένον Οὐρανιώνων6

(Teogonia 886-891924-929)

6 Texto disponiacutevel em httpwwwhs-

augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Hesiodoshes_theohtml acessado em 22 de abril agraves 2048

hs

22

Zeus rei dos Deuses primeiro desposou Astuacutecia

mais saacutebia que os deuses e os homens mortais

Mas quando ia parir a Deusa de olhos glaucos Atena

ele enganou sua entranhas com ardil

890 com palavras sedutoras e engoliu-a ventre abaixo

por conselhos de Terra e do Ceacuteu constelado

()

Ele proacuteprio da cabeccedila gerou a de olhos glaucos

925 Atena terriacutevel estrondante guerreira infatigaacutevel

soberana a quem apraz fragor combate e batalha

Hera por raiva e por desafio a seu esposo

natildeo unida em amor gerou Hefesto

nas artes brilho agrave parte de toda raccedila do Ceacuteu7

Ainda segundo Otto em Homero temos pela primeira vez uma ideacuteia clara a

respeito do destino humano Por isso no Canto XXII da Iliacuteada Atena ao impelir Heitor ao

combate com Aquiles natildeo o faz agir assim apenas por desafeto mas tambeacutem para ajudaacute-lo a

cumprir seu destino como bem explica Otto ―O divino se faz demoniacuteaco para quem foi

chamado pelo destino (2005 p 252)

Otto chama-nos a atenccedilatildeo para outro aspecto importante na representaccedilatildeo

homeacuterica a respeito da significaccedilatildeo das Moiras e as diferenccedilas de posicionamento em relaccedilatildeo

a elas por parte de Hesiacuteodo e Homero Desta maneira as Moiras referidas por Hesiacuteodo na

Teogonia fazem parte do mundo grego arcaico e cada uma cumpre uma funccedilatildeo especiacutefica

Cloto tece o fio da vida a Laacutequesis mede e a Aacutetropos corta

Na Teogonia elas satildeo sempre referidas no plural Moiras e satildeo representadas

como aquelas que nos datildeo bens e males ou seja datildeo a parte que nos cabe e esta pode ser boa

ou maacute Elas aparecem nomeadas tambeacutem por Queres Eriacutenias sempre no plural estatildeo sempre

pressentes em nascimentos mortes e casamentos e satildeo perseguidoras implacaacuteveis daqueles

que cometem crimes de sangue derramando sangue de parente Em Homero ao contraacuterio

essa representaccedilatildeo do destino eacute realizada no singular Moicurrenra e estaacute relacionada agraves

determinaccedilotildees negativas de morte quinhatildeo cataacutestrofe destino ndash esta observaccedilatildeo pode ser

feita principalmente na Iliacuteada Na Odisseacuteia contudo observamos uma exceccedilatildeo pois apesar

de serem unificadas daiacute a utilizaccedilatildeo do singular elas seratildeo responsaacuteveis pela determinaccedilatildeo do

destino de Odisseu e este estaacute destinado a alcanccedilar a meta traccedilada Mesmo assim apesar da

Moicurrenra ter-lhe destinado bens futuros Odisseu teraacute que passar por inuacutemeras dificuldades ateacute

7 Traduccedilatildeo de Jaa Torrano (2009)

23

que possa retornar ao lar Ateacute porque em Homero o caraacuteter da Moicurrenra eacute restritivo Assim

mesmo para Odisseu ela prescreve em muitos momentos que ele voltaraacute mas ainda natildeo ateacute

que venha a sofrer e cumprir todos os desiacutegnios

Na eacutepoca homeacuterica segundo Otto vemos tambeacutem a representaccedilatildeo de perda do

culto ao divino mais especificamente na Odisseacuteia Como exemplo maior desta situaccedilatildeo em

que o culto ao divino mostra-se enfraquecido constatamos em VIII v 267 a narraccedilatildeo por

Demoacutedoco do caso amoroso entre Ares e Afrodite servindo de contentamento para os

ouvintes assim o culto divino eacute transformado em diversatildeo Na Odisseacuteia Telecircmaco chega a

desconfiar se mesmo com a ajuda de Atena consiguiraacute vencer os pretendentes Esta

peculiaridade em Homero eacute importante pois influencia produccedilotildees poeacuteticas posteriores a

exemplo das trageacutedias em que o poder divino seraacute questionado

Sobre as variadas representaccedilotildees culturais que faz Homero do mundo grego

arcaico sabemos que ela natildeo eacute uniforme mesmo sendo a micecircnica a realidade central da

eacutepica homeacuterica Desse modo diz-nos Denys Page (1977) acerca da heterogeneidade

mimetizada por Homero que ―quando nos voltamos para o ambiente poliacutetico e social de

Homero a dificuldade estar em ele nos parecer um quadro composto com elementos de

civilizaccedilotildees diferentes (PAGE 1977 p 19) Assim temos nas obras homeacutericas todo um

arcabouccedilo de representaccedilotildees e evoluccedilotildees do mundo grego sejam estas religiosas culturais

linguumliacutesticas dos versos dos mitos heroacuteicos sejam divinas entre outras

12 Apresentaccedilatildeo da Odisseacuteia

A respeito da literatura grega podemos identificar no geral trecircs momentos

baacutesicos de produccedilatildeo literaacuteria ocorridos antes de Cristo satildeo eles o Periacuteodo Arcaico que se

inicia no seacuteculo VIII aC e termina em V aC o Periacuteodo Claacutessico de V aC ao seacuteculo IV aC

e o denominado Periacuteodo Alexandrino iniciado em IV aC e estendendo-se ateacute III aC

O Periacuteodo Arcaico (VIII ndash V a C) eacute o iniciador da literatura ocidental marcado

notadamente por forte influecircncia da oralidade dos rapsodos e aedos Nesse periacuteodo satildeo

compostas as obras iniciadoras de toda a literatura ocidental Iliacuteada e Odisseacuteia de Homero e

Teogonia e Os Trabalhos e os Dias de Hesiacuteodo A visatildeo de mundo dessa eacutepoca eacute regida pelas

24

leis da qemij para os deuses e dimacrkh para os homens o muordfqoj8 explica o mundo e sua

organizaccedilatildeo os heroacuteis defendem a paacutetria a famiacutelia e sua timh a honra para consagrarem-se

com a a)reth (a virtude guerreira intelectual da nobreza)

No Periacuteodo Claacutessico (seacuteculo V ndash IV a C) representa-se o mundo da poacutelis Nesse

periacuteodo natildeo haacute a centralizaccedilatildeo na lei divina dos deuses qemij nem na lei divina direcionada

aos homens dikh como ocorre no mundo arcaico Agora haacute o nomoj a lei escrita que deve

nortear os cidadatildeos da poacutelis Assim o loacutegoj atraveacutes do discurso e do raciociacutenio loacutegico eacute

quem explica o mundo sob a reflexatildeo filosoacutefica A literatura dessa fase representa por meio

das trageacutedias o conflito e a fragilidade humana diante desse mundo Dessa maneira observar-

se-aacute o conflito entre o muordfqoj e o loacutegoj ou seja os heroacuteis do mundo arcaico estaratildeo em

conflito com o novo mundo e suas novas leis Representam essa fase os tragedioacutegrafos

Eacutesquilo Soacutefocles e Euriacutepedes

No Periacuteodo Alexandrino (seacuteculo IV ndash III a C) temos a expansatildeo do mundo

grego atraveacutes de Alexandre o Grande (335-323 a C) e aproximadamente no seacuteculo III

aC a construccedilatildeo da Biblioteca de Alexandria que como sabemos reuacutene uma infinidade de

obras de extrema importacircncia sendo das maiores bibliotecas que o mundo antigo registra

Nesse periacuteodo Apolocircnio de Rhodes produz Argonaacuteuticas por volta de 295 aC Mas logo

apoacutes o povo romano que comeccedila a expandir suas conquistas e domiacutenios pelo mundo toma a

Greacutecia e a partir dessa influecircncia forma a sua proacutepria literatura

A Odisseacuteia entatildeo composta no seacuteculo VIII aC pertence ao chamado Periacuteodo

Arcaico (VIII ndash V a C) da literatura grega Sua autoria eacute atribuiacuteda a Homero e sabe-se que

foi produzida posteriormente agrave Iliacuteada apesar de natildeo podermos determinar com certeza qual o

periacuteodo de produccedilatildeo de ambas Contudo de acordo com Jaeger observamos que ―do ponto de

vista histoacuterico a Iliacuteada eacute um poema muito mais antigo A Odisseacuteia reflete um quadro muito

posterior da histoacuteria da cultura (JAEGER 2001 p 37) Na Iliacuteada temos como eixo central

da narraccedilatildeo a ira funesta de Aquiles sua retirada e retorno aos combates na Guerra de Troacuteia

Jaacute na Odisseacuteia o eixo estaacute no retorno de Odisseu agrave sua paacutetria e os combates que iraacute travar

com os pretendentes que apoacutes sua saiacuteda para a Guerra de Troacuteia invadem a sua casa

banqueteam-se diariamente pretendendo casar com a sua esposa e apossar-se de seus bens

8 Conforme nos esclarece Vernant em La gregravece ancienne du mythe agrave la raison (1990 p 9-11) em grego

arcaico mucurrenqoj significa palavra discurso mas a partir das discussotildees filosoacuteficas do seacuteculo V aC passa a

figurar em oposiccedilatildeo a logoj designando entatildeo a palavra pronunciada sem reflexatildeo racional contrariamente a

logoj que passa a ser o discurso racional diferenccedilas estas que natildeo existiam no mundo grego arcaico

25

Odisseu enfrenta muitos obstaacuteculos a fim de que possa retornar ao lar apoacutes vinte anos

afastado E ao voltar vecirc que desde entatildeo muitas coisas aconteceram seu filho que quando

ele saiacutera era apenas uma crianccedila cresceu sua matildee faleceu de saudades seu pai preferiu a

reclusatildeo sua esposa para ludibriar os pretendentes de dia tece uma mortalha para Laertes e

agrave noite desfaz-a Em suma o seu palaacutecio encontra-se invadido por pretendentes que natildeo

respeitaram os dons da hospitalidade e por isso seratildeo punidos

Realizando uma anaacutelise comparada entre a Iliacuteada e a Odisseacuteia podemos observar

algumas siginificativas diferenccedilas Entre elas podemos destacar a relaccedilatildeo entre o homem e o

divino Na Odisseacuteia por exemplo os homens possuem maior consciecircncia dos atos e

independecircncia em relaccedilatildeo aos deuses tanto que haacute pouca interferecircncia divina Natildeo

pretendemos dizer natildeo haver presenccedila divina na Odisseacuteia tanto que ilustramos algumas

dessas apariccedilotildees a trama inicia com uma assembleacuteia divina Palas Atena sempre acompanha

Odisseu eou Telecircmaco em suas jornadas e Possidon aparece para vingr-se para vingar-se de

quem feriu seu filho Polifemo Contudo percebe-se que haacute uma interferecircncia divina menor

se compararmos com a Iliacuteada Para este fato eacute bem ilustrativa a fala de Zeus abrindo a

Assembleacuteia dos Deuses no Canto I da Odisseacuteia sob o argumento de que os homens erram e

culpam os deuses por suas falhas Vejamos

ὢ πόποι οἷον δή νυ θεοὺς βροτοὶ αἰτιόωνται

ἐξ ἡμέων γάρ φασι κάκ᾽ ἔμμεναι οἱ δὲ καὶ αὐτοὶ

σφῆισιν ἀτασθαλίηισιν ὑπὲρ μόρον ἄλγε᾽ ἔχουσιν

35 ὡς καὶ νῦν Αἴγισθος ὑπὲρ μόρον ἈτρεἸδαο

γῆμ᾽ ἄλοχον μνηστήν τὸν δ᾽ ἔκτανε νοστήσαντα9 (Odisseacuteia I 32-36)

Oh grandes deuses Agora os mortais culpam os deuses

Pois de noacutes dizem vir a causa de todos seus males quando

eles mesmos por suas loucas presunccedilotildees suportam dores contra o destino

35 assim tambeacutem Egisto contra a decisatildeo do destino do Atrida

desposou a mulher legiacutetima e o matou depois do seu retorno

Na Iliacuteada ao contraacuterio temos a apariccedilatildeo e interferecircncia de diversos deuses em

diversos momentos da narrativa a fim de favorecerem seus aliados Apolo Atena Hera

Posiacutedon Ares Afrodite Apoacutes eles terem lutado a favor dos seus protegidos Zeus no Canto

VIII poriacutebe que eles atuem no campo de batalha vindo a liberaacute-los no Canto XX

9 Texto retirado de httpwwwhs-augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_od01html

agraves 1100hs de 15 de julho

26

Como vimos na Iliacuteada os deuses estatildeo o tempo todo a intervir a favor dos seus

Uma outra caracteriacutestica desta obra e que difere em relaccedilatildeo agrave Odisseacuteia estaacute no relato e

representaccedilatildeo social Isto ocorre porque na primeira haacute uma maior restriccedilatildeo em relaccedilatildeo aos

grupos sociais representados na obra em especial a aristocracia Jaacute a segunda possui um

quadro social mais amplo aparecendo a representaccedilatildeo natildeo soacute da aristocracia como tambeacutem

de pessoas de outra classe como porqueiros mendigo criadas enfim A representaccedilatildeo de

embates eacute mais acentuada na Iliacuteada que na Odisseacuteia por isso

O mais antigo dos poemas mostra-nos o predomiacutenio absoluto do estado de

guerra tal como devia ser no tempo das grandes migraccedilotildees das tribos gregas

A Iliacuteada fala-nos de um mundo situado num tempo em que domina

exclusivamente o espiacuterito heroacuteico da areteacute () A Odisseacuteia ao contraacuterio tem

poucas ocasiotildees para descrever o comportamento dos heroacuteis na luta

(BRANDAtildeO 1998 p 40)

A caracterizaccedilatildeo dos heroacuteis principais Aquiles da Iliacuteada e Odisseu da Odisseacuteia

tambeacutem forma outro ponto de divergecircncia entre os poemas Como sabemos o primeiro heroacutei

distingue-se por sua habilidade guerreira enquanto o segundo por sua habilidade com o

pensamento inteligecircncia Albin Lesky comparando os dois personagens resume de forma

esclarecedora a diferenccedila entre eles dizendo-nos que haacute ―uma prudente reflexatildeo frente a uma

nobre imoderaccedilatildeo um haacutebil espiacuterito de conciliaccedilatildeo face a uma brusca aspereza um prudente

caacutelculo do procedimento mais oportuno face agrave corrida precipitada pelo caminho mais curto

(LESKY 1995 p 60)

Em relaccedilatildeo agrave estrutura da Odisseacuteia comparando-a com a da Iliacuteada diz-nos

Aristoacuteteles no capiacutetulo 24 verso 1458b da Poeacutetica que aquela eacute bem mais complexa ateacute

mesmo por ter cenas de asup1nagnwiquestrisij Este como sabemos eacute um elemento estrutural

importante por atribuir mais complexidade ao enredo e na Odisseacuteia temos mais de uma

ocasiatildeo em que aparece asup1nagnwiquestrisij Por exemplo no Canto XVII versos 290-327 o

cachorro Argos reconhece Odisseu apoacutes vinte anos e jaacute cansado e velho aleacutem de toda a

emoccedilatildeo pela qual eacute tomado vem a falecer Observemos a cena como ocorre

300 ἔνθα κύων κεῖτ᾽ Ἄργος ἐνίπλειος κυνοραιστέων δὴ τότε γ᾽ ὡς ἐνόησεν10 Ὀδυσσέα ἐγγὺς ἐόντα

10

Este verbo ecopynoiquesthsen eacute o aoristo de noew que significa conhecer perceber Neste caso eacute importante

entendermos que o aoristo natildeo eacute tempo verbal nem modo e sim aspecto indicando a accedilatildeo pontual Essa

27

οὐρῆι μέν ῥ᾽ ὅ γ᾽ ἔσηνε καὶ οὔατα κάββαλεν ἄμφω ἆσσον δ᾽ οὐκέτ᾽ ἔπειτα δυνήσατο οἷο ἄνακτος ἐλθέμεν αὐτὰρ ὁ νόσφιν ἰδὼν ἀπομόρξατο δάκρυ ()

326 Ἄργον δ᾽ αὖ κατὰ μοῖρ᾽ ἔλαβεν μέλανος θανάτοιο αὐτίκ᾽ ἰδόντ᾽ Ὀδυσῆα ἐεικοστῶι ἐνιαυτῶι11 (Odisseacuteia XVII 290-327)

Ali jazia o cachorro Argos cheio de carrapatos

Por um lado como percebeu Odisseu passando proacuteximo

por outro abanou a cauda e baixou ambas orelhas

depois natildeo pocircde de ir para perto do seu senhor

Este tendo visto isso ao longe enxugou uma laacutegrima

Por sua vez o destino de negra morte levou Argos para baixo

Logo depois de ver Odisseu apoacutes vinte anos

Outros encontros de reconhecimento tambeacutem ocorrem ao longo da Odisseacuteia

como o de Telecircmaco que reconhece o pai quando este por orientaccedilatildeo de Atena aparece para

o filho em sua forma original (Canto XVI versos 180-219) o da ama Euricleacuteia que

reconhece Odisseu por meio de uma cicatriz (Canto XIX versos 467-500) Peneacutelope tambeacutem

reconhece o esposo quando este revela ter construiacutedo o proacuteprio leito ao casarem (Canto

XXIII versos 181-206) e Laertes pai de Odisseu reconhece o filho quando este lhe indica

todas as plantas que haacute na propriedade (Canto XXIV versos 320-346)

Como pudemos ver a Odisseacuteia possui suas peculiaridades em relaccedilatildeo agrave Iliacuteada

inclusive nas representaccedilotildees sociais e todas essas convergem para a afirmativa de que ela foi

escrita posteriormente A modificaccedilatildeo do sentido da abrvbarrethcent a ampliaccedilatildeo nas representaccedilotildees

sociais a relaccedilatildeo com os deuses a caracterizaccedilatildeo dos heroacuteis principais a complexidade

estrutural e o ponto de vista histoacuterico satildeo alguns exemplos de diferenccedilas existentes entre as

duas eacutepicas homeacutericas Por isso natildeo podemos referir-nos agraves eacutepicas homeacutericas englobando-as

num todo homogecircneo ateacute porque numa anaacutelise mais especiacutefica observamos diferenccedilas

relevantes apesar de possuiacuterem ligaccedilotildees claras uma com a outra

peculiaridade do verbo grego explica-se atraveacutes do verbo indo-europeu cujas formas indicavam apenas a noccedilatildeo

de aspecto E eram trecircs as noccedilotildees de aspecto o imperfectivo o perfectivo e o pontual (FARIA 1958) O

primeiro designava a accedilatildeo era inacabada o segundo a accedilatildeo acabada e o terceiro a accedilatildeo pontual por isso eacute

bastante usado em narrativas Na citaccedilatildeo acima Homero utilizou-se da forma do aoristo ecopynoiquesthsen que

traduzimos por ―percebeu ou seja indicando um fato pontual (aoristo) do momento em que o cachorro

reconhece Odisseu numa accedilatildeo que nem estaacute acabada (perfectivo) nem inacabado (imperfectivo) 11

Texto disponiacutevel em

httpwwwhsaugsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_od17html

28

A explanaccedilatildeo que fizemos tem como objetivo contextualizar situar e caracterizar o

nosso objeto de pesquisa o Canto XI da Odisseacuteia Tais referecircncias satildeo relevantes para que

compreendamos o seu todo e assim mais facilmente seja compreendida a nossa anaacutelise

especiacutefica que eacute analisar o traacutegico na Odisseacuteia mais especificamente no Canto XI

121 A Estrutura do poema

Como jaacute dissemos A Odisseacuteia enquadra-se no Periacuteodo Arcaico (VIII ndash V a C)

da literatura Grega e portanto possui marcas da oralidade como a repeticcedilatildeo e o uso de

epiacutetetos aleacutem de ter a partir do muordfqoj as explicaccedilotildees dos fatos Essa sociedade retratada

tem na a)reth a distinccedilatildeo de excelecircncia do nobre principalmente por meio do seu heroacutei

principal Odisseu soacute que mais especificamente relacionada agrave virtude intelectual de

inteligecircncia de astuacutecia e de prudecircncia

De estrutura complexa e narrada in medias res a Odisseacuteia naturalmente condiz

com os aspectos estruturais da epopeacuteia e que satildeo descritos por Aristoacuteteles no momento em

que a compara com a estrutura da trageacutedia Mas para que possamos entender a estrutura da

epopeacuteia faz-se necessaacuterio que entendamos primeiramente o que ela significa Esta

denominaccedilatildeo eacute oriunda do termo grego iexclepopoiia e serve para designar genericamente a

poesia eacutepica Esta palavra como indica Romizi (2007) eacute formada por eAtildepoj que significa

palavra o que eacute dito esta por sua vez relaciona-se ao verbo eagravepw dizer cantar nomear e a

poiew verbo temaacutetico que significa criar produzir Estes nomes possuem o mesmo radical

das palavras poihsij e poihthj a primeira refere-se agrave criaccedilatildeo poeacutetica e o segundo ao

criador da poesia A partir desse referencial etimoloacutegico podemos entender iexclepopoiia natildeo

simplesmente como poesia eacutepica como genericamente definem muitos dicionaacuterios mas como

o canto (eagravepw) daquilo que fora criado (poihsij) pelo poeta (poihthj) daiacute a formaccedilatildeo de

epopeacuteia (ecopypopoiia)

Assim entendido agora o que designamos como epopeacuteia podemos compreender

melhor a sua estrutura delineada primeiramente por Aristoacuteteles Na Poeacutetica o filoacutesofo define

a trageacutedia e para tanto realiza um estudo comparativo com a comeacutedia e com a epopeacuteia A

partir dessa comparaccedilatildeo podemos extrair o entendimento sobre a estrutura e as caracteriacutesticas

29

da epopeacuteia jaacute que em alguns momentos ela se assemelha e em outros diferencia-se da

trageacutedia objeto central da anaacutelise aristoteacutelica

Segundo Aristoacuteteles a trageacutedia e a epopeacuteia possuem uma semelhanccedila em relaccedilatildeo

aos objetos da imitaccedilatildeo isto porque em ambas imitam-se seres superiores os heroacuteis a

aristocracia enquanto que na comeacutedia satildeo imitados os chamados seres inferiores e todas as

suas caracteriacutesticas risiacuteveis Homero assim como os tragedioacutegrafos teria cantado com

unidade de accedilatildeo Assim explica Aristoacuteteles no capiacutetulo VII da Poeacutetica que Homero em suas

epopeacuteias delinea um argumento uacutenico agrupando-o com episoacutedios que convergem para o seu

eixo por isso natildeo canta toda a Guerra de Troacuteia nem muito menos todos os acontecimentos

da vida de Odisseu Apesar de que para Lesky (1995) haacute na Odisseacuteia algumas discussotildees

sobre a sua unidade principalmente em relaccedilatildeo agrave Telemaquia que vai do Canto I ao IV e que

alguns pensam ter sido uma parte ou um acreacutescimo Todavia mesmo diante dessas

controveacutersias Lesky diz-nos que nos importa saber que ela ―daacute voz a uma forccedila de

composiccedilatildeo e uma mestria de narraccedilatildeo que soacute se encontram nas grandes obras de arte Nesse

sentido tambeacutem ela constitui uma unidade (LESKY 1995 p 71)

Continuando a definiccedilatildeo sobre os gecircneros no capiacutetulo XXIV Aristoacuteteles diz que

a epopeacuteia difere da trageacutedia em relaccedilatildeo ao emprego e dimensatildeo do metro como tambeacutem pela

extensatildeo jaacute que a trageacutedia deve limitar seus fatos a um periacuteodo do sol enquanto a epopeacuteia

natildeo tem duraccedilatildeo limitada em contrapartida assemelham-se por tratarem de assuntos seacuterios

Como vemos a partir das comparaccedilotildees realizadas por Aristoacuteteles na tentativa de

elucidar as caracteriacutesticas da trageacutedia acabamos por compreender tambeacutem a estruturaccedilatildeo da

epopeacuteia Dessa maneira como epopeacuteia a Odisseacuteia nosso objeto de estudo realiza imitaccedilatildeo

de homens superiores possui argumento uacutenico e episoacutedios que o desenvolvem neste caso o

retorno de Odisseu Aleacutem de natildeo ter limitaccedilatildeo de duraccedilatildeo jaacute que durante toda a epopeacuteia

narram-se fatos ocorridos ao longo de vinte anos

Somado aos elementos estruturais da eacutepica apresentados por Aristoacuteteles e jaacute

exemplificados por noacutes anteriormente destacaremos agora a partir da Odisseacuteia o proecircmio a

narraccedilatildeo e o epiacutelogo que satildeo trecircs importantes elementos constitutivos do um texto eacutepico

O proecircmio eacute composto pela invocaccedilatildeo e pela proposiccedilatildeo Na Odisseacuteia ele se

encontra nos dez primeiros versos Atraveacutes da Teogonia (2007) entendemos o porquecirc da

invocaccedilatildeo processo no qual o poeta chama as Musas Vejamos o trecho abaixo

25 Μοῦσαι Ὀλυμπιάδες κοῦραι Διὸς αἰγιόχοιο

ποιμένες ἄγραυλοι κάκ ἐλέγχεα γαστέρες οἶον

30

ἴδμεν ψεύδεα πολλὰ λέγειν ἐτύμοισιν ὁμοῖα

ἴδμεν δ εὖτ ἐθέλωμεν ἀληθέα γηρύσασθαι

ὣς ἔφασαν κοῦραι μεγάλου Διὸς ἀρτιέπειαι

30 καί μοι σκῆπτρον ἔδον δάφνης ἐριθηλέος ὄζον

δρέψασαι θηητόν ἐνέπνευσαν δέ μοι αὐδὴν

θέσπιν ἵνα κλείοιμι τά τ ἐσσόμενα πρό τ ἐόντα

καί μ ἐκέλονθ ὑμνεῖν μακάρων γένος αἰὲν ἐόντων

σφᾶς δ αὐτὰς πρῶτόν τε καὶ ὕστατον αἰὲν ἀείδειν

35 ἀλλὰ τίη μοι ταῦτα περὶ δρῦν ἢ περὶ πέτρην12 (Teogonia 22-35)

Musas olimpiacuteades virgens de Zeus porta-eacutegide

―Pastores agrestes vis infacircmias e ventres soacute

sabemos muitas mentiras dizer siacutemeis aos fatos

e sabemos se queremos dar a ouvir revelaccedilotildees

Assim falaram as virgens do grande Zeus veriacutedicas

por cetro deram-me um ramo a um loureiro viccediloso

colhendo-o admiraacutevel e inspiraram-me um canto

divino para que eu glorie o futuro e o passado

impeliram-me a hinear o ser dos venturosos sempre vivos

e a elas primeiro e por uacuteltimo sempre cantar13

Assim como foi indicado na citaccedilatildeo acima na Odisseacuteia o poeta invocaraacute as

Musas a fim de que o ajudem a cantar o polumhtij ou seja o muito astucioso Odisseu No

proecircmio da Odisseacuteia como jaacute foi dito entre o primeiro e o deacutecimo verso do Canto I

encontramos tambeacutem a proposiccedilatildeo do poema e naturalmente o seu argumento que eacute cantar as

muitas aventuras e desventuras vividas por Odisseu e seus companheiros durante dez anos

desde que saiacuteram da Guerra de Troacuteia ateacute o retorno a Iacutetaca Vejamos

Ἄνδρα μοι ἔννεπε μοῦσα πολύτροπον ὃς μάλα πολλὰ

πλάγχθη14 ἐπεὶ Τροίης ἱερὸν πτολίεθρον ἔπερσεν

πολλῶν δ᾽ ἀνθρώπων ἴδεν ἄστεα καὶ νόον ἔγνω

πολλὰ δ᾽ ὅ γ᾽ ἐν πόντωι πάθεν ἄλγεα ὃν κατὰ θυμόν

5 ἀρνύμενος ἥν τε ψυχὴν καὶ νόστον ἑταίρων

ἀλλ᾽ οὐδ᾽ ὣς ἑτάρους ἐρρύσατο ἱέμενός περ

αὐτῶν γὰρ σφετέρηισιν ἀτασθαλίηισιν ὄλοντο

νήπιοι οἳ κατὰ βοῦς Ὑπερίονος Ἠελίοιο

12

Texto diponiacutevel em httpwwwhsaugsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Hesiodoshes_theohtml

retirado agraves 1633hs do dia 27 de abril de 2010 13

Traduccedilatildeo de Torrano (2009) 14

Neste proecircmio da Odisseacuteia verificamos que praticamente todas as formas verbais estatildeo no aoristo satildeo elas

plaiquestgxqh eOacutepersen iOacuteden eOacutegnw paiquestqen ecopyrruiquestsato oOacutelonto e acopyfeiiquestleto Essa constataccedilatildeo linguumliacutestica eacute

bem coerente com o teor literaacuterio desta citaccedilatildeo ateacute porque por tratar-se de um proecircmio em que os fatos satildeo

aunciados e resumido ao iniacutecio da narrativa entendemos natiralmente que natildeo deve haver noccedilatildeo verbal de

aspecto acabado (perfectivo) ou inacabado (imperfectivo) jaacute que as accedilotildees estatildeo sendo apenas pontualmente

assinaladas daiacute a pertinecircncia do uso do aoristo

31

ἤσθιον αὐτὰρ ὁ τοῖσιν ἀφείλετο νόστιμον ἦμαρ

10 τῶν ἁμόθεν γε θεά θύγατερ Διός εἰπὲ καὶ ἡμῖν15 (Odisseacuteia I 1-10)

Musa conta-me sobre o varatildeo de muitas voltas que muito

vagou depois que saqueou a sagrada cidade de Troacuteia

Viu as cidades de muitos homens e conheceu sua mente

no mar padeceu muitos sofrimentos de encontro ao seu acircnimo

esforccedilando-se por sua alma e pelo regresso dos companheiros

Poreacutem natildeo salvou os companheiros mesmo lanccedilando-se para isso

Pois pereceram por causa das accedilotildees insensatas deles mesmos

Tolos que devoravam os bois do Hiperiocircnio Sol

Por outro lado este os tirou o dia do retorno

Deusa filha de Zeus conta para noacutes a partir de qualquer ponto

Jaacute atraveacutes da narraccedilatildeo que eacute o desenvolvimento do argumento satildeo cantadas ao

longo dos vinte e quatro cantos e de seus quase treze mil versos todas as viagens e encontros

de Odisseu sua estada em Ogiacutegia a visita agrave Feaacutecia onde narra sua visita aos Lotoacutefagos aos

Ciclopes Eacuteolo os Lestrigotildees Circe a realizaccedilatildeo da evocaccedilatildeo aos mortos o encontro com as

Sereias Cila Cariacutebdes os Bois do Sol ateacute a sua volta para Iacutetaca onde efetua a chacina dos

pretendentes

No epiacutelogo por sua vez ocorre o fechamento da narrativa com uma nova

invocaccedilatildeo e com a abertura de perspectiva para um novo canto Na Odisseacuteia natildeo haacute uma

manifesta invocaccedilatildeo agraves Musas no fim da narraccedilatildeo como temos no iniacutecio mas deixa-se

abertura para um novo canto que neste caso seria o da instalaccedilatildeo da paz e da harmonia em

Iacutetaca Mas a paz para Odisseu e seu povo mesmo depois de vinte anos de aacuterduos e de intensos

trabalhos soacute iria se concretizar caso Odisseu seguindo as orientaccedilotildees de Tireacutesias dadas no

Canto XI fizesse uma nova viagem e cumprisse com os desiacutegnios divinos

Para que melhor possamos entender os episoacutedios ocorridos ao longo da Odisseacuteia e

o contexto em que se realiza o Canto XI - nosso objeto de anaacutelise - abaixo realizamos uma

siacutentese de cada Canto

Canto I - Ocorre a Assembleacuteia dos Deuses Os divinos reuacutenem-se com exceccedilatildeo de Posiacutedon a

fim de decidir o regresso de Odisseu a Iacutetaca visto que o heroacutei permanece na ilha de Calipso

haacute muito tempo sem perspectiva de regresso Fica decidido que ele deve voltar para sua paacutetria

e Atena disfarccedilada em Mentes rei dos Taacutefios vai ateacute Telecircmaco filho de Odisseu com

15

Texto disponiacutevel em

httpwwwhsaugsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_od01html retirado agraves 2107hs

de 27 de abril de 2010

32

Peneacutelope para aconselhaacute-lo e orientaacute-lo na busca do pai Neste iacutenterim ocorre a Festa dos

Pretendentes no palaacutecio de Odisseu

Canto II - Telecircmaco exortado por Atena convoca uma assembleacuteia com os itacenses para

solicitar um navio que o levasse a Pilo cidade de Nestor e a Esparta paacutetria do atrida

Menelau para que pudesse buscar informaccedilotildees sobre o pai Ele entatildeo parte escondido de sua

matildee logo apoacutes receber um navio de Noeacutemone e de revelar soacute a Euricleacuteia sobre sua partida

Canto III - O jovem priacutencipe chega a Pilo acompanhado por Atena disfarccedilada de Mentor e

encontram os Piacutelios no teacutermino da realizaccedilatildeo de sacrifiacutecios ao deus Posiacutedon Telecircmaco dirige-

se a Nestor perguntando por seu pai As suas respostas natildeo satildeo muito animadoras apenas faz

relatos sobre Troacuteia seu retorno com Menelau e o fim traacutegico de Agamecircmmnon Todavia

Nestor auxilia Telecircmaco em sua jornada enviando-lhe para Lacocircnia com Pisiacutestrato seu filho

Canto IV - Em Esparta Menelau recebe Telecircmaco com Pisiacutestrato O Atrida lhes conta sobre

o seu retorno dificultoso a destruiccedilatildeo de Troacuteia a profecia de Proteu a tristeza pela morte do

irmatildeo Agamecircmnon e a estadia de Odisseu na ilha de Calipso Telecircmaco natildeo tendo obtido as

notiacutecias que esperava prepara-se para retonar Em Iacutetaca ocorre uma assembleacuteia entre os

pretendentes a fim de tramarem uma emboscada para raptar Telecircmaco

Canto V ndash Na segunda Assembleacuteia dos Deuses fica decidido pelo imediato retorno de

Odisseu Atena solicita a Zeus para que Hermes vaacute a Ogiacutegia onde Odisseu estaacute retido e

liberte-o O cronida cumpre Entatildeo o heroacutei parte em uma jangada que construiu Jaacute no deacutecimo

oitavo dia em que navegava Odisseu eacute visto por Posiacutedon que levanta uma tempestade

destruindo a sua jangada Odisseu eacute salvo pelo veacuteu de Ino e chega agrave ilha dos Feaacutecios

Canto VI - Jaacute na terra dos Feaacutecios Odisseu eacute ajudado por Nausiacutecaa filha do rei dos Feaacutecios

A moccedila ao dormir sonha com Atena a pedir-lhe que fosse lavar roupas no rio Nausiacutecaa

obedece agraves instruccedilotildees de Atena e segue com algumas companheiras Apoacutes lavar as roupas

comeccedilam a brincar Odisseu que dormia desperta com o barulho e recorre ao auxiacutelio de

Nausiacutecaa Esta lhe concede oferece-lhe roupas e alimentos Eles partem para cidade

Canto VII - Seguindo as orientaccedilotildees de Nausiacutecaa ao chegar ao palaacutecio Odisseu ajoelha-se

aos peacutes da rainha Arete para que ela o envie para casa Alciacutenoo o rei dos Feaacutecios concede

33

sua solicitaccedilatildeo coloca-o ao seu lado e oferece-lhe comida Odisseu sem revelar-se conta

sobre o que lhe ocorreu desde que partira da ilha de Calipso ateacute o auxiacutelio de Nausiacutecaa

Canto VIII - Uma assembleacuteia eacute realizada pelos Feaacutecios para decidirem os meios de

devolverem o estrangeiro agrave sua terra Decidem pocircr a disposiccedilatildeo um navio para o seu retorno

Depois banqueteiam-se na casa do rei Alciacutenoo e jogam do disco Demoacutedoco o aedo dos

Feaacutecios comeccedila a cantar a amor de Ares e Afrodite e o cavalo de madeira que penetrou as

muralhas troianas Odisseu derrama laacutegrimas initerruptamente Alciacutenoo natildeo compreende

desconfia do heroacutei e pergunta o porquecirc do choro de onde ele vem e quem ele eacute

Canto IX - Odisseu revela sua identidade e filiaccedilatildeo iniciando a narraccedilatildeo de tudo o que

passou desde a sua saiacuteda da guerra de Troacuteia no paiacutes dos Ciacuteconos na Maleacuteia onde um vento

forte fez-lhes desviar-se do caminho indo para a terra dos Lotoacutefagos Depois param no paiacutes

dos Ciclopes onde o Polifemo devorou seis dos seus guerreiros O heroacutei astutamente

consegue escapar

Canto X - Odisseu vai buscar ajuda com Eacuteolo guardiatildeo dos ventos e recebe dele uma sacola

com todos os ventos O heroacutei dorme Seus companheiros pensando haver ouro na sacola

abrem-na entatildeo os ventos satildeo disparados aleatoriamente Odisseu acorda e volta para Eacuteolo

Este agora recusa a ajuda e expulsa-os A narraccedilatildeo aos Feaacutecios continua sobre a passagem

pela terra dos Lestrigotildees antropoacutefagos e de Circe feiticeira em Eacuteeia Nesta terra Odisseu jaacute

acomodado eacute exortado pelos companheiros para retornar Circe como prometera auxilia-o

no retorno e diz para ele ir ao Hades para falar com o adivinho Tireacutesias

Canto XI - Odisseu narra aos Feaacutecios como chegou agrave borda do Hades para consultar

Tireacutesias e sua evocaccedilatildeo aos mortos Pergunta a Tireacutesias se voltaria para casa e como deveria

proceder Tireacutesias daacute-lhe todas as informaccedilotildees diz-lhe inclusive que ele conseguiraacute o retorno

agrave paacutetria mas que enfrentaraacute muitas dificuldades Depois muitos mortos vatildeo se aproximando

de Odisseu como sua matildee Anticleacuteia e os companheiros de Troacuteia Aquiles Agamecircmnon e

Aacutejax

Canto XII - Relata sobre seu retorno desde o Hades ateacute Eacuteeia na ilha de Circe Esta o

adverte sobre os desafios que encontraraacute e como deve proceder Entatildeo Odisseu lanccedila-se ao

mar Primeiro resiste ao belo canto das Sereias depois passa por Cila e Cariacutebdes ateacute chegar agrave

34

ilha de Heacutelio Nesta seus companheiros natildeo resistem agrave fome e alimentam-se com as vacas do

deus Heacutelio desrespeitado o deus eacute vingado por Zeus que fulmina a nau de Odisseu e dos

demais Odisseu narra tambeacutem como sozinho chegou agrave ilha de Calipso apenas em uma balsa

Canto XIII - Termina a narraccedilatildeo aos Feaacutecios Impressionados Alciacutenoo e os demais

oferecem-lhe presentes em sinal de honra Como havia sido combinado os Feaacutecios levam

Odisseu a Iacutetaca e o deixam em solo paacutetrio Por castigo de Posiacutedon o navio que o leva eacute

petrificado ao retornar Atena auxilia Odisseu aconselha-o sobre a vinganccedila dos pretendentes

e desfigura-o em mendigo para natildeo ser reconhecido

Canto XIV - O agora aparente mendigo Odisseu chega agrave casa de um fiel serviccedilal o porqueiro

Eumeu Apesar de natildeo reconhecer seu rei concede-lhe toda a hospitalidade e o informa sobre

o que sofre com os desmandos do palaacutecio como as coisas estatildeo ocorrendo na cidade e diz que

acredita no retorno de Odisseu

Canto XV - Neste canto ocorre o retorno de Telecircmaco O priacutencipe permanecia ainda no reino

de Menelau mas em sonho Atena exorta-o retornar para Iacutetaca indicando-lhe o que fazer

para evitar a emboscada armada pelos pretendentes Presenteado por Menelau Telecircmaco

parte Em Iacutetaca vai direto para a casa de Eumeu

Canto XVI ndash Na casa de Eumeu Telecircmaco orienta o porqueiro para que avise a sua matildee do

seu retorno Odisseu e Tlecircmaco por obra de Atena se reconhecem e tramam a vinganccedila dos

pretendentes Eumeu retorna do palaacutecio apoacutes dar a notiacutecia a Peneacutelope do retorno do seu filho

Canto XVII - Odisseu vai com Eumeu para o seu palaacutecio enquanto Telecircmaco conta agrave matildee o

que ocorreu em sua viagem No paacutetio do palaacutecio Argos o velho catildeo de Odisseu reconhece-o

apoacutes os vinte anos decorridos e morre O rei disfarccedilado em mendigo eacute insultado por

Antiacutenoo um dos pretendentes

Canto XVIII - A fim de satisfazer os pretendentes Odisseu luta com Ino um mendigo no

palaacutecio Peneacutelope recrimina o tratamento dado ao estrangeiro questiona a Telecircmaco a falta de

firmeza diante daquela injusticcedila Odisseu como hoacutespede por decisatildeo de Peneacutelope fica esta

noite na sala da casa Todos vatildeo dormir depois de beberem e comerem

35

Canto XIX - Odisseu diz a Peneacutelope ser de Creta e garante que seu esposo iraacute voltar

Peneacutelope muito astuta natildeo acredita na histoacuteria criada e questiona Ele responde corretamente

mas ela natildeo acredita que o Rei regressaraacute Manda que as criadas sirvam bem o hoacutespede A

ama Euricleacuteia lava seus peacutes e o reconhece por uma antiga cicatriz Diante das evidecircncias o

heroacutei confirma a descoberta mas diz para que ela natildeo o revele

Canto XX - Os pretendentes novamente reuacutenem-se em banquete Odisseu pede a Zeus que

de sua casa surja algueacutem para ajudar-lhe na vinganccedila como um sinal de que sairia vitorioso

Zeus faz trovejar e aparece uma criada que lhe conta o pressaacutegio Pede ainda que Zeus

sinalize se aquele eacute o uacuteltimo dia de gozo dos pretendentes em seu palaacutecio Mais uma vez

Zeus faz trovejar Odisseu alegra-se e vai conversar com Eumeu e Fileacutecio Os pretendentes

banqueteiam-se

Canto XXI - Atena instiga no coraccedilatildeo de Peneacutelope uma atitude para pocircr fim agravequela indecisatildeo

e agraves regalias dos pretendentes os quais vinham a sua casa banquetear-se desrespeitando os

dons da hospitalidade Entatildeo ela corre pega o arco de Odisseu e diz que casaraacute com aquele

que o envergar retesar a corda e remessar a seta pelos doze orifiacutecios Os pretendentes vatildeo

tentando inutilmente Eacute a vez de Odisseu ainda como mendigo Todos desacreditam mas eis

que ele cumpre o indicado e triunfa sobre todos

Canto XXII ndash Odisseu revela-se como o senhor de Iacutetaca e inicia a chacina dos pretendentes

Atena estaacute presente em seu auxiacutelio Melacircntio aparece com armas e escudos Odisseu abalado

diz a Telecircmaco que algueacutem os traiu O priacutencipe revela ser o culpado em deixar a porta aberta

e manda fechar a porta Telecircmaco e os fieacuteis serventes Eumeu e Fileacutecio partem para vingar-se

dos serviccedilais e de Melacircntio O aedo e o arauto satildeo poupados da chacina

Canto XXIII ndash Euricleacuteia apoacutes a chacina avisa a Peneacutelope que seu esposo chegara e havia se

vingado dos pretendentes Desconfiada diz que a ama enlouqueceu Mas quis ver a chacina e

quem a realizou De frente para Odisseu permaneceu descrente Telecircmaco acusa a matildee de

frieza mas Odisseu o conteacutem Ela soacute acredita no retorno do esposo quando ele diz como foi

quem construiu o leito do casal Ela entatildeo abraccedila-o saudando seu regresso

Canto XXIV - As almas dos pretendentes satildeo guiadas por Hermes ateacute o Hades Odisseu vai

ateacute seu pai Laertes que demora a acreditar em seu retorno e pede um sinal Odisseu mostra a

36

cicatriz nomeia e quantifica cada fruteira do pomar O pai convencido fraqueja os joelhos e

vai em laacutegrimas abraccedilar o filho Nem tudo estaacute apaziguado pois as famiacutelias dos

pretendentes mortos realizam uma revolta Atena interveacutem para que a ordem seja instaurada

Objetivando comentar acerca da estrutura da Odisseacuteia vimos primeiramente os

periacuteodos da literatura grega com sua duraccedilatildeo e especificidade Depois a fim que pudeacutessemos

melhor explicar a significaccedilatildeo da epopeacuteia claacutessica remetemos nosso estudo para a etimologia

de epopeacuteia do grego epopoiia e sua significaccedilatildeo Passamos entatildeo para as ponderaccedilotildees de

Aristoacuteteles sobre a estrutura da epopeacuteia seu objeto de imitaccedilatildeo duraccedilatildeo suas semelhanccedilas e

diferenccedilas em relaccedilatildeo agrave trageacutedia a fim de compreendermos agrave luz da Poeacutetica as

peculiaridades do gecircnero eacutepico A invocaccedilatildeo a proposiccedilatildeo e a narraccedilatildeo as trecircs partes

estruturais da eacutepica tambeacutem foram referidas por noacutes neste toacutepico e que foram

exemplificados na Odisseacuteia Apoacutes identificar os cantos e versos em que cada parte se realiza

fizemos uma siacutentese de cada Canto Este uacuteltimo processo foi importante para que pudeacutessemos

destacar os episoacutedios narrados ao longo dessa epopeacuteia como tambeacutem para situar o nosso

objeto de pesquisa o Canto XI da Odisseacuteia dentro da obra e do processo sequencial dos

acontecimentos que nele se inserem Por meio dessas etapas constitutivas e construtivas do

presente trabalho acreditamos ter realizado uma apresentaccedilatildeo geral sobre a obra na qual se

insere o nosso corpus

122 Odisseu o heroacutei multifacetado

Antes de inciarmos nossa discussatildeo sobre o multifacetado Odisseu pretendemos

expor brevemente sobre heroacutei e sua significaccedilatildeo no mundo claacutessico Buscando as definiccedilotildees

do Le Grand Bailly (2000) deparamo-nos com a seguinte traduccedilatildeo para hAgraverwj maicirctre chef

noble e completa ―de tout homme noble par la naissance le courage ou le talent (BAILLY

2000 p 909) ou seja o senhor o chefe o nobre e ―todo homem de descendecircncia nobre de

coragem ou de talento Liddell amp Scottlsquos em A Greek-English lexicon (1996) datildeo-nos a

traduccedilatildeo primaacuteria hero (heroacutei) e exemplificam que ―in Homer not restricted to warriors but

applied to all free men of that age as to minstrel the herald (LIDDEL amp SCOTT 1996 p

309) Quer dizer ―em Homero natildeo se restringe apenas aos guerreiros mas se aplica a todo

37

homem livre daquela eacutepoca o menestrel o arauto (Ibidem) Vale ressaltar que essas

definiccedilotildees dos dicionaacuterios baseiam-se na vasta literatura do mundo claacutessico grego a fim de

tentar defini-lo

Para compreendermos melhor a significaccedilatildeo do heroacutei claacutessico veremos tambeacutem

os posicionamentos de Hesiacuteodo e Aristoacuteteles No mito das cinco raccedilas presente em Os

trabalhos e os dias Hesiacuteodo enumera a existecircncia de cinco raccedilas humanas A Raccedila de Ouro a

Raccedila de Prata a Raccedila de Bronze a Raccedila dos Heroacuteis e a Raccedila de Ferro Como vemos as raccedilas

satildeo nomeadas a partir do valor dos metais ouro prata bronze mas entre a de bronze e a de

ferro temos a dos heroacuteis Esta se encontra especificamente dos versos 156 ao 172 Hesiacuteodo a

define como a os hcedilmiqeoi (V 160) os semi-deuses dos oAtildelbioi hAgraverwej (V 172) os heroacuteis

venturosos Uma raccedila criada por Zeus mais justa mais corajosa e de descendecircncia divina dos

que atuaram em Tebas levando muitos agrave morte e outros em Troacuteia por causa de Helena

Diante disso ao morrerem os heroacuteis satildeo levados por ZeuUumlj Kronidhj (V 168) o Zeus

Cronida para a Ilha dos Bem-Aventurados

Aristoacuteteles na Poeacutetica em 1453a define os heroacuteis como seres de situaccedilatildeo

intermediaacuteria pelo fato de que nem satildeo virtuosos nem justos em demasia como tambeacutem natildeo

satildeo tatildeo maldosos aleacutem de pertencerem ao grupo dos que gozam de prestiacutegio e poder e que

satildeo superiores aos homens Por isso seriam os personagens ideais da trageacutedia mesmo porque

as falhas que cometem satildeo muito mais por consequecircncia de um erro do que por falha de

caraacuteter Assim o erro dos heroacuteis conforme preconiza Aristoacuteteles eacute proveniente da accedilatildeo e

natildeo do caraacuteter do personagem Aleacutem do mais o fato de ter prestiacutegio perante a sociedade

tambeacutem facilita a realizaccedilatildeo da empatia do puacuteblico para com o personagem traacutegico e

consequentemente a efetivaccedilatildeo da katarsij16

Odisseu como heroacutei possui os elementos descritos anteriormente Assim como eacute

mostrado no Le Grand Bailly (2000) eacute de descendecircncia nobre um homem de coragem jaacute

segundo Liddlel amp Scott (1996) ele eacute tanto o guerreiro como tambeacutem o aedo basta-nos

lembrar dos Cantos VIII IX X XI e XII da Odisseacuteia quando o heroacutei relata todos os

acontecimentos pelos quais passou ateacute o presente momento Como pressupotildee Hesiacuteodo ele eacute

da raccedila dos heroacuteis que atuou em Troacuteia portanto eacute justo e corajoso de descendecircncia divina

Vale lembrar que Odisseu filho de Laertes eacute descendente da raccedila de Deucaliatildeo e este por

sua vez do titatilde Prometeu Vejamos abaixo a genealogia de Odisseu

16

Esse termo aristoteacutelico seraacute melhor discutido por noacutes no segundo e terceiro capiacutetulos quando detivermos a

nossa anaacutelise para a conceituaccedilatildeo e anaacutelise do traacutegico

38

Prometeu ~ Cliacutemene

darr

Deucaliatildeo ~ Pirra

darr

Deacuteion ~ Diomedes

darr

Ceacutefalo Hermes ~ Quiacuteone

darr darr

Arciacutesio ~ Calcomedusa Autoacutelico ~ Antiacutefea

Laertes ~ Anticleacuteia

darr

Odisseu ~ Peneacutelope

darr

Telecircmaco

Aleacutem disso como pressupotildee Aristoacuteteles Odisseu possui como todo e qualquer

heroacutei prestiacutegio e poder e seu caraacuteter nem eacute tatildeo virtuoso nem tatildeo maleacutefico Deste modo apoacutes

esta breve elucidaccedilatildeo a respeito do heroacutei grego entendemos que natildeo eacute aleatoacuterio o fato de

Odisseu ser o personagem principal e por isso mesmo seu nome daacute o tiacutetulo de uma das mais

importantes obras do ocidente a Odisseacuteia Esta como jaacute dissemos propotildee cantar os seus

feitos desde que partiu de Troacuteia ateacute seu tatildeo pretendido retorno ao lar Por tudo isso Odisseu

eacute um dos maiores e mais completos siacutembolos do heroiacutesmo claacutessico ndash eacute piedoso astuto viril

Aleacutem de assumir as funccedilotildees do heroacutei indo-europeu sacerdotal empreendedor e guerreiro

prescritas por Dumeacutezil em Mythe et Epopee (1995) Natildeo iremos nos alongar nestas

ponderaccedilotildees mas a seguir comentaremos brevemente acerca das identificaccedilotildees de Odisseu

com essas funccedilotildees

A primeira funccedilatildeo a sacerdotal realiza-se a partir do caraacuteter piedoso e temente

aos deuses de Odisseu Para exemplificar eacute soacute nos remetermos ao Canto XII ao contraacuterio dos

seus companheiros Odisseu natildeo se alimenta dos bois do Sol Por saber que tal ato ofende uma

divindade ele evita a imprudecircncia da desonra jaacute seus companheiros cometem a cediluagravebrij e por

isso todos eles seratildeo punidos por Zeus

A segunda a de empreendedor daacute-se atraveacutes de seu empreendedorismo de

fundador e solidificador de cidades fato que pode ser observado ateacute mesmo pela busca da

gloacuteria domeacutestica e natildeo em campo de batalha Lembremos inclusive que Odisseu prefere a

39

mortalidade agrave imortalidade bem como renega a eterna juventude oferecida por Calipso para

regressar a Iacutetaca

A terceira funccedilatildeo do indo-europeu a de guerreiro pode ser vista mais

explicitamente no Canto XXII entre os versos 401 a 406 quando Odisseu realiza a chacina

dos pretendentes e eacute comparado a um leatildeo ensanguentado em meio a suas viacutetimas Estas

compotildeem um nuacutemero de cento e dezesseis jaacute contando com os pretendentes e os servos

Vejamos a referida passagem

εὗρεν ἔπειτ᾽ Ὀδυσῆα μετὰ κταμένοισι νέκυσσιν

αἵματι καὶ λύθρωι πεπαλαγμένον ὥστε λέοντα

ὅς ῥά τε βεβρωκὼς βοὸς ἔρχεται ἀγραύλοιο

πᾶν δ᾽ ἄρα οἱ στῆθός τε παρήϊά τ᾽ ἀμφοτέρωθεν

405 αἱματόεντα πέλει δεινὸς δ᾽ εἰς ὦπα ἰδέσθαι

ὣς Ὀδυσεὺς πεπάλακτο πόδας καὶ χεῖρας ὕπερθεν17

(Odisseacuteia XXII 401- 406)

Entatildeo encontrou Odisseu junto aos cadaacuteveres que havia matado

manchado de sangue e impureza Do mesmo modo que um leatildeo

apoacutes devorar um boi do campo vai embora

Todo o seu peito e as mandiacutebulas de ambos os lados tinha ensanguumlentados

Assim terriacutevel nas faces era de se ver

Deste modo Odisseu em cima tinha manchados as matildeos e os peacutes

Como jaacute antecipamos em toacutepico anterior a Iliacuteada e Odisseacuteia diferem em alguns

aspectos e um deles eacute a caracterizaccedilatildeo do heroacutei Uma diferenccedila baacutesica eacute que a gloacuteria de

Odisseu natildeo se relaciona agrave morte no campo de batalha Jaacute para Aquiles a kaloj qanatoj

a bela morte deve ser imprescindivelmente conquistada em campo de batalha pois de outra

maneira o heroacutei natildeo alcanccedilaria a gloacuteria eterna Deste modo para conseguir a pretendida

gloacuteria Aquiles natildeo pode voltar a seu lar jaacute Odisseu tem de voltar por isso Vernant diz que

ele eacute ―o homem da relembranccedila disposto a aceitar todas as provas e todos os sofrimentos para

cumprir seu destino () voltar e encontrar-se consigo mesmo (VERNANT 2000 p 36)

Assim eacute o ―heroacutei do retorno (Ibidem)

Na Iliacuteada por exemplo por mais que saibamos que o heroacutei principal cantado seja

Aquiles este em muitos momentos divide seu posto com outros heroacuteis os quais inclusive

tecircm um momento especiacutefico soacute para serem cantados Deste modo no Canto V temos a aristia

de Diomedes no VII o combate singular entre Heitor e Aacutejax no XI a aristia de Agamecircmnon

17

Texto retirado em 30 de abril de 2010 agraves 1024hs de httpwwwhs-

augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_od22html

40

no Canto XVI os feitos gloriosos de Paacutetroclo e no XVII a aristia de Menelau entre outros

Como se pode ver cantos seratildeo dedicados agrave exaltaccedilatildeo de outros heroacuteis e dos seus feitos

proporcionando uma descentralizaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave figura do heroacutei maior Aquiles

Na Odisseacuteia ao contraacuterio temos uma centralizaccedilatildeo do siacutembolo heroacuteico a partir de

Odisseu Este conduz o percurso de quase todos os cantos como eixo de glorificaccedilotildees salvo

em alguns momentos em que se daacute espaccedilo para Telecircmaco a chamada Telemaquia (nos

Cantos I ao IV) mas esta natildeo proporciona uma descentralizaccedilatildeo e sim uma acentuaccedilatildeo da

centralizaccedilatildeo visto que eacute a saga do filho de Odisseu assim constitui o siacutembolo da

descendecircncia heroacuteica18

Siacutembolo de piedade de prudecircncia e de respeito ao pudor (aidwj) Odisseu

sempre honra as divindades e esse eacute o argumento utilizado por Atena para Zeus ao pedir que

Odisseu possa regressar ao lar No Canto XXII entre os versos 401 a 416 apoacutes ter matado os

pretendentes e encontrar-se ensanguentado em meio a todos eles Odisseu encontra a ama

Euricleacuteia e esta regozijando-se de alegria eacute contida pelo heroacutei Observemos a accedilatildeo do

prudente Odisseu

εὗρεν ἔπειτ᾽ Ὀδυσῆα μετὰ κταμένοισι νέκυσσιν

αἵματι καὶ λύθρωι πεπαλαγμένον ὥστε λέοντα

ὅς ῥά τε βεβρωκὼς βοὸς ἔρχεται ἀγραύλοιο

πᾶν δ᾽ ἄρα οἱ στῆθός τε παρήϊά τ᾽ ἀμφοτέρωθεν

405 αἱματόεντα πέλει δεινὸς δ᾽ εἰς ὦπα ἰδέσθαι

ὣς Ὀδυσεὺς πεπάλακτο πόδας καὶ χεῖρας ὕπερθεν

ἡ δ᾽ ὡς οὖν νέκυάς τε καὶ ἄσπετον εἴσιδεν αἷμα

ἴθυσέν ῥ᾽ ὀλολύξαι ἐπεὶ μέγα εἴσιδεν ἔργον

ἀλλ᾽ Ὀδυσεὺς κατέρυκε καὶ ἔσχεθεν ἱεμένην περ

410 καί μιν φωνήσας ἔπεα πτερόεντα προσηύδα

ἐν θυμῶι γρηῦ χαῖρε καὶ ἴσχεο μηδ᾽ ὀλόλυζε

οὐχ ὁσίη κταμένοισιν ἐπ᾽ ἀνδράσιν εὐχετάασθαι

τούσδε δὲ μοῖρ᾽ ἐδάμασσε θεῶν καὶ σχέτλια ἔργα

οὔ τινα γὰρ τίεσκον ἐπιχθονίων ἀνθρώπων

415 οὐ κακὸν οὐδὲ μὲν ἐσθλόν ὅτις σφέας εἰσαφίκοιτο

τῶι καὶ ἀτασθαλίηισιν ἀεικέα πότμον ἐπέσπον19 (Odisseacuteia XXII 401- 416)

18

Ver quadro genealoacutegico na paacutegina 40 19

Texto disponiacutevel em httpwwwhs-

augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_od22html agraves 1500hs de 15 de julho de

2010

41

Entatildeo encontrou Odisseu junto aos cadaacuteveres que havia matado

Tendo sido manchado com sangue e impureza Do mesmo modo

que um leatildeo apoacutes devorar um boi do campo que em consequumlecircncia

possui todo o peito e as mandiacutebulas ensanguumlentadas dos dois lados

assim ele se encontra e faz-se ver em direccedilatildeo ao terror

Deste modo as matildeos e os peacutes de Odisseu estavam em cima manchados

Entatildeo a ama Euricleacuteia viu os cadaacuteveres e o imenso sangue

e eacute verdade que atacou a gritar quando viu o grande trabalho

Mas Odisseu a deteve e decerto segurou sua agitaccedilatildeo

Tambeacutem ele mesmo tendo falado alto dirigia-lhe essas palavras aladas

Na alma velha alegra-te mas natildeo grita reprime pois para si

Natildeo eacute da lei divina manifestar-se assim sobre os homens que perecem

Estes o destino dos deuses submeteu como tambeacutem a seus trabalhos

[funestos

Eles natildeo respeitavam nenhum dos homens viventes da terra

nem o mau nem certamente o bom que a eles se apresentou

E por essas accedilotildees insanas perseguiu-lhes o destino indigno

Junito Brandatildeo em Introduccedilatildeo ao mito dos heroacuteis (1998) relata sobre a origem

do termo grego hAgraverwj que teria sido oriunda da forma do indo-europeu serva relacionada

tambeacutem ao termo latino seruuare daiacute o fato de a palavra heroacutei significar aquele que nasceu

para servir Odisseu cumpre bem esta tarefa de servidor de uma naccedilatildeo haja vista seu

importante papel na Guerra de Troacuteia participando da embaixada a Aquiles idealizando o

Cavalo de Troacuteia e em seu retorno a Iacutetaca estabelecendo a paz e a ordem junto com Atena

em sua paacutetria

Ainda segundo Junito o heroacutei tem que enfrentar dificuldades em sua trajetoacuteria

como tambeacutem em seu nascimento ser filho de mortal com imortal ter educaccedilatildeo diferenciada

dos demais e passar pelos ritos de formaccedilatildeo iniciaacutetica e de passagem No primeiro rito o

heroacutei ausenta-se do pai eou da paacutetria como faz Telecircmaco no Canto I da Odisseacuteia que em

busca do seu pai teve que sair de Iacutetaca sua paacutetria no segundo o heroacutei realiza seu momento

de transiccedilatildeo com algum grande feito como descer ao Hades desvendar a saiacuteda de um

labirinto entre tantos outros Na Odisseacuteia por exemplo o rito de passagem do Laertida eacute

realizado no Canto XI apoacutes realizar a nemacrkuia20 e vecirc-se devidamente pronto e experimentado

para saber como fazer e como deve agir para retornar a seu tatildeo pretendido lar

No geral como explica-nos Brandatildeo o heroacutei eacute representado belo mas sempre tecircm

algumas deficiecircncias fiacutesicas como o gigantismo em excesso a exemplo de Heacuteracles ou

estatura baixa demais como eacute o caso de Odisseu Sobre este fato Charles Beye comenta ―a

20

Em grego nemacrkuia indica o ritual de sacrifiacutecio feito aos mortos

42

definiccedilatildeo tradicional de heroacutei pressupotildee em geral beleza fiacutesica e forccedila O Odisseu pode ter

sido forte mas parece que natildeo foi nenhum modelo de beleza (BEYE 2006 p 58)

Ateacute o momento discutimos caracteriacutesticas gerais a respeito dos heroacuteis gregos

sejam atraveacutes das definiccedilotildees baacutesicas como a dos dicionaacuterios didaacuteticas como as de Hesiacuteodo

filosoacuteficas e literaacuterias como as de Aristoacuteteles sejam as analiacuteticas e teoacutericas como as de

Junito Neste percurso tentamos relacionar as caracteriacutesticas citadas de heroiacutesmo ao

personagem maior da Odisseacuteia

Neste instante partiremos para uma anaacutelise mais especiacutefica do perfil de Odisseu

representado na Odisseacuteia Para tanto escolhemos os cinco primeiros versos do seu proecircmio21

e dois dos epiacutetetos de Odisseu polutropoj e polumhtij Esta delimitaccedilatildeo faz-se

relevante para que possamos abarcar da melhor maneira possiacutevel o objeto em questatildeo

Como sabemos os epiacutetetos satildeo recursos comuns na literatura grega em geral

principalmente na arcaica por sua ligaccedilatildeo com a oralidade Deste caraacuteter oral proveacutem a

importacircncia da utilizaccedilatildeo de alguns recursos como por exemplo o dos epiacutetetos as repeticcedilotildees

num processo mnemocircnico Diante deste fato Junito Brandatildeo (1998) informa-nos a partir dos

dados colhidos por Lloyd-Jones que na eacutepica homeacuterica haacute ao todo vinte e oito mil versos e

vinte e cinco mil frases pequenas ou longas repetidas Os epiacutetetos tambeacutem fazem parte destes

recursos mnemocircnicos por isso Junito cita a pesquisa realizada por Joseacute Marques Leite a qual

atesta a existecircncia de quatro mil quinhentos e sessenta epiacutetetos utilizados nos seus dois

poemas

Desta maneira importante natildeo apenas como recurso literaacuterio como tambeacutem

mnemocircnico Homero utiliza-se aleacutem da representaccedilatildeo pela accedilatildeo dos epiacutetetos para simbolizar

os atributos heroacuteicos de Odisseu ilustrando as caracteriacutesticas especiacuteficas do heroacutei

Selecionamos o proecircmio e os dois epiacutetetos jaacute citados para que a partir deles possamos

revelar os elementos qualitativos que constituem a formaccedilatildeo do Odisseu Ateacute porque assim

como passa vinte anos distante de sua paacutetria seu nome natildeo consta nos vinte primeiros versos

sendo entatildeo sua referecircncia realizada pela citaccedilatildeo de seus feitos e pelo epiacuteteto polutropoj

Observemos os cinco primeiros versos do proecircmio da Odisseacuteia

21 Haacute um estudo interessante sobre o proecircmio da Odisseacuteia e que nos auxiliou na construccedilatildeo deste trabalho Este

eacute intitulado ―Polluacute Pollaacute Pollocircn Multiplicidade no proecircmio da Odisseacuteia de Andreacute Malta (USP) e estaacute

disponiacutevel em httpwwwscieloorgarscielophpscript=sci_arttextamppid=S0328-12052007000100004

43

Ἄλδξα κνη ἔλλεπε κνῦζα πολύτροπον ὃο κάια πολλὰ

πιάγρζε ἐπεὶ Τξνίεο ἱεξὸλ πηνιίεζξνλ ἔπεξζελ

πολλῶν δ᾽ ἀλζξώπσλ ἴδελ ἄζηεα θαὶ λόνλ ἔγλσ

πολλὰ δ᾽ ὅ γ᾽ ἐλ πόληση πάζελ ἄιγεα ὃλ θαηὰ ζπκόλ

5 ἀξλύκελνο ἥλ ηε ςπρὴλ θαὶ λόζηνλ ἑηαίξσλ22

Musa conta-me sobre o heroacutei de muitas voltas que muito

errou depois que saqueou a sagrada cidade de Troacuteia

Viu as cidades de muitos homens e conheceu sua mente

no mar padeceu muitos sofrimentos de encontro ao seu acircnimo

esforccedilando-se por sua alma e pelo regresso dos companheiros

Como vemos o primeiro epiacuteteto utilizado para Odisseu eacute o de polutropoj para

o qual Bailly daacute a traduccedilatildeo ―qui se tourne en beaucoup de sens (BAILLY 2000 p 1601) ou

seja o que se volta em muitos sentidos ou versatile astuto versaacutetil astuto como traduz

Romizi (2007) Mas estudando a formaccedilatildeo deste epiacuteteto polutropoj observamos que ele eacute

feito pela junccedilatildeo de polu expressatildeo adjetiva de quantidade intensificadora que significa

muito mais o substantivo masculino tropoj que significa modo maneira atitude direccedilatildeo

Este substantivo por sua vez eacute originado do verbo trepw voltar tornar dirigir Esta

retomada ao verbo que origina o epiacuteteto muito nos esclarece visto que Odisseu anda por

muitos lugares e volta para os mesmos Por exemplo Oisseu sai da Ilha de Circe no Canto X

e volta no Canto XI depois de ter estado na entrada do Hades

Ao mesmo tempo aleacutem do sentido fiacutesico este epiacuteteto tambeacutem nos revela o poder

de arguiccedilatildeo de habilidade com o pensamento Este epiacuteteto talvez seja o mais representativo

de Odisseu que como sabemos eacute o heroacutei do regresso da volta agrave paacutetria sem falar que seus

discursos tambeacutem satildeo cheios de contornos No Canto IX com Polifemo ele diz chamar-se

oucurrentij Ningueacutem no verso 366 mas jaacute no verso 455 diz chamar-se Odisseu revelando seu

verdadeiro nome assim ele vai e volta em seu discurso Seria entatildeo polutropoj o de

muitas voltas de muitos contornos de muitas maneiras intensificando o caraacuteter maleaacutevel e

multiforme de Odisseu de adaptar-se agraves circunstacircncias para no final sair vencedor Assim

ele se esconde como o rebanho de Polifemo eacute o amante de Circe o amante de Calipso o

mendigo de Iacutetaca o navegante o hoacutespede isto eacute muitas figuras para o mesmo heroacutei que com

todas elas tem a vitoacuteria como uacutenico objetivo A exposiccedilatildeo semacircntica do termo polutropoj

nem sempre fica clara nas traduccedilotildees o que afeta o sentido tatildeo necessaacuterio para uma

compreensatildeo do heroacutei e da obra como um todo vejamos algumas exemplificaccedilotildees

22

Os destaques satildeo nossos Texto retirado agraves 2107hs de 27 de abril de 2010 do site

httpwwwhsaugsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_od01html

44

Musa reconta-me os feitos do heroacutei astucioso que muito

peregrinou decircs que esfez as muralhas sagradas de Troacuteia

muitas cidades dos homens viajou conheceu seus costumes

como no mar padeceu sofrimentos inuacutemeros na alma

para que a vida salvasse e de seus companheiros a volta

(NUNES 2009 p 28)

Oacute Musa fala-me do solerte varatildeo que depois de ter destruiacutedo a cidade

sagrada de Troacuteia andou errante por muitas terras viu as cidades de

numerosas gentes e conheceu-lhes os costumes e por sobre o mar sofreu

no seu coraccedilatildeo afliccedilotildees sem conta no intento de salvar a sua vida e de

conseguir o regresso dos companheiros

(PALMEIRA amp CORREIA 1980 p 1)

Clsquoest llsquoHomme aux mille tours Muse qulsquoil faut me

dire Celui tant erra quand de Troade il eut pilleacute la

ville sainte Celui qui visita les citeacutes de tant dlsquohommes

et connut leur esprit Celui qui sur ler mers passa par

tant dlsquoangoisses en luttant pour survivre et ramener ses gens23

(BEacuteRARD 2009 p1)

Como vemos as traduccedilotildees do termo polutropoj natildeo datildeo conta do seu potencial

semacircntico principalmente porque os autores deixam de traduzir o seu qualificador e

acentuador polu A exceccedilatildeo fica para a traduccedilatildeo de Beacuterard que usa a expressatildeo ―mille

tours ou seja ―mil voltas Ainda assim o numeral ―mil natildeo exatamente reflete a expressatildeo

grega jaacute que esta natildeo eacute quantificada pois se traduz como ―muitos ―indeterminadamente

Esquecer ou ignorar a traduccedilatildeo de polu natildeo eacute adequado mesmo porque se o quisesse

Homero poderia deixaacute-lo impliacutecito ou natildeo o ter utilizado mas se o fez eacute porque considera

importante ser dada a ecircnfase ao substantivo tropoj

Ao longo dos cinco primeiros versos deste proecircmio vemos a repeticcedilatildeo dos

intensificadores pollaUuml pollwordfn pollaUuml fora o polu de polutropoj que jaacute foi

estudado por noacutes O primeiro termo um adveacuterbio pollaUuml refere-se agrave plagxqh indicando

aquele que muito vagou errou O segundo pollwordfn relaciona-se a a)nqrwpwn para

expressar que ele andou por cidades de muitos homens E o terceiro pollaUuml direciona-se

23

Traduccedilatildeo

Eacute o homem de mil voltas Musa que eacute preciso me dizer

Este que tanto vagou errante quando da Trocircade tinha saqueado

a cidade santa este que visitou as cidades de tantos homens

e conheceu seu espiacuterito Este que sobre os mares passou por

tantas anguacutestias lutando para sobreviver e o seu povo fazer retornar

45

para especificar aAtildelgea ou seja as muitas dores sofrimentos pelos quais passou no mar

buscando os seus retornos e o dos seus companheiros Essa sequecircncia de intensificadores

logo ao iniacutecio do proecircmio apesar de breve eacute uma boa representaccedilatildeo da multiplicidade

representada ao longo da Odisseacuteia epopeacuteia em que tudo eacute grandioso excessivo sejam os

feitos do heroacutei os locais pelos quais ele passa sejam tambeacutem suas dores Sem falar no seu

poder ilustrado pelo primeiro epiacuteteto polutropoj que exprime sua capacidade de muitas

voltas o multiforme ou pelo sentido concreto ou abstrato

Outro epiacuteteto bastante relevante eacute o de polumhtij pois aleacutem de configurar a

persona de Odisseu acentua essa qualificaccedilatildeo jaacute que eacute caracteriacutestico de outros personagens e

evoca nomes importantes como os de Zeus e Atena Deste modo Hesiacuteodo no verso 457 de

Teogonia (2009) define o pai dos deuses e dos homens como o Zhordfna te mhtioenta ou

seja Zeus astuto saacutebio sagaz Ainda na Teogonia (2009) Hesiacuteodo conta-nos dos versos 881

ateacute o 900 que Zeus aconselhado por Terra engole Meacutetis sua primeira esposa ainda graacutevida

de Atena para que seus filhos natildeo o destronassem Desta forma com a prudecircncia dentro de si

Zeus torna-se ainda mais poderoso Atena sendo filha de Meacutetis tambeacutem tem a caracteriacutestica

da prudecircncia aleacutem de que o proacuteprio Hesiacuteodo (2009) sempre a compara a seu pai tanto em

poder quanto em prudecircncia24

Segundo Otto (2005) no hino homeacuterico agrave Atena Meacutetis a

chama de polumhtij Sem falar que no Canto XIII verso 297 da Odisseacuteia a proacutepria Atena

compara-se a Odisseu Isto ocorre quando ela se revela para o heroacutei e diz que ele eacute um exiacutemio

astucioso muito sagaz que consegue tudo o que almeja Na formaccedilatildeo desse epiacuteteto temos o

intensificador polu muito e o substantivo mhordftij que significa prudecircncia sagacidade

Assim o epiacuteteto polumhtij que evoca e relaciona Odisseu a Zeus e a Atena significa o de

muita prudecircncia muita sagacidade E sabemos que ambos os deuses protegem Odisseu em

sua erracircncia ateacute retornar agrave paacutetria

Esse epiacuteteto eacute importante pois aleacutem de relacionar Odisseu agraves caracteriacutesticas de

Zeus relaciona-o tambeacutem ao de sua proacutepria deusa-guia Atena Esta eacute a deusa que acompanha

Odisseu como tambeacutem seu filho Telecircmaco em toda a sua jornada Telecircmaco Atena auxilia

no rito de iniciaccedilatildeo heroacuteica e Odisseu em sua longa jornada em busca da gloacuteria domeacutestica25

Na proacutepria Iliacuteada (2009) ela jaacute acompanha Odisseu em sua empreitada noturna com

24

Versos 892 e 898 da Teogonia 25

A gloacuteria que Odisseu busca eacute a domiciliar ateacute porque a kleoj aOacutefqiton gloacuteria impereciacutevel ele jaacute havia

conquistado ainda em vida Uma prova disso eacute que no Canto VIII da Odisseacuteia entre os versos 499-531

Demoacutedoco canta a construccedilatildeo do cavalo de madeira idealizado por Odisseu E o Laertida vai agraves laacutegrimas tendo

percebido que se tornara mito ainda em vida

46

Diomedes no Canto X ajudando-os a matar os inimigos e a voltar com seguranccedila para o

acampamento Sob essa proteccedilatildeo divina Odisseu cumpre sua jornada retorna ao seu lar apoacutes

vinte anos realiza a chacina dos pretendentes e instaura a paz em Iacutetaca

Por tudo isso que foi explicitado acerca deste multiforme heroacutei eacute que ―()

Odisseu era o modelo supremo para o homem do mundo antigo (BEYE 2006 p 206) aleacutem

de ser apontado como ―o heroacutei mais ceacutelebre de toda a antiguidade (GRIMAL 2005 p 458)

A fim de mostrar a importacircncia deste heroacutei trabalhamos neste toacutepico com dois aspectos

centrais no primeiro fizemos elucidaccedilotildees a respeito da definiccedilatildeo e caracterizaccedilatildeo do heroacutei

sua funccedilatildeo no mundo grego a partir dos estudos de Hesiacuteodo em Teogonia (2009) e Os

trabalhos e os dias (2008) Aristoacuteteles na Poeacutetica Dumegravezil (1995) Junito Brandatildeo (1995)

No segundo fizemos um breve estudo dos cinco primeiros versos do proecircmio da Odisseacuteia e

de dois importantes e ilustrativos epiacutetetos de Odisseu o polumhtij e o polutropoj Tudo

isso para poder mostrar a relevacircncia heroacuteica que este personagem tem natildeo soacute na epopeacuteia que

o retrata mas em toda a representatividade da literatura claacutessica

47

2 O TRAacuteGICO - ASPECTOS TEOacuteRICOS E CONCEITUAIS

21 Uma breve consideraccedilatildeo sobre o nosso estudo do Traacutegico

Antes de iniciarmos nossas ponderaccedilotildees teoacutericas e conceituais a respeito do

traacutegico consideramos importante elucidar que iremos fundamentar nossas discussotildees a partir

dos preceitos aristoteacutelicos do traacutegico presentes na Poeacutetica Contudo reconhecemos que este

autor assim como diz-nos Albin Lesky (1996) natildeo nos deixou tatildeo claro esses aspectos

Vejamos

Haacute algo sem duacutevida que podemos afirmar com inteira seguranccedila os gregos

criaram a grande arte traacutegica e com isso realizaram uma das maiores

faccedilanhas do campo do espiacuterito mas natildeo desenvolveram nenhuma teoria do

traacutegico que tentasse ir aleacutem da plasmaccedilatildeo deste no drama e chegasse a

envolver a concepccedilatildeo do mundo como um todo (LESKY 1996 p 21)

Lesky coloca-nos a exposiccedilatildeo de maneira clara foram os gregos que nos legaram

o traacutegico legado esse importantiacutessimo todavia natildeo deixaram para posteridade o

desenvolvimento e a interpretaccedilatildeo desse traacutegico ou seja nenhuma ―teoria do traacutegico Apesar

de que ele proacuteprio ao longo de A trageacutedia Grega (1996) percorre os elementos traacutegicos

presentes na Poeacutetica E para esclarecer esses aspectos que natildeo estatildeo desenvolvidos em

profundidade por Aristoacuteteles outros autores aleacutem do jaacute citado Albin Lesky tambeacutem se

dedicam ao desvendamento da significaccedilatildeo do traacutegico a citar Jean Pierre Vernant Pierre

Grimal Jacqueline de Romilly Anatol Rosenfeld Junito Brandatildeo e Sandra Luna A seleccedilatildeo

destes autores realiza-se atraveacutes de criteacuterios que levam em consideraccedilatildeo a adequaccedilatildeo ao nosso

trabalho

Acreditamos ser importante fazer esta ressalva pois como se sabe muitos

trabalhos foram realizados sobre o traacutegico principalmente pelos filoacutesofos alematildees legando-

nos uma ―filosofia do traacutegico Esta foi realizada por autores como Schelling Houmllderlin

Hegel Solger Goethe Schopenhauuer Vischer Kierkegaard Hebbel Nietzscche Simmel e

Schiler Todos eles detiveram parte de seus estudos para entenderem a manifestaccedilatildeo do

traacutegico Reconhecemos as contribuiccedilotildees dadas por cada um mas no presente trabalho

delimitamos alguns autores por considerarmos mais adequados ao nosso objetivo central que

48

eacute analisar o traacutegico jaacute existente na eacutepica especificamente no Canto XI da Odisseacuteia a partir

dos encontros que Odisseu tem no Hades

Ao longo deste capiacutetulo desenvolveremos trecircs eixos do traacutegico que seratildeo

importantes para a compreensatildeo e embasamento de nossa anaacutelise ―O traacutegico e a trageacutedia ―O

traacutegico na Poeacuteticardquo e ―A busca do traacutegico - outras acepccedilotildees teoacutericas No primeiro

discorreremos sobre as diferenccedilas e especificidades da trageacutedia e do traacutegico no segundo

sobre os conceitos do traacutegico jaacute referidos por Aristoacuteteles na Poeacutetica interpretando-os a partir

da traduccedilatildeo de excertos extraiacutedos do original no terceiro iremos expor e discutir os estudos

de outros autores sobre o traacutegico claacutessico sempre observando sua aplicabilidade agrave nossa

anaacutelise central que seraacute desenvolvida especificamente no capiacutetulo subsequente

22 O traacutegico e a trageacutedia

No momento em que comeccedilamos a discutir sobre as questotildees da trageacutedia e do

traacutegico desde o iniacutecio nos eacute imposto mesmo que indiretamente o dilema da anterioridade de

um ou de outro Assim perguntamo-nos quem teria vindo primeiro A trageacutedia ou o traacutegico

Aparentemente eles satildeo indissociaacuteveis tornando difiacutecil definir quem veio primeiro e a

delimitaccedilatildeo onde um inicia e o outro termina Ateacute que ponto ser-nos-ia possiacutevel contemplar

traacutegico sem trageacutedia ou ainda mais trageacutedia claacutessica sem o traacutegico Diante destas

interrogativas jaacute adiantamos que a realizaccedilatildeo daquele (traacutegico sem trageacutedia) eacute viaacutevel ao

contraacuterio deste (trageacutedia claacutessica sem traacutegico) em que sua estrutura prescinde do elemento

traacutegico como jaacute bem nos disse Aristoacuteteles na Poeacutetica inclusive para a efetivaccedilatildeo da

kaqamacrrsij26

Para que possamos entender essa dita viabilidade de traacutegico sem trageacutedia e a

inviabilidade da trageacutedia claacutessica sem o traacutegico iremos discorrer sobre a origem a

conceituaccedilatildeo e a significaccedilatildeo que eles possuem dentro do contexto da literatura claacutessica

grega

A palavra tragikoj tem como sentido geral aquilo que concerne agrave trageacutedia ou

ateacute mesmo ao ator ou ao poeta traacutegico algo de natureza grave majestosa poeacutetica assim nos

26

Sabe-se que a respeito deste termo grego existem algumas discussotildees as quais seratildeo expostas no decorrer do

trabalho Por hora basta-nos compreender que este termo oriundo do verbo kaqairw tem como sentido

primaacuterio o significado meacutedico de purgaccedilatildeo aleacutem de ter uma acepccedilatildeo religiosa de purificaccedilatildeo

49

define A Bailly (2000) e Liddlel e Scott (1996) Mas a partir de uma perspectiva

etimoloacutegica indicada por Renato Romizi (2001) tragikoj com o radical de tragoj

(bode) e o sufixo adjetivo ikoj significa primordialmente o que eacute proacuteprio do bode ou

semelhante ao bode Contudo considerando as utilizaccedilotildees deste nome no cenaacuterio da literatura

grega claacutessica com o surgimento das trageacutedias tragikoj passa a significar tambeacutem o

traacutegico elemento proacuteprio da trageacutedia vista aqui como gecircnero literaacuterio e natildeo como

manifestaccedilatildeo de ritual religioso que inclusive deu origem a sua nomeaccedilatildeo Todavia

veremos estes aspectos mais agrave frente quando formos tratar especificamente da trageacutedia

Como vimos o aspecto etimoloacutegico natildeo nos esclarece por completo os enigmas

do traacutegico todavia jaacute nos daacute pistas de sua significaccedilatildeo e origem Podemos entender que o

tragikoj estaacute ligado ao siacutembolo do bode este que por sua vez passa a ser relacionado ao

gecircnero literaacuterio da trageacutedia (do grego tragwlaquodimacra ou seja canto do bode) E sendo o bode

siacutembolo do sacrifiacutecio realizado a Dioniso dentro de um ritual religioso importante

socialmente podemos entender porque ambos tanto o traacutegico quanto a trageacutedia estatildeo

envoltos em uma accedilatildeo grandiosa

Em nossa pesquisa bibliograacutefica os estudos sobre o traacutegico que encontramos estatildeo

dentro dos estudos da trageacutedia numa intriacutenseca relaccedilatildeo que tanto pode ser beneacutefica como

pode tambeacutem natildeo nos beneficiar por acreditarmos nem sempre ter sido assim O traacutegico

como desenvolveremos a seguir jaacute se manifestava socialmente entre os gregos e em suas artes

desde muito cedo ao contraacuterio da trageacutedia que soacute viria a existir a partir do seacuteculo V aC

Diante dos estudos a respeito do traacutegico claacutessico a que jaacute nos referimos

destacamos o trabalho realizado por Sandra Luna em Arqueologia da accedilatildeo traacutegica (2005)

Neste temos algumas consideraccedilotildees sobre a existecircncia do traacutegico antes da trageacutedia o que

pode ser comprovado por estudos antropoloacutegicos verificando-se que ―natildeo surpreende o

adentramento precoce do traacutegico na tessitura das artes verbais (LUNA 2005 p 29) Um

exemplo bastante claro dessa preacute-existecircncia do traacutegico natildeo soacute na perspectiva social mas na

produccedilatildeo literaacuteria satildeo as epopeacuteias homeacutericas pois eacute fato que

() Homero convida-nos a ponderar gravemente sobre o traacutegico fim da

existecircncia humana Contudo a despeito do tratamento refinado de elementos

traacutegicos na eacutepica grega natildeo parece ser exatamente ―traacutegico o efeito

pretendido pelo poeta (Ibidem)

Assim apesar de o traacutegico como diz a autora natildeo ser objetivo de Homero eacute

inegaacutevel que nas duas primeiras obras de nossa literatura ocidental precursoras de tantas

50

categorias literaacuterias inaugura-se tambeacutem o traacutegico mesmo que ―a estrutura da accedilatildeo na

narrativa eacutepica dispersa o efeito traacutegico em favor de outros efeitos (LUNA 2005 p 30)

Compartilhamos com esse pensamento de que Homero realiza a dispersatildeo do traacutegico e isso

ele faz utilizando-se de recursos como a modificaccedilatildeo de uma cena traacutegica para outra sem

tragicidade diluindo a tragicidade da cena anterior Entre tantos exemplos desse fato

podemos citar o Canto XXIV no qual Priacuteamo natildeo soacute pede o resgate do corpo do seu filho

Heitor como tambeacutem beija a matildeo do assassino de seu filho Aquiles (v 506) Este concede o

pedido feito pelo rei dos troianos e convida-o para um banquete Vejamos

ἦ ῥα θαὶ ἐο θιηζίελ πάιηλ ἤτε δῖνο Ἀρηιιεύο

ἕδεην δ᾽ ἐλ θιηζκη πνιπδαηδάιση ἔλζελ ἀλέζηε

ηνίρνπ ηνῦ ἑηέξνπ πνηὶ δὲ Πξίακνλ θάην κῦζνλ

πἱὸο κὲλ δή ηνη ιέιπηαη γέξνλ ὡο ἐθέιεπεο

600 θεῖηαη δ᾽ ἐλ ιερέεζζ᾽ ἅκα δ᾽ ἠνῖ θαηλνκέλεθηλ

ὄςεαη αὐηὸο ἄγσλ λῦλ δὲ κλεζώκεζα δόξπνπ27

(Iliada XXIV 596-601)

Dizia e em seguida o divino Aquiles volta para o seu acampamento

sentou-se em seu alto trono e entatildeo fez-se ficar do

outro lado do muro diante de Priacuteamo a quem declarou o discurso

Velho como incitavas o seu filho foi libertado para ti

estaacute colocado em um atauacutede Que tu o revejas raiando a manhatilde

ao mesmo tempo conduzindo-o Mas nesse instante pensemos no banquete

Nesta cena e nas outras que a antecedem temos a realizaccedilatildeo do pedido de Priacuteamo

pelo resgate do filho morto e ultrajado Nesta passagem o aspecto comovente poderia

desencadear no traacutegico mas Homero natildeo a intensifica e sim atenuando a manifestaccedilatildeo do

sentimento traacutegico dirige a cena para uma celebraccedilatildeo simbolizada pelo banquete Segundo

informa-nos Jean Chevalier e Alain Gheerbrant (2009) o banquete eacute um siacutembolo universal

que representa a alianccedila um rito comunial de participaccedilatildeo social envolta e direcionada a um

mesmo projeto geralmente festivo Reconhecemos tambeacutem que nem sempre o banquete

ocorre numa situaccedilatildeo comemorativa apesar de geralmente ser assim e a citaccedilatildeo acima eacute bem

ilustrativa disso Ainda que sejam inimigos Priacuteamo e Aquiles celebram um pacto de respeito

e natildeo uma festividade Mas de todo o modo tal conciliaccedilatildeo representada pelo siacutembolo do

banquete ameniza o conflito este que por sua vez atenua o traacutegico

Deste modo concordamos que o autor da Odisseacuteia ―natildeo alimenta o traacutegico

(Ibidem p 31) ateacute mesmo porque ―() mal comeccedilamos a experimentar a dor somos

27

Texto disponiacutevel em httpwwwhs-

augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_il24html agraves 1018hs de 12 de julho de 2010

51

convidados a mais um dos banquetes de Homero () (LUNA 2005 p 34) Contudo aleacutem

de ser natural eacute bastante coerente da parte do Homero natildeo se aprofundar no efeito traacutegico

natildeo o objetivando pois ao inveacutes de ter produzido o gecircnero eacutepico ele teria legado-nos uma

incipiente trageacutedia Isso ocorre porque como sabemos o objetivo da eacutepica relaciona-se agrave

exaltaccedilatildeo dos grandes homens e de seus magnos feitos logo natildeo seria coerente Homero

direcionar-se unicamente ao traacutegico Tal fato seria uma relevante incongruecircncia estrutural

com o gecircnero eacutepico com o qual produziu duas notificadas obras que exaltaram as accedilotildees de

Aquiles e Odisseu respectivamente a partir da Iliacuteada e da Odisseacuteia

Todavia jaacute encontramos nas eacutepicas de Homero uma forte e inegaacutevel evidecircncia

traacutegica esta que se natildeo eacute objetivo deste poeta eacutepico seraacute das trageacutedias gregas produzidas

entre os seacuteculos V e IV aC Por isso os tragedioacutegrafos que iratildeo produziacute-las seratildeo bastante

influenciados pela produccedilatildeo homeacuterica inclusive aproveitam-se de certas passagens de teor

traacutegico natildeo desenvolvidas para construiacuterem suas peccedilas Eacute o que provavelmente ocorreu com

Aacutejax de Soacutefocles e com Agamecircmnon de Eacutesquilo que tecircm como prenuacutencios o Canto XI da

Odisseacuteia canto esse permeado de tragicidade Desta forma concordamos com o seguinte

posicionamento de Jacqueline de Romilly

Como quer que seja os autores das trageacutedias foram buscar o assunto das

suas obras agrave epopeacuteia E natildeo eacute duvidoso que ao mesmo tempo tenham ido

buscar a arte de construir personagens e cenas capazes de comover

Apresentar o sentimento da vida inspirar terror e piedade obrigar a partilhar

um sofrimento ou uma ansiedade ndash a epopeacuteia fizera-o sempre e ensinou os

tragedioacutegrafos a fazecirc-lo Poderiacuteamos ainda dizer que se a festa criou o

gecircnero traacutegico foi a influecircncia da epopeacuteia que fez dele um gecircnero literaacuterio

(ROMILLY 2008 p 22)

Assim tendo jaacute nos inspirado o traacutegico Homero seraacute fundamental para os

tragedioacutegrafos pois ele consegue apresentar-nos a tragicidade em suas eacutepicas mesmo em

meio a tantos banquetes celebraccedilotildees e grandes feitos visto que ―A transfiguraccedilatildeo do traacutegico

contudo natildeo rasura completamente os momentos de intensa dramaticidade presente nas

epopeacuteias (Luna 2005 p 34) Diante dessa constataccedilatildeo do traacutegico em Homero reiteramos

que o traacutegico veio antes da trageacutedia natildeo soacute pela sua manifestaccedilatildeo social na vida humana mas

atraveacutes da proacutepria representaccedilatildeo literaacuteria como nos fica claro a partir das epopeacuteias

homeacutericas

Um elemento que nos propicia essa relaccedilatildeo do traacutegico nas eacutepicas vindo a

influenciar a produccedilatildeo das trageacutedias eacute a figura do heroacutei eacutepico pois muitos deles estatildeo fadados

52

a um final traacutegico e inclusive jaacute prenunciados por Homero Sobre este fato elucida-nos

Sandra Luna

() sobre o heroacutei eacutepico tambeacutem paira o terriacutevel horizonte da uacutenica certeza

humana ou seja ao final de sua trajetoacuteria para aleacutem de todas as honras das

quais venha a desfrutar a tragicidade estaraacute sempre suspensa sobre sua

cabeccedila ndash a proacutepria construccedilatildeo eacutepica se encarregou de evidenciar que o

desfecho da vida eacute irrevogavelmente traacutegico Apesar de sua caracteriacutestica

sobre-humana sabe-se que o heroacutei haveraacute um dia de ser igualado aos seus

os mortais Com isso queremos dizer que das alturas do heroacutei eacutepico seraacute

sempre possiacutevel vislumbrar momentos de tragicidade (LUNA 2005 p 31)

Como vemos na proacutepria estrutura eacutepica de eixo celebrativo haacute um elemento

favorecedor para o surgimento do traacutegico o heroacutei Sobre este fato tambeacutem complementa

Vernant ―No novo quadro do jogo traacutegico portanto o heroacutei deixou de ser um modelo

tornou-se para si mesmo e para os outros um problema (VERNANT 2008 p 2) Esta

problemaacutetica em relaccedilatildeo agrave representatividade do heroacutei que seraacute distinta no gecircnero eacutepico do

traacutegico pode ser bem ilustrada nos encontros que Odisseu tem no Hades narrado por Homero

no Canto XI da Odisseacuteia com Anticleacuteia Aquiles Agamecircmnon e Aacutejax Tanto que no caso de

Agamecircmnon e Aacutejax temos duas trageacutedias para contar-nos o fim traacutegico desses heroacuteis A saga

de Agamecircmnon eacute contada por Eacutesquilo no primeiro livro da Oresteacuteia e Soacutefocles lega-nos a

peccedila que relata o descontrole e suiciacutedio de Aacutejax Estes dois destinos traacutegicos dos heroacuteis

gregos que antes brilharam nas eacutepicas como modelos principalmente em seus feitos narrados

na Iliacuteada jaacute satildeo prenunciados no Canto XI da Odisseacuteia como veremos detalhadamente no

proacuteximo capiacutetulo

Aleacutem dessa figura eacutepica que posteriormente figuraraacute nas trageacutedias haacute outros

elementos propiacutecios ao traacutegico jaacute presentes na epopeacuteia como nos alerta Aristoacuteteles e reforccedila-

nos Jacqueline de Romilly (2008) como por exemplo a accedilatildeo uacutenica28

os personagens nobres

e a base miacutetica do conteuacutedo desenvolvido No caso do mito destaca-nos Lesky (1995) que a

sua presenccedila evidencia-se natildeo apenas na eacutepica e na trageacutedia mas tambeacutem na liacuterica A

diferenccedila eacute que na primeira e na terceira o mito representa a simboacutelica origem e organizaccedilatildeo

do mundo diante de sua grandiosidade jaacute na trageacutedia o mito passa a ser traacutegico

Diante dos aspectos discutidos percebemos a anterioridade do traacutegico

principalmente no que concerne agraves epopeacuteias homeacutericas visto que nestas o traacutegico jaacute se efetiva

28

O proacuteprio Aristoacuteteles na Poeacutetica (1555b) diz-nos que a accedilatildeo das epopeacuteias transcorre a partir de um eixo

centralizador os demais satildeo episoacutedios Assim desenvolvidas em vinte e quatro cantos cada uma a Iliacuteada e a

Odisseacuteia possuem um argumento uacutenico a primeira a ira funesta de Aquiles a segunda o regresso de Odisseu a

Iacutetaca

53

como manifestaccedilatildeo literaacuteria Assim aleacutem de tantos outros elementos literaacuterios as epopeacuteias de

Homero legaram-nos o traacutegico

Observada a presenccedila do traacutegico jaacute nas epopeacuteias de Homero discutiremos sobre a

trageacutedia sua estrutura e relaccedilatildeo com as epopeacuteias e com o traacutegico A partir deste percurso

acreditamos que entendendo melhor a trageacutedia elucidaremos melhor o traacutegico jaacute que este se

realiza atraveacutes daquela inegavelmente pois ―eacute fato que na trageacutedia os traccedilos do traacutegico se

tornaratildeo mais evidentes e seus efeitos mais perceptiacuteveis (LUNA 2005 p 34) Daiacute urge a

necessidade de voltarmos atenccedilatildeo ao entendimento da trageacutedia a fim de adquirirmos suporte

suficiente para compreender o traacutegico e assim no capiacutetulo subsequente aplicarmos esta

exposiccedilatildeo teoacuterica na anaacutelise do Canto XI da Odisseacuteia

Do mesmo modo que ocorre com o traacutegico falar sobre a trageacutedia ainda nos impotildee

certas incertezas principalmente no que se trata de sua origem mesmo que sobre ela haja um

nuacutemero bem maior de livros e artigos Ao que nos parece ―o nuacutemero dos ensaios explica-se

precisamente pela ausecircncia de certezas De fato uma grande sombra paira sobre essas

origens (ROMILLY 2008 p 13) Outro autor que compartilha e explicita essa ideacuteia das

dificuldades no estudo da trageacutedia eacute Albin Lesky em Histoacuteria da Literatura Grega (1995)

Segundo o autor natildeo podemos conhecer precisamente o trabalho dos tragedioacutegrafos por falta

de dados satisfatoacuterios ―assim a questatildeo referente agraves origens do drama traacutegico eacute desde a

eacutepoca da ciecircncia alexandrina um dos problemas mais difiacuteceis e discutidos (LESKY 1995

p 253) Finley refletindo sobre a formaccedilatildeo do gecircnero traacutegico sobretudo em comparaccedilatildeo com

outros como a eacutepica e a liacuterica afirma ―Sus oriacutegenes son oscuras (FINLEY 1970 p 101) 29

ressaltando o caraacuteter nebuloso da origem deste gecircnero literaacuterio

De todas estas discussotildees o que podemos concluir eacute que o ditirambo as festas

dionisiacuteacas os saacutetiros os festivais o estado satildeo referecircncias certas de qualquer estudo que

almeja explicar a origem da trageacutedia Adiante poderemos avaliar melhor essa assertiva

Segundo Aristoacuteteles a origem da trageacutedia estaacute relacionada ao ditirambo

Vejamos

Γελνκέλε30

δ᾽ νὖλ ἀπ᾽ ἀξρῆο αὐην[10]ζρεδηαζηηθῆο (θαὶ αὐηὴ θαὶ ἡ

θσκσηδία θαὶ ἡ κὲλ ἀπὸ ηλ ἐμαξρόλησλ ηὸλ δηζύξακβνλ ἡ δὲ ἀπὸ ηλ ηὰ

θαιιηθά ἃ ἔηη θαὶ λῦλ ἐλ πνιιαῖο ηλ πόιεσλ διαμένει νομιζόμενα )

κατὰ μικρὸν ηὐξήθη προαγόντων ὅσον ἐγίγνετο φανερὸν αὐτῆς

29

Traduccedilatildeo nossa Suas origens satildeo obscuras 30

A utillizaccedilatildeo deste particiacutepio aoristo gενομένη indica a anterioridade da accedilatildeo (MURACHO 2007) diferente

do uso do particiacutepio presente que indica a simultaneidade dos fatos Por isso a traduccedilatildeo ―tendo surgido que nos

reflete a noccedilatildeo de anterioridade jaacute que a trageacutedia tem sua existecircncia anterior ao que estaacute sendo descrito

54

θαὶ πνιιὰο κεηαβνιὰο κεηαβαινῦζα ἡ [15] ηξαγσηδία ἐπαύζαην ἐπεὶ ἔζρε

ηὴλ αὑηῆο θύζηλ31 ((Poeacutetica IV 1449a 9-15)

Portanto tendo surgido de um princiacutepio de improvisaccedilatildeo natildeo soacute ela mesma

(a trageacutedia) quanto a comeacutedia aquela pelos iniciantes do ditirambo e esta

pelos iniciantes dos cantos faacutelicos que ainda permanece estimada em muitas

cidades Estas coisas fazem-me crer que pouco a pouco a trageacutedia cresceu

desenvolvendo-se o que se tornava proacuteprio dela E tendo se transformado

apoacutes muitas mudanccedilas a trageacutedia estabilizou-se quando alcanccedilou sua

natureza proacutepria

Percebe-se que a origem da trageacutedia estaria intrinsecamente relacionada ao

ditirambo diquramboj ateacute que ela comeccedila a desenvolver-se adquirindo especificidades

proacuteprias Sendo o ditirambo um canto de louvor ao deus Dioniso entendemos o porquecirc de a

trageacutedia ser relacionada a esta divindade e ao seu culto religioso Algumas vezes essa

conexatildeo traz-nos certas complicaccedilotildees para o entendimento do gecircnero traacutegico que mesmo

tendo origem ligada ao culto do deus posteriormente veio a se distanciar como jaacute nos indica

Aristoacuteteles na passagem que citamos Daiacute entendemos porque em alguns momentos natildeo nos

eacute tatildeo clara a relaccedilatildeo entre a trageacutedia claacutessica e o culto ao deus Tal fato justifica-se por essa

relaccedilatildeo remontar agraves suas origens e natildeo ao seu desenvolvimento pois a trageacutedia transformou-

se e estabeleceu-se com caracteriacutesticas proacuteprias

Ulrich Von Moellendorff-Wilamowitz em Qursquo est-ce qursquo une trageacutedie

attique(2001) sobre as definiccedilotildees aristoteacutelicas referidas acima considera que ―Aristote

nlsquoavait pas pour but de deacutefinir historiquement la trageacutedie attique il voulait parvenir agrave une

deacutefinition conceptuelle de la trageacutedie32

(WILAMOWITZ 2001 p 118) Entatildeo seguindo as

consideraccedilotildees iniciadas por Aristoacuteteles o autor desenvolve o preceito da origem da trageacutedia

relacionada ao ditirambo e reforccedila a contribuiccedilatildeo dada pelos tragedioacutegrafos Eacutesquilo e

Soacutefocles Diz-nos

La trageacutedie a pour origine les chanteurs de dithyrambe elle a tout dlsquo abord

eacuteteacute un jeu satyrique composeacute dans des rythmes vifs et dans une langue

amusante il fallut attendre Eschyle pour que soit introduit le deuxiegraveme

acteur et pour qulsquo on retire du choeur as place de protagoniste le trosiegraveme

acteur fut introduit pour la premieacutere fois par Sophocle33

(Ibidem p 19)

31

Texto retirado de httpwwwhs-augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante04Aristotelesari_poi1html

agraves 1152hs em 12 de julho de 2010 32

Traduccedilatildeo nossa Aristoacuteteles natildeo tinha por objetivo definir historicamente a trageacutedia aacutetica ele queria chegar a

uma definiccedilatildeo conceitual da trageacutedia 33

Traduccedilatildeo nossa A trageacutedia tem a origem nos cantores de ditirambo ela foi inicialmente um jogo composto

em ritmos vivos e de uma linguagem divertida foi necessaacuterio esperar Eacutesquilo para que fosse introduzido o

segundo ator e que se retirasse do coro sua posiccedilatildeo de protagonista o terceiro ator foi introduzido pela primeira

vez por Soacutefocles

55

Wilamowitz contribui ainda com outras informaccedilotildees contextuais sobre a trageacutedia

informando-nos que em 534 aC ocorre a primeira representaccedilatildeo de uma trageacutedia durante o

festival das Grandes Dionisiacuteacas por Teacutespis34

de Lesbos Este se consagra como o primeiro

ganhador do precircmio quando o festival foi reorganizado por Pisiacutestrato Apoacutes estas

informaccedilotildees gerais o autor diante de seus estudos cria situaccedilatildeo adequada para expor uma

definiccedilatildeo de trageacutedia afirmando

Une trageacutedie attique est un eacutepisode tireacute de la leacutegende heacuteroiumlque

ayant son uniteacute propecirc traiteacute de faccedilon poeacutetique dans un style noble et destine

agrave ecirctre representeacute par um choeur de citoyens attique e deux voire trois

acteurs dans le sanctuaire de Dionysos comme partie integrante de la

ceacuteleacutebration publique du culte du dieu35

(WILAMOWITZ 2001 p 117)

Percebe-se que esta definiccedilatildeo eacute respaldada pela concepccedilatildeo que Aristoacuteteles nos

legou a partir da Poeacutetica vindo esta a ser reiterada por Wilamowitz (2001) Sabemos que

muitos estudos posteriores ao do filoacutesofo grego tentaram abarcar suas ideacuteias explicando-as

exemplificando-as de modo a atualizaacute-las para o entendimento da modernidade de uma

temaacutetica de discussotildees inesgotaacuteveis Esse eacute o caso dos autores que discutiremos a seguir

Para Romilly em A trageacutedia Grega (2008) o fator religioso eacute inegaacutevel no

surgimento e formaccedilatildeo da trageacutedia Ele reconhece tambeacutem a influecircncia poliacutetica da tirania

Ressalta que as representaccedilotildees das trageacutedias dependem do culto a Dioniso mesmo porque soacute

nas festas dedicadas ao filho de Secircmele eacute que havia a encenaccedilatildeo das peccedilas Informa-nos

ainda

A grande ocasiatildeo era na eacutepoca claacutesssica as festas das Dionisiacuteacas

urbanas que se celebrava na Primavera mas tambeacutem havia concursos de

trageacutedias na festa das Leneias que tinha lugar pelo final de Dezembro A

proacutepria representaccedilatildeo inseria-se assim num conjunto eminentemente

religioso era acompanhada de procissotildees e sacrifiacutecios (ROMILLY 2008 p

14)

Jacqueline de Romilly completa que no centro do teatro havia um assento de

pedra destinado ao deus como tambeacutem um altar onde ocorria a evoluccedilatildeo do coro Diante

34

Grimal (2002) registra atraveacutes de Soacutelon e Heroacutedoto a existecircncia de Aacuterion que em Siacutecion (Peloponeso) seria

reconhecido como o autor da primeira trageacutedia por volta de VII aC 35

Traduccedilatildeo nossa Uma trageacutedia aacutetica eacute um episoacutedio tirado de uma lenda heroacuteica tendo unidade proacutepria tratada

de modo poeacutetico em um estilo nobre e destinado a ser representado por um coro de cidadatildeos aacuteticos com dois e

ateacute mesmo trecircs atores no santuaacuterio de Dioniso como parte integrante da celebraccedilatildeo puacuteblica do culto ao deus

56

dessa constataccedilatildeo e embasada pela teorizaccedilatildeo de Aristoacuteteles (Poeacutetica 1449 a) ela afirma que

a trageacutedia tendo vindo do ditirambo seria uma amplificaccedilatildeo do rito religioso assim como a

comeacutedia

Pierre Grimal em O Teatro Antigo (2002) afirma natildeo poder dar uma explicaccedilatildeo

clara sobre o termo ―trageacutedia Isto porque haacute certa dificuldade em encaixar os dois elementos

distintos que compotildeem a formaccedilatildeo do vocaacutebulo tragwlaquodimacra ou seja tragomacrj bode e wlaquocopydimacra

(de Acircdhmacr) canto Para Grimal natildeo haacute uma relaccedilatildeo direta entre os termos tragomacrj e wlaquocopydimacra por

isso levanta diversos questionamentos o coro vestia-se com a pele do bode ou o bode seria o

precircmio para o poeta vencedor ou o bode era a viacutetima sacrifical do que era cantado Enfim

sem poder chegar a uma definiccedilatildeo mais objetiva ele conclui que essa palavra natildeo pode ser

primitiva e sim contemporacircnea ao surgimento da trageacutedia relacionada ao ritual de Dioniso

O autor ainda nos alerta citando Romilly que natildeo podemos esquecer que os

rituais religiosos passam das improvisaccedilotildees para formas literaacuterias ateacute mesmo por causa da

reorganizaccedilatildeo poliacutetica e social e daiacute surge o advento dos concursos Diante disso Grimal

aponta duas causas para o surgimento da trageacutedia a literaacuteria que teria sido iniciada por

Teacutespis e a poliacutetica relacionada ao desejo da tirania de forjar ao povo atraveacutes das festas a

centralizaccedilatildeo do poder

Como jaacute foi dito Pierre Grimal refere-se a uma importante influecircncia das

transformaccedilotildees soacutecio-poliacuteticas para as modificaccedilotildees da trageacutedia Tais influecircncias justificariam

o porquecirc de antigas manifestaccedilotildees ritualiacutesticas ligadas a Dioniso como os ditirambos e os

cantos faacutelicos viessem a originar gecircneros literaacuterios como a trageacutedia e a comeacutedia Para melhor

entendermos a importacircncia desses elementos sociais e poliacuteticos na formaccedilatildeo de um gecircnero

literaacuterio como a trageacutedia vejamos o que nos diz Arnould Hauser

A trageacutedia eacute a criaccedilatildeo artiacutestica mais caracteriacutestica da democracia

ateniense em nenhuma outra forma de arte satildeo apreciados tatildeo direta e

claramente quanto nela os conflitos internos da estrutura social de Atenas

Os aspectos externos de sua apresentaccedilatildeo agraves massas eram democraacuteticos mas

o conteuacutedo as sagas heroacuteicas com sua perspectiva traacutegico-heroacuteica da vida

eram aristocraacuteticos (HAUSER 1995 p 84)

Esta relaccedilatildeo social em que a arte traacutegica estaacute firmada natildeo pode ser dissociada

facilmente ateacute porque ―Fue Atenas la democraacutetica ciudad-estado por excelecircncia la que

produjo y patrocinoacute estrictamente hablando ndash la trageacutedia ()36

(FINLEY 1970 p 101)

36

Traduccedilatildeo nossa Foi Atenas a democraacutetica cidade-estado por excelecircncia que produziu e patrocinou -

estritamente falando ndash a trageacutedia ()

57

Ainda sobre esse momento histoacuterico da trageacutedia suas condiccedilotildees sociais e ateacute mesmo

psicoloacutegicas Jean-Pierre Vernant em Mito e Trageacutedia na Greacutecia Antiga (2008) informa-nos

que muitas discussotildees nos uacuteltimos cinquenta anos ocorreram sobre trageacutedia e mais

precisamente sobre suas origens E diante de todas as interrogaccedilotildees dos helenistas e

proposiccedilotildees de respostas natildeo foram suficientes para resolver o problema da trageacutedia A este

problema exposto por Vernant incluiacutemos o que consideramos como intriacutenseco agrave trageacutedia a

manifestaccedilatildeo traacutegica Isto porque esta foi iniciada na literatura a partir das eacutepicas homeacutericas e

estabilizada a partir das trageacutedias gregas Diante deste quadro complexo que gerou tanto a

comeacutedia quanto a trageacutedia Vernant concebe esta da seguinte maneira

A trageacutedia natildeo eacute apenas uma forma de arte eacute uma instituiccedilatildeo

social que pela fundaccedilatildeo dos concursos traacutegicos a cidade coloca ao lado dos

seus oacutergatildeos puacuteblicos e judiciaacuterios () um espetaacuteculo aberto a todos os

cidadatildeos dirigido desempenhado julgado por representantes qualificados

das diversas tribos a cidade se faz teatro ela se toma de certo modo como

objeto de representaccedilatildeo e desempenha a si proacutepria diante do puacuteblico

(Ibidem p 10)

Irredutivelmente traacutegica em sua essecircncia a trageacutedia reflete a realidade em que ela

se originou e se estabeleceu por isso diz-nos Vernant que ―a proacutepria consciecircncia traacutegica

nasce e desenvolve-se com a trageacutedia (2008 p 9) Mas para aleacutem da representaccedilatildeo a

trageacutedia questiona a sociedade em que se instaurou E o seu constituinte traacutegico eacute elemento

importante nesse fato visto que potildee em cena o conflito da condiccedilatildeo humana diante de sua

fragilidade e limitaccedilatildeo

E esse elemento traacutegico estaacute relacionado ao deus que assiste do centro do teatro agrave

representaccedilatildeo da tragicidade humana Referimo-nos a Dioniso o deus que representa

contraditoriamente (ou natildeo) tanto a trageacutedia quanto a comeacutedia gecircneros que chegam a ser

completamente opostos a depender da perspectiva em que sejam analisados Um deus tatildeo

associado agrave celebraccedilatildeo ao vinho ao canto faacutelico ao ecircxtase causa-nos certa estranheza em

estar na representaccedilatildeo do gecircnero traacutegico

Mas essa ligaccedilatildeo entre o deus e o traacutegico pode ser bem entendida pelo fato de

que assim como a trageacutedia questiona a proacutepria realidade que representa tambeacutem ―Dioniso

questiona essa ordem Ele a faz despedaccedilar-se ao revelar por sua presenccedila outro aspecto do

sagrado jaacute natildeo regular estaacutevel e definido mas estranho inapreensiacutevel e desconcertante

(VERNANT 2006 p 77) Como vemos assim como o traacutegico o deus que o representa

possui os mesmos atributos daiacute a adequaccedilatildeo entre ambos E toda essa complexidade

58

representativa ocorre porque Dioniso ―nos ensina ou nos obriga a tornar-nos o contraacuterio

daquilo que somos comumente (VERNANT 2006 p 80) Toda essa transmutaccedilatildeo pela qual

passa o personagem traacutegico que segundo Vernant eacute obrigada ou ensinada por Dioniso

reitera a proacutepria situaccedilatildeo traacutegica prescrita por Aristoacuteteles que se baseia numa passagem da

fortuna ao infortuacutenio ou vice-versa (Poeacutetica 1451a) Apesar de que a passagem da fortuna ao

infortuacutenio segundo Aristoacuteteles (1453a) eacute considerada mais traacutegica tal aspecto pode ser

observado no corpus do nosso trabalho jaacute que no Canto XI Agamecircmnon Aacutejax Aquiles e

Anticleacuteia mostram-se infelizes lamuriantes com o destino que tiveram e esse fim desditoso eacute

o mais traacutegico

Permeada pela tragicidade em sua essecircncia a trageacutedia possui uma estrutura formal

geralmente bem delimitada Para Aristoacuteteles um fato decisivo na qualificaccedilatildeo da estrutura de

uma trageacutedia eacute a sua caracterizaccedilatildeo como complexa Na Poeacutetica (1452a) o filoacutesofo diz-nos

que haacute trageacutedias de estrutura simples e complexa Nesta a mudanccedila da fortuna ocorre com

reconhecimento37

do grego a)nagnwiquestrisij eou peripeacutecia38

do grego peripemacrteia

diferentemente da simples em que a mudanccedila da fortuna ocorre sem nenhum desses

elementos Segundo o filoacutesofo as faacutebulas mais belas satildeo as complexas desde que toda a accedilatildeo

esteja conexa com a necessidade e a verossimilhanccedila

Aleacutem desse aspecto baacutesico da estrutura da trageacutedia Aristoacuteteles indica-nos os seus

elementos constitutivos presentes em todas as peccedilas a saber proacutelogo episoacutedio ecircxodo canto

coral com este se distinguindo entre paacuterodo e estaacutesimo39

O primeiro constitui a parte da

trageacutedia que precede a entrada do coro o episoacutedio eacute uma parte da peccedila que fica situada entre

dois cantos completos do coro apoacutes o ecircxodo natildeo haacute canto do coro o canto do coro possui

dois momentos distintos um eacute o paacuterodo que eacute o primeiro pronunciar do coro e o outro eacute o

estaacutesimo que eacute o canto realizado no final de um episoacutedio em anapestos e troqueus

Completando essa determinaccedilatildeo aristoteacutelica sobre a estrutura da trageacutedia citamos

a divisatildeo estrutural da trageacutedia de Jacqueline de Romilly (2008) A autora apesar de basear-se

e em muitos momentos apenas transcrever a definiccedilatildeo de Aristoacuteteles determina dois

37

Do grego a)nagnwiquestrisij proveniente do verbo a)nagnwricentzw formado pelo prefixo a)na de novo

mais o radical gnwrizw que indica fazer conhecer saber Deste modo a)nagnwiquestrisij significa fazer

conhecer novamente ou seja reconhecer de novo fazer saber revelar 38

Do grego peripemacrteia esta palavra eacute composta pela preposiccedilatildeo periindicando o entorno a sobre de

mais o radical pemacrt do verbo piiquestptw que significa queda atirar-se em indicando a mudanccedila a

imprevisibilidade o inesperado Assim peripemacrteia indica o que estaacute envolta do imprevisto acerca do

inesperado aquilo estaacute estaacute relacionado a queda 39

Haacute tambeacutem o canto dos atores e o koacutesmos que era o canto de lamento do coro estes dois natildeo satildeo comuns em

todas as trageacutedias por isso natildeo nos iremos ater neste momento em suas ponderaccedilotildees

59

elementos centrais na estrutura da trageacutedia que a distingue dos demais gecircneros satildeo eles o

coro e os personagens O primeiro desde a origem da trageacutedia relacionada ao ditirambo

figura como importante elemento da peccedila O segundo passa por transformaccedilotildees no nuacutemero de

atores que o representam ao longo do desenvolvimento da trageacutedia Assim com Teacutespis havia

apenas um ator com Eacutesquilo esse nuacutemero foi elevado para dois e com Soacutefocles para trecircs

Assim como faz Aristoacuteteles Romilly (2008 p 43-51) afirma ainda ser a accedilatildeo um elemento

primordial na estrutura da trageacutedia poreacutem natildeo eacute especiacutefico jaacute que na epopeacuteia tanto quanto

na trageacutedia a accedilatildeo deve ser una Ou seja a epopeacuteia pode tambeacutem ter sua accedilatildeo envolta de

peripeacutecias e reconhecimentos e no fim essa accedilatildeo pode levar o personagem agrave cataacutestrofe

Diante desses aspectos estruturais da trageacutedia que ora a distingue ora a identifica

com outros gecircneros entendemos porque Jaeger considera que ―a trageacutedia tanto pelo seu

material miacutetico como pelo seu espiacuterito eacute a herdeira integral da epopeacuteia (JAEGER 2003 p

70) Tal constataccedilatildeo reforccedila nossa tese sobre a tragicidade presente na epopeacuteia Por essa

relaccedilatildeo entre os gecircneros gregos sejam eles arcaicos ou claacutessicos Jaeger afirma

A trageacutedia devolve agrave poesia grega a capacidade de abarcar a

unidade de todo humano Nesse sentido soacute a epopeacuteia homeacuterica se pode

comparar a ela Apesar da grande fecundidade da literatura nos seacuteculos

intermediaacuterios soacute a epopeacuteia a iguala quanto agrave riqueza do conteuacutedo agrave forccedila

estruturadora e amplitude do seu espiacuterito criador Eacute como se o renascimento

do gecircnio poeacutetico da Greacutecia se tivesse mudado da Jocircnia para Atenas A

epopeacuteia e a trageacutedia satildeo como duas grandes formaccedilotildees montanhosas ligadas

por uma seacuterie ininterrupta de serras menores (Ibidem p 287)

A partir da reflexatildeo acima e das consideraccedilotildees realizadas ao longo deste toacutepico

acerca do traacutegico e da trageacutedia percebemos que satildeo elementos num certo ponto

indissociaacuteveis mas que podem ser visto agrave luz de uma anaacutelise que os distingue e que nos faz

perceber a anterioridade do traacutegico em relaccedilatildeo agrave trageacutedia Tal constataccedilatildeo pode ser verificada

tanto na sociedade grega levando em consideraccedilatildeo o traacutegico como elemento soacutecio-cultural

verificado nos estudos antropoloacutegicos como na literatura grega arcaica Assim se quisermos

ver o surgir do traacutegico na literatura ocidental devemos recorrer agraves epopeacuteias homeacutericas pois laacute

encontramos os germes da manifestaccedilatildeo traacutegica estabilizada no periacuteodo claacutessico da literatura

grega atraveacutes das trageacutedias

No decorrer deste capiacutetulo aleacutem de discorrermos sobre o traacutegico sua

manifestaccedilatildeo e origem permeamos nosso estudo tambeacutem com ponderaccedilotildees sobre a trageacutedia

sua formaccedilatildeo e estrutura porque consideramos que essas relaccedilotildees satildeo fundamentais para o

objetivo geral de nosso trabalho que eacute analisar a presenccedila do traacutegico num texto eacutepico a partir

60

do Canto XI da Odisseacuteia Essa realizaccedilatildeo do traacutegico na eacutepica mesmo natildeo sendo seu objetivo

eacute para a literatura ocidental a primeira apariccedilatildeo traacutegica que fundamentaraacute as trageacutedias gregas

no seacuteculo IV aC

23 O traacutegico na Poeacutetica

Antes de iniciarmos nossas discussotildees sobre a perspectiva do traacutegico presente na

Poeacutetica iremos expor brevemente as consideraccedilotildees realizadas por Platatildeo na Repuacuteblica

sobre a arte literaacuteria e mais especificamente sobre a arte traacutegica Esta introduccedilatildeo faz-se

importante para que percebamos e possamos avaliar ateacute que ponto Aristoacuteteles foi

influenciado por seu mestre ou ao contraacuterio construiu teorizaccedilatildeo oposta mais centrada na

estrutura e verossimilhanccedila textual do que no valor moral e educativo que a arte poderia

veicular aos jovens do estado

Faz-se necessaacuterio retomar a teorizaccedilatildeo platocircnica visto que esta eacute de algum modo

relevante na produccedilatildeo de Aristoacuteteles pois no miacutenimo fez parte de sua formaccedilatildeo intelectual

Aleacutem do mais foi Platatildeo o primeiro a iniciar uma discussatildeo sobre a arte literaacuteria e noacutes diante

desse pioneirismo devemos entender o que foi preconizado

Para tanto selecionamos os Livros III e X da Repuacuteblica a fim de avaliarmos os

posicionamentos de Platatildeo e as diferenccedilas que seu disciacutepulo Aristoacuteteles teraacute diante da

perspectiva da anaacutelise do texto literaacuterio Esses dois livros foram selecionados por

considerarmos que neles encontramos reflexotildees importantes de Platatildeo a respeito da arte

literaacuteria

Platatildeo como dissemos iniciou as discussotildees sobre a literatura contudo avaliou-a

a partir do ponto de vista da utilidade se ela poderia servir ao estado ou ao contraacuterio se

prejudicaria na formaccedilatildeo dos jovens A seguir podemos avaliar melhor essa assertiva atraveacutes

da anaacutelise do proacuteprio texto platocircnico

No Livro III praticamente todas as exposiccedilotildees de Platatildeo convergem para um

mesmo foco no estado ideal deve-se estar vigilante a fim de eliminar a arte literaacuteria que natildeo

contribui positivamente na formaccedilatildeo dos jovens isto eacute aquela que os incita agrave impiedade Mas

o que a arte poderia veicular que natildeo favorecesse a formaccedilatildeo do jovens Platatildeo deixa bem

claro quais seriam as faacutebulas inadequadas pois quase como em um manual ele descreve o

que natildeo deve fazer parte da narraccedilatildeo pura e moderada Entre tantas inadequaccedilotildees literaacuterias a

61

que ele se refere podemos citar falsificaccedilatildeo das situaccedilotildees ocorridas no inferno descriccedilatildeo de

heroacuteis em lamentaccedilatildeo pela morte ou pela perda material chorosos homens nobres em

situaccedilatildeo de arrependimento e fraqueza dados ao riso excessivo entre tantas outras indicaccedilotildees

feitas pelo filoacutesofo Diante dessas prerrogativas Platatildeo chega inclusive ao ponto de

considerar que a beleza poeacutetica natildeo caminha ao lado do valor moral tanto que diz

[387β] ηαῦηα θαὶ ηὰ ηνηαῦηα πάληα παξαηηεζόκεζα Ὅκεξόλ ηε θαὶ ηνὺο

ἄιινπο πνηεηὰο κὴ ραιεπαίλεηλ ἂλ δηαγξάθσκελ νὐρ ὡο νὐ πνηεηηθὰ θαὶ ἡδέα ηνῖο πνιινῖο ἀθνύεηλ ἀιι᾽ ὅζῳ πνηεηηθώηεξα ηνζνύηῳ ἧηηνλ

ἀθνπζηένλ παηζὶ θαὶ ἀλδξάζηλ νὓο δεῖ ἐιεπζέξνπο εἶλαη δνπιείαλ ζαλάηνπ

κᾶιινλ πεθνβεκέλνπο40

(Repuacuteblica III 387b)

Pediremos a Homero e aos outros poetas para excluir estas espeacutecies (de

narrativas) assim como natildeo as invalidariacuteamos por falta de poeacutetica e agrado

aos muitos que as ouvir Pelo contraacuterio quanto mais poeacuteticas tanto menos

audiacutevel seratildeo para crianccedilas e homens os quais devem ser livres tendo

receado mais a escravidatildeo do que a morte

Platatildeo natildeo apenas se refere agraves circunstacircncias que devem ser evitadas como cita as

passagens literaacuterias muitas delas de Homero as quais ele natildeo considera beneacuteficas para

compor a estruturaccedilatildeo do estado ideal Uma dessas referecircncias remete-nos ao Canto XI da

Odisseacuteia constataccedilatildeo esta que fazemos mesmo sem o filoacutesofo referir-se diretamente ao seu

objeto de criacutetica Vejamos

[386c] ἐμαιείςνκελ ἄξα ἦλ δ᾽ ἐγώ ἀπὸ ηνῦδε ηνῦ ἔπνπο ἀξμάκελνη πάληα

ηὰ ηνηαῦηαmdash―βνπινίκελ θ᾽ ἐπάξνπξνο ἐὼλ ζεηεπέκελ ἄιιῳ

ἀλδξὶ παξ᾽ ἀθιήξῳ ᾧ κὴ βίνηνο πνιὺο εἴε

ἢ πᾶζηλ λεθύεζζη θαηαθζηκέλνηζηλ ἀλάζζεηλ41

(Repuacuteblica III 386c)

Dizia eu neste discurso portanto anulemos de iniacutecio todas as coisas desta

natureza que assim tenham iniciado ndash ―pois eu preferiria viver sendo um

trabalhador do campo para um outro homem ateacute mesmo sem nobreza e

que eventualmente sua vida natildeo fosse de posses do que reinar sobre

cadaacuteveres que tiveram sido destruiacutedos

Como nos fica evidente temos na citaccedilatildeo acima uma criacutetica agrave produccedilatildeo literaacuteria

homeacuterica especificamente ao Canto XI da Odisseacuteia em que Odisseu encontra-se no Hades

com alguns companheiros da Guerra de Troacuteia Nesse encontro os guerreiros de alta estirpe

40

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101673Abook3D33Asection

3D387b agraves 1523hs de 12 de julho de 2010 41

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101673Abook3D33Asection

3D386c agraves 1530hs de 12 de julho de 2010

62

como Agamecircmnon Aquiles e Aacutejax mostram-se numa situaccedilatildeo natildeo gloriosa A morte para

eles representa um infortuacutenio

Na conversa que Odisseu tem com Agamecircmnon percebe-se que o Atrida vecirc-se

desolado pela traiccedilatildeo da esposa que o levou a uma morte traacutegica inclusive chama atenccedilatildeo

para que Odisseu tenha cuidado no retorno ao lar precavendo-se de uma armadilha que assim

como Cliteminestra Peneacutelope poderia ter preparado para o Laertida Agamecircmnon conta em

detalhes a sua morte de seus companheiros e de Cassandra todos pegos pela artimanha

realizada por sua esposa Cliteminestra junto com seu amante Egisto E depois da narraccedilatildeo o

Atrida no verso 412 conclui ―wAgravej qanon oi)ktistwi qanatwi rdquo42 isto eacute ―Assim morri

com a morte mais lamentaacutevel (Odisseacuteia Canto XI v 412)

O diaacutelogo entre Odisseu e Aquiles natildeo seraacute diferente tanto que Platatildeo chega a falar

(III ndash 386c-d) que narraccedilotildees desse tipo devem ser anuladas O teor desse diaacutelogo sugere para

Platatildeo certa inutilidade para composiccedilatildeo do estado ideal por significar uma ameccedila ao estado

beacutelico E como sabemos nessa passagem Aquiles revela-se insatisfeito em ser rei dos

mortos preferindo ser um ―bouloimhn krsquo e)parouroj e)wUumln qhteuemenrdquo43 (Odisseacuteia

Canto XI v 489) ou seja ―pois eu preferiria viver sendo trabalhador do campo desde que

ainda estivesse vivo Uma narraccedilatildeo como essa segundo Platatildeo abalaria a propensatildeo guerreira

dos heroacuteis que natildeo devem temer a morte pois se um heroacutei como Aquiles mostra-se

arrependido os jovens ver-se-atildeo influenciados negativamente Por isso Platatildeo

definitivamente indica que tais faacutebulas devem ser eliminadas do estado jaacute que natildeo satildeo

beneacuteficas na formaccedilatildeo dos homens dos jovens enfim da sociedade em geral

Aacutejax conhecido como o maior guerreiro grego depois de Aquiles tambeacutem natildeo se

encontra em estado de graccedila e glorificado no Hades Pelo contraacuterio aparece ainda ressentido e

negando-se a falar com Odisseu magoado pela destinaccedilatildeo das armas de Aquiles Estas ao

inveacutes de ficarem com ele satildeo destinadas a Odisseu justificando-se entatildeo a sua atitude de

desdeacutem Esta passagem tambeacutem natildeo eacute adequada aos jovens pois natildeo os enobrece e sim

mostra a desobrigaccedilatildeo para com a filiiquesta ou seja com aqueles que compotildeem o grupo de

amizade

42

Texto disponiacutevel em httpwwwhs-

augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_od11html agraves 1533hs ded 12 de julho de

2010 43

Texto disponiacutevel em httpwwwhs-

augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_od11html agraves 1540hs de 12 de julho de

2010

63

Seja atraveacutes de Agamecircmnon Aquiles eou Aacutejax o que queremos mostrar com a

explanaccedilatildeo acima eacute o posicionamento e os criteacuteios utilizados por Platatildeo diante da avaliaccedilatildeo

do texto literaacuterio que como se vecirc eacute baseada em criteacuteios morais de utilidade Platatildeo avalia a

arte atraveacutes de sua utilidade ou inutilidade buscando um fundamento de serventia para a

sociedade e para os homens que a compotildee Assim perguntado sobre quais gecircneros poderiam

permanecer no estado apoacutes ter apontado tantas ―faacutebulas inuacuteteis a exemplo das de Homero

responde

[397δ] ηί νὖλ πνηήζνκελ ἦλ δ᾽ ἐγώ πόηεξνλ εἰο ηὴλ πόιηλ πάληαο ηνύηνπο

παξαδεμόκεζα ἢ ηῶλ ἀθξάησλ ηὸλ ἕηεξνλ ἢ ηὸλ θεθξακέλνλ44

(Repuacuteblica

III 397d)

Entatildeo como realizaremos Dizia eu Seraacute por acaso que aceitaremos para

cidade todos (gecircneros) desta espeacutecie ou outro puro ou o que mistura

O Canto XI nosso objeto central de anaacutelise no proacuteximo capiacutetulo eacute avaliado por

Platatildeo a partir de um criteacuterio utilitaacuterio daiacute a sua opccedilatildeo em eliminar tal arte do estado Jaacute

Aristoacuteteles diferentemente natildeo analisa o texto literaacuterio pelo pressuposto da utilidade mas da

estrutura e verossimilhanccedila interna do texto independentemente da accedilatildeo narrada vir a ser

positiva ou negativa para a formaccedilatildeo do cidadatildeo Por haver essas distinccedilotildees teoacutericas

consideramos explanar mesmo que resumidamente acerca dos paracircmetros de avaliaccedilatildeo que

Platatildeo faz da arte literaacuteria ainda que a nossa pesquisa fundamente-se nos escritos

aristoteacutelicos

Ainda no Livro III (393d) Platatildeo diz preferir a exposiccedilatildeo a narraccedilatildeo pois

considera que no momento em que o poeta se oculta dando voz aos personagens transfigura-

se em outros seres Essa transfiguraccedilatildeo ocorre bem nitidamente nas trageacutedias e comeacutedias

mas no preceito platocircnico ao realizar tal imitaccedilatildeo o poeta afasta-se trecircs vezes da realidade

No Livro X esta distacircncia da arte imitativa em relaccedilatildeo agrave realidade seraacute ainda mais

desenvolvida por Platatildeo chegando afirmar que a arte poeacutetica estaacute muito afastada da realidade

por isso ele afirma que todos os poetas desde Homero ―thordfj deUuml a)lhqeiaj ousup1x

aAgraveptesqairdquo45 (Ibidem 601a) ou seja ―da verdade natildeo consegue se unir Mais proacutexima da

irracionalidade e distante da realidade a arte segundo Platatildeo pode causar danos aos homens

44

Textop retirado de

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101673Abook3D33Dsection

3D3976d agraves 1530hs de 15 de julho de 2010 45

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A199901016710Abook3D33Asection

10A601ac agraves 1530hs de 15 de julho de 2010

64

E uma cidade sob sua influecircncia acaba sendo governada pela dor pela emoccedilatildeo e natildeo pelo

nomoj46

Uma outra exposiccedilatildeo de Platatildeo no Livro X tambeacutem nos interessa Eacute que o autor

da Repuacuteblica apesar das criacuteticas feitas a Homero admite haver uma certa dificuldade eou

estranheza em ter que falar o que pensa a respeito da arte homeacuterica tendo em vista que haacute de

sua parte uma dedicaccedilatildeo e respeito fruto de sua infacircncia Segue abaixo esse discurso aleacutem de

outro que mostra a importacircncia de Homero para a sociedade grega natildeo soacute a arcaica como

tambeacutem a claacutessica Por isso Platatildeo realiza as seguintes afirmaccedilotildees sobre o autor da Odisseacuteia

θαίηνη θηιία γέ ηίο κε θαὶ αἰδὼο ἐθ παηδὸο ἔρνπζα πεξὶ Ὁκήξνπ ἀπνθσιύεη

ιέγεηλ47

(Repuacuteblica X 595b)

E de fato haacute alguma amizade e respeito que possuo desde a infacircncia a

respeito de Homero que impede-me de falar

() γὰξ ηῶλ θαιῶλ ἁπάλησλ ηνύησλ ηῶλ ηξαγηθῶλ πξῶηνο δηδάζθαιόο ηε

θαὶ ἡγεκὼλ γελέζζαη48

(Ibidem 595c)

Na verdade vem a ser ele o primeiro mestre e guia de todos esses belos

autores traacutegicos

Essa afirmaccedilatildeo de Platatildeo mais uma vez confirma-nos a influecircncia que Homero

realizou sobre os autores traacutegicos Influecircncia essa que pode ser observada natildeo apenas na base

mitoloacutegica como tambeacutem nas cenas homeacutericas aproveitadas e desenvolvidas pelos autores

traacutegicos Ainda mais essa influecircncia pode ser observada nisso acreditamos na proacutepria

elaboraccedilatildeo do traacutegico Este seraacute afixado na literatura grega por meio dos tragedioacutegrafos mas

como podemos notar jaacute se manifesta nas eacutepicas homeacutericas em especial Essa influecircncia

exercida por Homero nos autores traacutegicos como Eacutesquilo Soacutefocles e Euriacutepedes justifica sua

intitulaccedilatildeo como o primeiro mestre dos traacutegicos ldquoprwordftoj didaskaloj twordfn tragikwordfnrdquo

como bem nos caracterizou Platatildeo

46

Em grego nocentmoj de necentmw verbo que significa distribuir partilhar dividir Tem como sentido

primordial o que eacute estabelecido pelo uso o costume justamente por ser uma accedilatildeo de partilha entre os integrantes

da comunidade daiacute o radical derivar de necentmw Como segundo sentido indicado por Romizi (2006) ) nocentmoj indica o que ocorre segundo o termo da lei da norma distribuiacuteda pelo estado 47

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A199901016710Abook3D33Asection

10cD595b agraves 1530hs de 15 de julho de 2010 48

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A199901016710Abook3D33Asection

10cD595c agraves 1530hs de 15 de julho de 2010

65

Diante da exposiccedilatildeo acima jaacute podemos inferir que Aristoacuteteles ao contraacuterio do seu

mestre analisa a arte literaacuteria em sua estrutura e construccedilatildeo poeacutetica como criaccedilatildeo bem no

sentido etimoloacutegico do termo poihsije natildeo como fez Platatildeo pela perspectiva da

funcionalidade social da arte dos valores e da moral propagada Vejamos pois em siacutentese as

concepccedilotildees aristoteacutelicas da arte literaacuteria presentes na Poeacutetica

Na PeriUuml PoihtikhUumlj49 de Aristoacuteteles que conhecemos geralmente como

Poeacutetica ou Arte Poeacutetica temos comentaacuterios acerca da poeacutetica como indica sua proacutepria

etimologia ou seja da criaccedilatildeocomposiccedilatildeo artiacutestica A poeacutetica central para qual se dirigem os

comentaacuterios do autor eacute a trageacutedia Esta ele considera como mais elevada do que os demais

gecircneros ao ponto de no capiacutetulo XXVI apoacutes suscitar um grau de comparaccedilatildeo entre a

trageacutedia e a epopeacuteia (1461b) demonstrando os atributos de uma e de outra Aristoacuteteles afirma

Eicopy ouAcircn toumacrtoij te diafemacrrei pacurrensi kaiUuml eaumlti twcurrenlaquo thcurrenj temacrxnhj eaumlrgw ()

fanerocentn oagraveti kreittwn aatilden eiOacuteh maIacutellon toucurren Iacutetelouj tugxaiquestnousa

thIacutej epopoiiaj50 (Poeacutetica 26 1462b 11-14)

Entatildeo se ela se distingue por todas essas coisas e ainda pelo trabalho

artiacutestico () eacute claro que a trageacutedia eacute superior agrave epopeacuteia obtendo melhor sua

finalidade

Antes de iniciarmos as nossas consideraccedilotildees sobre o traacutegico a partir da Poeacutetica

ressaltamos que natildeo haacute objetivamente um esclarecimento de Aristoacuteteles do que seria o

traacutegico ao contraacuterio do que ocorre com a trageacutedia cuja estrutura ele conceitua e define

Portanto o que faremos eacute por meio de uma leitura arguta tentar depreender quais elementos

constituem uma accedilatildeo traacutegica e para tanto nos serviremos das exposiccedilotildees que Aristoacuteteles faz

da trageacutedia Ateacute porque como dissemos anteriormente eacute nesta poeacutetica que encontramos de

fato a efetuaccedilatildeo do traacutegico apesar de este jaacute se manifestar nas eacutepicas homeacutericas

Logo ao iniacutecio de sua exposiccedilatildeo no capiacutetulo I Aristoacuteteles afirma-nos que a

epopeacuteia a trageacutedia enfim a criaccedilatildeo poeacutetica de modo geral eacute uma mimhsij51 (1447a) ou

49

Em grego PeriUuml eacute uma preposiccedilatildeo que significa o que estaacute em torno de algo envolta de acerca de eou sobre

algo PoihtikhUumlj eacute formada pelo radical Poihoriundo do verbo temaacutetico poieiquestw que indica o fazer o

compor o criar jaacute o sufixo tikhj conforme nos informa Romizi (2007) indica a atitude a relaccedilatildeo com alguma

coisa o que pertence a algo daiacute PoihtikhUumlj vir a significar o que eacute relativo a criaccedilatildeo a poeacutetica Logo

poderiacuteamos sugerir como traduccedilatildeo para PeriUuml PoihtikhUumljliteralmente ―sobre o que pertencerelativo a

poeacutetica 50

ARISTOacuteTELES 1979 p 75 51

Etimologicamente a palavra mimhsij eacute formada pelo radical mimhiquest do verbo meacutedio mimemacromai que

significa imitar representar reproduzir por meio da imitaccedilatildeo Este verbo por ser meacutedio jaacute nos daacute outra

informaccedilatildeo eacute a de que esta accedilatildeo para que se realize necessita da participaccedilatildeo do envolvimento subjetivo de

66

seja eacute o produto de uma representaccedilatildeo Portanto a concepccedilatildeo aristoteacutelica da arte literaacuteria jaacute eacute

bem demonstrada neste iniacutecio em que estabelecendo a poeacutetica como mimhsij afasta dela

os criteacuterios de avaliaccedilatildeo eacutetica e moral visto que ela natildeo eacute a realidade e sim uma

representaccedilatildeo criativa baseada na necessidade do contexto e na verossimilhanccedila

A anaacutelise literaacuteria seguindo os ditames aristoteacutelicos deve centrar-se na estrutura do

texto e na sua coerecircncia interna e natildeo nos preceitos morais que ela veicula aos jovens como

doutrina Platatildeo baseado na funcionalidade social da poesia Aleacutem da anaacutelise natildeo dever

pautar-se nos valores transmitidos tambeacutem natildeo deve ser feita atraveacutes do aspecto meramente

formal por exemplo preso agrave meacutetrica Essa consideraccedilatildeo de Aristoacuteteles pode ser esclarecida

quando ele distingue a composiccedilatildeo de Empeacutedocles com a de Homero (1447b) tanto que

mesmo ambos utilizando-se da meacutetrica Homero seraacute identificado como poihthmacrj52 e aquele

como o fusioloiquestgoj53

No capiacutetulo II da Poeacutetica o autor explicita-nos que o objeto da imitaccedilatildeo tanto da

trageacutedia quanto da epopeacuteia satildeo os homens superiores (1448a) o que bem nos demonstra a

poeacutetica de Soacutefocles e Homero Tais personagens diferem dos da comeacutedia pois esta imita os

homens natildeo elevados O pressuposto levantado jaacute nos daacute um indiacutecio a respeito do sujeito

traacutegico que eacute pertencer necessariamente a essa dita classe dos superiores honrados e

gloriosos porque estes satildeo os objetos de imitaccedilatildeo da trageacutedia gecircnero em que o traacutegico

realiza-se

Este conhecimento tambeacutem nos ilumina sobre outro aspecto do traacutegico que eacute a

sua relaccedilatildeo com a epopeacuteia pois como observamos eles tecircm em comum o mesmo perfil

Assim as personagens da eacutepica e da arte traacutegica tatildeo diferentes em alguns pontos identificam-

se essencialmente por serem pertencentes a uma mesma classe de homens e mulheres

nobres a citar Agamecircmnon Aacutejax Eacutedipo Antiacutegona Medeacuteia Ifigecircnia enfim Os nomes

citados satildeo de personagens que compotildee a trageacutedia e a epopeacuteia e ainda mais nos casos de

Agamecircmnon e Aacutejax temos personagens de trajetoacuteria eacutepica como tambeacutem traacutegica eles

quem age jaacute que a voz meacutedia inclui o sujeito na accedilatildeo verbal Portanto o imitar parte de um interesse do sujeito

natildeo eacute uma accedilatildeo pragmaacutetica A palavra em estudo possui tambeacutem o sufixo sij Este indica a accedilatildeo e o efeito da

accedilatildeo logo mimhsij traduz-se como a accedilatildeoefeito do imitar do representar 52

Este vocaacutebulo refere-se ao criador da composiccedilatildeo literaacuteria jaacute que poihthmacrj eacute formado pelo radical poihdo

verbo poieiquestw criar mais o sufixo thmacrjindicador da pessoa que realiza a accedilatildeo Assim poihthmacrj representa a

pessoa que cria que compotildee logo o que podemos chamar de poeta artiacutefice 53

O termo referido fusioloiquestgoj eacute formado pela composiccedilatildeo de fusija natureza mais loiquestgoj

genericamente tido como razatildeo proveniente de lemacrgw o dizer atraveacutes da racionalidade da reflexatildeo intelectual

Aleacutem do mais o sufixo oj como diz-nos Romizi (2007) reflete a pessoa que age Logo fusioloiquestgoj vem a

significar aquele que estuda a nureza que se traduz como o fisioacutelogo

67

protagonizam cenas na Iliacuteada e na Odisseacuteia bem como em peccedilas de Eacutesquilo e de Soacutefocles

Ressaltamos poreacutem que na Odisseacuteia jaacute percebemos o caraacuteter traacutegico desses heroacuteis mesmo

estando presentes numa narrativa eacutepica

No capiacutetulo IV dissertando sobre a origem da poesia Aristoacuteteles informa-nos que

Homero foi o responsaacutevel por traccedilar as diretrizes para outros gecircneros literaacuterios Ou seja o

autor da Odisseacuteia natildeo soacute instaurou a literatura no mundo Ocidental como nos legou os

direcionamentos para as demais produccedilotildees literaacuterias vejamos

Ὥζπεξ δὲ θαὶ ηὰ ζπνπδαῖα κάιηζηα πνηεηὴο Ὅκεξνο [35] ἦλ (κόλνο γὰξ νὐρ

ὅηη εὖ ἀιιὰ θαὶ κηκήζεηο δξακαηηθὰο ἐπνίεζελ) νὕησο θαὶ ηὸ ηῆο

θσκσηδίαο ζρῆκα πξηνο ὑπέδεημελ νὐ ςόγνλ ἀιιὰ ηὸ γεινῖνλ

δξακαηνπνηήζαο ὁ γὰξ Μαξγίηεο ἀλάινγνλ ἔρεη ὥζπεξ Ἰιηὰο [1449a] θαὶ ἡ

δύζζεηα πξὸο ηὰο ηξαγσηδίαο νὕησ θαὶ νὗηνο πξὸο ηὰο θσκσηδίαο54

(Poeacutetica IV144b-1449a 34-39)

Assim como Homero era sobretudo poeta com relaccedilatildeo aos (gecircneros)

nobres pois sozinho criou bem representaccedilotildees de accedilotildees desse modo

tambeacutem primeiro mostrou a forma da comeacutedia natildeo o censurado mas a

poesia dramaacutetica que provoca o riso Na verdade o Margites tem sua

analogia pois assim como a Iliacuteada e a Odisseacuteia estatildeo relacionadas as

trageacutedias desse modo aquele (Margites) estaacute para as comeacutedias

Como pode ser visto a importacircncia de Homero daacute-se natildeo apenas pela produccedilatildeo

dos gecircneros que produziu como a epopeacuteia mas para os que natildeo chegou a compor como

comeacutedia e trageacutedia Isto porque a partir de suas obras legou-nos a dramaticidade e outros

elementos que constituem as linhas baacutesicas para a trageacutedia e comeacutedia Desse modo tendo

traccedilado as linhas da trageacutedia e da comeacutedia como Aristoacuteteles afirma-nos acreditamos tambeacutem

que Homero traccedilou as linhas do traacutegico legando-nos o que veio a ser elemento essencial da

trageacutedia

Apoacutes no capiacutetulo V comentar a respeito da comeacutedia sua estrutura e

caracteriacutestica distinguindo-a e comparando-a com a trageacutedia e a epopeacuteia Aristoacuteteles no

capiacutetulo VI propotildee uma definiccedilatildeo para a trageacutedia e descreve suas partes essenciais Logo ao

iniacutecio ele expotildee uma definiccedilatildeo esclarecedora e sinteacutetica sobre a trageacutedia

Ἔζηηλ νὖλ ηξαγσηδία κίκεζηο πξάμεσο ζπνπδαίαο [25] θαὶ ηειείαο κέγεζνο

ἐρνύζεο ἡδπζκέλση ιόγση ρσξὶο ἑθάζηση ηλ εἰδλ ἐλ ηνῖο κνξίνηο

54

Texto disponiacutevel em httpwwwhs-

augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante04Aristotelesari_poi1html agraves 1800hs em 16 de julho de

2010

68

δξώλησλ θαὶ νὐ δη᾽ ἀπαγγειίαο δη᾽ ἐιένπ θαὶ θόβνπ πεξαίλνπζα55

ηὴλ ηλ

ηνηνύησλ παζεκάησλ θάζαξζηλ56 (Poeacutetica VI 1449b 24-28)

Portanto a trageacutedia eacute representaccedilatildeo de uma accedilatildeo grave e acabada que possui

certa extensatildeo com uma linguagem ornada cada uma das partes aparece em

seccedilatildeo em que se age e natildeo atraveacutes de narraccedilatildeo levando a atingir por meio

da piedade e do temor a catarse de tais sofrimentos

Pela passagem acima selecionada depreendemos a partir de quatro caracteriacutesticas

baacutesicas o que Aristoacuteteles entende por trageacutedia Primeiro a trageacutedia representa uma accedilatildeo que

deve ser completa e ter certa extensatildeo segundo a linguagem dever ser ornada o que mais agrave

frente o proacuteprio autor explica como uma linguagem que possui ―rucedilqmoUumln kaiUuml acedilrmonimacran

kaiUuml memacrloj ou seja ―ritmo harmonia e melodia terceiro na trageacutedia natildeo deve haver

narraccedilatildeo isto porque os atores eacute quem agem sem a necessidade da intervenccedilatildeo de um

narrador para esclarecer o que ocorre pois a accedilatildeo transcorre aos nossos olhos quarto e muito

importante a trageacutedia mediante toda a estrutura citada deve suscitar ―esup1leou kaiUuml

fomacrbou57 (Ibidem) isto eacute ―compaixatildeo e medo

Desse modo a trageacutedia mediante as accedilotildees encenadas faz surgir o temor e a

piedade sentimentos contraacuterios mas que se completam pois um a esup1leoj aproxima os

espectadores propicia a identificaccedilatildeo para que possam apiedar-se do sujeitosituaccedilatildeo traacutegico

enquanto o outro o fomacrboj faz com que haja um certo afastamento do espectador em

relaccedilatildeo ao traacutegico posto em cena Assim nessa posiccedilatildeo intermediaacuteria envolta pelo sentimento

55

A utilizaccedilatildeo de perainousa uma forma de particiacutepio presente de perainw que siginifa atingir alcanccedilar

levar denota a simultaneidade da accedilatildeo verbal Por isso ele eacute construiacutedo a partir do tema do infectum que indica

a accedilatildeo inacabada (MURACHO 2007) No caso da citaccedilatildeo o uso de perainousa sugere-nos que

simultaneamente ao processo de narraccedilatildeo traacutegica somos levados a atingir a catarse 56

Texto disponiacutevel em httpwwwhs-

augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante04Aristotelesari_poi1html agraves 1805hs em 16 de julho de

2010 57

Fomacrboj eacute segundo Romizi (2007) a forma nominal do verbo femacrbomai indicando a fuga apavorada em

temor que tambeacutem se relaciona ao verbo fobemacrw que tem o sentido primeiro de fazer pavor aterrorizar fazer

fugir meter em fuga pelo temor Como vemos haacute uma semacircntica ligada ao aterrorizante do que potildee medo ao

ponto de fazer algoalgueacutem lanccedilar-se em fuga Por isso haacute algumas complicaccedilotildees na traduccedilatildeo que fazem deste

termo Uns optam por terror como Eudoro de Sousa (1992) e outros por temor como Jaime Bruna (1995) J

Hardy (1979) traduz-se como crainte ou seja receio num campo semacircntico mais proacuteximo de temor do que

terror Com base nessas discussotildees Lessing e John citados por Sandra Luna (2005) preferem traduzir Fomacrboj

apenas como temor jaacute que terror indicaria um sentimento mais desmedido Diante dessas controveacutersias e da

referecircncia etimoloacutegica consideramos a traduccedilatildeo por temor mais adequada jaacute que ela em si traz ainda o sentido

daquilo que de tatildeo apavorante faria fugir todavia natildeo o faz pelo sentimento de esup1leoj da compaixatildeo piedade

que eacute suscitado junto com ele estabelecendo assim um certo equiliacutebrio Se traduziacutessemos Fomacrboj por terror

acabariacuteamos por indicar um sentimento desmedido que de tatildeo aterrorizante paralisa proacuteximo ao mostruoso

bem contraacuterio ao sentido etimoloacutegico que vimos de fobemacrw Por tudo isso a traduccedilatildeo por terror natildeo eacute

apropriada para as trageacutedias gregas

69

de piedade e de temor a trageacutedia que promove o surgimento dessas emoccedilotildees ―perainousa

thUumln twordfn toioutwn paqhmatwn kaqarsinrdquo (Poeacutetica 1449b) isto eacute ―levando a atingir a

catarse de tais sofrimentos

Sobre a kaqarsij muitas satildeo as discussotildees sobre o sentido real e o uso desse

termo verificado nas trageacutedias tanto que Alfredo Carvalho citado por Sandra Luna (2005)

sugere que se mantenha transcrito nas traduccedilotildees a palavra catarse natildeo delimitando seu

sentido como purgaccedilatildeo eou purificaccedilatildeo fato que ocorre em muitas ediccedilotildees O motivo para

tal indicaccedilatildeo estaacute justamente no fato de essa palavra remeter-nos a uma plurisignificaccedilatildeo

para qual natildeo temos em nossa liacutengua uma palavra que possa vir a cobrir sua semacircntica

A palavra catarse do grego kamacrqarsij tem seu radical kamacrqarproveniente do

verbo kaqaimacrrw que genericamente traduz-se como purificar a exemplo de Bailly (2000)

Romizi (2007) e Liddell amp Scottlsquos (1996) Por isso kaqaromacrj de mesmo radical significa

puro Formada pelo radical kamacrqar- mais o sufixo -sijque indica a accedilatildeo eou efeito da

accedilatildeo kamacrqarsij entatildeo etimologicamente significaria purificaccedilatildeo Todavia atentamos que

esta palavra pode ter uma semacircntica diversa a depender do contexto em que eacute utilizada seja

este meacutedico seja religioso

Assim na utilizaccedilatildeo meacutedica o uso deste verbo kamacrqarsij indica purgaccedilatildeo

limpeza esvaziamento do que for de maleacutefico para a sauacutede orgacircnica do inviacuteduo Na utilizaccedilatildeo

religiosa kamacrqarsij significa purificaccedilatildeo que simboliza a limpeza do espiacuterito impuro que

desagrada ao divino Segundo Jean Chevalier e Alain Gheerbrant (2009) a purificaccedilatildeo eacute um

rito presente em todas as religiotildees

Na verdade mesmo diante dessas aparentes distacircncias entre os termos

acreditamos que purgaccedilatildeo e purificaccedilatildeo encontram-se num mesmo campo semacircntico apesar

de utilizadas em contextos diferentes pois ambas indicam a eliminaccedilatildeo de impurezas e

malefiacutecios sejam eles fiacutesicos (purgaccedilatildeo) ou espirituais (purificaccedilatildeo) De todo o modo para

que possamos explicitar essa duplicidade semacircntica presente no termo em questatildeo

utilizaremos ao longo do nosso trabalho como indica Carvalho o vocaacutebulo catarse Assim

natildeo pomos fim a essa vaacutelida discussatildeo linguiacutestica e literaacuteria aleacutem de sua duplicidade

semacircntica

Entendida a explanaccedilatildeo sobre a carga semacircntica presente em

kamacrqarsijrelacionaremos esse conceito e sua importacircncia inseridos no entendimento da

trageacutedia e do traacutegico Para Lesky (1995) a catarse pode ser um instrumento para

70

entendermos melhor o traacutegico e seu efeito jaacute que seria o resultado da accedilatildeo traacutegica Se para

Aristoacuteteles a trageacutedia propicia o despertar de sentimentos como o temor e a piedade e aleacutem

disso vem a operar a catarse dessas emoccedilotildees que ela mesma fez surgir entendemos que isso

natildeo ocorre apenas pela linguagem condimentada pelo ritmo ou melodia Entatildeo o componente

da trageacutedia essencial para inspirar esses sentimentos eacute justamente o traacutegico

Toda essa explanaccedilatildeo sobre a kamacrqarsij nos eacute importante por acreditarmos que

o Canto XI da Odisseacuteia passa por um processo kartaacutetico Ao ver os grandes heroacuteis em

infortuacutenio Odisseu apieda-se perante o sofrer de seus semelhantes ao mesmo tempo em que

tambeacutem sente temor de que pudesse vir a ter um destino desventuroso o que natildeo seria difiacutecil

por haacute tanto vir enfrentando sofrimentos diversos na busca de retornar ao lar Tendo passado

pelo processo de kamacrqarsij Odisseu purificado livre das enfermidades espirituais do

excesso e da desmedida pode finalmente alcanccedilar seu objetivo buscado jaacute por longos anos

chegar a Iacutetaca

Aliado aos demais elementos da trageacutedia o traacutegico eacute o responsaacutevel para que se

suscitem as emoccedilotildees de piedade e temor as quais segundo Aristoacuteteles satildeo fruto das accedilotildees

representadas na peccedila e natildeo narraccedilotildees Pois mais do que as outras partes da trageacutedia como

ritmo melodia e linguagem condimentada eacute o traacutegico que essencialmente tem a capacidade

de provocar e inspirar a esup1leojpiedade e o fomacrbojo temor

Deste modo uma representaccedilatildeo traacutegica como a de Agamecircmnon que apoacutes dez

anos volta agrave sua terra glorificado pela vitoacuteria mas que logo eacute pego por uma armadilha da

esposa e de seu amante matando-o indignamente faz surgir dois sentimentos

esup1leojpiedade e o fomacrbojo temor O primeiro porque diante de um sofrer que parece

indigno injusto imerecido acaba-se por sentir compaixatildeo Lembremos de que Agamecircmnon

um homem de grandes feitos aAtildenac asup1ndrwIacuten58 o senhor dos heroacuteis retorna trazendo a gloacuteria

para o lar e como recepccedilatildeo encontra a morte preparada pela esposa numa banheira Tudo

isso nos inspira a esup1lemacroj Ao mesmo tempo toda essa situaccedilatildeo traacutegica se veio atingir um

grande rei como Agamecircmnon por este ter cometido uma accedilatildeo errocircnea poderia vir atingir

tambeacutem os demais menos ilustres Logo desponta-se entatildeo o receio de que o traacutegico possa

tambeacutem nos atingir E essa circunstacircncia inspira o fomacrboj Por isso o coro diz em

Agamecircmnon

58

Este eacute um epiacuteteto bastante utilizado para Agamecircmnon na Iliacuteada e que o distingue dos demais indicando que

ele eacute o que comanda os demais heroacuteis e reis como Aquiles Aacutejax Odisseu enfim

71

ἰὼ ἰὼ βαζηιεῦ βαζηιεῦ

πο ζε δαθξύζσ

θξελὸο ἐθ θηιίαο ηί πνη᾽ εἴπσ

θεῖζαη δ᾽ ἀξάρλεο ἐλ ὑθάζκαηη ηῶδ᾽

ἀζεβεῖ ζαλάηῳ βίνλ ἐθπλέσλ

ὤκνη κνη θνίηαλ ηάλδ᾽ ἀλειεύζεξνλ

δνιίῳ κόξῳ δακεὶο

ἐθ ρεξὸο ἀκθηηόκῳ βειέκλῳ

(Agamecircmnon v 1513 -1520)

Ioacute ioacute Rei rei

Como chorar-te-ei

O que falar a partir do coraccedilatildeo amigo

Eacutes posto nessa teia de aranha expirando

a vida por uma impiedosa morte

Oacutemoi oacutemoi Neste indigno repouso

Tendo sido dominado sob trapaceira sorte

Pela matildeo com arma cortante de ambos os lados

A trageacutedia por meio do traacutegico tendo feito surgir os sentimentos de temor e

piedade realiza a catarse desses sentimentos assim os sentimentos que ela mesma inspirou

formam um processo cartaacutetico Processo possiacutevel pela existecircncia do traacutegico na composiccedilatildeo

estrutural da trageacutedia pois como vimos o traacutegico eacute o elemento responsaacutevel por inspirar o

temor e a piedade Desta maneira proporcionando meios de ser efetuado o que eacute

provavelmente o maior objetivo da trageacutedia a kaqarsij

Apesar de Aristoacuteteles natildeo nos definir exatamente o que eacute o traacutegico podemos

percorrer suas ponderaccedilotildees na Poeacutetica sobre os elementos da trageacutedia Com isso se natildeo

chegamos ao traacutegico aristoteacutelico pelo menos nos aproximamos de sua significaccedilatildeo Assim a

partir do raciociacutenio de que o traacutegico tem a capacidade de fazer surgir os sentimentos de temor

e piedade e depois realizar a catarse deles podemos chegar a mais uma conclusatildeo sobre o

traacutegico Porque se o inspirar do temor e da piedade como nos diz Aristoacuteteles ocorre atraveacutes

da accedilatildeo dos atores e natildeo da narraccedilatildeo chegamos a mais uma caracteriacutestica sobre o traacutegico ele

decorre da accedilatildeo dos personagens

E essa accedilatildeo traacutegica segundo Aristoacuteteles eacute o elemento mais importante da trageacutedia

grega porque nela encontramos a origem para a fortuna humana seja ela boa ou maacute (1450a)

e eacute tambeacutem atraveacutes da accedilatildeo que o caraacuteter se revela jaacute que a qualidade dos personagens estaacute

exposta em suas accedilotildees Desta maneira elencando o mito o caraacuteter a elocuccedilatildeo o pensamento

o espetaacuteculo e a melopeacuteia como as seis partes componentes da trageacutedia ele afirma

72

Μέγηζηνλ δὲ ηνύησλ ἐζηὶλ ἡ ηλ πξαγκάησλ ζύζηαζηο ἡ γὰξ ηξαγσηδία

κίκεζίο ἐζηηλ νὐθ ἀλζξώπσλ ἀιιὰ πξάμεσλ θαὶ βίνπ θαὶ εὐδαηκνλία θαὶ

θαθνδαηκνλία ἐλ πξάμεη ἐζηίλ θαὶ ηὸ ηέινο πξᾶμίο ηηο ἐζηίλ νὐ πνηόηεο59

(Poeacutetica VI 1450a 15-19)

O mais importante (elemento) eacute a composiccedilatildeo dos fatos pois a trageacutedia eacute

representaccedilatildeo natildeo de seres humanos mas de accedilotildees e da vida Tambeacutem a

fortuna e o infortuacutenio estatildeo na accedilatildeo e a finalidade eacute alguma accedilatildeo natildeo uma

qualidade

Apoacutes ter identificado a accedilatildeo como a parte mais importante da trageacutedia Aristoacuteteles diz

que sem accedilatildeo natildeo haacute trageacutedia Tal definiccedilatildeo como vemos faz parte de um argumento bem

loacutegico pois se antes ele havia dito que a accedilatildeo eacute o elemento mais importante da trageacutedia logo

supomos que sem ela natildeo haacute trageacutedia e eacute isso que ele nos confirma ―brvbarbrvbarEti aAtildeneu meUumln

pracewj ousup1k aAtilden genoito tragdia aAtildeneu deUuml hsup1qwordfn ge noitrsquo aAtilden60 (Ibidem 23-25)

ou seja ―Ainda assim a trageacutedia natildeo poderia vir a ser sem accedilatildeo mas sim sem os caracteres

Mesmo porque a accedilatildeo ―sup1ArxhUuml meUumln ouaringn kaiUuml oiaringon yuxhUuml ocedil muordfqoj thordfj tragdiaj61

(Poeacutetica VI 1450a 39-40) ― Portanto o mito eacute como que o princiacutepio e a alma da trageacutedia

Seguindo tambeacutem o raciociacutenio loacutegico de Aristoacuteteles poderiacuteamos dizer o traacutegico eacute

proveniente da accedilatildeo dos personagens sem accedilatildeo natildeo haacute trageacutedia logo concluiacutemos que sem

traacutegico natildeo haacute trageacutedia Chegamos entatildeo temos mais um pressuposto para legitimar nossa

tese do traacutegico como essecircncia da trageacutedia grega seja esse refletido no destino ou apenas em

uma situaccedilatildeo de vida

Esta accedilatildeo traacutegica deve tambeacutem estar ligada a dois meios que realizam a comoccedilatildeo

dos acircnimos satildeo eles asup1nagnwiquestrisij e peripemacrteia ou seja reconhecimento e peripeacutecia

Anteriormente jaacute explicamos a etimologia e o significado de cada um agora nos eacute importante

compreender a importacircncia deles na estrutura da trageacutedia percebamos

Πξὸο δὲ ηνύηνηο ηὰ κέγηζηα νἷο ςπραγσγεῖ ἡ ηξαγσηδία ηνῦ κύζνπ κέξε

ἐζηίλ αἵ ηε πεξηπέηεηαη θαὶ ἀλαγλσξίζεηο62 (Poeacutetica VI 1450a 33-35)

59

Texto disponiacutevel em httpwwwhs-

augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante04Aristotelesari_poi2html agraves 1905hs de 16 de julho de

2010 60

Texto disponiacutevel em httpwwwhs-

augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante04Aristotelesari_poi2html agraves 1910hs de 16 de julho de

2010 61

Ibidem 62

Texto disponiacutevel em httpwwwhs-

augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante04Aristotelesari_poi2html agraves 1910hs de 16 de julho de

2010

73

Para junto disso a trageacutedia extasia-os com seus importantes elementos que

satildeo parte do mito as peripeacutecias e os reconhecimentos

Entatildeo se asup1nagnwiquestrisij e peripemacrteia satildeo meios fundamentais atraveacutes dos

quais a trageacutedia alcanccedila a comoccedilatildeo do espiacuterito portanto satildeo tambeacutem fundamentais para

intensificaccedilatildeo do traacutegico jaacute que este corresponde ao elemento miacutetico na estrutura da trageacutedia

Ressaltamos que esses dois elementos para que o traacutegico seja desenvolvido devem estar

aliado a outros elementos pois sozinho natildeo realizam o traacutegico Ateacute porque como sabemos

asup1nagnwiquestrisij e peripemacrteia satildeo elementos comuns tambeacutem da comeacutedia Mas como partes

do mito reconhecimento e peripeacutecia aleacutem de fazerem a estrutura literaacuteria ser como define

Aristoacuteteles mais complexa tambeacutem corroboram para a intensificaccedilatildeo do efeito traacutegico Por

isso classificando os tipos de reconhecimento no capiacutetulo XVI da Poeacutetica o filoacutesofo

informa-nos que apesar de existirem vaacuterias realizaccedilotildees do reconhecimento a melhor delas eacute a

que deriva do conflito (1455a v 17-22) da accedilatildeo Como a de Ifigecircnia em Aacuteulis (2002) e a de

Eacutedipo Rei (2001) e natildeo as que se realizam por meios artificiais a exemplo de sinais da

memoacuteria e do silogismo

Isto porque quando sofre uma peripeacutecia o sujeito traacutegico vecirc-se num conflito

Basta lembrarmos de Eacutedipo Rei em que o rei procura o assassino de Laio quando ele mesmo

vem a ser a proacutepria causa de tantos malefiacutecios Do mesmo modo com o reconhecimento pois

quando o indiviacuteduo vecirc-se tomado pela indesejada circunstacircncia ou destino traacutegicos ele se

reconhece como sujeito traacutegico proacuteximo de sua cataacutetrofe Para tanto eacute soacute nos lembrarmos

por exemplo de Eacutedipo Aacutejax Ifigecircnia e Hipoacutelito quando se reconhecem como figuras

traacutegicas O primeiro ao perceber que era ele mesmo a causa do mal que procurava o

segundo ao entender que havia matado animais e natildeo os guerreiros gregos a terceira ao ver

que sua vida seraacute aniquilada pelo proacuteprio pai e o quarto enxergando-se como vitimado por

um crime que natildeo cometera Observemos

ἰνὺ ἰνύ ηὰ πάλη᾽ ἂλ ἐμήθνη ζαθῆ

ὦ θο ηειεπηαῖόλ ζε πξνζβιέςαηκη λῦλ

ὅζηηο πέθαζκαη θύο η᾽ ἀθ᾽ ὧλ νὐ ρξῆλ63

(Eacutedipo Rei 1182-1184)

Ioacuteu ioacuteu Atingiste-me e todas as coisas estatildeo claras

Oacute luz nesse instante eu poderia olhar-te o fim

eu fiz aparecer o filho de que natildeo havia necessidade

63

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101913Acard3D1196 agraves

1940hs de 17 de julho de 2010

74

ἰὼ

ζθόηνο ἐκὸλ θάνο

ἔξεβνο ὦ θαελλόηαηνλ ὡο ἐκνί

ἕιεζζ᾽ ἕιεζζέ κ᾽ νἰθήηνξα

ἕιεζζέ κ᾽ νὔηε γὰξ ζελ γέλνο νὔζ᾽ ἁκεξίσλ

ἔη᾽ ἄμηνο βιέπεηλ ηηλ᾽ εἰο ὄλαζηλ ἀλζξώπσλ

ἀιιά κ᾽ ἁ Δηὸο ἀιθίκα ζεὸο ὀιέζξη᾽ αἰθίδεη

64

(Aacutejax 394-403)

Ioacute Treva toda minha luz

Oacute Eacuterebo como eacutes brilhantiacutessimo para mim

Leva-me leva-me para tua morada

leva-me Pois nem mereccedilo olhar nem por um dia

para a raccedila dos deuses nem igualmente para a dos homens

Todavia a filha de Zeus

o poderoso deus

atormenta-me para destruiccedilatildeo

νἲ γώ κᾶηεξ ηαὐηὸλ ηόδε γὰξ

κέινο εἰο ἄκθσ πέπησθε ηύρεο

θνὐθέηη κνη θο

νὐδ᾽ ἀειίνπ ηόδε θέγγνο

ἰὼ ἰώ65

(Ifigecircnia em Aacuteulis 1279-1283)

Ai de mim matildee Pois este mesmo

canto do acaso caiu para ambas

Para mim natildeo (haveraacute) mais luz

e nem a claridade do sol

Ioacute ioacute

αἰαῖ αἰαῖ

δύζηελνο ἐγώ παηξὸο ὡο ἀδίθνπ

ρξεζκνῖο ἀδίθνηο δηειπκάλζελ

ἀπόισια ηάιαο νἴκνη κνη

()

αἰαῖ αἰαῖ

θαὶ λῦλ ὀδύλα κ᾽ ὀδύλα βαίλεη

κέζεηέ κε ηάιαλεο

θαί κνη ζάλαηνο Παηὰλ ἔιζνη

πξνζαπόιιπη᾽ ἀπόιιπηε66

(Hipoacutelito 1348-501370-74)

64

Tento disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101833Acard3D394 `s 2000hs

de 17 de julho de 2010 65

Texto disponiacutevel em httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseustext1999010107 agraves 2020hs de

17 de julho de 2010 66

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101053Acard3D1370 agraves

2030hs de 17 de juho de 2010

75

Aiacuteaiacute aiacuteaiacute

Eu sou miseraacutevel por causa de um pai injusto

de profecias injustas desfeitas vergonhosamente

fui destruiacutedo estou desgraccedilado ai de mim

Aiacuteaiacute aiacuteaiacute

E agora vai causa-me dor causa-me dor

deixais-me ir desgraccedilado

e que o Curador da morte venha para mim

destroacutei-me destroacutei-me

As passagens citadas ilustram bem que a tragicidade da peccedila eacute aumentada quando

os personagens passam do estado da ignoracircncia para o conhecimento e consciecircncia dos fatos

Para entendermos mais claramente eacute soacute imaginarmos um homem que mata o pai e casa com a

matildee mas sem saber ou seja sem a asup1nagnwiquestrisij Isso nos causaria piedade eou temor

Acreditamos que natildeo e o proacuteprio Eacutedipo retifica-nos pois antes de saber que ele era o

responsaacutevel pelo mal que assolava Tebas ele natildeo se lamentava apenas buscava o culpado

enfim ele natildeo se reconhecia como um personagem traacutegico Do mesmo modo a falta de

reconhecimento com Aacutejax Ifigecircnia Hipoacutelito pode diminuir ou ateacute mesmo vir a extinguir

toda a tragicidade

Como percebemos peripemacrteia e asup1nagnwiquestrisij surgidas da estrutura interna

do mito satildeo importantes natildeo apenas para a trageacutedia e seus aspectos formais mas para o

desdobramento intensificado do traacutegico Aristoacuteteles diz-nos ainda que ocorrendo juntas a

peripeacutecia e o reconhecimento compotildeem uma estrutura complexa Podemos depreender pela

explanaccedilatildeo e exemplificaccedilatildeo que fizemos acima que juntas a peripeacutecia e o reconhecimento

reforccedilam a dramaticidade da peccedila Tal ideacuteia talvez nos permita afirmar que uma trageacutedia

aristotelicamente complexa possui mais teor traacutegico do que as de estrutura simples sem

reconhecimento e peripeacutecia

Para Aristoacuteteles a estrutura do mito traacutegico bem realizado deve ser uniforme e

como um todo deve ter iniacutecio meio e fim Por isso ele explica que um ser muito grande ou

muito pequeno natildeo se aproximaria do que eacute belo (1451a) Esse comentaacuterio ajuda-nos a

compreender entre outros fatores o porquecirc da unidade de accedilatildeo ser tatildeo relevante para a

teorizaccedilatildeo aristoteacutelica devendo estar presente tanto numa trageacutedia quanto numa epopeacuteia

Tanto que Aristoacuteteles aponta as epopeacuteias homeacutericas como exemplos dessa unidade de accedilatildeo jaacute

que apesar de extensas os episoacutedios convergem para accedilatildeo central compondo o todo Aleacutem

do mais tambeacutem podemos perceber o porquecirc de a extensatildeo da trageacutedia ser baseada no tempo

76

suficiente em que se possa transcorrer a mudanccedila da fortuna do personagem Vejamos o que

ele diz

ὡο δὲ ἁπιο δηνξίζαληαο εἰπεῖλ ἐλ ὅζση κεγέζεη θαηὰ ηὸ εἰθὸο ἢ ηὸ

ἀλαγθαῖνλ ἐθεμῆο γηγλνκέλσλ ζπκβαίλεη εἰο εὐηπρίαλ ἐθ δπζηπρίαο ἢ ἐμ

εὐηπρίαο εἰο δπζηπρίαλ κεηαβάιιεηλ ἱθαλὸο [15] ὅξνο ἐζηὶλ ηνῦ κεγέζνπο67

(Poeacutetica VII 1451a 11-15)

Em certa extensatildeo simplesmente devem realizar o narrar um apoacutes outro

segundo a verossimilhanccedila e a necessidade e que ocorra com o traspassar

para a fortuna a partir do infortuacutenio e da fortuna para o infortuacutenio este eacute o

limite conveniente de sua extensatildeo

A unidade de accedilatildeo segundo os preceitos aristoteacutelicos eacute fundamental para a

estruturaccedilatildeo de uma faacutebula Assim mesmo numa epopeacuteia os episoacutedios devem convergir para

a accedilatildeo central tornando-a una e coesa E essa limitaccedilatildeo temporal da trageacutedia que deve

desenvolver-se numa temporalidade suficiente para que possamos ter a mudanccedila de fortuna

tambeacutem nos colabora para outra compreensatildeo do traacutegico Pois este para ser melhor realizado

tambeacutem deve ter unidade pois faltaria totalidade a um mito que depois de ocorrer a accedilatildeo

traacutegica passasse a desenvolver outros temas dispersando e diluindo o traacutegico Isso nos faz

compreender o porquecirc das criacuteticas agrave peccedila de Soacutefocles Aacutejax Nesta peccedila apoacutes concretizada a

mudanccedila da fortuna do heroacutei com o seu suiciacutedio vemos o desenvolver da defesa de seu corpo

por Teucro seu meio-irmatildeo Muitos criacuteticos entendem que essa continuidade da peccedila

prejudicaria sua qualidade Natildeo entraremos nessa discussatildeo contudo podemos compreender

que a accedilatildeo traacutegica deve ser condensada deve ter unidade a fim de que natildeo se dilua por

completo nem se disperse Assim sendo conforme as indicaccedilotildees de Aristoacuteteles o tempo da

accedilatildeo traacutegica deve limitar-se agrave mudanccedila de fortuna

No capiacutetulo XIII Aristoacuteteles expotildee-nos mais diretamente a respeito do traacutegico

comentando o que viria a ser uma situaccedilatildeo traacutegica por excelecircncia para que possa inspirar o

temor e a piedade e depois a catarse desses sentimentos Para termos essa ―plausiacutevel

situaccedilatildeo traacutegica ela natildeo deve ter homens muito bons passando para o infortuacutenio - o que

causaria excesso de piedade - nem muito maus o que levaria a um distanciamento Mesmo

porque essas circuntacircncias natildeo fazem surgir o temor fomacrboj nem a piedade esup1lemacroj estes

sentimentos que devem vir da accedilatildeo dos personagens e que satildeo inspirados em determinadas

situaccedilotildees

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77

ἔιενο κὲλ πεξὶ ηὸλ ἀλάμηνλ θόβνο δὲ πεξὶ ηὸλ ὅκνηνλ68

(Poeacutetica XIII 1453a 5-6)

() a piedade sobre o imerecido o temor sobre o semelhante

Diante disso resta ao heroacutei uma situaccedilatildeo intermediaacuteria (1453a) pois nem tatildeo

virtuoso nem tatildeo maldoso Sua tragicidade viraacute natildeo pelo caraacuteter mas por uma accedilatildeo errocircnea

Este erro a aumlmartian seria o responsaacutevel por fazer algueacutem passar da fortuna ao infortuacutenio

ou vice-versa Muitas discussotildees haacute sobre essa hamartia aristoteacutelica e qual seria seu

significado essencial mas por hora vejamos o que nos diz o filoacutesofo referindo-se ao heroacutei

que natildeo cai no erro por falha de caraacuteter mas por causa de

ἁμαρτίαν τινά ηλ ἐλ κεγάιῃ δόμῃ ὄλησλ θαὶ εὐηπρίᾳ νἷνλ Οἰδίπνπο θαὶ

Θπέζηεο θαὶ νἱ ἐθ ηλ ηνηνύησλ γελλ ἐπηθαλεῖο ἄλδξεο () ἐμ εὐηπρίαο εἰο

δπζηπρίαλ κὴ δηὰ κνρζεξίαλ ἀιιὰ δη᾽ ἁμαρτίαν μεγάλην ἢ νἵνπ εἴξεηαη ἢ

βειηίνλνο κᾶιινλ ἢ ρείξνλνο69 (Poeacutetica XIII 1453 a 10-1215-17)

() algum erro daqueles de grande gloacuteria e boa fortuna como o de Eacutedipo e

Tiestes tambeacutem por homens ilustres de famiacutelias tais () a partir da fortuna

para o infortuacutenio natildeo por maldade mas atraveacutes de um grande erro ou como

o que foi dito ou de um (erro) melhor ou ainda pior

A primeira referecircncia de hamartia presente no texto de Aristoacuteteles diz ἁμαρηίαν

ηινά Liddell e Sccottlsquos (1996) informam-nos que aumlmartia significa filure error ou seja

falha erro Este substantivo eacute originado pelo verbo aumlmartanw definido como to miss miss

the mark quer dizer falharerrar eou errar o alvo Seu qualificador tina sendo pronome

indefinido expressa a indefiniccedilatildeo por meio de ―um algum Podemos entatildeo chegar agrave

traduccedilatildeo para aumlmartian tina como ―errar um alvo Este sentido indefinido dificulta-nos

para sabermos a que erro Aristoacuteteles se refere contudo essa indefiniccedilatildeo daacute-nos um indiacutecio

importante esse erro pode ser de origens diversas

Em aumlmartian megalhn poderemos entender melhor o que seria o erro traacutegico

indicado por Aristoacuteteles O termo megalhn equivale a megaj que significa aquilo que eacute

largo grande importante Logo aumlmartian megalhn pode ser traduzido por ―grande erro

68

Ibidem 69

Os destaques satildeo nossos Texto disponiacutevel em httpwwwhs-

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Percebemos entatildeo que este erro fundamental para o decorrer da accedilatildeo traacutegica eacute grandioso

grave muito importante para todo o contexto em que se estabelece

Baseada nas discussotildees acima sobre a hamartia aristoteacutelica podemos chegar agrave

conclusatildeo de que a hamartia natildeo estaacute relacionada como poder-se-ia pensar a um erro moral

originado em decorrecircncia de uma falha de caraacuteter Na verdade apesar de ser um grande eou

grave erro ele eacute sem intencionalidade Todavia esta falta de intenccedilatildeo natildeo o exime do traacutegico

Este natildeo deve ser confundido como um castigo e sim como uma mudanccedila de fortuna que

geralmente ocasiona para o agente um infeliz resultado

Esse grandioso erro tambeacutem eacute indefinido por isso o aumlmartian tina que nos

sugere uma falha natildeo especiacutefica impedindo-nos de definir o que seria um erro traacutegico ou natildeo

mas que eacute um aumlmartian megalhn um grande erro Todavia ressaltamos que haacute falhas

traacutegicas por excelecircncia como por exemplo as cometidas contra os deuses aleacutem das

realizadas como diz-nos o proacuteprio Aristoacuteteles (19791995) no capiacutetulo XIV contra pessoas

da famiacutelia

Ὅταν δ᾽ ἐν ταῖς φιλίαις ἐγγένηται τὰ πάθη οἷον ἢ ἀδελφὸς

ἀδελφὸν ἢ υἱὸς πατέρα ἢ μήτηρ υἱὸν ἢ υἱὸς μητέρα ἀποκτείνηι ἢ

μέλληι ἤ τι ἄλλο τοιοῦτον δρᾶι ταῦτα ζητητέον70 (Ibidem XIV

1453b 20-23)

Quando estas cataacutestrofes realizam-se em amizades ou com um irmatildeo que

mata irmatildeo ou um filho que mata o pai ou a matildee que mata o filho ou o

filho que mata a matildee ou quando venha ocorrer alguma outra coisa desta

natureza estas coisas tecircm que ser buscadas

O fato de existirem essas situaccedilotildees traacutegicas por natureza faz com que entendamos

o impacto traacutegico das trageacutedias Medeacuteia Oresteacuteia e Eacutedipo Rei ateacute hoje pelos assassinatos

entre familiares Por isso temos a existecircncia de famiacutelias em que se delineiam o traacutegico

mesmo com o passar das geraccedilotildees a exemplo da dos Labdaacutecidas e dos Atridas E eacute esse

aspecto do conflito familiar somado aos finais infortunados que segundo Aristoacuteteles acaba

por fazer Euriacutepedes ser o mais tragikomacrj dos poetas

Atraveacutes das consideraccedilotildees acima realizadas tentamos compreender definiccedilotildees e

aspectos relativos ao traacutegico a partir da Poeacutetica Esta obra legou-nos as primeiras reflexotildees

teoacutericas sobre a literatura mais especificamente sobre a trageacutedia e a epopeacuteia Tentamos

70

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depreender atraveacutes dela a estrutura e significaccedilatildeo do traacutegico para as trageacutedias gregas como

tambeacutem para as epopeacuteias homeacutericas jaacute que nelas podemos encontrar consideraacutevel

manifestaccedilatildeo de tragicidade presente por exemplo no Canto XI da Odisseacuteia

24 A busca do traacutegico outras reflexotildees teoacutericas

Na tentativa de compreender melhor a categoria do traacutegico claacutessico

continuaremos em busca de seu entendimento mas desta vez percorrendo os conceitos e as

discussotildees realizadas por outros autores Este processo assim como os demais que

desenvolvemos ateacute entatildeo tem o propoacutesico de subsidiar-nos para a compreensatildeo do nosso

objetivo geral que eacute o de analisar a tragicidade no Canto XI da Odisseacuteia Em auxiacutelio agrave nossa

proposta contribuem os seguintes autores Jean-Pierre Vernant Grimal Jacqueline de

Romilly Anatol Rosenfeld Junito Brandatildeo Albin Lesky e Sandra Luna

Em Mito e trageacutedia na Greacutecia Antiga (2008) Jean-Pierre Vernant discorre que na

trageacutedia o homem (heroacutei) eacute posto para realizar uma escolha definitiva diante de um mundo

ambiacuteguo e instaacutevel Para o autor isso seria a ―mateacuteria-prima da trageacutedia o primeiro aspecto

do conflito Diante disso a trageacutedia possui tambeacutem algumas marcas que seriam tensatildeo entre

mito e pensamento citadino conflitos humanos de valores do mundo e do universo divino

caracteriacutestica ambiacutegua e equiacutevoco linguumliacutestico Estas marcas da trageacutedia satildeo fundamentais

tambeacutem para a realizaccedilatildeo do traacutegico principalmente no que diz respeito agrave tensatildeo e ao conflito

do homem para com os demais O homem como ―mateacuteria-prima do traacutegico vecirc-se desafiado

por decisotildees e suscetiacutevel perante sua fragilidade pois ―neste jogo do qual natildeo eacute senhor o

homem sempre corre o risco de cair na armadilha de suas proacuteprias decisotildees (VERNANT

2008 p 21)

Estas decisotildees afligem muitas vezes a jornada do homem que acaba por se tornar

uma sujeito traacutegico E assim aquele homem na eacutepica que exalta seu vigor e alcanccedila a gloacuteria

depara-se com sua fragilidade e finitude diante da vida e de suas circunstacircncias Por isso

Vernant (2008) considera que no traacutegico a accedilatildeo e o agir humano dividem-se em dois poacutelos o

primeiro eacute o de deliberar pesar eou prevecirc a melhor opccedilatildeo de escolha e o segundo eacute

considerar a presenccedila do incompreensiacutevel do desconhecido e de forccedilas sobrenaturais que

possam vir preparar seu sucesso ou sua derrota Assim o traacutegico estaacute indissoluvelmente

aliado a uma accedilatildeo que pressupotildee uma escolha

80

O autor afirma que a culpa traacutegica pode ser realizada de duas formas uma eacute

atraveacutes da hamartia que ele define como uma concepccedilatildeo religiosa do erro uma ―doenccedila do

espiacuterito em que o sujeito coagido por elementos superiores chega a cometer o delito a

outra eacute por meio do adikon71

em que o sujeito sem nenhuma coaccedilatildeo decide cometer o erro

Assim entendemos que o indiviacuteduo poder torna-se traacutegico ou por um erro sem

voluntariedade hamartia sob forccedilas superiores ou por deliberaccedilatildeo proacutepria por isso eacute

chamado de adikon injusto

Um aspecto bastante discutido sobre o traacutegico refere-se agrave existecircncia ou natildeo da

vontade e da responsabilidade humana Natildeo pretendemos aprofundar-nos nessa questatildeo

contudo ela nos serve para entender as circuntacircncias que levam ao traacutegico Assim Vernant

(2008) afirma que no Periacuteodo Arcaico da literatura grega natildeo haacute vocaacutebulo para designar a

vontade o querer direcionado ao homem mas sabemos que ela havia em relaccedilatildeo aos deuses

como se vecirc por exemplo na Iliacuteada (v5) No Periacuteodo Claacutessico mesmo ainda sem a existecircncia

dessa palavra para os homens jaacute comeccedilamos a ter o levantamento desses questionamentos

Mesmo porque o autor defende que para haver uma decisatildeo tem que existir alguma vontade

Desde que o indiviacuteduo se empenha numa decisatildeo que se decide

qualquer que seja o plano em que se situe sua resoluccedilatildeo ele se constitui a si

proacuteprio como agente isto eacute como sujeito responsaacutevel e autocircnomo que se

manifesta em atos e por atos que lhe satildeo imputaacuteveis (Ibidem 2008 p 26)

A necessidade (asup1namacrgkh) imposta pelos deuses eou pela ocasiatildeo impulsiona o

homem a tomar decisotildees Estas possuem de alguma maneira expressotildees de seus desejos

apesar de que muitas vezes soacute haacute uma escolha Por isso diz Vernant que se haacute uma vontade

ela natildeo eacute autocircnoma e sim ―amarrada pelo temor que o divino inspira se natildeo constragida por

potecircncias sagradas que assediam o homem no seu proacuteprio iacutentimo (VERNANT 2008 p 28)

Entatildeo concluimos que a partir da necessidade emana a accedilatildeo do homem pois segundo

Vernant ainda natildeo podemos falar em vontade na trageacutedia grega Na verdade ela ―marca uma

etapa e como que uma virada na histoacuteria dos avanccedilos do homem grego antigo na direccedilatildeo da

vontade (Ibidem p 42)

A partir de sua exposiccedilatildeo Vernant (2008) define o traacutegico como a interrogaccedilatildeo do

homem sobre seus atos chegando ao ponto de fazer daquele heroacutei eacutepico exemplar o

responsaacutevel por sua accedilatildeo errocircnea Tal accedilatildeo volta-se contra ele mesmo ocasionando o

71

Esta palavra em grego aatildedikoj eacute formada pelo a privativo mais o radical dik de dikhmacr justiccedila Logo

aatildedikoj significa injusto

81

contraacuterio do que ele pretendia Percebemos por isso que o traacutegico faz-nos interrogar sobre a

condiccedilatildeo humana e suas fronteiras estas que satildeo colocadas a cada um sejam aos grandes

heroacuteis como Aquiles ou aos deuses como vemos em Prometeu Cadeeiro (2009) Por

exemplo o Pelida no encontro com Odisseu no Hades mostra-se arrependido da escolha que

fez de morrer em campo de batalha Como se vecirc a decisatildeo de Aquiles voltou-se contra ele

mesmo Entretanto tal situaccedilatildeo analisaremos melhor no capiacutetulo a seguir

Pierre Grimal em O Teatro Antigo (2002) diz que a trageacutedia grega desenvolve-se

num periacuteodo histoacuterico de bastante relevacircncia jaacute que nesse momento foi realizada uma

elevada criaccedilatildeo filosofia Diante desse contexto as trageacutedias em forma de accedilatildeo de drama

representavam acontecimentos oriundos das lendas heroacuteicas tatildeo cantadas pelos autores

eacutepicos todavia Grimal faz-nos a seguinte ressalva se para noacutes os acontecimentos encenados

possuem caraacuteter lendaacuterio para os gregos havia um significado histoacuterico E mais ainda na

trageacutedia aquele heroacutei que para os gregos fazia parte da histoacuteria vecirc sua fragilidade diante de

um impasse porque

A trageacutedia mais do que esclarescer o significado metafiacutesico do mito

(como o faraacute Heacutercules no Etna de Secircneca) traz agrave luz do dia a infeliz

condiccedilatildeo dos mortais incapazes de compreenderem as consequumlecircncias de

suas accedilotildees quando cedem natildeo soacute ao irresistiacutevel poder do Amor como agraves

outras paixotildees que os deuses lhes enviam (GRIMAL 2002 p 45)

Se no Periacuteodo Arcaico as eacutepicas ilustram as grandes guerras e os magistrais

combates dos heroacuteis no Periacuteodo Claacutessico tanto poetas quanto filoacutesofos conforme indica

Grimal (2002) centralizam suas discussotildees no ser humano Este seraacute o protagonista do

traacutegico pois deparando-se com o conflito as armas e o vigor fiacutesico natildeo mais podem fazecirc-lo

vencedor como ocorria nas eacutepicas Ao contraacuterio toda a sua accedilatildeo reverte-se para si mesmo e

levando-o ao traacutegico Isso veremos bem no proacuteximo capiacutetulo atraveacutes do relato de

Agamecircmnon no Canto XI da Odisseia em que se percebe que toda a sua nobreza e heroiacutesmo

relatados na Iliacuteada natildeo o impediu de ter uma morte traacutegica e indigna

Em A trageacutedia Grega (2008) Jacqueline de Romilly considera que o mito se

introduz na trageacutedia proporcionando-lhe sentido Assim podemos concluir que o traacutegico alia-

se ao mito e natildeo agrave estrutura formal da trageacutedia e ainda mais que o traacutegico eacute que daacute sentido a

trageacutedia grega Vejamos como ela considera a importacircncia do traacutegico dentro do panorama da

trageacutedia claacutessica

82

No conjunto a trageacutedia grega adquire assim mais uma ressonacircncia

particular por ter conservado um contato constante com as realidades

colectivas da vida poliacutetica tal como adquire uma forccedila mais rude por ter

conservado o contacto com os mitos originais mas nem num caso nem no

outro se confunde com a mateacuteria que lhe eacute fornecida assim O seu

verdadeiro alcance vem da interpretaccedilatildeo humana que daacute dos males evocados

E soacute esta interpretaccedilatildeo define verdadeiramente o traacutegico (ROMILLY 2008

p 168)

Por isso eacute que o traacutegico aleacutem de natildeo se relacionar tambeacutem natildeo deve ser

confundido com o melodrama moderno Mas para que essa proximidade natildeo ocorra e que

crimes como os de Medeacuteia Clitemnestra e Eacutedipo por exemplo natildeo sejam melodramas deve

haver o que Romilly (2008) chama de ―luz traacutegica Esta fundamentada na asup1namacrgkh

(necessidade) ou seja nas ―causas que ultrapassem o caso individual e que os tornem

necessaacuterios em nome das circuntacircncias que se impotildee aos homens Tanto que essas situaccedilotildees

traacutegicas poreacutem necessaacuterias ―ao mesmo tempo em que inspiram piedade pelas viacutetimas

inspiram tambeacutem piedade por eles piedade pelo homem (Ibidem p 168-169) E a accedilatildeo

dessas forccedilas sobrehumanas que impulsionam o homem pela necessidade satildeo indicadas pelo

proacuteprio coro segundo Romilly (2008)

Este sentimento de piedade Odisseu sentiraacute ao deparar-se com seus distintos

companheiros no Hades e ouvir o lamuacuterio pelo final traacutegico que a vida lhes reservou Isto

ocorre ateacute no caso de Aacutejax que mesmo sem falar ignorando a presenccedila de Odisseu

demonstra seu rancor por aquele que julga culpado de seu mal No caso de Agamecircmnon

segundo Romilly (2008) eacute a accedilatildeo do daacuteimon daimacrmwn 72 enquanto para Aacutejax eacute a accedilatildeo do

destino Teriacuteamos em suma duas causalidades uma que eacute regida pela forccedila superior e outra

pela vontade humana e que segundo a autora ―jaacute presente em Homero esta dupla

causalidade existe para sempre na trageacutedia (Ibidem p 172) ateacute porque no mundo grego em

geral elas coexistiam sem haver contradiccedilotildees

A autora por mais que natildeo acredite haver vontade nas trageacutedias considera que haacute

algum comprometimento humano Pois certo eacute que tudo ocorre pela vontade divina mas

tambeacutem o homem toma para si a responsabilidade no momento em que adere a accedilatildeo Natildeo haacute

renuacutencia entatildeo o sujeito traacutegico compromete-se Isto faz Romilly (2008) afirmar que ―o

divino e o humano combinam-se sobrepotildee-se A trageacutedia implica necessariamente a accedilatildeo e

seu autor sempre tenta agir bem ou mal Mas esta accedilatildeo traz-lhe graves consequecircncias Por

72

O daimacrmwn representa o divino sua vontade a sorte dividida pelo deus por isso o radical dai de daimacromai que eacute dividir partilhar

83

isso Romilly defende que haacute sempre uma espeacutecia de inocecircncia esta funcionando como

sinocircnimo de heroiacutesmo Vejamos

Que sofram uma sorte querida pelos deuses que paguem pelos erros

dos antepassados ou que paguem por sua proacutepria imprudecircncia haacute sempre

neles uma parte de inocecircncia E mesmo quando nos satildeo apresentados como

culpados mesmo quando suas accedilotildees os arrastam satildeo-no porque o erro eacute o

lote do homem ou porque correspondem a situaccedilotildees que satildeo igualmente o

lote do homem (ROMILLY 2008 p 175)

Esse heroiacutesmo imanente e ao mesmo tempo indissociaacutevel do heroacutei traacutegico faz

com que seja conservada a sua grandeza tendo triunfo mesmo na queda Isto eacute o personagem

traacutegico mesmo vendo mudar a sua figura de heroacutei eacutepico para a de heroacutei traacutegico ainda

manteacutem certa expressatildeo de inocecircncia de heroiacutesmo que provoca a simpatia e justifica o surgir

da piedade Como poderemos ver no momento de nossa anaacutelise Odisseu sente piedade pelos

seus companheiros ao reencontraacute-los no Hades por constatar o destino lamuriado de cada um

E mesmo apoacutes ouvir os relatos traacutegicos dos guerreiros manteacutem ainda o sentimento de

respeito natildeo se esquecendo da distinccedilatildeo proacutepria que ele mesmo testemenhou um dia

Anatol Rosenfeld em A teoria dos Gecircneros (1985) observa que a definiccedilatildeo e

classificaccedilatildeo dos gecircneros eacute artificial pois ―natildeo existe pureza de gecircneros em sentido absoluto

(ROSENFELD 1985 p 16) Contudo o autor avalia como importante esta sistematizaccedilatildeo

dos gecircneros por definir as diversas categorias literaacuterias E esta artificialidade eacute comprovada

com o fato de natildeo haver gecircnero puro O que haacute para o autor eacute o significado substantivo e

adjetivo dos gecircneros Naquele encontramos a essecircncia estiliacutestica de cada gecircnero eacute o que nos

possibilita definir o gecircnero de um texto pois eacute especiacutefico Por significado adjetivo

entendemos o traccedilo estiliacutestico aquilo que pode ser encontrado em todos os outros gecircneros

Por exemplo o corpus de nossa pesquisa Canto XI da Odisseacuteia tem como significado

substantivo o gecircnero eacutepico e como adjetivo o traccedilo do traacutegico Tal exemplificaccedilatildeo pode ser

feita com muitas outras obras porque ―no fundo poreacutem toda obra literaacuteria de certo gecircnero

conteraacute aleacutem dos traccedilos estiliacutesticos mais adequados ao gecircnero em questatildeo tambeacutem traccedilos

estiliacutesticos mais tiacutepicos dos outros gecircneros (Ibidem p 19)

Todas essas ponderaccedilotildees de Rosenfeld (1985) a respeito da teoria dos gecircneros e

de seus significados adjetivo e substantivo contribuem para o nosso trabalho em alguns

pontos Elas creditam nossa pesquisa em analisar a presenccedila do traacutegico numa epopeacuteia

homeacuterica Tais consideraccedilotildees aleacutem de reforccedilar que natildeo haacute gecircnero puro (e que talvez nunca

tenha existido) permite-nos demonstrar que essa pureza nem mesmo na Antiguidade Claacutessica

84

existiu apesar de muitos verem esse periacuteodo como sinocircnimo de uma produccedilatildeo literaacuteria

regrada de estrutura fechada A anaacutelise do nosso trabalho abre perspectivas para entendermos

que as inovaccedilotildees estiliacutesticas as influecircncias e a interpenetraccedilatildeo de gecircneros satildeo procedimentos

realizados desde a Antiguidade e natildeo como uma singularidade moderna No final das

avaliaccedilotildees como diz o proacuteprio Rosenfeld (1985) ser puro ou natildeo natildeo define a qualidade de

um trabalho

Apoacutes discorrer sobre o nascimento da trageacutedia Junito Brandatildeo em Teatro Grego

(2009) fala-nos a respeito de outro elemento importante para a compreensatildeo do traacutegico

uAgravebrij73 e aatildeth74

A primeira ocorre quando o heroacutei ultrapassa o meacutetron a medida

cometendo entatildeo a uAgravebrij A segunda eacute o resultado da hyacutebris pois diante desta soacute resta ao

heroacutei ser punido pelos deuses que lhe lanccedilam a ateacute Tomado pela uAgravebrij e aatildeth todo e

qualquer ato que o heroacutei realizar se voltaraacute contra ele Para o autor o traacutegico se enquadra com

os seguintes envolvimentos apoacutes a ultrapassagem do meacutetron hyacutebrisrarr neacutemesis (nemacrmesij-

ciuacuteme divino)rarr ateacuterarr Moira (Moiordfra- destino cego puniccedilatildeo divina) Por esse processo ele

afirma que no sentido religioso a trageacutedia grega suplica contra a desmedida

No Canto XI da Odisseacuteia avaliaremos a presenccedila desses elementos da trageacutedia

(uAgravebrij aatildeth nemacrmesij Moiordfra) Observaremos atraveacutes do destino dos heroacuteis mais

precisamente de Agamecircmnon e de Aacutejax a influecircncia destas forccedilas sobre-humanas

Junito Brandatildeo faz uma distinccedilatildeo importante entre conflito traacutegico fechado e uma

situaccedilatildeo traacutegica A primeira implica um final desditoso eacute a accedilatildeo do destino traacutegico como

vemos em Eacutedipo Rei e em Antiacutegona Jaacute no segundo o final natildeo eacute desditoso Parte-se do

infortuacutenio para a fortuna pois o que eacute traacutegica eacute a situaccedilatildeo vivida natildeo o seu fim como o

exemplo lido em Alceste Porque ―() o traacutegico pode natildeo estar no fecho mas no corpo da

trageacutedia Chamamos por isso mesmo trageacutedia a peccedila cujo conteuacutedo eacute traacutegico e natildeo

necessariaamente o fecho (Ibidem p 15) Esta diferenccedila eacute importante para a nossa anaacutelise

porque observaremos uma situaccedilatildeo traacutegica jaacute que na Odisseacuteia natildeo haacute espaccedilo para se falar

em destino traacutegico No Canto XI podemos observar tanto uma ―situaccedilatildeo traacutegica como por

exemplo a vivida por Odisseu como tambeacutem um ―conflito traacutegico fechado o que pode ser

73

Em grego uAgravebrij indica a accedilatildeo de insolecircncia violecircncia soberba excesso ou seja uma accedilatildeo fruto de uma

desmedida 74

Em grego aatildeth significa um infortuacutenio segundo o Bailly (2000) eacute um flagelo enviado pelos deuses como a

puniccedilatildeo por algum fato conhecida tambeacutem como uma cegueira enviada pelos deuses

85

visto por exemplo atraveacutes do relato de Agamecircmnon e da visualizaccedilatildeo de Aacutejax e seu eterno

sentimento de desonra

Albin Lesky em A trageacutedia Grega (2006) alerta-nos logo ao iniacutecio de que natildeo

tentaraacute encontrar uma foacutermula para o traacutegico Entre outras coisas sua obra ajuda-nos a tentar

compreender se o traacutegico estaacute unicamente relacionado agrave trageacutedia ou se como acreditamos a

outros meios literaacuterios Tendo em vista que ―() jaacute se encontram os germes em que se prepara

a primeira e ao mesmo tempo a mais perfeita objetivaccedilatildeo da visatildeo do mundo no drama do

seacuteculo V (LESKY 2006 p 23) Inclusive a partir dos novos estudos feitos da Iliacuteada e da

Odisseacuteia o autor informa-nos que ―suscita-se com crescente vivacidade a questatildeo relativa aos

germes do traacutegico nas duas epopeacuteias (Ibidem) Eacute por isso que Karl Jaspers citado por Lesky

(2006) refere-se a Homero como a mais antiga manifestaccedilatildeo do traacutegico Tal posicionamento

respalda nossa pesquisa

Na comprovaccedilatildeo dessa existecircncia do traacutegico jaacute nas epopeacuteias homeacutericas Lesky

(2006) aponta-nos alguns fatores para esse entendimento Assim em Homero jaacute vemos que

os heroacuteis apesar de na maioria das vezes serem exaltados podem ter um destino venturoso

ou desventuroso a depender dos desiacutegnios divinos Como exemplo ele cita o Canto I da

Iliacuteada mas noacutes exemplificaremos pelo Canto XI da Odisseacuteia pois neste vemos a desventura

narrada por exemplo por Aquiles dizendo preferir ser um trabalhador do campo a reinar

sobre os mortos Eacute narrada tambeacutem a desventura de Agamecircmnon que pelo histoacuterico da

famiacutelia Atrida e por ter sacrificado sua filha seraacute penalizado pelo proacuteprio cocircnjuge Como

destino venturoso podemos citar o do proacuteprio Odisseu que cumpre uma das suas mais

difiacuteceis missotildees que eacute descer ateacute a entrada do Hades e depois voltar tendo o direito de poder

continuar em sua jornada

Aleacutem dessa mobilidade humana entre a ventura e a desventura Lesky (2006) cita

tambeacutem que vemos em Homero o encadeamento das accedilotildees e de tudo o que as envolvem Haacute

tambeacutem a centralidade do tempo e da accedilatildeo ocorrendo em alguns momentos a

presentificaccedilatildeo de algumas narraccedilotildees como se elas ocorressem naquele instante mesmo com

narraccedilotildees em flah-back Para noacutes vale destacar que estes elementos tambeacutem podem ser

verificados na Odisseacuteia em que as accedilotildees assim como na Iliacuteada satildeo encadeadas havendo

para cada uma delas um resultado que leva o personagem ao seu objetivo No Canto XI por

exemplo o cumprimento do ritual (nemacrkuia) por Odisseu o leva para casa Vecirc-se tambeacutem

neste canto uma narraccedilatildeo bastante centralizada no tempo em que os fatos ocorrem e de tudo

86

que estaacute em volta De modo que ateacute as narraccedilotildees feitas por Odisseu aos Feaacutecios de tudo que

passara aparentam estar ocorrendo naquele mesmo instante

Assim segundo o autor como natildeo eacute faacutecil descrever o processo de evoluccedilatildeo do

traacutegico tambeacutem natildeo eacute de entendecirc-lo no contexto claacutessico por natildeo ter sido legada uma teoria

pelos gregos Mesmo diante da complexidade expressa ele faz alguns comentaacuterios sobre o

traacutegico conforme Aristoacuteteles Para este o traacutegico possui o sentido de algo solene desmedido

mas depois passou a indicar o terriacutevel estarrecedor o bombaacutestico perdendo completamente o

sentido da induccedilatildeo e da necessidade Lesky (2006) considera ainda que para haver o

sentimento traacutegico ―o caso deve interessar-nos afetar-nos comover-nos Quando nos

sentimos atingidos nas profundas camadas de nosso ser eacute que experimentamos o traacutegico

(Ibidem p 33) Aleacutem disso o imerecimento tambeacutem eacute fundamental para que alcancemos a

sensaccedilatildeo traacutegica pois o imerecido faz-nos sentir compaixatildeo Jaacute o sujeito para se identificar

como traacutegico deve ter consciecircncia conhecimento do seu padecer No Canto XI da Odisseacuteia

poderemos verificar alguns desses elementos como a desmedida o despertar da comoccedilatildeo a

compaixatildeo o imerecido e toda uma vivecircncia do traacutegico mesmo que incipiente

Questionando se o traacutegico natildeo teria seu significado estabelecido na Poeacutetica Lesky

diz acreditar que na catarse estaria a essecircncia do traacutegico Por tudo o que foi referido

consideramos que Homero deu os passos iniciais das trageacutedias que estavam por vir e com

isso tambeacutem entendemos o porquecirc de ele jaacute ter sido considerado o pai da trageacutedia Natildeo

entraremos nessa discussatildeo mas concordamos com Lesky de que Homero eacute ―um preluacutedio agrave

objetivaccedilatildeo do traacutegico na obra de arte (LESKY 2006 p 25)

Sandra Luna em Arqueologia da Accedilatildeo Traacutegica (2005) realiza importantes

explicaccedilotildees sobre o traacutegico que seratildeo relevantes para a nossa pesquisa Depois de expor os

indiacutecios antropoloacutegicos e literaacuterios sobre a existecircncia do traacutegico antes da trageacutedia a autora

afirma que Homero pelas epopeacuteias jaacute nos apresentava o traacutegico apesar de este natildeo ser seu

objetivo Explica ainda que essa veiculaccedilatildeo do traacutegico com Homero deve ser feita por haver

algumas discussotildees a esse respeito Aleacutem do mais diz ser inegaacutevel a presenccedila dos momentos

de tragicidade verificadas ao longo de suas epopeacuteias Para tanto ela cita o Canto IX da

Odisseacuteia e ressalta que a morte dos companheiros de Odisseu alerta-nos sobre o destino e

sobre a fragilidade humana Pois ―() a vida gloriosa do heroacutei eacutepico projeta-se

necessariamente sobre o fundo sombrio das desventuras () (LUNA 2005 p 30)

Ao longo de nossa anaacutelise verificaremos essa tragicidade homeacuterica reforccedilada

pelos desiacutegnios divinos pela accedilatildeo do destino e da fragilidade humana pois o heroacutei um dia iraacute

deparar-se com sua condiccedilatildeo humana portanto com a fraqueza e a instabilidade Destino esse

87

que tanto conduz Odisseu agrave ventura em seu retorno ao lar como tambeacutem fez sua matildee

Anticleacuteia padecer de saudades do filho de quem ela natildeo mais tinha notiacutecias Esse destino

infortunado tambeacutem natildeo permitiu que Agamecircmnon morresse na guerra Desta forma tendo jaacute

retornado pensa estar protegido em seu palaacutecio mas eacute surpreendido pela morte traiccediloeira Por

isso Luna afirma-nos

Vale a pena refletir mais pausadamente sobre a recorrecircncia dos

elementos traacutegicos nas epopeacuteias gregas atentando para os episoacutedios que

reiteradamente fazem ecoar a condiccedilatildeo de instabilidade da vida humana Satildeo

inuacutemeras as incidecircncias aleacutem daquelas implicadas nas duas centenas de

mortes referenciadas na Iliacuteada (Ibidem p 31)

Sandra Luna natildeo considera Homero como pai da trageacutedia com isso podemos

tambeacutem concordar todavia consideramos que ele foi o responsaacutevel pela fundamentaccedilatildeo

literaacuteria do traacutegico A autora afirma tambeacutem que Homero natildeo alimenta o traacutegico dispersando-

o por meio de banquetes e mudanccedilas de cena ele apenas o deixa entrever Tal constataccedilatildeo eacute

verdadeira assim como eacute verossiacutemil que Homero natildeo o alimente senatildeo teria feito uma eacutepica

sem coerecircncia o que natildeo ocorre pois a presenccedila do traacutegico natildeo desnorteia o teor eacutepico ao

contraacuterio sua presenccedila o enriquece Mas tambeacutem natildeo podemos negar que as mortes narradas

por Homero satildeo carregadas de envolvimentos externos que aumentam a tragicidade ele natildeo

nos poupa dos detalhes traacutegicos Basta-nos lembrar das narraccedilotildees que Odisseu ouve de como

ocorreram as mortes de sua matildee de Aquiles e de Agamecircmnon e ao final de cada relato

todos se derramavam em laacutegrimas

Luna (2005) informa-nos ainda que o conflito entre mito e razatildeo seraacute

―determinante para o surgimento do que estamos chamando de espiacuterito traacutegicolsquo na trageacutedia

manifestando-se esse espiacuterito na consciecircncia da morte natildeo como parte da vida mas como fim

da vida portanto como fenocircmeno aterrorizante e lutuoso (LUNA 2005 p 169) No

proacuteximo capiacutetulo analisaremos a presenccedila desse ―espiacuterito traacutegico no Canto XI da Odisseacuteia

em que o heroacutei protagonista deparando-se com a morte de amigos e familiares vive a

assustadora finitude da vida aleacutem de sua circunstacircncia imerecida Outro fator reitera a nossa

fundamentaccedilatildeo em estudar o traacutegico na Odisseacuteia pois a autora indica-nos a existecircncia de

estudos sobre o conflito entre muordfqoj e lomacrgoj (mito e razatildeo) na Odisseacuteia

Ao falar sobre sua tese de racionalizaccedilatildeo do traacutegico Luna aponta-nos a presenccedila

de alguma responsabilidade humana nem que seja por suas fraquezas que ―() contribuem

para acionar a maacutequina traacutegica (Ibidem p 171) Pois natildeo soacute os deuses os encaminham para

o traacutegico como eles mesmos podem dirigir-se a ele Talvez seja por essa possibilidade de

88

escolha que Agamecircmon no Hades alerta Odisseu para natildeo confiar em sua esposa Peneacutelope

pois isso poderia levaacute-lo a uma indigna morte assim como havia ocorrido com ele proacuteprio

E apoacutes considerar que a catarse eacute o objetivo maior da trageacutedia a autora diz-nos

que o caminho do heroacutei eacutepico deve servir de modelo Ele eacute um exemplo de honra e vigor a ser

seguido Ao contraacuterio do heroacutei traacutegico que muitas vezes sendo ateacute o mesmo que jaacute figurou

distinto nas eacutepicas deve ter sua trajetoacuteria como modelo do que natildeo deve ser seguido e sim

do que devemos evitar Tal afirmaccedilatildeo eacute bastante vaacutelida para nossa anaacutelise do Canto XI pois

neste temos claramente perfis apresentados de heroacuteis eacutepicos e traacutegicos Deste modo

Odisseu passando pela catarse vive um processo forte de aprendizagem do que natildeo deve

seguir atraveacutes do traacutegico relato de Aquiles e Agamecircmnon e do fim de Aacutejax que pode

contemplar Assim enquanto Odisseu nos representa o que devemos seguir como modelo os

relatos do Pelida e do Atrida somada agrave lamentaacutevel condiccedilatildeo de Aacutejax ilustra-nos a condiccedilatildeo

de um heroacutei traacutegico cujo exemplo devemos evitar

Ao longo desse capiacutetulo desenvolvemos trecircs toacutepicos que consideramos

importantes para uma melhor apreensatildeo do traacutegico No primeiro discorremos sobre as

relaccedilotildees e especificidades do traacutegico e da trageacutedia As diferenccedilas estabelecidas permitem-nos

compreender a pertinecircncia em estudar uma configuraccedilatildeo do traacutegico em uma epopeacuteia No

segundo toacutepico destacamos as teorizaccedilotildees de Aristoacuteteles sobre as trageacutedias gregas e a partir

delas tentamos entender o que o filoacutesofo comprende do traacutegico e dos elementos que

circundam em sua realizaccedilatildeo No terceiro foram expostas algumas explanaccedilotildees teoacutericas do

traacutegico feitas por autores diversos De modo geral toda a abordagem realizada contribuiu

para a compreensatildeo de alguns pontos que seratildeo importantes para o nosso proacuteximo capiacutetulo no

qual nos aprofundaremos na anaacutelise da tragicidade verificada no Canto XI da Odisseacuteia

89

3 TRAGICIDADE NO CANTO XI DA ODISSEacuteIA ANTICLEacuteIA AQUILES

AGAMEcircMNON AacuteJAX

31 Odisseacuteia momentos de tragicidade

Neste terceiro capiacutetulo propomos realizar a anaacutelise da tragicidade identificada ao

longo do deacutecimo primeiro livro da Odisseacuteia Para tanto dedicamos este primeiro subtoacutepico agrave

ilustraccedilatildeo de que a tragicidade a ser analisada no Canto XI natildeo eacute uma exceccedilatildeo dentro da obra

tanto que em outros cantos podem ser vistas tambeacutem situaccedilotildees com teor traacutegico E apoacutes o

desenvolvimento dos aspectos citados dedicaremos um segundo toacutepico ―Tragicidade no

Canto XI da Odisseacuteia Anticleacuteia Aquiles Agamecircmnon Aacutejax para a anaacutelise especiacutefica do

traacutegico no Canto XI principalmente a partir das circunstacircncias em que Odisseu encontra-se

com a sua matildee Anticleacuteia e seus antigos companheiros em Troacuteia Agamecircmnon Aquiles e

Aacutejax Como pode ser percebido adiantamos que o fator de parentesco e os viacutenculos de

amizade satildeo intensificadores da accedilatildeo traacutegica ocasiatildeo que seraacute analisada no proacuteximo toacutepico

Como abordamos nos dois capiacutetulos anteriores Homero aleacutem de ter nos deixado

as duas grandes epopeacuteias do Ocidente Iliacuteada e Odisseacuteia legou-nos tambeacutem as primeiras

representaccedilotildees literaacuterias do traacutegico Representaccedilotildees estas que por volta do seacuteculo V e IV aC

seratildeo o cerne das trageacutedias elaboradas por tragedioacutegrafos como Eacutesquilo Soacutefocles e Euriacutepedes

Estes satildeo bastante influenciados pelas obras homeacutericas ao ponto de desenvolverem em suas

obras situaccedilotildees jaacute prenunciadas em Homero a exemplo da Oresteacuteia de Eacutesquio e Aacutejax de

Soacutefocles

Considerado por alguns como o ―pai da trageacutedia Homero natildeo nos poupou

representaccedilotildees traacutegicas Por isso apesar de elegermos o Canto XI da Odisseacuteia como o livro

em que haacute maior intensidade nessas representaccedilotildees destacamos tambeacutem que no transcorrer

da obra outros momentos de grande teor traacutegico podem ser contemplados Com isso

objetivamos respaldar ainda mais a nossa pesquisa mostrando que a tragicidade pode ser

encontrada na Odisseacuteia em momentos distintos natildeo estando restrita a um uacutenico canto

Lesky (2006) ressalta-nos que Homero legou-nos germes do traacutegico em suas

epopeacuteias Em congruecircncia com esta afirmaccedilatildeo Sandra Luna (2005) diz ser possiacutevel a

identificaccedilatildeo de momentos traacutegicos na literatura homeacuterica Tais assertivas jaacute discutidas no

segundo capiacutetulo acabam sendo motivadoras deste nosso percurso ao longo dos versos da

90

Odisseacuteia em busca de momentos traacutegicos ou ao menos de episoacutedios que nos vislumbrem

tragicidade Sabemos que para a ocorrecircncia de uma vivecircncia do traacutegico satildeo importantes

elementos como o imerecido a ideacuteia de culpa75

pela ultrapassagem do meacutetron a compaixatildeo o

temor pois todas essas circunstacircncias propiciam o despertar da comoccedilatildeo Assim logo ao

iniacutecio da epopeacuteia no Canto I deparamo-nos com a representaccedilatildeo de um sofrimento que nos eacute

apresentado como imerecido Tal situaccedilatildeo ocorre quando Telecircmaco entre os versos 214-220

responde agrave deusa Atena transfigurada como Mentes sobre sua ascendecircncia jaacute que esta havia

perguntado se ele seria filho de Odisseu e ele responde

215 κήηεξ κέλ ηέ κέ θεζη ηνῦ ἔκκελαη αὐηὰξ ἐγώ γε

νὐθ νἶδ᾽ νὐ γάξ πώ ηηο ἑὸλ γόλνλ αὐηὸο ἀλέγλσ

ὡο δὴ ἐγώ γ᾽ ὄθεινλ κάθαξόο λύ ηεπ ἔκκελαη πἱὸο

ἀλέξνο ὃλ θηεάηεζζηλ ἑνῖο ἔπη γῆξαο ἔηεηκε

λῦλ δ᾽ ὃο ἀπνηκόηαηνο γέλεην ζλεηλ ἀλζξώπσλ

220 ηνῦ κ᾽ ἔθ θαζη γελέζζαη ἐπεὶ ζύ κε ηνῦη᾽ ἐξεείλεηο76

((Odisseacuteia I 215-220)

Minha matildee diz que fui gerado por ele mas

pelo menos eu natildeo o sei na verdade natildeo

existe algueacutem que saiba de sua sproacutepria origem

Como eu desejei ser filho de algueacutem abenccediloado

de um varatildeo que vegasse agrave velhice com suas riquezas

Agora do mais infeliz dos homens mortais

eu descendo digo-te jaacute que tu perguntas

Como podemos perceber Telecircmaco sente anguacutestia e sofre pelo desaparecimento

do pai de quem ele natildeo se lembra da fisionomia tendo em vista que era muito pequeno

quando haacute vinte anos Odisseu partira para Troacuteia A passagem citada provoca-nos o

sentimento de piedade o que nos incita a sensaccedilatildeo do traacutegico Ou seja natildeo queremos dizer

que Telecircmaco seja um personagem traacutegico e sim que possui um estado permeado por

elementos importantes para a efetivaccedilatildeo do traacutegico como o imerecimento e o suscitar da

75

O termo referido natildeo se relaciona a ideacuteia de culpa cristatilde ligada ao pecado do indiviacuteduo a algo noscivo do qual

os cristatildeos devem distanciar-se para que natildeo sejam punidos Ao utilizarmos a palavra ―culpa remetemo-nos ao

sentimento de responsabilizaccedilatildeo projetada no homem que foi resultado de accedilotildees do divino do destino de sua

desmedida ou seja resultado de uma construccedilatildeo coletiva E essa responsabilizaccedilatildeo a que nos referimos natildeo pode

ser compreendida pelo o que concebemos de ―culpa cristatilde jaacute que esta estaacute envolta com a noccedilatildeo de indiviacuteduo

culpado e que portanto deve ser punido pelos seus proacuteprios atos No processo de realizaccedilatildeo do traacutegico podemos

encontrar a culpa a responsabilizaccedilatildeo do homem por seus atos fazendo-os chegarem ao destino ou a momentos

traacutegicos Contudo sabemos que na eacutepica e nas trageacutedias gregas a accedilatildeo divina e todo um construto coletivo

impulsionam-os ao erro daiacute o distanciamento com o sentimento de culpa apregoada pelo cristianismo 76

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D13Acard3

D178 retirado agraves 2035h em 20 de dezembro de 2010

91

piedade Mesmo porque diz-nos Lesky (2006) que o sentimento traacutegico ocorre quando algo

nos afeta nos comove fazendo com que nos sintamos atingidos ―nas profundas camadas de

nosso ser77

(LESKY 2006 p33) Contudo sentimo-nos ainda mais aflitos ao sabermos que

Telecircmaco natildeo sofre apenas por natildeo se recordar do pai e saber de seu estado se vivo ou morto

mas tambeacutem por ver toda a sua heranccedila ser consumida dia a dia pelos pretendentes que

cortejam sua matildee e destroem seus bens Vejamos o que ele diz a Atena sobre sua afliccedilatildeo

uacutenica heranccedila que ele considera que o pai deixou

νὐδέ ηη θεῖλνλ ὀδπξόκελνο78

ζηελαρίδσ

νἶνλ ἐπεί λύ κνη ἄιια ζενὶ θαθὰ θήδε᾽ ἔηεπμαλ

()

ηξύρνπζη δὲ νἶθνλ

ἡ δ᾽ νὔη᾽ ἀξλεῖηαη ζηπγεξὸλ γάκνλ νὔηε ηειεπηὴλ

250 πνηῆζαη δύλαηαη ηνὶ δὲ θζηλύζνπζηλ ἔδνληεο

νἶθνλ ἐκόλ ηάρα δή κε δηαξξαίζνπζη θαὶ αὐηόλ79

(Odisseacuteia I 243-244 248-251)

Natildeo eacute soacute por este algueacutem que eu lamento mas

nesse instante sofro por mim com os males que os deuses ocasionam-me

()

A matildeo e o palaacutecio eles me consomem e

ela nem recusa o casamento abominaacutevel nem aceitar

eacute capaz de fazer assim eles acabam consumindo

meu palaacutecio e rapidamente destruiratildeo a mim mesmo

Diante de tais lamuacuterios como sabemos a narrativa prossegue e Atena aconselha-o

a partir em busca de notiacutecias do pai Nessa citaccedilatildeo percebemos que Telecircmaco natildeo se sente

apenas angustiado por sofrer pelo pai o sentimento que o toma eacute ainda mais traacutegico a dor

imerecida A partida do pai mesmo a contragosto para a Guerra de Troacuteia provoca em

Telecircmaco a anguacutestia espera do pai que ele natildeo conheceu efetivamente A guerra se encerra

mas Odisseu natildeo retorna e nenhuma notiacutecia eacute trazida sobre o paradeiro do rei de Iacutetaca soacute

77

Apesar de servir para nossa anaacutelise destacamos que a afirmaccedilatildeo de Lesky (2006) pode ser relativizada tendo

em vista que ele define o sentimento traacutegico a partir de seu caraacuteter metafiacutesico relacionado agrave recepccedilatildeo dos

espectadoresleitores 78

A utilizaccedilatildeo do particiacutepio presente ὀδσρόμενος eacute apropiada ao contexto por indicar a simultaneidade da accedilatildeo

expressa pelo verbo Assim ὀδσρόμενος indica-nos que a lamentaccedilatildeo de Telecircmaco natildeo estaacute acabada

(perfectum) nem eacute pontual (aoristo) e sim inacabada por isso Homero coerentemente utilizou um tema do

infectum 79

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D13Acard3

D230 retirado agraves 2041h em 20 de dezembro de 2010

92

comentaacuterios incertos Sua matildee Peneacutelope comeccedila entatildeo a ser cortejada por muitos homens

de Iacutetaca antigos conterracircneos de Odisseu ou de cidades vizinhas Para adiar o enlace com um

dos pretendentes ela tece pela manhatilde uma mortalha para Laertes e agrave noite quando todos

dormem destece num trabalho infindo Nesse transcorrer de tempo os servos e os bens

deixados pelo pai satildeo consumidos pelos pretendentes jaacute que estes vatildeo ao palaacutecio todos os

dias para banquetes e festejos enquanto esperam a decisatildeo da rainha Desse modo como se jaacute

natildeo bastasse natildeo ter vivido com o pai e a incerteza se ele se encontrava vivo ou morto

Telecircmaco sofre pelos bens que via sendo diluiacutedos a cada dia que se passava Desde crianccedila

sem ter cometido erro algum imerecidamente sofria males sem razatildeo E eacute esse sentimento

diante de uma dor imerecida que nos faz sentir esup1lemacroj a piedade ao mesmo tempo em que

nos faz temer passar por tal sofrimento o fomacrboj Assim sentindo compaixatildeo e temor

aproximamo-nos de um processo cataacutertico e entatildeo experimentamos o traacutegico Lembremos do

que nos diz Aristoacuteteles sobre o sentimento provocado pela imagem traacutegica

ἔλεος μὲν περὶ τὸν ἀνάξιον φόβος δὲ περὶ τὸν ὅμοιον80

(Poeacutetica XIII 1453a 5-6)

() a piedade sobre o imerecido o temor sobre o semelhante

O imerecido sentimento que acentua nossa vivecircncia do traacutegico como jaacute vimos eacute

tambeacutem representado na vida de Odisseu o polutropoj81 que em suas muitas voltas e

maneiras protagoniza no decorrer dos cantos da Odisseacuteia cenas em que sofre com seus

muitos trabalhos Natildeo eacute pois sem propoacutesito que Atena logo no Canto I reclama a Zeus os

tantos sofrimentos de Odisseu por considerar que satildeo imerecidos diferentemente dos de

Egisto que satildeo bem cabidos agraves suas accedilotildees Por isso reclama a deusa

ἱέκελνο θαὶ θαπλὸλ ἀπνζξῴζθνληα λνῆζαη

ἧο γαίεο ζαλέεηλ ἱκείξεηαη νὐδέ λπ ζνί πεξ

80

Texto disponiacutevel em httpwwwhs-

augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante04Aristotelesari_poi2html retirado agraves 2025hs de 17 de julho

de 2010 81

Esse epiacuteteto foi explicado por noacutes anteriormente no primeiro capiacutetulo desse trabalho

93

60 ἐληξέπεηαη θίινλ ἦηνξ ιύκπηε νὔ λύ η᾽ δπζζεὺο

Ἀξγείσλ παξὰ λεπζὶ ραξίδεην ἱεξὰ ῥέδσλ

Τξνίῃ ἐλ εὐξείῃ ηί λύ νἱ ηόζνλ ὠδύζαν Ζεῦ82

(Odisseacuteia I 58-62)

Contudo Odisseu fica colocando-se a pensar sobre a fumaccedila

que se solta da sua terra que anseia ou ateacute mesmo agora morrer

Oliacutempico teu coraccedilatildeo natildeo se move Odisseu natildeo era querido

Quando ao lado das naves dos Argivos agradava-te fazendo sacrifiacutecios

Na ampla Troacuteia Agora o odeias tanto por que Zeus

A deusa questiona natildeo o sofrer de um homem mas o incompreensiacutevel fato de ver

um valoroso guerreiro um heroacutei que sempre respeitou e sacrificou pelos deuses sofrer

imerecidamente Neste caso o incompreensiacutevel soma-se ao imerecido para intensificar o

traacutegico pois aquele que cumpre com seus deveres natildeo pode sofrer sem causa o que nos

sugere a sensaccedilatildeo de injusticcedila de um destino indevido Questionado Zeus responde natildeo ter

ressentimento para com Odisseu ateacute mesmo porque ele sempre foi distinguido entre os

demais e sempre ofertou aos eternos Todavia uma uAacutebrij cometida para com Polifemo o

filho de Posiacutedon fez este desejar-lhe todo mal explica Zeus

ἀιιὰ Πνζεηδάσλ γαηήνρνο ἀζθειὲο αἰεὶ

Κύθισπνο θερόισηαη83

ὃλ ὀθζαικνῦ ἀιάσζελ

70 ἀληίζενλ Πνιύθεκνλ ὅνπ θξάηνο ἐζηὶ κέγηζηνλ84

(Odisseacuteia I 68-70)

Entretanto Posiacutedon que a terra estremece cultiva para sempre

o oacutedio enfurecido por ele ter tornado cego do olho o Ciclope

O dado agora acrescentado do desagrado cometido por Odisseu a Polifemo e

consequentemente ao seu pai Posiacutedon mostra tambeacutem que os atos iacutempios satildeo

inevitavelmente punidos A desmedida a uAacutebrij cometida eacute traacutegica porque eacute necessaacuteria

sendo portanto inevitaacutevel Um exemplo dessa uAacutebrij inevitaacutevel necessaacuteria encontramos

82

Texto disponiacuteevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D13Acard3

D44 retirado agraves 2039h em 20 de novembro de 2010 83

O uso do perfectum kexolwtai de xolow ndash enfurecer sugere-nos que a accedilatildeo verbal neste caso a raiva de

Posiacutedon eacute perfeita acabada ou seja natildeo indica o processo e sim o resultado de uma accedilatildeo (MURACHO 2007)

Por isso na citaccedilatildeo acima a utilizaccedilatildeo de kexolwtai representa o ―enfurecido deus como resultado da accedilatildeo

de Odisseu ao ter furado o olho do seu filho 84

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D13Acard3

D44 retirado agraves 2040h em 20 de novembro de 2010

94

no Canto IX em que se narra a perda de Odisseu dos seus doze dos mais fortes companheiros

que satildeo comidos pelo Ciclope Polifemo Tal situaccedilatildeo faraacute com que o Laertida e os soacutecios

sobreviventes presenciem cenas horrendas e dolorosas daiacute todos se vecircem impelidos pela

necessidade de agirem contra o Ciclope Para entendermos melhor a explanaccedilatildeo vejamos

uma dessas cenas em que o Polifemo devora seus companheiros

ζὺλ δὲ δύσ κάξςαο ὥο ηε ζθύιαθαο πνηὶ γαίῃ

290 θόπη᾽ ἐθ δ᾽ ἐγθέθαινο ρακάδηο ῥέε δεῦε δὲ γαῖαλ

ηνὺο δὲ δηὰ κειετζηὶ ηακὼλ ὡπιίζζαην δόξπνλ

ἤζζηε δ᾽ ὥο ηε ιέσλ ὀξεζίηξνθνο νὐδ᾽ ἀπέιεηπελ

ἔγθαηά ηε ζάξθαο ηε θαὶ ὀζηέα κπειόεληα

ἡκεῖο δὲ θιαίνληεο ἀλεζρέζνκελ Δηὶ ρεῖξαο

295 ζρέηιηα ἔξγ᾽ ὁξόσληεο ἀκεραλίε δ᾽ ἔρε ζπκόλ85

(Odisseacuteia IX 289-295)

Tendo apreendido dois como a cachorros sobre a terra

os lanccedilou o ceacuterebro de cada um correu ao chatildeo e molhou o solo

O jantar preparou com eles tendo partido seus membros

comia como um leatildeo montanhecircs natildeo deixava sair nada

entranhas carnes e ossos com tutanos

Chorando noacutes erguemos as matildeos para Zeus

enquanto assistiacuteamos aquelas terriacuteveis obras

a impotecircncia possuiacutea nosso acircnimo

Diante do espetaacuteculo horrendo Odisseu e os demais companheiros apavoram-se

pois sabem que seratildeo as proacuteximas viacutetimas Para escapar do fim aparentemente inevitaacutevel

Odisseu com toda a sua astuacutecia o polumhtij86 resolve entatildeo ludibriar o monstro

Primeiro oferece-lhe vinho O monstro aceita e bebe ainda mais por trecircs vezes O Ciclope

pergunta o nome do heroacutei Este percebendo que o vinho jaacute havia alterado a razatildeo do

Polifemo responde Oucurrentij (IX 366) ou seja Ningueacutem O monstro avisa a Odisseu que ele

seraacute o uacuteltimo a ser comido e depois acaba dormindo O heroacutei presencia outro espetaacuteculo

horriacutevel que soacute o impulsiona mais a encontrar uma saiacuteda A asup1namacrgkh a necessidade e o

daimwn um democircnio uma forccedila divina impelem-nos a agir desmedidamente observemos

() θάξπγνο δ᾽ ἐμέζζπην νἶλνο

ςσκνί η᾽ ἀλδξόκενη ὁ δ᾽ ἐξεύγεην νἰλνβαξείσλ

85

Texto disponeacutevel em

dehttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D93Acard

3D281 retirado agraves 2045h em 20 de outubro de 2010 86

O epiacuteteto polumhtij como explicamos no capiacutetulo primeiro evoca e relaciona Odisseu aos deuses Zeus e

Atena e indica o de muita prudecircncia e sagacidade

95

375 θαὶ ηόη᾽ ἐγὼ ηὸλ κνριὸλ ὑπὸ ζπνδνῦ ἤιαζα πνιιῆο

ἧνο ζεξκαίλνηην ()

380 θαὶ ηόη᾽ ἐγὼλ ἆζζνλ θέξνλ ἐθ ππξόο ἀκθὶ δ᾽ ἑηαῖξνη

ἵζηαλη᾽ αὐηὰξ ζάξζνο ἐλέπλεπζελ κέγα δαίκσλ

νἱ κὲλ κνριὸλ ἑιόληεο ἐιάηλνλ ὀμὺλ ἐπ᾽ ἄθξῳ

ὀθζαικῶ ἐλέξεηζαλ ἐγὼ δ᾽ ἐθύπεξζελ ἐξεηζζεὶο

δίλενλ87

(Odisseacuteia IX 373-376 380-384)

() para fora da garganta colocava vinho e

pedaccedilos crus de carne dos humens arrotou embriagado

alguns E eu coloquei a vara embaixo da numerosa cinza

ateacute que queimasse ()

eu o transportava de dentro do fogo os companheiros ficaram

em ambos os lados mas um grande democircnio dotou-nos de coragem

Eles levantaram a vara afiada de madeira de oliveira

e sua ponta empurraram no olho (do Ciclope) eu tendo-me

apoiado por cima fazia (a vara) girar

A asup1namacrgkh e o daimwn impulsionam Odisseu e seus companheiros a decidirem

pela tomada de accedilatildeo independente dos resultados que ela traria pois naquele momento

tinham que fugir do monstro Constrangidos pela necessidade e pelo divino tomados pelo

temor de que aquilo viesse ocorrer com eles assim enfiam o pau de oliveira no olho do

monstro Polifemo cegando o filho de Posiacutedon Como diz-nos Vernant (2008) a accedilatildeo do

homem mesmo natildeo voluntariosa emana da necessidade Eacute o que Romilly (2008) como foi

visto no segundo capiacutetulo nomeia de ―luz traacutegica jaacute que a situaccedilatildeo ocorre ―em nome das

circunstacircncias que se impotildeem aos homens (ROMILLY 2008 p 168) Ainda segundo a

autora isso nos faz sentir piedade natildeo apenas pelas viacutetimas neste caso o Polifemo mas

tambeacutem pelos agentes Odisseu e seus companheiros pois o que sentimos na verdade eacute a

―piedade pelo homem (Ibidem p169) E esse sentimento de piedade somado ao temor que

temos de vivenciar tais fatos propiciam-nos a experiecircncia do traacutegico que pelo que vimos ateacute

entatildeo pode ser conferida em muitos momentos da Odisseacuteia

No Canto IX ainda sabemos que o Ciclope pede ajuda mas quando perguntado

sobre quem teria lhe feito mal ele responde Oucurrentij (IX 366) Ningueacutem Traiacutedo e enganado

pela astuacutecia do heroacutei polumhtij Polifemo natildeo consegue ajuda Odisseu e os demais natildeo

podem sair da caverna trancada por uma imensa pedra que soacute o monstro consegue tirar Mais

87

Texto disponiacutevem em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D93Acard3

D360 Texto retirado agraves 2010h em 15 de novembro de 2010

96

uma vez sua aliada astuacutecia lhe serve e ele resolve que todos devem amarrar-se aos carneiros

pois ao raiar o filho de Posiacutedon retiraraacute a pedra da entrada da caverna para que os carneiros

possam pastar e eles presos aos animais possam escapar Assim eles fazem Ao terem

fugido Odisseu com palavras de jactacircncia ataca o Ciclope Os companheiros amedrontados

com tudo o que viram tentam deter o heroacutei Mas nada o que fazem adianta pois Odisseu

continua desmedidamente a atacar o Ciclope apesar de jaacute estar a salvo

Κύθισς αἴ θέλ ηίο ζε θαηαζλεηλ ἀλζξώπσλ

ὀθζαικνῦ εἴξεηαη88

ἀεηθειίελ ἀιασηύλ

θάζζαη δπζζῆα πηνιηπόξζηνλ ἐμαιαζαη

505 πἱὸλ Λαέξηεσ Ἰζάθῃ ἔλη νἰθί᾽ ἔρνληα89

(Odisseacuteia IX 502- 505)

Ciclope se algum dos homens mortais vier e

perguntar a causaa de tua vergonhosa cegueira do olho

podes dizer que completamente cegou-te Odisseu o saqueador de

cidades]

o filho de Laertes que em Iacutetaca tem morada

Diante do descomedimento do heroacutei e das palavras injuriosas de vaidade e

orgulho o Polifemo implora ao seu pai vinganccedila Pede que Odisseu natildeo mais retorne ao lar

mas se o seu destino natildeo o permitir que ao menos venha a ter dificuldades perdendo os

soacutecios e atraveacutes de navio estrangeiro chegue ao seu lar e laacute venha encontrar tambeacutem muitas

afliccedilotildees

Esse breve relato que fizemos da histoacuteria eacute importante para que possamos entender

como viraacute o castigo de Odisseu por sua atitude desmedida Antes do seu encontro com o

Ciclope eacute verdade ele jaacute havia andado errante mas nada em comparaccedilatildeo com o que ele iraacute

passar tendo agora como seu perseguidor Posiacutedon Depois que Odisseu e os seus soacutecios

partiram de Troacuteia haviam passado apenas pela terra dos Ciacuteconos e Lotoacutefagos Na primeira

cidade satildeo perseguidos por terem-na saqueado Depois partindo para Iacutetaca fortes ventos e

uma corrente os fazem passar nove dias errantes ateacute que chegam ao paiacutes dos Lotoacutefagos Nesta

cidade trecircs companheiros comem as flores de loto e esquecem de querer retornar Odisseu

diante do risco traz de volta os amigos Daiacute aportam no paiacutes dos Ciclopes onde ocorre tudo

88

Omodo subjuntivo exprime a ideacuteia de uma accedilatildeo possiacutevel eventual que pode vir ocorrer no futuro

(MURACHO 2007) por isso Odisseu utilizou-se desse modo em eiAtilderhtai de eAtilderomai- perguntar questionar

Assim ele exprime o fato possiacutevel de algueacutem perguntar por isso traduzimos ―se perguntar na tentativa de

transmitir essa ideacuteia do provaacutevel 89

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D93Acard3

D500 retirado agraves1520h em 2 de novembro de 2010

97

o que anteriormente narramos o Polifemo come doze dos seus companheiros mais fortes

Odisseu e os demais cegam o monstro e partem antes poreacutem o heroacutei exclama palavras

injuriosas A partir de entatildeo eacute que Odisseu amaldiccediloado por Polifemo e perseguido por

Posiacutedon iraacute sofrer errante vagando de paiacutes em paiacutes ateacute chegar a Iacutetaca

Essa contextualizaccedilatildeo faz-se importante para que possamos compreender as

circunstacircncias traacutegicas na vida de Odisseu em contraposiccedilatildeo agraves situaccedilotildees traacutegicas e

principalmente ao destino traacutegico de seus companheiros Tais diferenccedilas entre o destino de

Odisseu e dos seus soacutecios como orienta Aristoacuteteles seratildeo determinadas pelas accedilotildees dos

personagens e natildeo pelos seus caracteres Daiacute a personagem ideal da trageacutedia ser o heroacutei que

tem o caraacuteter intermediaacuterio nem valoroso demais nem maldoso em excesso Nas passagens

acima referidas sobre Odisseu e seus companheiros na terra dos Ciclopes pudemos ver que a

tragicidade atingiu a todos Mas um fator determinante faraacute com que o destino de seus

companheiros seja desventuroso fato este que estaacute relacionado ao que eles faratildeo com as vacas

do Sol no Canto XII Contudo antes que cheguemos laacute sigamos linearmente e do Canto IX

partamos para o X

No Canto X da Odisseacuteia Odisseu e seus companheiros chegam agrave ilha de Eacuteolo

onde satildeo bem recebidos e laacute permanecem por um mecircs ateacute que o heroacutei resolve partir Para

ajudaacute-los Eacuteolo daacute ao Laertida uma sacola de couro com os ventos Deste modo eles partem

Mais uma vez o daimwn a forccedila superior age prejudicando a todos Odisseu dorme e

curiosos os companheiros abrem a sacola espalhando ventos por todos os lados De volta agrave

ilha Eacuteolo recusa-se a um novo auxiacutelio por perceber que um daimwn natildeo desejava vecirc-los

bem indicando que algo de mal eles teriam feito Assim Eacuteolo potildee todos para fora de sua

cidade jaacute que natildeo satildeo homens querido pelos deuses pelo contraacuterio satildeo odiados pelos divinos

(Odisseacuteia X 72-75)

Eacuteolo percebe logo que uma vontade divina ou seja uma accedilatildeo superior ocasionou

o mal agravequeles viajantes fazendo Odisseu adormecer e os seus companheiros serem tomados

pela curiosidade Ferozmente punidos estes personagens despertam nossa comoccedilatildeo por

percebermos que uma vontade superior empurra-os ao erro Como percebemos a situaccedilatildeo

descrita tem os elementos importantes que constituem uma vivecircncia traacutegica o imerecido

injusto o erro (aumlmartia) a accedilatildeo divina (daimwn) enfim Diante desses componentes

traacutegicos fazemos lembrar Rosenfeld ao afirmar que todo gecircnero literaacuterio de alguma forma

conteacutem os ―traccedilos estiliacutesticos mais tiacutepicos dos outros gecircneros (ROSENFELD 1985 p19)

Assim apesar de estarmos analisando uma obra de gecircnero eacutepico percebemos fortes marcas

98

que satildeo mais especificamente caracteriacutesticas da trageacutedia Pela linha de Rosenfeld (1985) a

obra em sua substacircncia possui categorias baacutesicas do gecircnero eacutepico ao passo que tambeacutem traz

o traacutegico como elemento adjetivo visto ser este uma categoria mais especiacutefica do gecircnero

dramaacutetico

Ainda no Canto X temos a narraccedilatildeo de que tendo saiacutedo da ilha de Eacuteolo Odisseu

e seus companheiros vagam por seis dias ateacute chegarem agrave terra dos Lestrigotildees em Lamo

Ancoram o barco e alguns homens que satildeo enviados para conhecerem a cidade deparam-se

com a filha do rei Esta os leva ao palaacutecio local onde um deles eacute logo feito de almoccedilo

deixando os demais apavorados Em fuga alguns ainda satildeo arrebatados e levados para serem

devorados E Odisseu resolve partir imediatamente Atraveacutes dessa narrativa percebemos a

perseguiccedilatildeo incansaacutevel que eles estatildeo sofrendo sem nem se darem conta do que fizeram para

merecerem tamanha hostilidade Nesse percurso de volta para casa a accedilatildeo desmedida que eles

cometeram principalmente contra Polifemo faz com que eles sejam punidos mesmo que

tenham sido impulsionados pela asup1namacrgkh e pelo daimwn mesmo que a accedilatildeo tenha sido

involuntaacuteria e natildeo por falha de caraacuteter Nesses casos em anaacutelise aristotelicamente a accedilatildeo eacute

que os encaminha para a cataacutestrofe como veremos especificamente com os companheiros de

Odisseu no Canto XII

Guiando a nau Odisseu e seus companheiros partem de Lamo e aportam na ilha de

Eeacuteia morada de Circe Odisseu percebe a accedilatildeo do daimwn pois esse natildeo era o destino

imaginado contudo naturalmente alcanccedilam a ilha O Laertida conclui que um dos deuses

havia servido como guia Apoacutes dois dias na embarcaccedilatildeo partem para a cidade e aproximam-

se da casa de Circe onde se viam leotildees e lobos possuiacutedos por feiticcedilo Circe canta e ao vecirc-los

chama-os para entrar oferecendo-lhes bebida e comida Todos aceitam com exceccedilatildeo de

Euriacutecolo Mais uma vez por accedilatildeo inconsequente deles proacuteprios inconscientemente satildeo

levados para o seu fim Vejamos

αὐηὰξ ἐπεὶ δθέλ ηε θαὶ ἔθπηνλ αὐηίθ᾽ ἔπεηηα

ῥάβδῳ πεπιεγπῖα θαηὰ ζπθενῖζηλ ἐέξγλπ

νἱ δὲ ζπλ κὲλ ἔρνλ θεθαιὰο θσλήλ ηε ηξίραο ηε

θαὶ δέκαο αὐηὰξ νοῦς90

ἦλ ἔκπεδνο ὡο ηὸ πάξνο πεξ91

(Odisseacuteia X 237-240)

90

Do grego nooj que significa inteligecircncia consciecircncia dicernimento Os destaques satildeo nossos 91

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D103Acard3

D208 retirado em 20 de outubro de 2010

99

(Circe) deu-lhes e eles tudo beberam entatildeo imediatamente

tendo sido tocados com a varinha ela ia confinando-os nos chiqueiros

Eles tinham de porcos as cabeccedilas o grunhir as cerdas e

tambeacutem o corpo Contudo a consciecircncia anterior estava conservada

Transformados de homem em porcos nesta citaccedilatildeo podemos identificar

humanos numa representaccedilatildeo traacutegica deparando-se com a sua proacutepria finitude e fragilidade

Por uma accedilatildeo de feiticcedilo os antes vigorosos combatentes de guerra e viajantes passam a

figurar como porcos tragicamente ainda mantendo a consciecircncia de homens - fato que

intensifica o sofrer de todos por terem consciecircncia de sua fraacutegil condiccedilatildeo Essa transmutaccedilatildeo

faz-nos visualizar as maneiras pelas quais Homero nos insere num contexto traacutegico mesmo

que este natildeo seja seu objetivo final Contudo eacute inegaacutevel que ele ―convida-nos a ponderar

gravemente sobre o traacutegico fim da existecircncia humana (LUNA 2005 p 29) Eacute-nos

importante ressaltar que essa traacutegica finitude humana natildeo deve ser visualizada apenas com a

passagem da vida para a morte pois acreditamos que essa significaccedilatildeo pode ser mais ampla

No momento em que os homens passam a figurar como porcos temos tambeacutem uma marcante

representaccedilatildeo da diluiccedilatildeo da vida humana neste caso de humanos a bichos Assim seguindo

a afirmaccedilatildeo de Sandra Luna (2005) deparamo-nos tambeacutem com a diluiccedilatildeo da vida e a traacutegica

finitude da existecircncia dos mortais

Esta figuraccedilatildeo em porcos tem um siacutembolo importante jaacute que este animal

representa de um modo geral as ―tendecircncias obscuras sob todas as suas formas da

ignoracircncia da gula da luxuacuteria e do egoiacutesmo (Chevalier Gheerbrant 2009 p 734) De

maneira mais particular no caso em que Circe transforma os companheiros de Odisseu em

porcos Jean Chevalier e Alain Gheerbrant (2009) citando Grid dizem que a deusa feiticeira

transformava os homens em animais que representavam a essecircncia e o caraacuteter dos homens

aprisionados Podemos observar entatildeo que tal mutaccedilatildeo de homens para porcos revela-nos a

essecircncia desses viajantes que por sua proacutepria ignoracircncia (daiacute o siacutembolo dos porcos) padecem

na tragicidade

No capiacutetulo anterior desenvolvemos a ideacuteia de que uma accedilatildeo traacutegica eacute ainda mais

efetiva quando o seu sujeito reconhece-se como traacutegico identificando-se e tendo plena

consciecircncia de sua condiccedilatildeo Eacute a asup1nagnwiquestrisij que intensifica a vivecircncia traacutegica natildeo

apenas para os espectadoresleitores mas principalmente por seu proacuteprio sujeito que se vecirc

natildeo mais como um homem de coragem valoroso e respeitado mas como vemos neste caso

como simples porcos Assim ao dizer-nos Vernant que ―a consciecircncia traacutegica nasce e

desenvolve-se com a trageacutedia (2008 p 9) vemo-nos impulsionados a levantar uma

100

problematizaccedilatildeo pois como nos mostram os versos em discussatildeo esses personagens

homeacutericos possuem consciecircncia de sua tragicidade Diante do grave conflito da condiccedilatildeo

humana sua fragilidade e limitaccedilatildeo Homero explicita-nos sobre os companheiros de Odisseu

apoacutes a transformaccedilatildeo de homens viris em porcos mas que ainda mantecircm sua consciecircncia de

homens (X 240) Por isso consideramos importante confrontarmos essa afirmaccedilatildeo de

Vernant (2008) com a passagem em anaacutelise jaacute que esta e as outras que estamos destacando

mostram-nos que em Homero certamente natildeo se desenvolveu a dita ―consciecircncia traacutegica

mas bem provavelmente foi com o autor da Odisseacuteia que ela nasceu mesmo que

incipientemente Esse fato vem a respaldar nossa pesquisa que propotildee identificar e analisar

na epopeacuteia homeacuterica o despontar dos elementos traacutegicos que mais tarde seriam

desenvolvidos nas trageacutedias gregas Por tudo isso concordamos com Platatildeo ao considerar

Homero como o ―prwordftoj didaskaloj twordfn tragikwordfn (Repuacuteblica X 595b) ou seja o

mestre primeiro dos traacutegicos

Na continuidade da narrativa do Canto X Euriacuteloco que desconfiado natildeo vai ateacute a

deusa presencia tudo e corre apavorado para contar a Odisseu o que sucedera Este decide ir

sozinho ajudar os demais No caminho encontra com Hermes transfigurado em um rapaz

que lhe oferece a erva de Molu para imunizaacute-lo ao feiticcedilo de Circe Aleacutem disso indica como o

heroacutei deve proceder ateacute deitar-se ao seu leito da deusa para que consiga salvar seus

companheiros Assim Odisseu o faz Deste modo consegue salvar os companheiros que antes

transformados em porcos voltam a seus corpos humanos Esse desfazer do feiticcedilo remete-nos

agrave defesa de Sandra Luna (2005) de que Homero natildeo alimenta o traacutegico pois atraveacutes de outros

elementos como por exemplo a ocorrecircncia de banquetes ele dispersa o efeito traacutegico Neste

caso vemos que a cena traacutegica eacute dissolvida pelo desfazer do feiticcedilo jaacute que certamente natildeo eacute

―traacutegico o efeito pretendido pelo poeta (LUNA 2005 p 29) Contudo esta constataccedilatildeo natildeo

invalida ou atenua o meacuterito de nossa pesquisa mesmo porque como deixamos evidente no

segundo capiacutetulo Homero foi coerente com seu propoacutesito literaacuterio de composiccedilatildeo de uma

epopeacuteia e natildeo de uma trageacutedia apesar de ter deixado para esta valoroso legado

Circe diz a Odisseu para que ele vaacute ateacute a nau para pegar seus tesouros armas e

homens Ele assim o faz A deusa diz tambeacutem para que ele esqueccedila de todas as suas dores

Odisseu segue seu conselho e permanece na ilha de Eeacuteia por um ano em festejos ateacute que seus

companheiros exortam-no a retornar ao solo paacutetrio O Laertida resolve entatildeo falar com Circe

e esta aceita sua partida inclusive adianta-lhe que antes de chegar a Iacutetaca teraacute que ir ao

Hades falar com Tireacutesias Sabendo desta revelaccedilatildeo ele se desespera

101

ὣο ἔθαη᾽ αὐηὰξ ἐκνί γε θαηεθιάζζε θίινλ ἦηνξ

θιαῖνλ δ᾽ ἐλ ιερέεζζη θαζήκελνο92

νὐδέ λύ κνη θῆξ

ἤζει᾽ ἔηη δώεηλ θαὶ ὁξᾶλ θάνο ἠειίνην93

(Odisseacuteia X 496-498)

Assim ele dizia e rompeu-me o querido coraccedilatildeo

sentou no leito agora chorava pelo meu destino

natildeo desejava viver nem ainda ver a luz do sol

Diante da revelaccedilatildeo feita por Circe o ―heroacutei mais ceacutelebre de toda a antiguidade

(GRIMAL 2005 p 458) angustia-se por saber que para cumprir seus objetivos ndash de retorno

ao lar - ainda teraacute que passar por obstaacuteculos maiores Ir ateacute o Hades e depois voltar era uma

tarefa que poucos cumpriram Heacuteracles Orfeu Teseu e Piriacutetoo O tamanho desse desafio

desespera o heroacutei Desse modo Homero acaba por nos ―Apresentar o sentimento da vida

inspirar terror e piedade obrigar a partilhar um sofrimento ou uma ansiedade ndash a epopeacuteia

fizera-o sempre e ensinou os tragedioacutegrafos a fazecirc-lo (ROMILLY 2008 p 22) Assim

Odisseu espera o amanhecer do novo dia para contar a nova empreitada aos companheiros

Estes ficam ainda mais desesperados pensam natildeo suportar mais tantos trabalhos por isso

com o coraccedilatildeo partido eles sentam gemem aos prantos chegando a arrancar os cabelos da

frente (Odisseacuteia X 566-567)

Apoacutes toda a anguacutestia ao terem conhecimento da missatildeo de ir ao Hades Odisseu e

os demais partem para a empreitada Eles foram sabendo que apoacutes retornarem do Hades

deveriam retornar a ilha de Circe para que ela pudesse informa-lhes dos proacuteximos

acontecimentos dando-lhe as novas coordenadas Essa circunstacircncia lembra-nos o capiacutetulo

anterior em que discutimos a caracterizaccedilatildeo do heroacutei seja na epopeacuteia eou na trageacutedia e

observamos que uma relevante diferenccedila eacute a de que ―No novo quadro do jogo traacutegico

portanto o heroacutei deixou de ser um modelo tornou-se para si mesmo e para os outros um

problema (VERNANT 2008 p 2) Observemos que apesar de natildeo estarmos falando de

uma trageacutedia grega especificamente a cena citada possibilita-nos enxergar a alusatildeo de um

heroacutei no caso Odisseu figurado como um problema natildeo apenas para si mas tambeacutem para os

outros Seus companheiros embarcam nas suas mesmas empreitadas e acabam sofrendo por

uma perseguiccedilatildeo que Posiacutedon realiza especificamente contra o heroacutei de Iacutetaca Vejamos que

92

O uso do particiacutepio perfeito kaqhmenoj de kaqhmai ndash sentar indica a noccedilatildeo do aspecto acabado

concluiacutedo (MURACHO 2007) por isso a traduccedilatildeo ―sentou exprimindo o ato perfeito terminado 93

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D103Acard3

D475 retirado agraves 1630h em 18 de outubro de 2010

102

apesar de ter ocorrido uma accedilatildeo conjunta contra o Polifemo o grande mentor foi Odisseu

Aleacutem do mais este ao ter fugido ainda lanccedilou palavras injuriosas levando o Ciclope a

implorar a Posiacutedon que o pai de Telecircmaco fosse impedido de voltar agrave paacutetria ou no miacutenimo

ter seu retorno dificultado Como sabemos o deus concede ao filho o pedido e a partir daiacute

dificulta ainda mais o caminho de volta de Odisseu fato este que logo torna-se um

problema tambeacutem para os seus companheiros

No Canto XI Odisseu realiza o grande feito de ir agraves proximidades do Hades e

retornar para a terra Como jaacute adiantamos ao longo deste trabalho muitos satildeo os elementos

traacutegicos a serem analisados contudo por este ser o objetivo central do nosso trabalho

escolhido para anaacutelise deixaremos seu desenvolver para o toacutepico subsequente Partamos

entatildeo para o estudo do proacuteximo canto

Tendo retornado do Hades Odisseu e os demais vatildeo ateacute Circe Esta reforccedila os

apontamentos jaacute feitos por Tireacutesias e indica ao seu heroacutei predileto os outros tantos desafios

que teraacute de enfrentar e como deveraacute proceder para conseguir escapar Ela fala das Sereias de

Cila Cariacutebdes e da fome na ilha do Sol que enfrentaratildeo mas que deveratildeo resistir natildeo

alimentando-se de suas belas vacas para que natildeo venham padecer Odisseu minuciosamente

conta tudo aos companheiros antes de partirem e logo iniciam a jornada

Passando pelas Sereias Odisseu seguindo as orientaccedilotildees de Circe potildee cera nos

ouvidos dos viajantes enquanto estes o amarram Continuando a remar todos se apavoram ao

enxergarem uma grande neacutevoa e teriam deixado os remos se natildeo fosse Odisseu enchecirc-los de

acircnimo e confianccedila Deparam-se entatildeo com uma cena horripilante Cariacutebdes ao lado de Cila

chupava a aacutegua do mar terrivelmente e depois expelia com grande barulho metendo medo em

todos Mas Odisseu e os seus ainda vatildeo deparar-se com uma cena mais forte descrita pelo

heroacutei como a mais terriacutevel de todas que jaacute viu Nela Cila arranca da nave seis dos

companheiros engolindo-os Vejamos

αὐηνῦ δ᾽ εἰλὶ ζύξῃζη θαηήζζηε94

θεθιεγηαο

ρεῖξαο ἐκνὶ ὀξέγνληαο ἐλ αἰλῇ δεηνηῆηη

νἴθηηζηνλ δὴ θεῖλν ἐκνῖο ἴδνλ ὀθζαικνῖζη

πάλησλ ὅζζ᾽ ἐκόγεζα πόξνπο ἁιὸο ἐμεξεείλσλ95

(Odisseacuteia XII 256-259)

94

Tratando-se de uma forma verbal do imperfeito kathsqie de kathsqiw ndash devorar comer exprime a accedilatildeo

inacabada natildeo concluiacuteda (MURACHO 2007) Essa forma linguumliacutestica acentua ainda mais a tragicidade da cena

citada jaacute que Odisseu e seus companheiros acompanham a accedilatildeo em processo de Cila comer alguns de seus

soacutecios 95

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D123Acard3

D234 retirado agraves 2014h em 18 de outubro de 2010

103

Na proacutepria entrada (da caverna) ela os comia eles gritaram

estendendo aos matildeos para mim numa terriacutevel batalha

Aquilo foi a cena mais lamentaacutevel para meus olhos que eu vi

De todas as outras grandes que sofri explorando as passagens do mar

A fragilidade e a efemeridade humana potildeem-se diante dos olhos daqueles homens

que muitas coisas terriacuteveis jaacute haviam presenciado O traacutegico observado nessa passagem estaacute

representado atraveacutes da aterrorizante fraqueza e finitude inerente agrave condiccedilatildeo humana visto

que fortes guerreiros todos vencedores na grande guerra de Troacuteia num segundo enxergam-se

como pequenas presas na boca de um feroz predador Assim verificamos a respeito do heroacutei

eacutepico que para ―aleacutem de todas as honras das quais venha a desfrutar a tragicidade estaraacute

sempre suspensa sobre sua cabeccedila (LUNA 2005 p 31) pois ―Apesar de sua caracteriacutestica

sobre-humana sabe-se que o heroacutei haveraacute um dia de ser igualado aos seus os mortais

(Ibidem) Assim o heroacutei traacutegico96

deparando-se com sua fragilidade e efemeridade comum a

todos os mortais luta contra a accedilatildeo das divindades e contra as leis da natureza E satildeo essas

forccedilas sobre-humanas contra as quais sua condiccedilatildeo humana natildeo o permite combater que o

levam ao traacutegico

Aleacutem disso a cena traacutegica realizada perante os olhos dos sobreviventes faz o fomacrboj

(o medo que faz fugir) apoderar-se de todos tementes de que viessem tambeacutem a figurar nessa

grande encenaccedilatildeo dramaacutetica como presas Mas tambeacutem a esup1leoj (a compaixatildeo) acarreta a

todos ao verem aqueles seis companheiros que haacute tanto tempo juntos lutavam pela

sobrevivecircncia e pelo retorno falecerem drasticamente e sem honra alguma A uniatildeo dos

sentimentos proporcionados pelo fomacrboj e pela esup1leoj proporciona aos viajantes passarem

pelo processo cartaacutetico de purificaccedilatildeo pois como nos elucida Aristoacuteteles (Poeacutetica VI

1449b) a kaqarsij soacute pode ser atingida quando fomacrboj e esup1leoj satildeo suscitados

No transcorrer da narrativa Odisseu e os seus soacutecios saem da tenebrosa passagem

entre Cila e Cariacutebde e aportam na ilha do Sol A fim de evitar o grande mal prenunciado

Odisseu sugere afastarem-se da ilha pois bem lembra dos avisos de Tireacutesias e Circe a respeito

dos sofrimentos que passariam e da necessidade que tinham para o proacuteprio bem de deixarem

ilesas as vacas do sol Os demais retrucam e Euriacutecolo como porta-voz acusa Odisseu de

crueldade jaacute que apoacutes tantos enfrentamentos estavam todos muito cansados Sem o apoio

96

Nesse aspecto podemos destacar uma antonomia do heroacutei claacutessico com o heroacutei moderno pois enquanto o

primeiro luta contra forccedilas sobre-humanas deuses e natureza o heroacutei moderno tem seu conflito realizado no

embate contra as forccedilas sociais

104

dos soacutecios restou a Odisseu ficar Todavia o polumhtij percebe que a forccedila superior tenta

arruinaacute-los (XII 295-296) Odisseu jaacute havia avisado a todos em Eeacuteia do perigo que poderiam

enfrentar e ainda faz o mesmo ao chegarem agrave ilha do Sol Mas os companheiros

demonstravam natildeo ter ideacuteia do mal que estava por vir por isso o heroacutei impotildee a todos um

juramento O Laertida faz todos jurarem que por nada viriam a comer vacas ou ovelhas

divinas pois deveriam saciar-se apenas com as iguarias dadas por Circe Assim realizam o

juramento por isso diz Odisseu ―ὣο ἐθάκελ νἱ δ᾽ αὐηίθ᾽ ἀπώκλπνλ ὡο ἐθέιεπνλ97

ou seja

―Como eu dizia imediatamente eles juraram como eu recomendava(Odisseacuteia XII 303)

Assim conforme o filho de Laertes propocircs o juramento todos fizeram E logo

apoacutes terem selado o acordo com o juramento todos observam a tempestade que surge

mandada por Zeus Astuto Odisseu compreende o sinal enviado pela divindade e avisa mais

uma vez para que poupem as vacas do Sol para que nenhuma desgraccedila venha ocorrer a eles

Como podemos perceber atraveacutes do juramento e dos avisos o esposo de Peneacutelope teme que

um mal ainda pior venha acontecer pois naturalmente se algum mal vier acarretar seus

companheiros acarretaraacute tambeacutem em males para o proacuteprio heroacutei Por meio das ressalvas e do

juramento Odisseu tenta evitar que seus soacutecios cometam a uAgravebrij e que esta venha como um

miasmoj contaminar a todos os integrantes da nau ou no miacutenimo fazer com que sejam

perdido mais companheiros Ateacute porque a cada soacutecio perdido a jornada de Odisseu torna-se

ainda mais dolorosa tendo que tudo enfrentar sozinho - e esta eacute a justificativa para o seu

temor

Amedrontado pela uAgravebrij que seus soacutecios podem cometer Odisseu avia-os por trecircs

vezes aleacutem do juramento que orienta-os a fazer satildeo eles ainda na Ilha de Circe em Eeacuteia

depois logo ao chegarem na ilha do Sol avisa e pede-lhes o juramento e por uacuteltimo recorda-

os novamente do perigo apoacutes a tempestade lanccedilada por Zeus Apesar de todos os avisos e do

juramento estabelecido os companheiros de Odisseu natildeo suportam e jaacute tendo passado-se um

mecircs da estada na ilha do Sol falta-lhes comida Como vemos a asup1namacrgkh a necessidade

impele-os e entatildeo decidem ir procurar alimento Odisseu percebe o perigo aproximar-se e

ora mas natildeo adianta pois o daimwn age pondo-lhe em sono profundo Euriacutecolo aproveita a

ausecircncia do Laertida e discursa aos demais que morrer de fome eacute pior que morrer navegando

e sugere que faccedilam os sacrifiacutecios e devorem as vacas Diante desse discurso de Euriacuteloco

97

Texto disponiacutevel em

dehttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D13Acard

3D1 retirado agraves 0803h em 20 de outubro de 2010

105

todos manifestam estar de acordo e devoram as vacas ou seja cometem a uAgravebrij a

desmedida para com um ser divino o Hiperiocircnio Apoacutes a accedilatildeo consumada que os levaraacute ao

traacutegico Odisseu acorda e desespera-se ao perceber que havia dormido e que portanto natildeo

tinha podido controlar seus companheiros a natildeo comerem as vacas O heroacutei queixa-se com

Zeus e com os demais deuses considerando que foi para o seu mal que eles mandaram-lhe o

sono proporcionando que em sua ausacircncia os soacutecios pudessem ter cometido um terriacutevel

crime contra os deuses (Odisseacuteia XII 370-372) Essa conclusatildeo que chega Odisseu ao

acordar demonstra sua percepccedilatildeo da accedilatildeo superior do daimwn como responsaacutevel por todo o

mal que decorreria daquela accedilatildeo para o heroacutei e para os seus companheiros

A percepccedilatildeo do filho de Anticleacuteia estaacute correta ele percebe que o traacutegico aproxima-se

como resultado de uma uAgravebrij feita pelos seus soacutecios mas que foi impulsionada pelas forccedilas

superiores da asup1namacrgkh e do daimwn daiacute decorre o teor traacutegico dessa situaccedilatildeo Na

continuaccedilatildeo da narrativa o Sol recebe a notiacutecia do fim de suas vacas e implora a Zeus e aos

demais poderosos que todos os companheiros do filho de Laertes sejam punidos e ameaccedila de

que se seu desejo natildeo for atendido iraacute ao Hades para conduzir a luz aos mortos Defrontado

com o pedido divino e com a ameaccedila de acabar com a ordem do universo Zeus sinaliza

atender o pedido do Hiperiocircnio A fim de evitar o fim traacutegico que havia previsto o Laertida

tenta inultilmente recompor as vacas mas as carnes mortas gemem e movem-se Nesta cena

em que Odisseu luta contra a accedilatildeo traacutegica tentanto recompor o mal jaacute feito percebemos que a

inutilidade de sua accedilatildeo nos propicia um outro entendimento do traacutegico que eacute a

impossibilidade humana de desfazer o mal de voltar atraacutes Isso porque a accedilatildeo traacutegica eacute

fechada e natildeo se pode alterar sua jornada ou seja uma vez definida pelos deuses o traacutegico

natildeo mais pode ser evitado pelos mortais que natildeo possuem forccedilas para defrontar-se com a

determinaccedilatildeo divina Eacute por isso que apoacutes comerem as vacas por seis dias no seacutetimo com o

bom vento Odisseu e os demais partem e Zeus lanccedila um raio que lanccedila todos os soacutecios da

nau O traacutegico apanha os companheiros de Odisseu mas tambeacutem o contamina (miasmoj)

por isso ele fica sozinho a navegar

Podemos ver que apesar de todos os avisos os companheiros deixam-se levar

pela fragilidade humana ao contraacuterio de Odisseu que com sua coragem e astuacutecia heroacuteica

aleacutem da proteccedilatildeo divina consegue suportar a fome e tantos outros trabalhos que lhe foram

reservados a fim de que possa conseguir a gloacuteria domeacutestica Nesse momento da narrativa

fica-nos clara a diferenccedila do destino de Odisseu em relaccedilatildeo ao dos seus companheiros

Aristotelicamente falando o destino desventuroso destes foi ocasionado pelas suas proacuteprias

106

accedilotildees e natildeo pelos seus caracteres E isso estaacute anunciado desde os primeiros versos da

Odisseacuteia quando o cantor diz que Odisseu natildeo conseguiu salvar seus soacutecios natildeo por sua

culpa jaacute que seus soacutecios vieram a padecer pelas proacuteprias accedilotildees insensatas (Odisseacuteia I 7) A

partir dessa anaacutelise compreendemos bem a aumlmartia aristoteacutelica teorizada no nosso

segundo capiacutetulo que enfatiza o erro como fruto de uma accedilatildeo natildeo da falta de caraacuteter e eacute esse

erro que os leva agrave cataacutestrofe Vejamos o que diz Aristoacuteteles sobre a aumlmartia

ἁμαρτίαν τινά ηῶλ ἐλ κεγάιῃ δόμῃ ὄλησλ θαὶ εὐηπρίᾳ νἷνλ Οἰδίπνπο

θαὶ Θπέζηεο θαὶ νἱ ἐθ ηῶλ ηνηνύησλ γελῶλ ἐπηθαλεῖο ἄλδξεο () ἐμ

εὐηπρίαο εἰο δπζηπρίαλ κὴ δηὰ κνρζεξίαλ ἀιιὰ δη᾽ ἁμαρτίαν μεγάλην ἢ

νἵνπ εἴξεηαη ἢ βειηίνλνο κᾶιινλ ἢ ρείξνλνο98 (Poeacutetica XIII 1453 a 10-

1215-17)

() algum erro daqueles de grande gloacuteria e boa fortuna como o de Eacutedipo e

Tiestes tambeacutem por homens ilustres de famiacutelias tais () a partir da fortuna

para o infortuacutenio natildeo por maldade mas atraveacutes de um grande erro ou como

o que foi dito ou de um (erro) melhor ou ainda pior

Assim como acreditamos ter ficado bem explicitado um dos argumentos que

justificam a diferenccedila entre o destino de Odisseu e dos seus soacutecios levando estes para

cataacutetrofe estaacute na aumlmartia e no descomedimento (uAacutebrij) cometido por eles no momento em

que desrespeitando todos os avisos e ateacute mesmo os proacuteprios juramentos comem as vacas da

divindade Ressaltemos que essa aumlmartia a accedilatildeo errocircnea eacute cometida natildeo por maldade

eou falta de caraacuteter mas pela forccedila da necessidade (asup1namacrgkh) e pelo impulso superior do

daimacrmwn Lembremos que eles jaacute estavam na ilha haacute um mecircs e a comida tinha acabado por

completo (asup1namacrgkh) e que Odisseu desde que chega na ilha constatou a accedilatildeo do daimacrmwn

duas vezes A primeira foi logo quando ele chegou e seus companheiros quiseram descansar

na ilha (XII 296) e a outra ao acordar e perceber que havia sido tomado por um sono

profundo natildeo podendo impedir os companheiros de cometerem a aumlmartia (XII 370-372)

No traacutegico o personagem de sua accedilatildeo muitas vezes natildeo eacute apresentado como

responsaacutevel ou inocente logo esse ―protagonista traacutegico funde a mimesis dupla de ―culpado

e inocente pois eacute o proacuteprio responsaacutevel por seus males ao mesmo tempo em que eacute tambeacutem

sua maior viacutetima Lembremos ―que sofram uma sorte querida pelos deuses que paguem pelos

98

Os destaques satildeo nossos Texto disponiacutevel em httpwwwhs-

augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante04Aristotelesari_poi2html agraves 2035hs de 17 de julho de

2010

107

erros dos antepassados ou que paguem por sua proacutepria imprudecircncia haacute sempre neles uma

parte de inocecircncia (ROMILLY 2008 p 175) Isso eacute bem ilustrado com a situaccedilatildeo dos

companheiros de Odisseu jaacute que ao comeram as vacas do Sol fazem-nos perceber certa

inocecircncia pois foram levados pela sua fragilidade humana neste caso bem simbolizada pela

fome E esse choque de papeacuteis leva-nos a sentir piedade e temor como tambeacutem de termos

empatia para com eles Por isso para Romilly (2008) a accedilatildeo do heroacutei mesmo numa tentativa

boa ou maacute volta-se contra ele mesmo daiacute decorre sua defesa de haver sempre uma inocecircncia

no personagem traacutegico alimentando mesmo na queda o seu heroiacutesmo

Para entendermos ainda mais essa accedilatildeo traacutegica que inclusive diferencia os

destinos acima referidos recordemos que no capiacutetulo anterior expusemos a chamada ―dupla

causalidade traacutegica defendida por Romilly (2008) Dupla causalidade esta que apesar de

alicerccedilar as trageacutedias jaacute estava ―presente em Homero (Romilly 2008 p 172) Nessa ―dupla

causalidade o traacutegico decorre pelas accedilotildees dos proacuteprios personagens ou pela accedilatildeo do daacuteimon

daimacrmwn ou ainda mais elas podem coexistir sem se anularem e sem nenhuma contradiccedilatildeo

Essa accedilatildeo da ―dupla causalidade adequa-se perfeitamente agrave circunstacircncia das Vacas do Sol

pois nela observamos tanto a accedilatildeo superior do daimacrmwn como tambeacutem o traacutegico decorrendo

da proacutepria accedilatildeo humana a aumlmartia A primeira pode ser exemplificada quando Odisseu

logo percebe sua accedilatildeo convencendo-se de que um daimacrmwn tentava arruinaacute-los (XII 296) Jaacute a

segunda a aumlmartia exemplificamos a partir da descomedida atitude que os soacutecios de

Odisseu fizeram ao comer as vacas do Sol apesar dos avisos de Tireacutesias e Circe repassados

por Odisseu e do juramento realizado

Assim levados pela ―dupla causalidade traacutegica todos os companheiros padecem e

Odisseu navega sozinho durante nove dias ateacute que no deacutecimo chega agrave Ogiacutegia na ilha de

Calipso Como sabemos todas essas erracircncias de Odisseu estatildeo sendo narradas aos Feaacutecios

que tudo ouvem atentamente E pelo fato de a narrativa natildeo ser linear essa estada do heroacutei

em Ogiacutegia remete-nos ao Canto I e dura ateacute o V quando ele numa balsa feita a proacuteprio

punho parte de laacute para a Feaacutecia Contudo eacute mais precisamente no Canto V que temos a

narraccedilatildeo das lamuacuterias de Odisseu durante essa estadia com Calipso jaacute que seu anseio eacute o

mesmo de sempre retornar ao lar Intercedendo por seu protegido Atena jaacute havia desde o

Canto I cobrado de Zeus permitir que a vontade do heroacutei fosse atendida

Eacute por isso que no Canto V Hermes enviado por Zeus vai falar com Calipso para

que ela permita ao pai de Telecircmaco partir O mensageiro comparando-o com os demais

heroacuteis que combateram em Troacuteia define-o como o heroacutei mais sofrido (V 105) Hermes

108

reforccedila ainda que apesar de todo o sofrimento pelo qual Odisseu passou o seu destino exige

seu retorno por isso mesmo indignada Calipso permite o retorno do esposo de Peneacutelope

ajudando-o ainda com bons conselhos Hermes entatildeo parte e a deusa vai ao heroacutei contar-lhe

o ocorrido poreacutem encontra-o na praia aos prantos Leiamos

ηὸλ δ᾽ ἄξ᾽ ἐπ᾽ ἀθηῆο εὗξε θαζήκελνλ νὐδέ πνη᾽ ὄζζε

δαθξπόθηλ ηέξζνλην θαηείβεην δὲ γιπθὺο αἰὼλ

λόζηνλ ὀδπξνκέλῳ ἐπεὶ νὐθέηη ἥλδαλε λύκθε

() πόληνλ ἐπ᾽ ἀηξύγεηνλ δεξθέζθεην δάθξπα ιείβσλ

99

(OdisseacuteiaV 151-153 158)

Ela o encontrou sentado na margem em um

rumor de laacutegrimas ele derramava a doce vida

lamentando o retorno jaacute que a ninfa natildeo mais o agradava

()

Olhava fixo para o alto mar infecundo derramando laacutegrimas

Atraveacutes da citaccedilatildeo percebemos os sofrimentos que Odisseu sente apesar de poder

desfrutar do leito de uma deusa todos os dias bem como da eternidade Descontente o heroacutei

ansiava apenas o seu retorno Assim perante tantas dores a deusa avisa-lhe para partir jaacute que

eacute o seu desejo e orienta-o a construir uma jangada para sozinho atravessar o oceano

Odisseu desconfia e estremecido pelo medo pergunta se natildeo eacute nenhuma armadilha ela dizer-

lhe para atravessar o infindo oceano numa jangada Ele sabe que ―o homem sempre corre o

risco de cair na armadilha de suas proacuteprias decisotildees (VERNANT 2008 p 21) Por isso

Odisseu faz a deusa jurar que tem boa intenccedilatildeo e ela o faz pela Terra pelo Ceacuteu e pelo Estige

este que eacute o grande juramento o Mega oAgraverkoj100

Apoacutes ter a deusa realizado o grande juramento Odisseu parte de Ogiacutegia e navega

na pequena jangada por dezessete dias ateacute o momento em que Posiacutedon voltando do paiacutes dos

Etiacuteopes enxerga-o e fica indignado Como vemos o deus natildeo esquece a uAacutebrij cometida por

Odisseu contra seu filho o Ciclope Polifemo por isso uma nova situaccedilatildeo traacutegica seraacute

vivenciada pelo heroacutei Pois ao ver que Odisseu seguia rumo a concretizaccedilatildeo do retorno a

Iacutetaca o deus suscita uma tempestade faz surgir os ventos as nuvens cinzentas a Noite entatildeo

99

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D53Acard3

D262 retirado agraves 1730h em 20 de outubro de 2010 100

Era atraveacutes do Estige que o juramento sagrado dos deuses era realizado Esse Mega oAgraverkoj pode ser melhor

compreendido por meio da Teogonia (2009) entre os versos 386 e 401

109

Euro e Noto chocam-se Zeacutefiro e Boacutereas agem Odisseu estremece e lastima-se mais uma

experiecircncia traacutegica

ὤ κνη ἐγὼ δεηιόο ηί λύ κνη κήθηζηα γέλεηαη

()

ηξὶο κάθαξεο Δαλανὶ θαὶ ηεηξάθηο νἳ ηόη᾽ ὄινλην

Τξνίῃ ἐλ εὐξείῃ ράξηλ Ἀηξεΐδῃζη θέξνληεο

ὡο δὴ ἐγώ γ᾽ ὄθεινλ ζαλέεηλ θαὶ πόηκνλ ἐπηζπεῖλ

() ηῶ θ᾽ ἔιαρνλ θηεξέσλ θαί κεπ θιένο ἦγνλ Ἀραηνί

λῦλ δέ ιεπγαιέῳ ζαλάηῳ εἵκαξην ἁιλαη101

(Odisseacuteia V 299 306-308311-312)

Como eu sou fraco Agora o que me viraacute de pior

()

Trecircs e quatro vezes abenccediloados os Dacircnaos que morreram

na ampla Troacuteia suportando por causa dos Atridas

De qualquer forma eu preferiria seguir o destino e ali morrer

()

Eu obteria honras fuacutenebres e os Acaios divulgariam a minha gloacuteria

Agora sou capturado pelo destino para a morte miseraacutevel

Como vimos no paraacutegrafo anterior Odisseu havia desconfiado da permissatildeo de

Circe de que ele iria ao seu lar retornar Contudo nessa citaccedilatildeo vemos que o heroacutei entra em

conflito com a decisatildeo que ele mesmo havia tomado de sozinho numa jangada atravessar o

oceano Esse conflito gerado por uma escolha imposta ao heroacutei faz-nos recordar Jean-Pierre

Vernant em Mito e trageacutedia na Greacutecia Antiga (2008) de que na trageacutedia o heroacutei vecirc-se

obrigado a tomar uma decisatildeo mesmo diante de um entorno natildeo propiacutecio num mundo

ambiacuteguo e instaacutevel Exemplificando essa consideraccedilatildeo observemos que Odisseu vecirc-se

obrigado a aceitar a proposta de Calipso mesmo porque tudo o que ele fez e sofreu foi para

poder voltar para casa Mas por outro lado essa decisatildeo eacute conflituosa pois seu entorno natildeo eacute

dos melhores pelo contraacuterio teve que aceitar a proposta quase impossiacutevel de numa jangada

partir para atravessar o oceano infinito Para Vernant (2008) eacute esta tomada de decisatildeo muitas

vezes traiccediloeira que aflige o heroacutei tornando-o susceptiacutevel a sua transformaccedilatildeo em sujeito

traacutegico Isso seria a base da trageacutedia pois aquele heroacutei que normalmente na eacutepica tem seu

vigor exaltado e glorificado vecirc-se na trageacutedia como um fraacutegil homem viacutetima de suas

decisotildees cheio de limitaccedilotildees e assombrado pela finitude da vida

101

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D53Acard3

D262 retirado agraves 2032h em 25 de outubro de 2011

110

Entre os versos 299-303 306-312 do Canto V deparamo-nos com essa situaccedilatildeo

tiacutepica da trageacutedia uma vez que Odisseu arrepende-se de sua decisatildeo dizendo inclusive

preferir ter morrido em batalha a vir a padecer em alto mar sem nenhuma honraria nenhuma

fama102

Assombrado pela morte que jaacute vislumbrava a sua frente desespera-se ao ver que iria

perecer miseraacutevel e na escuridatildeo (V 312) Podemos dizer entatildeo que nos versos referidos

temos os dois poacutelos nos quais segundo Vernant (2008) a accedilatildeo traacutegica divide-se a

deliberaccedilatildeo e a consideraccedilatildeo do incompreensiacutevel de forccedilas superiores que prepararam a sorte

seja de sucesso seja de derrota Portanto encontramos na eacutepica homeacuterica um aspecto traacutegico

comum nas trageacutedias o que para Vernant (2008) relaciona-se agrave accedilatildeo que pressupotildee uma

escolha conflituosa

Haviacuteamos dito que por causa da falta de lineariade da narrativa iriacuteamos retomar o

canto V em que melhor eacute descrita a passagem de Odisseu na caverna de Calipso e como se

deu sua jornada ateacute chegar aos Feaacutecios Esta chegada ocorre no Canto VI quando ele seraacute

auxiliado por intermeacutedio de Atena por Nausiacutecaa a filha do rei dos Feaacutecios Alciacutenoo No

Canto VII o heroacutei chega ao palaacutecio e lanccedila-se sobre os peacutes da rainha Arete pedindo-lhe para

enviaacute-lo para casa e o Alciacutenoo concorda Odisseu entatildeo conta-lhes como ali chegou desde a

ilha de Calipso seu naufraacutegio e a ajuda de Nausiacutecaa na Feaacutecia concedendo-lhe roupas No

Canto VIII Odisseu eacute recepcionado pelos Feaacutecios numa assembleacuteia em que decidem a

preparaccedilatildeo do retorno do estrangeiro Depois realizam disputas nos jogos ateacute que Demoacutedoco

comeccedila a cantar sobre o adulteacuterio de Ares e Afrodite e depois sobre o Cavalo de madeira

idealizado por Odisseu para adentrarem na cidade troiana O filho de Laertes natildeo se conteacutem e

chora levando o rei Alciacutenoo a perguntar-lhe o porquecirc do choro incontido e qual a sua origem

A partir daiacute no Canto IX comeccedilam as narrativas de Odisseu sobre todas as suas erracircncias103

102

Essa fala de Odisseu remete-nos a visatildeo de bela morte tatildeo estimada pelos gregos antigos e desenvolvida por

Vernant (1989) em Lrsquoindividu la mort lrsquoamour Nesta obra Vernant exemplifica atraveacutes do Canto XXII da

Iliacuteada o significado da bela morte para os gregos sua importacircncia e o desejo que os heroacuteis tinham de padecer

belamente em campo de batalha Para os valorosos heroacuteis essa morte conservaria-lhes a honra a nobreza a

distinccedilatildeo guerreira por isso era tatildeo almejada A bela morte buscada por Heitor no Canto XXII da Iliacuteada apesar

deste saber que sua morte estaacute proacutexima demonstra-nos que soacute a bela morte pode dar-lhe a gloacuteria impereciacutevel

conservando para sempre seu brilho guerreiro Assim na referida passagem da Odisseacuteia o filho de Laertes diz

preferir ter tido a bela morte combatendo em Troacuteia a padecer em alto mar Isso porque a bela morte conservaria

sua honra sua gloacuteria e seu nome para toda eternidade jaacute a morte no imenso mar ao contraacuterio faria com que ele

morresse esquecido sem honra sem fama E eacute desse morte fatalmente traacutegica que Odisseu luta para escapar

103

Assim Odisseu fala no Canto IX de suas erracircncias na terra dos Ciacuteconos dos Lotoacutefagos ateacute encontrar a dos

Ciclopes Depois no X fala de Eacuteolo Lestrigotildees e Circe No XI sobre a consulta com Tireacuterias no Hades No XII

sobre as Sereias Cila Caribde e os bois do Sol Essa siacutentese eacute importante para que natildeo nos percamos na

narrativa nem muito menos no nosso percurso de anaacutelise que naturalmente acaba tendo como necessaacuterias as

indas e voltas ao longo da Odisseacuteia por sua estrutura natildeo linear

111

Retomemos a anaacutelise do Canto XII quando Odisseu narra aos Feaacutecios a estada

com Calipso e sua partida Partida esta na qual por obra de Posiacutedon tornou-se um naacuteufrago e

foi ajudado por Leucoteacuteia que lhe entrega o seu veacuteu imortal Este veacuteu como ela o orientou

foi amarrado ao peito para que a Morte natildeo viesse pegaacute-lo ateacute que chegasse a terra firme

neste caso a dos Feaacutecios Ainda no Canto XII o cantor Odisseu termina sua narraccedilatildeo e

iniciam-se os preparativos para seu retorno Os cantos subsequentes ao XII mostram o

desenrolar do destino de Odisseu rumo a sua gloacuteria domeacutestica Eacute assim que no Canto XIII

finalmente o nosso heroacutei polutropoj apoacutes tantas voltas retorna a Iacutetaca Como os

proacuteximos cantos mostram o desenrolar e os preparativos para a vinganccedila dos pretendentes

saltaremos nossa anaacutelise para o Canto XXII Neste o filho de Laertes apoacutes ter planejado sua

vinganccedila apresenta-se para os pretendentes (XXII 35-41) fato marcante que levaraacute agrave chacina

dos mesmos sendo punidos por todo empreendimento que fizeram contra o heroacutei e sua

famiacutelia O Laertida diz a eles que ao arruinarem seus bens violentarem suas servas e

pretenderem sua esposa eles natildeo tiveram medo dos deuses nem da vinganccedila dos homens E

logo apoacutes sua apresentaccedilatildeo Odisseu inicia a matanccedila com a ajuda do seu filho e de alguns

servos

Na ocasiatildeo da chacina dos pretendentes temos marcadamente a ideacuteia de castigo

natildeo sendo nenhum deles poupado de suas accedilotildees apesar da estirpe e de suas nobres famiacutelias

Por isso viratildeo todos os pretendentes sobrerbos padecer pelas matildeos de Odisseu No Canto II

Atena transfigurada em Mentor aconselha Telecircmaco a ir buscar notiacutecias do pai e diz para

que ele natildeo se preocupe com os pretendentes anunciando o fim que restava a todos eles

Vejamos

η λῦλ κλεζηήξσλ κὲλ ἔα βνπιήλ ηε λόνλ ηε

ἀθξαδέσλ ἐπεὶ νὔ ηη λνήκνλεο νὐδὲ δίθαηνη

νὐδέ ηη ἴζαζηλ ζάλαηνλ θαὶ θῆξα κέιαηλαλ

ὃο δή ζθη ζρεδόλ ἐζηηλ ἐπ᾽ ἤκαηη πάληαο ὀιέζζαη104

(Odisseacuteia II 281-284)

Agora despreza os pretendentes como tambeacutem teu plano e teu

dicernimento]

eles insensatos nem satildeo justos nem satildeo disscretos105

natildeo sabem eles que a morte e o negro destino

estatildeo proacuteximos para eles a fim de que todos um dia venham perecer

104

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D23Acard3

D267 retirado agraves 1010h em 25 de outubro de 2010 105

Os destaques satildeo nossos

112

Essa citaccedilatildeo eacute bem interessante para nossa discussatildeo do traacutegico na Odisseacuteia pois

bem podemos fazer a diferenccedila entre o destino dos pretendentes de Odisseu e dos seus soacutecios

O Laertida sofre como vimos passando por situaccedilotildees traacutegicas tanto pela accedilatildeo do daimacrmwn

quanto por sua proacutepria accedilatildeo errocircnea - aumlmartia Mas isso natildeo faraacute que ele tenha um destino

traacutegico e sim algumas vivecircncias Por sua vez seus companheiros passam natildeo soacute por

vivecircncias traacutegicas como tambeacutem possuem o destino traacutegico fruto da ―dupla causalidade

Ou seja suas vivecircncias e destino traacutegicos provecircm tanto pela accedilatildeo do daimacrmwn como tambeacutem

de suas proacuteprias accedilotildees

Assim seja atraveacutes de Odisseu ou dos seus companheiros Homero nos daacute uma

formulaccedilatildeo traacutegica mostrando-nos como heroacuteis experienciam o traacutegico em circunstacircncias

(Odisseu) ou definitivamente em seus proacuteprios destinos (os seus soacutecios) Nestes dois casos

podemos ver vaacuterios dos elementos que compotildee uma accedilatildeo traacutegica a aumlmartia o daimacrmwn a

asup1namacrgkh a uAacutebrij a kaqarsij o fomacrboj a esup1leoj a asup1nagnwiquestrisij Elementos estes

que nos mostram o heroacutei em conflito tendo que necessariamente deliberar e deparar-se com

sua finitude e fragilidade comum a todos os mortais Como vimos ao longo deste toacutepico

somados estes elementos levam o heroacutei a vivenciar o traacutegico (Odisseu) ou a concretizaacute-lo em

seu destino (os seus companheiros) Ressalta-se que aristotelicamente natildeo falta caraacuteter a

esses personagens mas uma accedilatildeo eacute que os encaminha para cataacutestrofe

Poderiacuteamos entatildeo pensar que na chacina ocorrida com os pretendentes temos

aspectos traacutegicos por termos o sofrer destes e muitas mortes em torno de cento e dezesseis

contando com as servas que tambeacutem satildeo punidas por terem traiacutedo seu senhor ajudando os

pretendentes Inclusive ao longo da Odisseacuteia natildeo haacute nem de perto uma quantidade tatildeo

grande de representaccedilotildees de mortes Contudo Homero aleacutem de ter-nos deixado o despontar

de representaccedilotildees traacutegicas legou-nos tambeacutem as natildeo traacutegicas mesmo que superficialmente

pudessem assim ser entendidas Deste modo atraveacutes da chacina dos pretendentes Homero

demonstra-nos que o traacutegico natildeo estaacute necessariamente relacionado agrave morte pois se assim

fosse a corte dos cortejantes agrave matildeo de Peneacutelope seria a cena mais traacutegica na Odisseacuteia

Aristoacuteteles nos ensina (Poeacutetica XIII 1453a 5-6) e Homero representa-nos que

para ocorrer o traacutegico natildeo basta encenar sangue dor e mortes haacute de se ter muitos outros

elementos a exemplo do imerecido para suscitar-nos piedade e a empatia para suscitar-nos

o temor Assim a chacina dos pretendentes nem eacute imerecida porque muito fizeram para

merecer tal castigo nem nos proporciona o temor jaacute que natildeo haacute construccedilatildeo de empatia para

com esses personagens Eacute por isso que Aristoacuteteles diz-nos (Poeacutetica 1453a 7-11) que os

113

heroacuteis com seus caracteres intermediaacuterios satildeo os protagonistas ideais do traacutegico ao contraacuterio

dos muito bons que incitam excesso de piedade e dos muito maus que incitam a satisfaccedilatildeo

humana de ver os maus em decadecircncia Por isso as cento e dezesseis mortes narradas no

Canto XXII representam a puniccedilatildeo de todos os males cometidos pelos pretendentes Males

estes resultantes natildeo apenas de uma accedilatildeo errocircnea mas tambeacutem pela falta de caraacuteter por isso

Atena diz que eles satildeo insensatos injustos e portanto agem sem bom-senso (II 281-284)

A situaccedilatildeo da chacina dos pretendentes natildeo nos incita o traacutegico pois pela falta do

imerecido e da empatia natildeo nos provoca o fomacrboj nem a esup1leoj Ao contraacuterio a nossa

tendecircncia em geral eacute de nos satisfazermos com a representaccedilatildeo dessas muitas mortes porque

consideramos que eles tiveram o fim merecido Basta-nos para entendermos melhor essa

afirmaccedilatildeo lembrar da reaccedilatildeo da ama Euricleacuteia ao ver Odisseu em meio aos corpos todo

ensanguentado Ela natildeo consegue conter a alegria sendo necessaacuteria a intervenccedilatildeo do heroacutei

para que ela se contenha (XXII 411-416) visto que natildeo eacute adequado regozijar perante os

mortos E sobre isso jaacute nos orientava Aristoacuteteles (Poeacutetica 1453a) porque um homem muito

malvado passando da felicidade para infelicidade naturalmente natildeo nos suscita nem temor

nem piedade ao contraacuterio satisfazemo-nos por considerarmos que a justiccedila foi feita e que os

pretendentes e as amas pagaram por seus erros Eacute isso que comemora Euricleacuteia e Odisseu

mostrando sua dignidade e saber reprime-a por natildeo ser divino alegrar-se diante dos que jaacute

foram castigados por seus males Lembremos

ἡ δ᾽ ὡς οὖν νέκυάς τε καὶ ἄσπετον εἴσιδεν αἷμα

ἴθυσέν ῥ᾽ ὀλολύξαι ἐπεὶ μέγα εἴσιδεν ἔργον

ἀλλ᾽ Ὀδυσεὺς κατέρυκε καὶ ἔσχεθεν ἱεμένην περ

καί μιν φωνήσας ἔπεα πτερόεντα προσηύδα

ἐν θυμῶι γρηῦ χαῖρε καὶ ἴσχεο μηδ᾽ ὀλόλυζε

οὐχ ὁσίη κταμένοισιν ἐπ᾽ ἀνδράσιν εὐχετάασθαι

τούσδε δὲ μοῖρ᾽ ἐδάμασσε θεῶν καὶ σχέτλια ἔργα

οὔ τινα γὰρ τίεσκον ἐπιχθονίων ἀνθρώπων

οὐ κακὸν οὐδὲ μὲν ἐσθλόν ὅτις σφέας εἰσαφίκοιτο

τῶι καὶ ἀτασθαλίηισιν ἀεικέα πότμον ἐπέσπον106 (Odisseacuteia XXII 407- 416)

Entatildeo a ama Euricleacuteia viu os cadaacuteveres e o imenso sangue

e eacute verdade que atacou a gritar quando viu o grande trabalho

Mas Odisseu a deteve e decerto segurou sua agitaccedilatildeo

106

Texto disponiacutevel em httpwwwhs-

augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_od22html retirado agraves 1500hs de 15 de julho

de 2010

114

Tambeacutem ele mesmo tendo falado alto dirigia-lhe essas palavras aladas

Na alma velha alegra-te mas natildeo grita reprime pois para si

Natildeo eacute da lei divina manifestar-se assim sobre os homens que perecem

Estes o destino dos deuses submeteu como tambeacutem a seus trabalhos

[funestos

Eles natildeo respeitavam nenhum dos homens viventes da terra

nem o mau nem certamente o bom que a eles se apresentou

E por essas accedilotildees insanas perseguiu-lhes o destino indigno

Essa discussatildeo tambeacutem nos faz recordar da explanaccedilatildeo de Junito Brandatildeo em

Homero e seus poemas deuses mitos e escatologia (1998) a respeito de que a Odisseacuteia

instaura na literatura ocidental representaccedilotildees novas Essas satildeo sobre a ideacuteia de culpa

castigo ―em que a hyacutebris a violecircncia a insolecircncia a ultrapassagem do meacutetron () comeccedilam

a despontar (BRANDAtildeO 1998 p 134) Junito Brandatildeo diz ainda que a culpa traacutegica

como jaacute foi dito no capiacutetulo anterior pode ser realizada de duas formas da hamartia em que

forccedilas superiores impulsionam o homem ao erro (a exemplo dos soacutecios de Odisseu no caso

das vacas do Sol) ou atraveacutes do adikon quando o sujeito deliberadamente sem coaccedilatildeo

comete o erro A esta uacuteltima culpa relacionamos os pretendentes pois por deliberaccedilatildeo

proacutepria intentaram contra Odisseu e sua famiacutelia consumindo seu palaacutecio seus bens

pretendendo sua esposa violentando suas servas aleacutem de terem chegado inclusive a planejar

a morte de seu filho Telecircmaco que soacute natildeo ocorreu por causa da proteccedilatildeo de Atena Assim

Odisseu mata-os para que eles e suas accedilotildees funestas sejam definitivamente reparadas e

abolidas

Atraveacutes de todo o percurso de anaacutelise que fizemos neste toacutepico Odisseacuteia

momentos de tragicidade pudemos perceber as valorosas contribuiccedilotildees que Homero legou-

nos tanto para literatura ocidental como mais especificamente para a trageacutedia grega Esta

desenvolveu os elementos traacutegicos jaacute bem traccedilados por Homero Nesses uacuteltimos paraacutegrafos

constatamos tambeacutem duas contribuiccedilotildees baacutesicas que nos lega Homero a representaccedilatildeo de

como os homens satildeo levados a sofrer vivecircncias traacutegicas (Odisseu) ou destinos traacutegicos (os

soacutecios do heroacutei) como tambeacutem uma amostra de como os personagens mesmo

impiedosamente mortos podem natildeo provocar nenhum sentimento de empatia nenhuma

comoccedilatildeo diante de seu sofrer Deste modo fica-nos evidente o que eacute necessaacuterio para termos

um personagem traacutegico pois natildeo basta o sofrimento ele tem tambeacutem que ter dignidade ser

levado pela asup1namacrgkh e pelo daimacrmwn a cometer a aumlmartia e a uAacutebrij e assim suscitando

o fomacrboj e a esup1leoj levar-nos agrave kaqarsij E essa tragicidade como vimos pode ser

acentuda por outros elementos a exemplo da asup1nagnwiquestrisij em que o personagem traacutegico

115

experiencia tudo com plena consciecircncia Essa accedilatildeo traacutegica apresenta-se para noacutes como

incompreensiacutevel proporcionando-nos uma vivecircncia do espiacuterito traacutegico ao observarmos o

homem defrontando-se com a sua fragilidade e limitaccedilatildeo comum aos mortais

32 TRAGICIDADE NO CANTO XI DA ODISSEacuteIA ANTICLEacuteIA AQUILES

AGAMEcircMNON AacuteJAX

Neste toacutepico realizaremos uma aplicaccedilatildeo teoacuterico-analiacutetica do traacutegico a partir do

Canto XI da Odisseacuteia em especial naqueles momentos em que Odisseu encontra-se no Hades

com a sua matildee Anticleacuteia e seus companheiros em Troacuteia Agamecircmnon Aquiles e Aacutejax Como

veremos o Laertida iraacute ao deparar-se com sua matildee tomar conhecimento de sua morte aleacutem

de constatar que seus antigos companheiros em Troacuteia amarguravam um destino funesto

Agamecircmnon sofre pela desonra de sua morte fruto da traiccedilatildeo da esposa com o amante Egisto

Aquiles inconformado diz-se infeliz em reinar sobre mortos preferindo vivo ser um

trabalhador do campo e Aacutejax mesmo apoacutes a morte encontra-se ainda ressentido pelo fato de

ter perdido as armas de Aquiles para Odisseu Consideramos a anaacutelise que segue o cerne do

nosso trabalho tendo em vista as suas relevantes cenas que nos sugerem o espiacuterito do traacutegico

A afirmaccedilatildeo acima natildeo invalida ou diminui o valor dos capiacutetulos e toacutepicos

anteriores ao contraacuterio eles satildeo os responsaacuteveis pela fundamentaccedilatildeo da nossa anaacutelise

proporcionando-nos uma maior percepccedilatildeo do traacutegico e uma mais clara justificativa do porquecirc

da escolha do Canto XI Neste podemos ver Odisseu apoacutes ter sido orientado por Tireacutesias

passar por um processo cartaacutetico atraveacutes da vivecircncia traacutegica que passa junto a Anticleacuteia

Agamecircmnon Aquiles e Aacutejax E assim por meio de sua catarse estaraacute pronto para prosseguir

seu objetivo alcanccedilar um destino glorioso de retorno e consagraccedilatildeo domeacutestica

Odisseu comunicado por Circe que deveria ir ao Hades desespera-se (X 496-

498) por saber que pouquiacutessimos homens tiveram esse privileacutegio Aflito e angustiado o heroacutei

teme natildeo ser capaz de tatildeo grande empreitada Contudo o que o aguarda no Hades eacute ainda

pior deparar-se com a matildee que havia deixado a vida como eiAtildedwlon morta e ouvir todas as

desventuras dos companheiros que antes alcanccedilaram a gloacuteria em Troacuteia

Entendamos como ocorre a chegada de Odisseu ao Hades e como seratildeo seus

encontros traacutegicos O Canto XI da Odisseacuteia inicia-se com Circe agrave beira mar enviando ventos

116

propiacutecios para Odisseu e seus companheiros Nesse momento percebamos que os mortos

comeccedilam a aproximar-se do heroacutei e quem o faz primeiro eacute Elpenor antigo soacutecio e que veio a

padecer Com a visatildeo o heroacutei sente o coraccedilatildeo apertar e vertendo laacutegrimas pergunta como ele

morreu O seu antigo soacutecio apoacutes responder suas perguntas pede para que seja sepultado

erguendo um monumento na beira do mar e fincando o remo que usara Como percebemos

Elpenor sente falta de ter seus ritos fuacutenebres realizados ateacute porque ele que combateu em

Troacuteia e que vagou com Odisseu por terras e mares morreu sem ao menos ter uma laacutepide

para lembrar sua morte Assim para evitar esse imerecido esquecimento de um companheiro

Odisseu logo se compromete a realizar seu desejo

Entatildeo apoacutes Elpenor distanciar-se a matildee do Laertida aparece Essa eacute a primeira

experiecircncia traacutegica que Odisseu tem no Hades ateacute mesmo porque ele natildeo sabia ainda da

morte da matildee jaacute que ao partir para Troacuteia havia deixado-a com vida em Iacutetaca Perante tal

visatildeo o heroacutei potildee-se a chorar pois ao ter aceitado o desafio de ir ao Hades natildeo havia

imaginado que em meio a dolorosa visatildeo das sombras encontraria sua matildee como mais uma

alma dos mortos (XI 87) Mas como ele tinha que primeiro falar com Tireacutesias o Laertida natildeo

deixa a matildee aproximar-se do sangue Para entendermos todo o cenaacuterio com o qual Odisseu

depara-se no Hades logo no iniacutecio do Canto XI em que o deinoj107 apodera-se do heroacutei

apoacutes ele ter feito todos os rituais vejamos o que nos explica Vernant (2000)

Entatildeo percebe que estaacute vindo em sua direccedilatildeo a multidatildeo formada pelos que

natildeo satildeo ningueacutem ouacutetis como ele pretendeu ser Satildeo os sem-nome os

noacutemymnoi os que natildeo tem mais rosto que natildeo satildeo mais visiacuteveis que natildeo

satildeo mais nada Formam uma massa indistinta de seres que outrora foram

indiviacuteduos mas dos quais natildeo se sabe mais nada Dessa massa que desfila a

sua frente sobe um rumor apavorante e indistinto Eles natildeo tem nome natildeo

falam eacute um barulho caoacutetico Ulisses eacute envadido por um medo terriacutevel diante

desse espetaacuteculo que representa a seus olhos e ouvidos a ameaccedila de uma

dissoluccedilatildeo completa num magma disforme sendo sua palavra tatildeo haacutebil

afogada num rumor inaudiacutevel sua gloacuteria sua fama e sua celebridade caindo

no esquecimento (VERNANT 2000 112-113)

Diante desta cena observamos que Odisseu fica rodeado por uma massa de

sombras sem nome sem rosto sem gloacuteria o que logo ao iniacutecio do Canto XI faz com ele ele

seja apoderado pelo sentimentos de foboj E este sentimento de temor inspirado o foboj

que eacute o medo que faz fugir que propicia ao heroacutei o desejo de querer afastar-se da morte

107

Em Retoacuterica das Paixotildees Aristoacuteteles diz que ao depararmo-nos com um parente proacuteximo em situaccedilatildeo

dolorosa o que sentimos natildeo eacute compaixatildeo e sim o deinoj Ou seja experienciamos o terriacutevel o apavorante por

tal fato narrado estaacute muito proacuteximo de noacutes

117

buscando retornar a Iacutetaca para que natildeo venha ser mais uma dessas sombras esquecidas

disformes e indistintas como as que ele se depara no Hades Pois toda a busca que Odisseu

faz desde que saiu de Troacuteia para retornar a Iacutetaca natildeo simboliza apenas o desejo de voltar

para casa e para os seus familiares mas tambeacutem o de fugir impelido pelo foboj da morte

desonrosa que o levaria ao esquecimento e tornaria-o mais um deinoj entre tantos que sem

gloacuteria vagueiam no Hades

E no decorrer da narrativa apoacutes a visatildeo amedrontadora das sombrasTireacutesias entatildeo

aparece e pede-lhe para recolher a espada para que possa provar do sangue e dizer-lhe toda a

verdade Observemos atraveacutes desta fala do adivinho que tudo o que ele vier a contar seraacute

verdade pois tendo Odisseu feito o ritual conforme Circe indicara todas as sombras soacute

poderatildeo falar a verdade para o heroacutei Assim o tebano prenuncia tudo o que o heroacutei teraacute que

enfrentar desde a sua saiacuteda do Hades ateacute o procedimento que deve ter ao chegar em Iacutetaca

Revela-lhe a perseguiccedilatildeo de um deus que atrapalharaacute o seu retorno mas natildeo o impediraacute caso

consiga refrear a sua cobiccedila e dos seus soacutecios diz-lhe ainda que ao chegar em Iacutetaca

enfrentaraacute muitos trabalhos pois homens soberbos destroem seus bens e pretendem sua

esposa Mas Tireacutesias tranquiliza-o com seu destino dizendo-lhe que ao chegar em Iacutetaca daraacute

castigo a todos os pretendentes (XI 118) Tireacutesias avisa ao heroacutei que conseguiraacute evitar o

destino traacutegico apoacutes cumprir as empreitadas reveladas e realizar os rituais sagrados Tudo

isso para que apoacutes vivenciar tantos momentos traacutegicos Odisseu possa enfim viver com sua

famiacutelia tranquilamente ateacute que a doce morte venha pegaacute-lo (XI 134-137)

Contudo sabemos que antes de vir a alcanccedilarr o seu pretenso destino Odisseu teraacute

que enfrentar muitos desafios e muitos momentos traacutegicos Momentos estes que ele enfrentaraacute

ainda no Hades atraveacutes dos encontros que com sua matildee e com alguns companheiros de Troacuteia

Assim tendo Tireacutesias terminado as revelaccedilotildees sobre o destino do heroacutei este pergunta-o o

porquecirc da indiferenccedila de sua matildee que natildeo o fala (XI 140-144) Esse questionamento do

filho de Laertes demonstra-nos sua inconformidade de enfrentar aleacutem da visatildeo da matildee morta

sua indiferenccedila e renuacutencia de falar-lhe O adivinho diz para o heroacutei deixaacute-la aproximar-se do

sangue a fim de que lhe fale tambeacutem soacute a verdade Esse ritual deve ser realizado com toda e

qualquer sombra com a qual Odisseu deseje falar

Como sabemos as pessoas com as quais Odisseu comeccedilaraacute a falar jaacute estatildeo mortas

Por isso gostariacuteamos de elucidar a condiccedilatildeo em que se encontra a consciecircncia dessas pessoas

Para entendermos o niacutevel de coerecircncia e verossimilhanccedila desses diaacutelogos primeiro resaltamos

que como foi avisado por Tireacutesias toda a sombra que Odisseu deixasse aproximar-se do

118

sangue iria falar-lhe apenas a verdade enquanto as demais recuariam Ou seja podemos

compreender logo que toda a sombra que se aproximar de Odisseu falaraacute fatos verdeiros

sem ilusotildees ou inverdades Aleacutem disso eacute significativo sabermos que geralmente ―() no

Hades a psiqueacute o eiacutedolon eacute uma sombra uma imagem paacutelida e inconsistente abuacutelica

destituiacuteda de entendimento sem precircmio nem castigo (BRANDAtildeO 1998 p 146) No

entanto o eiAtildedwlon 108

essa sombra abuacutelica e paacutelida como diz-nos Junito Brandatildeo (1998)

pode recuperar por alguns instantes a razatildeo mediante um complexo ritual como o que foi

detalhadamente descrito no Canto XI da Odisseacuteia (v 20-50) Perante tais consideraccedilotildees

sabemos que aleacutem de falarem a verdade as sombras que dialogam com Odisseu tecircm

recuperadas as consciecircncias e portanto falam com racionalidade pois o filho de Laertes

cumpriu com todos os rituais necessaacuterios

Neste momento em que entendemos a condiccedilatildeo mental do eiAtildedwlon

prosseguimos a nossa anaacutelise Como vimos o esposo de Peneacutelope falara com Tireacutesias e sabia

como proceder para conquistar seu desejado retorno O vate parte e Odisseu interessado em

falar com a matildee deixa ela se aproximar do sangue para poder falar-lhe Anticleacuteia aproxima-

se reconhece o filho instantaneamente e pergunta o que ele faz no Hades e se jaacute havia

retornado a seu paiacutes O eiAtildedwlon de sua matildee natildeo entende o porquecirc de o filho estar ali local

sobre o qual ela afirma ser aos vivos tatildeo difiacutecil de contemplar (XI 156) Odisseu responde-

lhe e pergunta-lhe como estatildeo seu pai seu filho sua esposa seu palaacutecio enfim Sobre a

esposa ela diz que vive em prantos sem fim (XI 182-183) o filho sozinho administra o

palaacutecio e seu pai passou a dormir no inverno junto aos servos e no veratildeo dorme sobre as

folhas no chatildeo vivendo triste agrave espera do filho amado jaacute ela proacutepria veio a falecer de

saudades Vejamos com detalhes o discurso de Anticleacuteia sobre as dores sentidas por ela e

pelo marido

νὔη᾽ ἐκέ γ᾽ ἐλ κεγάξνηζηλ ἐύζθνπνο ἰνρέαηξα

νἷο ἀγαλνῖο βειέεζζηλ ἐπνηρνκέλε θαηέπεθλελ

νὔηε ηηο νὖλ κνη λνῦζνο ἐπήιπζελ ἥ ηε κάιηζηα

ηεθεδόλη ζηπγεξῇ κειέσλ ἐμείιεην ζπκόλ

ἀιιά κε ζόο ηε πόζνο ζά ηε κήδεα θαίδηκ᾽ δπζζεῦ

ζή η᾽ ἀγαλνθξνζύλε κειηεδέα ζπκὸλ ἀπεύξαlsquo109

(Odisseacuteia XI 198-203)

108

Essa palavra deriva do grego eiAtildedwlon que segundo Romizi (2007) significa o aspecto a imagem de um

morto Por isso relaciona-se agrave figura de um fantasma de uma imaginaccedilatildeo de uma sombra 109

Texto diponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D113Acard3

D180 retirado agraves 0718h em 05 de novembro de 2010

119

No uqarto natildeo me matou a arqueira perspicaz

com suas lanccedilas gentis vindo-me de encontro

nem foi doenccedila que me veio para o grande

definhamento abominaacutevel e que o acircnimo dos membros tirou-me

Mas por ti notaacutevel Odisseu a saudade de ti as preocupaccedilotildees contigo

a tua gentileza e doccedilura tudo isso arrebatou minha vida

O heroacutei apoacutes jaacute ter enfrentado tantos desafios e por longo tempo ter ficado errante

por mar e por terra suportando hostilidades de povos diversos depara-se com uma nova

empreitada realizada por poucos de ir ao Hades e voltar No territoacuterio dos mortos depara-se

ainda com uma amedrontadora imagem e barulho sendo rodeado por sombras diversas

paacutelidas sem rosto e sem razatildeo O deinoj apodera-se do heroacutei Mas muito ainda o aguardava e

ele que ao sair de Iacutetaca havia deixado sua matildee viva vem encontraacute-la morta Todavia isso natildeo

eacute suficiente para um heroacutei de tantas dores por isso Anticleacuteia revela-lhe que sua esposa

Peneacutelope vive em pranto infindo e que seu pai Laertes vive plenamente triste e

acabrunhado suportando a velhice E mais ainda ela revela que natildeo a matou a velhice ou a

deusa frecheira mas o proacuteprio filho Odisseu e a saudade que ele deixara O Laertida apesar

de heroacutei eacute um mortal como os demais homens e a estes como diz-nos Vernant (2006) em

Mito e religiatildeo na Greacutecia Antiga as dores e os sofrimentos satildeo comuns E eacute esse caraacuteter

humano que faz dos heroacuteis personagens propensos a do alto do seu heroiacutesmo caiacuterem como

os mortais comuns em tragicidade O traacutegico como vemos ao longo deste trabalho eacute fato

comum na trajetoacuteria de Odisseu apesar de natildeo o ser em seus destinos pois

A Odisseu favorece um destino (moicurrenra) epecial que de fato natildeo estaacute dirigido

para morte mas natildeo obstante o caraacuteter negativo da Moira denuncia-se aiacute

com muita clareza ele deve atravessar graves sofrimentos () Tambeacutem

neste caso o fado trava eacute retributivo ―ainda natildeo ateacute que ndash este eacute o

autecircntico tom da Moira110

()

( OTTO 2005 p 245)

Apesar de estarmos no iniacutecio da anaacutelise fica-nos claro que mesmo diante do

destino fechado de Odisseu a Moicurrenra persegue-o para que antes de gozar de seu prestiacutegio

em Iacutetaca venha passar por muitas dores e sofrimentos Sofrimentos como os que estamos

estudando sua matildee conta-lhe que por culpa so proacuteprio heroacutei Peneacutelope chora infinitamente

seu pai Laertes vive incondicionalmente triste e ela mesma desceu ao Hades por culpa dele

natildeo suportando as saudades Assim tragicamente Odisseu vecirc-se sem o merecer como

culpado pela morte da matildee amada e do sofrer de seu pai e de sua esposa Daiacute decorrer a

110

Os destaques satildeo nossos

120

inocecircncia traacutegica que Romilly diz ser encontrada nas trageacutedias pois ―() mesmo quando nos

satildeo apresentados como culpados mesmo quando suas accedilotildees os arrastam satildeo-no porque o erro

eacute o lote do homem ou porque correspondem a situaccedilotildees que satildeo igualmente o lote do

homem (ROMILLY 2008 p 175)

Assim mesmo sem uma accedilatildeo direta Odisseu eacute responsabilizado pelos

sofrimentos dos seus familiares e principalmente pela morte de sua matildee (Odisseacuteia XI 195-

203) Tal constataccedilatildeo faz-nos recordar de Aristoacuteteles ao afirmar que as cataacutestrofes satildeo mais

traacutegicas quando ocorrem entre familiares

Ὅταν δ᾽ ἐν ταῖς φιλίαις ἐγγένηται τὰ πάθη οἷον ἢ ἀδελφὸς

ἀδελφὸν ἢ υἱὸς πατέρα ἢ μήτηρ υἱὸν ἢ υἱὸς μητέρα ἀποκτείνηι ἢ

μέλληι ἤ τι ἄλλο τοιοῦτον δρᾶι ταῦτα ζητητέον111 (Ibidem XIV

1453b 20-23)

Quando estas cataacutestrofes realizam-se em amizades ou com um irmatildeo que

mata irmatildeo ou um filho que mata o pai ou a matildee que mata o filho ou o

filho que mata a matildee ou quando vecircm ocorrer alguma outra coisa desta

natureza estas coisas tecircm que ser buscadas

Naturalmente entendemos essa concepccedilatildeo aristoteacutelica de que um contexto de

tragicidade entre familiares eou entre personagens que cultivam amizade proporcia maior

comoccedilatildeo e sofrimento sendo portanto ainda mais efetivo para a manifestaccedilatildeo do sentimento

traacutegico Para entendermos tal posiccedilatildeo basta-nos lembrar de Aristoacuteteles dizendo que em meio

agrave dor sofrimentos e mortes aproximamo-nos da cataacutestrofe e portanto do traacutegico (Poeacutetica

1452b 12-14) E esse fato eacute reforccedilado pela fala do porqueiro antigo servo de Odisseu e do

seu pai que no Canto XV ao ser perguntado pelo mendigo (Odisseu) qual o destino de

Laertes e Anticleacuteia responde que Laertes apesar de vivo pede a morte e que Anticleacuteia morta

de saudades teve o pior dos fins

ἡ δ᾽ ἄρετ νὗ παηδὸο ἀπέθζηην θπδαιίκνην

ιεπγαιέῳ ζαλάηῳ ὡο κὴ ζάλνη112

ὅο ηηο ἐκνί γε

ἐλζάδε λαηεηάσλ θίινο εἴε θαὶ θίια ἔξδνη113

111

Texto disponiacutevel em httpwwwhs-

augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante04Aristotelesari_poi2html agraves 2035hs de 17 de julho de

2010 112

Nessa citaccedilatildeo temos trecircs verbos no modo optativo qanoi de qnhskw- morrer eiAtildeh de e)aw- permiter

deixar ocorrer e eAtilderdoi de eAtilderdw- fazer Essa observaccedilatildeo eacute importante pois essa forma lingiacutestica exprime de

modo coerente o contexto da passagem citado Isso porque o optativo exprime a possibilidade o voto o desejo

(MURACHO 2007) Assim o porqueiro exprime seu desejo de que seus conhecidos natildeo tenham a mesma morte

da matildee de Odisseu por isso traduzimos ―que ningueacutem morra ―quenatildeo ocorra ―que natildeo se faccedila

121

(Odisseacuteia XV 358-360)

Ela pereceu pela anguacutestia da morte miseraacutevel e sem gloacuteria

do filho Que ningueacutem meu morra assim que isso natildeo ocorra ao

habitante daqui amigo e que natildeo se faccedila ao que me eacute querido

Atraveacutes da fala de Eumeu o porqueiro percebemos que ele compreende que eacute

muito doloroso morrer indiretamente por culpa de um ente amado E assim diante dessa

morte estruturalmente dolorosa ele pede aos deuses para que ningueacutem em sua ilha ou com

quem ele tenha afeto venha padecer de tatildeo horrorosa morte Padecimento este em que um

filho leva a matildee agrave morte mesmo sem intenccedilatildeo e muito menos sem accedilatildeo direta Odisseu de

forma imerecida torna-se o culpado pelas dores da famiacutelia e pela morte da matildee que foi gerada

pela accedilatildeo da Moicurrenra e do daimacrmwn A riqueza dos detalhes dessa morte somada ao contexto

em que ela foi gerada faz com que esta morte na narrativa seja presentificada aumentando

sua tragicidade Por isso Odisseu natildeo se conteacutem e apoacutes ouvir o relato da matildee que soa para

ele como tortura ele exclama

―ὣο ἔθαη᾽ αὐηὰξ ἐγώ γ᾽ ἔζεινλ θξεζὶ κεξκεξίμαο

κεηξὸο ἐκῆο ςπρὴλ ἑιέεηλ θαηαηεζλεπίεο

ηξὶο κὲλ ἐθσξκήζελ ἑιέεηλ ηέ κε ζπκὸο ἀλώγεη

ηξὶο δέ κνη ἐθ ρεηξλ ζθηῇ εἴθεινλ ἢ θαὶ ὀλείξῳ

ἔπηαη᾽114

(Odisseacuteia XI 205-209)

Dizia eu desejava tecirc-la ao peito mas tendo-a apertado

o espiacuterito da minha matildee morta escapava-me

O acircnimo comandava-me e por trecircs vezes apertei-a

por trecircs vezes tambeacutem como se fosse sombra ou sonho

dos meus braccedilos ela se evolou

Natildeo bastasse todo o relato da matildee pondo-o como responsaacutevel por sua morte

Odisseu para atenuar a dor tenta abraccedilaacute-la por trecircs vezes em vatildeo O heroacutei natildeo compreende

que o corpo anterior de sua matildee agora eacute um eiAtildedwlon mais uma sombra entre tantas outras

vagantes no Hades E esse aspecto do morto intocaacutevel e natildeo palpaacutevel por natureza impede-o

de abraccedilar a matildee e aleacutem do mais isso o faz perceber que aquela eacute uma imagem de sua matildee

de outrora Mas resistindo ao reconhecimento (asup1nagnwiquestrisij) desse fato que sua matildee agora

113

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D153Acard3

D185 retirado agraves 1352h em 10 de novembro de 2010 114

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D113Acard3

D180 retirado agraves 1352h em 10 de novembro de 2010

122

eacute mais um eiAtildedwlon Odisseu tenta agarraacute-la por trecircs vezes Em todas as tentativas

naturalmente ele se frustra por isso questiona agrave matildee o porquecirc daquilo e desconfia se natildeo

seria mais um castigo dessa vez enviado por Perseacutefone enganando-o e iludindo-o atraveacutes de

um fantasma Ela poreacutem explica-lhe que com a morte a carne e os ossos deixam os tendotildees

Isto eacute apoacutes a morte natildeo haacute mais o corpo anterior firme e palpaacutevel o que resta eacute apenas uma

sombra do que foi sombra esta que eacute exatamente o eiAtildedwlon Depois disso Anticleacuteia antes

de partir avisa ao filho que guarde o que ouviu para poder contar em Iacutetaca

Odisseu narra tudo isso aos Feaacutecios que quietos a tudo ouvem E no instante em

que o filho de Laertes pausa seu canto a rainha dos Feaacutecios Arete promete dar-lhe presentes

e Alciacutenoo garante que daraacute o pretenso retorno ao heroacutei Este agradece O rei da Feaacutecia entatildeo

pede para que relate se viu algum dos guerreiros que junto a ele combateu em Troacuteia pois

todos suportariam o sono para ouvi-lo Odisseu diz que se estatildeo dispostos a ouvir ele

continuaraacute a narrativa e assim o faz Diz que narraraacute fatos ainda mais graves pois viu padecer

seus companheiros diletos vitoriosos em Troacuteia O primeiro deles a aproximar-se eacute

Agamecircmnon que bebe do sangue e realiza altos gemidos estendendo as matildeos para Odisseu

Este percebe que o Atrida natildeo tem mais o vigor de antes quando em Troacuteia comandava os

guerreiros e diante dessa imagem o filho de Laertes sente o peito apertar e potildee-se a chorar

(Odisseacuteia XI 391-395)

Na guerra de Troacuteia Agamecircmnon era o detentor do cetro o aAtildenac asup1ndrwIacuten o

senhor dos heroacuteis era o responsaacutevel por comandar todos os gregos Nessa passagem Odisseu

dapara-se com o rei de Micenas o supremo chefe dos aqueus elevando altos gemidos

estendendo as matildeos como em pedido de auxiacutelio tambeacutem sem vigor nos membros Diante da

cena Odisseu com o peito apertado vai agraves laacutegrimas A cena suscita a esup1leoj pois

aristotelicamente sente-se compaixatildeo ao ver-se em semelhante desventura Mas Odisseu

ainda natildeo sabe o porquecirc da morte do Atrida e pergunta se foi obra de Posiacutedon de inimigos na

disputa de mulheres ou na conquista de cidades Agamecircmnon nega essas opccedilotildees e responde

ἀιιά κνη Αἴγηζζνο ηεύμαο ζάλαηόλ ηε κόξνλ ηε

ἔθηα ζὺλ νὐινκέλῃ ἀιόρῳ νἶθόλδε θαιέζζαο

δεηπλίζζαο ὥο ηίο ηε θαηέθηαλε βνῦλ ἐπὶ θάηλῃ

ὣο ζάλνλ νἰθηίζηῳ ζαλάηῳ πεξὶ δ᾽ ἄιινη ἑηαῖξνη

λσιεκέσο θηείλνλην () ἤδε κὲλ πνιέσλ θόλῳ ἀλδξλ ἀληεβόιεζαο

κνπλὰμ θηεηλνκέλσλ θαὶ ἐλὶ θξαηεξῇ ὑζκίλῃ

ἀιιά θε θεῖλα κάιηζηα ἰδὼλ ὀινθύξαν ζπκῶ

123

ὡο ἀκθὶ θξεηῆξα ηξαπέδαο ηε πιεζνύζαο

θείκεζ᾽ ἐλὶ κεγάξῳ δάπεδνλ δ᾽ ἅπαλ αἵκαηη ζῦελ115

(Odisseacuteia XI 409-413416-420)

Mas a mim Egisto causou a morte e o destino desgraccedilado

pois junto com minha esposa maldita ao chamar-me em sua casa para um

banquete]

matou-me do modo como algueacutem mata um boi na manjedoira

Assim morri da morte mais lamentaacutevel ao meu redor os demais

companheiros]

eles mataram continuamente ()

Jaacute presenciaste a morte de muitos guerreiros

seja morrendo em combates individuais ou em batalha poderosa

Mas tendo visto aquilo sofrerias muitiacutessimo no coraccedilatildeo

pois ao redor de crateras e mesas que tinham estado haacute pouco cheias

estaacutevamos deitados no salatildeo com o chatildeo todo ensanguumlentado116

Agamecircmnon ainda completa que mais doloroso foi ouvir os gritos de Cassandra

descendente dos troianos trazida por ele para servir-lhe como escrava Diante da narraccedilatildeo

acima podemos perceber muitos elementos que nos indicam a presenccedila do traacutegico Tanto que

Eacutesquilo (2004) iraacute se inspirar nesse episoacutedio para a composiccedilatildeo de sua trilogia traacutegica a

Oresteacuteia Desse modo o aAtildenac asup1ndrwIacuten apoacutes aacuterdua batalha em Troacuteia aguarda ser recebido

por festas e consagraccedilotildees em sua terra Mas o que o aguarda eacute a morte funesta elaborada por

sua esposa Clitemnestra junto com o seu amante Egisto Por isso o Atrida

conscientemente afirma ―ὣς θάνον οἰκτίστωι θανάτωιrdquo117 isto eacute ―Assim morri com a

morte mais lamentaacutevel (Odisseacuteia Canto XI v 412)

Eacute atraveacutes de passagens como essa que Homero lega aos tragedioacutegrafos o espiacuterito

traacutegico e seu contexto em que os deuses natildeo mais satildeo o siacutembolo da proteccedilatildeo como eacute comum

vermos na eacutepica Eles agora implusionam o homem para o erro este que por sua vez levaraacute o

homem ao traacutegico Pois os deuses ―jaacute natildeo mais iluminam antes seduzem e transviam eacute o

caminho da queda (OTTO 2005 p 259) como seraacute tiacutepico da trageacutedia no seacuteculo V aC

Temos a accedilatildeo da Moicurrenra impelindo o heroacutei para o destino mais catastroacutefico a morte sem

gloacuteria sem nobreza Nos diaacutelogos entre Odisseu com os antigos companheiros em Troacuteia

como eacute o caso do citado com Agamecircmnon percebemos que esses heroacuteis antes tatildeo protegidos

115

Retirado de

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D113Acard3

D40 retirado agraves 1426h em 10 de novembro de 2010 116

Destaque nosso 117

Verso disponiacutevel em

httpwwwhsaugsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_od11html agraves 1533hs ded 12

de julho de 2010

124

pelas divindades como ocorre na Iliacuteada vecircem-se desolados nas matildeos do destino Este guarda

para eles a morte funesta como uacuteltimo grande legado pois ―() eacute o destino da vida natildeo

alcanccedilar tais e tais coisas falhar aqui e ali e finalmente decair () (Ibidem p 258)

Entre os versos 412-413 o Atrida abatido pela morte vergonhosa sugere-nos

mais um elemento traacutegico que Vernant trata em Mito e Trageacutedia na Greacutecia Antiga (2008

p2) o heroacutei deixou de ser soluccedilatildeo para figurar como problema natildeo apenas para si mas

tambeacutem para os outros Assim o aAtildenac asup1ndrwIacuten que antes no comando dos demais heroacuteis

saiu vencedor na guerra de Troacuteia torna-se presa na matildee da esposa e do seu amante

Ao desembarcar em Argos o rei traz a vitoacuteria para os seus e em contrapartida

recebe a morte por matildeos familiares Contudo a morte natildeo atinge apenas o rei que pelo

miasmoj118 de sua famiacutelia e por accedilotildees proacuteprias deveria ser punido mas tambeacutem seus

companheiros que satildeo vitimados sem culpa nenhuma mesmo sem descenderem dos Atridas

nem serem responsaacuteveis pela morte de Ifigecircnia119

Mesmo assim imerecidamente eles que

pensavam ser exaltados ao retornarem agrave paacutetria satildeo tragicamente mortos

O mesmo ocorre com Cassandra pois apesar de natildeo cometer aumlmartia ou

uAacutebrij tem tambeacutem uma morte traacutegica ligada ao aspecto irracional do imerecido Assim

aquele rei que antes solucionava os problemas do seu povo torna-se o culpado pela morte sua

dos seus companheiros e de Cassandra que ele havia trazido como geiquestraj precircmio de guerra

Este distingue o heroacutei dos demais aleacutem de assegurar-lhe a timh120 a honra E para desonra e

humilhaccedilatildeo completa de Agamecircmnon Clitemnestra e Egisto natildeo apenas o matam mas

tambeacutem aniquilam Cassandra Assim natildeo vive nem mais a lembranccedila do heroacutei eacutepico que foi

Agamecircmnon nem o seu geiquestraj simbolizava Ao contraacuterio com a morte de Cassandra e dos

demais fica-nos o siacutembolo do Atrida como o heroacutei traacutegico que acarretou problema para si e

para os demais

Tendo reconhecido sua figuraccedilatildeo traacutegica Agamecircmnon ainda completa que apesar

de Odisseu jaacute ter presenciado todo o tipo de morte ainda assim ―ἀιιά θε θεῖλα κάιηζηα ἰδὼλ

118

Este termo indica a ―contaminaccedilatildeo transcendental que neste caso pode ser exemplificada pela

contaminaccedilatildeo gerada pela famiacutelia Atrida atraveacutes de fatos como por exemplo o Banquete de Tiestes e por isso

seus descendentes contaminados teriam de pagar pelos erros do passado sendo aniquilados 119

Essa referecircncia deve-se ao fato de que Clitemnestra utiliza como justificativa para matar o esposo o fato de

ele ter lhe tirado a querida filha Isso pode ser melhor avaliado atraveacutes de Ifigecircnia em Aacuteulis de Euriacutepedes (2002) 120

Para entendermos a importacircncia da timh para um heroacutei grego conveacutem voltarmos ao iniacutecio do primeiro

capiacutetulo do nosso trabalho em que fazemos um comentaacuterio elucidador a este respeito relacionando-a com

Aquiles na Iliacuteada

125

ὀινθύξαν ζπκῶ ―() ante aquele espetaacuteculo terias sentido piedaderdquo121

(XI 418) Neste

verso encontramos dois fatos que reforccedilam nossa tese A primeira eacute que nesse Canto XI

Odisseu presencia uma espeacutecie de ―espetaacuteculo traacutegico o que pode ser observado atraveacutes dos

detalhes que satildeo dados das cenas em que ocorre a accedilatildeo aleacutem de todos os elementos traacutegicos

como a morte por matildeo parental imerecida inesperada acarretando a desonra do heroacutei enfim

Detalhes esses que apesar de Odisseu apenas estar ouvindo propiciam-lhe uma vivecircncia do

fato traacutegico como se eles estivessem se realizando sob os seus olhos proporcionando-o uma

imagem teatral O proacuteprio narrador neste caso Agamecircmnon ao fazer a descriccedilatildeo de sua

morte refere-se a ela como um ―espetaacuteculo122

Nos versos acima a exemplo de ―Quando nos

visses no meio dos copos e mesas repletas pelo salatildeo a fazer e no soalho a sangueira

escorrendo a riqueza dos detalhes nos proporciona visualizar o narrado como uma imagem

presentificada aos nossos olhos Assim Odisseu como espectador desse ―teatro traacutegico

apieda-se

No iniacutecio do paraacutegrafo anterior dissemos que no verso 418 do Canto XI haacute dois

fatos que reiteram nossa proposta de anaacutelise O primeiro sobre o qual jaacute comentamos refere-

se agrave ―encenaccedilatildeo traacutegica que no Canto XI desenrola-se por meio dos diaacutelogos aos olhos de

Odisseu O segundo diz respeito ao que defendemos desde o iniacutecio deste trabalho sobre o

despertar do sentimento de piedade que seraacute gerado principalmente a partir dos encontros

que o heroacutei tem no Hades O sentimento de esup1leoj como enfatizamos eacute fator importante para

que tenhamos a kaqarjij desde que esteja junto a um outro sentimento que eacute o fomacrboj

(Poeacutetica XIII 1453a 5-6)

Como sabemos a esup1leoj eacute suscitada quando nos deparamos com o imerecido

Relacionando essa assertiva com a anaacutelise do Canto XI da Odisseacuteia percebamos que

Agamecircmnon narra a forma de sua morte de seus companheiros e de Cassandra Mortes estas

que de modo geral relacionam-se ao imerecido123

Portanto entendamos que o Atrida pelo

121

Destaque nosso 122

Esse espetaacuteculo traacutegico ao qual nos referimos e que eacute presentificado neste Canto XI foi responsaacutevel por

influenciar os autores traacutegicos do seacuteculo V a exemplo de Eacutesquilo (2004) Este inspirado na cena traacutegica jaacute

iniciada por Homero produziu as suas na trageacutedia Vejamos tambeacutem a riqueza dos detalhes jaacute que a morte natildeo

era encenada e sim anunciada pelo coro

ὤκνη κνη θνίηαλ ηάλδ᾽ ἀλειεύζεξνλ

δνιίῳ κόξῳ δακεὶο

ἐθ ρεξὸο ἀκθηηόκῳ βειέκλῳ

(Agamecircmnon v 1513 -1520)

Oacutemoi oacutemoi Neste indigno repouso

Tendo sido dominado sob trapaceira sorte

Pela matildeo com arma cortante de ambos os lados

123

Para podermos compreender melhor o sentido traacutegico dessas mortes seria necessaacuterio um estudo mais

especiacutefico da trageacutedia Agamecircmnon (2004) que neste momento natildeo eacute o nosso objetivo

126

fato de carregar desde o seu nascimento uma maacutecula transcendental (miasmoj) de sua

famiacutelia estaacute fadado a cometer a aumlmartia124 que por sua vez iraacute levaacute-lo agrave morte imerecida

E Odisseu sente compaixatildeo ao ver o seu comandante em Troacuteia vigoroso rei em choro

incontido Jaacute em relaccedilatildeo agrave morte dos seus companheiros e de sua escrava Cassandra esse

imerecido eacute bem mais claro de entender jaacute que eles nada fizeram para merecer esse triste fim

pois ateacute mesmo a relaccedilatildeo que tinham com o rei era de subordinaccedilatildeo Por isso a descriccedilatildeo

dessas imerecidas mortes eacute traacutegica inspirando em Odisseu a esup1leoj

Deste modo para reiterar nossa defesa de que nos diaacutelogos do Canto XI Odisseu

iraacute experienciar a kaqarjij inspirado pelo fomacrboj e pela esup1leoj consideramos importante

recorrermos agrave Retoacuterica das Paixotildees de Aristoacuteteles (2003) Assim vejamos primeiramente o

que Aristoacuteteles (2003) define sobre a esup1leoj E discorrendo sobre a compaixatildeo o filoacutesofo

daacute-nos tambeacutem uma informaccedilatildeo de que para sentirmos a piedade temos que estar vulneraacuteveis

a pensar que o mal com o qual nos compadecemos tambeacutem pode ocorrer conosco ou com

quem amamos

ἔζησ δὴ ἔιενο ιύπε ηηο ἐπὶ θαηλνκέλῳ θαθῶ θζαξηηθῶ ἢ ιππεξῶ ηνῦ

ἀλαμίνπ ηπγράλεηλ ὃ θἂλ αὐηὸο πξνζδνθήζεηελ

ἂλ παζεῖλ ἢ ηλ αὑηνῦ ηηλα θαὶ ηνῦην ὅηαλ πιεζίνλ θαίλεηαη δῆινλ γὰξ ὅηη

ἀλάγθε ηὸλ κέιινληα ἐιεήζεηλ ὑπάξρεηλ ηνηνῦηνλ νἷνλ νἴεζζαη παζεῖλ ἄλ ηη

θαθὸλ ἢ αὐηὸλ ἢ ηλ αὑηνῦ ηηλα θαὶ ηνηνῦην θαθὸλ νἷνλ εἴξεηαη ἐλ ηῶ ὅξῳ

ἢ ὅκνηνλ ἢ παξαπιήζηνλ125

(Retoacuterica das Paixotildees II 8 13-18)

Seja entatildeo a compaixatildeo certo pesar por um mal que se mostra destrutivo ou

penoso e atinge quem natildeo o merece mal que poderia esperar sofrer a

proacutepria pessoa ou um de seus parentes e isso quando esse mal parece

iminente com efeito eacute evidentemente necessaacuterio que aquele que vai sentir

compaixatildeo esteja em tal situaccedilatildeo que creia poder sofrer algum mal ou ele

proacuteprio ou um de seus parentes ()126

(ARISTOacuteTELES 2003 p53)

Buscando ampliar nossa concepccedilatildeo de compaixatildeo resolvemos procurar em

Retoacuterica das Paixotildees informaccedilotildees complementares que viessem auxiliar-nos a entender os

124

Para compreendermos melhor a aumlmartia cometida por Agamecircmnon devemos recorrer a duas trageacutedias

Agamecircmnon o primeiro livro da Oresteacuteia (2004) e Ifigecircnia em Aacuteulis (2002) Atraveacutes dessas obras observamos

que o Atrida derramou sangue parental de sua proacutepria filha daiacute a aumlmartia Contudo sabemos que sua accedilatildeo

foi necessaacuteria pois como puniccedilatildeo de Aacutertemis por ele querer medir-se com ela no arco se ele natildeo sacrificasse a

filha natildeo haveria ventos para os gregos alcanccedilarem Troacuteia ficando presos numa ilha 125

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100593Abook3D23Achapter

3D83Asection3D2 retirado agraves 1503h em 25 de novembro de 2010 126

(FONSECA 2003 p 53)

127

pressupostos do traacutegico presentes na Poeacutetica nossa base de estudo E nesse percurso de

ampliaccedilatildeo do entendimento sobre a esup1leoj obtemos mais uma informaccedilatildeo relevante que vem

reiterar nosso trabalho Ou seja segundo Aristoacuteteles (2003) aleacutem do fato de sentirmos

compaixatildeo diante de um fato doloroso e imerecido temos tambeacutem de estar vulneraacuteveis a

passar pelo mesmo padecimento soacute assim efetivamente o sentimento de compaixatildeo pode ser

suscitado Odisseu entatildeo tanto se depara com um sofrer imerecido como tambeacutem estaacute

vulneraacutevel a passar por tudo o que o Atrida passou pois ele tambeacutem apoacutes longos anos

distante retornaraacute ao seu lar podendo sim vir a encontrar sua morte armada pela esposa

junto com um amante Tanto estaacute susceptiacutevel a passar pelo mesmo que o rei de Argos alerta-o

para ter cuidado com a esposa natildeo lhe contando seus planos pois apesar de acreditar que

Peneacutelope natildeo seria capaz de tal ato diz que natildeo se pode confiar nas mulheres (XI 441-456)

Essa vulnerabilidade de Odisseu a vir a ser traacutegico como Agamecircmnon fica bem claro quando

no Canto XIII ao chegar em Iacutetaca as primeiras palavras que diz eacute em relaccedilatildeo a seu destino

que seria semelhante ao de Agamecircmnon caso natildeo fosse a proteccedilatildeo de Atena Pois assim

como o Atrida ele tambeacutem poderia ter a morte aguardando-lhe em casa o primeiro por causa

da esposa e do amante e no caso de Odisseu por accedilatildeo planejada dos pretendentes

Outra informaccedilatildeo tambeacutem nos eacute importante a respeito do suscitar da piedade Eacute

que para Aristoacuteteles (2003) noacutes nos compadecemos dos conhecidos ou dos nossos

semelhantes seja em idade seja em haacutebito enfim E nessa condiccedilatildeo Odisseu tambeacutem estaacute

inserido pois sabemos que eles natildeo satildeo apenas conhecidos como tambeacutem havia certa

semelhanccedila entre eles Aleacutem do mais a experiecircncia traacutegica do filho de Anticleacuteia e seu

compadecimento justificam-se tambeacutem porque ―com Agamecircmnon seu comandante-em-chefe

Odisseu se comportava com infaliacutevel lealdade () respeitava a hierarquia e reconhecia em

Agamecircmnon o portador do cetro (BEYE 2006 p 66) Essa relaccedilatildeo de companheirismo

entre Agamecircmnon e Odisseu pode ser observada tambeacutem na Iliacuteada Tatildeo marcante foi essa

relaccedilatildeo que ciente disso Eacutesquilo faz tambeacutem uma referecircncia a esse companheirismo em

Agamecircmnon (2004) Por isso ao desembarcar em Argos o Atrida saudado pelo coro por sua

volta relembra os enfrentamentos em Troacuteia e dos falsos homens com exceccedilatildeo de Odisseu Eacute

o que vemos no livro I Agamecircmnon da Oresteacuteia (2004) entre os versos 832-843

παύξνηο γὰξ ἀλδξλ ἐζηη ζπγγελὲο ηόδε

θίινλ ηὸλ εὐηπρνῦλη᾽ ἄλεπ θζόλνπ ζέβεηλ

δύζθξσλ γὰξ ἰὸο θαξδίαλ πξνζήκελνο

ἄρζνο δηπινίδεη ηῶ πεπακέλῳ λόζνλ

ηνῖο η᾽ αὐηὸο αὑηνῦ πήκαζηλ βαξύλεηαη

θαὶ ηὸλ ζπξαῖνλ ὄιβνλ εἰζνξλ ζηέλεη

128

εἰδὼο ιέγνηκ᾽ ἄλ εὖ γὰξ ἐμεπίζηακαη

ὁκηιίαο θάηνπηξνλ εἴδσινλ ζθηᾶο

δνθνῦληαο εἶλαη θάξηα πξεπκελεῖο ἐκνί

κόλνο δ᾽ δπζζεύο ὅζπεξ νὐρ ἑθὼλ ἔπιεη

δεπρζεὶο ἕηνηκνο ἦλ ἐκνὶ ζεηξαθόξνο

εἴη᾽ νὖλ ζαλόληνο εἴηε θαὶ δληνο πέξη127

ιέγσ (Eacutesquilo Agamecircmnon 832-843)

Poucos entre os homens tecircm congecircnito

Respeito sem inveja por amigo fausto

Maleacutevolo veneno sentado no coraccedilatildeo

Duplica o mal de quem dela adoece

Eacute oprimido por seu proacuteprio sofrimento

E pranteia ao ver alheia prosperidade

Ciente eu diria pois bem conheccedilo

O espelho social imagem de sombra

Satildeo aparentes os beneacutevolos comigo

Soacute Odisseu que invito navegou

Foi sob o jugo o meu pronto parceiro

Fale eu dele morto ou ainda vivo128

Atraveacutes dessa passagem percebemos que toda a relaccedilatildeo construiacuteda entre Odisseu

e Agamecircmnon intensifica seu compadecimento para com o Atrida E isto foi aproveitado

tambeacutem por Eacutesquilo (2004) na elaboraccedilatildeo do primeiro livro da Oresteacuteia Assim verificamos

que Homero legou aos tragedioacutegrafos a essecircncia do traacutegico como procuramos demonstrar

nesta anaacutelise do Canto XI Sabemos de um modo geral que algumas cenas eacutepicas serviram

de inspiraccedilatildeo para as trageacutedias mas no caso do Canto XI temos duas em especiacutefico uma

relacionada aos momentos de diaacutelogo entre Odisseu e Agamecircmnon e a outra do Laertida com

Aacutejax como veremos mais agrave frente E a influecircncia que duas cenas deste canto tiveram para o

surgimento de duas peccedilas Agamecircmnon de Eacutesquilo (2004) e Aacutejax de Soacutefocles (2008)

mostrando o quanto satildeo significativas as imagens traacutegicas que analisamos nesse canto jaacute que

estas produzem o que para muitos eacute o objetivo maior da trageacutedia a kaqarjij Mas isso

veremos com mais acuidade mais a frente por hora continuemos a analisar o texto pela

linearidade da narrativa

Pego por esse destino Agamecircmnon lamenta e ainda inconformado chora pois

jamais pensara que em casa aguardava-o a morte Ao contraacuterio apoacutes os dez anos de Guerra

dos combates dos sofrimentos comuns no campo de batalha da vitoacuteria sobre os troianos

sendo ele o comandante o aAtildenac asup1ndrwIacuten deparou-se com o inesperado destino

127

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100033Acard3D810 retirado agraves

1816h em 15 de outubro de 2010 128

(TORRANO 2004 p161)

129

() ἦ ηνη ἔθελ γε

ἀζπάζηνο παίδεζζηλ ἰδὲ δκώεζζηλ ἐκνῖζηλ

νἴθαδ᾽ ἐιεύζεζζαη ()129

(Odisseia XI 430-432)

Na verdade ele dizia

bem-vindo eu esperava ser para os filhos e para os escravos

em minha volta para casa

Na passagem acima podemos perceber dois fatos importantes o primeiro eacute o

conflito entre o plano humano e o divino o segundo eacute o confronto entre o heroacutei eacutepico e o

traacutegico Entre os versos 430 e 432 observamos que Agamecircmnon diante do grande feito em

Troacuteia espera em casa ser glorificado exaltado pelo povo de Argos e saudado pelos filhos e

pela consorte Ou seja o Atrida conta com a gloacuteria mas o que o espera eacute a morte vergonhosa

Esse conflito decorre do fato de termos dois planos incongruentes um feito pelo homem e

outro pelos deuses Neste caso o homem eacute Agamecircmnon planejando ser exaltado no retorno

da guerra e a divindade eacute a Moicurrenra que planeja sua morte indigna para apagar o miasmoj

da famiacutelia Atrida e a sua aumlmartia ao ter matado mesmo por necessidade a proacutepria filha E

neste caso ―haacute uma consciecircncia traacutegica da responsabilidade quando os planos humano e

divino satildeo bastante distintos para se oporem sem que entretanto deixem de parecer

inseparaacuteveis (VERNANT 2008 p 4) Nessa situaccedilatildeo naturalmente o plano divino se opotildee

levando o homem agrave cataacutestrofe Odisseu a tudo ouve atentamente e percebe que nenhum

homem pode medir-se com o plano divino pois apesar da ideacuteia de que ―a presenccedila divina

ilumina o homem e lhe evita o tropeccedilo (OTTO 2005 p253) sabe-se tambeacutem que ―() tudo

procede das matildeos dos deuses inclusive o traacutegico da vida humana (ibidem p 255)

O outro fato importante citado no iniacutecio do paraacutegrafo anterior diz respeito ao

choque de sua proacutepria figura enquanto heroacutei eacutepico tornando-se heroacutei traacutegico Como sabemos

na Iliacuteada (2009) Agamecircmnon teraacute papel fundamental sendo o chefe dos guerreiros e

comandando as decisotildees tanto que o Canto XI da Iliacuteada eacute dedicado a contar seus grandes

feitos eacute a aristia do Atrida E eacute esse personagem que chega em Argos com todo o seu orgulho

e toda a sua gloacuteria mas ao desembarcar ele jaacute natildeo eacute mais o heroacutei eacutepico passando entatildeo

como vemos em Agamecircmon (2004) a representar o heroacutei traacutegico que encontra a morte nas

matildeos da esposa E nesse diaacutelogo com Odisseu Agamecircmnon deixa evidente o conflito que ele

129

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D113Acard3

D404 retirado agraves 1800h em 15 de outubro de 2010

130

proacuteprio sofreu esperando ser tratado como eacutepico Por isso diz que esperava ser bem-recebido

pelos familiares e pelos servos do palaacutecio (XI 430-434)

Contudo na conversa em que Odisseu tem com o Atrida este deixa-nos perceber

seu conflito pois o que ele pensara ser (heroacutei eacutepico) antepotildee-se com o que ele veio a ser um

heroacutei traacutegico no momento em que desembarca em Argos Isso porque apesar de estarmos

estudando uma eacutepica podemos perceber que a configuraccedilatildeo de Agamecircmnon jaacute na Odisseacuteia eacute

a de um heroacutei de destino traacutegico fato esse que posteriormente Eacutesquilo desenvolveu na

trageacutedia E esse conflito que o proacuteprio Atrida nos expotildee ao esperar em casa ser tratado com

as honrarias do heroacutei eacutepico acentua ainda mais a tragicidade desse personagem refletido na

Odisseacuteia Isso porque atraveacutes da conversa com o Laertida o Atrida mostra a transposiccedilatildeo de

como ele se reconhecia eacutepico e passou a ver-se como traacutegico chegando a exclamar ―ὣς

θάνον οἰκηίζηῳ θανάηῳrdquo130 isto eacute ―Assim morri com a morte mais lamentaacutevel (Odisseacuteia

Canto XI v 412)

Apoacutes ter ouvido como o senhor dos heroacuteis morreu pelas matildeos da esposa e do

amante Odisseu apieda-se e mostra perceber a accedilatildeo do daimacrmwn no destino de Agamecircmnon

por isso fala que Zeus natildeo destinou coisas boas para os Atridas pois Menelau tinha uma

esposa Helena culpada pela morte de muitos homens em Troacuteia e ele tinha Cliptemenstra

que veio ocasionar sua proacutepria morte (Odisseia XI 436-439)

Essa percepccedilatildeo que Odisseu tem da accedilatildeo dos superiores no destino de

Agamecircmnon eacute uma habilidade que em muitos momentos ele nos mostra Tanto que ao

decorrer do toacutepico anterior vimos que ele sempre percebia quando o daimacrmwn agia sobre ele e

seus companheiros Entatildeo assim tambeacutem ele faz com o Atrida exemplificando a accedilatildeo do

daimacrmwn atraveacutes dos feitos de Helena e Clitmenestra Observemos que essa accedilatildeo do divino

pode levar o homem ao traacutegico ou agrave ventura No caso de Agamecircmnon leva-o ao destino

traacutegico no caso de Odisseu como foi visto no toacutepico anterior leva-o agraves situaccedilotildees traacutegicas E

o seu destino soacute natildeo eacute traacutegico por causa da accedilatildeo divina especificamente pela proteccedilatildeo de

Atena E isso o heroacutei de Iacutetaca tambeacutem observa Assim ao desembarcar em sua cidade e ser

avisado pela deusa do perigo dos pretendentes ele diz que se natildeo fosse pelos avisos de

Atena ele teria em casa o destino funesto assim como Agamecircmnon (XIII 383-386)

Na continuidade do diaacutelogo entre Odisseu e Agamecircmnon este pergunta sobre

notiacutecias do filho O esposo de Peneacutelope diz natildeo saber E insistentemente o Atrida repete para

130

Texto disponiacutevel em httpwwwhs-

augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_od11html agraves 1533hs ded 12 de julho de

2010

131

que Odisseu natildeo confie na esposa e tenha cuidado ao retornar pois um grande mal pode estar

aguardando-o E ficam conversando e chorando um por seu destino traacutegico e o outro pelas

situaccedilotildees traacutegicas que ateacute entatildeo vinha sofrendo

A dor manifestada por ambos eacute fruto do enlace traacutegico em que se assemelham um

no destino o outro nas circunstacircncias da vida E assim percebemos a presenccedila do traacutegico na

vida desses personagens Contudo para Odisseu este contato reserva-lhe natildeo apenas o

protagonismo do traacutegico como analisamos no toacutepico anterior mas tambeacutem a experiecircncia do

traacutegico como espectador Pois apesar de o fato natildeo ocorrer aos seus olhos a descriccedilatildeo

detalhada dos fatos torna possiacutevel a visualizaccedilatildeo de todo o ocorrido Aleacutem do mais jaacute nos diz

Aristoacuteteles

ηλ δὲ ινηπλ ἡ κεινπνηία κέγηζηνλ ηλ ἡδπζκάησλ ἡ δὲ ὄςηο

ςπραγσγηθὸλ κέλ ἀηερλόηαηνλ δὲ θαὶ ἥθηζηα νἰθεῖνλ ηῆο πνηεηηθῆο ἡ γὰξ

ηῆο ηξαγῳδίαο δύλακηο θαὶ ἄλεπ ἀγλνο θαὶ ὑπνθξηηλ ἔζηηλ ()131

(Poeacutetica

VI 1450b 18-20)

Assim mesmo sem atores e sem encenaccedilatildeo a trageacutedia por si proacutepria eacute

convincente aleacutem do mais para a montagem mais importante satildeo os

inteacuterpretes do que os poetas

Assim como espectador do traacutegico cantado satildeo suscitados em Odisseu tanto a

esup1leoj como jaacute explicamos assim tambeacutem como o fomacrboj levando-o agrave kaqarsij Para

que compreendamos tal afirmaccedilatildeo assim como fizemos para entender a esup1leoj recorramos

tambeacutem agrave Retoacuterica das Paixotildees para entendermos o fomacrboj Em nosso estudo da Poeacutetica no

segundo capiacutetulo vimos que Aristoacuteteles afirma que o sentimento de temor eacute gerado para com

nosso semelhante (Poeacutetica XIII 1453a 5-6) Entatildeo para que esse sentimento seja melhor

compreendido buscamos na Retoacuterica das Paixotildees um maior esclarecimento sobre o fomacrboj

o que ele significa como ele eacute suscitado enfim Assim Aristoacuteteles (2003) define o fomacrboj

ἔζησ δὴ ὁ θόβνο ιύπε ηηο ἢ ηαξαρὴ ἐθ θαληαζίαο κέιινληνο θαθνῦ

θζαξηηθνῦ ἢ ιππεξνῦ νὐ γὰξ πάληα ηὰ θαθὰ θνβνῦληαη νἷνλ εἰ ἔζηαη

ἄδηθνο ἢ βξαδύο ἀιι᾽ ὅζα ιύπαο κεγάιαο ἢ θζνξὰο δύλαηαη θαὶ ηαῦηα ἐὰλ

κὴ πόξξσ ἀιιὰ ζύλεγγπο θαίλεηαη ὥζηε κέιιεηλ132

(Retoacuterica das Paixotildees II 5 21-25)

131

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100553Asection3D1450b

retirado agraves 0900h em 18 de outubro de 2010 132

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100593Abook3D23Achapter

3D53Asection3D1 retirado agraves 2012h em 15 de outubro de 2010

132

Seja entatildeo o temor certo desgosto ou preocupaccedilatildeo resultantes da suposiccedilatildeo

de um mal iminente ou danoso ou penoso pois natildeo se temem todos os

males por exemplo o de que algueacutem injusto ou de espiacuterito obtuso mas sim

aqueles males que podem provocar grandes desgostos ou danos e isso

quando natildeo se mostram distantes mas proacuteximos e iminentes133

(ARISTOacuteTELES 2003 p31)

Pela definiccedilatildeo observamos que o fomacrboj eacute suscitado por um mal que

injustamente acarreta danos graves a uma pessoa e aleacutem do mais aparece na iminecircncia de

ocorrer tambeacutem para outrem - assim este veraacute em si surgir o fomacrboj Aristoacuteteles (2003)

completa ainda que satildeo temiacuteveis os danos sem soluccedilatildeo gerados por forccedila superior e que soacute

tememos por aquilo que tambeacutem podemos vir a sofrer Aleacutem disso o temor surge quando o

ouvinte presencia o sofrimento de algueacutem mais forte superior ou semelhante a ele Explica-

nos Aristoacuteteles

ὥζηε δεῖ ηνηνύηνπο παξαζθεπάδεηλ ὅηαλ ᾖ βέιηηνλ ηὸ θνβεῖζζαη αὐηνύο ὅηη

ηνηνῦηνί εἰζηλ νἷνλ παζεῖλ (θαὶ γὰξ ἄιινη κείδνπο ἔπαζνλ) θαὶ ηνὺο

ηνηνύηνπο δεηθλύλαη πάζρνληαο ἢ πεπνλζόηαο θαὶ ὑπὸ ηνηνύησλ ὑθ᾽ ὧλ νὐθ

ᾤνλην θαὶ ηαῦηα ltἃgt θαὶ ηόηε ὅηε νὐθ ᾤνλην (Retoacuterica das Paixotildees II 5

8-12)

Assim quando eacute melhor que os ouvintes sintam temor eacute preciso pocirc-los nessa

disposiccedilatildeo de espiacuterito dizendo-lhes que podem sofrer algum mal pois

outros mais fortes que eles sofreram e mostrar-lhes que pessoas como eles

sofrem ou sofreram por parte de que natildeo imaginavam essas provaccedilotildees e em

circunstacircncias que natildeo esperavam (p 35)

Diante das definiccedilotildees e explicaccedilotildees acima podemos sugerir entatildeo que o fomacrboj eacute

suscitado em Odisseu atraveacutes do canto de Agamecircmnon tendo em vista que o Laertida eacute

colocado a defrontar-se com um grande mal imerecido injusto que ao mesmo tempo

aparece-lhe iminente jaacute que ele pode vir a passar pelo mesmo quando voltar a Iacutetaca Aleacutem

disso esse mal eacute sofrido por um superior que padeceu de um mal inesperado Assim

constatamos que Odisseu aleacutem de ser inspirado pela compaixatildeo (esup1leoj) tambeacutem o eacute pelo

temor (fomacrboj) podendo desta forma chegar agrave kaqarsij dos seus sofrimentos (Poeacutetica VI

1449b 24-28)

No Canto XI da Odisseacuteia por meio do diaacutelogo de Odisseu e Agamecircmnon no

Hades percebemos o traacutegico circundar a vida dos dois personagens O primeiro visualiza

como um espectador traacutegico a dolorosa e indigna morte do Atrida atraveacutes de sua narraccedilatildeo

133

(Trad FONSECA 2003 P31)

133

Essa visualizaccedilatildeo do traacutegico permite que em Odisseu sejam suscitados o fomacrboj e a esup1leoj

que o levam agrave kaqarsij ou seja a purificaccedilatildeopurgaccedilatildeo de todos seus padecimentos Jaacute em

relaccedilatildeo a Agamecircmnon percebemos atraveacutes da narraccedilatildeo que ele mesmo faz de sua morte que

ele natildeo eacute mais um heroacutei eacutepico como jaacute fora na Iliacuteada (2009) e sim bem mais proacuteximo do

heroacutei traacutegico atraveacutes do qual Eacutesquilo (2004) desenvolveu na trageacutedia Heroacutei esse envolto com

os elementos mais comuns de tragicidade o imerecido injusto aumlmartia a uAacutebrij a accedilatildeo

do daimacrmwn fazendo surgir a esup1leoj e o fomacrboj para desencadear na kaqarsij

No transcorrer da conversa lamuriosa entre Odisseu e o Atrida aparece o

eiAtildedwlon de Aquiles O Pelida questiona ao filho de Laertes o porquecirc dessa nova empreitada

e principalmente porque teve que ser logo no Hades local dos mortos sem consciecircncia em

que haacute apenas os simulacros dos homens que um dia viveram (XI 467-472) Jaacute podemos

perceber por essa fala de Aquiles a condiccedilatildeo miseraacutevel das sombras no Hades em que a

inconsciecircncia supera todas as gloacuterias que tiveram em vida O Laertida responde ao Pelida que

desde que saiu de Troacuteia natildeo retornou agrave paacutetria ao contraacuterio sofre a vagar pelas terras e que

sua visita ao Hades foi para consultar Tireacutesias para que este pudesse orientar-lhe sobre o

retorno para casa Odisseu depois de ter visto a lamentaacutevel situaccedilatildeo de Agamecircmnon espera

enfim ver que pelo menos o Pelida encontra-se glorificado apoacutes a morte por isso exclama

νὐ γάξ πσ ζρεδὸλ ἦιζνλ Ἀραηΐδνο νὐδέ πσ ἁκῆο

γῆο ἐπέβελ ἀιι᾽ αἰὲλ ἔρσ θαθά ζεῖν δ᾽ Ἀρηιιεῦ

νὔ ηηο ἀλὴξ πξνπάξνηζε καθάξηαηνο νὔη᾽ ἄξ᾽ ὀπίζζσ

πξὶλ κὲλ γάξ ζε δσὸλ ἐηίνκελ ἶζα ζενῖζηλ

Ἀξγεῖνη λῦλ αὖηε κέγα θξαηέεηο λεθύεζζηλ

ἐλζάδ᾽ ἐώλ ηῶ κή ηη ζαλὼλ ἀθαρίδεπ Ἀρηιιεῦlsquo134

(Odisseacuteia XI 481-486)

Pois ateacute esse momento nunca fui proacuteximo dos Acaios nem ainda

pus o peacute em nossa terra e sempre tenho enfrentado coisas maacutes

Contudo nenhum guerreiro Aquiles eacute mais abenccediloado do que tudo no

passado e no futuro]

Antes quando eras vivo eu e os Argivos honravamo-te tanto quanto aos

deuses]

agora aqui entre os mortos exerces grande poder

Assim sendo natildeo sofra por ter morrido Aquiles

Aquiles o maior e mais temido heroacutei grego na guerra de Troacuteia desceu ao Hades

com o destino que ele mesmo escolhera viver pouco mas ser honrado e glorificado em

134

Texto disponeacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D113Acard3

D440 retirado agraves 1828h em 15 de outubro de 2010

134

campo de batalha135

Eacute por isso que no Canto I da Iliacuteada (2009) ao ter perdido Briseida seu

precircmio de guerra (geraj) ele pede agrave matildee que cobre de Zeus a sua honra a timh pois jaacute que

morreraacute jovem ao menos que tenha uma curta existecircncia poreacutem gloriosa Vejamos o que ele

dissera a sua matildee cobrando a vida curta mas honrada

κῆηεξ ἐπεί κ᾽ ἔηεθέο γε κηλπλζάδηόλ πεξ ἐόληα

τιμήν πέξ κνη ὄθειιελ ιύκπηνο ἐγγπαιίμαη

Ζεὺο ὑςηβξεκέηεο λῦλ δ᾽ νὐδέ κε ηπηζὸλ ἔηηζελ (Iliacuteada I 353-355)

Matildee como me geraste de curta existecircncia

seria justo o Oliacutempio Zeus a minha honra fazer aumentar

aquele que ressoa do alto ceacuteu

O discurso de Odisseu ao encontrar o Pelida mostra que seu desejo foi cumprido

uma existecircncia curta poreacutem gloriosa tanto que o filho de Laertes reforccedila que enquanto

esteve vivo foi honrado como um deus (XI 483) Como vemos Aquiles teve todas as

honrarias em vida sendo inclusive comparado a uma figura divina Assim jaacute que Zeus

concedeu-lhe o destino cobrado (ver Canto I da Iliacuteada) entatildeo eacute de se imaginar que agora

morto Aquiles continua feliz ateacute mesmo porque realiza domiacutenio sobre os mortos Esta razatildeo

faz com que Odisseu entenda que de nada poderia o Pelida se queixar (XI 485-486) Odisseu

apoacutes tanto ter sofrido ao ouvir a desonrosa morte que teve o seu comandante Agamecircmnon

imagina que enfim veraacute um de seus heroacuteicos companheiros satisfeito com a vida e com o

poacutes-morte que teve Vimos que na conversa com o Atrida ele se encheu de esup1leoj e fomacrboj

mas agora com o Pelida pensa ser diferente atenuando todo o seu temor ao ver que um de

seus companheiros tivera a vida e o destino que almejara que eacute desejo de todo o heroacutei ter

gloacuteria e honra tanto em vida quanto em morte Contudo mais uma vez sua expectativa seraacute

desconstruiacuteda e Aquiles responde-lhe

―ὣο ἐθάκελ ὁ δέ κ᾽ αὐηίθ᾽ ἀκεηβόκελνο πξνζέεηπε

κὴ δή κνη ζάλαηόλ γε παξαύδα θαίδηκ᾽ δπζζεῦ

βνπινίκελ136

θ᾽ ἐπάξνπξνο ἐὼλ ζεηεπέκελ ἄιιῳ

135

No primeiro capiacutetulo do nosso trabalho fizemos uma explanaccedilatildeo sobre o destino de Aquiles e a sua escolha

fato que estaacute narrado no Canto I da Iliacuteada (2009) 136

Atraveacutes dos optativos bouloimhn deboulomai ndash desejar preferir e eiAtildeh- infinitivo optativo de eiAcircmi-ser

exprime-se o desejo de Aquiles pois ele bem sabe que natildeo pode ser mais realizado pois seu destino jaacute foi

selado

135

ἀλδξὶ παξ᾽ ἀθιήξῳ ᾧ κὴ βίνηνο πνιὺο εἴε

ἢ πᾶζηλ λεθύεζζη θαηαθζηκέλνηζηλ ἀλάζζεηλ137

(Odisseacuteia XI 487-491)

Desse modo dizia ele imediatamente mudando falou

Natildeo me convenccedila da morte ilustre Odisseu

Pois eu preferiria viver sendo trabalhador de campo para um

Homem ateacute mesmo sem recursos se bem vivo eu estivisse

a ser rei de todos estes cadaacuteveres dos que morreram

Aquiles como mostra a passagem acima mostra-se arrependido da escolha que

fizera em ter uma vida guerreira curta ao inveacutes de uma vida longa e comum Esse discurso

potildee em questatildeo o valor da vida guerreira e toda a sua nobreza por isso Platatildeo considera

perigosas passagens como essas elaboradas por Homero (Repuacuteblica III ndash 386c-d) O Pelida

ao levantar o arrependimento da vida guerreira que tivera potildee em questatildeo os maiores valores

para o mundo grego E essa tomada de decisatildeo que eleva o homem mais tarde ao

arrependimento aflige-no e torna-o um sujeito traacutegico viacutetima de sua proacutepria escolha Por

isso diz-nos Vernant (2008) em Mito e trageacutedia na Greacutecia Antiga que o fato traacutegico

relaciona-se a deliberar tomar decisatildeo vindo desta sua proacutepria escolha todo seu mal daiacute o

fato traacutegico Isso tambeacutem nos lembra a exposiccedilatildeo no capiacutetulo anterior de Romilly (2008) em

A trageacutedia Grega de que o traacutegico implica uma accedilatildeo e esta seja boa ou maacute iraacute sempre trazer

ao heroacutei graves consequecircncias Em decorrecircncia disso a autora acredita na existecircncia de uma

inocecircncia do personagem traacutegico assegurando mesmo apoacutes a cataacutestrofe o seu heroiacutesmo

Aflito por sua proacutepria escolha e viacutetima inocente de sua proacutepria accedilatildeo o Aquiles

com o qual Odisseu depara-se no Hades natildeo eacute mais o heroacutei eacutepico honrado e glorificado

como um deus ele eacute agora se assemelha a um heroacutei traacutegico Naquele instante o Laertida

enxerga em Aquiles o arrependimento comum aos heroacuteis traacutegicos ―βοσλοίμην κ᾽ ἐπάροσρος

ἐὼν θηηεσέμενrdquo (Odisseacuteia Canto XI 489) ou seja ―pois eu preferiria viver sendo

trabalhador do campo mas para o qual natildeo haacute mais soluccedilatildeo pois o destino jaacute foi selado

Sandra Luna (2005) afirma-nos que no Hades Aquiles ―potildee em questatildeo os

valores mais aclamados entre os gregos a honra a nobreza e a riqueza (LUNA 2005 p

182) Valores estes que naturalmente tambeacutem aclamados por Odisseu fazem-no conflitar-se

natildeo apenas em ver Aquiles infeliz mas por vecirc-lo desprezar os valores que distinguem a honra

do guerreiro pela qual ele tanto lutou em Troacuteia Diante do espetaacuteculo inesperado Odisseu vecirc

137

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D113Acard3

D486 retirado agraves 1924h em 16 de novembro de 2010

136

o maior heroacutei grego em Troacuteia preferindo ser um simples trabalhador do campo E esse destino

injusto e imerecido para um heroacutei tatildeo valoroso e distinto faz Odisseu apiedar-se para com seu

semelhante ao mesmo tempo em que tambeacutem sente temor de vir a ter a mesma trajetoacuteria

Todo esse cenaacuterio suscita-lhe o fomacrboj e a esup1leoj sentimentos responsaacuteveis por

proporcionar-lhe a kaqarsij

A respeito de todo esse ―espetaacuteculocenaacuterio traacutegico realizado perante os olhos de

Odisseu queremos esclarecer que estruturalmente haacute dois fatos que permitem-nos essa

interpretaccedilatildeo no Canto XI O primeiro deles eacute a riqueza de detalhes como ilustramos no caso

do diaacutelogo de Odisseu com Agamecircmnon Detalhes esses utilizados como recurso na epopeacuteia

homeacuterica que tambeacutem influenciaram as trageacutedias Ateacute porque sabemos que nas encenaccedilotildees

das trageacutedias gregas as mortes natildeo eram realizadas na frente do puacuteblico cabendo aos

espectadores saber da ocorrecircncia das mortes por outros meios a exemplo da fala do coro Daiacute

a necessidade de detalhes para proporcionar ao puacuteblico o entendimento da accedilatildeo traacutegica

Mas aleacutem dessa riqueza de detalhes para presentificaccedilatildeo da cena narrada temos

no Canto XI outro elemento fundamental para representaccedilatildeo dramaacutetica e que foi alicerce para

as trageacutedias gregas os diaacutelogos Podemos observar que a estrutura do Canto XI eacute baseada nos

diaacutelogos que Odisseu teraacute com as sombras de sua matildee Agamecircmnon Aquiles Aacutejax enfim

Sobre o diaacutelogo Anatol Rosenfeld (1985) em A teoria dos gecircneros diz-nos que eacute atraveacutes

dele que a accedilatildeo dramaacutetica eacute manifestada aleacutem de ser o responsaacutevel por levar a accedilatildeo dramaacutetica

ao conflito Este que por sua vez eacute base para o traacutegico pois o protagonista deve estar em

conflito com algo seja consigo mesmo com os outros ou com o seu destino A necessidade

do conflito para a accedilatildeo traacutegica pode ser ilustrada nos diaacutelogos acima pois como vimos

Agamecircmnon conflitua-se com o destino imposto pelos deuses a morte indigna pelas matildeos da

esposa e Aquiles estaacute em conflito com a decisatildeo de destino que ele proacuteprio fez morrer jovem

em campo de batalha mas que agora preferia viver como ―ἐπάροσρος θηηεσέμενrdquo (XI 489)

ou seja um trabalhador do campo E para aleacutem desses importantes elementos numa

construccedilatildeo dramaacutetica mesmo que esteja sendo analisada sua presenccedila numa eacutepica Aristoacuteteles

diz-nos que o fomacrboj e a esup1leoj podem ser suscitados natildeo soacute atraveacutes da encenaccedilatildeo teatral

Vejamos o porquecirc

δεῖ γὰξ θαὶ ἄλεπ ηνῦ ὁξᾶλ νὕησ ζπλεζηάλαη ηὸλ κῦζνλ ὥζηε ηὸλ [5]

ἀθνύνληα ηὰ πξάγκαηα γηλόκελα θαὶ θξίηηεηλ θαὶ ἐιεεῖλ ἐθ ηλ

137

ζπκβαηλόλησλ ἅπεξ ἂλ πάζνη ηηο ἀθνύσλ ηὸλ ηνῦ Οἰδίπνπ κῦζνλ138

(Poeacutetica XIV 1453b 4-7)

Pois eacute preciso que tendo o mito manifestado-se os ouvintes mesmo sem ver

os trabalhos venham a arrepiar-se e apiedar-se dos acontecimentos eacute o que

sofreria algueacutem ouvindo o mito de Eacutedipo

Assim Odisseu ao presenciar os fatos traacutegicos na vida de seus companheiros se

apieda como tambeacutem sente temor E apoacutes ter-lhe revelado ser infeliz mesmo reinando sobre

os mortos Aquiles diz ser melhor saber notiacutecias do filho e do pai a ficar falando desses

assuntos O Pelida pergunta se o filho Neoptoacutelemo nas batalhas fica agrave frente ou atraacutes e se o

pai Peleu vive ainda honrado junto aos Mirmidotildees Odisseu diz natildeo poder dar notiacutecias de

Peleu mas sobre Neoptoacutelemo diz que o conduziu e que nas assembleacuteias era o primeiro a

falar sempre de modo adequado No discurso soacute perdia para Nestor e Odisseu mas nas

batalhas a todos vencia saindo de Troacuteia sem nenhum ferimento Aquiles alegra-se contudo

o cenaacuterio traacutegico natildeo eacute atenuado apesar da alegria momentacircnea de Aquiles pois ao seu redor

o quadro eacute destoante

αἱ δ᾽ ἄιιαη ςπραὶ λεθύσλ θαηαηεζλεώησλ

ἕζηαζαλ ἀρλύκελαη εἴξνλην δὲ θήδε᾽ ἑθάζηε139

(Odisseacuteia XI 541-542)

Mas as outras sombras dos que foram pegos para baixar a morte

tristes mantiveram-se a narrarem sua infelicidade

Discutimos no segundo capiacutetulo agrave luz de Sandra Luna (2005) que Homero

dissolve as cenas traacutegicas presentes em suas epopeacuteias exemplificando inclusive os

momentos dessa diluiccedilatildeo do traacutegico Contudo atraveacutes do que estamos analisando no Canto XI

da Odisseacuteia percebemos que as cenas traacutegicas satildeo sobrepostas sem atenuante Assim o

Laertida dialoga com Agamecircmnon depois com Aquiles e em cada um desses diaacutelogos

depara-se com a manifestaccedilatildeo do sentimento traacutegico E no fim do diaacutelogo com o Pelida ao

vermos este ter um instante de alegria logo pensamos que haveria uma dissolviccedilatildeo do traacutegico

mas ao contraacuterio a alegria momentacircnea do Pelida contrasta com o quadro de dor e

sofrimento de muitas almas tristes narrando umas para as outras seus proacuteprios infortuacutenios

138

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100553Asection3D1453b

retirado agraves 2035h em 02 de dezembro de 2010 139

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D113Acard3

D538 retirado agraves 2052h em 02 de dezembro de 2010

138

Isso nos mostra a presenccedila marcante da tragicidade no canto XI da Odisseacuteia e que natildeo eacute

dissolvida por atenuantes como banquetes confraternizaccedilotildees soluccedilotildees para o conflito cortes

de cena enfim Recursos atenuantes estes que vimos serem comuns na eacutepica homeacuterica e

inclusive ao longo da proacutepria Odisseacuteia como analisamos no toacutepico primeiro deste capiacutetulo O

que observamos ao lonho dos diaacutelogo eacute o traacutegico mediado em que Odisseu eacute o espectador

Odisseu na continuidade da narrativa ao ter-se deparado com a cena das almas

tristes a lamentarem seu destino observa Aacutejax afastado das outras almas Este aparenta ainda

estar inconformado com a disputa pelas armas de Aquiles da qual foram juiacutezes os filhos dos

troianos e a deusa Palas Atena Contudo Aacutejax natildeo consegue ver que a accedilatildeo do daimacrmwn foi

responsaacutevel por esta decisatildeo por isso ainda alimenta raiva de Odisseu fazendo com que este

imerecidamente sinta-se culpado pelo seu mal Assim o filho de Laertes exclama que

desejaria nunca ter ganho a disputa pelas armas de Aquiles jaacute que essa decisatildeo fez com que

Aacutejax o mais valoroso dos gregos depois de Aquiles viesse a morrer tragicamente (Odisseacuteia

XI 548-551)

Contudo o ressentimento era tatildeo grande para com Odisseu que o Telemocircnio natildeo

percebia que a forccedila superior fizera-o padecer E segundo Walter Friedrich Otto em

Teofania o reconhecimento de que uma forccedila maior levou-o ao traacutegico acaba por enobrececirc-

lo pois ―Por mais que o homem perceba ter cometido um erro e por graves que sejam para si

as consequecircncias isso natildeo o rebaixa enquanto ele reconhece estar nas matildeos da divindade

(OTTO 2006 p 80) Mas Aacutejax natildeo percebe a accedilatildeo do daimacrmwn ao contraacuterio responsabiliza

Odisseu que injustamente sofre a culpa da morte de um antigo e valoroso companheiro Natildeo

bastasse ter sido posto como responsaacutevel pela morte da matildee e pelos sofrimentos de seus

familiares o Laertida tem que carregar o traacutegico fardo do suiciacutedio de Aacutejax

O peso dessa imerecida culpa faz Odisseu lamentar-se por ter ficado com as armas

de Aquiles Entendamos a gravidade do desejo de Odisseu de natildeo ter sido contemplado com

as armas pois a disputa das armas do heroacutei que morria mostrava a distinccedilatildeo do heroacutei que as

herdava daiacute a inconformidade de Aacutejax Imaginemos entatildeo o valor das armas de Aquiles

que naturalmente simbolizaria para o seu herdeiro todo o prestiacutegio do maior heroacutei grego que

combateu em Troacuteia Desse modo as armas de Aquiles muito significavam Por obra divina

elas ficaram com Odisseu aiacute este encontra a grande queixa de Aacutejax Pois como era

considerado o maior depois de Aquiles considerava que ele deveria ser o detentor das armas

do Pelida Mas natildeo eacute o que ocorre Diante do sofrer do companheiro no Hades Odisseu

139

amargura-se desejando inclusive nunca ter ficado com aquelas armas apesar de todo o valor

delas

Ao natildeo reconhecer o desejo divino voltando toda a sua raiva para Odisseu Aacutejax

acaba sendo rebaixado ainda mais por natildeo ter como diz-nos Otto (2006) o ―reconhecimento

do erro que eacute enobrecido pela consciecircncia do divino e isso lhe preserva a grandeza de alma

() (Ibidem) Sem a consciecircncia da accedilatildeo divina Aacutejax culpa Odisseu por todo o seu mal

Sabemos que a partir dessa cena Soacutefocles inspira-se para composiccedilatildeo da peccedila Aacutejax em que

se narra a morte deste Morte esta que ele mesmo efetuou na busca de preservar ainda alguma

gloacuteria depois de ter matado animais pensando que matara os guerreiros gregos como

Agamecircmnon Menelau Odisseu Essa loucura como vemos na peccedila foi-lhe imposta para sua

cataacutestrofe por Atena a fim de proteger os demais de todo o seu oacutedio Mas Aacutejax natildeo se

convence por isso a peccedila iraacute refletir tambeacutem como jaacute o vemos neste Canto XI essa

responsabilidade dada por Aacutejax a Odisseu acusando este como culpado do seu mal140

Assim

culpado imerecidamente o filho de Laertes observa-se como aquele heroacutei traacutegico explicitado

por Vernant (2008) em Mito e Trageacutedia na Greacutecia Antiga que traz o mal natildeo soacute para si

como tambeacutem para os outros

Surpreendido pelo fato de Aacutejax ter-lhe rancor mesmo ali no Hades entre os

mortos Odisseu continua a falar ao Telamocircnio que as armas pelos deuses tornaram-se

malditas por isso que por elas veio a padecer o baluarte dos Aqueus Diz ainda que assim

como sofreram pela morte do Pelida sentiram tambeacutem profundamente a sua morte E mais

uma vez Odisseu tenta fazer com que Aacutejax reconheccedila a accedilatildeo divina e enobrecido por esse

reconhecimento venha a abrandar o coraccedilatildeo Vejamos

αἴηηνο ἀιιὰ Ζεὺο Δαλαλ ζηξαηὸλ αἰρκεηάσλ

ἐθπάγισο ἤρζεξε ηεῒλ δ᾽ ἐπὶ κνῖξαλ ἔζεθελ

ἀιι᾽ ἄγε δεῦξν ἄλαμ ἵλ᾽ ἔπνο θαὶ κῦζνλ ἀθνύζῃο

ἡκέηεξνλ δάκαζνλ δὲ κέλνο θαὶ ἀγήλνξα ζπκόλlsquo

140

Na Odisseacuteia Aacutejax natildeo reconhece ter sofrido pela accedilatildeo divina tanto que Odisseu enfatizaraacute isso vaacuterias vezes

para que ele natildeo lhe tenha oacutedio jaacute que ambos seja para o bem seja para o mal foram viacutetimas do desejo divino

Contudo por termos a leitura da peccedila sabemos que Aacutejax iraacute responsabilizar tanto Odisseu acusando-o de ser o

mais canalha do exeacutercito como tambeacutem a deusa Vejamos o momento em que ele reconhecendo que caiacutera no

traacutegico percebe a accedilatildeo de Atena

ἀιιά κ᾽ ἁ Δηὸο ἀιθίκα ζεὸο ὀιέζξη᾽ αἰθίδεη

140

(Aacutejax 394-403)

Todavia a filha de Zeus

o poderoso deus

atormenta-me para destruiccedilatildeo

140

―ὣο ἐθάκελ ὁ δέ κ᾽ νὐδὲλ ἀκείβεην βῆ δὲ κεη᾽ ἄιιαο

ςπρὰο εἰο Ἔξεβνο λεθύσλ θαηαηεζλεώησλ141

(Odisseacuteia XI 559-564)

Todavia a culpa eacute de Zeus que terrivelmente odiou o exeacutercito

dos guerreiros Dacircnaos ele te colocou o destino funesto

Poreacutem conduzi-te para aqui heroacutei para que possas ouvir a

minha palavra e a minha histoacuteria domina a ira do teu valoroso coraccedilatildeo

Assim eu falava ele nada respondia e caminhou com as outras

almas que haviam morrido para o Eacuterebo

Como percebemos apesar de todas as tentativas de Odisseu de abrandar o rancor

de Aacutejax tudo eacute em vatildeo e este parte sem nada dizer-lhe desprezando o astuto guerreiro Para

entendermos essa reaccedilatildeo de desprezo de Aacutejax para com Odisseu recorremos a Aristoacuteteles

(2003) em Retoacuterica das Paixotildees Para o filoacutesofo o sentimento de desprezo ―() eacute a

atualizaccedilatildeo de uma opiniatildeo acerca do que natildeo parece digno de consideraccedilatildeo () e diz ainda

que ―trecircs satildeo as espeacutecies de desprezo o desdeacutem a difamaccedilatildeo e o ultraje (ARISTOacuteTELES

2003 p7) Assim Aacutejax mostra desprezar Odisseu negando-lhe inclusive a palavra

mostrando-se indiferente para com toda a tentativa de Odisseu de reaproximaccedilatildeo E se

―desprezamos o que natildeo tem valor algum (Ibidem p9) Aacutejax natildeo apenas culpa Odisseu por

todo seu mal como tambeacutem o desdenha e desmerece todo seu valor Desse modo vemos que

o Telemocircnio desconsidera os combates em que juntos trouxeram a gloacuteria para os gregos

como tambeacutem a accedilatildeo conjunta nas empreitadas a exemplo da que os dois fizeram ao lado de

Fenice para convencer Aquiles a voltar a lutar com os gregos (Iliacuteada IX 167-169)

Culpado pela humilhaccedilatildeo e pelo fim da vida de seu companheiro e aleacutem do mais

desprezado por ele mesmo no Hades em que o seu destino jaacute fora selado Odisseu aproxima-

se da representaccedilatildeo do heroacutei traacutegico sem a gloacuteria e sem a honra consagrada ao heroacutei eacutepico

Como todo heroacutei traacutegico o filho de Laertes carrega a culpa pelo seu mal e pelo mal dos

outros mesmo quando foram os deuses que assim determinaram mesmo quando a

necessidade impelia-o a agir mesmo quando tentava agir bem Traacutegico tambeacutem eacute para

Odisseu observar que nem no Hades Aacutejax pocircde ficar bem livrando-se do mal que cercara

sua morte Ao contraacuterio natildeo bastasse o destino traacutegico que os deuses lhe reservaram ele

levou consigo para o Hades todo o rancor e o oacutedio pelo mal que lhe fizeram natildeo podendo

assim ficar em paz e gozar dos gloriosos feitos que fizera em vida Como vemos no Hades

toda a gloacuteria eacute esquecida as conquistas no campo de batalha as honrarias comuns ao heroacutei

141

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D113Acard3

D538 retirado agraves 2214h em 02 de dezembro de 2010

141

eacutepico satildeo apagadas Em vez da honra Odisseu vecirc que para Aacutejax natildeo haacute gloacuteria nem

consagraccedilatildeo eacutepica mas apenas a amargura e o ressentimento do heroacutei traacutegico na escuridatildeo do

Hades

Apoacutes a saiacuteda de Aacutejax Odisseu deseja ver outros mortos Entatildeo vecirc primeiro

Minos o filho de Zeus a distribuir a justiccedila depois vecirc Oriatildeo cercado por feras Tiacutecio tendo

seu fiacutegado devorado por dois abutres Tacircntalo castigado com sede e com fome diante de lago

cheio de aacutegua que seca quando ele vai beber e quando quer comer as frutas satildeo levadas pelo

vento no momento em que ele vai pegaacute-las das aacutervores vecirc Siacutesifo que carrega uma enorme

pedra que cai quando ele alcanccedila o topo do penhasco depois Odisseu vecirc a sombra de

Heacuteracles

O filho de Zeus reconhece-o e fala-lhe entre gemidos dos grandes trabalhos que

enfrentou Chega a associar os seus trabalhos com a nova empreitada de Odisseu (XI 618-

619) pois Heacuteracles teve que natildeo apenas ir ao Hades mas pegar o catildeo e depois devolvecirc-lo

tarefa que fez com ajuda de Atena e Hermes Esse encontro eacute importante pois serve de

imagem alegoacuterica para Odisseu do destino no qual deve espelhar-se O contato que tivera com

seus companheiros em Troacuteia foi suficiente para ele observar que eles natildeo satildeo mais modelos de

vida como eram quando heroacuteis eacutepicos Figurados neste Canto XI como heroacuteis traacutegicos

Odisseu natildeo pode espelhar-se em seus destinos muito menos dos castigados (Tacircntalo Siacutesifo

etc) Deve entatildeo ter Heacuteracles como o protoacutetipo heroacuteico daquele que apesar dos muitos

trabalhos e das vivecircncias traacutegicas veio alcanccedilar no fim da vida a gloacuteria eterna e

recompensado pelos sofrimentos foi morar ao lado dos deuses no Olimpo Depois Heacuteracles

parte

Odisseu permanece ateacute que muitas almas aparecem em tumulto fazendo com que

ele se sinta tomado pelo medo (XI 633) amedrontado de que Perseacutefone enviasse-lhe a cabeccedila

de Goacutergona Impelido pelo fomacrboj no imediato instante Odisseu sobe agrave nau e exorta os

soacutecios a embarcarem para que pudessem logo partir E assim o fazem terminando o Canto

XI

Como pudemos ver ao longo de nossa anaacutelise do Canto XI da Odisseacuteia muitos

satildeo os seus momentos de tragicidade justificando a nossa escolha desse Canto para a anaacutelise

central deste trabalho dissertativo Assim pudemos analisar a configuraccedilatildeo traacutegica do heroacutei

observada a partir de Agamecircmnon Aquiles e Aacutejax E reforccedilando a forte presenccedila traacutegica

contida nesse Canto viemos ter alguns seacuteculos apoacutes a produccedilatildeo dessa epopeacuteia a peccedila

Agamecircmnon primeiro livro da Oresteacuteia de Eacutesquilo como tambeacutem Aacutejax de Soacutefocles A

142

primeira baseada na traacutegica morte do Atrida e em suas graves consequecircncias e a segunda

sobre o suiciacutedio de Aacutejax Ambos os fatos jaacute prenunciados e tragicamente desenvolvidos no

Canto XI da Odisseacuteia

Isso ocorre porque mesmo o heroacutei eacutepico estaacute facilmente propenso agrave uAacutebrij jaacute que

ele ―estaacute sempre numa situaccedilatildeo limite e a areteacute a excelecircncia leva-o facilmente a transgredir

os limites impostos pelo meacutetron suscitando-lhe o orgulho desmedido e a insolecircncia (hyacutebris)

(BRANDAtildeO 1998 p 67) Ou seja inerentemente agrave estrutura do heroacutei seja eacutepico ou traacutegico

encontramos certa disposiccedilatildeo que lhe permite cometer a desmedida esta que por sua vez iraacute

encaminhaacute-lo definitivamente para aumlmartia ndash tornando-o de protagonista eacutepico em um

heroacutei com relevantes semelhanccedilas de um protagonista traacutegico

A tarefa de ir ao Hades e voltar jaacute era para Odisseu considerada impossiacutevel daiacute

seu desespero no momento em que Circe anuncia seu novo trabalho (X 496-498) Contudo

ele natildeo esperava que para acentuar ainda mais essa empreitada ele iria encontrar-se com a

matildee que ele natildeo sabia que morrera e com seus antigos companheiros em estado traacutegico de

insatisfaccedilatildeo com o destino acionado pelos deuses como eacute o caso de Agamecircmnon ou com o

destino escolhido por ele proacuteprio como eacute exemplificado atraveacutes de Aquiles ou ainda como

ocorre com Aacutejax inconformado e rancoroso com Odissseu sobre quem ele descarrega toda a

culpa do seu mal Aqueles valorosos heroacuteis eacutepicos no Hades natildeo passam de sombras de

eiAtildedwlon a vagarem paacutelidas sem consciecircncia sem nome sem honra E no instante em que

tecircm a razatildeo por causa do ritual feito por Odisseu natildeo recordam nada da gloacuteria e das

conquistas que tiveram quando heroacuteis eacutepicos ao contraacuterio restam-lhes apenas a lembranccedila e a

dor dos heroacuteis traacutegicos que se tornaram no final da vida E nesses como vimos o Laertida

natildeo pode espelhar-se pois como diz-nos Sandra Luna (2005)

Natildeo eacute por acaso que no aproveitamento da literatura grega como instrumento de

educaccedilatildeo humanista o heroacutei traacutegico desenha uma trajetoacuteria a ser evitada enquanto

a do heroacutei das epopeacuteias por seus gloriosos feitos mas sobretudo porque consegue

vencer o traacutegico projeta uma imagem a ser emulada Por tudo isso eacute possiacutevel

enquadrar a trageacutedia grega como uma estrateacutegia poeacutetica de racionalizaccedilatildeo do

traacutegico (LUNA 2005 p 383)

Configurados no Canto XI da Odisseacuteia como heroacuteis traacutegicos Agamecircmnon

Aquiles e Aacutejax natildeo mais podem servir para Odisseu como exemplo ao contraacuterio como todo e

qualquer heroacutei traacutegico seus caminhos devem ser evitados Desse modo em Odisseu como

espectador de todo esse cenaacuterio traacutegico satildeo suscitados os sentimentos de fomacrboj e esup1leoj O

primeiro porque todos eles satildeo seus semelhantes e ele estaacute suscetiacutevel a vivenciar o mesmo

143

tendo que portanto procurar fugir142

desses destinos Consequentemente a inspiraccedilatildeo desses

sentimentos levaraacute Odisseu agrave kaqarsij a fim de que tenha a purificaccedilatildeopurgaccedilatildeo desses

males (Poeacutetica 1449b) E apoacutes toda a vivecircncia traacutegica que o leva agrave kaqarsij Odisseu

pode enfim prosseguir purificado em seu caminho de retorno ao lar e da busca da gloacuteria

domeacutestica Pois como ele bem viu no Hades natildeo haacute lembranccedila das eacutepicas vitoacuterias e gloacuterias

resta aos mortos apenas o lamuacuterio pelo destino ingrato e a recordaccedilatildeo da traacutegica morte

Desse modo considerando-se que a kaqarsij como resultado da accedilatildeo traacutegica

constatamos que no Canto XI da Odisseacuteia a kaqarsij realiza-se no momento em que

Odisseu presencia situaccedilotildees traacutegicas de sua matildee e dos seus companheiros assim como

tambeacutem as escuta Assim essa narrativa permeada por elementos traacutegicos como aatildeth Moiordfra

asup1namacrgkh daimacrmwn aumlmartia uAacutebrij fomacrboj esup1leoj e asup1nagnwiquestrisij propicia a Odisseu

ser um espectador do traacutegico atraveacutes do que vecirc e ouve levando-o a kaqarsij Ao longo

deste trabalho pode-se observar a experiecircncia traacutegica vivida por Odisseu como rito de

passagem instrumento para o heroacutei passar pela kaqarsij e assim estar preparado para

finalizar sua jornada em Iacutetaca Com a realizaccedilatildeo da kaqarsij arriscamos a afirmar que

especificamente no Canto XI da Odisseacuteia Homero lega-nos natildeo apenas os germes traacutegicos

(Lesky 2006) mas a primeira representaccedilatildeo de um espectador traacutegico que eacute levado a

kaqarsij Assim tendo vivido e presenciado experiecircncias traacutegicas e tambeacutem tendo

purificado e purgado os sentimentos que foram suscitados com a kaqarsij Odisseu pocircde

seguir seu caminho de retorno a paacutetria- seu objetivo maior desde que saiacutera de Troacuteia

142

Verificar a explicaccedilatildeo dada no segundo capiacutetulo sobre fomacrboj que etimologicamente indica o medo que faz

fugir

144

Consideraccedilotildees finais

Em nosso trabalho dissertativo ―Tragicidade no Canto XI da Odisseacuteia Anticleacuteia

Agamecircmnon Aquiles Aacutejax analisamos o teor traacutegico que percorre a eacutepica Odisseacuteia mais

especificamente no Canto XI em que Odisseu encontra-se com sua matildee e com alguns que

foram seus companheiros na Guerra de Troacuteia A partir dos diaacutelogos desenvolvidos entre o

filho de Laertes com os demais personagens pudemos identificar diversos elementos traacutegicos

que inclusive seratildeo responsaacuteveis por desencadear em Odisseu a kaqarsij como resultado

dos sentimentos de fomacrboj e esup1leoj que lhe foram inspirados

A fim de alcanccedilar o objetivo pretendido desenvolvemos em nosso trabalho trecircs

capiacutetulos No primeiro intitulado ―Contextualizaccedilatildeo miacutetica e religiosa da Odisseacuteia fizemos

uma explanaccedilatildeo a respeito das representaccedilotildees miacuteticas e seus significados para o mundo

homeacuterico como tambeacutem realizamos uma apresentaccedilatildeo da Odisseacuteia Ainda discorremos sobre

a estrutura do poema eacutepico a ser estudado e do perfil multifacetado do seu heroacutei Odisseu

Todas essas informaccedilotildees contribuiacuteram para entendermos em qual contexto o traacutegico pocircde

despontar em meio a esse contorno eacutepico

No segundo capiacutetulo ―Traacutegico aspectos teoacutericos e conceituais discorremos

sobre a accedilatildeo traacutegica sua origem formaccedilatildeo seus elementos constitutivos e seus meios de

efetivaccedilatildeo literaacuteria Para tanto expusemos a relaccedilatildeo do traacutegico com a trageacutedia gecircnero atraveacutes

do qual foi consagrado aleacutem de discutirmos tambeacutem a configuraccedilatildeo do traacutegico na Poeacutetica

atraveacutes de Aristoacuteteles como tambeacutem por meio de outros autores que se dedicaram ao estudo

da accedilatildeo traacutegica Jean Pierre Vernant Pierre Grimal Jacqueline de Romilly Anatol Rosenfeld

Junito Brandatildeo e Sandra Luna

No terceiro capiacutetulo ―Tragicidade no Canto XI da Odisseacuteia Anticleacuteia Aquiles

Agamecircmnon e Aacutejax fizemos uma anaacutelise da realizaccedilatildeo do traacutegico dentro do contexto eacutepico

especificamente no Canto XI da Odisseacuteia Contudo para entendermos que essa tragicidade

natildeo era um fato isolado dentro da obra primeiro realizamos a identificaccedilatildeo e anaacutelise da

tragicidade presente ao longo da Odisseacuteia no primeiro toacutepico nomeado ―Odisseacuteia momentos

de tragicidade No segundo toacutepico depois de compreender que o traacutegico permeia toda a

Odisseacuteia analisamos o Canto XI a partir dos encontros de Odisseu no Hades com sua matildee

que ele natildeo sabia que morrera e com os antigos companheiros Agamecircmnon Aquiles e Aacutejax

todos sofrendo pelo destino traacutegico que a vida lhes reservou Como espectador das cenas

145

traacutegicas no Hades Odisseu ao mesmo tempo em que se apieda tambeacutem fica amedrontado de

vir a ter o mesmo destino traacutegico de seus companheiros em Troacuteia E todos esses encontros

proporcionam ao heroacutei de Iacutetaca vivenciar fatos traacutegicos e atraveacutes deles ser inspirado pelo

fomacrboj e pela esup1leoj levando-o agrave kaqarsij

146

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_______ IlIacuteada Traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes 5edRio de Janeiro Edioro 2009

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Gallimard 1989

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Trad Alexandre Hasnaoui Paris Les Belles Lettrers 2001

150

Joatildeo Pessoa ____ ____ ______

_____________________________________

Michelle Bianca Santos Dantas

Page 2: MICHELLE BIANCA SANTOS DANTAS

2

MICHELLE BIANCA SANTOS DANTAS

TRAGICIDADE NO CANTO XI DA ODISSEacuteIA

ANTICLEacuteIA AGAMEacuteMNON AQUILES E AacuteJAX

Dissertaccedilatildeo apresentada para avaliaccedilatildeo da obtenccedilatildeo

do tiacutetulo de Mestre na Aacuterea de Concentraccedilatildeo

Literatura e Cultura e Linha de Pesquisa Tradiccedilatildeo e

Modernidade Aleacutem dos elementos preacute e poacutes

textuais essa trabalho pesquisa constitui de trecircs

capiacutetulos Esta pesquisa doi desenvolvida atraveacutes do

Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Letras pela

Universidade Federal da Paraiacuteba

Orientador Prof Dr Arturo Gouveia de Arauacutejo

Joatildeo Pessoa ndash PB

2011

3

D192t Dantas Michelle Bianca Santos

Tragicidade no canto XI da Odisseacuteia Anticleacuteia Agamecircmnon Aquiles

e Aacutejax Michelle Bianca Santos Dantas - - Joatildeo Pessoa [sn] 2011

149f

Orientador Arturo Gouveia de Arauacutejo

Dissertaccedilatildeo (Mestrado) ndash UFPBCCHLA

1 Literatura e cultura 2 Literatura claacutessica 3 Homero 4 Gecircnero

traacutegico 5 Homero

UFPBBC CDU 82(043)

4

MICHELLE BIANCA SANTOS DANTAS

TRAGICIDADE NO CANTO XI DA ODISSEacuteIA

ANTICLEacuteIA AGAMEacuteMNON AQUILES E AacuteJAX

Dissertaccedilatildeo apresentada agrave Univesidade Federal da

Paraiacuteba como requisito parcial para obtenccedilatildeo do

tiacutetulo de Mestre na aacuterea de Literatura e cultura e

Linha de Pesquisa Tradiccedilatildeo e Modernidade

Aprovado em __________________________

BANCA EXAMINADORA

Prof Dr Arturo Gouveia de Arauacutejo (Orientador)

Universidade Federal da Paraiacuteba - UFPB

Profordf Drordf Sandra Luna (Examinadora)

Universidade Federal da Paraiacuteba - UFPB

Prof Dr Alzir Oliveira (Examinador)

Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN

Profordf Drordf Marinalva Vilar de Lima (Suplente)

Universidade Federal de Campina Grande - UFCG

5

A todos que comigo compartilharam as dificuldades e alegrias desta jornada

dedico este meu trabalho de Dissertaccedilatildeo

6

AGRADECIMENTOS

A Deus primeiramente agradeccedilo pelo dom da vida pelo amor e por toda

proteccedilatildeo Sem a forccedila divina eu natildeo conseguiria ultrapassar os obstaacuteculos enfrentados ao

longo deste mestrado

Agrave minha matildee D Bernadete agradeccedilo por ter me dado a luz iluminando-me no

meu nascer e no meu desenvolver assim como fez tambeacutem com minha irmatilde Mileyde a quem

agradeccedilo pela torcida

Ao meu esposo amado e fiel amigo agradeccedilo cada dia e cada segundo de

companheirismo e amor Juntos suportamos os desafios e renuacutencias juntos brindamos as

conquistas Por isso a Faacutebio agradeccedilo o amor que palavras natildeo tenho para expressar

Aos amigos agradeccedilo pelo apoio prestado pois estando perto ou distante sempre

torcem pelo meu sucesso e que naturalmente se reconhecem neste agradecimento

Agradeccedilo aos professores que foram importantes desde os passos iniciais da

minha vida acadecircmica Graccedila Martins Camen Servilla Elisalva Madruga Arturo Gouveia

como tambeacutem aos professores Milton Marques e Juvino Alves especialmente pela iniciaccedilatildeo

aos estudos claacutessicos

Ao meu orientador Prof Dr Arturo Gouveia agradeccedilo as pertinentes

consideraccedilotildees todo o aprendizado e a orientaccedilatildeo imparcial e efetiva

Agradeccedilo ao Prof Dr Fabriacutecio Possebon por dispor-se a revisar algumas

traduccedilotildees Ao Prof Dr Alzir Oliveira por aceitar a avaliar meu trabalho assim como a Profordf

Drordf Marinalva Vilar e a Prof Drordf Sandra Luna que atraveacutes de sua obra e de suas aulas

muito me ensinou sobre o traacutegico claacutessico

Agradeccedilo a Profordf Drordf Ana Marinho coordenadora do Programa de Poacutes-

Graduaccedilatildeo em Letras (PPGL) pelo apoio nesta jornada

Agrave Capes agradeccedilo o investimento que viabilizou a realizaccedilatildeo desta pesquisa

7

ὢ πόποι οἷον δή νυ θεοὺς βροτοὶ αἰτιόωνται

ἐξ ἡμέων γάρ φασι κάκ᾽ ἔμμεναι οἱ δὲ καὶ αὐτοὶ

σφῆισιν ἀτασθαλίηισιν ὑπὲρ μόρον ἄλγε᾽ ἔχουσιν

Oh grandes deuses Agora os mortais culpam os deuses

Pois de noacutes dizem vir a causa de todos seus males

quando]

eles mesmos por suas loucas presunccedilotildees suportam dores

contra o destino]

(Odisseacuteia I 32-34

8

RESUMO

O presente trabalho Tragicidade no Canto XI da Odisseacuteia Anticleacuteia

Agameacutemnon Aquiles e Aacutejax visa analisar os aspectos traacutegicos observados no Canto XI da

Odisseacuteia e consequentemente sua relevacircncia na estrutura da referida eacutepica homeacuterica Esses

aspectos seratildeo estudados a partir dos encontros de Odisseu no Hades com a sua matildee

Anticleacuteia Agameacutemnon Aquiles e Aacutejax Para tanto utilizaremos entre outras obras A

Poeacutetica de Aristoacuteteles e suas consideraccedilotildees sobre o gecircnero eacutepico e o traacutegico Esta obra seraacute

fundamental para o desenvolvimento do nosso trabalho por ser um legado dos mais

importantes que temos sobre a definiccedilatildeo dos gecircneros e da estrutura da poicenthsij Aleacutem do

mais nela tambeacutem encontramos consideraccedilotildees sobre os elementos traacutegicos como aatildeth

Moiordfra asup1namacrgkh daimacrmwn aumlmartia uAacutebrij fomacrboj esup1leoj asup1nagnwiquestrisij e

principalmente sobre a katarsij Tais elementos como analisaremos tambeacutem podem ser

reconhecidos na eacutepica homeacuterica Assim constataremos em nossa pesquisa a assertiva de

Aristoacuteteles no seacuteculo V dC acerca da intergenaricidade Como vemos esse fato natildeo eacute

privilegio das literaturas modernas mas ao contraacuterio pode ser contemplado desde o Periacuteodo

Arcaico da Literatura Grega no seacuteculo VIII aC a partir de Homero e no caso especiacutefico do

nosso estudo no Canto XI da Odisseacuteia Neste observamos a manifestaccedilatildeo da tragicidade

que mais tarde no seacuteculo V aC seraacute o fundamento miacutetico das trageacutedias gregas Utilizaremos

tambeacutem para fundamentar-nos compreensatildeo do traacutegico autores como Vernant Pierre

Grimal Jacqueline de Romilly Sandra Luna Junito Brandatildeo entre outros A fim de que

possamos melhor abarcar o objetivo do nosso trabalho dividimo-lo em trecircs capiacutetulos o

primeiro intitulado ―Contextualizaccedilatildeo miacutetica e religiosa da Odisseacuteia o segundo ―Traacutegico

aspectos teoacutericos e conceituais e por fim o terceiro ―Tragicidade no Canto XI da Odisseacuteia

Anticleacuteia Agamecircmnon Aquiles Aacutejax em que analisaremos o aspecto traacutegico desses

encontros

Palavras-chave Literatura Claacutessica Homero Odisseacuteia Traacutegico

9

REacuteSUMEacute

Le preacutesent travail Tragiciteacute dans le Chant XI de lrsquoOdysseacutee Anticlea

Agamemnon Achilles et Ajax vise agrave analyser les aspects tragiques observeacutes dans le Chant XI

de llsquoOdysseacutee et en conseacutequence sa pertinance dans la structure de llsquoeacutepique homeacuterique

rapporteacutee Ces aspects seront eacutetudieacutes a partir des rencontres dlsquoOdysseus dans llsquoHadegraves avec

sa megravere Anticlea Agamemnon Achilles et Ajax De telle faccedilon nous utiliserons entre autres

oeuvres La Poeacutetique dlsquoAristote et ses consideacuterations sur le genre eacutepique et le tragique Cette

oeuvre sera fondamentale pour le deacuteveloppement de notre travail par ecirctre un heacuteritage des plus

importants que nous avons sur la deacutefinition des genres et de la structure de la poicenthsij En

outre dans cette oeuvre nous trouvons aussi consideacuterations sur les eacuteleacutements tragiques comme

aatildeth Moiordfra asup1namacrgkh daimacrmwn aumlmartia uAacutebrij fomacrboj esup1leoj asup1nagnwiquestrisij et

principalement sur la katarsij Tels eacuteleacutements comme nous analyserons peuvent aussi ecirctre

reconnus dans llsquoeacutepique homeacuterique Ainsi nous constaterons dans notre recherche llsquoassertive

dlsquoAristote au Ve siegravecle ap J-C concernant llsquointergeacuteneacutericiteacute Comme nous voyons ce fait

nlsquoest pas privilegravege des litteacuteratures modernes mais au contraire cela peut ecirctre envisageacute depuis

la Peacuteriode Archaiumlque de la Litteacuterature Grecque au VIIIe siegravecle avJ-C agrave partir dlsquoHomegravere et

dans le cas espeacutecifique de notre eacutetude dans le Chant XI de llsquoOdysseacutee Dans celui-ci nous

observons la manifestation de la tragiciteacute que plus tard au Ve siegravecle av J -C ce sera le

fondement mythique des trageacutedies grecques Nous utiliserons aussi pour se baser

compreacutehension du tragique auteurs comme Vernant Pierre Grimal Jacqueline de Romilly

Sandra Luna Junito Brandatildeo entre autres Afin que nous puissions mieux embrasser llsquoobjectif

de notre travail nous llsquoavons diviseacute en trois chapitres le premier intituleacute laquo Contextualisation

mythique et religieuse de llsquoOdysseacutee raquo le deuxiegraveme laquo Tragique aspects theacuteoriques et

conceptuels raquo et finalement le troisiegraveme laquo Tragiciteacute dans le Chant XI de llsquoOdysseacutee

Anticlea Agamemnon Achilles Ajax raquo ougrave nous analyserons llsquoaspect tragique de ces

rencontres

Mots-cleacute Litteacuterature Classique Homegravere Odysseacutee Tragique

10

SUMAacuteRIO

INTRODUCcedilAtildeO________________________________________________________11

1 CONTEXTUALIZACcedilAtildeO MIacuteTICA E RELIGIOSA DA ODISSEacuteIA___________17

11 Representaccedilotildees e significados do mundo homeacuterico___________________17

12 Apresentaccedilatildeo da Odisseacuteia_______________________________________23

121 A Estrutura do poema___________________________________ _28

122 Odisseu o heroacutei multifacetado _____________________________36

2 TRAacuteGICO ASPECTOS TEOacuteRICOS E CONCEITUAIS_____________________47

21 Uma breve consideraccedilatildeo sobre o nosso estudo do Traacutegico______________47

22 O traacutegico e a trageacutedia___________________________________________48

23 O Traacutegico na Poeacutetica___________________________________________60

24 A busca do traacutegico outras reflexotildees teoacutericas ________________________79

3 TRAGICIDADE NO CANTO XI DA ODISSEacuteIA ANTICLEacuteIA AGAMEcircMNON

AQUILES AacuteJAX________________________________________________________89

31 Odisseacuteia momentos de tragicidade_________________________________89

32 Tragicidade no Canto XI da Odisseacuteia Anticleacuteia Agamecircmnon Aquiles

Aacutejax___________________________________________________________________115

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS______________________________________________144

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS______________________________________146

11

INTRODUCcedilAtildeO

A Odisseacuteia (do grego Obrvbardusseia) cuja autoria eacute atribuiacuteda a Homero pertence

juntamente com a Iliacuteada ao chamado periacuteodo arcaico da literatura grega que compreende do

seacuteculo VIII aC ao seacuteculo V aC Ambas as epopeacuteias homeacutericas satildeo ―os mais antigos poemas

em grego que sobreviveram ateacute noacutes (HAUSER 1995 p55) e constituem verdadeiros

legados artiacutesticos Isso entre outros fatores explicaria o fato de em pleno seacuteculo XXI essas

epopeacuteias ainda nos trazerem a possibilidade de pesquisas e estudos demonstrando a

inesgotabilidade de leituras literaacuterias

Logo ao iniacutecio da narrativa percebemos que a Odisseacuteia canta o noacutestos o regresso

ao lar e a paacutetria Assim o argumento da Odisseacuteia eacute o regresso de Odisseu a Iacutetaca apoacutes vinte

anos em metade deste tempo o heroacutei ocupa-se nos combates travados na Guerra de Troacuteia e

nos outros dez anos passa errante por mar e terra Com base nessa narrativa homeacuterica

pretendemos realizar um estudo de aplicaccedilatildeo do traacutegico na Odisseacuteia especificamente no

Canto XI quando Odisseu em sua passagem pelo Hades encontra-se respectivamente com

Anticleacuteia sua matildee cuja morte ele ignorava Agamecircmnon que sofre pela traiccedilatildeo armada pela

sua esposa com o amante Egisto Aquiles inconformado preferindo ser um trabalhador

campestre a ter que reinar sobre os mortos e Aacutejax ressentido ainda com o ocorrido na

disputa das armas do filho de Peleu

Para que realizemos essa anaacutelise estudaremos diversos autores desde os claacutessicos

como Platatildeo ateacute os mais modernos como Jean-Pierre Vernant Junito Brandatildeo entre outros

Contudo ressaltamos que nossa fundamentaccedilatildeo teoacuterica seraacute a Poeacutetica de Aristoacuteteles

Na Repuacuteblica como sabemos Platatildeo nega o traacutegico e a poesia para a organizaccedilatildeo

estatal argumentando que a sociedade deveria vigiar ―() os que se aventuram a tratar desse

gecircnero de faacutebulas () pois natildeo apenas eacute falso tudo que contam como de tudo inuacutetil para os

futuros combatentes (PLATAtildeO 2000 p 117) Jaacute Aristoacuteteles em A Poeacutetica ao contraacuterio

refere-se agrave poesia natildeo apenas como instrumento de educaccedilatildeo mas como um ato de criaccedilatildeo

delineado por estruturas e caracteriacutesticas proacuteprias que deve ser antes de tudo verossiacutemil O

estudo aristoteacutelico da poihsij natildeo estaacute centralizado ao contraacuterio de Platatildeo nos valores que

ela veicula e sim na organicidade estrutural e interna Desta forma em A Poeacutetica Aristoacuteteles

define a epopeacuteia e a trageacutedia como ―imitaccedilatildeo de homens superiores (ARISTOacuteTELES 1988

p 109) No entanto ele tambeacutem nos informa que esses gecircneros diferem visto que a epopeacuteia

12

tem metro uacutenico forma narrativa e maior extensatildeo enquanto a trageacutedia por se realizar dentro

de um periacuteodo do sol eacute mais breve O pensador grego diz ainda que apesar de todas as partes

da epopeacuteia estarem na trageacutedia e a reciacuteproca natildeo ser verdadeira haacute alguns elementos da

trageacutedia que podem ser encontrados nas epopeacuteias E esse argumento seraacute fundamental para

nosso trabalho pois observaremos jaacute na epopeacuteia homeacuterica especificamente no Canto XI da

Odisseacuteia aspectos de tragicidade que seratildeo mais tarde no seacuteculo IV aC a essecircncia miacutetica

das trageacutedias sejam elas de Eacutesquilo Soacutefocles eou Euriacutepides

Deste modo nossa pesquisa justifica-se pela necessidade de sugerir uma leitura

criacutetica que promova uma atualizaccedilatildeo dessa obra claacutessica Isso porque esse poema homeacuterico

ultrapassa os limites geograacutefico-temporais da Greacutecia Antiga constituindo-se assim numa

obra universal Inclusive sabemos da importacircncia dos textos homeacutericos dentro da proacutepria

cultura grega sendo sempre citados pelos filoacutesofos como por exemplo Platatildeo em A

Repuacuteblica e em Iacuteon e Aristoacuteteles em A Poeacutetica Os textos homeacutericos influenciaram tambeacutem

a produccedilatildeo poeacutetica que os sucedeu a exemplo das contribuiccedilotildees dos tragedioacutegrafos Neste

caso especiacutefico podemos ver o Canto XI da Odisseacuteia como um prenuacutencio das peccedilas

Agamecircmnon de Eacutesquilo componente da Oresteacuteia e Aacutejax de Soacutefocles jaacute que estas

desenvolvem as circunstacircncias jaacute pronunciadas no canto eacutepico citado Agamecircmnon sofrendo

por uma armadilha montada pela proacutepria esposa e Aacutejax sentindo-se desonrado por ter sido

preterido na disputa das armas de Aquiles permanecendo-se indiferente a Odisseu Desta

maneira entendemos nosso trabalho como relevante para o aprofundamento das pesquisas na

aacuterea da Literatura Claacutessica especificamente no que diz respeito agrave eacutepica homeacuterica Odisseacuteia e

aos estudos do traacutegico Aleacutem do mais temos consciecircncia de que nossa pesquisa seraacute tambeacutem

importante aos estudiosos da literatura em geral os quais natildeo devem perder de vista o berccedilo

literaacuterio ocidental

Atraveacutes de nossa pesquisa ―Tragicidade no Canto XI da Odisseacuteia Anticleacuteia

Agameacutemnon Aquiles e Aacutejax analisaremos como jaacute foi dito aspectos traacutegicos na citada

epopeacuteia de Homero a partir da ida ao Hades de seu heroacutei Odisseu em busca do adivinho

Tireacutesias No Hades ele encontra natildeo soacute o adivinho que o auxiliaraacute no trajeto de retorno agrave

paacutetria como tambeacutem a sua matildee Anticleacuteia e os destacados heroacuteis que combateram ao seu

lado na Guerra de Troacuteia Agamecircmnon Aquiles e Aacutejax

Para fundamentarmos o nosso trabalho aleacutem de Aristoacuteteles utilizaremos outros

autores que vatildeo auxiliar-nos na compreensatildeo da estrutura da eacutepica e da manifestaccedilatildeo do

traacutegico O estudo destes temas sugere-nos a ocorrecircncia da interrelaccedilatildeo entre os gecircneros

literaacuterios fazendo-nos compreender que este procedimento natildeo eacute um qualificativo especiacutefico

13

das literaturas modernas jaacute que pode ser constatado desde a Antiguidade Claacutessica O proacuteprio

Aristoacuteteles (1449a) chega a afirmar que o cocircmico estaacute para a Iliacuteada assim como a trageacutedia

estaacute para Odisseacuteia

Deste modo versando sobre os aspectos dos gecircneros claacutessicos e de suas

caracteriacutesticas auxiliar-nos-atildeo outros autores como por exemplo Anatol Rosenfeld Em O

teatro eacutepico (1985) Rosenfeld conceitua as caracteriacutesticas substantivas ou adjetivas dos

gecircneros dizendo-nos que ―No fundo toda obra literaacuteria de certo gecircnero conteraacute aleacutem dos

traccedilos estiliacutesticos mais adequados ao gecircnero em questatildeo tambeacutem traccedilos estiliacutesticos mais

tiacutepicos dos outros gecircneros (ROSENFELD 1985 p 18) Albin Lesky em A trageacutedia grega

(2006) ao tratar sobre o problema do traacutegico ressalta que nas epopeacuteias homeacutericas ―jaacute se

encontram germes em que se prepara a primeira e ao mesmo tempo a mais perfeita

objetivaccedilatildeo da visatildeo traacutegica do mundo no drama do seacuteculo V (LESKY 1976 p 18) E

assim como Platatildeo no Livro X da Repuacuteblica destaca a referecircncia de Homero como o pai da

trageacutedia

Utilizaremos tambeacutem a obra Arqueologia da accedilatildeo traacutegica o legado grego (2005) de

Sandra Luna para dar-nos respaldo teoacuterico-criacutetico acerca das origens e conceitos do traacutegico

A autora considera ―ser possiacutevel identificar nos versos homeacutericos momentos de intensa

tragicidade (LUNA 2005 p 30) Satildeo estes momentos de tragicidade que analisaremos no

Canto XI da Odisseacuteia por percebermos que haacute neste canto especificamente uma maior

potencialidade traacutegica apesar de termos momentos de tragicidade por toda a obra A presenccedila

do traacutegico revela-se ateacute mesmo pela circunstacircncia por Odisseu na porta do Hades buscando

Tireacutesias para que possa indicar-lhe o caminho de volta para casa que jaacute tentava haacute anos

Todavia encontra imagens muito mais desoladoras ndash sua matildee morta por saudades suas e seus

amigos de combate Agamecircmnon Aquiles e Aacutejax O primeiro foi encontrar a morte ingloacuteria

em casa pela proacutepria esposa o segundo havia conquistado a bela morte em campo de batalha

mas preferia ser um trabalhador do campo e o terceiro mantinha-se ainda tomado pelo

sentimento de desonra por natildeo ter ficado com as armas de Aquiles Aleacutem do mais muito do

que Tireacutesias iraacute revelar eacute bastante traacutegico mesmo Odisseu sabendo que cumprindo todos os

desiacutegnios conseguiraacute voltar para casa Isso porque apesar de Odisseu ter a revelaccedilatildeo de que

teraacute o esperado retorno fica tambeacutem tendo o conhecimento de que deveraacute enfrentar ainda

muitos outros obstaacuteculos a exemplo do combate que travaraacute contra os pretendentes jaacute em

Iacutetaca

Sobre a origem da trageacutedia Junito Brandatildeo (2007) seguindo o jaacute afirmado por

Aristoacuteteles reafirma a ligaccedilatildeo de Dioniso com esse gecircnero dramaacutetico por isso diz ldquoA

14

trageacutedia nasceu do culto de Dioniso isto apesar de algumas tentativas ainda natildeo se

conseguiu negar Ningueacutem pocircde ateacute hoje explicar a gecircnese do traacutegico sem passar pelo

elemento satiacuterico (BRANDAtildeO 2007 p 9) Em ―Homero e seus poemas deuses mitos e

escatologia Junito Brandatildeo (1998) tambeacutem nos respalda ao dizer que a maior novidade

trazida pela Odisseacuteia ―estaacute no embriatildeo da ideacuteia de culpa e castigo em que a hyacutebris a

violecircncia a insolecircncia a ultrapassagem do meacutetron que seraacute a mola mestra da trageacutedia

comeccedilam a despontar (BRANDAtildeO 1998 p 134)

Com a realizaccedilatildeo da pesquisa supracitada pretendemos contribuir para a

ampliaccedilatildeo dos estudos sobre a Odisseacuteia de Homero enaltecendo a sua importacircncia literaacuteria

mas tambeacutem miacutetico-religiosa e sua inter-relaccedilatildeo traacutegica especificamente no Canto XI Para

tanto iremos expor as discussotildees acerca dos conceitos da epopeacuteia e do traacutegico realizadas

primeiramente por Aristoacuteteles que nos deu valiosas contribuiccedilotildees acerca dos gecircneros

claacutessicos e suas especificidades Tambeacutem realizaremos a traduccedilatildeo dos versos a serem citados

da Odisseacuteia para que entremos em contato com o texto original na perspectiva de nos

aproximarmos mais de sua estrutura morfossintaacutetica e semacircntica Seratildeo realizadas as

traduccedilotildees das citaccedilotildees da Poeacutetica por considerarmos este o texto teoacuterico base para a nossa

produccedilatildeo analiacutetica centralizada justamente na tragicidade do Canto XI da Odisseacuteia

Tracicidade esta que funciona como prenuacutencio das trageacutedias Aacutejax de Soacutefocles e Agamecircmnon

de Eacutesquilo

A fim de que melhor possamos abarcar o estudo do traacutegico no jaacute citado canto da

epopeacuteia homeacuterica dividimos o desenvolvimento do nosso trabalho em trecircs capiacutetulos que

seratildeo descriminados a seguir

No primeiro intitulado ―Contextualizaccedilatildeo miacutetica e religiosa da Odisseacuteia

realizaremos a apresentaccedilatildeo desta eacutepica destacando suas caracteriacutesticas e especificidade

temaacutetica e estrutural Assim discorreremos acerca das representaccedilotildees e significaccedilotildees comuns

ao mundo homeacuterico aleacutem de realizarmos uma apresentaccedilatildeo do poema a partir de sua

estrutura e de seu heroacutei Odisseu Deste analisaremos o caraacuteter multifacetado que eacute revelado

tanto em suas accedilotildees como preconiza Aristoacuteteles na Poeacutetica bem como atraveacutes dos seus

epiacutetetos polutropoj polumhtij entre outros Estes e outros epiacutetetos seratildeo aprofundados

estrutural e semanticamente no momento propiacutecio todavia os jaacute citados podem ser traduzidos

por o de muitas voltas e o muito astuto

O tiacutetulo do nosso segundo capiacutetulo eacute ―Traacutegico aspectos teoacutericos e conceituais

em que pretendemos discorrer acerca do traacutegico tanto pelo aspecto teoacuterico como tambeacutem

15

conceitual para que possamos entender melhor sua constituiccedilatildeo e manifestaccedilatildeo natildeo apenas

nas trageacutedias como tambeacutem na eacutepica homeacuterica principalmente no Canto XI da Odisseacuteia

Para tanto desenvolveremos primeiramente um subtoacutepico sobre o traacutegico e a trageacutedia

estabelecendo as relaccedilotildees existentes entre ambos Entatildeo partiremos para observar e discutir a

partir da Poeacutetica e posteriormente faremos a anaacutelise das perspectivas que outros teoacutericos tecircm

sobre o traacutegico e ateacute que ponto eles se aproximam distanciam ou auxiliam no entendimento

do traacutegico ressalta-se no entanto que o conceito de traacutegico para noacutes relevante eacute o claacutessico

especificamente o realizado no mundo grego

No terceiro capiacutetulo intitulado ―Tragicidade no Canto XI da Odisseacuteia Anticleacuteia

Aquiles Agamecircmnon e Aacutejax faremos a anaacutelise dos elementos motivadores de nossa

dissertaccedilatildeo Por isso consideramos conveniente logo no iniacutecio de nossa proposta dedicarmos

um subtoacutepico para ilustrar que ao decorrer de toda a obra podemos identificar momentos de

tragicidade Desta maneira veremos que o aspecto traacutegico natildeo se restringe ao Canto XI

objeto central de nossas ponderaccedilotildees tanto que poderemos encontraacute-lo em outros Cantos

Entretanto justificamos nossa escolha pelo Canto XI por enxergarmos como o que possui a

manifestaccedilatildeo mais traacutegica ao longo de toda a Odisseacuteia estes motivos e consideraccedilotildees seratildeo

discutidos no momento propiacutecio E no segundo toacutepico deste terceiro capiacutetulo ―Tragicidade

no Canto XI da Odisseacuteia Anticleacuteia Aquiles Agamecircmnon Aacutejax realizaremos a anaacutelise de

toda a nossa proposta inicial jaacute que ateacute laacute teremos maior possibilidade de apreendecirc-lo de uma

maneira mais consistente Ateacute mesmo porque nos capiacutetulos e toacutepicos anteriores discutiremos

com clareza necessaacuteria os elementos que nos ajudaratildeo a entender a proposta geral da

dissertaccedilatildeo e sua efetuaccedilatildeo analiacutetica

Partindo da perspectiva do traacutegico presente na Poeacutetica objetivamos realizar uma

aplicaccedilatildeo desse estudo no Canto XI da Odisseacuteia E assim tentarmos (fazer) compreender a

realizaccedilatildeo do traacutegico neste Canto homeacuterico Pois mesmo sabendo que o traacutegico soacute foi

desenvolvido efetivamente pelos tragedioacutegrafos gregos percebemos que sua realizaccedilatildeo eacute

comum jaacute nas epopeacuteias homeacutericas Desta maneira poderemos ver Homero como o poeta que

nos legou natildeo apenas as duas primeiras obras literaacuterias do Ocidente Iliacuteada e Odisseacuteia mas

tambeacutem as primeiras manifestaccedilotildees traacutegicas de nossa literatura

Ao longo de nossa pesquisa utilizamo-nos de diversas ediccedilotildees de uma mesma obra

tanto para realizaccedilatildeo das leituras como das traduccedilotildees (em que cotejamos as jaacute editadas

traduccedilotildees) Por isso indicaremos a seguir todas as ediccedilotildees usadas apesar de todas elas jaacute

constarem nas Referecircncias Bibliograacuteficas Acreditamos que tal procedimento facilitaraacute

16

metodologicamente a construccedilatildeo e a leitura do nosso trabalho Logo no decorrer do nosso

texto citaremos soacute o nome das obras e natildeo as datas de ediccedilotildees

Assim utilizamos para entendimento da Poeacutetica Repuacuteblica e Odisseacuteia aleacutem do

texto original as ediccedilotildees que listaremos a seguir Para Poeacutetica usamos Les Belles Lettres de

1979 com traduccedilatildeo de Hardy Cultrix de 1988 traduzida por Jaime Bruna Ars Poeacutetica de

1992 com traduccedilatildeo de Eudoro de Sousa Para Repuacuteblica fizemos uso das ediccedilotildees de I

mammut em Tutte le opere de 2009 e da Editora Universitaacuteria da UFPA de 2000 cuja

traduccedilatildeo foi feita por Carlos Alberto Nunes Para Odisseacuteia utilizamos Otoo Pierre Editores

de 1980 com traduccedilatildeo de Jaime Bruna a Livraria Saacute da Costa de 1980 traduzida por Dias

Palmeira e Alves Correia Les Belles Lettres 2002 por Victor Beacuterard e Ediouro de 2009

traduzida por Carlos Alberto Nunes

17

1 CONTEXTUALIZACcedilAtildeO MIacuteTICA E RELIGIOSA DA ODISSEacuteIA

11 Representaccedilotildees e significados do mundo homeacuterico

Segundo a tradiccedilatildeo Homero eacute o autor das duas primeiras obras literaacuterias do Ocidente

que nos chegaram Iliacuteada e Odisseacuteia Tal afirmaccedilatildeo contudo natildeo nos soluciona

problemaacuteticas como por exemplo o de sua bibliografia que ateacute hoje eacute um grande desafio

Mas se a ciecircncia moderna natildeo consegue provas de sua existecircncia permitindo-nos afirmar

seguramente quem foi Homero como viveu quando e onde nasceu Para a tradiccedilatildeo claacutessica

sua existecircncia eacute inquestionaacutevel por isso autores como Platatildeo Aristoacuteteles e Hesiacuteodo referem-

se claramente agrave sua figura Vejamos o que diz Platatildeo

() ῥεηένλ ἦλ δ᾽ ἐγώ θαίηνη θηιία γέ ηίο κε θαὶ αἰδὼο ἐθ παηδὸο ἔρνπζα

πεξὶ κήξνπ ἀπνθσιύεη ιέγεηλ (PLATAtildeO X 595 b-c)

Preciso falar dizia eu contudo o afeto e o respeito certamente que tenho

sobre Homero desde a infacircncia impede-me de falar1

Isso tambeacutem o faz Aristoacuteteles (Poeacutetica Livro III 1448 a 22-26) porque

discutindo acerca da poesia e de seus objetos de imitaccedilatildeo tambeacutem se refere objetivamente a

Homero e a sua poesia comentando sua produccedilatildeo eacutepica e caracteriacutesticas Como podemos ver

parece indiscutiacutevel para os gregos claacutessicos a existecircncia de Homero

No entanto deixando as incertezas biograacuteficas de lado compreendamos que o

autor da Odisseacuteia nosso objeto de pesquisa existiu provavelmente no periacuteodo arcaico da

literatura grega que compreende o periacuteodo do seacuteculo VIII ateacute V aC Homero produziu suas

eacutepicas no dialeto jocircnio com alguns empreacutestimos do eoacutelico e apesar de terem surgido

oralmente por volta do seacuteculo VIII aC soacute em VI aC eacute que passam para escrita a mando do

tirano Pisiacutestratos que acreditava descender de Nestor de Pilos Neste mesmo seacuteculo como

nos informa Hauser (1995 p63) havia uma lei que estabelecia obrigatoriamente a recitaccedilatildeo

completa dos poemas de Homero no Festival de Panateneacuteias Como no seacuteculo VI aC as

eacutepicas homeacutericas passaram para a forma escrita aleacutem de terem seus recitais como

1 Ressaltamos que as traduccedilotildees utilizadas ao longo do trabalho satildeo nossas Contudo quando natildeo o forem

indicaremos seus respectivos autores Aleacutem disso a finalidade das traduccedilotildees feitas eacute operacional sem fins

esteacuteticos

18

obrigatoacuterios crecirc-se que desde entatildeo os poemas homeacutericos natildeo sofreram tantas mudanccedilas em

relaccedilatildeo aos poemas orais iniciais

Para Albin Lesky em Historia da Literatura Grega (1995) Homero eacute iniacutecio e

resultado herdeiro e criador Ele eacute o iniacutecio e criador da poesia grega influente ao mesmo

tempo eacute o fim e o herdeiro de um longo resultado de desenvolvimento poeacutetico e miacutetico

Diante disso o que nos importa mesmo entender eacute que muito do que sabemos

hoje sobre o mundo grego arcaico veio-nos por meio das eacutepicas homeacutericas Iliacuteada e Odisseacuteia

que nos legaram as visotildees sobre os mitos os deuses os heroacuteis a organizaccedilatildeo social enfim O

que natildeo podemos esquecer eacute que natildeo haacute tatildeo facilmente uma uacutenica visatildeo de mundo sobretudo

quando contrapomos as duas eacutepicas pois aiacute as diferenccedilas comeccedilam a aumentar

Assim como vimos anteriormente existem ainda discussotildees acerca da

comprovaccedilatildeo histoacuterica de Homero suas nuances e complicaccedilotildees Isto faz com que natildeo

possamos afirmaacute-lo como autor da Iliacuteada e da Odisseacuteia e sim que estas obras tecircm sua

autoria atribuiacuteda a Homero No entanto uma nova incongruecircncia surge quando centralizamos

nosso estudo para a Odisseacuteia Resumindo entendamos entatildeo que se a autoria de Homero

para a Iliacuteada eacute incerta esta se amplia ainda mais em relaccedilatildeo agrave Odisseacuteia A causa desse fato

daacute-se porque analisando-se ambas as eacutepicas percebem-se diferenccedilas natildeo apenas temaacuteticas

mas estruturais e conceituais que nos fazem deduzir que aleacutem de a Odisseacuteia ter sido escrita

depois da Iliacuteada poderia inclusive natildeo ser homeacuterica Na verdade natildeo nos importa muito

saber se Homero foi o autor ou natildeo da Odisseacuteia ateacute porque nossa anaacutelise basear-se-aacute no texto

mas nos interessa sim perceber quais satildeo estas diferenccedilas entre a Iliacuteada e a Odisseacuteia

principalmente as de cunho estrutural e de concepccedilatildeo de mundo

Uma destas diferenccedilas por exemplo pode ser vista a partir da representaccedilatildeo da

a)reth Para W Jaeger (2001 p 27) Homero deu-nos o mais antigo testemunho da cultura

aristocraacutetica grega principalmente atraveacutes da a)reth 2 cent Seja ela manifestada pela excelecircncia

guerreira como ocorre na Iliacuteada seja pelas qualidades intelectuais como ocorre na Odisseacuteia

E ainda completa ―a Odisseacuteia exalta sobretudo no seu heroacutei principal acima da valentia que

passa a lugar secundaacuterio a prudecircncia e a astuacutecia (JAEGER 2001 p 27) Muitas outras

2 De acordo com Renato Romizi (2007) o tema deste nome abrvbarre eacute oriundo de abrvbarreskw piaccio ou seja

agradar seu radical abrvbarr indica superioridade daiacute abrvbarrethcent significa excelecircncia de bravura coragem no sentido

militar ou virtude meacuterito no sentido moral O Le grand Bailly daacute-nos a traduccedilatildeo meacuterite ou qualiteacute ou seja

meacuterito e qualidade num sentido de excelecircncia e tambeacutem nos aponta para abrvbarreiwn que se relaciona a coragem

valentia E o Liddell and Scottrsquos Greek-English Lexicon relaciona a abrvbarrethcent grega a uirtus latina e aponta

tambeacutem para uma diferenccedila de sentido em relaccedilatildeo ao valor guerreiro valour e o moral for virtue merit da

virtude ou do meacuterito Assim podemos entender abrvbarrethcent como a qualidade guerreira eou a distinccedilatildeo do meacuterito

da virtude de um homem nobre

19

diferenccedilas podem ser observadas mas por hora nos deteremos neste exemplo jaacute que no

proacuteximo toacutepico ―Apresentaccedilatildeo da Odisseacuteia discutiremos mais sobre essas questotildees

De todo o modo apesar de especificidades diversas o que importa eacute percebermos que

os heroacuteis homeacutericos buscam a timh a honra como meio de assegurarem sua a)reth

qualidade do guerreirodo nobre Isso porque ―() o homem homeacuterico soacute adquire consciecircncia

do seu valor pelo reconhecimento da sociedade a que pertence () ele mede a Arete proacutepria

pelo prestiacutegio que disputa entre seus semelhantes (Ibidem p 31) Portanto se tudo o que

almeja o homem homeacuterico eacute a timh para atraveacutes dela alcanccedilar a a)reth que eacute perpeacutetua daiacute

a sua negaccedilatildeo ou ultraje torna-se um grave problema pois ―Para o homem homeacuterico e para o

mundo da nobreza desse tempo a negaccedilatildeo da honra era em contrapartida a maior trageacutedia

humana(JAEGER 2001 p 31)

Muitos satildeo os exemplos na literatura grega a respeito dessa honra ultrajada

inclusive como disse Jaeger (2001) resultando em trageacutedia Aliaacutes o grande tema das

trageacutedias gregas seraacute justamente a queda de um heroacutei Em Aacutejax de Soacutefocles por exemplo o

heroacutei ao vecirc-se desonrado por ter sido preterido na disputa das armas de Aquiles parte para

vingar-se dos chefes gregos mas iludido por Atena mata animais do rebanho Ao reconhecer

a falha cometida resolve entatildeo matar-se por vecirc-se totalmente desonrado

Bem provavelmente estaacute no Canto I da Iliacuteada um dos maiores exemplos de

desonra da literatura grega Neste Canto Aquiles retira-se da guerra quando tem seu geraj

ou seja seu precircmio de guerra3 tomado por Agamecircmmnon Este geraj distingue o heroacutei dos

demais e sem ele natildeo pode ter a sua timh logo sem esta natildeo poderaacute alcanccedilar a a)reth A

importacircncia da timh fica bem clara nas palavras reclamantes de Aquiles a matildee vejamos

μῆτερ ἐπεί μ᾽ ἔτεκές γε μινυνθάδιόν περ ἐόντα

τιμήν πέρ μοι ὄφελλεν Ὀλύμπιος ἐγγυαλίξαι

355 Ζεὺς ὑψιβρεμέτης νῦν δ᾽ οὐδέ με τυτθὸν ἔτισεν

ἦ γάρ μ᾽ ἈτρεἸδης εὐρὺ κρείων Ἀγαμέμνων

ἠτίμησεν ἑλὼν γὰρ ἔχει γέρας4 αὐτὸς ἀπούρας5

(Iliacuteada I 353-357)

Matildee como me geraste de curta existecircncia

3 O referido precircmio era Briseide escrava de Aquiles que eacute tomada por Agamecircmnon ao ter que ceder a sua

escrava Criseide a fim de aplacar a fuacuteria de Apolo 4 Os destaques satildeo nossos

5 Texto disponiacutevel em

httpwwwhsaugsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_il01html acessado em 22 de

abril agraves 1604 hs

20

seria justo o Oliacutempio Zeus a minha honra fazer aumentar aquele que

355 ressoa do alto ceacuteu Agora em verdade ele natildeo me honra nem um

[pouco

pois o Atrida Agamecircmnon o poderoso senhor desonrou-me

jaacute que capturando tem o meu precircmio de guerra tendo ele mesmo

[arrancado-me

Esta busca de Aquiles em ter seu geraj e consequentemente sua timh eacute

natural e justificaacutevel pois este mundo grego arcaico girava em torno desses elementos Nesta

cena em que reclama agrave matildee sua honra e questiona o compromisso de Zeus com sua causa natildeo

haacute arrogacircncia por parte de Aquiles ele busca a realizaccedilatildeo de aidwj e nemesij ou seja do

pudor e da justiccedila Pois natildeo eacute justo que ele aleacutem de morrer jovem tenha tambeacutem que morrer

desonrado E tanto aidwj quanto nemesij ―satildeo em Homero conceitos constitutivos do

ideal eacutetico da aristocracia (JAEGER 2001 p28) Devemos perceber a significaccedilatildeo que estes

conceitos tecircm para o mundo homeacuterico e como satildeo representados a fim de que entendamos

seus valores e significados A citaccedilatildeo abaixo eacute bastante esclarecedora deste fato

Os heroacuteis travavam-se mutuamente com respeito e honra constantes

Assentava nisso toda a sua ordem social A acircnsia de honra era neles

simplesmente insaciaacutevel sem que isto seja caracteriacutestica moral peculiar aos

indiviacuteduos como tais Era natural e indiscutiacutevel que os heroacuteis maiores e os

priacutencipes mais poderosos exigissem uma honra cada vez mais alta Ningueacutem

receia na Antiguidade reclamar a honra devida a um serviccedilo prestado

(JAEGER 2001 p 31)

Como vemos eacute natural dos heroacuteis buscarem sua timh a fim de alcanccedilarem a

a)reth e isso para os gregos natildeo se confunde com vaidade mas pelo contraacuterio relaciona-

se agrave aspiraccedilatildeo do valor pessoal Na Odisseacuteia como jaacute foi dito essa a)reth estaacute relacionada agrave

virtude intelectual e natildeo guerreira como ocorre na Iliacuteada Por isso Odisseu destaca-se como

o polumhtij o muito astuto que remete a um valor intelectual diferentemente do epiacuteteto de

Aquiles aOacuteristoj a)xaiwcurrenn o melhor dos aqueus que se refere a sua qualidade guerreira de

superioridade de batalha em relaccedilatildeo aos demais

Aleacutem de observarmos essa modificaccedilatildeo conceitual que existe na a)reth da Iliacuteada

para a Odisseacuteia vecirc-se tambeacutem nesta a busca da gloacuteria feita atraveacutes da sobrevivecircncia e natildeo da

morte como ocorre na Iliacuteada Aquiles por exemplo pretende para ser imortalizado morrer

em campo de batalha jaacute Odisseu busca natildeo soacute viver mas sobreviver a todos os obstaacuteculos

para que em sua casa e em sua paacutetria alcance a gloacuteria domiciliar Esses fatos satildeo importantes

21

para que enxerguemos a natildeo homogeneidade nas representaccedilotildees e significaccedilotildees homeacutericas e

devem ser compreendidos em sua completude e diversidade O mundo grego representado por

Homero natildeo eacute homogecircneo assim sendo tambeacutem natildeo pode ser homogecircneo o mundo homeacuterico

de que tantos falam

A respeito da religiosidade Walter Friedrich Otto em Os deuses da Greacutecia (2005)

diz haver em Homero uma clara e natural expressatildeo religiosa Neste mundo de Homero vecirc-se

tambeacutem a organizaccedilatildeo divina a partir da religiatildeo oliacutempica que era segundo Otto mais

paternalista diferente da primordial relacionada agrave Gaicurrena a Terra e portanto mais ao

feminino Otto diz-nos tambeacutem que no mundo homeacuterico o contato com o morto natildeo vai

significar contaminaccedilatildeo ao contraacuterio do que comeccedila a ocorrer nas trageacutedias gregas Ao fazer

uma comparaccedilatildeo entre Hesiacuteodo e Homero ou seja dois representantes do mundo grego

arcaico Otto observa que em Hesiacuteodo temos narrativas mais proacuteximas do fantaacutestico do que

em Homero Segundo o autor Hesiacuteodo aproximar-se-ia do fantaacutestico com suas narraccedilotildees

sobre o surgimento do universo dos deuses dos poetas enfim Jaacute Homero ao contraacuterio

poupar-nos-ia de descriccedilotildees mais proacuteximas do fantaacutestico Para exemplificar sua tese Otto cita

o fato de que Atena mesmo epitetada por o)brimopater ou seja a filha do pai poderoso

natildeo teraacute em nenhum momento descriccedilatildeo do seu nascimento Atena como sabemos eacute

concebida a partir da cabeccedila do proacuteprio pai Zeus inclusive jaacute nascendo adulta e armada

Homero pode ateacute natildeo descrever este episoacutedio mas Hesiacuteodo o faz na Teogonia Vejamos o

excerto abaixo

Ζεὺς δὲ θεῶν βασιλεὺς πρώτην ἄλοχον θέτο Μῆτιν

πλεῖστα θεῶν εἰδυῖαν ἰδὲ θνητῶν ἀνθρώπων

ἀλλ ὅτε δὴ ῥ ἤμελλε θεὰν γλαυκῶπιν Ἀθήνην

τέξεσθαι τότ ἔπειτα δόλωι φρένας ἐξαπατήσας

890 αἱμυλίοισι λόγοισιν ἑὴν ἐσκάτθετο νηδὺν

Γαίης φραδμοσύνηισι καὶ Οὐρανοῦ ἀστερόεντος ()

Αὐτὸς δ ἐκ κεφαλῆς γλαυκώπιδα γείνατ Ἀθήνην

925 δεινὴν ἐγρεκύδοιμον ἀγέστρατον ἀτρυτώνην

πότνιαν ἧι κέλαδοί τε ἅδον πόλεμοί τε μάχαι τε

Ἥρη δ Ἥφαιστον κλυτὸν οὐ φιλότητι μιγεῖσα

γείνατο καὶ ζαμένησε καὶ ἤρισε ὧι παρακοίτηι

ἐκ πάντων τέχνηισι κεκασμένον Οὐρανιώνων6

(Teogonia 886-891924-929)

6 Texto disponiacutevel em httpwwwhs-

augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Hesiodoshes_theohtml acessado em 22 de abril agraves 2048

hs

22

Zeus rei dos Deuses primeiro desposou Astuacutecia

mais saacutebia que os deuses e os homens mortais

Mas quando ia parir a Deusa de olhos glaucos Atena

ele enganou sua entranhas com ardil

890 com palavras sedutoras e engoliu-a ventre abaixo

por conselhos de Terra e do Ceacuteu constelado

()

Ele proacuteprio da cabeccedila gerou a de olhos glaucos

925 Atena terriacutevel estrondante guerreira infatigaacutevel

soberana a quem apraz fragor combate e batalha

Hera por raiva e por desafio a seu esposo

natildeo unida em amor gerou Hefesto

nas artes brilho agrave parte de toda raccedila do Ceacuteu7

Ainda segundo Otto em Homero temos pela primeira vez uma ideacuteia clara a

respeito do destino humano Por isso no Canto XXII da Iliacuteada Atena ao impelir Heitor ao

combate com Aquiles natildeo o faz agir assim apenas por desafeto mas tambeacutem para ajudaacute-lo a

cumprir seu destino como bem explica Otto ―O divino se faz demoniacuteaco para quem foi

chamado pelo destino (2005 p 252)

Otto chama-nos a atenccedilatildeo para outro aspecto importante na representaccedilatildeo

homeacuterica a respeito da significaccedilatildeo das Moiras e as diferenccedilas de posicionamento em relaccedilatildeo

a elas por parte de Hesiacuteodo e Homero Desta maneira as Moiras referidas por Hesiacuteodo na

Teogonia fazem parte do mundo grego arcaico e cada uma cumpre uma funccedilatildeo especiacutefica

Cloto tece o fio da vida a Laacutequesis mede e a Aacutetropos corta

Na Teogonia elas satildeo sempre referidas no plural Moiras e satildeo representadas

como aquelas que nos datildeo bens e males ou seja datildeo a parte que nos cabe e esta pode ser boa

ou maacute Elas aparecem nomeadas tambeacutem por Queres Eriacutenias sempre no plural estatildeo sempre

pressentes em nascimentos mortes e casamentos e satildeo perseguidoras implacaacuteveis daqueles

que cometem crimes de sangue derramando sangue de parente Em Homero ao contraacuterio

essa representaccedilatildeo do destino eacute realizada no singular Moicurrenra e estaacute relacionada agraves

determinaccedilotildees negativas de morte quinhatildeo cataacutestrofe destino ndash esta observaccedilatildeo pode ser

feita principalmente na Iliacuteada Na Odisseacuteia contudo observamos uma exceccedilatildeo pois apesar

de serem unificadas daiacute a utilizaccedilatildeo do singular elas seratildeo responsaacuteveis pela determinaccedilatildeo do

destino de Odisseu e este estaacute destinado a alcanccedilar a meta traccedilada Mesmo assim apesar da

Moicurrenra ter-lhe destinado bens futuros Odisseu teraacute que passar por inuacutemeras dificuldades ateacute

7 Traduccedilatildeo de Jaa Torrano (2009)

23

que possa retornar ao lar Ateacute porque em Homero o caraacuteter da Moicurrenra eacute restritivo Assim

mesmo para Odisseu ela prescreve em muitos momentos que ele voltaraacute mas ainda natildeo ateacute

que venha a sofrer e cumprir todos os desiacutegnios

Na eacutepoca homeacuterica segundo Otto vemos tambeacutem a representaccedilatildeo de perda do

culto ao divino mais especificamente na Odisseacuteia Como exemplo maior desta situaccedilatildeo em

que o culto ao divino mostra-se enfraquecido constatamos em VIII v 267 a narraccedilatildeo por

Demoacutedoco do caso amoroso entre Ares e Afrodite servindo de contentamento para os

ouvintes assim o culto divino eacute transformado em diversatildeo Na Odisseacuteia Telecircmaco chega a

desconfiar se mesmo com a ajuda de Atena consiguiraacute vencer os pretendentes Esta

peculiaridade em Homero eacute importante pois influencia produccedilotildees poeacuteticas posteriores a

exemplo das trageacutedias em que o poder divino seraacute questionado

Sobre as variadas representaccedilotildees culturais que faz Homero do mundo grego

arcaico sabemos que ela natildeo eacute uniforme mesmo sendo a micecircnica a realidade central da

eacutepica homeacuterica Desse modo diz-nos Denys Page (1977) acerca da heterogeneidade

mimetizada por Homero que ―quando nos voltamos para o ambiente poliacutetico e social de

Homero a dificuldade estar em ele nos parecer um quadro composto com elementos de

civilizaccedilotildees diferentes (PAGE 1977 p 19) Assim temos nas obras homeacutericas todo um

arcabouccedilo de representaccedilotildees e evoluccedilotildees do mundo grego sejam estas religiosas culturais

linguumliacutesticas dos versos dos mitos heroacuteicos sejam divinas entre outras

12 Apresentaccedilatildeo da Odisseacuteia

A respeito da literatura grega podemos identificar no geral trecircs momentos

baacutesicos de produccedilatildeo literaacuteria ocorridos antes de Cristo satildeo eles o Periacuteodo Arcaico que se

inicia no seacuteculo VIII aC e termina em V aC o Periacuteodo Claacutessico de V aC ao seacuteculo IV aC

e o denominado Periacuteodo Alexandrino iniciado em IV aC e estendendo-se ateacute III aC

O Periacuteodo Arcaico (VIII ndash V a C) eacute o iniciador da literatura ocidental marcado

notadamente por forte influecircncia da oralidade dos rapsodos e aedos Nesse periacuteodo satildeo

compostas as obras iniciadoras de toda a literatura ocidental Iliacuteada e Odisseacuteia de Homero e

Teogonia e Os Trabalhos e os Dias de Hesiacuteodo A visatildeo de mundo dessa eacutepoca eacute regida pelas

24

leis da qemij para os deuses e dimacrkh para os homens o muordfqoj8 explica o mundo e sua

organizaccedilatildeo os heroacuteis defendem a paacutetria a famiacutelia e sua timh a honra para consagrarem-se

com a a)reth (a virtude guerreira intelectual da nobreza)

No Periacuteodo Claacutessico (seacuteculo V ndash IV a C) representa-se o mundo da poacutelis Nesse

periacuteodo natildeo haacute a centralizaccedilatildeo na lei divina dos deuses qemij nem na lei divina direcionada

aos homens dikh como ocorre no mundo arcaico Agora haacute o nomoj a lei escrita que deve

nortear os cidadatildeos da poacutelis Assim o loacutegoj atraveacutes do discurso e do raciociacutenio loacutegico eacute

quem explica o mundo sob a reflexatildeo filosoacutefica A literatura dessa fase representa por meio

das trageacutedias o conflito e a fragilidade humana diante desse mundo Dessa maneira observar-

se-aacute o conflito entre o muordfqoj e o loacutegoj ou seja os heroacuteis do mundo arcaico estaratildeo em

conflito com o novo mundo e suas novas leis Representam essa fase os tragedioacutegrafos

Eacutesquilo Soacutefocles e Euriacutepedes

No Periacuteodo Alexandrino (seacuteculo IV ndash III a C) temos a expansatildeo do mundo

grego atraveacutes de Alexandre o Grande (335-323 a C) e aproximadamente no seacuteculo III

aC a construccedilatildeo da Biblioteca de Alexandria que como sabemos reuacutene uma infinidade de

obras de extrema importacircncia sendo das maiores bibliotecas que o mundo antigo registra

Nesse periacuteodo Apolocircnio de Rhodes produz Argonaacuteuticas por volta de 295 aC Mas logo

apoacutes o povo romano que comeccedila a expandir suas conquistas e domiacutenios pelo mundo toma a

Greacutecia e a partir dessa influecircncia forma a sua proacutepria literatura

A Odisseacuteia entatildeo composta no seacuteculo VIII aC pertence ao chamado Periacuteodo

Arcaico (VIII ndash V a C) da literatura grega Sua autoria eacute atribuiacuteda a Homero e sabe-se que

foi produzida posteriormente agrave Iliacuteada apesar de natildeo podermos determinar com certeza qual o

periacuteodo de produccedilatildeo de ambas Contudo de acordo com Jaeger observamos que ―do ponto de

vista histoacuterico a Iliacuteada eacute um poema muito mais antigo A Odisseacuteia reflete um quadro muito

posterior da histoacuteria da cultura (JAEGER 2001 p 37) Na Iliacuteada temos como eixo central

da narraccedilatildeo a ira funesta de Aquiles sua retirada e retorno aos combates na Guerra de Troacuteia

Jaacute na Odisseacuteia o eixo estaacute no retorno de Odisseu agrave sua paacutetria e os combates que iraacute travar

com os pretendentes que apoacutes sua saiacuteda para a Guerra de Troacuteia invadem a sua casa

banqueteam-se diariamente pretendendo casar com a sua esposa e apossar-se de seus bens

8 Conforme nos esclarece Vernant em La gregravece ancienne du mythe agrave la raison (1990 p 9-11) em grego

arcaico mucurrenqoj significa palavra discurso mas a partir das discussotildees filosoacuteficas do seacuteculo V aC passa a

figurar em oposiccedilatildeo a logoj designando entatildeo a palavra pronunciada sem reflexatildeo racional contrariamente a

logoj que passa a ser o discurso racional diferenccedilas estas que natildeo existiam no mundo grego arcaico

25

Odisseu enfrenta muitos obstaacuteculos a fim de que possa retornar ao lar apoacutes vinte anos

afastado E ao voltar vecirc que desde entatildeo muitas coisas aconteceram seu filho que quando

ele saiacutera era apenas uma crianccedila cresceu sua matildee faleceu de saudades seu pai preferiu a

reclusatildeo sua esposa para ludibriar os pretendentes de dia tece uma mortalha para Laertes e

agrave noite desfaz-a Em suma o seu palaacutecio encontra-se invadido por pretendentes que natildeo

respeitaram os dons da hospitalidade e por isso seratildeo punidos

Realizando uma anaacutelise comparada entre a Iliacuteada e a Odisseacuteia podemos observar

algumas siginificativas diferenccedilas Entre elas podemos destacar a relaccedilatildeo entre o homem e o

divino Na Odisseacuteia por exemplo os homens possuem maior consciecircncia dos atos e

independecircncia em relaccedilatildeo aos deuses tanto que haacute pouca interferecircncia divina Natildeo

pretendemos dizer natildeo haver presenccedila divina na Odisseacuteia tanto que ilustramos algumas

dessas apariccedilotildees a trama inicia com uma assembleacuteia divina Palas Atena sempre acompanha

Odisseu eou Telecircmaco em suas jornadas e Possidon aparece para vingr-se para vingar-se de

quem feriu seu filho Polifemo Contudo percebe-se que haacute uma interferecircncia divina menor

se compararmos com a Iliacuteada Para este fato eacute bem ilustrativa a fala de Zeus abrindo a

Assembleacuteia dos Deuses no Canto I da Odisseacuteia sob o argumento de que os homens erram e

culpam os deuses por suas falhas Vejamos

ὢ πόποι οἷον δή νυ θεοὺς βροτοὶ αἰτιόωνται

ἐξ ἡμέων γάρ φασι κάκ᾽ ἔμμεναι οἱ δὲ καὶ αὐτοὶ

σφῆισιν ἀτασθαλίηισιν ὑπὲρ μόρον ἄλγε᾽ ἔχουσιν

35 ὡς καὶ νῦν Αἴγισθος ὑπὲρ μόρον ἈτρεἸδαο

γῆμ᾽ ἄλοχον μνηστήν τὸν δ᾽ ἔκτανε νοστήσαντα9 (Odisseacuteia I 32-36)

Oh grandes deuses Agora os mortais culpam os deuses

Pois de noacutes dizem vir a causa de todos seus males quando

eles mesmos por suas loucas presunccedilotildees suportam dores contra o destino

35 assim tambeacutem Egisto contra a decisatildeo do destino do Atrida

desposou a mulher legiacutetima e o matou depois do seu retorno

Na Iliacuteada ao contraacuterio temos a apariccedilatildeo e interferecircncia de diversos deuses em

diversos momentos da narrativa a fim de favorecerem seus aliados Apolo Atena Hera

Posiacutedon Ares Afrodite Apoacutes eles terem lutado a favor dos seus protegidos Zeus no Canto

VIII poriacutebe que eles atuem no campo de batalha vindo a liberaacute-los no Canto XX

9 Texto retirado de httpwwwhs-augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_od01html

agraves 1100hs de 15 de julho

26

Como vimos na Iliacuteada os deuses estatildeo o tempo todo a intervir a favor dos seus

Uma outra caracteriacutestica desta obra e que difere em relaccedilatildeo agrave Odisseacuteia estaacute no relato e

representaccedilatildeo social Isto ocorre porque na primeira haacute uma maior restriccedilatildeo em relaccedilatildeo aos

grupos sociais representados na obra em especial a aristocracia Jaacute a segunda possui um

quadro social mais amplo aparecendo a representaccedilatildeo natildeo soacute da aristocracia como tambeacutem

de pessoas de outra classe como porqueiros mendigo criadas enfim A representaccedilatildeo de

embates eacute mais acentuada na Iliacuteada que na Odisseacuteia por isso

O mais antigo dos poemas mostra-nos o predomiacutenio absoluto do estado de

guerra tal como devia ser no tempo das grandes migraccedilotildees das tribos gregas

A Iliacuteada fala-nos de um mundo situado num tempo em que domina

exclusivamente o espiacuterito heroacuteico da areteacute () A Odisseacuteia ao contraacuterio tem

poucas ocasiotildees para descrever o comportamento dos heroacuteis na luta

(BRANDAtildeO 1998 p 40)

A caracterizaccedilatildeo dos heroacuteis principais Aquiles da Iliacuteada e Odisseu da Odisseacuteia

tambeacutem forma outro ponto de divergecircncia entre os poemas Como sabemos o primeiro heroacutei

distingue-se por sua habilidade guerreira enquanto o segundo por sua habilidade com o

pensamento inteligecircncia Albin Lesky comparando os dois personagens resume de forma

esclarecedora a diferenccedila entre eles dizendo-nos que haacute ―uma prudente reflexatildeo frente a uma

nobre imoderaccedilatildeo um haacutebil espiacuterito de conciliaccedilatildeo face a uma brusca aspereza um prudente

caacutelculo do procedimento mais oportuno face agrave corrida precipitada pelo caminho mais curto

(LESKY 1995 p 60)

Em relaccedilatildeo agrave estrutura da Odisseacuteia comparando-a com a da Iliacuteada diz-nos

Aristoacuteteles no capiacutetulo 24 verso 1458b da Poeacutetica que aquela eacute bem mais complexa ateacute

mesmo por ter cenas de asup1nagnwiquestrisij Este como sabemos eacute um elemento estrutural

importante por atribuir mais complexidade ao enredo e na Odisseacuteia temos mais de uma

ocasiatildeo em que aparece asup1nagnwiquestrisij Por exemplo no Canto XVII versos 290-327 o

cachorro Argos reconhece Odisseu apoacutes vinte anos e jaacute cansado e velho aleacutem de toda a

emoccedilatildeo pela qual eacute tomado vem a falecer Observemos a cena como ocorre

300 ἔνθα κύων κεῖτ᾽ Ἄργος ἐνίπλειος κυνοραιστέων δὴ τότε γ᾽ ὡς ἐνόησεν10 Ὀδυσσέα ἐγγὺς ἐόντα

10

Este verbo ecopynoiquesthsen eacute o aoristo de noew que significa conhecer perceber Neste caso eacute importante

entendermos que o aoristo natildeo eacute tempo verbal nem modo e sim aspecto indicando a accedilatildeo pontual Essa

27

οὐρῆι μέν ῥ᾽ ὅ γ᾽ ἔσηνε καὶ οὔατα κάββαλεν ἄμφω ἆσσον δ᾽ οὐκέτ᾽ ἔπειτα δυνήσατο οἷο ἄνακτος ἐλθέμεν αὐτὰρ ὁ νόσφιν ἰδὼν ἀπομόρξατο δάκρυ ()

326 Ἄργον δ᾽ αὖ κατὰ μοῖρ᾽ ἔλαβεν μέλανος θανάτοιο αὐτίκ᾽ ἰδόντ᾽ Ὀδυσῆα ἐεικοστῶι ἐνιαυτῶι11 (Odisseacuteia XVII 290-327)

Ali jazia o cachorro Argos cheio de carrapatos

Por um lado como percebeu Odisseu passando proacuteximo

por outro abanou a cauda e baixou ambas orelhas

depois natildeo pocircde de ir para perto do seu senhor

Este tendo visto isso ao longe enxugou uma laacutegrima

Por sua vez o destino de negra morte levou Argos para baixo

Logo depois de ver Odisseu apoacutes vinte anos

Outros encontros de reconhecimento tambeacutem ocorrem ao longo da Odisseacuteia

como o de Telecircmaco que reconhece o pai quando este por orientaccedilatildeo de Atena aparece para

o filho em sua forma original (Canto XVI versos 180-219) o da ama Euricleacuteia que

reconhece Odisseu por meio de uma cicatriz (Canto XIX versos 467-500) Peneacutelope tambeacutem

reconhece o esposo quando este revela ter construiacutedo o proacuteprio leito ao casarem (Canto

XXIII versos 181-206) e Laertes pai de Odisseu reconhece o filho quando este lhe indica

todas as plantas que haacute na propriedade (Canto XXIV versos 320-346)

Como pudemos ver a Odisseacuteia possui suas peculiaridades em relaccedilatildeo agrave Iliacuteada

inclusive nas representaccedilotildees sociais e todas essas convergem para a afirmativa de que ela foi

escrita posteriormente A modificaccedilatildeo do sentido da abrvbarrethcent a ampliaccedilatildeo nas representaccedilotildees

sociais a relaccedilatildeo com os deuses a caracterizaccedilatildeo dos heroacuteis principais a complexidade

estrutural e o ponto de vista histoacuterico satildeo alguns exemplos de diferenccedilas existentes entre as

duas eacutepicas homeacutericas Por isso natildeo podemos referir-nos agraves eacutepicas homeacutericas englobando-as

num todo homogecircneo ateacute porque numa anaacutelise mais especiacutefica observamos diferenccedilas

relevantes apesar de possuiacuterem ligaccedilotildees claras uma com a outra

peculiaridade do verbo grego explica-se atraveacutes do verbo indo-europeu cujas formas indicavam apenas a noccedilatildeo

de aspecto E eram trecircs as noccedilotildees de aspecto o imperfectivo o perfectivo e o pontual (FARIA 1958) O

primeiro designava a accedilatildeo era inacabada o segundo a accedilatildeo acabada e o terceiro a accedilatildeo pontual por isso eacute

bastante usado em narrativas Na citaccedilatildeo acima Homero utilizou-se da forma do aoristo ecopynoiquesthsen que

traduzimos por ―percebeu ou seja indicando um fato pontual (aoristo) do momento em que o cachorro

reconhece Odisseu numa accedilatildeo que nem estaacute acabada (perfectivo) nem inacabado (imperfectivo) 11

Texto disponiacutevel em

httpwwwhsaugsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_od17html

28

A explanaccedilatildeo que fizemos tem como objetivo contextualizar situar e caracterizar o

nosso objeto de pesquisa o Canto XI da Odisseacuteia Tais referecircncias satildeo relevantes para que

compreendamos o seu todo e assim mais facilmente seja compreendida a nossa anaacutelise

especiacutefica que eacute analisar o traacutegico na Odisseacuteia mais especificamente no Canto XI

121 A Estrutura do poema

Como jaacute dissemos A Odisseacuteia enquadra-se no Periacuteodo Arcaico (VIII ndash V a C)

da literatura Grega e portanto possui marcas da oralidade como a repeticcedilatildeo e o uso de

epiacutetetos aleacutem de ter a partir do muordfqoj as explicaccedilotildees dos fatos Essa sociedade retratada

tem na a)reth a distinccedilatildeo de excelecircncia do nobre principalmente por meio do seu heroacutei

principal Odisseu soacute que mais especificamente relacionada agrave virtude intelectual de

inteligecircncia de astuacutecia e de prudecircncia

De estrutura complexa e narrada in medias res a Odisseacuteia naturalmente condiz

com os aspectos estruturais da epopeacuteia e que satildeo descritos por Aristoacuteteles no momento em

que a compara com a estrutura da trageacutedia Mas para que possamos entender a estrutura da

epopeacuteia faz-se necessaacuterio que entendamos primeiramente o que ela significa Esta

denominaccedilatildeo eacute oriunda do termo grego iexclepopoiia e serve para designar genericamente a

poesia eacutepica Esta palavra como indica Romizi (2007) eacute formada por eAtildepoj que significa

palavra o que eacute dito esta por sua vez relaciona-se ao verbo eagravepw dizer cantar nomear e a

poiew verbo temaacutetico que significa criar produzir Estes nomes possuem o mesmo radical

das palavras poihsij e poihthj a primeira refere-se agrave criaccedilatildeo poeacutetica e o segundo ao

criador da poesia A partir desse referencial etimoloacutegico podemos entender iexclepopoiia natildeo

simplesmente como poesia eacutepica como genericamente definem muitos dicionaacuterios mas como

o canto (eagravepw) daquilo que fora criado (poihsij) pelo poeta (poihthj) daiacute a formaccedilatildeo de

epopeacuteia (ecopypopoiia)

Assim entendido agora o que designamos como epopeacuteia podemos compreender

melhor a sua estrutura delineada primeiramente por Aristoacuteteles Na Poeacutetica o filoacutesofo define

a trageacutedia e para tanto realiza um estudo comparativo com a comeacutedia e com a epopeacuteia A

partir dessa comparaccedilatildeo podemos extrair o entendimento sobre a estrutura e as caracteriacutesticas

29

da epopeacuteia jaacute que em alguns momentos ela se assemelha e em outros diferencia-se da

trageacutedia objeto central da anaacutelise aristoteacutelica

Segundo Aristoacuteteles a trageacutedia e a epopeacuteia possuem uma semelhanccedila em relaccedilatildeo

aos objetos da imitaccedilatildeo isto porque em ambas imitam-se seres superiores os heroacuteis a

aristocracia enquanto que na comeacutedia satildeo imitados os chamados seres inferiores e todas as

suas caracteriacutesticas risiacuteveis Homero assim como os tragedioacutegrafos teria cantado com

unidade de accedilatildeo Assim explica Aristoacuteteles no capiacutetulo VII da Poeacutetica que Homero em suas

epopeacuteias delinea um argumento uacutenico agrupando-o com episoacutedios que convergem para o seu

eixo por isso natildeo canta toda a Guerra de Troacuteia nem muito menos todos os acontecimentos

da vida de Odisseu Apesar de que para Lesky (1995) haacute na Odisseacuteia algumas discussotildees

sobre a sua unidade principalmente em relaccedilatildeo agrave Telemaquia que vai do Canto I ao IV e que

alguns pensam ter sido uma parte ou um acreacutescimo Todavia mesmo diante dessas

controveacutersias Lesky diz-nos que nos importa saber que ela ―daacute voz a uma forccedila de

composiccedilatildeo e uma mestria de narraccedilatildeo que soacute se encontram nas grandes obras de arte Nesse

sentido tambeacutem ela constitui uma unidade (LESKY 1995 p 71)

Continuando a definiccedilatildeo sobre os gecircneros no capiacutetulo XXIV Aristoacuteteles diz que

a epopeacuteia difere da trageacutedia em relaccedilatildeo ao emprego e dimensatildeo do metro como tambeacutem pela

extensatildeo jaacute que a trageacutedia deve limitar seus fatos a um periacuteodo do sol enquanto a epopeacuteia

natildeo tem duraccedilatildeo limitada em contrapartida assemelham-se por tratarem de assuntos seacuterios

Como vemos a partir das comparaccedilotildees realizadas por Aristoacuteteles na tentativa de

elucidar as caracteriacutesticas da trageacutedia acabamos por compreender tambeacutem a estruturaccedilatildeo da

epopeacuteia Dessa maneira como epopeacuteia a Odisseacuteia nosso objeto de estudo realiza imitaccedilatildeo

de homens superiores possui argumento uacutenico e episoacutedios que o desenvolvem neste caso o

retorno de Odisseu Aleacutem de natildeo ter limitaccedilatildeo de duraccedilatildeo jaacute que durante toda a epopeacuteia

narram-se fatos ocorridos ao longo de vinte anos

Somado aos elementos estruturais da eacutepica apresentados por Aristoacuteteles e jaacute

exemplificados por noacutes anteriormente destacaremos agora a partir da Odisseacuteia o proecircmio a

narraccedilatildeo e o epiacutelogo que satildeo trecircs importantes elementos constitutivos do um texto eacutepico

O proecircmio eacute composto pela invocaccedilatildeo e pela proposiccedilatildeo Na Odisseacuteia ele se

encontra nos dez primeiros versos Atraveacutes da Teogonia (2007) entendemos o porquecirc da

invocaccedilatildeo processo no qual o poeta chama as Musas Vejamos o trecho abaixo

25 Μοῦσαι Ὀλυμπιάδες κοῦραι Διὸς αἰγιόχοιο

ποιμένες ἄγραυλοι κάκ ἐλέγχεα γαστέρες οἶον

30

ἴδμεν ψεύδεα πολλὰ λέγειν ἐτύμοισιν ὁμοῖα

ἴδμεν δ εὖτ ἐθέλωμεν ἀληθέα γηρύσασθαι

ὣς ἔφασαν κοῦραι μεγάλου Διὸς ἀρτιέπειαι

30 καί μοι σκῆπτρον ἔδον δάφνης ἐριθηλέος ὄζον

δρέψασαι θηητόν ἐνέπνευσαν δέ μοι αὐδὴν

θέσπιν ἵνα κλείοιμι τά τ ἐσσόμενα πρό τ ἐόντα

καί μ ἐκέλονθ ὑμνεῖν μακάρων γένος αἰὲν ἐόντων

σφᾶς δ αὐτὰς πρῶτόν τε καὶ ὕστατον αἰὲν ἀείδειν

35 ἀλλὰ τίη μοι ταῦτα περὶ δρῦν ἢ περὶ πέτρην12 (Teogonia 22-35)

Musas olimpiacuteades virgens de Zeus porta-eacutegide

―Pastores agrestes vis infacircmias e ventres soacute

sabemos muitas mentiras dizer siacutemeis aos fatos

e sabemos se queremos dar a ouvir revelaccedilotildees

Assim falaram as virgens do grande Zeus veriacutedicas

por cetro deram-me um ramo a um loureiro viccediloso

colhendo-o admiraacutevel e inspiraram-me um canto

divino para que eu glorie o futuro e o passado

impeliram-me a hinear o ser dos venturosos sempre vivos

e a elas primeiro e por uacuteltimo sempre cantar13

Assim como foi indicado na citaccedilatildeo acima na Odisseacuteia o poeta invocaraacute as

Musas a fim de que o ajudem a cantar o polumhtij ou seja o muito astucioso Odisseu No

proecircmio da Odisseacuteia como jaacute foi dito entre o primeiro e o deacutecimo verso do Canto I

encontramos tambeacutem a proposiccedilatildeo do poema e naturalmente o seu argumento que eacute cantar as

muitas aventuras e desventuras vividas por Odisseu e seus companheiros durante dez anos

desde que saiacuteram da Guerra de Troacuteia ateacute o retorno a Iacutetaca Vejamos

Ἄνδρα μοι ἔννεπε μοῦσα πολύτροπον ὃς μάλα πολλὰ

πλάγχθη14 ἐπεὶ Τροίης ἱερὸν πτολίεθρον ἔπερσεν

πολλῶν δ᾽ ἀνθρώπων ἴδεν ἄστεα καὶ νόον ἔγνω

πολλὰ δ᾽ ὅ γ᾽ ἐν πόντωι πάθεν ἄλγεα ὃν κατὰ θυμόν

5 ἀρνύμενος ἥν τε ψυχὴν καὶ νόστον ἑταίρων

ἀλλ᾽ οὐδ᾽ ὣς ἑτάρους ἐρρύσατο ἱέμενός περ

αὐτῶν γὰρ σφετέρηισιν ἀτασθαλίηισιν ὄλοντο

νήπιοι οἳ κατὰ βοῦς Ὑπερίονος Ἠελίοιο

12

Texto diponiacutevel em httpwwwhsaugsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Hesiodoshes_theohtml

retirado agraves 1633hs do dia 27 de abril de 2010 13

Traduccedilatildeo de Torrano (2009) 14

Neste proecircmio da Odisseacuteia verificamos que praticamente todas as formas verbais estatildeo no aoristo satildeo elas

plaiquestgxqh eOacutepersen iOacuteden eOacutegnw paiquestqen ecopyrruiquestsato oOacutelonto e acopyfeiiquestleto Essa constataccedilatildeo linguumliacutestica eacute

bem coerente com o teor literaacuterio desta citaccedilatildeo ateacute porque por tratar-se de um proecircmio em que os fatos satildeo

aunciados e resumido ao iniacutecio da narrativa entendemos natiralmente que natildeo deve haver noccedilatildeo verbal de

aspecto acabado (perfectivo) ou inacabado (imperfectivo) jaacute que as accedilotildees estatildeo sendo apenas pontualmente

assinaladas daiacute a pertinecircncia do uso do aoristo

31

ἤσθιον αὐτὰρ ὁ τοῖσιν ἀφείλετο νόστιμον ἦμαρ

10 τῶν ἁμόθεν γε θεά θύγατερ Διός εἰπὲ καὶ ἡμῖν15 (Odisseacuteia I 1-10)

Musa conta-me sobre o varatildeo de muitas voltas que muito

vagou depois que saqueou a sagrada cidade de Troacuteia

Viu as cidades de muitos homens e conheceu sua mente

no mar padeceu muitos sofrimentos de encontro ao seu acircnimo

esforccedilando-se por sua alma e pelo regresso dos companheiros

Poreacutem natildeo salvou os companheiros mesmo lanccedilando-se para isso

Pois pereceram por causa das accedilotildees insensatas deles mesmos

Tolos que devoravam os bois do Hiperiocircnio Sol

Por outro lado este os tirou o dia do retorno

Deusa filha de Zeus conta para noacutes a partir de qualquer ponto

Jaacute atraveacutes da narraccedilatildeo que eacute o desenvolvimento do argumento satildeo cantadas ao

longo dos vinte e quatro cantos e de seus quase treze mil versos todas as viagens e encontros

de Odisseu sua estada em Ogiacutegia a visita agrave Feaacutecia onde narra sua visita aos Lotoacutefagos aos

Ciclopes Eacuteolo os Lestrigotildees Circe a realizaccedilatildeo da evocaccedilatildeo aos mortos o encontro com as

Sereias Cila Cariacutebdes os Bois do Sol ateacute a sua volta para Iacutetaca onde efetua a chacina dos

pretendentes

No epiacutelogo por sua vez ocorre o fechamento da narrativa com uma nova

invocaccedilatildeo e com a abertura de perspectiva para um novo canto Na Odisseacuteia natildeo haacute uma

manifesta invocaccedilatildeo agraves Musas no fim da narraccedilatildeo como temos no iniacutecio mas deixa-se

abertura para um novo canto que neste caso seria o da instalaccedilatildeo da paz e da harmonia em

Iacutetaca Mas a paz para Odisseu e seu povo mesmo depois de vinte anos de aacuterduos e de intensos

trabalhos soacute iria se concretizar caso Odisseu seguindo as orientaccedilotildees de Tireacutesias dadas no

Canto XI fizesse uma nova viagem e cumprisse com os desiacutegnios divinos

Para que melhor possamos entender os episoacutedios ocorridos ao longo da Odisseacuteia e

o contexto em que se realiza o Canto XI - nosso objeto de anaacutelise - abaixo realizamos uma

siacutentese de cada Canto

Canto I - Ocorre a Assembleacuteia dos Deuses Os divinos reuacutenem-se com exceccedilatildeo de Posiacutedon a

fim de decidir o regresso de Odisseu a Iacutetaca visto que o heroacutei permanece na ilha de Calipso

haacute muito tempo sem perspectiva de regresso Fica decidido que ele deve voltar para sua paacutetria

e Atena disfarccedilada em Mentes rei dos Taacutefios vai ateacute Telecircmaco filho de Odisseu com

15

Texto disponiacutevel em

httpwwwhsaugsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_od01html retirado agraves 2107hs

de 27 de abril de 2010

32

Peneacutelope para aconselhaacute-lo e orientaacute-lo na busca do pai Neste iacutenterim ocorre a Festa dos

Pretendentes no palaacutecio de Odisseu

Canto II - Telecircmaco exortado por Atena convoca uma assembleacuteia com os itacenses para

solicitar um navio que o levasse a Pilo cidade de Nestor e a Esparta paacutetria do atrida

Menelau para que pudesse buscar informaccedilotildees sobre o pai Ele entatildeo parte escondido de sua

matildee logo apoacutes receber um navio de Noeacutemone e de revelar soacute a Euricleacuteia sobre sua partida

Canto III - O jovem priacutencipe chega a Pilo acompanhado por Atena disfarccedilada de Mentor e

encontram os Piacutelios no teacutermino da realizaccedilatildeo de sacrifiacutecios ao deus Posiacutedon Telecircmaco dirige-

se a Nestor perguntando por seu pai As suas respostas natildeo satildeo muito animadoras apenas faz

relatos sobre Troacuteia seu retorno com Menelau e o fim traacutegico de Agamecircmmnon Todavia

Nestor auxilia Telecircmaco em sua jornada enviando-lhe para Lacocircnia com Pisiacutestrato seu filho

Canto IV - Em Esparta Menelau recebe Telecircmaco com Pisiacutestrato O Atrida lhes conta sobre

o seu retorno dificultoso a destruiccedilatildeo de Troacuteia a profecia de Proteu a tristeza pela morte do

irmatildeo Agamecircmnon e a estadia de Odisseu na ilha de Calipso Telecircmaco natildeo tendo obtido as

notiacutecias que esperava prepara-se para retonar Em Iacutetaca ocorre uma assembleacuteia entre os

pretendentes a fim de tramarem uma emboscada para raptar Telecircmaco

Canto V ndash Na segunda Assembleacuteia dos Deuses fica decidido pelo imediato retorno de

Odisseu Atena solicita a Zeus para que Hermes vaacute a Ogiacutegia onde Odisseu estaacute retido e

liberte-o O cronida cumpre Entatildeo o heroacutei parte em uma jangada que construiu Jaacute no deacutecimo

oitavo dia em que navegava Odisseu eacute visto por Posiacutedon que levanta uma tempestade

destruindo a sua jangada Odisseu eacute salvo pelo veacuteu de Ino e chega agrave ilha dos Feaacutecios

Canto VI - Jaacute na terra dos Feaacutecios Odisseu eacute ajudado por Nausiacutecaa filha do rei dos Feaacutecios

A moccedila ao dormir sonha com Atena a pedir-lhe que fosse lavar roupas no rio Nausiacutecaa

obedece agraves instruccedilotildees de Atena e segue com algumas companheiras Apoacutes lavar as roupas

comeccedilam a brincar Odisseu que dormia desperta com o barulho e recorre ao auxiacutelio de

Nausiacutecaa Esta lhe concede oferece-lhe roupas e alimentos Eles partem para cidade

Canto VII - Seguindo as orientaccedilotildees de Nausiacutecaa ao chegar ao palaacutecio Odisseu ajoelha-se

aos peacutes da rainha Arete para que ela o envie para casa Alciacutenoo o rei dos Feaacutecios concede

33

sua solicitaccedilatildeo coloca-o ao seu lado e oferece-lhe comida Odisseu sem revelar-se conta

sobre o que lhe ocorreu desde que partira da ilha de Calipso ateacute o auxiacutelio de Nausiacutecaa

Canto VIII - Uma assembleacuteia eacute realizada pelos Feaacutecios para decidirem os meios de

devolverem o estrangeiro agrave sua terra Decidem pocircr a disposiccedilatildeo um navio para o seu retorno

Depois banqueteiam-se na casa do rei Alciacutenoo e jogam do disco Demoacutedoco o aedo dos

Feaacutecios comeccedila a cantar a amor de Ares e Afrodite e o cavalo de madeira que penetrou as

muralhas troianas Odisseu derrama laacutegrimas initerruptamente Alciacutenoo natildeo compreende

desconfia do heroacutei e pergunta o porquecirc do choro de onde ele vem e quem ele eacute

Canto IX - Odisseu revela sua identidade e filiaccedilatildeo iniciando a narraccedilatildeo de tudo o que

passou desde a sua saiacuteda da guerra de Troacuteia no paiacutes dos Ciacuteconos na Maleacuteia onde um vento

forte fez-lhes desviar-se do caminho indo para a terra dos Lotoacutefagos Depois param no paiacutes

dos Ciclopes onde o Polifemo devorou seis dos seus guerreiros O heroacutei astutamente

consegue escapar

Canto X - Odisseu vai buscar ajuda com Eacuteolo guardiatildeo dos ventos e recebe dele uma sacola

com todos os ventos O heroacutei dorme Seus companheiros pensando haver ouro na sacola

abrem-na entatildeo os ventos satildeo disparados aleatoriamente Odisseu acorda e volta para Eacuteolo

Este agora recusa a ajuda e expulsa-os A narraccedilatildeo aos Feaacutecios continua sobre a passagem

pela terra dos Lestrigotildees antropoacutefagos e de Circe feiticeira em Eacuteeia Nesta terra Odisseu jaacute

acomodado eacute exortado pelos companheiros para retornar Circe como prometera auxilia-o

no retorno e diz para ele ir ao Hades para falar com o adivinho Tireacutesias

Canto XI - Odisseu narra aos Feaacutecios como chegou agrave borda do Hades para consultar

Tireacutesias e sua evocaccedilatildeo aos mortos Pergunta a Tireacutesias se voltaria para casa e como deveria

proceder Tireacutesias daacute-lhe todas as informaccedilotildees diz-lhe inclusive que ele conseguiraacute o retorno

agrave paacutetria mas que enfrentaraacute muitas dificuldades Depois muitos mortos vatildeo se aproximando

de Odisseu como sua matildee Anticleacuteia e os companheiros de Troacuteia Aquiles Agamecircmnon e

Aacutejax

Canto XII - Relata sobre seu retorno desde o Hades ateacute Eacuteeia na ilha de Circe Esta o

adverte sobre os desafios que encontraraacute e como deve proceder Entatildeo Odisseu lanccedila-se ao

mar Primeiro resiste ao belo canto das Sereias depois passa por Cila e Cariacutebdes ateacute chegar agrave

34

ilha de Heacutelio Nesta seus companheiros natildeo resistem agrave fome e alimentam-se com as vacas do

deus Heacutelio desrespeitado o deus eacute vingado por Zeus que fulmina a nau de Odisseu e dos

demais Odisseu narra tambeacutem como sozinho chegou agrave ilha de Calipso apenas em uma balsa

Canto XIII - Termina a narraccedilatildeo aos Feaacutecios Impressionados Alciacutenoo e os demais

oferecem-lhe presentes em sinal de honra Como havia sido combinado os Feaacutecios levam

Odisseu a Iacutetaca e o deixam em solo paacutetrio Por castigo de Posiacutedon o navio que o leva eacute

petrificado ao retornar Atena auxilia Odisseu aconselha-o sobre a vinganccedila dos pretendentes

e desfigura-o em mendigo para natildeo ser reconhecido

Canto XIV - O agora aparente mendigo Odisseu chega agrave casa de um fiel serviccedilal o porqueiro

Eumeu Apesar de natildeo reconhecer seu rei concede-lhe toda a hospitalidade e o informa sobre

o que sofre com os desmandos do palaacutecio como as coisas estatildeo ocorrendo na cidade e diz que

acredita no retorno de Odisseu

Canto XV - Neste canto ocorre o retorno de Telecircmaco O priacutencipe permanecia ainda no reino

de Menelau mas em sonho Atena exorta-o retornar para Iacutetaca indicando-lhe o que fazer

para evitar a emboscada armada pelos pretendentes Presenteado por Menelau Telecircmaco

parte Em Iacutetaca vai direto para a casa de Eumeu

Canto XVI ndash Na casa de Eumeu Telecircmaco orienta o porqueiro para que avise a sua matildee do

seu retorno Odisseu e Tlecircmaco por obra de Atena se reconhecem e tramam a vinganccedila dos

pretendentes Eumeu retorna do palaacutecio apoacutes dar a notiacutecia a Peneacutelope do retorno do seu filho

Canto XVII - Odisseu vai com Eumeu para o seu palaacutecio enquanto Telecircmaco conta agrave matildee o

que ocorreu em sua viagem No paacutetio do palaacutecio Argos o velho catildeo de Odisseu reconhece-o

apoacutes os vinte anos decorridos e morre O rei disfarccedilado em mendigo eacute insultado por

Antiacutenoo um dos pretendentes

Canto XVIII - A fim de satisfazer os pretendentes Odisseu luta com Ino um mendigo no

palaacutecio Peneacutelope recrimina o tratamento dado ao estrangeiro questiona a Telecircmaco a falta de

firmeza diante daquela injusticcedila Odisseu como hoacutespede por decisatildeo de Peneacutelope fica esta

noite na sala da casa Todos vatildeo dormir depois de beberem e comerem

35

Canto XIX - Odisseu diz a Peneacutelope ser de Creta e garante que seu esposo iraacute voltar

Peneacutelope muito astuta natildeo acredita na histoacuteria criada e questiona Ele responde corretamente

mas ela natildeo acredita que o Rei regressaraacute Manda que as criadas sirvam bem o hoacutespede A

ama Euricleacuteia lava seus peacutes e o reconhece por uma antiga cicatriz Diante das evidecircncias o

heroacutei confirma a descoberta mas diz para que ela natildeo o revele

Canto XX - Os pretendentes novamente reuacutenem-se em banquete Odisseu pede a Zeus que

de sua casa surja algueacutem para ajudar-lhe na vinganccedila como um sinal de que sairia vitorioso

Zeus faz trovejar e aparece uma criada que lhe conta o pressaacutegio Pede ainda que Zeus

sinalize se aquele eacute o uacuteltimo dia de gozo dos pretendentes em seu palaacutecio Mais uma vez

Zeus faz trovejar Odisseu alegra-se e vai conversar com Eumeu e Fileacutecio Os pretendentes

banqueteiam-se

Canto XXI - Atena instiga no coraccedilatildeo de Peneacutelope uma atitude para pocircr fim agravequela indecisatildeo

e agraves regalias dos pretendentes os quais vinham a sua casa banquetear-se desrespeitando os

dons da hospitalidade Entatildeo ela corre pega o arco de Odisseu e diz que casaraacute com aquele

que o envergar retesar a corda e remessar a seta pelos doze orifiacutecios Os pretendentes vatildeo

tentando inutilmente Eacute a vez de Odisseu ainda como mendigo Todos desacreditam mas eis

que ele cumpre o indicado e triunfa sobre todos

Canto XXII ndash Odisseu revela-se como o senhor de Iacutetaca e inicia a chacina dos pretendentes

Atena estaacute presente em seu auxiacutelio Melacircntio aparece com armas e escudos Odisseu abalado

diz a Telecircmaco que algueacutem os traiu O priacutencipe revela ser o culpado em deixar a porta aberta

e manda fechar a porta Telecircmaco e os fieacuteis serventes Eumeu e Fileacutecio partem para vingar-se

dos serviccedilais e de Melacircntio O aedo e o arauto satildeo poupados da chacina

Canto XXIII ndash Euricleacuteia apoacutes a chacina avisa a Peneacutelope que seu esposo chegara e havia se

vingado dos pretendentes Desconfiada diz que a ama enlouqueceu Mas quis ver a chacina e

quem a realizou De frente para Odisseu permaneceu descrente Telecircmaco acusa a matildee de

frieza mas Odisseu o conteacutem Ela soacute acredita no retorno do esposo quando ele diz como foi

quem construiu o leito do casal Ela entatildeo abraccedila-o saudando seu regresso

Canto XXIV - As almas dos pretendentes satildeo guiadas por Hermes ateacute o Hades Odisseu vai

ateacute seu pai Laertes que demora a acreditar em seu retorno e pede um sinal Odisseu mostra a

36

cicatriz nomeia e quantifica cada fruteira do pomar O pai convencido fraqueja os joelhos e

vai em laacutegrimas abraccedilar o filho Nem tudo estaacute apaziguado pois as famiacutelias dos

pretendentes mortos realizam uma revolta Atena interveacutem para que a ordem seja instaurada

Objetivando comentar acerca da estrutura da Odisseacuteia vimos primeiramente os

periacuteodos da literatura grega com sua duraccedilatildeo e especificidade Depois a fim que pudeacutessemos

melhor explicar a significaccedilatildeo da epopeacuteia claacutessica remetemos nosso estudo para a etimologia

de epopeacuteia do grego epopoiia e sua significaccedilatildeo Passamos entatildeo para as ponderaccedilotildees de

Aristoacuteteles sobre a estrutura da epopeacuteia seu objeto de imitaccedilatildeo duraccedilatildeo suas semelhanccedilas e

diferenccedilas em relaccedilatildeo agrave trageacutedia a fim de compreendermos agrave luz da Poeacutetica as

peculiaridades do gecircnero eacutepico A invocaccedilatildeo a proposiccedilatildeo e a narraccedilatildeo as trecircs partes

estruturais da eacutepica tambeacutem foram referidas por noacutes neste toacutepico e que foram

exemplificados na Odisseacuteia Apoacutes identificar os cantos e versos em que cada parte se realiza

fizemos uma siacutentese de cada Canto Este uacuteltimo processo foi importante para que pudeacutessemos

destacar os episoacutedios narrados ao longo dessa epopeacuteia como tambeacutem para situar o nosso

objeto de pesquisa o Canto XI da Odisseacuteia dentro da obra e do processo sequencial dos

acontecimentos que nele se inserem Por meio dessas etapas constitutivas e construtivas do

presente trabalho acreditamos ter realizado uma apresentaccedilatildeo geral sobre a obra na qual se

insere o nosso corpus

122 Odisseu o heroacutei multifacetado

Antes de inciarmos nossa discussatildeo sobre o multifacetado Odisseu pretendemos

expor brevemente sobre heroacutei e sua significaccedilatildeo no mundo claacutessico Buscando as definiccedilotildees

do Le Grand Bailly (2000) deparamo-nos com a seguinte traduccedilatildeo para hAgraverwj maicirctre chef

noble e completa ―de tout homme noble par la naissance le courage ou le talent (BAILLY

2000 p 909) ou seja o senhor o chefe o nobre e ―todo homem de descendecircncia nobre de

coragem ou de talento Liddell amp Scottlsquos em A Greek-English lexicon (1996) datildeo-nos a

traduccedilatildeo primaacuteria hero (heroacutei) e exemplificam que ―in Homer not restricted to warriors but

applied to all free men of that age as to minstrel the herald (LIDDEL amp SCOTT 1996 p

309) Quer dizer ―em Homero natildeo se restringe apenas aos guerreiros mas se aplica a todo

37

homem livre daquela eacutepoca o menestrel o arauto (Ibidem) Vale ressaltar que essas

definiccedilotildees dos dicionaacuterios baseiam-se na vasta literatura do mundo claacutessico grego a fim de

tentar defini-lo

Para compreendermos melhor a significaccedilatildeo do heroacutei claacutessico veremos tambeacutem

os posicionamentos de Hesiacuteodo e Aristoacuteteles No mito das cinco raccedilas presente em Os

trabalhos e os dias Hesiacuteodo enumera a existecircncia de cinco raccedilas humanas A Raccedila de Ouro a

Raccedila de Prata a Raccedila de Bronze a Raccedila dos Heroacuteis e a Raccedila de Ferro Como vemos as raccedilas

satildeo nomeadas a partir do valor dos metais ouro prata bronze mas entre a de bronze e a de

ferro temos a dos heroacuteis Esta se encontra especificamente dos versos 156 ao 172 Hesiacuteodo a

define como a os hcedilmiqeoi (V 160) os semi-deuses dos oAtildelbioi hAgraverwej (V 172) os heroacuteis

venturosos Uma raccedila criada por Zeus mais justa mais corajosa e de descendecircncia divina dos

que atuaram em Tebas levando muitos agrave morte e outros em Troacuteia por causa de Helena

Diante disso ao morrerem os heroacuteis satildeo levados por ZeuUumlj Kronidhj (V 168) o Zeus

Cronida para a Ilha dos Bem-Aventurados

Aristoacuteteles na Poeacutetica em 1453a define os heroacuteis como seres de situaccedilatildeo

intermediaacuteria pelo fato de que nem satildeo virtuosos nem justos em demasia como tambeacutem natildeo

satildeo tatildeo maldosos aleacutem de pertencerem ao grupo dos que gozam de prestiacutegio e poder e que

satildeo superiores aos homens Por isso seriam os personagens ideais da trageacutedia mesmo porque

as falhas que cometem satildeo muito mais por consequecircncia de um erro do que por falha de

caraacuteter Assim o erro dos heroacuteis conforme preconiza Aristoacuteteles eacute proveniente da accedilatildeo e

natildeo do caraacuteter do personagem Aleacutem do mais o fato de ter prestiacutegio perante a sociedade

tambeacutem facilita a realizaccedilatildeo da empatia do puacuteblico para com o personagem traacutegico e

consequentemente a efetivaccedilatildeo da katarsij16

Odisseu como heroacutei possui os elementos descritos anteriormente Assim como eacute

mostrado no Le Grand Bailly (2000) eacute de descendecircncia nobre um homem de coragem jaacute

segundo Liddlel amp Scott (1996) ele eacute tanto o guerreiro como tambeacutem o aedo basta-nos

lembrar dos Cantos VIII IX X XI e XII da Odisseacuteia quando o heroacutei relata todos os

acontecimentos pelos quais passou ateacute o presente momento Como pressupotildee Hesiacuteodo ele eacute

da raccedila dos heroacuteis que atuou em Troacuteia portanto eacute justo e corajoso de descendecircncia divina

Vale lembrar que Odisseu filho de Laertes eacute descendente da raccedila de Deucaliatildeo e este por

sua vez do titatilde Prometeu Vejamos abaixo a genealogia de Odisseu

16

Esse termo aristoteacutelico seraacute melhor discutido por noacutes no segundo e terceiro capiacutetulos quando detivermos a

nossa anaacutelise para a conceituaccedilatildeo e anaacutelise do traacutegico

38

Prometeu ~ Cliacutemene

darr

Deucaliatildeo ~ Pirra

darr

Deacuteion ~ Diomedes

darr

Ceacutefalo Hermes ~ Quiacuteone

darr darr

Arciacutesio ~ Calcomedusa Autoacutelico ~ Antiacutefea

Laertes ~ Anticleacuteia

darr

Odisseu ~ Peneacutelope

darr

Telecircmaco

Aleacutem disso como pressupotildee Aristoacuteteles Odisseu possui como todo e qualquer

heroacutei prestiacutegio e poder e seu caraacuteter nem eacute tatildeo virtuoso nem tatildeo maleacutefico Deste modo apoacutes

esta breve elucidaccedilatildeo a respeito do heroacutei grego entendemos que natildeo eacute aleatoacuterio o fato de

Odisseu ser o personagem principal e por isso mesmo seu nome daacute o tiacutetulo de uma das mais

importantes obras do ocidente a Odisseacuteia Esta como jaacute dissemos propotildee cantar os seus

feitos desde que partiu de Troacuteia ateacute seu tatildeo pretendido retorno ao lar Por tudo isso Odisseu

eacute um dos maiores e mais completos siacutembolos do heroiacutesmo claacutessico ndash eacute piedoso astuto viril

Aleacutem de assumir as funccedilotildees do heroacutei indo-europeu sacerdotal empreendedor e guerreiro

prescritas por Dumeacutezil em Mythe et Epopee (1995) Natildeo iremos nos alongar nestas

ponderaccedilotildees mas a seguir comentaremos brevemente acerca das identificaccedilotildees de Odisseu

com essas funccedilotildees

A primeira funccedilatildeo a sacerdotal realiza-se a partir do caraacuteter piedoso e temente

aos deuses de Odisseu Para exemplificar eacute soacute nos remetermos ao Canto XII ao contraacuterio dos

seus companheiros Odisseu natildeo se alimenta dos bois do Sol Por saber que tal ato ofende uma

divindade ele evita a imprudecircncia da desonra jaacute seus companheiros cometem a cediluagravebrij e por

isso todos eles seratildeo punidos por Zeus

A segunda a de empreendedor daacute-se atraveacutes de seu empreendedorismo de

fundador e solidificador de cidades fato que pode ser observado ateacute mesmo pela busca da

gloacuteria domeacutestica e natildeo em campo de batalha Lembremos inclusive que Odisseu prefere a

39

mortalidade agrave imortalidade bem como renega a eterna juventude oferecida por Calipso para

regressar a Iacutetaca

A terceira funccedilatildeo do indo-europeu a de guerreiro pode ser vista mais

explicitamente no Canto XXII entre os versos 401 a 406 quando Odisseu realiza a chacina

dos pretendentes e eacute comparado a um leatildeo ensanguentado em meio a suas viacutetimas Estas

compotildeem um nuacutemero de cento e dezesseis jaacute contando com os pretendentes e os servos

Vejamos a referida passagem

εὗρεν ἔπειτ᾽ Ὀδυσῆα μετὰ κταμένοισι νέκυσσιν

αἵματι καὶ λύθρωι πεπαλαγμένον ὥστε λέοντα

ὅς ῥά τε βεβρωκὼς βοὸς ἔρχεται ἀγραύλοιο

πᾶν δ᾽ ἄρα οἱ στῆθός τε παρήϊά τ᾽ ἀμφοτέρωθεν

405 αἱματόεντα πέλει δεινὸς δ᾽ εἰς ὦπα ἰδέσθαι

ὣς Ὀδυσεὺς πεπάλακτο πόδας καὶ χεῖρας ὕπερθεν17

(Odisseacuteia XXII 401- 406)

Entatildeo encontrou Odisseu junto aos cadaacuteveres que havia matado

manchado de sangue e impureza Do mesmo modo que um leatildeo

apoacutes devorar um boi do campo vai embora

Todo o seu peito e as mandiacutebulas de ambos os lados tinha ensanguumlentados

Assim terriacutevel nas faces era de se ver

Deste modo Odisseu em cima tinha manchados as matildeos e os peacutes

Como jaacute antecipamos em toacutepico anterior a Iliacuteada e Odisseacuteia diferem em alguns

aspectos e um deles eacute a caracterizaccedilatildeo do heroacutei Uma diferenccedila baacutesica eacute que a gloacuteria de

Odisseu natildeo se relaciona agrave morte no campo de batalha Jaacute para Aquiles a kaloj qanatoj

a bela morte deve ser imprescindivelmente conquistada em campo de batalha pois de outra

maneira o heroacutei natildeo alcanccedilaria a gloacuteria eterna Deste modo para conseguir a pretendida

gloacuteria Aquiles natildeo pode voltar a seu lar jaacute Odisseu tem de voltar por isso Vernant diz que

ele eacute ―o homem da relembranccedila disposto a aceitar todas as provas e todos os sofrimentos para

cumprir seu destino () voltar e encontrar-se consigo mesmo (VERNANT 2000 p 36)

Assim eacute o ―heroacutei do retorno (Ibidem)

Na Iliacuteada por exemplo por mais que saibamos que o heroacutei principal cantado seja

Aquiles este em muitos momentos divide seu posto com outros heroacuteis os quais inclusive

tecircm um momento especiacutefico soacute para serem cantados Deste modo no Canto V temos a aristia

de Diomedes no VII o combate singular entre Heitor e Aacutejax no XI a aristia de Agamecircmnon

17

Texto retirado em 30 de abril de 2010 agraves 1024hs de httpwwwhs-

augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_od22html

40

no Canto XVI os feitos gloriosos de Paacutetroclo e no XVII a aristia de Menelau entre outros

Como se pode ver cantos seratildeo dedicados agrave exaltaccedilatildeo de outros heroacuteis e dos seus feitos

proporcionando uma descentralizaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave figura do heroacutei maior Aquiles

Na Odisseacuteia ao contraacuterio temos uma centralizaccedilatildeo do siacutembolo heroacuteico a partir de

Odisseu Este conduz o percurso de quase todos os cantos como eixo de glorificaccedilotildees salvo

em alguns momentos em que se daacute espaccedilo para Telecircmaco a chamada Telemaquia (nos

Cantos I ao IV) mas esta natildeo proporciona uma descentralizaccedilatildeo e sim uma acentuaccedilatildeo da

centralizaccedilatildeo visto que eacute a saga do filho de Odisseu assim constitui o siacutembolo da

descendecircncia heroacuteica18

Siacutembolo de piedade de prudecircncia e de respeito ao pudor (aidwj) Odisseu

sempre honra as divindades e esse eacute o argumento utilizado por Atena para Zeus ao pedir que

Odisseu possa regressar ao lar No Canto XXII entre os versos 401 a 416 apoacutes ter matado os

pretendentes e encontrar-se ensanguentado em meio a todos eles Odisseu encontra a ama

Euricleacuteia e esta regozijando-se de alegria eacute contida pelo heroacutei Observemos a accedilatildeo do

prudente Odisseu

εὗρεν ἔπειτ᾽ Ὀδυσῆα μετὰ κταμένοισι νέκυσσιν

αἵματι καὶ λύθρωι πεπαλαγμένον ὥστε λέοντα

ὅς ῥά τε βεβρωκὼς βοὸς ἔρχεται ἀγραύλοιο

πᾶν δ᾽ ἄρα οἱ στῆθός τε παρήϊά τ᾽ ἀμφοτέρωθεν

405 αἱματόεντα πέλει δεινὸς δ᾽ εἰς ὦπα ἰδέσθαι

ὣς Ὀδυσεὺς πεπάλακτο πόδας καὶ χεῖρας ὕπερθεν

ἡ δ᾽ ὡς οὖν νέκυάς τε καὶ ἄσπετον εἴσιδεν αἷμα

ἴθυσέν ῥ᾽ ὀλολύξαι ἐπεὶ μέγα εἴσιδεν ἔργον

ἀλλ᾽ Ὀδυσεὺς κατέρυκε καὶ ἔσχεθεν ἱεμένην περ

410 καί μιν φωνήσας ἔπεα πτερόεντα προσηύδα

ἐν θυμῶι γρηῦ χαῖρε καὶ ἴσχεο μηδ᾽ ὀλόλυζε

οὐχ ὁσίη κταμένοισιν ἐπ᾽ ἀνδράσιν εὐχετάασθαι

τούσδε δὲ μοῖρ᾽ ἐδάμασσε θεῶν καὶ σχέτλια ἔργα

οὔ τινα γὰρ τίεσκον ἐπιχθονίων ἀνθρώπων

415 οὐ κακὸν οὐδὲ μὲν ἐσθλόν ὅτις σφέας εἰσαφίκοιτο

τῶι καὶ ἀτασθαλίηισιν ἀεικέα πότμον ἐπέσπον19 (Odisseacuteia XXII 401- 416)

18

Ver quadro genealoacutegico na paacutegina 40 19

Texto disponiacutevel em httpwwwhs-

augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_od22html agraves 1500hs de 15 de julho de

2010

41

Entatildeo encontrou Odisseu junto aos cadaacuteveres que havia matado

Tendo sido manchado com sangue e impureza Do mesmo modo

que um leatildeo apoacutes devorar um boi do campo que em consequumlecircncia

possui todo o peito e as mandiacutebulas ensanguumlentadas dos dois lados

assim ele se encontra e faz-se ver em direccedilatildeo ao terror

Deste modo as matildeos e os peacutes de Odisseu estavam em cima manchados

Entatildeo a ama Euricleacuteia viu os cadaacuteveres e o imenso sangue

e eacute verdade que atacou a gritar quando viu o grande trabalho

Mas Odisseu a deteve e decerto segurou sua agitaccedilatildeo

Tambeacutem ele mesmo tendo falado alto dirigia-lhe essas palavras aladas

Na alma velha alegra-te mas natildeo grita reprime pois para si

Natildeo eacute da lei divina manifestar-se assim sobre os homens que perecem

Estes o destino dos deuses submeteu como tambeacutem a seus trabalhos

[funestos

Eles natildeo respeitavam nenhum dos homens viventes da terra

nem o mau nem certamente o bom que a eles se apresentou

E por essas accedilotildees insanas perseguiu-lhes o destino indigno

Junito Brandatildeo em Introduccedilatildeo ao mito dos heroacuteis (1998) relata sobre a origem

do termo grego hAgraverwj que teria sido oriunda da forma do indo-europeu serva relacionada

tambeacutem ao termo latino seruuare daiacute o fato de a palavra heroacutei significar aquele que nasceu

para servir Odisseu cumpre bem esta tarefa de servidor de uma naccedilatildeo haja vista seu

importante papel na Guerra de Troacuteia participando da embaixada a Aquiles idealizando o

Cavalo de Troacuteia e em seu retorno a Iacutetaca estabelecendo a paz e a ordem junto com Atena

em sua paacutetria

Ainda segundo Junito o heroacutei tem que enfrentar dificuldades em sua trajetoacuteria

como tambeacutem em seu nascimento ser filho de mortal com imortal ter educaccedilatildeo diferenciada

dos demais e passar pelos ritos de formaccedilatildeo iniciaacutetica e de passagem No primeiro rito o

heroacutei ausenta-se do pai eou da paacutetria como faz Telecircmaco no Canto I da Odisseacuteia que em

busca do seu pai teve que sair de Iacutetaca sua paacutetria no segundo o heroacutei realiza seu momento

de transiccedilatildeo com algum grande feito como descer ao Hades desvendar a saiacuteda de um

labirinto entre tantos outros Na Odisseacuteia por exemplo o rito de passagem do Laertida eacute

realizado no Canto XI apoacutes realizar a nemacrkuia20 e vecirc-se devidamente pronto e experimentado

para saber como fazer e como deve agir para retornar a seu tatildeo pretendido lar

No geral como explica-nos Brandatildeo o heroacutei eacute representado belo mas sempre tecircm

algumas deficiecircncias fiacutesicas como o gigantismo em excesso a exemplo de Heacuteracles ou

estatura baixa demais como eacute o caso de Odisseu Sobre este fato Charles Beye comenta ―a

20

Em grego nemacrkuia indica o ritual de sacrifiacutecio feito aos mortos

42

definiccedilatildeo tradicional de heroacutei pressupotildee em geral beleza fiacutesica e forccedila O Odisseu pode ter

sido forte mas parece que natildeo foi nenhum modelo de beleza (BEYE 2006 p 58)

Ateacute o momento discutimos caracteriacutesticas gerais a respeito dos heroacuteis gregos

sejam atraveacutes das definiccedilotildees baacutesicas como a dos dicionaacuterios didaacuteticas como as de Hesiacuteodo

filosoacuteficas e literaacuterias como as de Aristoacuteteles sejam as analiacuteticas e teoacutericas como as de

Junito Neste percurso tentamos relacionar as caracteriacutesticas citadas de heroiacutesmo ao

personagem maior da Odisseacuteia

Neste instante partiremos para uma anaacutelise mais especiacutefica do perfil de Odisseu

representado na Odisseacuteia Para tanto escolhemos os cinco primeiros versos do seu proecircmio21

e dois dos epiacutetetos de Odisseu polutropoj e polumhtij Esta delimitaccedilatildeo faz-se

relevante para que possamos abarcar da melhor maneira possiacutevel o objeto em questatildeo

Como sabemos os epiacutetetos satildeo recursos comuns na literatura grega em geral

principalmente na arcaica por sua ligaccedilatildeo com a oralidade Deste caraacuteter oral proveacutem a

importacircncia da utilizaccedilatildeo de alguns recursos como por exemplo o dos epiacutetetos as repeticcedilotildees

num processo mnemocircnico Diante deste fato Junito Brandatildeo (1998) informa-nos a partir dos

dados colhidos por Lloyd-Jones que na eacutepica homeacuterica haacute ao todo vinte e oito mil versos e

vinte e cinco mil frases pequenas ou longas repetidas Os epiacutetetos tambeacutem fazem parte destes

recursos mnemocircnicos por isso Junito cita a pesquisa realizada por Joseacute Marques Leite a qual

atesta a existecircncia de quatro mil quinhentos e sessenta epiacutetetos utilizados nos seus dois

poemas

Desta maneira importante natildeo apenas como recurso literaacuterio como tambeacutem

mnemocircnico Homero utiliza-se aleacutem da representaccedilatildeo pela accedilatildeo dos epiacutetetos para simbolizar

os atributos heroacuteicos de Odisseu ilustrando as caracteriacutesticas especiacuteficas do heroacutei

Selecionamos o proecircmio e os dois epiacutetetos jaacute citados para que a partir deles possamos

revelar os elementos qualitativos que constituem a formaccedilatildeo do Odisseu Ateacute porque assim

como passa vinte anos distante de sua paacutetria seu nome natildeo consta nos vinte primeiros versos

sendo entatildeo sua referecircncia realizada pela citaccedilatildeo de seus feitos e pelo epiacuteteto polutropoj

Observemos os cinco primeiros versos do proecircmio da Odisseacuteia

21 Haacute um estudo interessante sobre o proecircmio da Odisseacuteia e que nos auxiliou na construccedilatildeo deste trabalho Este

eacute intitulado ―Polluacute Pollaacute Pollocircn Multiplicidade no proecircmio da Odisseacuteia de Andreacute Malta (USP) e estaacute

disponiacutevel em httpwwwscieloorgarscielophpscript=sci_arttextamppid=S0328-12052007000100004

43

Ἄλδξα κνη ἔλλεπε κνῦζα πολύτροπον ὃο κάια πολλὰ

πιάγρζε ἐπεὶ Τξνίεο ἱεξὸλ πηνιίεζξνλ ἔπεξζελ

πολλῶν δ᾽ ἀλζξώπσλ ἴδελ ἄζηεα θαὶ λόνλ ἔγλσ

πολλὰ δ᾽ ὅ γ᾽ ἐλ πόληση πάζελ ἄιγεα ὃλ θαηὰ ζπκόλ

5 ἀξλύκελνο ἥλ ηε ςπρὴλ θαὶ λόζηνλ ἑηαίξσλ22

Musa conta-me sobre o heroacutei de muitas voltas que muito

errou depois que saqueou a sagrada cidade de Troacuteia

Viu as cidades de muitos homens e conheceu sua mente

no mar padeceu muitos sofrimentos de encontro ao seu acircnimo

esforccedilando-se por sua alma e pelo regresso dos companheiros

Como vemos o primeiro epiacuteteto utilizado para Odisseu eacute o de polutropoj para

o qual Bailly daacute a traduccedilatildeo ―qui se tourne en beaucoup de sens (BAILLY 2000 p 1601) ou

seja o que se volta em muitos sentidos ou versatile astuto versaacutetil astuto como traduz

Romizi (2007) Mas estudando a formaccedilatildeo deste epiacuteteto polutropoj observamos que ele eacute

feito pela junccedilatildeo de polu expressatildeo adjetiva de quantidade intensificadora que significa

muito mais o substantivo masculino tropoj que significa modo maneira atitude direccedilatildeo

Este substantivo por sua vez eacute originado do verbo trepw voltar tornar dirigir Esta

retomada ao verbo que origina o epiacuteteto muito nos esclarece visto que Odisseu anda por

muitos lugares e volta para os mesmos Por exemplo Oisseu sai da Ilha de Circe no Canto X

e volta no Canto XI depois de ter estado na entrada do Hades

Ao mesmo tempo aleacutem do sentido fiacutesico este epiacuteteto tambeacutem nos revela o poder

de arguiccedilatildeo de habilidade com o pensamento Este epiacuteteto talvez seja o mais representativo

de Odisseu que como sabemos eacute o heroacutei do regresso da volta agrave paacutetria sem falar que seus

discursos tambeacutem satildeo cheios de contornos No Canto IX com Polifemo ele diz chamar-se

oucurrentij Ningueacutem no verso 366 mas jaacute no verso 455 diz chamar-se Odisseu revelando seu

verdadeiro nome assim ele vai e volta em seu discurso Seria entatildeo polutropoj o de

muitas voltas de muitos contornos de muitas maneiras intensificando o caraacuteter maleaacutevel e

multiforme de Odisseu de adaptar-se agraves circunstacircncias para no final sair vencedor Assim

ele se esconde como o rebanho de Polifemo eacute o amante de Circe o amante de Calipso o

mendigo de Iacutetaca o navegante o hoacutespede isto eacute muitas figuras para o mesmo heroacutei que com

todas elas tem a vitoacuteria como uacutenico objetivo A exposiccedilatildeo semacircntica do termo polutropoj

nem sempre fica clara nas traduccedilotildees o que afeta o sentido tatildeo necessaacuterio para uma

compreensatildeo do heroacutei e da obra como um todo vejamos algumas exemplificaccedilotildees

22

Os destaques satildeo nossos Texto retirado agraves 2107hs de 27 de abril de 2010 do site

httpwwwhsaugsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_od01html

44

Musa reconta-me os feitos do heroacutei astucioso que muito

peregrinou decircs que esfez as muralhas sagradas de Troacuteia

muitas cidades dos homens viajou conheceu seus costumes

como no mar padeceu sofrimentos inuacutemeros na alma

para que a vida salvasse e de seus companheiros a volta

(NUNES 2009 p 28)

Oacute Musa fala-me do solerte varatildeo que depois de ter destruiacutedo a cidade

sagrada de Troacuteia andou errante por muitas terras viu as cidades de

numerosas gentes e conheceu-lhes os costumes e por sobre o mar sofreu

no seu coraccedilatildeo afliccedilotildees sem conta no intento de salvar a sua vida e de

conseguir o regresso dos companheiros

(PALMEIRA amp CORREIA 1980 p 1)

Clsquoest llsquoHomme aux mille tours Muse qulsquoil faut me

dire Celui tant erra quand de Troade il eut pilleacute la

ville sainte Celui qui visita les citeacutes de tant dlsquohommes

et connut leur esprit Celui qui sur ler mers passa par

tant dlsquoangoisses en luttant pour survivre et ramener ses gens23

(BEacuteRARD 2009 p1)

Como vemos as traduccedilotildees do termo polutropoj natildeo datildeo conta do seu potencial

semacircntico principalmente porque os autores deixam de traduzir o seu qualificador e

acentuador polu A exceccedilatildeo fica para a traduccedilatildeo de Beacuterard que usa a expressatildeo ―mille

tours ou seja ―mil voltas Ainda assim o numeral ―mil natildeo exatamente reflete a expressatildeo

grega jaacute que esta natildeo eacute quantificada pois se traduz como ―muitos ―indeterminadamente

Esquecer ou ignorar a traduccedilatildeo de polu natildeo eacute adequado mesmo porque se o quisesse

Homero poderia deixaacute-lo impliacutecito ou natildeo o ter utilizado mas se o fez eacute porque considera

importante ser dada a ecircnfase ao substantivo tropoj

Ao longo dos cinco primeiros versos deste proecircmio vemos a repeticcedilatildeo dos

intensificadores pollaUuml pollwordfn pollaUuml fora o polu de polutropoj que jaacute foi

estudado por noacutes O primeiro termo um adveacuterbio pollaUuml refere-se agrave plagxqh indicando

aquele que muito vagou errou O segundo pollwordfn relaciona-se a a)nqrwpwn para

expressar que ele andou por cidades de muitos homens E o terceiro pollaUuml direciona-se

23

Traduccedilatildeo

Eacute o homem de mil voltas Musa que eacute preciso me dizer

Este que tanto vagou errante quando da Trocircade tinha saqueado

a cidade santa este que visitou as cidades de tantos homens

e conheceu seu espiacuterito Este que sobre os mares passou por

tantas anguacutestias lutando para sobreviver e o seu povo fazer retornar

45

para especificar aAtildelgea ou seja as muitas dores sofrimentos pelos quais passou no mar

buscando os seus retornos e o dos seus companheiros Essa sequecircncia de intensificadores

logo ao iniacutecio do proecircmio apesar de breve eacute uma boa representaccedilatildeo da multiplicidade

representada ao longo da Odisseacuteia epopeacuteia em que tudo eacute grandioso excessivo sejam os

feitos do heroacutei os locais pelos quais ele passa sejam tambeacutem suas dores Sem falar no seu

poder ilustrado pelo primeiro epiacuteteto polutropoj que exprime sua capacidade de muitas

voltas o multiforme ou pelo sentido concreto ou abstrato

Outro epiacuteteto bastante relevante eacute o de polumhtij pois aleacutem de configurar a

persona de Odisseu acentua essa qualificaccedilatildeo jaacute que eacute caracteriacutestico de outros personagens e

evoca nomes importantes como os de Zeus e Atena Deste modo Hesiacuteodo no verso 457 de

Teogonia (2009) define o pai dos deuses e dos homens como o Zhordfna te mhtioenta ou

seja Zeus astuto saacutebio sagaz Ainda na Teogonia (2009) Hesiacuteodo conta-nos dos versos 881

ateacute o 900 que Zeus aconselhado por Terra engole Meacutetis sua primeira esposa ainda graacutevida

de Atena para que seus filhos natildeo o destronassem Desta forma com a prudecircncia dentro de si

Zeus torna-se ainda mais poderoso Atena sendo filha de Meacutetis tambeacutem tem a caracteriacutestica

da prudecircncia aleacutem de que o proacuteprio Hesiacuteodo (2009) sempre a compara a seu pai tanto em

poder quanto em prudecircncia24

Segundo Otto (2005) no hino homeacuterico agrave Atena Meacutetis a

chama de polumhtij Sem falar que no Canto XIII verso 297 da Odisseacuteia a proacutepria Atena

compara-se a Odisseu Isto ocorre quando ela se revela para o heroacutei e diz que ele eacute um exiacutemio

astucioso muito sagaz que consegue tudo o que almeja Na formaccedilatildeo desse epiacuteteto temos o

intensificador polu muito e o substantivo mhordftij que significa prudecircncia sagacidade

Assim o epiacuteteto polumhtij que evoca e relaciona Odisseu a Zeus e a Atena significa o de

muita prudecircncia muita sagacidade E sabemos que ambos os deuses protegem Odisseu em

sua erracircncia ateacute retornar agrave paacutetria

Esse epiacuteteto eacute importante pois aleacutem de relacionar Odisseu agraves caracteriacutesticas de

Zeus relaciona-o tambeacutem ao de sua proacutepria deusa-guia Atena Esta eacute a deusa que acompanha

Odisseu como tambeacutem seu filho Telecircmaco em toda a sua jornada Telecircmaco Atena auxilia

no rito de iniciaccedilatildeo heroacuteica e Odisseu em sua longa jornada em busca da gloacuteria domeacutestica25

Na proacutepria Iliacuteada (2009) ela jaacute acompanha Odisseu em sua empreitada noturna com

24

Versos 892 e 898 da Teogonia 25

A gloacuteria que Odisseu busca eacute a domiciliar ateacute porque a kleoj aOacutefqiton gloacuteria impereciacutevel ele jaacute havia

conquistado ainda em vida Uma prova disso eacute que no Canto VIII da Odisseacuteia entre os versos 499-531

Demoacutedoco canta a construccedilatildeo do cavalo de madeira idealizado por Odisseu E o Laertida vai agraves laacutegrimas tendo

percebido que se tornara mito ainda em vida

46

Diomedes no Canto X ajudando-os a matar os inimigos e a voltar com seguranccedila para o

acampamento Sob essa proteccedilatildeo divina Odisseu cumpre sua jornada retorna ao seu lar apoacutes

vinte anos realiza a chacina dos pretendentes e instaura a paz em Iacutetaca

Por tudo isso que foi explicitado acerca deste multiforme heroacutei eacute que ―()

Odisseu era o modelo supremo para o homem do mundo antigo (BEYE 2006 p 206) aleacutem

de ser apontado como ―o heroacutei mais ceacutelebre de toda a antiguidade (GRIMAL 2005 p 458)

A fim de mostrar a importacircncia deste heroacutei trabalhamos neste toacutepico com dois aspectos

centrais no primeiro fizemos elucidaccedilotildees a respeito da definiccedilatildeo e caracterizaccedilatildeo do heroacutei

sua funccedilatildeo no mundo grego a partir dos estudos de Hesiacuteodo em Teogonia (2009) e Os

trabalhos e os dias (2008) Aristoacuteteles na Poeacutetica Dumegravezil (1995) Junito Brandatildeo (1995)

No segundo fizemos um breve estudo dos cinco primeiros versos do proecircmio da Odisseacuteia e

de dois importantes e ilustrativos epiacutetetos de Odisseu o polumhtij e o polutropoj Tudo

isso para poder mostrar a relevacircncia heroacuteica que este personagem tem natildeo soacute na epopeacuteia que

o retrata mas em toda a representatividade da literatura claacutessica

47

2 O TRAacuteGICO - ASPECTOS TEOacuteRICOS E CONCEITUAIS

21 Uma breve consideraccedilatildeo sobre o nosso estudo do Traacutegico

Antes de iniciarmos nossas ponderaccedilotildees teoacutericas e conceituais a respeito do

traacutegico consideramos importante elucidar que iremos fundamentar nossas discussotildees a partir

dos preceitos aristoteacutelicos do traacutegico presentes na Poeacutetica Contudo reconhecemos que este

autor assim como diz-nos Albin Lesky (1996) natildeo nos deixou tatildeo claro esses aspectos

Vejamos

Haacute algo sem duacutevida que podemos afirmar com inteira seguranccedila os gregos

criaram a grande arte traacutegica e com isso realizaram uma das maiores

faccedilanhas do campo do espiacuterito mas natildeo desenvolveram nenhuma teoria do

traacutegico que tentasse ir aleacutem da plasmaccedilatildeo deste no drama e chegasse a

envolver a concepccedilatildeo do mundo como um todo (LESKY 1996 p 21)

Lesky coloca-nos a exposiccedilatildeo de maneira clara foram os gregos que nos legaram

o traacutegico legado esse importantiacutessimo todavia natildeo deixaram para posteridade o

desenvolvimento e a interpretaccedilatildeo desse traacutegico ou seja nenhuma ―teoria do traacutegico Apesar

de que ele proacuteprio ao longo de A trageacutedia Grega (1996) percorre os elementos traacutegicos

presentes na Poeacutetica E para esclarecer esses aspectos que natildeo estatildeo desenvolvidos em

profundidade por Aristoacuteteles outros autores aleacutem do jaacute citado Albin Lesky tambeacutem se

dedicam ao desvendamento da significaccedilatildeo do traacutegico a citar Jean Pierre Vernant Pierre

Grimal Jacqueline de Romilly Anatol Rosenfeld Junito Brandatildeo e Sandra Luna A seleccedilatildeo

destes autores realiza-se atraveacutes de criteacuterios que levam em consideraccedilatildeo a adequaccedilatildeo ao nosso

trabalho

Acreditamos ser importante fazer esta ressalva pois como se sabe muitos

trabalhos foram realizados sobre o traacutegico principalmente pelos filoacutesofos alematildees legando-

nos uma ―filosofia do traacutegico Esta foi realizada por autores como Schelling Houmllderlin

Hegel Solger Goethe Schopenhauuer Vischer Kierkegaard Hebbel Nietzscche Simmel e

Schiler Todos eles detiveram parte de seus estudos para entenderem a manifestaccedilatildeo do

traacutegico Reconhecemos as contribuiccedilotildees dadas por cada um mas no presente trabalho

delimitamos alguns autores por considerarmos mais adequados ao nosso objetivo central que

48

eacute analisar o traacutegico jaacute existente na eacutepica especificamente no Canto XI da Odisseacuteia a partir

dos encontros que Odisseu tem no Hades

Ao longo deste capiacutetulo desenvolveremos trecircs eixos do traacutegico que seratildeo

importantes para a compreensatildeo e embasamento de nossa anaacutelise ―O traacutegico e a trageacutedia ―O

traacutegico na Poeacuteticardquo e ―A busca do traacutegico - outras acepccedilotildees teoacutericas No primeiro

discorreremos sobre as diferenccedilas e especificidades da trageacutedia e do traacutegico no segundo

sobre os conceitos do traacutegico jaacute referidos por Aristoacuteteles na Poeacutetica interpretando-os a partir

da traduccedilatildeo de excertos extraiacutedos do original no terceiro iremos expor e discutir os estudos

de outros autores sobre o traacutegico claacutessico sempre observando sua aplicabilidade agrave nossa

anaacutelise central que seraacute desenvolvida especificamente no capiacutetulo subsequente

22 O traacutegico e a trageacutedia

No momento em que comeccedilamos a discutir sobre as questotildees da trageacutedia e do

traacutegico desde o iniacutecio nos eacute imposto mesmo que indiretamente o dilema da anterioridade de

um ou de outro Assim perguntamo-nos quem teria vindo primeiro A trageacutedia ou o traacutegico

Aparentemente eles satildeo indissociaacuteveis tornando difiacutecil definir quem veio primeiro e a

delimitaccedilatildeo onde um inicia e o outro termina Ateacute que ponto ser-nos-ia possiacutevel contemplar

traacutegico sem trageacutedia ou ainda mais trageacutedia claacutessica sem o traacutegico Diante destas

interrogativas jaacute adiantamos que a realizaccedilatildeo daquele (traacutegico sem trageacutedia) eacute viaacutevel ao

contraacuterio deste (trageacutedia claacutessica sem traacutegico) em que sua estrutura prescinde do elemento

traacutegico como jaacute bem nos disse Aristoacuteteles na Poeacutetica inclusive para a efetivaccedilatildeo da

kaqamacrrsij26

Para que possamos entender essa dita viabilidade de traacutegico sem trageacutedia e a

inviabilidade da trageacutedia claacutessica sem o traacutegico iremos discorrer sobre a origem a

conceituaccedilatildeo e a significaccedilatildeo que eles possuem dentro do contexto da literatura claacutessica

grega

A palavra tragikoj tem como sentido geral aquilo que concerne agrave trageacutedia ou

ateacute mesmo ao ator ou ao poeta traacutegico algo de natureza grave majestosa poeacutetica assim nos

26

Sabe-se que a respeito deste termo grego existem algumas discussotildees as quais seratildeo expostas no decorrer do

trabalho Por hora basta-nos compreender que este termo oriundo do verbo kaqairw tem como sentido

primaacuterio o significado meacutedico de purgaccedilatildeo aleacutem de ter uma acepccedilatildeo religiosa de purificaccedilatildeo

49

define A Bailly (2000) e Liddlel e Scott (1996) Mas a partir de uma perspectiva

etimoloacutegica indicada por Renato Romizi (2001) tragikoj com o radical de tragoj

(bode) e o sufixo adjetivo ikoj significa primordialmente o que eacute proacuteprio do bode ou

semelhante ao bode Contudo considerando as utilizaccedilotildees deste nome no cenaacuterio da literatura

grega claacutessica com o surgimento das trageacutedias tragikoj passa a significar tambeacutem o

traacutegico elemento proacuteprio da trageacutedia vista aqui como gecircnero literaacuterio e natildeo como

manifestaccedilatildeo de ritual religioso que inclusive deu origem a sua nomeaccedilatildeo Todavia

veremos estes aspectos mais agrave frente quando formos tratar especificamente da trageacutedia

Como vimos o aspecto etimoloacutegico natildeo nos esclarece por completo os enigmas

do traacutegico todavia jaacute nos daacute pistas de sua significaccedilatildeo e origem Podemos entender que o

tragikoj estaacute ligado ao siacutembolo do bode este que por sua vez passa a ser relacionado ao

gecircnero literaacuterio da trageacutedia (do grego tragwlaquodimacra ou seja canto do bode) E sendo o bode

siacutembolo do sacrifiacutecio realizado a Dioniso dentro de um ritual religioso importante

socialmente podemos entender porque ambos tanto o traacutegico quanto a trageacutedia estatildeo

envoltos em uma accedilatildeo grandiosa

Em nossa pesquisa bibliograacutefica os estudos sobre o traacutegico que encontramos estatildeo

dentro dos estudos da trageacutedia numa intriacutenseca relaccedilatildeo que tanto pode ser beneacutefica como

pode tambeacutem natildeo nos beneficiar por acreditarmos nem sempre ter sido assim O traacutegico

como desenvolveremos a seguir jaacute se manifestava socialmente entre os gregos e em suas artes

desde muito cedo ao contraacuterio da trageacutedia que soacute viria a existir a partir do seacuteculo V aC

Diante dos estudos a respeito do traacutegico claacutessico a que jaacute nos referimos

destacamos o trabalho realizado por Sandra Luna em Arqueologia da accedilatildeo traacutegica (2005)

Neste temos algumas consideraccedilotildees sobre a existecircncia do traacutegico antes da trageacutedia o que

pode ser comprovado por estudos antropoloacutegicos verificando-se que ―natildeo surpreende o

adentramento precoce do traacutegico na tessitura das artes verbais (LUNA 2005 p 29) Um

exemplo bastante claro dessa preacute-existecircncia do traacutegico natildeo soacute na perspectiva social mas na

produccedilatildeo literaacuteria satildeo as epopeacuteias homeacutericas pois eacute fato que

() Homero convida-nos a ponderar gravemente sobre o traacutegico fim da

existecircncia humana Contudo a despeito do tratamento refinado de elementos

traacutegicos na eacutepica grega natildeo parece ser exatamente ―traacutegico o efeito

pretendido pelo poeta (Ibidem)

Assim apesar de o traacutegico como diz a autora natildeo ser objetivo de Homero eacute

inegaacutevel que nas duas primeiras obras de nossa literatura ocidental precursoras de tantas

50

categorias literaacuterias inaugura-se tambeacutem o traacutegico mesmo que ―a estrutura da accedilatildeo na

narrativa eacutepica dispersa o efeito traacutegico em favor de outros efeitos (LUNA 2005 p 30)

Compartilhamos com esse pensamento de que Homero realiza a dispersatildeo do traacutegico e isso

ele faz utilizando-se de recursos como a modificaccedilatildeo de uma cena traacutegica para outra sem

tragicidade diluindo a tragicidade da cena anterior Entre tantos exemplos desse fato

podemos citar o Canto XXIV no qual Priacuteamo natildeo soacute pede o resgate do corpo do seu filho

Heitor como tambeacutem beija a matildeo do assassino de seu filho Aquiles (v 506) Este concede o

pedido feito pelo rei dos troianos e convida-o para um banquete Vejamos

ἦ ῥα θαὶ ἐο θιηζίελ πάιηλ ἤτε δῖνο Ἀρηιιεύο

ἕδεην δ᾽ ἐλ θιηζκη πνιπδαηδάιση ἔλζελ ἀλέζηε

ηνίρνπ ηνῦ ἑηέξνπ πνηὶ δὲ Πξίακνλ θάην κῦζνλ

πἱὸο κὲλ δή ηνη ιέιπηαη γέξνλ ὡο ἐθέιεπεο

600 θεῖηαη δ᾽ ἐλ ιερέεζζ᾽ ἅκα δ᾽ ἠνῖ θαηλνκέλεθηλ

ὄςεαη αὐηὸο ἄγσλ λῦλ δὲ κλεζώκεζα δόξπνπ27

(Iliada XXIV 596-601)

Dizia e em seguida o divino Aquiles volta para o seu acampamento

sentou-se em seu alto trono e entatildeo fez-se ficar do

outro lado do muro diante de Priacuteamo a quem declarou o discurso

Velho como incitavas o seu filho foi libertado para ti

estaacute colocado em um atauacutede Que tu o revejas raiando a manhatilde

ao mesmo tempo conduzindo-o Mas nesse instante pensemos no banquete

Nesta cena e nas outras que a antecedem temos a realizaccedilatildeo do pedido de Priacuteamo

pelo resgate do filho morto e ultrajado Nesta passagem o aspecto comovente poderia

desencadear no traacutegico mas Homero natildeo a intensifica e sim atenuando a manifestaccedilatildeo do

sentimento traacutegico dirige a cena para uma celebraccedilatildeo simbolizada pelo banquete Segundo

informa-nos Jean Chevalier e Alain Gheerbrant (2009) o banquete eacute um siacutembolo universal

que representa a alianccedila um rito comunial de participaccedilatildeo social envolta e direcionada a um

mesmo projeto geralmente festivo Reconhecemos tambeacutem que nem sempre o banquete

ocorre numa situaccedilatildeo comemorativa apesar de geralmente ser assim e a citaccedilatildeo acima eacute bem

ilustrativa disso Ainda que sejam inimigos Priacuteamo e Aquiles celebram um pacto de respeito

e natildeo uma festividade Mas de todo o modo tal conciliaccedilatildeo representada pelo siacutembolo do

banquete ameniza o conflito este que por sua vez atenua o traacutegico

Deste modo concordamos que o autor da Odisseacuteia ―natildeo alimenta o traacutegico

(Ibidem p 31) ateacute mesmo porque ―() mal comeccedilamos a experimentar a dor somos

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Texto disponiacutevel em httpwwwhs-

augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_il24html agraves 1018hs de 12 de julho de 2010

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convidados a mais um dos banquetes de Homero () (LUNA 2005 p 34) Contudo aleacutem

de ser natural eacute bastante coerente da parte do Homero natildeo se aprofundar no efeito traacutegico

natildeo o objetivando pois ao inveacutes de ter produzido o gecircnero eacutepico ele teria legado-nos uma

incipiente trageacutedia Isso ocorre porque como sabemos o objetivo da eacutepica relaciona-se agrave

exaltaccedilatildeo dos grandes homens e de seus magnos feitos logo natildeo seria coerente Homero

direcionar-se unicamente ao traacutegico Tal fato seria uma relevante incongruecircncia estrutural

com o gecircnero eacutepico com o qual produziu duas notificadas obras que exaltaram as accedilotildees de

Aquiles e Odisseu respectivamente a partir da Iliacuteada e da Odisseacuteia

Todavia jaacute encontramos nas eacutepicas de Homero uma forte e inegaacutevel evidecircncia

traacutegica esta que se natildeo eacute objetivo deste poeta eacutepico seraacute das trageacutedias gregas produzidas

entre os seacuteculos V e IV aC Por isso os tragedioacutegrafos que iratildeo produziacute-las seratildeo bastante

influenciados pela produccedilatildeo homeacuterica inclusive aproveitam-se de certas passagens de teor

traacutegico natildeo desenvolvidas para construiacuterem suas peccedilas Eacute o que provavelmente ocorreu com

Aacutejax de Soacutefocles e com Agamecircmnon de Eacutesquilo que tecircm como prenuacutencios o Canto XI da

Odisseacuteia canto esse permeado de tragicidade Desta forma concordamos com o seguinte

posicionamento de Jacqueline de Romilly

Como quer que seja os autores das trageacutedias foram buscar o assunto das

suas obras agrave epopeacuteia E natildeo eacute duvidoso que ao mesmo tempo tenham ido

buscar a arte de construir personagens e cenas capazes de comover

Apresentar o sentimento da vida inspirar terror e piedade obrigar a partilhar

um sofrimento ou uma ansiedade ndash a epopeacuteia fizera-o sempre e ensinou os

tragedioacutegrafos a fazecirc-lo Poderiacuteamos ainda dizer que se a festa criou o

gecircnero traacutegico foi a influecircncia da epopeacuteia que fez dele um gecircnero literaacuterio

(ROMILLY 2008 p 22)

Assim tendo jaacute nos inspirado o traacutegico Homero seraacute fundamental para os

tragedioacutegrafos pois ele consegue apresentar-nos a tragicidade em suas eacutepicas mesmo em

meio a tantos banquetes celebraccedilotildees e grandes feitos visto que ―A transfiguraccedilatildeo do traacutegico

contudo natildeo rasura completamente os momentos de intensa dramaticidade presente nas

epopeacuteias (Luna 2005 p 34) Diante dessa constataccedilatildeo do traacutegico em Homero reiteramos

que o traacutegico veio antes da trageacutedia natildeo soacute pela sua manifestaccedilatildeo social na vida humana mas

atraveacutes da proacutepria representaccedilatildeo literaacuteria como nos fica claro a partir das epopeacuteias

homeacutericas

Um elemento que nos propicia essa relaccedilatildeo do traacutegico nas eacutepicas vindo a

influenciar a produccedilatildeo das trageacutedias eacute a figura do heroacutei eacutepico pois muitos deles estatildeo fadados

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a um final traacutegico e inclusive jaacute prenunciados por Homero Sobre este fato elucida-nos

Sandra Luna

() sobre o heroacutei eacutepico tambeacutem paira o terriacutevel horizonte da uacutenica certeza

humana ou seja ao final de sua trajetoacuteria para aleacutem de todas as honras das

quais venha a desfrutar a tragicidade estaraacute sempre suspensa sobre sua

cabeccedila ndash a proacutepria construccedilatildeo eacutepica se encarregou de evidenciar que o

desfecho da vida eacute irrevogavelmente traacutegico Apesar de sua caracteriacutestica

sobre-humana sabe-se que o heroacutei haveraacute um dia de ser igualado aos seus

os mortais Com isso queremos dizer que das alturas do heroacutei eacutepico seraacute

sempre possiacutevel vislumbrar momentos de tragicidade (LUNA 2005 p 31)

Como vemos na proacutepria estrutura eacutepica de eixo celebrativo haacute um elemento

favorecedor para o surgimento do traacutegico o heroacutei Sobre este fato tambeacutem complementa

Vernant ―No novo quadro do jogo traacutegico portanto o heroacutei deixou de ser um modelo

tornou-se para si mesmo e para os outros um problema (VERNANT 2008 p 2) Esta

problemaacutetica em relaccedilatildeo agrave representatividade do heroacutei que seraacute distinta no gecircnero eacutepico do

traacutegico pode ser bem ilustrada nos encontros que Odisseu tem no Hades narrado por Homero

no Canto XI da Odisseacuteia com Anticleacuteia Aquiles Agamecircmnon e Aacutejax Tanto que no caso de

Agamecircmnon e Aacutejax temos duas trageacutedias para contar-nos o fim traacutegico desses heroacuteis A saga

de Agamecircmnon eacute contada por Eacutesquilo no primeiro livro da Oresteacuteia e Soacutefocles lega-nos a

peccedila que relata o descontrole e suiciacutedio de Aacutejax Estes dois destinos traacutegicos dos heroacuteis

gregos que antes brilharam nas eacutepicas como modelos principalmente em seus feitos narrados

na Iliacuteada jaacute satildeo prenunciados no Canto XI da Odisseacuteia como veremos detalhadamente no

proacuteximo capiacutetulo

Aleacutem dessa figura eacutepica que posteriormente figuraraacute nas trageacutedias haacute outros

elementos propiacutecios ao traacutegico jaacute presentes na epopeacuteia como nos alerta Aristoacuteteles e reforccedila-

nos Jacqueline de Romilly (2008) como por exemplo a accedilatildeo uacutenica28

os personagens nobres

e a base miacutetica do conteuacutedo desenvolvido No caso do mito destaca-nos Lesky (1995) que a

sua presenccedila evidencia-se natildeo apenas na eacutepica e na trageacutedia mas tambeacutem na liacuterica A

diferenccedila eacute que na primeira e na terceira o mito representa a simboacutelica origem e organizaccedilatildeo

do mundo diante de sua grandiosidade jaacute na trageacutedia o mito passa a ser traacutegico

Diante dos aspectos discutidos percebemos a anterioridade do traacutegico

principalmente no que concerne agraves epopeacuteias homeacutericas visto que nestas o traacutegico jaacute se efetiva

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O proacuteprio Aristoacuteteles na Poeacutetica (1555b) diz-nos que a accedilatildeo das epopeacuteias transcorre a partir de um eixo

centralizador os demais satildeo episoacutedios Assim desenvolvidas em vinte e quatro cantos cada uma a Iliacuteada e a

Odisseacuteia possuem um argumento uacutenico a primeira a ira funesta de Aquiles a segunda o regresso de Odisseu a

Iacutetaca

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como manifestaccedilatildeo literaacuteria Assim aleacutem de tantos outros elementos literaacuterios as epopeacuteias de

Homero legaram-nos o traacutegico

Observada a presenccedila do traacutegico jaacute nas epopeacuteias de Homero discutiremos sobre a

trageacutedia sua estrutura e relaccedilatildeo com as epopeacuteias e com o traacutegico A partir deste percurso

acreditamos que entendendo melhor a trageacutedia elucidaremos melhor o traacutegico jaacute que este se

realiza atraveacutes daquela inegavelmente pois ―eacute fato que na trageacutedia os traccedilos do traacutegico se

tornaratildeo mais evidentes e seus efeitos mais perceptiacuteveis (LUNA 2005 p 34) Daiacute urge a

necessidade de voltarmos atenccedilatildeo ao entendimento da trageacutedia a fim de adquirirmos suporte

suficiente para compreender o traacutegico e assim no capiacutetulo subsequente aplicarmos esta

exposiccedilatildeo teoacuterica na anaacutelise do Canto XI da Odisseacuteia

Do mesmo modo que ocorre com o traacutegico falar sobre a trageacutedia ainda nos impotildee

certas incertezas principalmente no que se trata de sua origem mesmo que sobre ela haja um

nuacutemero bem maior de livros e artigos Ao que nos parece ―o nuacutemero dos ensaios explica-se

precisamente pela ausecircncia de certezas De fato uma grande sombra paira sobre essas

origens (ROMILLY 2008 p 13) Outro autor que compartilha e explicita essa ideacuteia das

dificuldades no estudo da trageacutedia eacute Albin Lesky em Histoacuteria da Literatura Grega (1995)

Segundo o autor natildeo podemos conhecer precisamente o trabalho dos tragedioacutegrafos por falta

de dados satisfatoacuterios ―assim a questatildeo referente agraves origens do drama traacutegico eacute desde a

eacutepoca da ciecircncia alexandrina um dos problemas mais difiacuteceis e discutidos (LESKY 1995

p 253) Finley refletindo sobre a formaccedilatildeo do gecircnero traacutegico sobretudo em comparaccedilatildeo com

outros como a eacutepica e a liacuterica afirma ―Sus oriacutegenes son oscuras (FINLEY 1970 p 101) 29

ressaltando o caraacuteter nebuloso da origem deste gecircnero literaacuterio

De todas estas discussotildees o que podemos concluir eacute que o ditirambo as festas

dionisiacuteacas os saacutetiros os festivais o estado satildeo referecircncias certas de qualquer estudo que

almeja explicar a origem da trageacutedia Adiante poderemos avaliar melhor essa assertiva

Segundo Aristoacuteteles a origem da trageacutedia estaacute relacionada ao ditirambo

Vejamos

Γελνκέλε30

δ᾽ νὖλ ἀπ᾽ ἀξρῆο αὐην[10]ζρεδηαζηηθῆο (θαὶ αὐηὴ θαὶ ἡ

θσκσηδία θαὶ ἡ κὲλ ἀπὸ ηλ ἐμαξρόλησλ ηὸλ δηζύξακβνλ ἡ δὲ ἀπὸ ηλ ηὰ

θαιιηθά ἃ ἔηη θαὶ λῦλ ἐλ πνιιαῖο ηλ πόιεσλ διαμένει νομιζόμενα )

κατὰ μικρὸν ηὐξήθη προαγόντων ὅσον ἐγίγνετο φανερὸν αὐτῆς

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Traduccedilatildeo nossa Suas origens satildeo obscuras 30

A utillizaccedilatildeo deste particiacutepio aoristo gενομένη indica a anterioridade da accedilatildeo (MURACHO 2007) diferente

do uso do particiacutepio presente que indica a simultaneidade dos fatos Por isso a traduccedilatildeo ―tendo surgido que nos

reflete a noccedilatildeo de anterioridade jaacute que a trageacutedia tem sua existecircncia anterior ao que estaacute sendo descrito

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θαὶ πνιιὰο κεηαβνιὰο κεηαβαινῦζα ἡ [15] ηξαγσηδία ἐπαύζαην ἐπεὶ ἔζρε

ηὴλ αὑηῆο θύζηλ31 ((Poeacutetica IV 1449a 9-15)

Portanto tendo surgido de um princiacutepio de improvisaccedilatildeo natildeo soacute ela mesma

(a trageacutedia) quanto a comeacutedia aquela pelos iniciantes do ditirambo e esta

pelos iniciantes dos cantos faacutelicos que ainda permanece estimada em muitas

cidades Estas coisas fazem-me crer que pouco a pouco a trageacutedia cresceu

desenvolvendo-se o que se tornava proacuteprio dela E tendo se transformado

apoacutes muitas mudanccedilas a trageacutedia estabilizou-se quando alcanccedilou sua

natureza proacutepria

Percebe-se que a origem da trageacutedia estaria intrinsecamente relacionada ao

ditirambo diquramboj ateacute que ela comeccedila a desenvolver-se adquirindo especificidades

proacuteprias Sendo o ditirambo um canto de louvor ao deus Dioniso entendemos o porquecirc de a

trageacutedia ser relacionada a esta divindade e ao seu culto religioso Algumas vezes essa

conexatildeo traz-nos certas complicaccedilotildees para o entendimento do gecircnero traacutegico que mesmo

tendo origem ligada ao culto do deus posteriormente veio a se distanciar como jaacute nos indica

Aristoacuteteles na passagem que citamos Daiacute entendemos porque em alguns momentos natildeo nos

eacute tatildeo clara a relaccedilatildeo entre a trageacutedia claacutessica e o culto ao deus Tal fato justifica-se por essa

relaccedilatildeo remontar agraves suas origens e natildeo ao seu desenvolvimento pois a trageacutedia transformou-

se e estabeleceu-se com caracteriacutesticas proacuteprias

Ulrich Von Moellendorff-Wilamowitz em Qursquo est-ce qursquo une trageacutedie

attique(2001) sobre as definiccedilotildees aristoteacutelicas referidas acima considera que ―Aristote

nlsquoavait pas pour but de deacutefinir historiquement la trageacutedie attique il voulait parvenir agrave une

deacutefinition conceptuelle de la trageacutedie32

(WILAMOWITZ 2001 p 118) Entatildeo seguindo as

consideraccedilotildees iniciadas por Aristoacuteteles o autor desenvolve o preceito da origem da trageacutedia

relacionada ao ditirambo e reforccedila a contribuiccedilatildeo dada pelos tragedioacutegrafos Eacutesquilo e

Soacutefocles Diz-nos

La trageacutedie a pour origine les chanteurs de dithyrambe elle a tout dlsquo abord

eacuteteacute un jeu satyrique composeacute dans des rythmes vifs et dans une langue

amusante il fallut attendre Eschyle pour que soit introduit le deuxiegraveme

acteur et pour qulsquo on retire du choeur as place de protagoniste le trosiegraveme

acteur fut introduit pour la premieacutere fois par Sophocle33

(Ibidem p 19)

31

Texto retirado de httpwwwhs-augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante04Aristotelesari_poi1html

agraves 1152hs em 12 de julho de 2010 32

Traduccedilatildeo nossa Aristoacuteteles natildeo tinha por objetivo definir historicamente a trageacutedia aacutetica ele queria chegar a

uma definiccedilatildeo conceitual da trageacutedia 33

Traduccedilatildeo nossa A trageacutedia tem a origem nos cantores de ditirambo ela foi inicialmente um jogo composto

em ritmos vivos e de uma linguagem divertida foi necessaacuterio esperar Eacutesquilo para que fosse introduzido o

segundo ator e que se retirasse do coro sua posiccedilatildeo de protagonista o terceiro ator foi introduzido pela primeira

vez por Soacutefocles

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Wilamowitz contribui ainda com outras informaccedilotildees contextuais sobre a trageacutedia

informando-nos que em 534 aC ocorre a primeira representaccedilatildeo de uma trageacutedia durante o

festival das Grandes Dionisiacuteacas por Teacutespis34

de Lesbos Este se consagra como o primeiro

ganhador do precircmio quando o festival foi reorganizado por Pisiacutestrato Apoacutes estas

informaccedilotildees gerais o autor diante de seus estudos cria situaccedilatildeo adequada para expor uma

definiccedilatildeo de trageacutedia afirmando

Une trageacutedie attique est un eacutepisode tireacute de la leacutegende heacuteroiumlque

ayant son uniteacute propecirc traiteacute de faccedilon poeacutetique dans un style noble et destine

agrave ecirctre representeacute par um choeur de citoyens attique e deux voire trois

acteurs dans le sanctuaire de Dionysos comme partie integrante de la

ceacuteleacutebration publique du culte du dieu35

(WILAMOWITZ 2001 p 117)

Percebe-se que esta definiccedilatildeo eacute respaldada pela concepccedilatildeo que Aristoacuteteles nos

legou a partir da Poeacutetica vindo esta a ser reiterada por Wilamowitz (2001) Sabemos que

muitos estudos posteriores ao do filoacutesofo grego tentaram abarcar suas ideacuteias explicando-as

exemplificando-as de modo a atualizaacute-las para o entendimento da modernidade de uma

temaacutetica de discussotildees inesgotaacuteveis Esse eacute o caso dos autores que discutiremos a seguir

Para Romilly em A trageacutedia Grega (2008) o fator religioso eacute inegaacutevel no

surgimento e formaccedilatildeo da trageacutedia Ele reconhece tambeacutem a influecircncia poliacutetica da tirania

Ressalta que as representaccedilotildees das trageacutedias dependem do culto a Dioniso mesmo porque soacute

nas festas dedicadas ao filho de Secircmele eacute que havia a encenaccedilatildeo das peccedilas Informa-nos

ainda

A grande ocasiatildeo era na eacutepoca claacutesssica as festas das Dionisiacuteacas

urbanas que se celebrava na Primavera mas tambeacutem havia concursos de

trageacutedias na festa das Leneias que tinha lugar pelo final de Dezembro A

proacutepria representaccedilatildeo inseria-se assim num conjunto eminentemente

religioso era acompanhada de procissotildees e sacrifiacutecios (ROMILLY 2008 p

14)

Jacqueline de Romilly completa que no centro do teatro havia um assento de

pedra destinado ao deus como tambeacutem um altar onde ocorria a evoluccedilatildeo do coro Diante

34

Grimal (2002) registra atraveacutes de Soacutelon e Heroacutedoto a existecircncia de Aacuterion que em Siacutecion (Peloponeso) seria

reconhecido como o autor da primeira trageacutedia por volta de VII aC 35

Traduccedilatildeo nossa Uma trageacutedia aacutetica eacute um episoacutedio tirado de uma lenda heroacuteica tendo unidade proacutepria tratada

de modo poeacutetico em um estilo nobre e destinado a ser representado por um coro de cidadatildeos aacuteticos com dois e

ateacute mesmo trecircs atores no santuaacuterio de Dioniso como parte integrante da celebraccedilatildeo puacuteblica do culto ao deus

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dessa constataccedilatildeo e embasada pela teorizaccedilatildeo de Aristoacuteteles (Poeacutetica 1449 a) ela afirma que

a trageacutedia tendo vindo do ditirambo seria uma amplificaccedilatildeo do rito religioso assim como a

comeacutedia

Pierre Grimal em O Teatro Antigo (2002) afirma natildeo poder dar uma explicaccedilatildeo

clara sobre o termo ―trageacutedia Isto porque haacute certa dificuldade em encaixar os dois elementos

distintos que compotildeem a formaccedilatildeo do vocaacutebulo tragwlaquodimacra ou seja tragomacrj bode e wlaquocopydimacra

(de Acircdhmacr) canto Para Grimal natildeo haacute uma relaccedilatildeo direta entre os termos tragomacrj e wlaquocopydimacra por

isso levanta diversos questionamentos o coro vestia-se com a pele do bode ou o bode seria o

precircmio para o poeta vencedor ou o bode era a viacutetima sacrifical do que era cantado Enfim

sem poder chegar a uma definiccedilatildeo mais objetiva ele conclui que essa palavra natildeo pode ser

primitiva e sim contemporacircnea ao surgimento da trageacutedia relacionada ao ritual de Dioniso

O autor ainda nos alerta citando Romilly que natildeo podemos esquecer que os

rituais religiosos passam das improvisaccedilotildees para formas literaacuterias ateacute mesmo por causa da

reorganizaccedilatildeo poliacutetica e social e daiacute surge o advento dos concursos Diante disso Grimal

aponta duas causas para o surgimento da trageacutedia a literaacuteria que teria sido iniciada por

Teacutespis e a poliacutetica relacionada ao desejo da tirania de forjar ao povo atraveacutes das festas a

centralizaccedilatildeo do poder

Como jaacute foi dito Pierre Grimal refere-se a uma importante influecircncia das

transformaccedilotildees soacutecio-poliacuteticas para as modificaccedilotildees da trageacutedia Tais influecircncias justificariam

o porquecirc de antigas manifestaccedilotildees ritualiacutesticas ligadas a Dioniso como os ditirambos e os

cantos faacutelicos viessem a originar gecircneros literaacuterios como a trageacutedia e a comeacutedia Para melhor

entendermos a importacircncia desses elementos sociais e poliacuteticos na formaccedilatildeo de um gecircnero

literaacuterio como a trageacutedia vejamos o que nos diz Arnould Hauser

A trageacutedia eacute a criaccedilatildeo artiacutestica mais caracteriacutestica da democracia

ateniense em nenhuma outra forma de arte satildeo apreciados tatildeo direta e

claramente quanto nela os conflitos internos da estrutura social de Atenas

Os aspectos externos de sua apresentaccedilatildeo agraves massas eram democraacuteticos mas

o conteuacutedo as sagas heroacuteicas com sua perspectiva traacutegico-heroacuteica da vida

eram aristocraacuteticos (HAUSER 1995 p 84)

Esta relaccedilatildeo social em que a arte traacutegica estaacute firmada natildeo pode ser dissociada

facilmente ateacute porque ―Fue Atenas la democraacutetica ciudad-estado por excelecircncia la que

produjo y patrocinoacute estrictamente hablando ndash la trageacutedia ()36

(FINLEY 1970 p 101)

36

Traduccedilatildeo nossa Foi Atenas a democraacutetica cidade-estado por excelecircncia que produziu e patrocinou -

estritamente falando ndash a trageacutedia ()

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Ainda sobre esse momento histoacuterico da trageacutedia suas condiccedilotildees sociais e ateacute mesmo

psicoloacutegicas Jean-Pierre Vernant em Mito e Trageacutedia na Greacutecia Antiga (2008) informa-nos

que muitas discussotildees nos uacuteltimos cinquenta anos ocorreram sobre trageacutedia e mais

precisamente sobre suas origens E diante de todas as interrogaccedilotildees dos helenistas e

proposiccedilotildees de respostas natildeo foram suficientes para resolver o problema da trageacutedia A este

problema exposto por Vernant incluiacutemos o que consideramos como intriacutenseco agrave trageacutedia a

manifestaccedilatildeo traacutegica Isto porque esta foi iniciada na literatura a partir das eacutepicas homeacutericas e

estabilizada a partir das trageacutedias gregas Diante deste quadro complexo que gerou tanto a

comeacutedia quanto a trageacutedia Vernant concebe esta da seguinte maneira

A trageacutedia natildeo eacute apenas uma forma de arte eacute uma instituiccedilatildeo

social que pela fundaccedilatildeo dos concursos traacutegicos a cidade coloca ao lado dos

seus oacutergatildeos puacuteblicos e judiciaacuterios () um espetaacuteculo aberto a todos os

cidadatildeos dirigido desempenhado julgado por representantes qualificados

das diversas tribos a cidade se faz teatro ela se toma de certo modo como

objeto de representaccedilatildeo e desempenha a si proacutepria diante do puacuteblico

(Ibidem p 10)

Irredutivelmente traacutegica em sua essecircncia a trageacutedia reflete a realidade em que ela

se originou e se estabeleceu por isso diz-nos Vernant que ―a proacutepria consciecircncia traacutegica

nasce e desenvolve-se com a trageacutedia (2008 p 9) Mas para aleacutem da representaccedilatildeo a

trageacutedia questiona a sociedade em que se instaurou E o seu constituinte traacutegico eacute elemento

importante nesse fato visto que potildee em cena o conflito da condiccedilatildeo humana diante de sua

fragilidade e limitaccedilatildeo

E esse elemento traacutegico estaacute relacionado ao deus que assiste do centro do teatro agrave

representaccedilatildeo da tragicidade humana Referimo-nos a Dioniso o deus que representa

contraditoriamente (ou natildeo) tanto a trageacutedia quanto a comeacutedia gecircneros que chegam a ser

completamente opostos a depender da perspectiva em que sejam analisados Um deus tatildeo

associado agrave celebraccedilatildeo ao vinho ao canto faacutelico ao ecircxtase causa-nos certa estranheza em

estar na representaccedilatildeo do gecircnero traacutegico

Mas essa ligaccedilatildeo entre o deus e o traacutegico pode ser bem entendida pelo fato de

que assim como a trageacutedia questiona a proacutepria realidade que representa tambeacutem ―Dioniso

questiona essa ordem Ele a faz despedaccedilar-se ao revelar por sua presenccedila outro aspecto do

sagrado jaacute natildeo regular estaacutevel e definido mas estranho inapreensiacutevel e desconcertante

(VERNANT 2006 p 77) Como vemos assim como o traacutegico o deus que o representa

possui os mesmos atributos daiacute a adequaccedilatildeo entre ambos E toda essa complexidade

58

representativa ocorre porque Dioniso ―nos ensina ou nos obriga a tornar-nos o contraacuterio

daquilo que somos comumente (VERNANT 2006 p 80) Toda essa transmutaccedilatildeo pela qual

passa o personagem traacutegico que segundo Vernant eacute obrigada ou ensinada por Dioniso

reitera a proacutepria situaccedilatildeo traacutegica prescrita por Aristoacuteteles que se baseia numa passagem da

fortuna ao infortuacutenio ou vice-versa (Poeacutetica 1451a) Apesar de que a passagem da fortuna ao

infortuacutenio segundo Aristoacuteteles (1453a) eacute considerada mais traacutegica tal aspecto pode ser

observado no corpus do nosso trabalho jaacute que no Canto XI Agamecircmnon Aacutejax Aquiles e

Anticleacuteia mostram-se infelizes lamuriantes com o destino que tiveram e esse fim desditoso eacute

o mais traacutegico

Permeada pela tragicidade em sua essecircncia a trageacutedia possui uma estrutura formal

geralmente bem delimitada Para Aristoacuteteles um fato decisivo na qualificaccedilatildeo da estrutura de

uma trageacutedia eacute a sua caracterizaccedilatildeo como complexa Na Poeacutetica (1452a) o filoacutesofo diz-nos

que haacute trageacutedias de estrutura simples e complexa Nesta a mudanccedila da fortuna ocorre com

reconhecimento37

do grego a)nagnwiquestrisij eou peripeacutecia38

do grego peripemacrteia

diferentemente da simples em que a mudanccedila da fortuna ocorre sem nenhum desses

elementos Segundo o filoacutesofo as faacutebulas mais belas satildeo as complexas desde que toda a accedilatildeo

esteja conexa com a necessidade e a verossimilhanccedila

Aleacutem desse aspecto baacutesico da estrutura da trageacutedia Aristoacuteteles indica-nos os seus

elementos constitutivos presentes em todas as peccedilas a saber proacutelogo episoacutedio ecircxodo canto

coral com este se distinguindo entre paacuterodo e estaacutesimo39

O primeiro constitui a parte da

trageacutedia que precede a entrada do coro o episoacutedio eacute uma parte da peccedila que fica situada entre

dois cantos completos do coro apoacutes o ecircxodo natildeo haacute canto do coro o canto do coro possui

dois momentos distintos um eacute o paacuterodo que eacute o primeiro pronunciar do coro e o outro eacute o

estaacutesimo que eacute o canto realizado no final de um episoacutedio em anapestos e troqueus

Completando essa determinaccedilatildeo aristoteacutelica sobre a estrutura da trageacutedia citamos

a divisatildeo estrutural da trageacutedia de Jacqueline de Romilly (2008) A autora apesar de basear-se

e em muitos momentos apenas transcrever a definiccedilatildeo de Aristoacuteteles determina dois

37

Do grego a)nagnwiquestrisij proveniente do verbo a)nagnwricentzw formado pelo prefixo a)na de novo

mais o radical gnwrizw que indica fazer conhecer saber Deste modo a)nagnwiquestrisij significa fazer

conhecer novamente ou seja reconhecer de novo fazer saber revelar 38

Do grego peripemacrteia esta palavra eacute composta pela preposiccedilatildeo periindicando o entorno a sobre de

mais o radical pemacrt do verbo piiquestptw que significa queda atirar-se em indicando a mudanccedila a

imprevisibilidade o inesperado Assim peripemacrteia indica o que estaacute envolta do imprevisto acerca do

inesperado aquilo estaacute estaacute relacionado a queda 39

Haacute tambeacutem o canto dos atores e o koacutesmos que era o canto de lamento do coro estes dois natildeo satildeo comuns em

todas as trageacutedias por isso natildeo nos iremos ater neste momento em suas ponderaccedilotildees

59

elementos centrais na estrutura da trageacutedia que a distingue dos demais gecircneros satildeo eles o

coro e os personagens O primeiro desde a origem da trageacutedia relacionada ao ditirambo

figura como importante elemento da peccedila O segundo passa por transformaccedilotildees no nuacutemero de

atores que o representam ao longo do desenvolvimento da trageacutedia Assim com Teacutespis havia

apenas um ator com Eacutesquilo esse nuacutemero foi elevado para dois e com Soacutefocles para trecircs

Assim como faz Aristoacuteteles Romilly (2008 p 43-51) afirma ainda ser a accedilatildeo um elemento

primordial na estrutura da trageacutedia poreacutem natildeo eacute especiacutefico jaacute que na epopeacuteia tanto quanto

na trageacutedia a accedilatildeo deve ser una Ou seja a epopeacuteia pode tambeacutem ter sua accedilatildeo envolta de

peripeacutecias e reconhecimentos e no fim essa accedilatildeo pode levar o personagem agrave cataacutestrofe

Diante desses aspectos estruturais da trageacutedia que ora a distingue ora a identifica

com outros gecircneros entendemos porque Jaeger considera que ―a trageacutedia tanto pelo seu

material miacutetico como pelo seu espiacuterito eacute a herdeira integral da epopeacuteia (JAEGER 2003 p

70) Tal constataccedilatildeo reforccedila nossa tese sobre a tragicidade presente na epopeacuteia Por essa

relaccedilatildeo entre os gecircneros gregos sejam eles arcaicos ou claacutessicos Jaeger afirma

A trageacutedia devolve agrave poesia grega a capacidade de abarcar a

unidade de todo humano Nesse sentido soacute a epopeacuteia homeacuterica se pode

comparar a ela Apesar da grande fecundidade da literatura nos seacuteculos

intermediaacuterios soacute a epopeacuteia a iguala quanto agrave riqueza do conteuacutedo agrave forccedila

estruturadora e amplitude do seu espiacuterito criador Eacute como se o renascimento

do gecircnio poeacutetico da Greacutecia se tivesse mudado da Jocircnia para Atenas A

epopeacuteia e a trageacutedia satildeo como duas grandes formaccedilotildees montanhosas ligadas

por uma seacuterie ininterrupta de serras menores (Ibidem p 287)

A partir da reflexatildeo acima e das consideraccedilotildees realizadas ao longo deste toacutepico

acerca do traacutegico e da trageacutedia percebemos que satildeo elementos num certo ponto

indissociaacuteveis mas que podem ser visto agrave luz de uma anaacutelise que os distingue e que nos faz

perceber a anterioridade do traacutegico em relaccedilatildeo agrave trageacutedia Tal constataccedilatildeo pode ser verificada

tanto na sociedade grega levando em consideraccedilatildeo o traacutegico como elemento soacutecio-cultural

verificado nos estudos antropoloacutegicos como na literatura grega arcaica Assim se quisermos

ver o surgir do traacutegico na literatura ocidental devemos recorrer agraves epopeacuteias homeacutericas pois laacute

encontramos os germes da manifestaccedilatildeo traacutegica estabilizada no periacuteodo claacutessico da literatura

grega atraveacutes das trageacutedias

No decorrer deste capiacutetulo aleacutem de discorrermos sobre o traacutegico sua

manifestaccedilatildeo e origem permeamos nosso estudo tambeacutem com ponderaccedilotildees sobre a trageacutedia

sua formaccedilatildeo e estrutura porque consideramos que essas relaccedilotildees satildeo fundamentais para o

objetivo geral de nosso trabalho que eacute analisar a presenccedila do traacutegico num texto eacutepico a partir

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do Canto XI da Odisseacuteia Essa realizaccedilatildeo do traacutegico na eacutepica mesmo natildeo sendo seu objetivo

eacute para a literatura ocidental a primeira apariccedilatildeo traacutegica que fundamentaraacute as trageacutedias gregas

no seacuteculo IV aC

23 O traacutegico na Poeacutetica

Antes de iniciarmos nossas discussotildees sobre a perspectiva do traacutegico presente na

Poeacutetica iremos expor brevemente as consideraccedilotildees realizadas por Platatildeo na Repuacuteblica

sobre a arte literaacuteria e mais especificamente sobre a arte traacutegica Esta introduccedilatildeo faz-se

importante para que percebamos e possamos avaliar ateacute que ponto Aristoacuteteles foi

influenciado por seu mestre ou ao contraacuterio construiu teorizaccedilatildeo oposta mais centrada na

estrutura e verossimilhanccedila textual do que no valor moral e educativo que a arte poderia

veicular aos jovens do estado

Faz-se necessaacuterio retomar a teorizaccedilatildeo platocircnica visto que esta eacute de algum modo

relevante na produccedilatildeo de Aristoacuteteles pois no miacutenimo fez parte de sua formaccedilatildeo intelectual

Aleacutem do mais foi Platatildeo o primeiro a iniciar uma discussatildeo sobre a arte literaacuteria e noacutes diante

desse pioneirismo devemos entender o que foi preconizado

Para tanto selecionamos os Livros III e X da Repuacuteblica a fim de avaliarmos os

posicionamentos de Platatildeo e as diferenccedilas que seu disciacutepulo Aristoacuteteles teraacute diante da

perspectiva da anaacutelise do texto literaacuterio Esses dois livros foram selecionados por

considerarmos que neles encontramos reflexotildees importantes de Platatildeo a respeito da arte

literaacuteria

Platatildeo como dissemos iniciou as discussotildees sobre a literatura contudo avaliou-a

a partir do ponto de vista da utilidade se ela poderia servir ao estado ou ao contraacuterio se

prejudicaria na formaccedilatildeo dos jovens A seguir podemos avaliar melhor essa assertiva atraveacutes

da anaacutelise do proacuteprio texto platocircnico

No Livro III praticamente todas as exposiccedilotildees de Platatildeo convergem para um

mesmo foco no estado ideal deve-se estar vigilante a fim de eliminar a arte literaacuteria que natildeo

contribui positivamente na formaccedilatildeo dos jovens isto eacute aquela que os incita agrave impiedade Mas

o que a arte poderia veicular que natildeo favorecesse a formaccedilatildeo do jovens Platatildeo deixa bem

claro quais seriam as faacutebulas inadequadas pois quase como em um manual ele descreve o

que natildeo deve fazer parte da narraccedilatildeo pura e moderada Entre tantas inadequaccedilotildees literaacuterias a

61

que ele se refere podemos citar falsificaccedilatildeo das situaccedilotildees ocorridas no inferno descriccedilatildeo de

heroacuteis em lamentaccedilatildeo pela morte ou pela perda material chorosos homens nobres em

situaccedilatildeo de arrependimento e fraqueza dados ao riso excessivo entre tantas outras indicaccedilotildees

feitas pelo filoacutesofo Diante dessas prerrogativas Platatildeo chega inclusive ao ponto de

considerar que a beleza poeacutetica natildeo caminha ao lado do valor moral tanto que diz

[387β] ηαῦηα θαὶ ηὰ ηνηαῦηα πάληα παξαηηεζόκεζα Ὅκεξόλ ηε θαὶ ηνὺο

ἄιινπο πνηεηὰο κὴ ραιεπαίλεηλ ἂλ δηαγξάθσκελ νὐρ ὡο νὐ πνηεηηθὰ θαὶ ἡδέα ηνῖο πνιινῖο ἀθνύεηλ ἀιι᾽ ὅζῳ πνηεηηθώηεξα ηνζνύηῳ ἧηηνλ

ἀθνπζηένλ παηζὶ θαὶ ἀλδξάζηλ νὓο δεῖ ἐιεπζέξνπο εἶλαη δνπιείαλ ζαλάηνπ

κᾶιινλ πεθνβεκέλνπο40

(Repuacuteblica III 387b)

Pediremos a Homero e aos outros poetas para excluir estas espeacutecies (de

narrativas) assim como natildeo as invalidariacuteamos por falta de poeacutetica e agrado

aos muitos que as ouvir Pelo contraacuterio quanto mais poeacuteticas tanto menos

audiacutevel seratildeo para crianccedilas e homens os quais devem ser livres tendo

receado mais a escravidatildeo do que a morte

Platatildeo natildeo apenas se refere agraves circunstacircncias que devem ser evitadas como cita as

passagens literaacuterias muitas delas de Homero as quais ele natildeo considera beneacuteficas para

compor a estruturaccedilatildeo do estado ideal Uma dessas referecircncias remete-nos ao Canto XI da

Odisseacuteia constataccedilatildeo esta que fazemos mesmo sem o filoacutesofo referir-se diretamente ao seu

objeto de criacutetica Vejamos

[386c] ἐμαιείςνκελ ἄξα ἦλ δ᾽ ἐγώ ἀπὸ ηνῦδε ηνῦ ἔπνπο ἀξμάκελνη πάληα

ηὰ ηνηαῦηαmdash―βνπινίκελ θ᾽ ἐπάξνπξνο ἐὼλ ζεηεπέκελ ἄιιῳ

ἀλδξὶ παξ᾽ ἀθιήξῳ ᾧ κὴ βίνηνο πνιὺο εἴε

ἢ πᾶζηλ λεθύεζζη θαηαθζηκέλνηζηλ ἀλάζζεηλ41

(Repuacuteblica III 386c)

Dizia eu neste discurso portanto anulemos de iniacutecio todas as coisas desta

natureza que assim tenham iniciado ndash ―pois eu preferiria viver sendo um

trabalhador do campo para um outro homem ateacute mesmo sem nobreza e

que eventualmente sua vida natildeo fosse de posses do que reinar sobre

cadaacuteveres que tiveram sido destruiacutedos

Como nos fica evidente temos na citaccedilatildeo acima uma criacutetica agrave produccedilatildeo literaacuteria

homeacuterica especificamente ao Canto XI da Odisseacuteia em que Odisseu encontra-se no Hades

com alguns companheiros da Guerra de Troacuteia Nesse encontro os guerreiros de alta estirpe

40

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101673Abook3D33Asection

3D387b agraves 1523hs de 12 de julho de 2010 41

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101673Abook3D33Asection

3D386c agraves 1530hs de 12 de julho de 2010

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como Agamecircmnon Aquiles e Aacutejax mostram-se numa situaccedilatildeo natildeo gloriosa A morte para

eles representa um infortuacutenio

Na conversa que Odisseu tem com Agamecircmnon percebe-se que o Atrida vecirc-se

desolado pela traiccedilatildeo da esposa que o levou a uma morte traacutegica inclusive chama atenccedilatildeo

para que Odisseu tenha cuidado no retorno ao lar precavendo-se de uma armadilha que assim

como Cliteminestra Peneacutelope poderia ter preparado para o Laertida Agamecircmnon conta em

detalhes a sua morte de seus companheiros e de Cassandra todos pegos pela artimanha

realizada por sua esposa Cliteminestra junto com seu amante Egisto E depois da narraccedilatildeo o

Atrida no verso 412 conclui ―wAgravej qanon oi)ktistwi qanatwi rdquo42 isto eacute ―Assim morri

com a morte mais lamentaacutevel (Odisseacuteia Canto XI v 412)

O diaacutelogo entre Odisseu e Aquiles natildeo seraacute diferente tanto que Platatildeo chega a falar

(III ndash 386c-d) que narraccedilotildees desse tipo devem ser anuladas O teor desse diaacutelogo sugere para

Platatildeo certa inutilidade para composiccedilatildeo do estado ideal por significar uma ameccedila ao estado

beacutelico E como sabemos nessa passagem Aquiles revela-se insatisfeito em ser rei dos

mortos preferindo ser um ―bouloimhn krsquo e)parouroj e)wUumln qhteuemenrdquo43 (Odisseacuteia

Canto XI v 489) ou seja ―pois eu preferiria viver sendo trabalhador do campo desde que

ainda estivesse vivo Uma narraccedilatildeo como essa segundo Platatildeo abalaria a propensatildeo guerreira

dos heroacuteis que natildeo devem temer a morte pois se um heroacutei como Aquiles mostra-se

arrependido os jovens ver-se-atildeo influenciados negativamente Por isso Platatildeo

definitivamente indica que tais faacutebulas devem ser eliminadas do estado jaacute que natildeo satildeo

beneacuteficas na formaccedilatildeo dos homens dos jovens enfim da sociedade em geral

Aacutejax conhecido como o maior guerreiro grego depois de Aquiles tambeacutem natildeo se

encontra em estado de graccedila e glorificado no Hades Pelo contraacuterio aparece ainda ressentido e

negando-se a falar com Odisseu magoado pela destinaccedilatildeo das armas de Aquiles Estas ao

inveacutes de ficarem com ele satildeo destinadas a Odisseu justificando-se entatildeo a sua atitude de

desdeacutem Esta passagem tambeacutem natildeo eacute adequada aos jovens pois natildeo os enobrece e sim

mostra a desobrigaccedilatildeo para com a filiiquesta ou seja com aqueles que compotildeem o grupo de

amizade

42

Texto disponiacutevel em httpwwwhs-

augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_od11html agraves 1533hs ded 12 de julho de

2010 43

Texto disponiacutevel em httpwwwhs-

augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_od11html agraves 1540hs de 12 de julho de

2010

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Seja atraveacutes de Agamecircmnon Aquiles eou Aacutejax o que queremos mostrar com a

explanaccedilatildeo acima eacute o posicionamento e os criteacuteios utilizados por Platatildeo diante da avaliaccedilatildeo

do texto literaacuterio que como se vecirc eacute baseada em criteacuteios morais de utilidade Platatildeo avalia a

arte atraveacutes de sua utilidade ou inutilidade buscando um fundamento de serventia para a

sociedade e para os homens que a compotildee Assim perguntado sobre quais gecircneros poderiam

permanecer no estado apoacutes ter apontado tantas ―faacutebulas inuacuteteis a exemplo das de Homero

responde

[397δ] ηί νὖλ πνηήζνκελ ἦλ δ᾽ ἐγώ πόηεξνλ εἰο ηὴλ πόιηλ πάληαο ηνύηνπο

παξαδεμόκεζα ἢ ηῶλ ἀθξάησλ ηὸλ ἕηεξνλ ἢ ηὸλ θεθξακέλνλ44

(Repuacuteblica

III 397d)

Entatildeo como realizaremos Dizia eu Seraacute por acaso que aceitaremos para

cidade todos (gecircneros) desta espeacutecie ou outro puro ou o que mistura

O Canto XI nosso objeto central de anaacutelise no proacuteximo capiacutetulo eacute avaliado por

Platatildeo a partir de um criteacuterio utilitaacuterio daiacute a sua opccedilatildeo em eliminar tal arte do estado Jaacute

Aristoacuteteles diferentemente natildeo analisa o texto literaacuterio pelo pressuposto da utilidade mas da

estrutura e verossimilhanccedila interna do texto independentemente da accedilatildeo narrada vir a ser

positiva ou negativa para a formaccedilatildeo do cidadatildeo Por haver essas distinccedilotildees teoacutericas

consideramos explanar mesmo que resumidamente acerca dos paracircmetros de avaliaccedilatildeo que

Platatildeo faz da arte literaacuteria ainda que a nossa pesquisa fundamente-se nos escritos

aristoteacutelicos

Ainda no Livro III (393d) Platatildeo diz preferir a exposiccedilatildeo a narraccedilatildeo pois

considera que no momento em que o poeta se oculta dando voz aos personagens transfigura-

se em outros seres Essa transfiguraccedilatildeo ocorre bem nitidamente nas trageacutedias e comeacutedias

mas no preceito platocircnico ao realizar tal imitaccedilatildeo o poeta afasta-se trecircs vezes da realidade

No Livro X esta distacircncia da arte imitativa em relaccedilatildeo agrave realidade seraacute ainda mais

desenvolvida por Platatildeo chegando afirmar que a arte poeacutetica estaacute muito afastada da realidade

por isso ele afirma que todos os poetas desde Homero ―thordfj deUuml a)lhqeiaj ousup1x

aAgraveptesqairdquo45 (Ibidem 601a) ou seja ―da verdade natildeo consegue se unir Mais proacutexima da

irracionalidade e distante da realidade a arte segundo Platatildeo pode causar danos aos homens

44

Textop retirado de

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101673Abook3D33Dsection

3D3976d agraves 1530hs de 15 de julho de 2010 45

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A199901016710Abook3D33Asection

10A601ac agraves 1530hs de 15 de julho de 2010

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E uma cidade sob sua influecircncia acaba sendo governada pela dor pela emoccedilatildeo e natildeo pelo

nomoj46

Uma outra exposiccedilatildeo de Platatildeo no Livro X tambeacutem nos interessa Eacute que o autor

da Repuacuteblica apesar das criacuteticas feitas a Homero admite haver uma certa dificuldade eou

estranheza em ter que falar o que pensa a respeito da arte homeacuterica tendo em vista que haacute de

sua parte uma dedicaccedilatildeo e respeito fruto de sua infacircncia Segue abaixo esse discurso aleacutem de

outro que mostra a importacircncia de Homero para a sociedade grega natildeo soacute a arcaica como

tambeacutem a claacutessica Por isso Platatildeo realiza as seguintes afirmaccedilotildees sobre o autor da Odisseacuteia

θαίηνη θηιία γέ ηίο κε θαὶ αἰδὼο ἐθ παηδὸο ἔρνπζα πεξὶ Ὁκήξνπ ἀπνθσιύεη

ιέγεηλ47

(Repuacuteblica X 595b)

E de fato haacute alguma amizade e respeito que possuo desde a infacircncia a

respeito de Homero que impede-me de falar

() γὰξ ηῶλ θαιῶλ ἁπάλησλ ηνύησλ ηῶλ ηξαγηθῶλ πξῶηνο δηδάζθαιόο ηε

θαὶ ἡγεκὼλ γελέζζαη48

(Ibidem 595c)

Na verdade vem a ser ele o primeiro mestre e guia de todos esses belos

autores traacutegicos

Essa afirmaccedilatildeo de Platatildeo mais uma vez confirma-nos a influecircncia que Homero

realizou sobre os autores traacutegicos Influecircncia essa que pode ser observada natildeo apenas na base

mitoloacutegica como tambeacutem nas cenas homeacutericas aproveitadas e desenvolvidas pelos autores

traacutegicos Ainda mais essa influecircncia pode ser observada nisso acreditamos na proacutepria

elaboraccedilatildeo do traacutegico Este seraacute afixado na literatura grega por meio dos tragedioacutegrafos mas

como podemos notar jaacute se manifesta nas eacutepicas homeacutericas em especial Essa influecircncia

exercida por Homero nos autores traacutegicos como Eacutesquilo Soacutefocles e Euriacutepedes justifica sua

intitulaccedilatildeo como o primeiro mestre dos traacutegicos ldquoprwordftoj didaskaloj twordfn tragikwordfnrdquo

como bem nos caracterizou Platatildeo

46

Em grego nocentmoj de necentmw verbo que significa distribuir partilhar dividir Tem como sentido

primordial o que eacute estabelecido pelo uso o costume justamente por ser uma accedilatildeo de partilha entre os integrantes

da comunidade daiacute o radical derivar de necentmw Como segundo sentido indicado por Romizi (2006) ) nocentmoj indica o que ocorre segundo o termo da lei da norma distribuiacuteda pelo estado 47

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A199901016710Abook3D33Asection

10cD595b agraves 1530hs de 15 de julho de 2010 48

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httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A199901016710Abook3D33Asection

10cD595c agraves 1530hs de 15 de julho de 2010

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Diante da exposiccedilatildeo acima jaacute podemos inferir que Aristoacuteteles ao contraacuterio do seu

mestre analisa a arte literaacuteria em sua estrutura e construccedilatildeo poeacutetica como criaccedilatildeo bem no

sentido etimoloacutegico do termo poihsije natildeo como fez Platatildeo pela perspectiva da

funcionalidade social da arte dos valores e da moral propagada Vejamos pois em siacutentese as

concepccedilotildees aristoteacutelicas da arte literaacuteria presentes na Poeacutetica

Na PeriUuml PoihtikhUumlj49 de Aristoacuteteles que conhecemos geralmente como

Poeacutetica ou Arte Poeacutetica temos comentaacuterios acerca da poeacutetica como indica sua proacutepria

etimologia ou seja da criaccedilatildeocomposiccedilatildeo artiacutestica A poeacutetica central para qual se dirigem os

comentaacuterios do autor eacute a trageacutedia Esta ele considera como mais elevada do que os demais

gecircneros ao ponto de no capiacutetulo XXVI apoacutes suscitar um grau de comparaccedilatildeo entre a

trageacutedia e a epopeacuteia (1461b) demonstrando os atributos de uma e de outra Aristoacuteteles afirma

Eicopy ouAcircn toumacrtoij te diafemacrrei pacurrensi kaiUuml eaumlti twcurrenlaquo thcurrenj temacrxnhj eaumlrgw ()

fanerocentn oagraveti kreittwn aatilden eiOacuteh maIacutellon toucurren Iacutetelouj tugxaiquestnousa

thIacutej epopoiiaj50 (Poeacutetica 26 1462b 11-14)

Entatildeo se ela se distingue por todas essas coisas e ainda pelo trabalho

artiacutestico () eacute claro que a trageacutedia eacute superior agrave epopeacuteia obtendo melhor sua

finalidade

Antes de iniciarmos as nossas consideraccedilotildees sobre o traacutegico a partir da Poeacutetica

ressaltamos que natildeo haacute objetivamente um esclarecimento de Aristoacuteteles do que seria o

traacutegico ao contraacuterio do que ocorre com a trageacutedia cuja estrutura ele conceitua e define

Portanto o que faremos eacute por meio de uma leitura arguta tentar depreender quais elementos

constituem uma accedilatildeo traacutegica e para tanto nos serviremos das exposiccedilotildees que Aristoacuteteles faz

da trageacutedia Ateacute porque como dissemos anteriormente eacute nesta poeacutetica que encontramos de

fato a efetuaccedilatildeo do traacutegico apesar de este jaacute se manifestar nas eacutepicas homeacutericas

Logo ao iniacutecio de sua exposiccedilatildeo no capiacutetulo I Aristoacuteteles afirma-nos que a

epopeacuteia a trageacutedia enfim a criaccedilatildeo poeacutetica de modo geral eacute uma mimhsij51 (1447a) ou

49

Em grego PeriUuml eacute uma preposiccedilatildeo que significa o que estaacute em torno de algo envolta de acerca de eou sobre

algo PoihtikhUumlj eacute formada pelo radical Poihoriundo do verbo temaacutetico poieiquestw que indica o fazer o

compor o criar jaacute o sufixo tikhj conforme nos informa Romizi (2007) indica a atitude a relaccedilatildeo com alguma

coisa o que pertence a algo daiacute PoihtikhUumlj vir a significar o que eacute relativo a criaccedilatildeo a poeacutetica Logo

poderiacuteamos sugerir como traduccedilatildeo para PeriUuml PoihtikhUumljliteralmente ―sobre o que pertencerelativo a

poeacutetica 50

ARISTOacuteTELES 1979 p 75 51

Etimologicamente a palavra mimhsij eacute formada pelo radical mimhiquest do verbo meacutedio mimemacromai que

significa imitar representar reproduzir por meio da imitaccedilatildeo Este verbo por ser meacutedio jaacute nos daacute outra

informaccedilatildeo eacute a de que esta accedilatildeo para que se realize necessita da participaccedilatildeo do envolvimento subjetivo de

66

seja eacute o produto de uma representaccedilatildeo Portanto a concepccedilatildeo aristoteacutelica da arte literaacuteria jaacute eacute

bem demonstrada neste iniacutecio em que estabelecendo a poeacutetica como mimhsij afasta dela

os criteacuterios de avaliaccedilatildeo eacutetica e moral visto que ela natildeo eacute a realidade e sim uma

representaccedilatildeo criativa baseada na necessidade do contexto e na verossimilhanccedila

A anaacutelise literaacuteria seguindo os ditames aristoteacutelicos deve centrar-se na estrutura do

texto e na sua coerecircncia interna e natildeo nos preceitos morais que ela veicula aos jovens como

doutrina Platatildeo baseado na funcionalidade social da poesia Aleacutem da anaacutelise natildeo dever

pautar-se nos valores transmitidos tambeacutem natildeo deve ser feita atraveacutes do aspecto meramente

formal por exemplo preso agrave meacutetrica Essa consideraccedilatildeo de Aristoacuteteles pode ser esclarecida

quando ele distingue a composiccedilatildeo de Empeacutedocles com a de Homero (1447b) tanto que

mesmo ambos utilizando-se da meacutetrica Homero seraacute identificado como poihthmacrj52 e aquele

como o fusioloiquestgoj53

No capiacutetulo II da Poeacutetica o autor explicita-nos que o objeto da imitaccedilatildeo tanto da

trageacutedia quanto da epopeacuteia satildeo os homens superiores (1448a) o que bem nos demonstra a

poeacutetica de Soacutefocles e Homero Tais personagens diferem dos da comeacutedia pois esta imita os

homens natildeo elevados O pressuposto levantado jaacute nos daacute um indiacutecio a respeito do sujeito

traacutegico que eacute pertencer necessariamente a essa dita classe dos superiores honrados e

gloriosos porque estes satildeo os objetos de imitaccedilatildeo da trageacutedia gecircnero em que o traacutegico

realiza-se

Este conhecimento tambeacutem nos ilumina sobre outro aspecto do traacutegico que eacute a

sua relaccedilatildeo com a epopeacuteia pois como observamos eles tecircm em comum o mesmo perfil

Assim as personagens da eacutepica e da arte traacutegica tatildeo diferentes em alguns pontos identificam-

se essencialmente por serem pertencentes a uma mesma classe de homens e mulheres

nobres a citar Agamecircmnon Aacutejax Eacutedipo Antiacutegona Medeacuteia Ifigecircnia enfim Os nomes

citados satildeo de personagens que compotildee a trageacutedia e a epopeacuteia e ainda mais nos casos de

Agamecircmnon e Aacutejax temos personagens de trajetoacuteria eacutepica como tambeacutem traacutegica eles

quem age jaacute que a voz meacutedia inclui o sujeito na accedilatildeo verbal Portanto o imitar parte de um interesse do sujeito

natildeo eacute uma accedilatildeo pragmaacutetica A palavra em estudo possui tambeacutem o sufixo sij Este indica a accedilatildeo e o efeito da

accedilatildeo logo mimhsij traduz-se como a accedilatildeoefeito do imitar do representar 52

Este vocaacutebulo refere-se ao criador da composiccedilatildeo literaacuteria jaacute que poihthmacrj eacute formado pelo radical poihdo

verbo poieiquestw criar mais o sufixo thmacrjindicador da pessoa que realiza a accedilatildeo Assim poihthmacrj representa a

pessoa que cria que compotildee logo o que podemos chamar de poeta artiacutefice 53

O termo referido fusioloiquestgoj eacute formado pela composiccedilatildeo de fusija natureza mais loiquestgoj

genericamente tido como razatildeo proveniente de lemacrgw o dizer atraveacutes da racionalidade da reflexatildeo intelectual

Aleacutem do mais o sufixo oj como diz-nos Romizi (2007) reflete a pessoa que age Logo fusioloiquestgoj vem a

significar aquele que estuda a nureza que se traduz como o fisioacutelogo

67

protagonizam cenas na Iliacuteada e na Odisseacuteia bem como em peccedilas de Eacutesquilo e de Soacutefocles

Ressaltamos poreacutem que na Odisseacuteia jaacute percebemos o caraacuteter traacutegico desses heroacuteis mesmo

estando presentes numa narrativa eacutepica

No capiacutetulo IV dissertando sobre a origem da poesia Aristoacuteteles informa-nos que

Homero foi o responsaacutevel por traccedilar as diretrizes para outros gecircneros literaacuterios Ou seja o

autor da Odisseacuteia natildeo soacute instaurou a literatura no mundo Ocidental como nos legou os

direcionamentos para as demais produccedilotildees literaacuterias vejamos

Ὥζπεξ δὲ θαὶ ηὰ ζπνπδαῖα κάιηζηα πνηεηὴο Ὅκεξνο [35] ἦλ (κόλνο γὰξ νὐρ

ὅηη εὖ ἀιιὰ θαὶ κηκήζεηο δξακαηηθὰο ἐπνίεζελ) νὕησο θαὶ ηὸ ηῆο

θσκσηδίαο ζρῆκα πξηνο ὑπέδεημελ νὐ ςόγνλ ἀιιὰ ηὸ γεινῖνλ

δξακαηνπνηήζαο ὁ γὰξ Μαξγίηεο ἀλάινγνλ ἔρεη ὥζπεξ Ἰιηὰο [1449a] θαὶ ἡ

δύζζεηα πξὸο ηὰο ηξαγσηδίαο νὕησ θαὶ νὗηνο πξὸο ηὰο θσκσηδίαο54

(Poeacutetica IV144b-1449a 34-39)

Assim como Homero era sobretudo poeta com relaccedilatildeo aos (gecircneros)

nobres pois sozinho criou bem representaccedilotildees de accedilotildees desse modo

tambeacutem primeiro mostrou a forma da comeacutedia natildeo o censurado mas a

poesia dramaacutetica que provoca o riso Na verdade o Margites tem sua

analogia pois assim como a Iliacuteada e a Odisseacuteia estatildeo relacionadas as

trageacutedias desse modo aquele (Margites) estaacute para as comeacutedias

Como pode ser visto a importacircncia de Homero daacute-se natildeo apenas pela produccedilatildeo

dos gecircneros que produziu como a epopeacuteia mas para os que natildeo chegou a compor como

comeacutedia e trageacutedia Isto porque a partir de suas obras legou-nos a dramaticidade e outros

elementos que constituem as linhas baacutesicas para a trageacutedia e comeacutedia Desse modo tendo

traccedilado as linhas da trageacutedia e da comeacutedia como Aristoacuteteles afirma-nos acreditamos tambeacutem

que Homero traccedilou as linhas do traacutegico legando-nos o que veio a ser elemento essencial da

trageacutedia

Apoacutes no capiacutetulo V comentar a respeito da comeacutedia sua estrutura e

caracteriacutestica distinguindo-a e comparando-a com a trageacutedia e a epopeacuteia Aristoacuteteles no

capiacutetulo VI propotildee uma definiccedilatildeo para a trageacutedia e descreve suas partes essenciais Logo ao

iniacutecio ele expotildee uma definiccedilatildeo esclarecedora e sinteacutetica sobre a trageacutedia

Ἔζηηλ νὖλ ηξαγσηδία κίκεζηο πξάμεσο ζπνπδαίαο [25] θαὶ ηειείαο κέγεζνο

ἐρνύζεο ἡδπζκέλση ιόγση ρσξὶο ἑθάζηση ηλ εἰδλ ἐλ ηνῖο κνξίνηο

54

Texto disponiacutevel em httpwwwhs-

augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante04Aristotelesari_poi1html agraves 1800hs em 16 de julho de

2010

68

δξώλησλ θαὶ νὐ δη᾽ ἀπαγγειίαο δη᾽ ἐιένπ θαὶ θόβνπ πεξαίλνπζα55

ηὴλ ηλ

ηνηνύησλ παζεκάησλ θάζαξζηλ56 (Poeacutetica VI 1449b 24-28)

Portanto a trageacutedia eacute representaccedilatildeo de uma accedilatildeo grave e acabada que possui

certa extensatildeo com uma linguagem ornada cada uma das partes aparece em

seccedilatildeo em que se age e natildeo atraveacutes de narraccedilatildeo levando a atingir por meio

da piedade e do temor a catarse de tais sofrimentos

Pela passagem acima selecionada depreendemos a partir de quatro caracteriacutesticas

baacutesicas o que Aristoacuteteles entende por trageacutedia Primeiro a trageacutedia representa uma accedilatildeo que

deve ser completa e ter certa extensatildeo segundo a linguagem dever ser ornada o que mais agrave

frente o proacuteprio autor explica como uma linguagem que possui ―rucedilqmoUumln kaiUuml acedilrmonimacran

kaiUuml memacrloj ou seja ―ritmo harmonia e melodia terceiro na trageacutedia natildeo deve haver

narraccedilatildeo isto porque os atores eacute quem agem sem a necessidade da intervenccedilatildeo de um

narrador para esclarecer o que ocorre pois a accedilatildeo transcorre aos nossos olhos quarto e muito

importante a trageacutedia mediante toda a estrutura citada deve suscitar ―esup1leou kaiUuml

fomacrbou57 (Ibidem) isto eacute ―compaixatildeo e medo

Desse modo a trageacutedia mediante as accedilotildees encenadas faz surgir o temor e a

piedade sentimentos contraacuterios mas que se completam pois um a esup1leoj aproxima os

espectadores propicia a identificaccedilatildeo para que possam apiedar-se do sujeitosituaccedilatildeo traacutegico

enquanto o outro o fomacrboj faz com que haja um certo afastamento do espectador em

relaccedilatildeo ao traacutegico posto em cena Assim nessa posiccedilatildeo intermediaacuteria envolta pelo sentimento

55

A utilizaccedilatildeo de perainousa uma forma de particiacutepio presente de perainw que siginifa atingir alcanccedilar

levar denota a simultaneidade da accedilatildeo verbal Por isso ele eacute construiacutedo a partir do tema do infectum que indica

a accedilatildeo inacabada (MURACHO 2007) No caso da citaccedilatildeo o uso de perainousa sugere-nos que

simultaneamente ao processo de narraccedilatildeo traacutegica somos levados a atingir a catarse 56

Texto disponiacutevel em httpwwwhs-

augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante04Aristotelesari_poi1html agraves 1805hs em 16 de julho de

2010 57

Fomacrboj eacute segundo Romizi (2007) a forma nominal do verbo femacrbomai indicando a fuga apavorada em

temor que tambeacutem se relaciona ao verbo fobemacrw que tem o sentido primeiro de fazer pavor aterrorizar fazer

fugir meter em fuga pelo temor Como vemos haacute uma semacircntica ligada ao aterrorizante do que potildee medo ao

ponto de fazer algoalgueacutem lanccedilar-se em fuga Por isso haacute algumas complicaccedilotildees na traduccedilatildeo que fazem deste

termo Uns optam por terror como Eudoro de Sousa (1992) e outros por temor como Jaime Bruna (1995) J

Hardy (1979) traduz-se como crainte ou seja receio num campo semacircntico mais proacuteximo de temor do que

terror Com base nessas discussotildees Lessing e John citados por Sandra Luna (2005) preferem traduzir Fomacrboj

apenas como temor jaacute que terror indicaria um sentimento mais desmedido Diante dessas controveacutersias e da

referecircncia etimoloacutegica consideramos a traduccedilatildeo por temor mais adequada jaacute que ela em si traz ainda o sentido

daquilo que de tatildeo apavorante faria fugir todavia natildeo o faz pelo sentimento de esup1leoj da compaixatildeo piedade

que eacute suscitado junto com ele estabelecendo assim um certo equiliacutebrio Se traduziacutessemos Fomacrboj por terror

acabariacuteamos por indicar um sentimento desmedido que de tatildeo aterrorizante paralisa proacuteximo ao mostruoso

bem contraacuterio ao sentido etimoloacutegico que vimos de fobemacrw Por tudo isso a traduccedilatildeo por terror natildeo eacute

apropriada para as trageacutedias gregas

69

de piedade e de temor a trageacutedia que promove o surgimento dessas emoccedilotildees ―perainousa

thUumln twordfn toioutwn paqhmatwn kaqarsinrdquo (Poeacutetica 1449b) isto eacute ―levando a atingir a

catarse de tais sofrimentos

Sobre a kaqarsij muitas satildeo as discussotildees sobre o sentido real e o uso desse

termo verificado nas trageacutedias tanto que Alfredo Carvalho citado por Sandra Luna (2005)

sugere que se mantenha transcrito nas traduccedilotildees a palavra catarse natildeo delimitando seu

sentido como purgaccedilatildeo eou purificaccedilatildeo fato que ocorre em muitas ediccedilotildees O motivo para

tal indicaccedilatildeo estaacute justamente no fato de essa palavra remeter-nos a uma plurisignificaccedilatildeo

para qual natildeo temos em nossa liacutengua uma palavra que possa vir a cobrir sua semacircntica

A palavra catarse do grego kamacrqarsij tem seu radical kamacrqarproveniente do

verbo kaqaimacrrw que genericamente traduz-se como purificar a exemplo de Bailly (2000)

Romizi (2007) e Liddell amp Scottlsquos (1996) Por isso kaqaromacrj de mesmo radical significa

puro Formada pelo radical kamacrqar- mais o sufixo -sijque indica a accedilatildeo eou efeito da

accedilatildeo kamacrqarsij entatildeo etimologicamente significaria purificaccedilatildeo Todavia atentamos que

esta palavra pode ter uma semacircntica diversa a depender do contexto em que eacute utilizada seja

este meacutedico seja religioso

Assim na utilizaccedilatildeo meacutedica o uso deste verbo kamacrqarsij indica purgaccedilatildeo

limpeza esvaziamento do que for de maleacutefico para a sauacutede orgacircnica do inviacuteduo Na utilizaccedilatildeo

religiosa kamacrqarsij significa purificaccedilatildeo que simboliza a limpeza do espiacuterito impuro que

desagrada ao divino Segundo Jean Chevalier e Alain Gheerbrant (2009) a purificaccedilatildeo eacute um

rito presente em todas as religiotildees

Na verdade mesmo diante dessas aparentes distacircncias entre os termos

acreditamos que purgaccedilatildeo e purificaccedilatildeo encontram-se num mesmo campo semacircntico apesar

de utilizadas em contextos diferentes pois ambas indicam a eliminaccedilatildeo de impurezas e

malefiacutecios sejam eles fiacutesicos (purgaccedilatildeo) ou espirituais (purificaccedilatildeo) De todo o modo para

que possamos explicitar essa duplicidade semacircntica presente no termo em questatildeo

utilizaremos ao longo do nosso trabalho como indica Carvalho o vocaacutebulo catarse Assim

natildeo pomos fim a essa vaacutelida discussatildeo linguiacutestica e literaacuteria aleacutem de sua duplicidade

semacircntica

Entendida a explanaccedilatildeo sobre a carga semacircntica presente em

kamacrqarsijrelacionaremos esse conceito e sua importacircncia inseridos no entendimento da

trageacutedia e do traacutegico Para Lesky (1995) a catarse pode ser um instrumento para

70

entendermos melhor o traacutegico e seu efeito jaacute que seria o resultado da accedilatildeo traacutegica Se para

Aristoacuteteles a trageacutedia propicia o despertar de sentimentos como o temor e a piedade e aleacutem

disso vem a operar a catarse dessas emoccedilotildees que ela mesma fez surgir entendemos que isso

natildeo ocorre apenas pela linguagem condimentada pelo ritmo ou melodia Entatildeo o componente

da trageacutedia essencial para inspirar esses sentimentos eacute justamente o traacutegico

Toda essa explanaccedilatildeo sobre a kamacrqarsij nos eacute importante por acreditarmos que

o Canto XI da Odisseacuteia passa por um processo kartaacutetico Ao ver os grandes heroacuteis em

infortuacutenio Odisseu apieda-se perante o sofrer de seus semelhantes ao mesmo tempo em que

tambeacutem sente temor de que pudesse vir a ter um destino desventuroso o que natildeo seria difiacutecil

por haacute tanto vir enfrentando sofrimentos diversos na busca de retornar ao lar Tendo passado

pelo processo de kamacrqarsij Odisseu purificado livre das enfermidades espirituais do

excesso e da desmedida pode finalmente alcanccedilar seu objetivo buscado jaacute por longos anos

chegar a Iacutetaca

Aliado aos demais elementos da trageacutedia o traacutegico eacute o responsaacutevel para que se

suscitem as emoccedilotildees de piedade e temor as quais segundo Aristoacuteteles satildeo fruto das accedilotildees

representadas na peccedila e natildeo narraccedilotildees Pois mais do que as outras partes da trageacutedia como

ritmo melodia e linguagem condimentada eacute o traacutegico que essencialmente tem a capacidade

de provocar e inspirar a esup1leojpiedade e o fomacrbojo temor

Deste modo uma representaccedilatildeo traacutegica como a de Agamecircmnon que apoacutes dez

anos volta agrave sua terra glorificado pela vitoacuteria mas que logo eacute pego por uma armadilha da

esposa e de seu amante matando-o indignamente faz surgir dois sentimentos

esup1leojpiedade e o fomacrbojo temor O primeiro porque diante de um sofrer que parece

indigno injusto imerecido acaba-se por sentir compaixatildeo Lembremos de que Agamecircmnon

um homem de grandes feitos aAtildenac asup1ndrwIacuten58 o senhor dos heroacuteis retorna trazendo a gloacuteria

para o lar e como recepccedilatildeo encontra a morte preparada pela esposa numa banheira Tudo

isso nos inspira a esup1lemacroj Ao mesmo tempo toda essa situaccedilatildeo traacutegica se veio atingir um

grande rei como Agamecircmnon por este ter cometido uma accedilatildeo errocircnea poderia vir atingir

tambeacutem os demais menos ilustres Logo desponta-se entatildeo o receio de que o traacutegico possa

tambeacutem nos atingir E essa circunstacircncia inspira o fomacrboj Por isso o coro diz em

Agamecircmnon

58

Este eacute um epiacuteteto bastante utilizado para Agamecircmnon na Iliacuteada e que o distingue dos demais indicando que

ele eacute o que comanda os demais heroacuteis e reis como Aquiles Aacutejax Odisseu enfim

71

ἰὼ ἰὼ βαζηιεῦ βαζηιεῦ

πο ζε δαθξύζσ

θξελὸο ἐθ θηιίαο ηί πνη᾽ εἴπσ

θεῖζαη δ᾽ ἀξάρλεο ἐλ ὑθάζκαηη ηῶδ᾽

ἀζεβεῖ ζαλάηῳ βίνλ ἐθπλέσλ

ὤκνη κνη θνίηαλ ηάλδ᾽ ἀλειεύζεξνλ

δνιίῳ κόξῳ δακεὶο

ἐθ ρεξὸο ἀκθηηόκῳ βειέκλῳ

(Agamecircmnon v 1513 -1520)

Ioacute ioacute Rei rei

Como chorar-te-ei

O que falar a partir do coraccedilatildeo amigo

Eacutes posto nessa teia de aranha expirando

a vida por uma impiedosa morte

Oacutemoi oacutemoi Neste indigno repouso

Tendo sido dominado sob trapaceira sorte

Pela matildeo com arma cortante de ambos os lados

A trageacutedia por meio do traacutegico tendo feito surgir os sentimentos de temor e

piedade realiza a catarse desses sentimentos assim os sentimentos que ela mesma inspirou

formam um processo cartaacutetico Processo possiacutevel pela existecircncia do traacutegico na composiccedilatildeo

estrutural da trageacutedia pois como vimos o traacutegico eacute o elemento responsaacutevel por inspirar o

temor e a piedade Desta maneira proporcionando meios de ser efetuado o que eacute

provavelmente o maior objetivo da trageacutedia a kaqarsij

Apesar de Aristoacuteteles natildeo nos definir exatamente o que eacute o traacutegico podemos

percorrer suas ponderaccedilotildees na Poeacutetica sobre os elementos da trageacutedia Com isso se natildeo

chegamos ao traacutegico aristoteacutelico pelo menos nos aproximamos de sua significaccedilatildeo Assim a

partir do raciociacutenio de que o traacutegico tem a capacidade de fazer surgir os sentimentos de temor

e piedade e depois realizar a catarse deles podemos chegar a mais uma conclusatildeo sobre o

traacutegico Porque se o inspirar do temor e da piedade como nos diz Aristoacuteteles ocorre atraveacutes

da accedilatildeo dos atores e natildeo da narraccedilatildeo chegamos a mais uma caracteriacutestica sobre o traacutegico ele

decorre da accedilatildeo dos personagens

E essa accedilatildeo traacutegica segundo Aristoacuteteles eacute o elemento mais importante da trageacutedia

grega porque nela encontramos a origem para a fortuna humana seja ela boa ou maacute (1450a)

e eacute tambeacutem atraveacutes da accedilatildeo que o caraacuteter se revela jaacute que a qualidade dos personagens estaacute

exposta em suas accedilotildees Desta maneira elencando o mito o caraacuteter a elocuccedilatildeo o pensamento

o espetaacuteculo e a melopeacuteia como as seis partes componentes da trageacutedia ele afirma

72

Μέγηζηνλ δὲ ηνύησλ ἐζηὶλ ἡ ηλ πξαγκάησλ ζύζηαζηο ἡ γὰξ ηξαγσηδία

κίκεζίο ἐζηηλ νὐθ ἀλζξώπσλ ἀιιὰ πξάμεσλ θαὶ βίνπ θαὶ εὐδαηκνλία θαὶ

θαθνδαηκνλία ἐλ πξάμεη ἐζηίλ θαὶ ηὸ ηέινο πξᾶμίο ηηο ἐζηίλ νὐ πνηόηεο59

(Poeacutetica VI 1450a 15-19)

O mais importante (elemento) eacute a composiccedilatildeo dos fatos pois a trageacutedia eacute

representaccedilatildeo natildeo de seres humanos mas de accedilotildees e da vida Tambeacutem a

fortuna e o infortuacutenio estatildeo na accedilatildeo e a finalidade eacute alguma accedilatildeo natildeo uma

qualidade

Apoacutes ter identificado a accedilatildeo como a parte mais importante da trageacutedia Aristoacuteteles diz

que sem accedilatildeo natildeo haacute trageacutedia Tal definiccedilatildeo como vemos faz parte de um argumento bem

loacutegico pois se antes ele havia dito que a accedilatildeo eacute o elemento mais importante da trageacutedia logo

supomos que sem ela natildeo haacute trageacutedia e eacute isso que ele nos confirma ―brvbarbrvbarEti aAtildeneu meUumln

pracewj ousup1k aAtilden genoito tragdia aAtildeneu deUuml hsup1qwordfn ge noitrsquo aAtilden60 (Ibidem 23-25)

ou seja ―Ainda assim a trageacutedia natildeo poderia vir a ser sem accedilatildeo mas sim sem os caracteres

Mesmo porque a accedilatildeo ―sup1ArxhUuml meUumln ouaringn kaiUuml oiaringon yuxhUuml ocedil muordfqoj thordfj tragdiaj61

(Poeacutetica VI 1450a 39-40) ― Portanto o mito eacute como que o princiacutepio e a alma da trageacutedia

Seguindo tambeacutem o raciociacutenio loacutegico de Aristoacuteteles poderiacuteamos dizer o traacutegico eacute

proveniente da accedilatildeo dos personagens sem accedilatildeo natildeo haacute trageacutedia logo concluiacutemos que sem

traacutegico natildeo haacute trageacutedia Chegamos entatildeo temos mais um pressuposto para legitimar nossa

tese do traacutegico como essecircncia da trageacutedia grega seja esse refletido no destino ou apenas em

uma situaccedilatildeo de vida

Esta accedilatildeo traacutegica deve tambeacutem estar ligada a dois meios que realizam a comoccedilatildeo

dos acircnimos satildeo eles asup1nagnwiquestrisij e peripemacrteia ou seja reconhecimento e peripeacutecia

Anteriormente jaacute explicamos a etimologia e o significado de cada um agora nos eacute importante

compreender a importacircncia deles na estrutura da trageacutedia percebamos

Πξὸο δὲ ηνύηνηο ηὰ κέγηζηα νἷο ςπραγσγεῖ ἡ ηξαγσηδία ηνῦ κύζνπ κέξε

ἐζηίλ αἵ ηε πεξηπέηεηαη θαὶ ἀλαγλσξίζεηο62 (Poeacutetica VI 1450a 33-35)

59

Texto disponiacutevel em httpwwwhs-

augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante04Aristotelesari_poi2html agraves 1905hs de 16 de julho de

2010 60

Texto disponiacutevel em httpwwwhs-

augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante04Aristotelesari_poi2html agraves 1910hs de 16 de julho de

2010 61

Ibidem 62

Texto disponiacutevel em httpwwwhs-

augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante04Aristotelesari_poi2html agraves 1910hs de 16 de julho de

2010

73

Para junto disso a trageacutedia extasia-os com seus importantes elementos que

satildeo parte do mito as peripeacutecias e os reconhecimentos

Entatildeo se asup1nagnwiquestrisij e peripemacrteia satildeo meios fundamentais atraveacutes dos

quais a trageacutedia alcanccedila a comoccedilatildeo do espiacuterito portanto satildeo tambeacutem fundamentais para

intensificaccedilatildeo do traacutegico jaacute que este corresponde ao elemento miacutetico na estrutura da trageacutedia

Ressaltamos que esses dois elementos para que o traacutegico seja desenvolvido devem estar

aliado a outros elementos pois sozinho natildeo realizam o traacutegico Ateacute porque como sabemos

asup1nagnwiquestrisij e peripemacrteia satildeo elementos comuns tambeacutem da comeacutedia Mas como partes

do mito reconhecimento e peripeacutecia aleacutem de fazerem a estrutura literaacuteria ser como define

Aristoacuteteles mais complexa tambeacutem corroboram para a intensificaccedilatildeo do efeito traacutegico Por

isso classificando os tipos de reconhecimento no capiacutetulo XVI da Poeacutetica o filoacutesofo

informa-nos que apesar de existirem vaacuterias realizaccedilotildees do reconhecimento a melhor delas eacute a

que deriva do conflito (1455a v 17-22) da accedilatildeo Como a de Ifigecircnia em Aacuteulis (2002) e a de

Eacutedipo Rei (2001) e natildeo as que se realizam por meios artificiais a exemplo de sinais da

memoacuteria e do silogismo

Isto porque quando sofre uma peripeacutecia o sujeito traacutegico vecirc-se num conflito

Basta lembrarmos de Eacutedipo Rei em que o rei procura o assassino de Laio quando ele mesmo

vem a ser a proacutepria causa de tantos malefiacutecios Do mesmo modo com o reconhecimento pois

quando o indiviacuteduo vecirc-se tomado pela indesejada circunstacircncia ou destino traacutegicos ele se

reconhece como sujeito traacutegico proacuteximo de sua cataacutetrofe Para tanto eacute soacute nos lembrarmos

por exemplo de Eacutedipo Aacutejax Ifigecircnia e Hipoacutelito quando se reconhecem como figuras

traacutegicas O primeiro ao perceber que era ele mesmo a causa do mal que procurava o

segundo ao entender que havia matado animais e natildeo os guerreiros gregos a terceira ao ver

que sua vida seraacute aniquilada pelo proacuteprio pai e o quarto enxergando-se como vitimado por

um crime que natildeo cometera Observemos

ἰνὺ ἰνύ ηὰ πάλη᾽ ἂλ ἐμήθνη ζαθῆ

ὦ θο ηειεπηαῖόλ ζε πξνζβιέςαηκη λῦλ

ὅζηηο πέθαζκαη θύο η᾽ ἀθ᾽ ὧλ νὐ ρξῆλ63

(Eacutedipo Rei 1182-1184)

Ioacuteu ioacuteu Atingiste-me e todas as coisas estatildeo claras

Oacute luz nesse instante eu poderia olhar-te o fim

eu fiz aparecer o filho de que natildeo havia necessidade

63

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101913Acard3D1196 agraves

1940hs de 17 de julho de 2010

74

ἰὼ

ζθόηνο ἐκὸλ θάνο

ἔξεβνο ὦ θαελλόηαηνλ ὡο ἐκνί

ἕιεζζ᾽ ἕιεζζέ κ᾽ νἰθήηνξα

ἕιεζζέ κ᾽ νὔηε γὰξ ζελ γέλνο νὔζ᾽ ἁκεξίσλ

ἔη᾽ ἄμηνο βιέπεηλ ηηλ᾽ εἰο ὄλαζηλ ἀλζξώπσλ

ἀιιά κ᾽ ἁ Δηὸο ἀιθίκα ζεὸο ὀιέζξη᾽ αἰθίδεη

64

(Aacutejax 394-403)

Ioacute Treva toda minha luz

Oacute Eacuterebo como eacutes brilhantiacutessimo para mim

Leva-me leva-me para tua morada

leva-me Pois nem mereccedilo olhar nem por um dia

para a raccedila dos deuses nem igualmente para a dos homens

Todavia a filha de Zeus

o poderoso deus

atormenta-me para destruiccedilatildeo

νἲ γώ κᾶηεξ ηαὐηὸλ ηόδε γὰξ

κέινο εἰο ἄκθσ πέπησθε ηύρεο

θνὐθέηη κνη θο

νὐδ᾽ ἀειίνπ ηόδε θέγγνο

ἰὼ ἰώ65

(Ifigecircnia em Aacuteulis 1279-1283)

Ai de mim matildee Pois este mesmo

canto do acaso caiu para ambas

Para mim natildeo (haveraacute) mais luz

e nem a claridade do sol

Ioacute ioacute

αἰαῖ αἰαῖ

δύζηελνο ἐγώ παηξὸο ὡο ἀδίθνπ

ρξεζκνῖο ἀδίθνηο δηειπκάλζελ

ἀπόισια ηάιαο νἴκνη κνη

()

αἰαῖ αἰαῖ

θαὶ λῦλ ὀδύλα κ᾽ ὀδύλα βαίλεη

κέζεηέ κε ηάιαλεο

θαί κνη ζάλαηνο Παηὰλ ἔιζνη

πξνζαπόιιπη᾽ ἀπόιιπηε66

(Hipoacutelito 1348-501370-74)

64

Tento disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101833Acard3D394 `s 2000hs

de 17 de julho de 2010 65

Texto disponiacutevel em httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseustext1999010107 agraves 2020hs de

17 de julho de 2010 66

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101053Acard3D1370 agraves

2030hs de 17 de juho de 2010

75

Aiacuteaiacute aiacuteaiacute

Eu sou miseraacutevel por causa de um pai injusto

de profecias injustas desfeitas vergonhosamente

fui destruiacutedo estou desgraccedilado ai de mim

Aiacuteaiacute aiacuteaiacute

E agora vai causa-me dor causa-me dor

deixais-me ir desgraccedilado

e que o Curador da morte venha para mim

destroacutei-me destroacutei-me

As passagens citadas ilustram bem que a tragicidade da peccedila eacute aumentada quando

os personagens passam do estado da ignoracircncia para o conhecimento e consciecircncia dos fatos

Para entendermos mais claramente eacute soacute imaginarmos um homem que mata o pai e casa com a

matildee mas sem saber ou seja sem a asup1nagnwiquestrisij Isso nos causaria piedade eou temor

Acreditamos que natildeo e o proacuteprio Eacutedipo retifica-nos pois antes de saber que ele era o

responsaacutevel pelo mal que assolava Tebas ele natildeo se lamentava apenas buscava o culpado

enfim ele natildeo se reconhecia como um personagem traacutegico Do mesmo modo a falta de

reconhecimento com Aacutejax Ifigecircnia Hipoacutelito pode diminuir ou ateacute mesmo vir a extinguir

toda a tragicidade

Como percebemos peripemacrteia e asup1nagnwiquestrisij surgidas da estrutura interna

do mito satildeo importantes natildeo apenas para a trageacutedia e seus aspectos formais mas para o

desdobramento intensificado do traacutegico Aristoacuteteles diz-nos ainda que ocorrendo juntas a

peripeacutecia e o reconhecimento compotildeem uma estrutura complexa Podemos depreender pela

explanaccedilatildeo e exemplificaccedilatildeo que fizemos acima que juntas a peripeacutecia e o reconhecimento

reforccedilam a dramaticidade da peccedila Tal ideacuteia talvez nos permita afirmar que uma trageacutedia

aristotelicamente complexa possui mais teor traacutegico do que as de estrutura simples sem

reconhecimento e peripeacutecia

Para Aristoacuteteles a estrutura do mito traacutegico bem realizado deve ser uniforme e

como um todo deve ter iniacutecio meio e fim Por isso ele explica que um ser muito grande ou

muito pequeno natildeo se aproximaria do que eacute belo (1451a) Esse comentaacuterio ajuda-nos a

compreender entre outros fatores o porquecirc da unidade de accedilatildeo ser tatildeo relevante para a

teorizaccedilatildeo aristoteacutelica devendo estar presente tanto numa trageacutedia quanto numa epopeacuteia

Tanto que Aristoacuteteles aponta as epopeacuteias homeacutericas como exemplos dessa unidade de accedilatildeo jaacute

que apesar de extensas os episoacutedios convergem para accedilatildeo central compondo o todo Aleacutem

do mais tambeacutem podemos perceber o porquecirc de a extensatildeo da trageacutedia ser baseada no tempo

76

suficiente em que se possa transcorrer a mudanccedila da fortuna do personagem Vejamos o que

ele diz

ὡο δὲ ἁπιο δηνξίζαληαο εἰπεῖλ ἐλ ὅζση κεγέζεη θαηὰ ηὸ εἰθὸο ἢ ηὸ

ἀλαγθαῖνλ ἐθεμῆο γηγλνκέλσλ ζπκβαίλεη εἰο εὐηπρίαλ ἐθ δπζηπρίαο ἢ ἐμ

εὐηπρίαο εἰο δπζηπρίαλ κεηαβάιιεηλ ἱθαλὸο [15] ὅξνο ἐζηὶλ ηνῦ κεγέζνπο67

(Poeacutetica VII 1451a 11-15)

Em certa extensatildeo simplesmente devem realizar o narrar um apoacutes outro

segundo a verossimilhanccedila e a necessidade e que ocorra com o traspassar

para a fortuna a partir do infortuacutenio e da fortuna para o infortuacutenio este eacute o

limite conveniente de sua extensatildeo

A unidade de accedilatildeo segundo os preceitos aristoteacutelicos eacute fundamental para a

estruturaccedilatildeo de uma faacutebula Assim mesmo numa epopeacuteia os episoacutedios devem convergir para

a accedilatildeo central tornando-a una e coesa E essa limitaccedilatildeo temporal da trageacutedia que deve

desenvolver-se numa temporalidade suficiente para que possamos ter a mudanccedila de fortuna

tambeacutem nos colabora para outra compreensatildeo do traacutegico Pois este para ser melhor realizado

tambeacutem deve ter unidade pois faltaria totalidade a um mito que depois de ocorrer a accedilatildeo

traacutegica passasse a desenvolver outros temas dispersando e diluindo o traacutegico Isso nos faz

compreender o porquecirc das criacuteticas agrave peccedila de Soacutefocles Aacutejax Nesta peccedila apoacutes concretizada a

mudanccedila da fortuna do heroacutei com o seu suiciacutedio vemos o desenvolver da defesa de seu corpo

por Teucro seu meio-irmatildeo Muitos criacuteticos entendem que essa continuidade da peccedila

prejudicaria sua qualidade Natildeo entraremos nessa discussatildeo contudo podemos compreender

que a accedilatildeo traacutegica deve ser condensada deve ter unidade a fim de que natildeo se dilua por

completo nem se disperse Assim sendo conforme as indicaccedilotildees de Aristoacuteteles o tempo da

accedilatildeo traacutegica deve limitar-se agrave mudanccedila de fortuna

No capiacutetulo XIII Aristoacuteteles expotildee-nos mais diretamente a respeito do traacutegico

comentando o que viria a ser uma situaccedilatildeo traacutegica por excelecircncia para que possa inspirar o

temor e a piedade e depois a catarse desses sentimentos Para termos essa ―plausiacutevel

situaccedilatildeo traacutegica ela natildeo deve ter homens muito bons passando para o infortuacutenio - o que

causaria excesso de piedade - nem muito maus o que levaria a um distanciamento Mesmo

porque essas circuntacircncias natildeo fazem surgir o temor fomacrboj nem a piedade esup1lemacroj estes

sentimentos que devem vir da accedilatildeo dos personagens e que satildeo inspirados em determinadas

situaccedilotildees

67

Texto disponiacutevel em httpwwwhs-

augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante04Aristotelesari_poi2html agraves 2025hs de 17 de julho de

2010

77

ἔιενο κὲλ πεξὶ ηὸλ ἀλάμηνλ θόβνο δὲ πεξὶ ηὸλ ὅκνηνλ68

(Poeacutetica XIII 1453a 5-6)

() a piedade sobre o imerecido o temor sobre o semelhante

Diante disso resta ao heroacutei uma situaccedilatildeo intermediaacuteria (1453a) pois nem tatildeo

virtuoso nem tatildeo maldoso Sua tragicidade viraacute natildeo pelo caraacuteter mas por uma accedilatildeo errocircnea

Este erro a aumlmartian seria o responsaacutevel por fazer algueacutem passar da fortuna ao infortuacutenio

ou vice-versa Muitas discussotildees haacute sobre essa hamartia aristoteacutelica e qual seria seu

significado essencial mas por hora vejamos o que nos diz o filoacutesofo referindo-se ao heroacutei

que natildeo cai no erro por falha de caraacuteter mas por causa de

ἁμαρτίαν τινά ηλ ἐλ κεγάιῃ δόμῃ ὄλησλ θαὶ εὐηπρίᾳ νἷνλ Οἰδίπνπο θαὶ

Θπέζηεο θαὶ νἱ ἐθ ηλ ηνηνύησλ γελλ ἐπηθαλεῖο ἄλδξεο () ἐμ εὐηπρίαο εἰο

δπζηπρίαλ κὴ δηὰ κνρζεξίαλ ἀιιὰ δη᾽ ἁμαρτίαν μεγάλην ἢ νἵνπ εἴξεηαη ἢ

βειηίνλνο κᾶιινλ ἢ ρείξνλνο69 (Poeacutetica XIII 1453 a 10-1215-17)

() algum erro daqueles de grande gloacuteria e boa fortuna como o de Eacutedipo e

Tiestes tambeacutem por homens ilustres de famiacutelias tais () a partir da fortuna

para o infortuacutenio natildeo por maldade mas atraveacutes de um grande erro ou como

o que foi dito ou de um (erro) melhor ou ainda pior

A primeira referecircncia de hamartia presente no texto de Aristoacuteteles diz ἁμαρηίαν

ηινά Liddell e Sccottlsquos (1996) informam-nos que aumlmartia significa filure error ou seja

falha erro Este substantivo eacute originado pelo verbo aumlmartanw definido como to miss miss

the mark quer dizer falharerrar eou errar o alvo Seu qualificador tina sendo pronome

indefinido expressa a indefiniccedilatildeo por meio de ―um algum Podemos entatildeo chegar agrave

traduccedilatildeo para aumlmartian tina como ―errar um alvo Este sentido indefinido dificulta-nos

para sabermos a que erro Aristoacuteteles se refere contudo essa indefiniccedilatildeo daacute-nos um indiacutecio

importante esse erro pode ser de origens diversas

Em aumlmartian megalhn poderemos entender melhor o que seria o erro traacutegico

indicado por Aristoacuteteles O termo megalhn equivale a megaj que significa aquilo que eacute

largo grande importante Logo aumlmartian megalhn pode ser traduzido por ―grande erro

68

Ibidem 69

Os destaques satildeo nossos Texto disponiacutevel em httpwwwhs-

augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante04Aristotelesari_poi2html agraves 2035hs de 17 de julho de

2010

78

Percebemos entatildeo que este erro fundamental para o decorrer da accedilatildeo traacutegica eacute grandioso

grave muito importante para todo o contexto em que se estabelece

Baseada nas discussotildees acima sobre a hamartia aristoteacutelica podemos chegar agrave

conclusatildeo de que a hamartia natildeo estaacute relacionada como poder-se-ia pensar a um erro moral

originado em decorrecircncia de uma falha de caraacuteter Na verdade apesar de ser um grande eou

grave erro ele eacute sem intencionalidade Todavia esta falta de intenccedilatildeo natildeo o exime do traacutegico

Este natildeo deve ser confundido como um castigo e sim como uma mudanccedila de fortuna que

geralmente ocasiona para o agente um infeliz resultado

Esse grandioso erro tambeacutem eacute indefinido por isso o aumlmartian tina que nos

sugere uma falha natildeo especiacutefica impedindo-nos de definir o que seria um erro traacutegico ou natildeo

mas que eacute um aumlmartian megalhn um grande erro Todavia ressaltamos que haacute falhas

traacutegicas por excelecircncia como por exemplo as cometidas contra os deuses aleacutem das

realizadas como diz-nos o proacuteprio Aristoacuteteles (19791995) no capiacutetulo XIV contra pessoas

da famiacutelia

Ὅταν δ᾽ ἐν ταῖς φιλίαις ἐγγένηται τὰ πάθη οἷον ἢ ἀδελφὸς

ἀδελφὸν ἢ υἱὸς πατέρα ἢ μήτηρ υἱὸν ἢ υἱὸς μητέρα ἀποκτείνηι ἢ

μέλληι ἤ τι ἄλλο τοιοῦτον δρᾶι ταῦτα ζητητέον70 (Ibidem XIV

1453b 20-23)

Quando estas cataacutestrofes realizam-se em amizades ou com um irmatildeo que

mata irmatildeo ou um filho que mata o pai ou a matildee que mata o filho ou o

filho que mata a matildee ou quando venha ocorrer alguma outra coisa desta

natureza estas coisas tecircm que ser buscadas

O fato de existirem essas situaccedilotildees traacutegicas por natureza faz com que entendamos

o impacto traacutegico das trageacutedias Medeacuteia Oresteacuteia e Eacutedipo Rei ateacute hoje pelos assassinatos

entre familiares Por isso temos a existecircncia de famiacutelias em que se delineiam o traacutegico

mesmo com o passar das geraccedilotildees a exemplo da dos Labdaacutecidas e dos Atridas E eacute esse

aspecto do conflito familiar somado aos finais infortunados que segundo Aristoacuteteles acaba

por fazer Euriacutepedes ser o mais tragikomacrj dos poetas

Atraveacutes das consideraccedilotildees acima realizadas tentamos compreender definiccedilotildees e

aspectos relativos ao traacutegico a partir da Poeacutetica Esta obra legou-nos as primeiras reflexotildees

teoacutericas sobre a literatura mais especificamente sobre a trageacutedia e a epopeacuteia Tentamos

70

Texto disponiacutevel em httpwwwhs-

augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante04Aristotelesari_poi2html agraves 2035hs de 17 de julho de

2010

79

depreender atraveacutes dela a estrutura e significaccedilatildeo do traacutegico para as trageacutedias gregas como

tambeacutem para as epopeacuteias homeacutericas jaacute que nelas podemos encontrar consideraacutevel

manifestaccedilatildeo de tragicidade presente por exemplo no Canto XI da Odisseacuteia

24 A busca do traacutegico outras reflexotildees teoacutericas

Na tentativa de compreender melhor a categoria do traacutegico claacutessico

continuaremos em busca de seu entendimento mas desta vez percorrendo os conceitos e as

discussotildees realizadas por outros autores Este processo assim como os demais que

desenvolvemos ateacute entatildeo tem o propoacutesico de subsidiar-nos para a compreensatildeo do nosso

objetivo geral que eacute o de analisar a tragicidade no Canto XI da Odisseacuteia Em auxiacutelio agrave nossa

proposta contribuem os seguintes autores Jean-Pierre Vernant Grimal Jacqueline de

Romilly Anatol Rosenfeld Junito Brandatildeo Albin Lesky e Sandra Luna

Em Mito e trageacutedia na Greacutecia Antiga (2008) Jean-Pierre Vernant discorre que na

trageacutedia o homem (heroacutei) eacute posto para realizar uma escolha definitiva diante de um mundo

ambiacuteguo e instaacutevel Para o autor isso seria a ―mateacuteria-prima da trageacutedia o primeiro aspecto

do conflito Diante disso a trageacutedia possui tambeacutem algumas marcas que seriam tensatildeo entre

mito e pensamento citadino conflitos humanos de valores do mundo e do universo divino

caracteriacutestica ambiacutegua e equiacutevoco linguumliacutestico Estas marcas da trageacutedia satildeo fundamentais

tambeacutem para a realizaccedilatildeo do traacutegico principalmente no que diz respeito agrave tensatildeo e ao conflito

do homem para com os demais O homem como ―mateacuteria-prima do traacutegico vecirc-se desafiado

por decisotildees e suscetiacutevel perante sua fragilidade pois ―neste jogo do qual natildeo eacute senhor o

homem sempre corre o risco de cair na armadilha de suas proacuteprias decisotildees (VERNANT

2008 p 21)

Estas decisotildees afligem muitas vezes a jornada do homem que acaba por se tornar

uma sujeito traacutegico E assim aquele homem na eacutepica que exalta seu vigor e alcanccedila a gloacuteria

depara-se com sua fragilidade e finitude diante da vida e de suas circunstacircncias Por isso

Vernant (2008) considera que no traacutegico a accedilatildeo e o agir humano dividem-se em dois poacutelos o

primeiro eacute o de deliberar pesar eou prevecirc a melhor opccedilatildeo de escolha e o segundo eacute

considerar a presenccedila do incompreensiacutevel do desconhecido e de forccedilas sobrenaturais que

possam vir preparar seu sucesso ou sua derrota Assim o traacutegico estaacute indissoluvelmente

aliado a uma accedilatildeo que pressupotildee uma escolha

80

O autor afirma que a culpa traacutegica pode ser realizada de duas formas uma eacute

atraveacutes da hamartia que ele define como uma concepccedilatildeo religiosa do erro uma ―doenccedila do

espiacuterito em que o sujeito coagido por elementos superiores chega a cometer o delito a

outra eacute por meio do adikon71

em que o sujeito sem nenhuma coaccedilatildeo decide cometer o erro

Assim entendemos que o indiviacuteduo poder torna-se traacutegico ou por um erro sem

voluntariedade hamartia sob forccedilas superiores ou por deliberaccedilatildeo proacutepria por isso eacute

chamado de adikon injusto

Um aspecto bastante discutido sobre o traacutegico refere-se agrave existecircncia ou natildeo da

vontade e da responsabilidade humana Natildeo pretendemos aprofundar-nos nessa questatildeo

contudo ela nos serve para entender as circuntacircncias que levam ao traacutegico Assim Vernant

(2008) afirma que no Periacuteodo Arcaico da literatura grega natildeo haacute vocaacutebulo para designar a

vontade o querer direcionado ao homem mas sabemos que ela havia em relaccedilatildeo aos deuses

como se vecirc por exemplo na Iliacuteada (v5) No Periacuteodo Claacutessico mesmo ainda sem a existecircncia

dessa palavra para os homens jaacute comeccedilamos a ter o levantamento desses questionamentos

Mesmo porque o autor defende que para haver uma decisatildeo tem que existir alguma vontade

Desde que o indiviacuteduo se empenha numa decisatildeo que se decide

qualquer que seja o plano em que se situe sua resoluccedilatildeo ele se constitui a si

proacuteprio como agente isto eacute como sujeito responsaacutevel e autocircnomo que se

manifesta em atos e por atos que lhe satildeo imputaacuteveis (Ibidem 2008 p 26)

A necessidade (asup1namacrgkh) imposta pelos deuses eou pela ocasiatildeo impulsiona o

homem a tomar decisotildees Estas possuem de alguma maneira expressotildees de seus desejos

apesar de que muitas vezes soacute haacute uma escolha Por isso diz Vernant que se haacute uma vontade

ela natildeo eacute autocircnoma e sim ―amarrada pelo temor que o divino inspira se natildeo constragida por

potecircncias sagradas que assediam o homem no seu proacuteprio iacutentimo (VERNANT 2008 p 28)

Entatildeo concluimos que a partir da necessidade emana a accedilatildeo do homem pois segundo

Vernant ainda natildeo podemos falar em vontade na trageacutedia grega Na verdade ela ―marca uma

etapa e como que uma virada na histoacuteria dos avanccedilos do homem grego antigo na direccedilatildeo da

vontade (Ibidem p 42)

A partir de sua exposiccedilatildeo Vernant (2008) define o traacutegico como a interrogaccedilatildeo do

homem sobre seus atos chegando ao ponto de fazer daquele heroacutei eacutepico exemplar o

responsaacutevel por sua accedilatildeo errocircnea Tal accedilatildeo volta-se contra ele mesmo ocasionando o

71

Esta palavra em grego aatildedikoj eacute formada pelo a privativo mais o radical dik de dikhmacr justiccedila Logo

aatildedikoj significa injusto

81

contraacuterio do que ele pretendia Percebemos por isso que o traacutegico faz-nos interrogar sobre a

condiccedilatildeo humana e suas fronteiras estas que satildeo colocadas a cada um sejam aos grandes

heroacuteis como Aquiles ou aos deuses como vemos em Prometeu Cadeeiro (2009) Por

exemplo o Pelida no encontro com Odisseu no Hades mostra-se arrependido da escolha que

fez de morrer em campo de batalha Como se vecirc a decisatildeo de Aquiles voltou-se contra ele

mesmo Entretanto tal situaccedilatildeo analisaremos melhor no capiacutetulo a seguir

Pierre Grimal em O Teatro Antigo (2002) diz que a trageacutedia grega desenvolve-se

num periacuteodo histoacuterico de bastante relevacircncia jaacute que nesse momento foi realizada uma

elevada criaccedilatildeo filosofia Diante desse contexto as trageacutedias em forma de accedilatildeo de drama

representavam acontecimentos oriundos das lendas heroacuteicas tatildeo cantadas pelos autores

eacutepicos todavia Grimal faz-nos a seguinte ressalva se para noacutes os acontecimentos encenados

possuem caraacuteter lendaacuterio para os gregos havia um significado histoacuterico E mais ainda na

trageacutedia aquele heroacutei que para os gregos fazia parte da histoacuteria vecirc sua fragilidade diante de

um impasse porque

A trageacutedia mais do que esclarescer o significado metafiacutesico do mito

(como o faraacute Heacutercules no Etna de Secircneca) traz agrave luz do dia a infeliz

condiccedilatildeo dos mortais incapazes de compreenderem as consequumlecircncias de

suas accedilotildees quando cedem natildeo soacute ao irresistiacutevel poder do Amor como agraves

outras paixotildees que os deuses lhes enviam (GRIMAL 2002 p 45)

Se no Periacuteodo Arcaico as eacutepicas ilustram as grandes guerras e os magistrais

combates dos heroacuteis no Periacuteodo Claacutessico tanto poetas quanto filoacutesofos conforme indica

Grimal (2002) centralizam suas discussotildees no ser humano Este seraacute o protagonista do

traacutegico pois deparando-se com o conflito as armas e o vigor fiacutesico natildeo mais podem fazecirc-lo

vencedor como ocorria nas eacutepicas Ao contraacuterio toda a sua accedilatildeo reverte-se para si mesmo e

levando-o ao traacutegico Isso veremos bem no proacuteximo capiacutetulo atraveacutes do relato de

Agamecircmnon no Canto XI da Odisseia em que se percebe que toda a sua nobreza e heroiacutesmo

relatados na Iliacuteada natildeo o impediu de ter uma morte traacutegica e indigna

Em A trageacutedia Grega (2008) Jacqueline de Romilly considera que o mito se

introduz na trageacutedia proporcionando-lhe sentido Assim podemos concluir que o traacutegico alia-

se ao mito e natildeo agrave estrutura formal da trageacutedia e ainda mais que o traacutegico eacute que daacute sentido a

trageacutedia grega Vejamos como ela considera a importacircncia do traacutegico dentro do panorama da

trageacutedia claacutessica

82

No conjunto a trageacutedia grega adquire assim mais uma ressonacircncia

particular por ter conservado um contato constante com as realidades

colectivas da vida poliacutetica tal como adquire uma forccedila mais rude por ter

conservado o contacto com os mitos originais mas nem num caso nem no

outro se confunde com a mateacuteria que lhe eacute fornecida assim O seu

verdadeiro alcance vem da interpretaccedilatildeo humana que daacute dos males evocados

E soacute esta interpretaccedilatildeo define verdadeiramente o traacutegico (ROMILLY 2008

p 168)

Por isso eacute que o traacutegico aleacutem de natildeo se relacionar tambeacutem natildeo deve ser

confundido com o melodrama moderno Mas para que essa proximidade natildeo ocorra e que

crimes como os de Medeacuteia Clitemnestra e Eacutedipo por exemplo natildeo sejam melodramas deve

haver o que Romilly (2008) chama de ―luz traacutegica Esta fundamentada na asup1namacrgkh

(necessidade) ou seja nas ―causas que ultrapassem o caso individual e que os tornem

necessaacuterios em nome das circuntacircncias que se impotildee aos homens Tanto que essas situaccedilotildees

traacutegicas poreacutem necessaacuterias ―ao mesmo tempo em que inspiram piedade pelas viacutetimas

inspiram tambeacutem piedade por eles piedade pelo homem (Ibidem p 168-169) E a accedilatildeo

dessas forccedilas sobrehumanas que impulsionam o homem pela necessidade satildeo indicadas pelo

proacuteprio coro segundo Romilly (2008)

Este sentimento de piedade Odisseu sentiraacute ao deparar-se com seus distintos

companheiros no Hades e ouvir o lamuacuterio pelo final traacutegico que a vida lhes reservou Isto

ocorre ateacute no caso de Aacutejax que mesmo sem falar ignorando a presenccedila de Odisseu

demonstra seu rancor por aquele que julga culpado de seu mal No caso de Agamecircmnon

segundo Romilly (2008) eacute a accedilatildeo do daacuteimon daimacrmwn 72 enquanto para Aacutejax eacute a accedilatildeo do

destino Teriacuteamos em suma duas causalidades uma que eacute regida pela forccedila superior e outra

pela vontade humana e que segundo a autora ―jaacute presente em Homero esta dupla

causalidade existe para sempre na trageacutedia (Ibidem p 172) ateacute porque no mundo grego em

geral elas coexistiam sem haver contradiccedilotildees

A autora por mais que natildeo acredite haver vontade nas trageacutedias considera que haacute

algum comprometimento humano Pois certo eacute que tudo ocorre pela vontade divina mas

tambeacutem o homem toma para si a responsabilidade no momento em que adere a accedilatildeo Natildeo haacute

renuacutencia entatildeo o sujeito traacutegico compromete-se Isto faz Romilly (2008) afirmar que ―o

divino e o humano combinam-se sobrepotildee-se A trageacutedia implica necessariamente a accedilatildeo e

seu autor sempre tenta agir bem ou mal Mas esta accedilatildeo traz-lhe graves consequecircncias Por

72

O daimacrmwn representa o divino sua vontade a sorte dividida pelo deus por isso o radical dai de daimacromai que eacute dividir partilhar

83

isso Romilly defende que haacute sempre uma espeacutecia de inocecircncia esta funcionando como

sinocircnimo de heroiacutesmo Vejamos

Que sofram uma sorte querida pelos deuses que paguem pelos erros

dos antepassados ou que paguem por sua proacutepria imprudecircncia haacute sempre

neles uma parte de inocecircncia E mesmo quando nos satildeo apresentados como

culpados mesmo quando suas accedilotildees os arrastam satildeo-no porque o erro eacute o

lote do homem ou porque correspondem a situaccedilotildees que satildeo igualmente o

lote do homem (ROMILLY 2008 p 175)

Esse heroiacutesmo imanente e ao mesmo tempo indissociaacutevel do heroacutei traacutegico faz

com que seja conservada a sua grandeza tendo triunfo mesmo na queda Isto eacute o personagem

traacutegico mesmo vendo mudar a sua figura de heroacutei eacutepico para a de heroacutei traacutegico ainda

manteacutem certa expressatildeo de inocecircncia de heroiacutesmo que provoca a simpatia e justifica o surgir

da piedade Como poderemos ver no momento de nossa anaacutelise Odisseu sente piedade pelos

seus companheiros ao reencontraacute-los no Hades por constatar o destino lamuriado de cada um

E mesmo apoacutes ouvir os relatos traacutegicos dos guerreiros manteacutem ainda o sentimento de

respeito natildeo se esquecendo da distinccedilatildeo proacutepria que ele mesmo testemenhou um dia

Anatol Rosenfeld em A teoria dos Gecircneros (1985) observa que a definiccedilatildeo e

classificaccedilatildeo dos gecircneros eacute artificial pois ―natildeo existe pureza de gecircneros em sentido absoluto

(ROSENFELD 1985 p 16) Contudo o autor avalia como importante esta sistematizaccedilatildeo

dos gecircneros por definir as diversas categorias literaacuterias E esta artificialidade eacute comprovada

com o fato de natildeo haver gecircnero puro O que haacute para o autor eacute o significado substantivo e

adjetivo dos gecircneros Naquele encontramos a essecircncia estiliacutestica de cada gecircnero eacute o que nos

possibilita definir o gecircnero de um texto pois eacute especiacutefico Por significado adjetivo

entendemos o traccedilo estiliacutestico aquilo que pode ser encontrado em todos os outros gecircneros

Por exemplo o corpus de nossa pesquisa Canto XI da Odisseacuteia tem como significado

substantivo o gecircnero eacutepico e como adjetivo o traccedilo do traacutegico Tal exemplificaccedilatildeo pode ser

feita com muitas outras obras porque ―no fundo poreacutem toda obra literaacuteria de certo gecircnero

conteraacute aleacutem dos traccedilos estiliacutesticos mais adequados ao gecircnero em questatildeo tambeacutem traccedilos

estiliacutesticos mais tiacutepicos dos outros gecircneros (Ibidem p 19)

Todas essas ponderaccedilotildees de Rosenfeld (1985) a respeito da teoria dos gecircneros e

de seus significados adjetivo e substantivo contribuem para o nosso trabalho em alguns

pontos Elas creditam nossa pesquisa em analisar a presenccedila do traacutegico numa epopeacuteia

homeacuterica Tais consideraccedilotildees aleacutem de reforccedilar que natildeo haacute gecircnero puro (e que talvez nunca

tenha existido) permite-nos demonstrar que essa pureza nem mesmo na Antiguidade Claacutessica

84

existiu apesar de muitos verem esse periacuteodo como sinocircnimo de uma produccedilatildeo literaacuteria

regrada de estrutura fechada A anaacutelise do nosso trabalho abre perspectivas para entendermos

que as inovaccedilotildees estiliacutesticas as influecircncias e a interpenetraccedilatildeo de gecircneros satildeo procedimentos

realizados desde a Antiguidade e natildeo como uma singularidade moderna No final das

avaliaccedilotildees como diz o proacuteprio Rosenfeld (1985) ser puro ou natildeo natildeo define a qualidade de

um trabalho

Apoacutes discorrer sobre o nascimento da trageacutedia Junito Brandatildeo em Teatro Grego

(2009) fala-nos a respeito de outro elemento importante para a compreensatildeo do traacutegico

uAgravebrij73 e aatildeth74

A primeira ocorre quando o heroacutei ultrapassa o meacutetron a medida

cometendo entatildeo a uAgravebrij A segunda eacute o resultado da hyacutebris pois diante desta soacute resta ao

heroacutei ser punido pelos deuses que lhe lanccedilam a ateacute Tomado pela uAgravebrij e aatildeth todo e

qualquer ato que o heroacutei realizar se voltaraacute contra ele Para o autor o traacutegico se enquadra com

os seguintes envolvimentos apoacutes a ultrapassagem do meacutetron hyacutebrisrarr neacutemesis (nemacrmesij-

ciuacuteme divino)rarr ateacuterarr Moira (Moiordfra- destino cego puniccedilatildeo divina) Por esse processo ele

afirma que no sentido religioso a trageacutedia grega suplica contra a desmedida

No Canto XI da Odisseacuteia avaliaremos a presenccedila desses elementos da trageacutedia

(uAgravebrij aatildeth nemacrmesij Moiordfra) Observaremos atraveacutes do destino dos heroacuteis mais

precisamente de Agamecircmnon e de Aacutejax a influecircncia destas forccedilas sobre-humanas

Junito Brandatildeo faz uma distinccedilatildeo importante entre conflito traacutegico fechado e uma

situaccedilatildeo traacutegica A primeira implica um final desditoso eacute a accedilatildeo do destino traacutegico como

vemos em Eacutedipo Rei e em Antiacutegona Jaacute no segundo o final natildeo eacute desditoso Parte-se do

infortuacutenio para a fortuna pois o que eacute traacutegica eacute a situaccedilatildeo vivida natildeo o seu fim como o

exemplo lido em Alceste Porque ―() o traacutegico pode natildeo estar no fecho mas no corpo da

trageacutedia Chamamos por isso mesmo trageacutedia a peccedila cujo conteuacutedo eacute traacutegico e natildeo

necessariaamente o fecho (Ibidem p 15) Esta diferenccedila eacute importante para a nossa anaacutelise

porque observaremos uma situaccedilatildeo traacutegica jaacute que na Odisseacuteia natildeo haacute espaccedilo para se falar

em destino traacutegico No Canto XI podemos observar tanto uma ―situaccedilatildeo traacutegica como por

exemplo a vivida por Odisseu como tambeacutem um ―conflito traacutegico fechado o que pode ser

73

Em grego uAgravebrij indica a accedilatildeo de insolecircncia violecircncia soberba excesso ou seja uma accedilatildeo fruto de uma

desmedida 74

Em grego aatildeth significa um infortuacutenio segundo o Bailly (2000) eacute um flagelo enviado pelos deuses como a

puniccedilatildeo por algum fato conhecida tambeacutem como uma cegueira enviada pelos deuses

85

visto por exemplo atraveacutes do relato de Agamecircmnon e da visualizaccedilatildeo de Aacutejax e seu eterno

sentimento de desonra

Albin Lesky em A trageacutedia Grega (2006) alerta-nos logo ao iniacutecio de que natildeo

tentaraacute encontrar uma foacutermula para o traacutegico Entre outras coisas sua obra ajuda-nos a tentar

compreender se o traacutegico estaacute unicamente relacionado agrave trageacutedia ou se como acreditamos a

outros meios literaacuterios Tendo em vista que ―() jaacute se encontram os germes em que se prepara

a primeira e ao mesmo tempo a mais perfeita objetivaccedilatildeo da visatildeo do mundo no drama do

seacuteculo V (LESKY 2006 p 23) Inclusive a partir dos novos estudos feitos da Iliacuteada e da

Odisseacuteia o autor informa-nos que ―suscita-se com crescente vivacidade a questatildeo relativa aos

germes do traacutegico nas duas epopeacuteias (Ibidem) Eacute por isso que Karl Jaspers citado por Lesky

(2006) refere-se a Homero como a mais antiga manifestaccedilatildeo do traacutegico Tal posicionamento

respalda nossa pesquisa

Na comprovaccedilatildeo dessa existecircncia do traacutegico jaacute nas epopeacuteias homeacutericas Lesky

(2006) aponta-nos alguns fatores para esse entendimento Assim em Homero jaacute vemos que

os heroacuteis apesar de na maioria das vezes serem exaltados podem ter um destino venturoso

ou desventuroso a depender dos desiacutegnios divinos Como exemplo ele cita o Canto I da

Iliacuteada mas noacutes exemplificaremos pelo Canto XI da Odisseacuteia pois neste vemos a desventura

narrada por exemplo por Aquiles dizendo preferir ser um trabalhador do campo a reinar

sobre os mortos Eacute narrada tambeacutem a desventura de Agamecircmnon que pelo histoacuterico da

famiacutelia Atrida e por ter sacrificado sua filha seraacute penalizado pelo proacuteprio cocircnjuge Como

destino venturoso podemos citar o do proacuteprio Odisseu que cumpre uma das suas mais

difiacuteceis missotildees que eacute descer ateacute a entrada do Hades e depois voltar tendo o direito de poder

continuar em sua jornada

Aleacutem dessa mobilidade humana entre a ventura e a desventura Lesky (2006) cita

tambeacutem que vemos em Homero o encadeamento das accedilotildees e de tudo o que as envolvem Haacute

tambeacutem a centralidade do tempo e da accedilatildeo ocorrendo em alguns momentos a

presentificaccedilatildeo de algumas narraccedilotildees como se elas ocorressem naquele instante mesmo com

narraccedilotildees em flah-back Para noacutes vale destacar que estes elementos tambeacutem podem ser

verificados na Odisseacuteia em que as accedilotildees assim como na Iliacuteada satildeo encadeadas havendo

para cada uma delas um resultado que leva o personagem ao seu objetivo No Canto XI por

exemplo o cumprimento do ritual (nemacrkuia) por Odisseu o leva para casa Vecirc-se tambeacutem

neste canto uma narraccedilatildeo bastante centralizada no tempo em que os fatos ocorrem e de tudo

86

que estaacute em volta De modo que ateacute as narraccedilotildees feitas por Odisseu aos Feaacutecios de tudo que

passara aparentam estar ocorrendo naquele mesmo instante

Assim segundo o autor como natildeo eacute faacutecil descrever o processo de evoluccedilatildeo do

traacutegico tambeacutem natildeo eacute de entendecirc-lo no contexto claacutessico por natildeo ter sido legada uma teoria

pelos gregos Mesmo diante da complexidade expressa ele faz alguns comentaacuterios sobre o

traacutegico conforme Aristoacuteteles Para este o traacutegico possui o sentido de algo solene desmedido

mas depois passou a indicar o terriacutevel estarrecedor o bombaacutestico perdendo completamente o

sentido da induccedilatildeo e da necessidade Lesky (2006) considera ainda que para haver o

sentimento traacutegico ―o caso deve interessar-nos afetar-nos comover-nos Quando nos

sentimos atingidos nas profundas camadas de nosso ser eacute que experimentamos o traacutegico

(Ibidem p 33) Aleacutem disso o imerecimento tambeacutem eacute fundamental para que alcancemos a

sensaccedilatildeo traacutegica pois o imerecido faz-nos sentir compaixatildeo Jaacute o sujeito para se identificar

como traacutegico deve ter consciecircncia conhecimento do seu padecer No Canto XI da Odisseacuteia

poderemos verificar alguns desses elementos como a desmedida o despertar da comoccedilatildeo a

compaixatildeo o imerecido e toda uma vivecircncia do traacutegico mesmo que incipiente

Questionando se o traacutegico natildeo teria seu significado estabelecido na Poeacutetica Lesky

diz acreditar que na catarse estaria a essecircncia do traacutegico Por tudo o que foi referido

consideramos que Homero deu os passos iniciais das trageacutedias que estavam por vir e com

isso tambeacutem entendemos o porquecirc de ele jaacute ter sido considerado o pai da trageacutedia Natildeo

entraremos nessa discussatildeo mas concordamos com Lesky de que Homero eacute ―um preluacutedio agrave

objetivaccedilatildeo do traacutegico na obra de arte (LESKY 2006 p 25)

Sandra Luna em Arqueologia da Accedilatildeo Traacutegica (2005) realiza importantes

explicaccedilotildees sobre o traacutegico que seratildeo relevantes para a nossa pesquisa Depois de expor os

indiacutecios antropoloacutegicos e literaacuterios sobre a existecircncia do traacutegico antes da trageacutedia a autora

afirma que Homero pelas epopeacuteias jaacute nos apresentava o traacutegico apesar de este natildeo ser seu

objetivo Explica ainda que essa veiculaccedilatildeo do traacutegico com Homero deve ser feita por haver

algumas discussotildees a esse respeito Aleacutem do mais diz ser inegaacutevel a presenccedila dos momentos

de tragicidade verificadas ao longo de suas epopeacuteias Para tanto ela cita o Canto IX da

Odisseacuteia e ressalta que a morte dos companheiros de Odisseu alerta-nos sobre o destino e

sobre a fragilidade humana Pois ―() a vida gloriosa do heroacutei eacutepico projeta-se

necessariamente sobre o fundo sombrio das desventuras () (LUNA 2005 p 30)

Ao longo de nossa anaacutelise verificaremos essa tragicidade homeacuterica reforccedilada

pelos desiacutegnios divinos pela accedilatildeo do destino e da fragilidade humana pois o heroacutei um dia iraacute

deparar-se com sua condiccedilatildeo humana portanto com a fraqueza e a instabilidade Destino esse

87

que tanto conduz Odisseu agrave ventura em seu retorno ao lar como tambeacutem fez sua matildee

Anticleacuteia padecer de saudades do filho de quem ela natildeo mais tinha notiacutecias Esse destino

infortunado tambeacutem natildeo permitiu que Agamecircmnon morresse na guerra Desta forma tendo jaacute

retornado pensa estar protegido em seu palaacutecio mas eacute surpreendido pela morte traiccediloeira Por

isso Luna afirma-nos

Vale a pena refletir mais pausadamente sobre a recorrecircncia dos

elementos traacutegicos nas epopeacuteias gregas atentando para os episoacutedios que

reiteradamente fazem ecoar a condiccedilatildeo de instabilidade da vida humana Satildeo

inuacutemeras as incidecircncias aleacutem daquelas implicadas nas duas centenas de

mortes referenciadas na Iliacuteada (Ibidem p 31)

Sandra Luna natildeo considera Homero como pai da trageacutedia com isso podemos

tambeacutem concordar todavia consideramos que ele foi o responsaacutevel pela fundamentaccedilatildeo

literaacuteria do traacutegico A autora afirma tambeacutem que Homero natildeo alimenta o traacutegico dispersando-

o por meio de banquetes e mudanccedilas de cena ele apenas o deixa entrever Tal constataccedilatildeo eacute

verdadeira assim como eacute verossiacutemil que Homero natildeo o alimente senatildeo teria feito uma eacutepica

sem coerecircncia o que natildeo ocorre pois a presenccedila do traacutegico natildeo desnorteia o teor eacutepico ao

contraacuterio sua presenccedila o enriquece Mas tambeacutem natildeo podemos negar que as mortes narradas

por Homero satildeo carregadas de envolvimentos externos que aumentam a tragicidade ele natildeo

nos poupa dos detalhes traacutegicos Basta-nos lembrar das narraccedilotildees que Odisseu ouve de como

ocorreram as mortes de sua matildee de Aquiles e de Agamecircmnon e ao final de cada relato

todos se derramavam em laacutegrimas

Luna (2005) informa-nos ainda que o conflito entre mito e razatildeo seraacute

―determinante para o surgimento do que estamos chamando de espiacuterito traacutegicolsquo na trageacutedia

manifestando-se esse espiacuterito na consciecircncia da morte natildeo como parte da vida mas como fim

da vida portanto como fenocircmeno aterrorizante e lutuoso (LUNA 2005 p 169) No

proacuteximo capiacutetulo analisaremos a presenccedila desse ―espiacuterito traacutegico no Canto XI da Odisseacuteia

em que o heroacutei protagonista deparando-se com a morte de amigos e familiares vive a

assustadora finitude da vida aleacutem de sua circunstacircncia imerecida Outro fator reitera a nossa

fundamentaccedilatildeo em estudar o traacutegico na Odisseacuteia pois a autora indica-nos a existecircncia de

estudos sobre o conflito entre muordfqoj e lomacrgoj (mito e razatildeo) na Odisseacuteia

Ao falar sobre sua tese de racionalizaccedilatildeo do traacutegico Luna aponta-nos a presenccedila

de alguma responsabilidade humana nem que seja por suas fraquezas que ―() contribuem

para acionar a maacutequina traacutegica (Ibidem p 171) Pois natildeo soacute os deuses os encaminham para

o traacutegico como eles mesmos podem dirigir-se a ele Talvez seja por essa possibilidade de

88

escolha que Agamecircmon no Hades alerta Odisseu para natildeo confiar em sua esposa Peneacutelope

pois isso poderia levaacute-lo a uma indigna morte assim como havia ocorrido com ele proacuteprio

E apoacutes considerar que a catarse eacute o objetivo maior da trageacutedia a autora diz-nos

que o caminho do heroacutei eacutepico deve servir de modelo Ele eacute um exemplo de honra e vigor a ser

seguido Ao contraacuterio do heroacutei traacutegico que muitas vezes sendo ateacute o mesmo que jaacute figurou

distinto nas eacutepicas deve ter sua trajetoacuteria como modelo do que natildeo deve ser seguido e sim

do que devemos evitar Tal afirmaccedilatildeo eacute bastante vaacutelida para nossa anaacutelise do Canto XI pois

neste temos claramente perfis apresentados de heroacuteis eacutepicos e traacutegicos Deste modo

Odisseu passando pela catarse vive um processo forte de aprendizagem do que natildeo deve

seguir atraveacutes do traacutegico relato de Aquiles e Agamecircmnon e do fim de Aacutejax que pode

contemplar Assim enquanto Odisseu nos representa o que devemos seguir como modelo os

relatos do Pelida e do Atrida somada agrave lamentaacutevel condiccedilatildeo de Aacutejax ilustra-nos a condiccedilatildeo

de um heroacutei traacutegico cujo exemplo devemos evitar

Ao longo desse capiacutetulo desenvolvemos trecircs toacutepicos que consideramos

importantes para uma melhor apreensatildeo do traacutegico No primeiro discorremos sobre as

relaccedilotildees e especificidades do traacutegico e da trageacutedia As diferenccedilas estabelecidas permitem-nos

compreender a pertinecircncia em estudar uma configuraccedilatildeo do traacutegico em uma epopeacuteia No

segundo toacutepico destacamos as teorizaccedilotildees de Aristoacuteteles sobre as trageacutedias gregas e a partir

delas tentamos entender o que o filoacutesofo comprende do traacutegico e dos elementos que

circundam em sua realizaccedilatildeo No terceiro foram expostas algumas explanaccedilotildees teoacutericas do

traacutegico feitas por autores diversos De modo geral toda a abordagem realizada contribuiu

para a compreensatildeo de alguns pontos que seratildeo importantes para o nosso proacuteximo capiacutetulo no

qual nos aprofundaremos na anaacutelise da tragicidade verificada no Canto XI da Odisseacuteia

89

3 TRAGICIDADE NO CANTO XI DA ODISSEacuteIA ANTICLEacuteIA AQUILES

AGAMEcircMNON AacuteJAX

31 Odisseacuteia momentos de tragicidade

Neste terceiro capiacutetulo propomos realizar a anaacutelise da tragicidade identificada ao

longo do deacutecimo primeiro livro da Odisseacuteia Para tanto dedicamos este primeiro subtoacutepico agrave

ilustraccedilatildeo de que a tragicidade a ser analisada no Canto XI natildeo eacute uma exceccedilatildeo dentro da obra

tanto que em outros cantos podem ser vistas tambeacutem situaccedilotildees com teor traacutegico E apoacutes o

desenvolvimento dos aspectos citados dedicaremos um segundo toacutepico ―Tragicidade no

Canto XI da Odisseacuteia Anticleacuteia Aquiles Agamecircmnon Aacutejax para a anaacutelise especiacutefica do

traacutegico no Canto XI principalmente a partir das circunstacircncias em que Odisseu encontra-se

com a sua matildee Anticleacuteia e seus antigos companheiros em Troacuteia Agamecircmnon Aquiles e

Aacutejax Como pode ser percebido adiantamos que o fator de parentesco e os viacutenculos de

amizade satildeo intensificadores da accedilatildeo traacutegica ocasiatildeo que seraacute analisada no proacuteximo toacutepico

Como abordamos nos dois capiacutetulos anteriores Homero aleacutem de ter nos deixado

as duas grandes epopeacuteias do Ocidente Iliacuteada e Odisseacuteia legou-nos tambeacutem as primeiras

representaccedilotildees literaacuterias do traacutegico Representaccedilotildees estas que por volta do seacuteculo V e IV aC

seratildeo o cerne das trageacutedias elaboradas por tragedioacutegrafos como Eacutesquilo Soacutefocles e Euriacutepedes

Estes satildeo bastante influenciados pelas obras homeacutericas ao ponto de desenvolverem em suas

obras situaccedilotildees jaacute prenunciadas em Homero a exemplo da Oresteacuteia de Eacutesquio e Aacutejax de

Soacutefocles

Considerado por alguns como o ―pai da trageacutedia Homero natildeo nos poupou

representaccedilotildees traacutegicas Por isso apesar de elegermos o Canto XI da Odisseacuteia como o livro

em que haacute maior intensidade nessas representaccedilotildees destacamos tambeacutem que no transcorrer

da obra outros momentos de grande teor traacutegico podem ser contemplados Com isso

objetivamos respaldar ainda mais a nossa pesquisa mostrando que a tragicidade pode ser

encontrada na Odisseacuteia em momentos distintos natildeo estando restrita a um uacutenico canto

Lesky (2006) ressalta-nos que Homero legou-nos germes do traacutegico em suas

epopeacuteias Em congruecircncia com esta afirmaccedilatildeo Sandra Luna (2005) diz ser possiacutevel a

identificaccedilatildeo de momentos traacutegicos na literatura homeacuterica Tais assertivas jaacute discutidas no

segundo capiacutetulo acabam sendo motivadoras deste nosso percurso ao longo dos versos da

90

Odisseacuteia em busca de momentos traacutegicos ou ao menos de episoacutedios que nos vislumbrem

tragicidade Sabemos que para a ocorrecircncia de uma vivecircncia do traacutegico satildeo importantes

elementos como o imerecido a ideacuteia de culpa75

pela ultrapassagem do meacutetron a compaixatildeo o

temor pois todas essas circunstacircncias propiciam o despertar da comoccedilatildeo Assim logo ao

iniacutecio da epopeacuteia no Canto I deparamo-nos com a representaccedilatildeo de um sofrimento que nos eacute

apresentado como imerecido Tal situaccedilatildeo ocorre quando Telecircmaco entre os versos 214-220

responde agrave deusa Atena transfigurada como Mentes sobre sua ascendecircncia jaacute que esta havia

perguntado se ele seria filho de Odisseu e ele responde

215 κήηεξ κέλ ηέ κέ θεζη ηνῦ ἔκκελαη αὐηὰξ ἐγώ γε

νὐθ νἶδ᾽ νὐ γάξ πώ ηηο ἑὸλ γόλνλ αὐηὸο ἀλέγλσ

ὡο δὴ ἐγώ γ᾽ ὄθεινλ κάθαξόο λύ ηεπ ἔκκελαη πἱὸο

ἀλέξνο ὃλ θηεάηεζζηλ ἑνῖο ἔπη γῆξαο ἔηεηκε

λῦλ δ᾽ ὃο ἀπνηκόηαηνο γέλεην ζλεηλ ἀλζξώπσλ

220 ηνῦ κ᾽ ἔθ θαζη γελέζζαη ἐπεὶ ζύ κε ηνῦη᾽ ἐξεείλεηο76

((Odisseacuteia I 215-220)

Minha matildee diz que fui gerado por ele mas

pelo menos eu natildeo o sei na verdade natildeo

existe algueacutem que saiba de sua sproacutepria origem

Como eu desejei ser filho de algueacutem abenccediloado

de um varatildeo que vegasse agrave velhice com suas riquezas

Agora do mais infeliz dos homens mortais

eu descendo digo-te jaacute que tu perguntas

Como podemos perceber Telecircmaco sente anguacutestia e sofre pelo desaparecimento

do pai de quem ele natildeo se lembra da fisionomia tendo em vista que era muito pequeno

quando haacute vinte anos Odisseu partira para Troacuteia A passagem citada provoca-nos o

sentimento de piedade o que nos incita a sensaccedilatildeo do traacutegico Ou seja natildeo queremos dizer

que Telecircmaco seja um personagem traacutegico e sim que possui um estado permeado por

elementos importantes para a efetivaccedilatildeo do traacutegico como o imerecimento e o suscitar da

75

O termo referido natildeo se relaciona a ideacuteia de culpa cristatilde ligada ao pecado do indiviacuteduo a algo noscivo do qual

os cristatildeos devem distanciar-se para que natildeo sejam punidos Ao utilizarmos a palavra ―culpa remetemo-nos ao

sentimento de responsabilizaccedilatildeo projetada no homem que foi resultado de accedilotildees do divino do destino de sua

desmedida ou seja resultado de uma construccedilatildeo coletiva E essa responsabilizaccedilatildeo a que nos referimos natildeo pode

ser compreendida pelo o que concebemos de ―culpa cristatilde jaacute que esta estaacute envolta com a noccedilatildeo de indiviacuteduo

culpado e que portanto deve ser punido pelos seus proacuteprios atos No processo de realizaccedilatildeo do traacutegico podemos

encontrar a culpa a responsabilizaccedilatildeo do homem por seus atos fazendo-os chegarem ao destino ou a momentos

traacutegicos Contudo sabemos que na eacutepica e nas trageacutedias gregas a accedilatildeo divina e todo um construto coletivo

impulsionam-os ao erro daiacute o distanciamento com o sentimento de culpa apregoada pelo cristianismo 76

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D13Acard3

D178 retirado agraves 2035h em 20 de dezembro de 2010

91

piedade Mesmo porque diz-nos Lesky (2006) que o sentimento traacutegico ocorre quando algo

nos afeta nos comove fazendo com que nos sintamos atingidos ―nas profundas camadas de

nosso ser77

(LESKY 2006 p33) Contudo sentimo-nos ainda mais aflitos ao sabermos que

Telecircmaco natildeo sofre apenas por natildeo se recordar do pai e saber de seu estado se vivo ou morto

mas tambeacutem por ver toda a sua heranccedila ser consumida dia a dia pelos pretendentes que

cortejam sua matildee e destroem seus bens Vejamos o que ele diz a Atena sobre sua afliccedilatildeo

uacutenica heranccedila que ele considera que o pai deixou

νὐδέ ηη θεῖλνλ ὀδπξόκελνο78

ζηελαρίδσ

νἶνλ ἐπεί λύ κνη ἄιια ζενὶ θαθὰ θήδε᾽ ἔηεπμαλ

()

ηξύρνπζη δὲ νἶθνλ

ἡ δ᾽ νὔη᾽ ἀξλεῖηαη ζηπγεξὸλ γάκνλ νὔηε ηειεπηὴλ

250 πνηῆζαη δύλαηαη ηνὶ δὲ θζηλύζνπζηλ ἔδνληεο

νἶθνλ ἐκόλ ηάρα δή κε δηαξξαίζνπζη θαὶ αὐηόλ79

(Odisseacuteia I 243-244 248-251)

Natildeo eacute soacute por este algueacutem que eu lamento mas

nesse instante sofro por mim com os males que os deuses ocasionam-me

()

A matildeo e o palaacutecio eles me consomem e

ela nem recusa o casamento abominaacutevel nem aceitar

eacute capaz de fazer assim eles acabam consumindo

meu palaacutecio e rapidamente destruiratildeo a mim mesmo

Diante de tais lamuacuterios como sabemos a narrativa prossegue e Atena aconselha-o

a partir em busca de notiacutecias do pai Nessa citaccedilatildeo percebemos que Telecircmaco natildeo se sente

apenas angustiado por sofrer pelo pai o sentimento que o toma eacute ainda mais traacutegico a dor

imerecida A partida do pai mesmo a contragosto para a Guerra de Troacuteia provoca em

Telecircmaco a anguacutestia espera do pai que ele natildeo conheceu efetivamente A guerra se encerra

mas Odisseu natildeo retorna e nenhuma notiacutecia eacute trazida sobre o paradeiro do rei de Iacutetaca soacute

77

Apesar de servir para nossa anaacutelise destacamos que a afirmaccedilatildeo de Lesky (2006) pode ser relativizada tendo

em vista que ele define o sentimento traacutegico a partir de seu caraacuteter metafiacutesico relacionado agrave recepccedilatildeo dos

espectadoresleitores 78

A utilizaccedilatildeo do particiacutepio presente ὀδσρόμενος eacute apropiada ao contexto por indicar a simultaneidade da accedilatildeo

expressa pelo verbo Assim ὀδσρόμενος indica-nos que a lamentaccedilatildeo de Telecircmaco natildeo estaacute acabada

(perfectum) nem eacute pontual (aoristo) e sim inacabada por isso Homero coerentemente utilizou um tema do

infectum 79

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D13Acard3

D230 retirado agraves 2041h em 20 de dezembro de 2010

92

comentaacuterios incertos Sua matildee Peneacutelope comeccedila entatildeo a ser cortejada por muitos homens

de Iacutetaca antigos conterracircneos de Odisseu ou de cidades vizinhas Para adiar o enlace com um

dos pretendentes ela tece pela manhatilde uma mortalha para Laertes e agrave noite quando todos

dormem destece num trabalho infindo Nesse transcorrer de tempo os servos e os bens

deixados pelo pai satildeo consumidos pelos pretendentes jaacute que estes vatildeo ao palaacutecio todos os

dias para banquetes e festejos enquanto esperam a decisatildeo da rainha Desse modo como se jaacute

natildeo bastasse natildeo ter vivido com o pai e a incerteza se ele se encontrava vivo ou morto

Telecircmaco sofre pelos bens que via sendo diluiacutedos a cada dia que se passava Desde crianccedila

sem ter cometido erro algum imerecidamente sofria males sem razatildeo E eacute esse sentimento

diante de uma dor imerecida que nos faz sentir esup1lemacroj a piedade ao mesmo tempo em que

nos faz temer passar por tal sofrimento o fomacrboj Assim sentindo compaixatildeo e temor

aproximamo-nos de um processo cataacutertico e entatildeo experimentamos o traacutegico Lembremos do

que nos diz Aristoacuteteles sobre o sentimento provocado pela imagem traacutegica

ἔλεος μὲν περὶ τὸν ἀνάξιον φόβος δὲ περὶ τὸν ὅμοιον80

(Poeacutetica XIII 1453a 5-6)

() a piedade sobre o imerecido o temor sobre o semelhante

O imerecido sentimento que acentua nossa vivecircncia do traacutegico como jaacute vimos eacute

tambeacutem representado na vida de Odisseu o polutropoj81 que em suas muitas voltas e

maneiras protagoniza no decorrer dos cantos da Odisseacuteia cenas em que sofre com seus

muitos trabalhos Natildeo eacute pois sem propoacutesito que Atena logo no Canto I reclama a Zeus os

tantos sofrimentos de Odisseu por considerar que satildeo imerecidos diferentemente dos de

Egisto que satildeo bem cabidos agraves suas accedilotildees Por isso reclama a deusa

ἱέκελνο θαὶ θαπλὸλ ἀπνζξῴζθνληα λνῆζαη

ἧο γαίεο ζαλέεηλ ἱκείξεηαη νὐδέ λπ ζνί πεξ

80

Texto disponiacutevel em httpwwwhs-

augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante04Aristotelesari_poi2html retirado agraves 2025hs de 17 de julho

de 2010 81

Esse epiacuteteto foi explicado por noacutes anteriormente no primeiro capiacutetulo desse trabalho

93

60 ἐληξέπεηαη θίινλ ἦηνξ ιύκπηε νὔ λύ η᾽ δπζζεὺο

Ἀξγείσλ παξὰ λεπζὶ ραξίδεην ἱεξὰ ῥέδσλ

Τξνίῃ ἐλ εὐξείῃ ηί λύ νἱ ηόζνλ ὠδύζαν Ζεῦ82

(Odisseacuteia I 58-62)

Contudo Odisseu fica colocando-se a pensar sobre a fumaccedila

que se solta da sua terra que anseia ou ateacute mesmo agora morrer

Oliacutempico teu coraccedilatildeo natildeo se move Odisseu natildeo era querido

Quando ao lado das naves dos Argivos agradava-te fazendo sacrifiacutecios

Na ampla Troacuteia Agora o odeias tanto por que Zeus

A deusa questiona natildeo o sofrer de um homem mas o incompreensiacutevel fato de ver

um valoroso guerreiro um heroacutei que sempre respeitou e sacrificou pelos deuses sofrer

imerecidamente Neste caso o incompreensiacutevel soma-se ao imerecido para intensificar o

traacutegico pois aquele que cumpre com seus deveres natildeo pode sofrer sem causa o que nos

sugere a sensaccedilatildeo de injusticcedila de um destino indevido Questionado Zeus responde natildeo ter

ressentimento para com Odisseu ateacute mesmo porque ele sempre foi distinguido entre os

demais e sempre ofertou aos eternos Todavia uma uAacutebrij cometida para com Polifemo o

filho de Posiacutedon fez este desejar-lhe todo mal explica Zeus

ἀιιὰ Πνζεηδάσλ γαηήνρνο ἀζθειὲο αἰεὶ

Κύθισπνο θερόισηαη83

ὃλ ὀθζαικνῦ ἀιάσζελ

70 ἀληίζενλ Πνιύθεκνλ ὅνπ θξάηνο ἐζηὶ κέγηζηνλ84

(Odisseacuteia I 68-70)

Entretanto Posiacutedon que a terra estremece cultiva para sempre

o oacutedio enfurecido por ele ter tornado cego do olho o Ciclope

O dado agora acrescentado do desagrado cometido por Odisseu a Polifemo e

consequentemente ao seu pai Posiacutedon mostra tambeacutem que os atos iacutempios satildeo

inevitavelmente punidos A desmedida a uAacutebrij cometida eacute traacutegica porque eacute necessaacuteria

sendo portanto inevitaacutevel Um exemplo dessa uAacutebrij inevitaacutevel necessaacuteria encontramos

82

Texto disponiacuteevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D13Acard3

D44 retirado agraves 2039h em 20 de novembro de 2010 83

O uso do perfectum kexolwtai de xolow ndash enfurecer sugere-nos que a accedilatildeo verbal neste caso a raiva de

Posiacutedon eacute perfeita acabada ou seja natildeo indica o processo e sim o resultado de uma accedilatildeo (MURACHO 2007)

Por isso na citaccedilatildeo acima a utilizaccedilatildeo de kexolwtai representa o ―enfurecido deus como resultado da accedilatildeo

de Odisseu ao ter furado o olho do seu filho 84

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D13Acard3

D44 retirado agraves 2040h em 20 de novembro de 2010

94

no Canto IX em que se narra a perda de Odisseu dos seus doze dos mais fortes companheiros

que satildeo comidos pelo Ciclope Polifemo Tal situaccedilatildeo faraacute com que o Laertida e os soacutecios

sobreviventes presenciem cenas horrendas e dolorosas daiacute todos se vecircem impelidos pela

necessidade de agirem contra o Ciclope Para entendermos melhor a explanaccedilatildeo vejamos

uma dessas cenas em que o Polifemo devora seus companheiros

ζὺλ δὲ δύσ κάξςαο ὥο ηε ζθύιαθαο πνηὶ γαίῃ

290 θόπη᾽ ἐθ δ᾽ ἐγθέθαινο ρακάδηο ῥέε δεῦε δὲ γαῖαλ

ηνὺο δὲ δηὰ κειετζηὶ ηακὼλ ὡπιίζζαην δόξπνλ

ἤζζηε δ᾽ ὥο ηε ιέσλ ὀξεζίηξνθνο νὐδ᾽ ἀπέιεηπελ

ἔγθαηά ηε ζάξθαο ηε θαὶ ὀζηέα κπειόεληα

ἡκεῖο δὲ θιαίνληεο ἀλεζρέζνκελ Δηὶ ρεῖξαο

295 ζρέηιηα ἔξγ᾽ ὁξόσληεο ἀκεραλίε δ᾽ ἔρε ζπκόλ85

(Odisseacuteia IX 289-295)

Tendo apreendido dois como a cachorros sobre a terra

os lanccedilou o ceacuterebro de cada um correu ao chatildeo e molhou o solo

O jantar preparou com eles tendo partido seus membros

comia como um leatildeo montanhecircs natildeo deixava sair nada

entranhas carnes e ossos com tutanos

Chorando noacutes erguemos as matildeos para Zeus

enquanto assistiacuteamos aquelas terriacuteveis obras

a impotecircncia possuiacutea nosso acircnimo

Diante do espetaacuteculo horrendo Odisseu e os demais companheiros apavoram-se

pois sabem que seratildeo as proacuteximas viacutetimas Para escapar do fim aparentemente inevitaacutevel

Odisseu com toda a sua astuacutecia o polumhtij86 resolve entatildeo ludibriar o monstro

Primeiro oferece-lhe vinho O monstro aceita e bebe ainda mais por trecircs vezes O Ciclope

pergunta o nome do heroacutei Este percebendo que o vinho jaacute havia alterado a razatildeo do

Polifemo responde Oucurrentij (IX 366) ou seja Ningueacutem O monstro avisa a Odisseu que ele

seraacute o uacuteltimo a ser comido e depois acaba dormindo O heroacutei presencia outro espetaacuteculo

horriacutevel que soacute o impulsiona mais a encontrar uma saiacuteda A asup1namacrgkh a necessidade e o

daimwn um democircnio uma forccedila divina impelem-nos a agir desmedidamente observemos

() θάξπγνο δ᾽ ἐμέζζπην νἶλνο

ςσκνί η᾽ ἀλδξόκενη ὁ δ᾽ ἐξεύγεην νἰλνβαξείσλ

85

Texto disponeacutevel em

dehttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D93Acard

3D281 retirado agraves 2045h em 20 de outubro de 2010 86

O epiacuteteto polumhtij como explicamos no capiacutetulo primeiro evoca e relaciona Odisseu aos deuses Zeus e

Atena e indica o de muita prudecircncia e sagacidade

95

375 θαὶ ηόη᾽ ἐγὼ ηὸλ κνριὸλ ὑπὸ ζπνδνῦ ἤιαζα πνιιῆο

ἧνο ζεξκαίλνηην ()

380 θαὶ ηόη᾽ ἐγὼλ ἆζζνλ θέξνλ ἐθ ππξόο ἀκθὶ δ᾽ ἑηαῖξνη

ἵζηαλη᾽ αὐηὰξ ζάξζνο ἐλέπλεπζελ κέγα δαίκσλ

νἱ κὲλ κνριὸλ ἑιόληεο ἐιάηλνλ ὀμὺλ ἐπ᾽ ἄθξῳ

ὀθζαικῶ ἐλέξεηζαλ ἐγὼ δ᾽ ἐθύπεξζελ ἐξεηζζεὶο

δίλενλ87

(Odisseacuteia IX 373-376 380-384)

() para fora da garganta colocava vinho e

pedaccedilos crus de carne dos humens arrotou embriagado

alguns E eu coloquei a vara embaixo da numerosa cinza

ateacute que queimasse ()

eu o transportava de dentro do fogo os companheiros ficaram

em ambos os lados mas um grande democircnio dotou-nos de coragem

Eles levantaram a vara afiada de madeira de oliveira

e sua ponta empurraram no olho (do Ciclope) eu tendo-me

apoiado por cima fazia (a vara) girar

A asup1namacrgkh e o daimwn impulsionam Odisseu e seus companheiros a decidirem

pela tomada de accedilatildeo independente dos resultados que ela traria pois naquele momento

tinham que fugir do monstro Constrangidos pela necessidade e pelo divino tomados pelo

temor de que aquilo viesse ocorrer com eles assim enfiam o pau de oliveira no olho do

monstro Polifemo cegando o filho de Posiacutedon Como diz-nos Vernant (2008) a accedilatildeo do

homem mesmo natildeo voluntariosa emana da necessidade Eacute o que Romilly (2008) como foi

visto no segundo capiacutetulo nomeia de ―luz traacutegica jaacute que a situaccedilatildeo ocorre ―em nome das

circunstacircncias que se impotildeem aos homens (ROMILLY 2008 p 168) Ainda segundo a

autora isso nos faz sentir piedade natildeo apenas pelas viacutetimas neste caso o Polifemo mas

tambeacutem pelos agentes Odisseu e seus companheiros pois o que sentimos na verdade eacute a

―piedade pelo homem (Ibidem p169) E esse sentimento de piedade somado ao temor que

temos de vivenciar tais fatos propiciam-nos a experiecircncia do traacutegico que pelo que vimos ateacute

entatildeo pode ser conferida em muitos momentos da Odisseacuteia

No Canto IX ainda sabemos que o Ciclope pede ajuda mas quando perguntado

sobre quem teria lhe feito mal ele responde Oucurrentij (IX 366) Ningueacutem Traiacutedo e enganado

pela astuacutecia do heroacutei polumhtij Polifemo natildeo consegue ajuda Odisseu e os demais natildeo

podem sair da caverna trancada por uma imensa pedra que soacute o monstro consegue tirar Mais

87

Texto disponiacutevem em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D93Acard3

D360 Texto retirado agraves 2010h em 15 de novembro de 2010

96

uma vez sua aliada astuacutecia lhe serve e ele resolve que todos devem amarrar-se aos carneiros

pois ao raiar o filho de Posiacutedon retiraraacute a pedra da entrada da caverna para que os carneiros

possam pastar e eles presos aos animais possam escapar Assim eles fazem Ao terem

fugido Odisseu com palavras de jactacircncia ataca o Ciclope Os companheiros amedrontados

com tudo o que viram tentam deter o heroacutei Mas nada o que fazem adianta pois Odisseu

continua desmedidamente a atacar o Ciclope apesar de jaacute estar a salvo

Κύθισς αἴ θέλ ηίο ζε θαηαζλεηλ ἀλζξώπσλ

ὀθζαικνῦ εἴξεηαη88

ἀεηθειίελ ἀιασηύλ

θάζζαη δπζζῆα πηνιηπόξζηνλ ἐμαιαζαη

505 πἱὸλ Λαέξηεσ Ἰζάθῃ ἔλη νἰθί᾽ ἔρνληα89

(Odisseacuteia IX 502- 505)

Ciclope se algum dos homens mortais vier e

perguntar a causaa de tua vergonhosa cegueira do olho

podes dizer que completamente cegou-te Odisseu o saqueador de

cidades]

o filho de Laertes que em Iacutetaca tem morada

Diante do descomedimento do heroacutei e das palavras injuriosas de vaidade e

orgulho o Polifemo implora ao seu pai vinganccedila Pede que Odisseu natildeo mais retorne ao lar

mas se o seu destino natildeo o permitir que ao menos venha a ter dificuldades perdendo os

soacutecios e atraveacutes de navio estrangeiro chegue ao seu lar e laacute venha encontrar tambeacutem muitas

afliccedilotildees

Esse breve relato que fizemos da histoacuteria eacute importante para que possamos entender

como viraacute o castigo de Odisseu por sua atitude desmedida Antes do seu encontro com o

Ciclope eacute verdade ele jaacute havia andado errante mas nada em comparaccedilatildeo com o que ele iraacute

passar tendo agora como seu perseguidor Posiacutedon Depois que Odisseu e os seus soacutecios

partiram de Troacuteia haviam passado apenas pela terra dos Ciacuteconos e Lotoacutefagos Na primeira

cidade satildeo perseguidos por terem-na saqueado Depois partindo para Iacutetaca fortes ventos e

uma corrente os fazem passar nove dias errantes ateacute que chegam ao paiacutes dos Lotoacutefagos Nesta

cidade trecircs companheiros comem as flores de loto e esquecem de querer retornar Odisseu

diante do risco traz de volta os amigos Daiacute aportam no paiacutes dos Ciclopes onde ocorre tudo

88

Omodo subjuntivo exprime a ideacuteia de uma accedilatildeo possiacutevel eventual que pode vir ocorrer no futuro

(MURACHO 2007) por isso Odisseu utilizou-se desse modo em eiAtilderhtai de eAtilderomai- perguntar questionar

Assim ele exprime o fato possiacutevel de algueacutem perguntar por isso traduzimos ―se perguntar na tentativa de

transmitir essa ideacuteia do provaacutevel 89

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D93Acard3

D500 retirado agraves1520h em 2 de novembro de 2010

97

o que anteriormente narramos o Polifemo come doze dos seus companheiros mais fortes

Odisseu e os demais cegam o monstro e partem antes poreacutem o heroacutei exclama palavras

injuriosas A partir de entatildeo eacute que Odisseu amaldiccediloado por Polifemo e perseguido por

Posiacutedon iraacute sofrer errante vagando de paiacutes em paiacutes ateacute chegar a Iacutetaca

Essa contextualizaccedilatildeo faz-se importante para que possamos compreender as

circunstacircncias traacutegicas na vida de Odisseu em contraposiccedilatildeo agraves situaccedilotildees traacutegicas e

principalmente ao destino traacutegico de seus companheiros Tais diferenccedilas entre o destino de

Odisseu e dos seus soacutecios como orienta Aristoacuteteles seratildeo determinadas pelas accedilotildees dos

personagens e natildeo pelos seus caracteres Daiacute a personagem ideal da trageacutedia ser o heroacutei que

tem o caraacuteter intermediaacuterio nem valoroso demais nem maldoso em excesso Nas passagens

acima referidas sobre Odisseu e seus companheiros na terra dos Ciclopes pudemos ver que a

tragicidade atingiu a todos Mas um fator determinante faraacute com que o destino de seus

companheiros seja desventuroso fato este que estaacute relacionado ao que eles faratildeo com as vacas

do Sol no Canto XII Contudo antes que cheguemos laacute sigamos linearmente e do Canto IX

partamos para o X

No Canto X da Odisseacuteia Odisseu e seus companheiros chegam agrave ilha de Eacuteolo

onde satildeo bem recebidos e laacute permanecem por um mecircs ateacute que o heroacutei resolve partir Para

ajudaacute-los Eacuteolo daacute ao Laertida uma sacola de couro com os ventos Deste modo eles partem

Mais uma vez o daimwn a forccedila superior age prejudicando a todos Odisseu dorme e

curiosos os companheiros abrem a sacola espalhando ventos por todos os lados De volta agrave

ilha Eacuteolo recusa-se a um novo auxiacutelio por perceber que um daimwn natildeo desejava vecirc-los

bem indicando que algo de mal eles teriam feito Assim Eacuteolo potildee todos para fora de sua

cidade jaacute que natildeo satildeo homens querido pelos deuses pelo contraacuterio satildeo odiados pelos divinos

(Odisseacuteia X 72-75)

Eacuteolo percebe logo que uma vontade divina ou seja uma accedilatildeo superior ocasionou

o mal agravequeles viajantes fazendo Odisseu adormecer e os seus companheiros serem tomados

pela curiosidade Ferozmente punidos estes personagens despertam nossa comoccedilatildeo por

percebermos que uma vontade superior empurra-os ao erro Como percebemos a situaccedilatildeo

descrita tem os elementos importantes que constituem uma vivecircncia traacutegica o imerecido

injusto o erro (aumlmartia) a accedilatildeo divina (daimwn) enfim Diante desses componentes

traacutegicos fazemos lembrar Rosenfeld ao afirmar que todo gecircnero literaacuterio de alguma forma

conteacutem os ―traccedilos estiliacutesticos mais tiacutepicos dos outros gecircneros (ROSENFELD 1985 p19)

Assim apesar de estarmos analisando uma obra de gecircnero eacutepico percebemos fortes marcas

98

que satildeo mais especificamente caracteriacutesticas da trageacutedia Pela linha de Rosenfeld (1985) a

obra em sua substacircncia possui categorias baacutesicas do gecircnero eacutepico ao passo que tambeacutem traz

o traacutegico como elemento adjetivo visto ser este uma categoria mais especiacutefica do gecircnero

dramaacutetico

Ainda no Canto X temos a narraccedilatildeo de que tendo saiacutedo da ilha de Eacuteolo Odisseu

e seus companheiros vagam por seis dias ateacute chegarem agrave terra dos Lestrigotildees em Lamo

Ancoram o barco e alguns homens que satildeo enviados para conhecerem a cidade deparam-se

com a filha do rei Esta os leva ao palaacutecio local onde um deles eacute logo feito de almoccedilo

deixando os demais apavorados Em fuga alguns ainda satildeo arrebatados e levados para serem

devorados E Odisseu resolve partir imediatamente Atraveacutes dessa narrativa percebemos a

perseguiccedilatildeo incansaacutevel que eles estatildeo sofrendo sem nem se darem conta do que fizeram para

merecerem tamanha hostilidade Nesse percurso de volta para casa a accedilatildeo desmedida que eles

cometeram principalmente contra Polifemo faz com que eles sejam punidos mesmo que

tenham sido impulsionados pela asup1namacrgkh e pelo daimwn mesmo que a accedilatildeo tenha sido

involuntaacuteria e natildeo por falha de caraacuteter Nesses casos em anaacutelise aristotelicamente a accedilatildeo eacute

que os encaminha para a cataacutestrofe como veremos especificamente com os companheiros de

Odisseu no Canto XII

Guiando a nau Odisseu e seus companheiros partem de Lamo e aportam na ilha de

Eeacuteia morada de Circe Odisseu percebe a accedilatildeo do daimwn pois esse natildeo era o destino

imaginado contudo naturalmente alcanccedilam a ilha O Laertida conclui que um dos deuses

havia servido como guia Apoacutes dois dias na embarcaccedilatildeo partem para a cidade e aproximam-

se da casa de Circe onde se viam leotildees e lobos possuiacutedos por feiticcedilo Circe canta e ao vecirc-los

chama-os para entrar oferecendo-lhes bebida e comida Todos aceitam com exceccedilatildeo de

Euriacutecolo Mais uma vez por accedilatildeo inconsequente deles proacuteprios inconscientemente satildeo

levados para o seu fim Vejamos

αὐηὰξ ἐπεὶ δθέλ ηε θαὶ ἔθπηνλ αὐηίθ᾽ ἔπεηηα

ῥάβδῳ πεπιεγπῖα θαηὰ ζπθενῖζηλ ἐέξγλπ

νἱ δὲ ζπλ κὲλ ἔρνλ θεθαιὰο θσλήλ ηε ηξίραο ηε

θαὶ δέκαο αὐηὰξ νοῦς90

ἦλ ἔκπεδνο ὡο ηὸ πάξνο πεξ91

(Odisseacuteia X 237-240)

90

Do grego nooj que significa inteligecircncia consciecircncia dicernimento Os destaques satildeo nossos 91

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D103Acard3

D208 retirado em 20 de outubro de 2010

99

(Circe) deu-lhes e eles tudo beberam entatildeo imediatamente

tendo sido tocados com a varinha ela ia confinando-os nos chiqueiros

Eles tinham de porcos as cabeccedilas o grunhir as cerdas e

tambeacutem o corpo Contudo a consciecircncia anterior estava conservada

Transformados de homem em porcos nesta citaccedilatildeo podemos identificar

humanos numa representaccedilatildeo traacutegica deparando-se com a sua proacutepria finitude e fragilidade

Por uma accedilatildeo de feiticcedilo os antes vigorosos combatentes de guerra e viajantes passam a

figurar como porcos tragicamente ainda mantendo a consciecircncia de homens - fato que

intensifica o sofrer de todos por terem consciecircncia de sua fraacutegil condiccedilatildeo Essa transmutaccedilatildeo

faz-nos visualizar as maneiras pelas quais Homero nos insere num contexto traacutegico mesmo

que este natildeo seja seu objetivo final Contudo eacute inegaacutevel que ele ―convida-nos a ponderar

gravemente sobre o traacutegico fim da existecircncia humana (LUNA 2005 p 29) Eacute-nos

importante ressaltar que essa traacutegica finitude humana natildeo deve ser visualizada apenas com a

passagem da vida para a morte pois acreditamos que essa significaccedilatildeo pode ser mais ampla

No momento em que os homens passam a figurar como porcos temos tambeacutem uma marcante

representaccedilatildeo da diluiccedilatildeo da vida humana neste caso de humanos a bichos Assim seguindo

a afirmaccedilatildeo de Sandra Luna (2005) deparamo-nos tambeacutem com a diluiccedilatildeo da vida e a traacutegica

finitude da existecircncia dos mortais

Esta figuraccedilatildeo em porcos tem um siacutembolo importante jaacute que este animal

representa de um modo geral as ―tendecircncias obscuras sob todas as suas formas da

ignoracircncia da gula da luxuacuteria e do egoiacutesmo (Chevalier Gheerbrant 2009 p 734) De

maneira mais particular no caso em que Circe transforma os companheiros de Odisseu em

porcos Jean Chevalier e Alain Gheerbrant (2009) citando Grid dizem que a deusa feiticeira

transformava os homens em animais que representavam a essecircncia e o caraacuteter dos homens

aprisionados Podemos observar entatildeo que tal mutaccedilatildeo de homens para porcos revela-nos a

essecircncia desses viajantes que por sua proacutepria ignoracircncia (daiacute o siacutembolo dos porcos) padecem

na tragicidade

No capiacutetulo anterior desenvolvemos a ideacuteia de que uma accedilatildeo traacutegica eacute ainda mais

efetiva quando o seu sujeito reconhece-se como traacutegico identificando-se e tendo plena

consciecircncia de sua condiccedilatildeo Eacute a asup1nagnwiquestrisij que intensifica a vivecircncia traacutegica natildeo

apenas para os espectadoresleitores mas principalmente por seu proacuteprio sujeito que se vecirc

natildeo mais como um homem de coragem valoroso e respeitado mas como vemos neste caso

como simples porcos Assim ao dizer-nos Vernant que ―a consciecircncia traacutegica nasce e

desenvolve-se com a trageacutedia (2008 p 9) vemo-nos impulsionados a levantar uma

100

problematizaccedilatildeo pois como nos mostram os versos em discussatildeo esses personagens

homeacutericos possuem consciecircncia de sua tragicidade Diante do grave conflito da condiccedilatildeo

humana sua fragilidade e limitaccedilatildeo Homero explicita-nos sobre os companheiros de Odisseu

apoacutes a transformaccedilatildeo de homens viris em porcos mas que ainda mantecircm sua consciecircncia de

homens (X 240) Por isso consideramos importante confrontarmos essa afirmaccedilatildeo de

Vernant (2008) com a passagem em anaacutelise jaacute que esta e as outras que estamos destacando

mostram-nos que em Homero certamente natildeo se desenvolveu a dita ―consciecircncia traacutegica

mas bem provavelmente foi com o autor da Odisseacuteia que ela nasceu mesmo que

incipientemente Esse fato vem a respaldar nossa pesquisa que propotildee identificar e analisar

na epopeacuteia homeacuterica o despontar dos elementos traacutegicos que mais tarde seriam

desenvolvidos nas trageacutedias gregas Por tudo isso concordamos com Platatildeo ao considerar

Homero como o ―prwordftoj didaskaloj twordfn tragikwordfn (Repuacuteblica X 595b) ou seja o

mestre primeiro dos traacutegicos

Na continuidade da narrativa do Canto X Euriacuteloco que desconfiado natildeo vai ateacute a

deusa presencia tudo e corre apavorado para contar a Odisseu o que sucedera Este decide ir

sozinho ajudar os demais No caminho encontra com Hermes transfigurado em um rapaz

que lhe oferece a erva de Molu para imunizaacute-lo ao feiticcedilo de Circe Aleacutem disso indica como o

heroacutei deve proceder ateacute deitar-se ao seu leito da deusa para que consiga salvar seus

companheiros Assim Odisseu o faz Deste modo consegue salvar os companheiros que antes

transformados em porcos voltam a seus corpos humanos Esse desfazer do feiticcedilo remete-nos

agrave defesa de Sandra Luna (2005) de que Homero natildeo alimenta o traacutegico pois atraveacutes de outros

elementos como por exemplo a ocorrecircncia de banquetes ele dispersa o efeito traacutegico Neste

caso vemos que a cena traacutegica eacute dissolvida pelo desfazer do feiticcedilo jaacute que certamente natildeo eacute

―traacutegico o efeito pretendido pelo poeta (LUNA 2005 p 29) Contudo esta constataccedilatildeo natildeo

invalida ou atenua o meacuterito de nossa pesquisa mesmo porque como deixamos evidente no

segundo capiacutetulo Homero foi coerente com seu propoacutesito literaacuterio de composiccedilatildeo de uma

epopeacuteia e natildeo de uma trageacutedia apesar de ter deixado para esta valoroso legado

Circe diz a Odisseu para que ele vaacute ateacute a nau para pegar seus tesouros armas e

homens Ele assim o faz A deusa diz tambeacutem para que ele esqueccedila de todas as suas dores

Odisseu segue seu conselho e permanece na ilha de Eeacuteia por um ano em festejos ateacute que seus

companheiros exortam-no a retornar ao solo paacutetrio O Laertida resolve entatildeo falar com Circe

e esta aceita sua partida inclusive adianta-lhe que antes de chegar a Iacutetaca teraacute que ir ao

Hades falar com Tireacutesias Sabendo desta revelaccedilatildeo ele se desespera

101

ὣο ἔθαη᾽ αὐηὰξ ἐκνί γε θαηεθιάζζε θίινλ ἦηνξ

θιαῖνλ δ᾽ ἐλ ιερέεζζη θαζήκελνο92

νὐδέ λύ κνη θῆξ

ἤζει᾽ ἔηη δώεηλ θαὶ ὁξᾶλ θάνο ἠειίνην93

(Odisseacuteia X 496-498)

Assim ele dizia e rompeu-me o querido coraccedilatildeo

sentou no leito agora chorava pelo meu destino

natildeo desejava viver nem ainda ver a luz do sol

Diante da revelaccedilatildeo feita por Circe o ―heroacutei mais ceacutelebre de toda a antiguidade

(GRIMAL 2005 p 458) angustia-se por saber que para cumprir seus objetivos ndash de retorno

ao lar - ainda teraacute que passar por obstaacuteculos maiores Ir ateacute o Hades e depois voltar era uma

tarefa que poucos cumpriram Heacuteracles Orfeu Teseu e Piriacutetoo O tamanho desse desafio

desespera o heroacutei Desse modo Homero acaba por nos ―Apresentar o sentimento da vida

inspirar terror e piedade obrigar a partilhar um sofrimento ou uma ansiedade ndash a epopeacuteia

fizera-o sempre e ensinou os tragedioacutegrafos a fazecirc-lo (ROMILLY 2008 p 22) Assim

Odisseu espera o amanhecer do novo dia para contar a nova empreitada aos companheiros

Estes ficam ainda mais desesperados pensam natildeo suportar mais tantos trabalhos por isso

com o coraccedilatildeo partido eles sentam gemem aos prantos chegando a arrancar os cabelos da

frente (Odisseacuteia X 566-567)

Apoacutes toda a anguacutestia ao terem conhecimento da missatildeo de ir ao Hades Odisseu e

os demais partem para a empreitada Eles foram sabendo que apoacutes retornarem do Hades

deveriam retornar a ilha de Circe para que ela pudesse informa-lhes dos proacuteximos

acontecimentos dando-lhe as novas coordenadas Essa circunstacircncia lembra-nos o capiacutetulo

anterior em que discutimos a caracterizaccedilatildeo do heroacutei seja na epopeacuteia eou na trageacutedia e

observamos que uma relevante diferenccedila eacute a de que ―No novo quadro do jogo traacutegico

portanto o heroacutei deixou de ser um modelo tornou-se para si mesmo e para os outros um

problema (VERNANT 2008 p 2) Observemos que apesar de natildeo estarmos falando de

uma trageacutedia grega especificamente a cena citada possibilita-nos enxergar a alusatildeo de um

heroacutei no caso Odisseu figurado como um problema natildeo apenas para si mas tambeacutem para os

outros Seus companheiros embarcam nas suas mesmas empreitadas e acabam sofrendo por

uma perseguiccedilatildeo que Posiacutedon realiza especificamente contra o heroacutei de Iacutetaca Vejamos que

92

O uso do particiacutepio perfeito kaqhmenoj de kaqhmai ndash sentar indica a noccedilatildeo do aspecto acabado

concluiacutedo (MURACHO 2007) por isso a traduccedilatildeo ―sentou exprimindo o ato perfeito terminado 93

Texto disponiacutevel em

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D475 retirado agraves 1630h em 18 de outubro de 2010

102

apesar de ter ocorrido uma accedilatildeo conjunta contra o Polifemo o grande mentor foi Odisseu

Aleacutem do mais este ao ter fugido ainda lanccedilou palavras injuriosas levando o Ciclope a

implorar a Posiacutedon que o pai de Telecircmaco fosse impedido de voltar agrave paacutetria ou no miacutenimo

ter seu retorno dificultado Como sabemos o deus concede ao filho o pedido e a partir daiacute

dificulta ainda mais o caminho de volta de Odisseu fato este que logo torna-se um

problema tambeacutem para os seus companheiros

No Canto XI Odisseu realiza o grande feito de ir agraves proximidades do Hades e

retornar para a terra Como jaacute adiantamos ao longo deste trabalho muitos satildeo os elementos

traacutegicos a serem analisados contudo por este ser o objetivo central do nosso trabalho

escolhido para anaacutelise deixaremos seu desenvolver para o toacutepico subsequente Partamos

entatildeo para o estudo do proacuteximo canto

Tendo retornado do Hades Odisseu e os demais vatildeo ateacute Circe Esta reforccedila os

apontamentos jaacute feitos por Tireacutesias e indica ao seu heroacutei predileto os outros tantos desafios

que teraacute de enfrentar e como deveraacute proceder para conseguir escapar Ela fala das Sereias de

Cila Cariacutebdes e da fome na ilha do Sol que enfrentaratildeo mas que deveratildeo resistir natildeo

alimentando-se de suas belas vacas para que natildeo venham padecer Odisseu minuciosamente

conta tudo aos companheiros antes de partirem e logo iniciam a jornada

Passando pelas Sereias Odisseu seguindo as orientaccedilotildees de Circe potildee cera nos

ouvidos dos viajantes enquanto estes o amarram Continuando a remar todos se apavoram ao

enxergarem uma grande neacutevoa e teriam deixado os remos se natildeo fosse Odisseu enchecirc-los de

acircnimo e confianccedila Deparam-se entatildeo com uma cena horripilante Cariacutebdes ao lado de Cila

chupava a aacutegua do mar terrivelmente e depois expelia com grande barulho metendo medo em

todos Mas Odisseu e os seus ainda vatildeo deparar-se com uma cena mais forte descrita pelo

heroacutei como a mais terriacutevel de todas que jaacute viu Nela Cila arranca da nave seis dos

companheiros engolindo-os Vejamos

αὐηνῦ δ᾽ εἰλὶ ζύξῃζη θαηήζζηε94

θεθιεγηαο

ρεῖξαο ἐκνὶ ὀξέγνληαο ἐλ αἰλῇ δεηνηῆηη

νἴθηηζηνλ δὴ θεῖλν ἐκνῖο ἴδνλ ὀθζαικνῖζη

πάλησλ ὅζζ᾽ ἐκόγεζα πόξνπο ἁιὸο ἐμεξεείλσλ95

(Odisseacuteia XII 256-259)

94

Tratando-se de uma forma verbal do imperfeito kathsqie de kathsqiw ndash devorar comer exprime a accedilatildeo

inacabada natildeo concluiacuteda (MURACHO 2007) Essa forma linguumliacutestica acentua ainda mais a tragicidade da cena

citada jaacute que Odisseu e seus companheiros acompanham a accedilatildeo em processo de Cila comer alguns de seus

soacutecios 95

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D234 retirado agraves 2014h em 18 de outubro de 2010

103

Na proacutepria entrada (da caverna) ela os comia eles gritaram

estendendo aos matildeos para mim numa terriacutevel batalha

Aquilo foi a cena mais lamentaacutevel para meus olhos que eu vi

De todas as outras grandes que sofri explorando as passagens do mar

A fragilidade e a efemeridade humana potildeem-se diante dos olhos daqueles homens

que muitas coisas terriacuteveis jaacute haviam presenciado O traacutegico observado nessa passagem estaacute

representado atraveacutes da aterrorizante fraqueza e finitude inerente agrave condiccedilatildeo humana visto

que fortes guerreiros todos vencedores na grande guerra de Troacuteia num segundo enxergam-se

como pequenas presas na boca de um feroz predador Assim verificamos a respeito do heroacutei

eacutepico que para ―aleacutem de todas as honras das quais venha a desfrutar a tragicidade estaraacute

sempre suspensa sobre sua cabeccedila (LUNA 2005 p 31) pois ―Apesar de sua caracteriacutestica

sobre-humana sabe-se que o heroacutei haveraacute um dia de ser igualado aos seus os mortais

(Ibidem) Assim o heroacutei traacutegico96

deparando-se com sua fragilidade e efemeridade comum a

todos os mortais luta contra a accedilatildeo das divindades e contra as leis da natureza E satildeo essas

forccedilas sobre-humanas contra as quais sua condiccedilatildeo humana natildeo o permite combater que o

levam ao traacutegico

Aleacutem disso a cena traacutegica realizada perante os olhos dos sobreviventes faz o fomacrboj

(o medo que faz fugir) apoderar-se de todos tementes de que viessem tambeacutem a figurar nessa

grande encenaccedilatildeo dramaacutetica como presas Mas tambeacutem a esup1leoj (a compaixatildeo) acarreta a

todos ao verem aqueles seis companheiros que haacute tanto tempo juntos lutavam pela

sobrevivecircncia e pelo retorno falecerem drasticamente e sem honra alguma A uniatildeo dos

sentimentos proporcionados pelo fomacrboj e pela esup1leoj proporciona aos viajantes passarem

pelo processo cartaacutetico de purificaccedilatildeo pois como nos elucida Aristoacuteteles (Poeacutetica VI

1449b) a kaqarsij soacute pode ser atingida quando fomacrboj e esup1leoj satildeo suscitados

No transcorrer da narrativa Odisseu e os seus soacutecios saem da tenebrosa passagem

entre Cila e Cariacutebde e aportam na ilha do Sol A fim de evitar o grande mal prenunciado

Odisseu sugere afastarem-se da ilha pois bem lembra dos avisos de Tireacutesias e Circe a respeito

dos sofrimentos que passariam e da necessidade que tinham para o proacuteprio bem de deixarem

ilesas as vacas do sol Os demais retrucam e Euriacutecolo como porta-voz acusa Odisseu de

crueldade jaacute que apoacutes tantos enfrentamentos estavam todos muito cansados Sem o apoio

96

Nesse aspecto podemos destacar uma antonomia do heroacutei claacutessico com o heroacutei moderno pois enquanto o

primeiro luta contra forccedilas sobre-humanas deuses e natureza o heroacutei moderno tem seu conflito realizado no

embate contra as forccedilas sociais

104

dos soacutecios restou a Odisseu ficar Todavia o polumhtij percebe que a forccedila superior tenta

arruinaacute-los (XII 295-296) Odisseu jaacute havia avisado a todos em Eeacuteia do perigo que poderiam

enfrentar e ainda faz o mesmo ao chegarem agrave ilha do Sol Mas os companheiros

demonstravam natildeo ter ideacuteia do mal que estava por vir por isso o heroacutei impotildee a todos um

juramento O Laertida faz todos jurarem que por nada viriam a comer vacas ou ovelhas

divinas pois deveriam saciar-se apenas com as iguarias dadas por Circe Assim realizam o

juramento por isso diz Odisseu ―ὣο ἐθάκελ νἱ δ᾽ αὐηίθ᾽ ἀπώκλπνλ ὡο ἐθέιεπνλ97

ou seja

―Como eu dizia imediatamente eles juraram como eu recomendava(Odisseacuteia XII 303)

Assim conforme o filho de Laertes propocircs o juramento todos fizeram E logo

apoacutes terem selado o acordo com o juramento todos observam a tempestade que surge

mandada por Zeus Astuto Odisseu compreende o sinal enviado pela divindade e avisa mais

uma vez para que poupem as vacas do Sol para que nenhuma desgraccedila venha ocorrer a eles

Como podemos perceber atraveacutes do juramento e dos avisos o esposo de Peneacutelope teme que

um mal ainda pior venha acontecer pois naturalmente se algum mal vier acarretar seus

companheiros acarretaraacute tambeacutem em males para o proacuteprio heroacutei Por meio das ressalvas e do

juramento Odisseu tenta evitar que seus soacutecios cometam a uAgravebrij e que esta venha como um

miasmoj contaminar a todos os integrantes da nau ou no miacutenimo fazer com que sejam

perdido mais companheiros Ateacute porque a cada soacutecio perdido a jornada de Odisseu torna-se

ainda mais dolorosa tendo que tudo enfrentar sozinho - e esta eacute a justificativa para o seu

temor

Amedrontado pela uAgravebrij que seus soacutecios podem cometer Odisseu avia-os por trecircs

vezes aleacutem do juramento que orienta-os a fazer satildeo eles ainda na Ilha de Circe em Eeacuteia

depois logo ao chegarem na ilha do Sol avisa e pede-lhes o juramento e por uacuteltimo recorda-

os novamente do perigo apoacutes a tempestade lanccedilada por Zeus Apesar de todos os avisos e do

juramento estabelecido os companheiros de Odisseu natildeo suportam e jaacute tendo passado-se um

mecircs da estada na ilha do Sol falta-lhes comida Como vemos a asup1namacrgkh a necessidade

impele-os e entatildeo decidem ir procurar alimento Odisseu percebe o perigo aproximar-se e

ora mas natildeo adianta pois o daimwn age pondo-lhe em sono profundo Euriacutecolo aproveita a

ausecircncia do Laertida e discursa aos demais que morrer de fome eacute pior que morrer navegando

e sugere que faccedilam os sacrifiacutecios e devorem as vacas Diante desse discurso de Euriacuteloco

97

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dehttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D13Acard

3D1 retirado agraves 0803h em 20 de outubro de 2010

105

todos manifestam estar de acordo e devoram as vacas ou seja cometem a uAgravebrij a

desmedida para com um ser divino o Hiperiocircnio Apoacutes a accedilatildeo consumada que os levaraacute ao

traacutegico Odisseu acorda e desespera-se ao perceber que havia dormido e que portanto natildeo

tinha podido controlar seus companheiros a natildeo comerem as vacas O heroacutei queixa-se com

Zeus e com os demais deuses considerando que foi para o seu mal que eles mandaram-lhe o

sono proporcionando que em sua ausacircncia os soacutecios pudessem ter cometido um terriacutevel

crime contra os deuses (Odisseacuteia XII 370-372) Essa conclusatildeo que chega Odisseu ao

acordar demonstra sua percepccedilatildeo da accedilatildeo superior do daimwn como responsaacutevel por todo o

mal que decorreria daquela accedilatildeo para o heroacutei e para os seus companheiros

A percepccedilatildeo do filho de Anticleacuteia estaacute correta ele percebe que o traacutegico aproxima-se

como resultado de uma uAgravebrij feita pelos seus soacutecios mas que foi impulsionada pelas forccedilas

superiores da asup1namacrgkh e do daimwn daiacute decorre o teor traacutegico dessa situaccedilatildeo Na

continuaccedilatildeo da narrativa o Sol recebe a notiacutecia do fim de suas vacas e implora a Zeus e aos

demais poderosos que todos os companheiros do filho de Laertes sejam punidos e ameaccedila de

que se seu desejo natildeo for atendido iraacute ao Hades para conduzir a luz aos mortos Defrontado

com o pedido divino e com a ameaccedila de acabar com a ordem do universo Zeus sinaliza

atender o pedido do Hiperiocircnio A fim de evitar o fim traacutegico que havia previsto o Laertida

tenta inultilmente recompor as vacas mas as carnes mortas gemem e movem-se Nesta cena

em que Odisseu luta contra a accedilatildeo traacutegica tentanto recompor o mal jaacute feito percebemos que a

inutilidade de sua accedilatildeo nos propicia um outro entendimento do traacutegico que eacute a

impossibilidade humana de desfazer o mal de voltar atraacutes Isso porque a accedilatildeo traacutegica eacute

fechada e natildeo se pode alterar sua jornada ou seja uma vez definida pelos deuses o traacutegico

natildeo mais pode ser evitado pelos mortais que natildeo possuem forccedilas para defrontar-se com a

determinaccedilatildeo divina Eacute por isso que apoacutes comerem as vacas por seis dias no seacutetimo com o

bom vento Odisseu e os demais partem e Zeus lanccedila um raio que lanccedila todos os soacutecios da

nau O traacutegico apanha os companheiros de Odisseu mas tambeacutem o contamina (miasmoj)

por isso ele fica sozinho a navegar

Podemos ver que apesar de todos os avisos os companheiros deixam-se levar

pela fragilidade humana ao contraacuterio de Odisseu que com sua coragem e astuacutecia heroacuteica

aleacutem da proteccedilatildeo divina consegue suportar a fome e tantos outros trabalhos que lhe foram

reservados a fim de que possa conseguir a gloacuteria domeacutestica Nesse momento da narrativa

fica-nos clara a diferenccedila do destino de Odisseu em relaccedilatildeo ao dos seus companheiros

Aristotelicamente falando o destino desventuroso destes foi ocasionado pelas suas proacuteprias

106

accedilotildees e natildeo pelos seus caracteres E isso estaacute anunciado desde os primeiros versos da

Odisseacuteia quando o cantor diz que Odisseu natildeo conseguiu salvar seus soacutecios natildeo por sua

culpa jaacute que seus soacutecios vieram a padecer pelas proacuteprias accedilotildees insensatas (Odisseacuteia I 7) A

partir dessa anaacutelise compreendemos bem a aumlmartia aristoteacutelica teorizada no nosso

segundo capiacutetulo que enfatiza o erro como fruto de uma accedilatildeo natildeo da falta de caraacuteter e eacute esse

erro que os leva agrave cataacutestrofe Vejamos o que diz Aristoacuteteles sobre a aumlmartia

ἁμαρτίαν τινά ηῶλ ἐλ κεγάιῃ δόμῃ ὄλησλ θαὶ εὐηπρίᾳ νἷνλ Οἰδίπνπο

θαὶ Θπέζηεο θαὶ νἱ ἐθ ηῶλ ηνηνύησλ γελῶλ ἐπηθαλεῖο ἄλδξεο () ἐμ

εὐηπρίαο εἰο δπζηπρίαλ κὴ δηὰ κνρζεξίαλ ἀιιὰ δη᾽ ἁμαρτίαν μεγάλην ἢ

νἵνπ εἴξεηαη ἢ βειηίνλνο κᾶιινλ ἢ ρείξνλνο98 (Poeacutetica XIII 1453 a 10-

1215-17)

() algum erro daqueles de grande gloacuteria e boa fortuna como o de Eacutedipo e

Tiestes tambeacutem por homens ilustres de famiacutelias tais () a partir da fortuna

para o infortuacutenio natildeo por maldade mas atraveacutes de um grande erro ou como

o que foi dito ou de um (erro) melhor ou ainda pior

Assim como acreditamos ter ficado bem explicitado um dos argumentos que

justificam a diferenccedila entre o destino de Odisseu e dos seus soacutecios levando estes para

cataacutetrofe estaacute na aumlmartia e no descomedimento (uAacutebrij) cometido por eles no momento em

que desrespeitando todos os avisos e ateacute mesmo os proacuteprios juramentos comem as vacas da

divindade Ressaltemos que essa aumlmartia a accedilatildeo errocircnea eacute cometida natildeo por maldade

eou falta de caraacuteter mas pela forccedila da necessidade (asup1namacrgkh) e pelo impulso superior do

daimacrmwn Lembremos que eles jaacute estavam na ilha haacute um mecircs e a comida tinha acabado por

completo (asup1namacrgkh) e que Odisseu desde que chega na ilha constatou a accedilatildeo do daimacrmwn

duas vezes A primeira foi logo quando ele chegou e seus companheiros quiseram descansar

na ilha (XII 296) e a outra ao acordar e perceber que havia sido tomado por um sono

profundo natildeo podendo impedir os companheiros de cometerem a aumlmartia (XII 370-372)

No traacutegico o personagem de sua accedilatildeo muitas vezes natildeo eacute apresentado como

responsaacutevel ou inocente logo esse ―protagonista traacutegico funde a mimesis dupla de ―culpado

e inocente pois eacute o proacuteprio responsaacutevel por seus males ao mesmo tempo em que eacute tambeacutem

sua maior viacutetima Lembremos ―que sofram uma sorte querida pelos deuses que paguem pelos

98

Os destaques satildeo nossos Texto disponiacutevel em httpwwwhs-

augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante04Aristotelesari_poi2html agraves 2035hs de 17 de julho de

2010

107

erros dos antepassados ou que paguem por sua proacutepria imprudecircncia haacute sempre neles uma

parte de inocecircncia (ROMILLY 2008 p 175) Isso eacute bem ilustrado com a situaccedilatildeo dos

companheiros de Odisseu jaacute que ao comeram as vacas do Sol fazem-nos perceber certa

inocecircncia pois foram levados pela sua fragilidade humana neste caso bem simbolizada pela

fome E esse choque de papeacuteis leva-nos a sentir piedade e temor como tambeacutem de termos

empatia para com eles Por isso para Romilly (2008) a accedilatildeo do heroacutei mesmo numa tentativa

boa ou maacute volta-se contra ele mesmo daiacute decorre sua defesa de haver sempre uma inocecircncia

no personagem traacutegico alimentando mesmo na queda o seu heroiacutesmo

Para entendermos ainda mais essa accedilatildeo traacutegica que inclusive diferencia os

destinos acima referidos recordemos que no capiacutetulo anterior expusemos a chamada ―dupla

causalidade traacutegica defendida por Romilly (2008) Dupla causalidade esta que apesar de

alicerccedilar as trageacutedias jaacute estava ―presente em Homero (Romilly 2008 p 172) Nessa ―dupla

causalidade o traacutegico decorre pelas accedilotildees dos proacuteprios personagens ou pela accedilatildeo do daacuteimon

daimacrmwn ou ainda mais elas podem coexistir sem se anularem e sem nenhuma contradiccedilatildeo

Essa accedilatildeo da ―dupla causalidade adequa-se perfeitamente agrave circunstacircncia das Vacas do Sol

pois nela observamos tanto a accedilatildeo superior do daimacrmwn como tambeacutem o traacutegico decorrendo

da proacutepria accedilatildeo humana a aumlmartia A primeira pode ser exemplificada quando Odisseu

logo percebe sua accedilatildeo convencendo-se de que um daimacrmwn tentava arruinaacute-los (XII 296) Jaacute a

segunda a aumlmartia exemplificamos a partir da descomedida atitude que os soacutecios de

Odisseu fizeram ao comer as vacas do Sol apesar dos avisos de Tireacutesias e Circe repassados

por Odisseu e do juramento realizado

Assim levados pela ―dupla causalidade traacutegica todos os companheiros padecem e

Odisseu navega sozinho durante nove dias ateacute que no deacutecimo chega agrave Ogiacutegia na ilha de

Calipso Como sabemos todas essas erracircncias de Odisseu estatildeo sendo narradas aos Feaacutecios

que tudo ouvem atentamente E pelo fato de a narrativa natildeo ser linear essa estada do heroacutei

em Ogiacutegia remete-nos ao Canto I e dura ateacute o V quando ele numa balsa feita a proacuteprio

punho parte de laacute para a Feaacutecia Contudo eacute mais precisamente no Canto V que temos a

narraccedilatildeo das lamuacuterias de Odisseu durante essa estadia com Calipso jaacute que seu anseio eacute o

mesmo de sempre retornar ao lar Intercedendo por seu protegido Atena jaacute havia desde o

Canto I cobrado de Zeus permitir que a vontade do heroacutei fosse atendida

Eacute por isso que no Canto V Hermes enviado por Zeus vai falar com Calipso para

que ela permita ao pai de Telecircmaco partir O mensageiro comparando-o com os demais

heroacuteis que combateram em Troacuteia define-o como o heroacutei mais sofrido (V 105) Hermes

108

reforccedila ainda que apesar de todo o sofrimento pelo qual Odisseu passou o seu destino exige

seu retorno por isso mesmo indignada Calipso permite o retorno do esposo de Peneacutelope

ajudando-o ainda com bons conselhos Hermes entatildeo parte e a deusa vai ao heroacutei contar-lhe

o ocorrido poreacutem encontra-o na praia aos prantos Leiamos

ηὸλ δ᾽ ἄξ᾽ ἐπ᾽ ἀθηῆο εὗξε θαζήκελνλ νὐδέ πνη᾽ ὄζζε

δαθξπόθηλ ηέξζνλην θαηείβεην δὲ γιπθὺο αἰὼλ

λόζηνλ ὀδπξνκέλῳ ἐπεὶ νὐθέηη ἥλδαλε λύκθε

() πόληνλ ἐπ᾽ ἀηξύγεηνλ δεξθέζθεην δάθξπα ιείβσλ

99

(OdisseacuteiaV 151-153 158)

Ela o encontrou sentado na margem em um

rumor de laacutegrimas ele derramava a doce vida

lamentando o retorno jaacute que a ninfa natildeo mais o agradava

()

Olhava fixo para o alto mar infecundo derramando laacutegrimas

Atraveacutes da citaccedilatildeo percebemos os sofrimentos que Odisseu sente apesar de poder

desfrutar do leito de uma deusa todos os dias bem como da eternidade Descontente o heroacutei

ansiava apenas o seu retorno Assim perante tantas dores a deusa avisa-lhe para partir jaacute que

eacute o seu desejo e orienta-o a construir uma jangada para sozinho atravessar o oceano

Odisseu desconfia e estremecido pelo medo pergunta se natildeo eacute nenhuma armadilha ela dizer-

lhe para atravessar o infindo oceano numa jangada Ele sabe que ―o homem sempre corre o

risco de cair na armadilha de suas proacuteprias decisotildees (VERNANT 2008 p 21) Por isso

Odisseu faz a deusa jurar que tem boa intenccedilatildeo e ela o faz pela Terra pelo Ceacuteu e pelo Estige

este que eacute o grande juramento o Mega oAgraverkoj100

Apoacutes ter a deusa realizado o grande juramento Odisseu parte de Ogiacutegia e navega

na pequena jangada por dezessete dias ateacute o momento em que Posiacutedon voltando do paiacutes dos

Etiacuteopes enxerga-o e fica indignado Como vemos o deus natildeo esquece a uAacutebrij cometida por

Odisseu contra seu filho o Ciclope Polifemo por isso uma nova situaccedilatildeo traacutegica seraacute

vivenciada pelo heroacutei Pois ao ver que Odisseu seguia rumo a concretizaccedilatildeo do retorno a

Iacutetaca o deus suscita uma tempestade faz surgir os ventos as nuvens cinzentas a Noite entatildeo

99

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D53Acard3

D262 retirado agraves 1730h em 20 de outubro de 2010 100

Era atraveacutes do Estige que o juramento sagrado dos deuses era realizado Esse Mega oAgraverkoj pode ser melhor

compreendido por meio da Teogonia (2009) entre os versos 386 e 401

109

Euro e Noto chocam-se Zeacutefiro e Boacutereas agem Odisseu estremece e lastima-se mais uma

experiecircncia traacutegica

ὤ κνη ἐγὼ δεηιόο ηί λύ κνη κήθηζηα γέλεηαη

()

ηξὶο κάθαξεο Δαλανὶ θαὶ ηεηξάθηο νἳ ηόη᾽ ὄινλην

Τξνίῃ ἐλ εὐξείῃ ράξηλ Ἀηξεΐδῃζη θέξνληεο

ὡο δὴ ἐγώ γ᾽ ὄθεινλ ζαλέεηλ θαὶ πόηκνλ ἐπηζπεῖλ

() ηῶ θ᾽ ἔιαρνλ θηεξέσλ θαί κεπ θιένο ἦγνλ Ἀραηνί

λῦλ δέ ιεπγαιέῳ ζαλάηῳ εἵκαξην ἁιλαη101

(Odisseacuteia V 299 306-308311-312)

Como eu sou fraco Agora o que me viraacute de pior

()

Trecircs e quatro vezes abenccediloados os Dacircnaos que morreram

na ampla Troacuteia suportando por causa dos Atridas

De qualquer forma eu preferiria seguir o destino e ali morrer

()

Eu obteria honras fuacutenebres e os Acaios divulgariam a minha gloacuteria

Agora sou capturado pelo destino para a morte miseraacutevel

Como vimos no paraacutegrafo anterior Odisseu havia desconfiado da permissatildeo de

Circe de que ele iria ao seu lar retornar Contudo nessa citaccedilatildeo vemos que o heroacutei entra em

conflito com a decisatildeo que ele mesmo havia tomado de sozinho numa jangada atravessar o

oceano Esse conflito gerado por uma escolha imposta ao heroacutei faz-nos recordar Jean-Pierre

Vernant em Mito e trageacutedia na Greacutecia Antiga (2008) de que na trageacutedia o heroacutei vecirc-se

obrigado a tomar uma decisatildeo mesmo diante de um entorno natildeo propiacutecio num mundo

ambiacuteguo e instaacutevel Exemplificando essa consideraccedilatildeo observemos que Odisseu vecirc-se

obrigado a aceitar a proposta de Calipso mesmo porque tudo o que ele fez e sofreu foi para

poder voltar para casa Mas por outro lado essa decisatildeo eacute conflituosa pois seu entorno natildeo eacute

dos melhores pelo contraacuterio teve que aceitar a proposta quase impossiacutevel de numa jangada

partir para atravessar o oceano infinito Para Vernant (2008) eacute esta tomada de decisatildeo muitas

vezes traiccediloeira que aflige o heroacutei tornando-o susceptiacutevel a sua transformaccedilatildeo em sujeito

traacutegico Isso seria a base da trageacutedia pois aquele heroacutei que normalmente na eacutepica tem seu

vigor exaltado e glorificado vecirc-se na trageacutedia como um fraacutegil homem viacutetima de suas

decisotildees cheio de limitaccedilotildees e assombrado pela finitude da vida

101

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D53Acard3

D262 retirado agraves 2032h em 25 de outubro de 2011

110

Entre os versos 299-303 306-312 do Canto V deparamo-nos com essa situaccedilatildeo

tiacutepica da trageacutedia uma vez que Odisseu arrepende-se de sua decisatildeo dizendo inclusive

preferir ter morrido em batalha a vir a padecer em alto mar sem nenhuma honraria nenhuma

fama102

Assombrado pela morte que jaacute vislumbrava a sua frente desespera-se ao ver que iria

perecer miseraacutevel e na escuridatildeo (V 312) Podemos dizer entatildeo que nos versos referidos

temos os dois poacutelos nos quais segundo Vernant (2008) a accedilatildeo traacutegica divide-se a

deliberaccedilatildeo e a consideraccedilatildeo do incompreensiacutevel de forccedilas superiores que prepararam a sorte

seja de sucesso seja de derrota Portanto encontramos na eacutepica homeacuterica um aspecto traacutegico

comum nas trageacutedias o que para Vernant (2008) relaciona-se agrave accedilatildeo que pressupotildee uma

escolha conflituosa

Haviacuteamos dito que por causa da falta de lineariade da narrativa iriacuteamos retomar o

canto V em que melhor eacute descrita a passagem de Odisseu na caverna de Calipso e como se

deu sua jornada ateacute chegar aos Feaacutecios Esta chegada ocorre no Canto VI quando ele seraacute

auxiliado por intermeacutedio de Atena por Nausiacutecaa a filha do rei dos Feaacutecios Alciacutenoo No

Canto VII o heroacutei chega ao palaacutecio e lanccedila-se sobre os peacutes da rainha Arete pedindo-lhe para

enviaacute-lo para casa e o Alciacutenoo concorda Odisseu entatildeo conta-lhes como ali chegou desde a

ilha de Calipso seu naufraacutegio e a ajuda de Nausiacutecaa na Feaacutecia concedendo-lhe roupas No

Canto VIII Odisseu eacute recepcionado pelos Feaacutecios numa assembleacuteia em que decidem a

preparaccedilatildeo do retorno do estrangeiro Depois realizam disputas nos jogos ateacute que Demoacutedoco

comeccedila a cantar sobre o adulteacuterio de Ares e Afrodite e depois sobre o Cavalo de madeira

idealizado por Odisseu para adentrarem na cidade troiana O filho de Laertes natildeo se conteacutem e

chora levando o rei Alciacutenoo a perguntar-lhe o porquecirc do choro incontido e qual a sua origem

A partir daiacute no Canto IX comeccedilam as narrativas de Odisseu sobre todas as suas erracircncias103

102

Essa fala de Odisseu remete-nos a visatildeo de bela morte tatildeo estimada pelos gregos antigos e desenvolvida por

Vernant (1989) em Lrsquoindividu la mort lrsquoamour Nesta obra Vernant exemplifica atraveacutes do Canto XXII da

Iliacuteada o significado da bela morte para os gregos sua importacircncia e o desejo que os heroacuteis tinham de padecer

belamente em campo de batalha Para os valorosos heroacuteis essa morte conservaria-lhes a honra a nobreza a

distinccedilatildeo guerreira por isso era tatildeo almejada A bela morte buscada por Heitor no Canto XXII da Iliacuteada apesar

deste saber que sua morte estaacute proacutexima demonstra-nos que soacute a bela morte pode dar-lhe a gloacuteria impereciacutevel

conservando para sempre seu brilho guerreiro Assim na referida passagem da Odisseacuteia o filho de Laertes diz

preferir ter tido a bela morte combatendo em Troacuteia a padecer em alto mar Isso porque a bela morte conservaria

sua honra sua gloacuteria e seu nome para toda eternidade jaacute a morte no imenso mar ao contraacuterio faria com que ele

morresse esquecido sem honra sem fama E eacute desse morte fatalmente traacutegica que Odisseu luta para escapar

103

Assim Odisseu fala no Canto IX de suas erracircncias na terra dos Ciacuteconos dos Lotoacutefagos ateacute encontrar a dos

Ciclopes Depois no X fala de Eacuteolo Lestrigotildees e Circe No XI sobre a consulta com Tireacuterias no Hades No XII

sobre as Sereias Cila Caribde e os bois do Sol Essa siacutentese eacute importante para que natildeo nos percamos na

narrativa nem muito menos no nosso percurso de anaacutelise que naturalmente acaba tendo como necessaacuterias as

indas e voltas ao longo da Odisseacuteia por sua estrutura natildeo linear

111

Retomemos a anaacutelise do Canto XII quando Odisseu narra aos Feaacutecios a estada

com Calipso e sua partida Partida esta na qual por obra de Posiacutedon tornou-se um naacuteufrago e

foi ajudado por Leucoteacuteia que lhe entrega o seu veacuteu imortal Este veacuteu como ela o orientou

foi amarrado ao peito para que a Morte natildeo viesse pegaacute-lo ateacute que chegasse a terra firme

neste caso a dos Feaacutecios Ainda no Canto XII o cantor Odisseu termina sua narraccedilatildeo e

iniciam-se os preparativos para seu retorno Os cantos subsequentes ao XII mostram o

desenrolar do destino de Odisseu rumo a sua gloacuteria domeacutestica Eacute assim que no Canto XIII

finalmente o nosso heroacutei polutropoj apoacutes tantas voltas retorna a Iacutetaca Como os

proacuteximos cantos mostram o desenrolar e os preparativos para a vinganccedila dos pretendentes

saltaremos nossa anaacutelise para o Canto XXII Neste o filho de Laertes apoacutes ter planejado sua

vinganccedila apresenta-se para os pretendentes (XXII 35-41) fato marcante que levaraacute agrave chacina

dos mesmos sendo punidos por todo empreendimento que fizeram contra o heroacutei e sua

famiacutelia O Laertida diz a eles que ao arruinarem seus bens violentarem suas servas e

pretenderem sua esposa eles natildeo tiveram medo dos deuses nem da vinganccedila dos homens E

logo apoacutes sua apresentaccedilatildeo Odisseu inicia a matanccedila com a ajuda do seu filho e de alguns

servos

Na ocasiatildeo da chacina dos pretendentes temos marcadamente a ideacuteia de castigo

natildeo sendo nenhum deles poupado de suas accedilotildees apesar da estirpe e de suas nobres famiacutelias

Por isso viratildeo todos os pretendentes sobrerbos padecer pelas matildeos de Odisseu No Canto II

Atena transfigurada em Mentor aconselha Telecircmaco a ir buscar notiacutecias do pai e diz para

que ele natildeo se preocupe com os pretendentes anunciando o fim que restava a todos eles

Vejamos

η λῦλ κλεζηήξσλ κὲλ ἔα βνπιήλ ηε λόνλ ηε

ἀθξαδέσλ ἐπεὶ νὔ ηη λνήκνλεο νὐδὲ δίθαηνη

νὐδέ ηη ἴζαζηλ ζάλαηνλ θαὶ θῆξα κέιαηλαλ

ὃο δή ζθη ζρεδόλ ἐζηηλ ἐπ᾽ ἤκαηη πάληαο ὀιέζζαη104

(Odisseacuteia II 281-284)

Agora despreza os pretendentes como tambeacutem teu plano e teu

dicernimento]

eles insensatos nem satildeo justos nem satildeo disscretos105

natildeo sabem eles que a morte e o negro destino

estatildeo proacuteximos para eles a fim de que todos um dia venham perecer

104

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D23Acard3

D267 retirado agraves 1010h em 25 de outubro de 2010 105

Os destaques satildeo nossos

112

Essa citaccedilatildeo eacute bem interessante para nossa discussatildeo do traacutegico na Odisseacuteia pois

bem podemos fazer a diferenccedila entre o destino dos pretendentes de Odisseu e dos seus soacutecios

O Laertida sofre como vimos passando por situaccedilotildees traacutegicas tanto pela accedilatildeo do daimacrmwn

quanto por sua proacutepria accedilatildeo errocircnea - aumlmartia Mas isso natildeo faraacute que ele tenha um destino

traacutegico e sim algumas vivecircncias Por sua vez seus companheiros passam natildeo soacute por

vivecircncias traacutegicas como tambeacutem possuem o destino traacutegico fruto da ―dupla causalidade

Ou seja suas vivecircncias e destino traacutegicos provecircm tanto pela accedilatildeo do daimacrmwn como tambeacutem

de suas proacuteprias accedilotildees

Assim seja atraveacutes de Odisseu ou dos seus companheiros Homero nos daacute uma

formulaccedilatildeo traacutegica mostrando-nos como heroacuteis experienciam o traacutegico em circunstacircncias

(Odisseu) ou definitivamente em seus proacuteprios destinos (os seus soacutecios) Nestes dois casos

podemos ver vaacuterios dos elementos que compotildee uma accedilatildeo traacutegica a aumlmartia o daimacrmwn a

asup1namacrgkh a uAacutebrij a kaqarsij o fomacrboj a esup1leoj a asup1nagnwiquestrisij Elementos estes

que nos mostram o heroacutei em conflito tendo que necessariamente deliberar e deparar-se com

sua finitude e fragilidade comum a todos os mortais Como vimos ao longo deste toacutepico

somados estes elementos levam o heroacutei a vivenciar o traacutegico (Odisseu) ou a concretizaacute-lo em

seu destino (os seus companheiros) Ressalta-se que aristotelicamente natildeo falta caraacuteter a

esses personagens mas uma accedilatildeo eacute que os encaminha para cataacutestrofe

Poderiacuteamos entatildeo pensar que na chacina ocorrida com os pretendentes temos

aspectos traacutegicos por termos o sofrer destes e muitas mortes em torno de cento e dezesseis

contando com as servas que tambeacutem satildeo punidas por terem traiacutedo seu senhor ajudando os

pretendentes Inclusive ao longo da Odisseacuteia natildeo haacute nem de perto uma quantidade tatildeo

grande de representaccedilotildees de mortes Contudo Homero aleacutem de ter-nos deixado o despontar

de representaccedilotildees traacutegicas legou-nos tambeacutem as natildeo traacutegicas mesmo que superficialmente

pudessem assim ser entendidas Deste modo atraveacutes da chacina dos pretendentes Homero

demonstra-nos que o traacutegico natildeo estaacute necessariamente relacionado agrave morte pois se assim

fosse a corte dos cortejantes agrave matildeo de Peneacutelope seria a cena mais traacutegica na Odisseacuteia

Aristoacuteteles nos ensina (Poeacutetica XIII 1453a 5-6) e Homero representa-nos que

para ocorrer o traacutegico natildeo basta encenar sangue dor e mortes haacute de se ter muitos outros

elementos a exemplo do imerecido para suscitar-nos piedade e a empatia para suscitar-nos

o temor Assim a chacina dos pretendentes nem eacute imerecida porque muito fizeram para

merecer tal castigo nem nos proporciona o temor jaacute que natildeo haacute construccedilatildeo de empatia para

com esses personagens Eacute por isso que Aristoacuteteles diz-nos (Poeacutetica 1453a 7-11) que os

113

heroacuteis com seus caracteres intermediaacuterios satildeo os protagonistas ideais do traacutegico ao contraacuterio

dos muito bons que incitam excesso de piedade e dos muito maus que incitam a satisfaccedilatildeo

humana de ver os maus em decadecircncia Por isso as cento e dezesseis mortes narradas no

Canto XXII representam a puniccedilatildeo de todos os males cometidos pelos pretendentes Males

estes resultantes natildeo apenas de uma accedilatildeo errocircnea mas tambeacutem pela falta de caraacuteter por isso

Atena diz que eles satildeo insensatos injustos e portanto agem sem bom-senso (II 281-284)

A situaccedilatildeo da chacina dos pretendentes natildeo nos incita o traacutegico pois pela falta do

imerecido e da empatia natildeo nos provoca o fomacrboj nem a esup1leoj Ao contraacuterio a nossa

tendecircncia em geral eacute de nos satisfazermos com a representaccedilatildeo dessas muitas mortes porque

consideramos que eles tiveram o fim merecido Basta-nos para entendermos melhor essa

afirmaccedilatildeo lembrar da reaccedilatildeo da ama Euricleacuteia ao ver Odisseu em meio aos corpos todo

ensanguentado Ela natildeo consegue conter a alegria sendo necessaacuteria a intervenccedilatildeo do heroacutei

para que ela se contenha (XXII 411-416) visto que natildeo eacute adequado regozijar perante os

mortos E sobre isso jaacute nos orientava Aristoacuteteles (Poeacutetica 1453a) porque um homem muito

malvado passando da felicidade para infelicidade naturalmente natildeo nos suscita nem temor

nem piedade ao contraacuterio satisfazemo-nos por considerarmos que a justiccedila foi feita e que os

pretendentes e as amas pagaram por seus erros Eacute isso que comemora Euricleacuteia e Odisseu

mostrando sua dignidade e saber reprime-a por natildeo ser divino alegrar-se diante dos que jaacute

foram castigados por seus males Lembremos

ἡ δ᾽ ὡς οὖν νέκυάς τε καὶ ἄσπετον εἴσιδεν αἷμα

ἴθυσέν ῥ᾽ ὀλολύξαι ἐπεὶ μέγα εἴσιδεν ἔργον

ἀλλ᾽ Ὀδυσεὺς κατέρυκε καὶ ἔσχεθεν ἱεμένην περ

καί μιν φωνήσας ἔπεα πτερόεντα προσηύδα

ἐν θυμῶι γρηῦ χαῖρε καὶ ἴσχεο μηδ᾽ ὀλόλυζε

οὐχ ὁσίη κταμένοισιν ἐπ᾽ ἀνδράσιν εὐχετάασθαι

τούσδε δὲ μοῖρ᾽ ἐδάμασσε θεῶν καὶ σχέτλια ἔργα

οὔ τινα γὰρ τίεσκον ἐπιχθονίων ἀνθρώπων

οὐ κακὸν οὐδὲ μὲν ἐσθλόν ὅτις σφέας εἰσαφίκοιτο

τῶι καὶ ἀτασθαλίηισιν ἀεικέα πότμον ἐπέσπον106 (Odisseacuteia XXII 407- 416)

Entatildeo a ama Euricleacuteia viu os cadaacuteveres e o imenso sangue

e eacute verdade que atacou a gritar quando viu o grande trabalho

Mas Odisseu a deteve e decerto segurou sua agitaccedilatildeo

106

Texto disponiacutevel em httpwwwhs-

augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_od22html retirado agraves 1500hs de 15 de julho

de 2010

114

Tambeacutem ele mesmo tendo falado alto dirigia-lhe essas palavras aladas

Na alma velha alegra-te mas natildeo grita reprime pois para si

Natildeo eacute da lei divina manifestar-se assim sobre os homens que perecem

Estes o destino dos deuses submeteu como tambeacutem a seus trabalhos

[funestos

Eles natildeo respeitavam nenhum dos homens viventes da terra

nem o mau nem certamente o bom que a eles se apresentou

E por essas accedilotildees insanas perseguiu-lhes o destino indigno

Essa discussatildeo tambeacutem nos faz recordar da explanaccedilatildeo de Junito Brandatildeo em

Homero e seus poemas deuses mitos e escatologia (1998) a respeito de que a Odisseacuteia

instaura na literatura ocidental representaccedilotildees novas Essas satildeo sobre a ideacuteia de culpa

castigo ―em que a hyacutebris a violecircncia a insolecircncia a ultrapassagem do meacutetron () comeccedilam

a despontar (BRANDAtildeO 1998 p 134) Junito Brandatildeo diz ainda que a culpa traacutegica

como jaacute foi dito no capiacutetulo anterior pode ser realizada de duas formas da hamartia em que

forccedilas superiores impulsionam o homem ao erro (a exemplo dos soacutecios de Odisseu no caso

das vacas do Sol) ou atraveacutes do adikon quando o sujeito deliberadamente sem coaccedilatildeo

comete o erro A esta uacuteltima culpa relacionamos os pretendentes pois por deliberaccedilatildeo

proacutepria intentaram contra Odisseu e sua famiacutelia consumindo seu palaacutecio seus bens

pretendendo sua esposa violentando suas servas aleacutem de terem chegado inclusive a planejar

a morte de seu filho Telecircmaco que soacute natildeo ocorreu por causa da proteccedilatildeo de Atena Assim

Odisseu mata-os para que eles e suas accedilotildees funestas sejam definitivamente reparadas e

abolidas

Atraveacutes de todo o percurso de anaacutelise que fizemos neste toacutepico Odisseacuteia

momentos de tragicidade pudemos perceber as valorosas contribuiccedilotildees que Homero legou-

nos tanto para literatura ocidental como mais especificamente para a trageacutedia grega Esta

desenvolveu os elementos traacutegicos jaacute bem traccedilados por Homero Nesses uacuteltimos paraacutegrafos

constatamos tambeacutem duas contribuiccedilotildees baacutesicas que nos lega Homero a representaccedilatildeo de

como os homens satildeo levados a sofrer vivecircncias traacutegicas (Odisseu) ou destinos traacutegicos (os

soacutecios do heroacutei) como tambeacutem uma amostra de como os personagens mesmo

impiedosamente mortos podem natildeo provocar nenhum sentimento de empatia nenhuma

comoccedilatildeo diante de seu sofrer Deste modo fica-nos evidente o que eacute necessaacuterio para termos

um personagem traacutegico pois natildeo basta o sofrimento ele tem tambeacutem que ter dignidade ser

levado pela asup1namacrgkh e pelo daimacrmwn a cometer a aumlmartia e a uAacutebrij e assim suscitando

o fomacrboj e a esup1leoj levar-nos agrave kaqarsij E essa tragicidade como vimos pode ser

acentuda por outros elementos a exemplo da asup1nagnwiquestrisij em que o personagem traacutegico

115

experiencia tudo com plena consciecircncia Essa accedilatildeo traacutegica apresenta-se para noacutes como

incompreensiacutevel proporcionando-nos uma vivecircncia do espiacuterito traacutegico ao observarmos o

homem defrontando-se com a sua fragilidade e limitaccedilatildeo comum aos mortais

32 TRAGICIDADE NO CANTO XI DA ODISSEacuteIA ANTICLEacuteIA AQUILES

AGAMEcircMNON AacuteJAX

Neste toacutepico realizaremos uma aplicaccedilatildeo teoacuterico-analiacutetica do traacutegico a partir do

Canto XI da Odisseacuteia em especial naqueles momentos em que Odisseu encontra-se no Hades

com a sua matildee Anticleacuteia e seus companheiros em Troacuteia Agamecircmnon Aquiles e Aacutejax Como

veremos o Laertida iraacute ao deparar-se com sua matildee tomar conhecimento de sua morte aleacutem

de constatar que seus antigos companheiros em Troacuteia amarguravam um destino funesto

Agamecircmnon sofre pela desonra de sua morte fruto da traiccedilatildeo da esposa com o amante Egisto

Aquiles inconformado diz-se infeliz em reinar sobre mortos preferindo vivo ser um

trabalhador do campo e Aacutejax mesmo apoacutes a morte encontra-se ainda ressentido pelo fato de

ter perdido as armas de Aquiles para Odisseu Consideramos a anaacutelise que segue o cerne do

nosso trabalho tendo em vista as suas relevantes cenas que nos sugerem o espiacuterito do traacutegico

A afirmaccedilatildeo acima natildeo invalida ou diminui o valor dos capiacutetulos e toacutepicos

anteriores ao contraacuterio eles satildeo os responsaacuteveis pela fundamentaccedilatildeo da nossa anaacutelise

proporcionando-nos uma maior percepccedilatildeo do traacutegico e uma mais clara justificativa do porquecirc

da escolha do Canto XI Neste podemos ver Odisseu apoacutes ter sido orientado por Tireacutesias

passar por um processo cartaacutetico atraveacutes da vivecircncia traacutegica que passa junto a Anticleacuteia

Agamecircmnon Aquiles e Aacutejax E assim por meio de sua catarse estaraacute pronto para prosseguir

seu objetivo alcanccedilar um destino glorioso de retorno e consagraccedilatildeo domeacutestica

Odisseu comunicado por Circe que deveria ir ao Hades desespera-se (X 496-

498) por saber que pouquiacutessimos homens tiveram esse privileacutegio Aflito e angustiado o heroacutei

teme natildeo ser capaz de tatildeo grande empreitada Contudo o que o aguarda no Hades eacute ainda

pior deparar-se com a matildee que havia deixado a vida como eiAtildedwlon morta e ouvir todas as

desventuras dos companheiros que antes alcanccedilaram a gloacuteria em Troacuteia

Entendamos como ocorre a chegada de Odisseu ao Hades e como seratildeo seus

encontros traacutegicos O Canto XI da Odisseacuteia inicia-se com Circe agrave beira mar enviando ventos

116

propiacutecios para Odisseu e seus companheiros Nesse momento percebamos que os mortos

comeccedilam a aproximar-se do heroacutei e quem o faz primeiro eacute Elpenor antigo soacutecio e que veio a

padecer Com a visatildeo o heroacutei sente o coraccedilatildeo apertar e vertendo laacutegrimas pergunta como ele

morreu O seu antigo soacutecio apoacutes responder suas perguntas pede para que seja sepultado

erguendo um monumento na beira do mar e fincando o remo que usara Como percebemos

Elpenor sente falta de ter seus ritos fuacutenebres realizados ateacute porque ele que combateu em

Troacuteia e que vagou com Odisseu por terras e mares morreu sem ao menos ter uma laacutepide

para lembrar sua morte Assim para evitar esse imerecido esquecimento de um companheiro

Odisseu logo se compromete a realizar seu desejo

Entatildeo apoacutes Elpenor distanciar-se a matildee do Laertida aparece Essa eacute a primeira

experiecircncia traacutegica que Odisseu tem no Hades ateacute mesmo porque ele natildeo sabia ainda da

morte da matildee jaacute que ao partir para Troacuteia havia deixado-a com vida em Iacutetaca Perante tal

visatildeo o heroacutei potildee-se a chorar pois ao ter aceitado o desafio de ir ao Hades natildeo havia

imaginado que em meio a dolorosa visatildeo das sombras encontraria sua matildee como mais uma

alma dos mortos (XI 87) Mas como ele tinha que primeiro falar com Tireacutesias o Laertida natildeo

deixa a matildee aproximar-se do sangue Para entendermos todo o cenaacuterio com o qual Odisseu

depara-se no Hades logo no iniacutecio do Canto XI em que o deinoj107 apodera-se do heroacutei

apoacutes ele ter feito todos os rituais vejamos o que nos explica Vernant (2000)

Entatildeo percebe que estaacute vindo em sua direccedilatildeo a multidatildeo formada pelos que

natildeo satildeo ningueacutem ouacutetis como ele pretendeu ser Satildeo os sem-nome os

noacutemymnoi os que natildeo tem mais rosto que natildeo satildeo mais visiacuteveis que natildeo

satildeo mais nada Formam uma massa indistinta de seres que outrora foram

indiviacuteduos mas dos quais natildeo se sabe mais nada Dessa massa que desfila a

sua frente sobe um rumor apavorante e indistinto Eles natildeo tem nome natildeo

falam eacute um barulho caoacutetico Ulisses eacute envadido por um medo terriacutevel diante

desse espetaacuteculo que representa a seus olhos e ouvidos a ameaccedila de uma

dissoluccedilatildeo completa num magma disforme sendo sua palavra tatildeo haacutebil

afogada num rumor inaudiacutevel sua gloacuteria sua fama e sua celebridade caindo

no esquecimento (VERNANT 2000 112-113)

Diante desta cena observamos que Odisseu fica rodeado por uma massa de

sombras sem nome sem rosto sem gloacuteria o que logo ao iniacutecio do Canto XI faz com ele ele

seja apoderado pelo sentimentos de foboj E este sentimento de temor inspirado o foboj

que eacute o medo que faz fugir que propicia ao heroacutei o desejo de querer afastar-se da morte

107

Em Retoacuterica das Paixotildees Aristoacuteteles diz que ao depararmo-nos com um parente proacuteximo em situaccedilatildeo

dolorosa o que sentimos natildeo eacute compaixatildeo e sim o deinoj Ou seja experienciamos o terriacutevel o apavorante por

tal fato narrado estaacute muito proacuteximo de noacutes

117

buscando retornar a Iacutetaca para que natildeo venha ser mais uma dessas sombras esquecidas

disformes e indistintas como as que ele se depara no Hades Pois toda a busca que Odisseu

faz desde que saiu de Troacuteia para retornar a Iacutetaca natildeo simboliza apenas o desejo de voltar

para casa e para os seus familiares mas tambeacutem o de fugir impelido pelo foboj da morte

desonrosa que o levaria ao esquecimento e tornaria-o mais um deinoj entre tantos que sem

gloacuteria vagueiam no Hades

E no decorrer da narrativa apoacutes a visatildeo amedrontadora das sombrasTireacutesias entatildeo

aparece e pede-lhe para recolher a espada para que possa provar do sangue e dizer-lhe toda a

verdade Observemos atraveacutes desta fala do adivinho que tudo o que ele vier a contar seraacute

verdade pois tendo Odisseu feito o ritual conforme Circe indicara todas as sombras soacute

poderatildeo falar a verdade para o heroacutei Assim o tebano prenuncia tudo o que o heroacutei teraacute que

enfrentar desde a sua saiacuteda do Hades ateacute o procedimento que deve ter ao chegar em Iacutetaca

Revela-lhe a perseguiccedilatildeo de um deus que atrapalharaacute o seu retorno mas natildeo o impediraacute caso

consiga refrear a sua cobiccedila e dos seus soacutecios diz-lhe ainda que ao chegar em Iacutetaca

enfrentaraacute muitos trabalhos pois homens soberbos destroem seus bens e pretendem sua

esposa Mas Tireacutesias tranquiliza-o com seu destino dizendo-lhe que ao chegar em Iacutetaca daraacute

castigo a todos os pretendentes (XI 118) Tireacutesias avisa ao heroacutei que conseguiraacute evitar o

destino traacutegico apoacutes cumprir as empreitadas reveladas e realizar os rituais sagrados Tudo

isso para que apoacutes vivenciar tantos momentos traacutegicos Odisseu possa enfim viver com sua

famiacutelia tranquilamente ateacute que a doce morte venha pegaacute-lo (XI 134-137)

Contudo sabemos que antes de vir a alcanccedilarr o seu pretenso destino Odisseu teraacute

que enfrentar muitos desafios e muitos momentos traacutegicos Momentos estes que ele enfrentaraacute

ainda no Hades atraveacutes dos encontros que com sua matildee e com alguns companheiros de Troacuteia

Assim tendo Tireacutesias terminado as revelaccedilotildees sobre o destino do heroacutei este pergunta-o o

porquecirc da indiferenccedila de sua matildee que natildeo o fala (XI 140-144) Esse questionamento do

filho de Laertes demonstra-nos sua inconformidade de enfrentar aleacutem da visatildeo da matildee morta

sua indiferenccedila e renuacutencia de falar-lhe O adivinho diz para o heroacutei deixaacute-la aproximar-se do

sangue a fim de que lhe fale tambeacutem soacute a verdade Esse ritual deve ser realizado com toda e

qualquer sombra com a qual Odisseu deseje falar

Como sabemos as pessoas com as quais Odisseu comeccedilaraacute a falar jaacute estatildeo mortas

Por isso gostariacuteamos de elucidar a condiccedilatildeo em que se encontra a consciecircncia dessas pessoas

Para entendermos o niacutevel de coerecircncia e verossimilhanccedila desses diaacutelogos primeiro resaltamos

que como foi avisado por Tireacutesias toda a sombra que Odisseu deixasse aproximar-se do

118

sangue iria falar-lhe apenas a verdade enquanto as demais recuariam Ou seja podemos

compreender logo que toda a sombra que se aproximar de Odisseu falaraacute fatos verdeiros

sem ilusotildees ou inverdades Aleacutem disso eacute significativo sabermos que geralmente ―() no

Hades a psiqueacute o eiacutedolon eacute uma sombra uma imagem paacutelida e inconsistente abuacutelica

destituiacuteda de entendimento sem precircmio nem castigo (BRANDAtildeO 1998 p 146) No

entanto o eiAtildedwlon 108

essa sombra abuacutelica e paacutelida como diz-nos Junito Brandatildeo (1998)

pode recuperar por alguns instantes a razatildeo mediante um complexo ritual como o que foi

detalhadamente descrito no Canto XI da Odisseacuteia (v 20-50) Perante tais consideraccedilotildees

sabemos que aleacutem de falarem a verdade as sombras que dialogam com Odisseu tecircm

recuperadas as consciecircncias e portanto falam com racionalidade pois o filho de Laertes

cumpriu com todos os rituais necessaacuterios

Neste momento em que entendemos a condiccedilatildeo mental do eiAtildedwlon

prosseguimos a nossa anaacutelise Como vimos o esposo de Peneacutelope falara com Tireacutesias e sabia

como proceder para conquistar seu desejado retorno O vate parte e Odisseu interessado em

falar com a matildee deixa ela se aproximar do sangue para poder falar-lhe Anticleacuteia aproxima-

se reconhece o filho instantaneamente e pergunta o que ele faz no Hades e se jaacute havia

retornado a seu paiacutes O eiAtildedwlon de sua matildee natildeo entende o porquecirc de o filho estar ali local

sobre o qual ela afirma ser aos vivos tatildeo difiacutecil de contemplar (XI 156) Odisseu responde-

lhe e pergunta-lhe como estatildeo seu pai seu filho sua esposa seu palaacutecio enfim Sobre a

esposa ela diz que vive em prantos sem fim (XI 182-183) o filho sozinho administra o

palaacutecio e seu pai passou a dormir no inverno junto aos servos e no veratildeo dorme sobre as

folhas no chatildeo vivendo triste agrave espera do filho amado jaacute ela proacutepria veio a falecer de

saudades Vejamos com detalhes o discurso de Anticleacuteia sobre as dores sentidas por ela e

pelo marido

νὔη᾽ ἐκέ γ᾽ ἐλ κεγάξνηζηλ ἐύζθνπνο ἰνρέαηξα

νἷο ἀγαλνῖο βειέεζζηλ ἐπνηρνκέλε θαηέπεθλελ

νὔηε ηηο νὖλ κνη λνῦζνο ἐπήιπζελ ἥ ηε κάιηζηα

ηεθεδόλη ζηπγεξῇ κειέσλ ἐμείιεην ζπκόλ

ἀιιά κε ζόο ηε πόζνο ζά ηε κήδεα θαίδηκ᾽ δπζζεῦ

ζή η᾽ ἀγαλνθξνζύλε κειηεδέα ζπκὸλ ἀπεύξαlsquo109

(Odisseacuteia XI 198-203)

108

Essa palavra deriva do grego eiAtildedwlon que segundo Romizi (2007) significa o aspecto a imagem de um

morto Por isso relaciona-se agrave figura de um fantasma de uma imaginaccedilatildeo de uma sombra 109

Texto diponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D113Acard3

D180 retirado agraves 0718h em 05 de novembro de 2010

119

No uqarto natildeo me matou a arqueira perspicaz

com suas lanccedilas gentis vindo-me de encontro

nem foi doenccedila que me veio para o grande

definhamento abominaacutevel e que o acircnimo dos membros tirou-me

Mas por ti notaacutevel Odisseu a saudade de ti as preocupaccedilotildees contigo

a tua gentileza e doccedilura tudo isso arrebatou minha vida

O heroacutei apoacutes jaacute ter enfrentado tantos desafios e por longo tempo ter ficado errante

por mar e por terra suportando hostilidades de povos diversos depara-se com uma nova

empreitada realizada por poucos de ir ao Hades e voltar No territoacuterio dos mortos depara-se

ainda com uma amedrontadora imagem e barulho sendo rodeado por sombras diversas

paacutelidas sem rosto e sem razatildeo O deinoj apodera-se do heroacutei Mas muito ainda o aguardava e

ele que ao sair de Iacutetaca havia deixado sua matildee viva vem encontraacute-la morta Todavia isso natildeo

eacute suficiente para um heroacutei de tantas dores por isso Anticleacuteia revela-lhe que sua esposa

Peneacutelope vive em pranto infindo e que seu pai Laertes vive plenamente triste e

acabrunhado suportando a velhice E mais ainda ela revela que natildeo a matou a velhice ou a

deusa frecheira mas o proacuteprio filho Odisseu e a saudade que ele deixara O Laertida apesar

de heroacutei eacute um mortal como os demais homens e a estes como diz-nos Vernant (2006) em

Mito e religiatildeo na Greacutecia Antiga as dores e os sofrimentos satildeo comuns E eacute esse caraacuteter

humano que faz dos heroacuteis personagens propensos a do alto do seu heroiacutesmo caiacuterem como

os mortais comuns em tragicidade O traacutegico como vemos ao longo deste trabalho eacute fato

comum na trajetoacuteria de Odisseu apesar de natildeo o ser em seus destinos pois

A Odisseu favorece um destino (moicurrenra) epecial que de fato natildeo estaacute dirigido

para morte mas natildeo obstante o caraacuteter negativo da Moira denuncia-se aiacute

com muita clareza ele deve atravessar graves sofrimentos () Tambeacutem

neste caso o fado trava eacute retributivo ―ainda natildeo ateacute que ndash este eacute o

autecircntico tom da Moira110

()

( OTTO 2005 p 245)

Apesar de estarmos no iniacutecio da anaacutelise fica-nos claro que mesmo diante do

destino fechado de Odisseu a Moicurrenra persegue-o para que antes de gozar de seu prestiacutegio

em Iacutetaca venha passar por muitas dores e sofrimentos Sofrimentos como os que estamos

estudando sua matildee conta-lhe que por culpa so proacuteprio heroacutei Peneacutelope chora infinitamente

seu pai Laertes vive incondicionalmente triste e ela mesma desceu ao Hades por culpa dele

natildeo suportando as saudades Assim tragicamente Odisseu vecirc-se sem o merecer como

culpado pela morte da matildee amada e do sofrer de seu pai e de sua esposa Daiacute decorrer a

110

Os destaques satildeo nossos

120

inocecircncia traacutegica que Romilly diz ser encontrada nas trageacutedias pois ―() mesmo quando nos

satildeo apresentados como culpados mesmo quando suas accedilotildees os arrastam satildeo-no porque o erro

eacute o lote do homem ou porque correspondem a situaccedilotildees que satildeo igualmente o lote do

homem (ROMILLY 2008 p 175)

Assim mesmo sem uma accedilatildeo direta Odisseu eacute responsabilizado pelos

sofrimentos dos seus familiares e principalmente pela morte de sua matildee (Odisseacuteia XI 195-

203) Tal constataccedilatildeo faz-nos recordar de Aristoacuteteles ao afirmar que as cataacutestrofes satildeo mais

traacutegicas quando ocorrem entre familiares

Ὅταν δ᾽ ἐν ταῖς φιλίαις ἐγγένηται τὰ πάθη οἷον ἢ ἀδελφὸς

ἀδελφὸν ἢ υἱὸς πατέρα ἢ μήτηρ υἱὸν ἢ υἱὸς μητέρα ἀποκτείνηι ἢ

μέλληι ἤ τι ἄλλο τοιοῦτον δρᾶι ταῦτα ζητητέον111 (Ibidem XIV

1453b 20-23)

Quando estas cataacutestrofes realizam-se em amizades ou com um irmatildeo que

mata irmatildeo ou um filho que mata o pai ou a matildee que mata o filho ou o

filho que mata a matildee ou quando vecircm ocorrer alguma outra coisa desta

natureza estas coisas tecircm que ser buscadas

Naturalmente entendemos essa concepccedilatildeo aristoteacutelica de que um contexto de

tragicidade entre familiares eou entre personagens que cultivam amizade proporcia maior

comoccedilatildeo e sofrimento sendo portanto ainda mais efetivo para a manifestaccedilatildeo do sentimento

traacutegico Para entendermos tal posiccedilatildeo basta-nos lembrar de Aristoacuteteles dizendo que em meio

agrave dor sofrimentos e mortes aproximamo-nos da cataacutestrofe e portanto do traacutegico (Poeacutetica

1452b 12-14) E esse fato eacute reforccedilado pela fala do porqueiro antigo servo de Odisseu e do

seu pai que no Canto XV ao ser perguntado pelo mendigo (Odisseu) qual o destino de

Laertes e Anticleacuteia responde que Laertes apesar de vivo pede a morte e que Anticleacuteia morta

de saudades teve o pior dos fins

ἡ δ᾽ ἄρετ νὗ παηδὸο ἀπέθζηην θπδαιίκνην

ιεπγαιέῳ ζαλάηῳ ὡο κὴ ζάλνη112

ὅο ηηο ἐκνί γε

ἐλζάδε λαηεηάσλ θίινο εἴε θαὶ θίια ἔξδνη113

111

Texto disponiacutevel em httpwwwhs-

augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante04Aristotelesari_poi2html agraves 2035hs de 17 de julho de

2010 112

Nessa citaccedilatildeo temos trecircs verbos no modo optativo qanoi de qnhskw- morrer eiAtildeh de e)aw- permiter

deixar ocorrer e eAtilderdoi de eAtilderdw- fazer Essa observaccedilatildeo eacute importante pois essa forma lingiacutestica exprime de

modo coerente o contexto da passagem citado Isso porque o optativo exprime a possibilidade o voto o desejo

(MURACHO 2007) Assim o porqueiro exprime seu desejo de que seus conhecidos natildeo tenham a mesma morte

da matildee de Odisseu por isso traduzimos ―que ningueacutem morra ―quenatildeo ocorra ―que natildeo se faccedila

121

(Odisseacuteia XV 358-360)

Ela pereceu pela anguacutestia da morte miseraacutevel e sem gloacuteria

do filho Que ningueacutem meu morra assim que isso natildeo ocorra ao

habitante daqui amigo e que natildeo se faccedila ao que me eacute querido

Atraveacutes da fala de Eumeu o porqueiro percebemos que ele compreende que eacute

muito doloroso morrer indiretamente por culpa de um ente amado E assim diante dessa

morte estruturalmente dolorosa ele pede aos deuses para que ningueacutem em sua ilha ou com

quem ele tenha afeto venha padecer de tatildeo horrorosa morte Padecimento este em que um

filho leva a matildee agrave morte mesmo sem intenccedilatildeo e muito menos sem accedilatildeo direta Odisseu de

forma imerecida torna-se o culpado pelas dores da famiacutelia e pela morte da matildee que foi gerada

pela accedilatildeo da Moicurrenra e do daimacrmwn A riqueza dos detalhes dessa morte somada ao contexto

em que ela foi gerada faz com que esta morte na narrativa seja presentificada aumentando

sua tragicidade Por isso Odisseu natildeo se conteacutem e apoacutes ouvir o relato da matildee que soa para

ele como tortura ele exclama

―ὣο ἔθαη᾽ αὐηὰξ ἐγώ γ᾽ ἔζεινλ θξεζὶ κεξκεξίμαο

κεηξὸο ἐκῆο ςπρὴλ ἑιέεηλ θαηαηεζλεπίεο

ηξὶο κὲλ ἐθσξκήζελ ἑιέεηλ ηέ κε ζπκὸο ἀλώγεη

ηξὶο δέ κνη ἐθ ρεηξλ ζθηῇ εἴθεινλ ἢ θαὶ ὀλείξῳ

ἔπηαη᾽114

(Odisseacuteia XI 205-209)

Dizia eu desejava tecirc-la ao peito mas tendo-a apertado

o espiacuterito da minha matildee morta escapava-me

O acircnimo comandava-me e por trecircs vezes apertei-a

por trecircs vezes tambeacutem como se fosse sombra ou sonho

dos meus braccedilos ela se evolou

Natildeo bastasse todo o relato da matildee pondo-o como responsaacutevel por sua morte

Odisseu para atenuar a dor tenta abraccedilaacute-la por trecircs vezes em vatildeo O heroacutei natildeo compreende

que o corpo anterior de sua matildee agora eacute um eiAtildedwlon mais uma sombra entre tantas outras

vagantes no Hades E esse aspecto do morto intocaacutevel e natildeo palpaacutevel por natureza impede-o

de abraccedilar a matildee e aleacutem do mais isso o faz perceber que aquela eacute uma imagem de sua matildee

de outrora Mas resistindo ao reconhecimento (asup1nagnwiquestrisij) desse fato que sua matildee agora

113

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D153Acard3

D185 retirado agraves 1352h em 10 de novembro de 2010 114

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D113Acard3

D180 retirado agraves 1352h em 10 de novembro de 2010

122

eacute mais um eiAtildedwlon Odisseu tenta agarraacute-la por trecircs vezes Em todas as tentativas

naturalmente ele se frustra por isso questiona agrave matildee o porquecirc daquilo e desconfia se natildeo

seria mais um castigo dessa vez enviado por Perseacutefone enganando-o e iludindo-o atraveacutes de

um fantasma Ela poreacutem explica-lhe que com a morte a carne e os ossos deixam os tendotildees

Isto eacute apoacutes a morte natildeo haacute mais o corpo anterior firme e palpaacutevel o que resta eacute apenas uma

sombra do que foi sombra esta que eacute exatamente o eiAtildedwlon Depois disso Anticleacuteia antes

de partir avisa ao filho que guarde o que ouviu para poder contar em Iacutetaca

Odisseu narra tudo isso aos Feaacutecios que quietos a tudo ouvem E no instante em

que o filho de Laertes pausa seu canto a rainha dos Feaacutecios Arete promete dar-lhe presentes

e Alciacutenoo garante que daraacute o pretenso retorno ao heroacutei Este agradece O rei da Feaacutecia entatildeo

pede para que relate se viu algum dos guerreiros que junto a ele combateu em Troacuteia pois

todos suportariam o sono para ouvi-lo Odisseu diz que se estatildeo dispostos a ouvir ele

continuaraacute a narrativa e assim o faz Diz que narraraacute fatos ainda mais graves pois viu padecer

seus companheiros diletos vitoriosos em Troacuteia O primeiro deles a aproximar-se eacute

Agamecircmnon que bebe do sangue e realiza altos gemidos estendendo as matildeos para Odisseu

Este percebe que o Atrida natildeo tem mais o vigor de antes quando em Troacuteia comandava os

guerreiros e diante dessa imagem o filho de Laertes sente o peito apertar e potildee-se a chorar

(Odisseacuteia XI 391-395)

Na guerra de Troacuteia Agamecircmnon era o detentor do cetro o aAtildenac asup1ndrwIacuten o

senhor dos heroacuteis era o responsaacutevel por comandar todos os gregos Nessa passagem Odisseu

dapara-se com o rei de Micenas o supremo chefe dos aqueus elevando altos gemidos

estendendo as matildeos como em pedido de auxiacutelio tambeacutem sem vigor nos membros Diante da

cena Odisseu com o peito apertado vai agraves laacutegrimas A cena suscita a esup1leoj pois

aristotelicamente sente-se compaixatildeo ao ver-se em semelhante desventura Mas Odisseu

ainda natildeo sabe o porquecirc da morte do Atrida e pergunta se foi obra de Posiacutedon de inimigos na

disputa de mulheres ou na conquista de cidades Agamecircmnon nega essas opccedilotildees e responde

ἀιιά κνη Αἴγηζζνο ηεύμαο ζάλαηόλ ηε κόξνλ ηε

ἔθηα ζὺλ νὐινκέλῃ ἀιόρῳ νἶθόλδε θαιέζζαο

δεηπλίζζαο ὥο ηίο ηε θαηέθηαλε βνῦλ ἐπὶ θάηλῃ

ὣο ζάλνλ νἰθηίζηῳ ζαλάηῳ πεξὶ δ᾽ ἄιινη ἑηαῖξνη

λσιεκέσο θηείλνλην () ἤδε κὲλ πνιέσλ θόλῳ ἀλδξλ ἀληεβόιεζαο

κνπλὰμ θηεηλνκέλσλ θαὶ ἐλὶ θξαηεξῇ ὑζκίλῃ

ἀιιά θε θεῖλα κάιηζηα ἰδὼλ ὀινθύξαν ζπκῶ

123

ὡο ἀκθὶ θξεηῆξα ηξαπέδαο ηε πιεζνύζαο

θείκεζ᾽ ἐλὶ κεγάξῳ δάπεδνλ δ᾽ ἅπαλ αἵκαηη ζῦελ115

(Odisseacuteia XI 409-413416-420)

Mas a mim Egisto causou a morte e o destino desgraccedilado

pois junto com minha esposa maldita ao chamar-me em sua casa para um

banquete]

matou-me do modo como algueacutem mata um boi na manjedoira

Assim morri da morte mais lamentaacutevel ao meu redor os demais

companheiros]

eles mataram continuamente ()

Jaacute presenciaste a morte de muitos guerreiros

seja morrendo em combates individuais ou em batalha poderosa

Mas tendo visto aquilo sofrerias muitiacutessimo no coraccedilatildeo

pois ao redor de crateras e mesas que tinham estado haacute pouco cheias

estaacutevamos deitados no salatildeo com o chatildeo todo ensanguumlentado116

Agamecircmnon ainda completa que mais doloroso foi ouvir os gritos de Cassandra

descendente dos troianos trazida por ele para servir-lhe como escrava Diante da narraccedilatildeo

acima podemos perceber muitos elementos que nos indicam a presenccedila do traacutegico Tanto que

Eacutesquilo (2004) iraacute se inspirar nesse episoacutedio para a composiccedilatildeo de sua trilogia traacutegica a

Oresteacuteia Desse modo o aAtildenac asup1ndrwIacuten apoacutes aacuterdua batalha em Troacuteia aguarda ser recebido

por festas e consagraccedilotildees em sua terra Mas o que o aguarda eacute a morte funesta elaborada por

sua esposa Clitemnestra junto com o seu amante Egisto Por isso o Atrida

conscientemente afirma ―ὣς θάνον οἰκτίστωι θανάτωιrdquo117 isto eacute ―Assim morri com a

morte mais lamentaacutevel (Odisseacuteia Canto XI v 412)

Eacute atraveacutes de passagens como essa que Homero lega aos tragedioacutegrafos o espiacuterito

traacutegico e seu contexto em que os deuses natildeo mais satildeo o siacutembolo da proteccedilatildeo como eacute comum

vermos na eacutepica Eles agora implusionam o homem para o erro este que por sua vez levaraacute o

homem ao traacutegico Pois os deuses ―jaacute natildeo mais iluminam antes seduzem e transviam eacute o

caminho da queda (OTTO 2005 p 259) como seraacute tiacutepico da trageacutedia no seacuteculo V aC

Temos a accedilatildeo da Moicurrenra impelindo o heroacutei para o destino mais catastroacutefico a morte sem

gloacuteria sem nobreza Nos diaacutelogos entre Odisseu com os antigos companheiros em Troacuteia

como eacute o caso do citado com Agamecircmnon percebemos que esses heroacuteis antes tatildeo protegidos

115

Retirado de

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D113Acard3

D40 retirado agraves 1426h em 10 de novembro de 2010 116

Destaque nosso 117

Verso disponiacutevel em

httpwwwhsaugsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_od11html agraves 1533hs ded 12

de julho de 2010

124

pelas divindades como ocorre na Iliacuteada vecircem-se desolados nas matildeos do destino Este guarda

para eles a morte funesta como uacuteltimo grande legado pois ―() eacute o destino da vida natildeo

alcanccedilar tais e tais coisas falhar aqui e ali e finalmente decair () (Ibidem p 258)

Entre os versos 412-413 o Atrida abatido pela morte vergonhosa sugere-nos

mais um elemento traacutegico que Vernant trata em Mito e Trageacutedia na Greacutecia Antiga (2008

p2) o heroacutei deixou de ser soluccedilatildeo para figurar como problema natildeo apenas para si mas

tambeacutem para os outros Assim o aAtildenac asup1ndrwIacuten que antes no comando dos demais heroacuteis

saiu vencedor na guerra de Troacuteia torna-se presa na matildee da esposa e do seu amante

Ao desembarcar em Argos o rei traz a vitoacuteria para os seus e em contrapartida

recebe a morte por matildeos familiares Contudo a morte natildeo atinge apenas o rei que pelo

miasmoj118 de sua famiacutelia e por accedilotildees proacuteprias deveria ser punido mas tambeacutem seus

companheiros que satildeo vitimados sem culpa nenhuma mesmo sem descenderem dos Atridas

nem serem responsaacuteveis pela morte de Ifigecircnia119

Mesmo assim imerecidamente eles que

pensavam ser exaltados ao retornarem agrave paacutetria satildeo tragicamente mortos

O mesmo ocorre com Cassandra pois apesar de natildeo cometer aumlmartia ou

uAacutebrij tem tambeacutem uma morte traacutegica ligada ao aspecto irracional do imerecido Assim

aquele rei que antes solucionava os problemas do seu povo torna-se o culpado pela morte sua

dos seus companheiros e de Cassandra que ele havia trazido como geiquestraj precircmio de guerra

Este distingue o heroacutei dos demais aleacutem de assegurar-lhe a timh120 a honra E para desonra e

humilhaccedilatildeo completa de Agamecircmnon Clitemnestra e Egisto natildeo apenas o matam mas

tambeacutem aniquilam Cassandra Assim natildeo vive nem mais a lembranccedila do heroacutei eacutepico que foi

Agamecircmnon nem o seu geiquestraj simbolizava Ao contraacuterio com a morte de Cassandra e dos

demais fica-nos o siacutembolo do Atrida como o heroacutei traacutegico que acarretou problema para si e

para os demais

Tendo reconhecido sua figuraccedilatildeo traacutegica Agamecircmnon ainda completa que apesar

de Odisseu jaacute ter presenciado todo o tipo de morte ainda assim ―ἀιιά θε θεῖλα κάιηζηα ἰδὼλ

118

Este termo indica a ―contaminaccedilatildeo transcendental que neste caso pode ser exemplificada pela

contaminaccedilatildeo gerada pela famiacutelia Atrida atraveacutes de fatos como por exemplo o Banquete de Tiestes e por isso

seus descendentes contaminados teriam de pagar pelos erros do passado sendo aniquilados 119

Essa referecircncia deve-se ao fato de que Clitemnestra utiliza como justificativa para matar o esposo o fato de

ele ter lhe tirado a querida filha Isso pode ser melhor avaliado atraveacutes de Ifigecircnia em Aacuteulis de Euriacutepedes (2002) 120

Para entendermos a importacircncia da timh para um heroacutei grego conveacutem voltarmos ao iniacutecio do primeiro

capiacutetulo do nosso trabalho em que fazemos um comentaacuterio elucidador a este respeito relacionando-a com

Aquiles na Iliacuteada

125

ὀινθύξαν ζπκῶ ―() ante aquele espetaacuteculo terias sentido piedaderdquo121

(XI 418) Neste

verso encontramos dois fatos que reforccedilam nossa tese A primeira eacute que nesse Canto XI

Odisseu presencia uma espeacutecie de ―espetaacuteculo traacutegico o que pode ser observado atraveacutes dos

detalhes que satildeo dados das cenas em que ocorre a accedilatildeo aleacutem de todos os elementos traacutegicos

como a morte por matildeo parental imerecida inesperada acarretando a desonra do heroacutei enfim

Detalhes esses que apesar de Odisseu apenas estar ouvindo propiciam-lhe uma vivecircncia do

fato traacutegico como se eles estivessem se realizando sob os seus olhos proporcionando-o uma

imagem teatral O proacuteprio narrador neste caso Agamecircmnon ao fazer a descriccedilatildeo de sua

morte refere-se a ela como um ―espetaacuteculo122

Nos versos acima a exemplo de ―Quando nos

visses no meio dos copos e mesas repletas pelo salatildeo a fazer e no soalho a sangueira

escorrendo a riqueza dos detalhes nos proporciona visualizar o narrado como uma imagem

presentificada aos nossos olhos Assim Odisseu como espectador desse ―teatro traacutegico

apieda-se

No iniacutecio do paraacutegrafo anterior dissemos que no verso 418 do Canto XI haacute dois

fatos que reiteram nossa proposta de anaacutelise O primeiro sobre o qual jaacute comentamos refere-

se agrave ―encenaccedilatildeo traacutegica que no Canto XI desenrola-se por meio dos diaacutelogos aos olhos de

Odisseu O segundo diz respeito ao que defendemos desde o iniacutecio deste trabalho sobre o

despertar do sentimento de piedade que seraacute gerado principalmente a partir dos encontros

que o heroacutei tem no Hades O sentimento de esup1leoj como enfatizamos eacute fator importante para

que tenhamos a kaqarjij desde que esteja junto a um outro sentimento que eacute o fomacrboj

(Poeacutetica XIII 1453a 5-6)

Como sabemos a esup1leoj eacute suscitada quando nos deparamos com o imerecido

Relacionando essa assertiva com a anaacutelise do Canto XI da Odisseacuteia percebamos que

Agamecircmnon narra a forma de sua morte de seus companheiros e de Cassandra Mortes estas

que de modo geral relacionam-se ao imerecido123

Portanto entendamos que o Atrida pelo

121

Destaque nosso 122

Esse espetaacuteculo traacutegico ao qual nos referimos e que eacute presentificado neste Canto XI foi responsaacutevel por

influenciar os autores traacutegicos do seacuteculo V a exemplo de Eacutesquilo (2004) Este inspirado na cena traacutegica jaacute

iniciada por Homero produziu as suas na trageacutedia Vejamos tambeacutem a riqueza dos detalhes jaacute que a morte natildeo

era encenada e sim anunciada pelo coro

ὤκνη κνη θνίηαλ ηάλδ᾽ ἀλειεύζεξνλ

δνιίῳ κόξῳ δακεὶο

ἐθ ρεξὸο ἀκθηηόκῳ βειέκλῳ

(Agamecircmnon v 1513 -1520)

Oacutemoi oacutemoi Neste indigno repouso

Tendo sido dominado sob trapaceira sorte

Pela matildeo com arma cortante de ambos os lados

123

Para podermos compreender melhor o sentido traacutegico dessas mortes seria necessaacuterio um estudo mais

especiacutefico da trageacutedia Agamecircmnon (2004) que neste momento natildeo eacute o nosso objetivo

126

fato de carregar desde o seu nascimento uma maacutecula transcendental (miasmoj) de sua

famiacutelia estaacute fadado a cometer a aumlmartia124 que por sua vez iraacute levaacute-lo agrave morte imerecida

E Odisseu sente compaixatildeo ao ver o seu comandante em Troacuteia vigoroso rei em choro

incontido Jaacute em relaccedilatildeo agrave morte dos seus companheiros e de sua escrava Cassandra esse

imerecido eacute bem mais claro de entender jaacute que eles nada fizeram para merecer esse triste fim

pois ateacute mesmo a relaccedilatildeo que tinham com o rei era de subordinaccedilatildeo Por isso a descriccedilatildeo

dessas imerecidas mortes eacute traacutegica inspirando em Odisseu a esup1leoj

Deste modo para reiterar nossa defesa de que nos diaacutelogos do Canto XI Odisseu

iraacute experienciar a kaqarjij inspirado pelo fomacrboj e pela esup1leoj consideramos importante

recorrermos agrave Retoacuterica das Paixotildees de Aristoacuteteles (2003) Assim vejamos primeiramente o

que Aristoacuteteles (2003) define sobre a esup1leoj E discorrendo sobre a compaixatildeo o filoacutesofo

daacute-nos tambeacutem uma informaccedilatildeo de que para sentirmos a piedade temos que estar vulneraacuteveis

a pensar que o mal com o qual nos compadecemos tambeacutem pode ocorrer conosco ou com

quem amamos

ἔζησ δὴ ἔιενο ιύπε ηηο ἐπὶ θαηλνκέλῳ θαθῶ θζαξηηθῶ ἢ ιππεξῶ ηνῦ

ἀλαμίνπ ηπγράλεηλ ὃ θἂλ αὐηὸο πξνζδνθήζεηελ

ἂλ παζεῖλ ἢ ηλ αὑηνῦ ηηλα θαὶ ηνῦην ὅηαλ πιεζίνλ θαίλεηαη δῆινλ γὰξ ὅηη

ἀλάγθε ηὸλ κέιινληα ἐιεήζεηλ ὑπάξρεηλ ηνηνῦηνλ νἷνλ νἴεζζαη παζεῖλ ἄλ ηη

θαθὸλ ἢ αὐηὸλ ἢ ηλ αὑηνῦ ηηλα θαὶ ηνηνῦην θαθὸλ νἷνλ εἴξεηαη ἐλ ηῶ ὅξῳ

ἢ ὅκνηνλ ἢ παξαπιήζηνλ125

(Retoacuterica das Paixotildees II 8 13-18)

Seja entatildeo a compaixatildeo certo pesar por um mal que se mostra destrutivo ou

penoso e atinge quem natildeo o merece mal que poderia esperar sofrer a

proacutepria pessoa ou um de seus parentes e isso quando esse mal parece

iminente com efeito eacute evidentemente necessaacuterio que aquele que vai sentir

compaixatildeo esteja em tal situaccedilatildeo que creia poder sofrer algum mal ou ele

proacuteprio ou um de seus parentes ()126

(ARISTOacuteTELES 2003 p53)

Buscando ampliar nossa concepccedilatildeo de compaixatildeo resolvemos procurar em

Retoacuterica das Paixotildees informaccedilotildees complementares que viessem auxiliar-nos a entender os

124

Para compreendermos melhor a aumlmartia cometida por Agamecircmnon devemos recorrer a duas trageacutedias

Agamecircmnon o primeiro livro da Oresteacuteia (2004) e Ifigecircnia em Aacuteulis (2002) Atraveacutes dessas obras observamos

que o Atrida derramou sangue parental de sua proacutepria filha daiacute a aumlmartia Contudo sabemos que sua accedilatildeo

foi necessaacuteria pois como puniccedilatildeo de Aacutertemis por ele querer medir-se com ela no arco se ele natildeo sacrificasse a

filha natildeo haveria ventos para os gregos alcanccedilarem Troacuteia ficando presos numa ilha 125

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100593Abook3D23Achapter

3D83Asection3D2 retirado agraves 1503h em 25 de novembro de 2010 126

(FONSECA 2003 p 53)

127

pressupostos do traacutegico presentes na Poeacutetica nossa base de estudo E nesse percurso de

ampliaccedilatildeo do entendimento sobre a esup1leoj obtemos mais uma informaccedilatildeo relevante que vem

reiterar nosso trabalho Ou seja segundo Aristoacuteteles (2003) aleacutem do fato de sentirmos

compaixatildeo diante de um fato doloroso e imerecido temos tambeacutem de estar vulneraacuteveis a

passar pelo mesmo padecimento soacute assim efetivamente o sentimento de compaixatildeo pode ser

suscitado Odisseu entatildeo tanto se depara com um sofrer imerecido como tambeacutem estaacute

vulneraacutevel a passar por tudo o que o Atrida passou pois ele tambeacutem apoacutes longos anos

distante retornaraacute ao seu lar podendo sim vir a encontrar sua morte armada pela esposa

junto com um amante Tanto estaacute susceptiacutevel a passar pelo mesmo que o rei de Argos alerta-o

para ter cuidado com a esposa natildeo lhe contando seus planos pois apesar de acreditar que

Peneacutelope natildeo seria capaz de tal ato diz que natildeo se pode confiar nas mulheres (XI 441-456)

Essa vulnerabilidade de Odisseu a vir a ser traacutegico como Agamecircmnon fica bem claro quando

no Canto XIII ao chegar em Iacutetaca as primeiras palavras que diz eacute em relaccedilatildeo a seu destino

que seria semelhante ao de Agamecircmnon caso natildeo fosse a proteccedilatildeo de Atena Pois assim

como o Atrida ele tambeacutem poderia ter a morte aguardando-lhe em casa o primeiro por causa

da esposa e do amante e no caso de Odisseu por accedilatildeo planejada dos pretendentes

Outra informaccedilatildeo tambeacutem nos eacute importante a respeito do suscitar da piedade Eacute

que para Aristoacuteteles (2003) noacutes nos compadecemos dos conhecidos ou dos nossos

semelhantes seja em idade seja em haacutebito enfim E nessa condiccedilatildeo Odisseu tambeacutem estaacute

inserido pois sabemos que eles natildeo satildeo apenas conhecidos como tambeacutem havia certa

semelhanccedila entre eles Aleacutem do mais a experiecircncia traacutegica do filho de Anticleacuteia e seu

compadecimento justificam-se tambeacutem porque ―com Agamecircmnon seu comandante-em-chefe

Odisseu se comportava com infaliacutevel lealdade () respeitava a hierarquia e reconhecia em

Agamecircmnon o portador do cetro (BEYE 2006 p 66) Essa relaccedilatildeo de companheirismo

entre Agamecircmnon e Odisseu pode ser observada tambeacutem na Iliacuteada Tatildeo marcante foi essa

relaccedilatildeo que ciente disso Eacutesquilo faz tambeacutem uma referecircncia a esse companheirismo em

Agamecircmnon (2004) Por isso ao desembarcar em Argos o Atrida saudado pelo coro por sua

volta relembra os enfrentamentos em Troacuteia e dos falsos homens com exceccedilatildeo de Odisseu Eacute

o que vemos no livro I Agamecircmnon da Oresteacuteia (2004) entre os versos 832-843

παύξνηο γὰξ ἀλδξλ ἐζηη ζπγγελὲο ηόδε

θίινλ ηὸλ εὐηπρνῦλη᾽ ἄλεπ θζόλνπ ζέβεηλ

δύζθξσλ γὰξ ἰὸο θαξδίαλ πξνζήκελνο

ἄρζνο δηπινίδεη ηῶ πεπακέλῳ λόζνλ

ηνῖο η᾽ αὐηὸο αὑηνῦ πήκαζηλ βαξύλεηαη

θαὶ ηὸλ ζπξαῖνλ ὄιβνλ εἰζνξλ ζηέλεη

128

εἰδὼο ιέγνηκ᾽ ἄλ εὖ γὰξ ἐμεπίζηακαη

ὁκηιίαο θάηνπηξνλ εἴδσινλ ζθηᾶο

δνθνῦληαο εἶλαη θάξηα πξεπκελεῖο ἐκνί

κόλνο δ᾽ δπζζεύο ὅζπεξ νὐρ ἑθὼλ ἔπιεη

δεπρζεὶο ἕηνηκνο ἦλ ἐκνὶ ζεηξαθόξνο

εἴη᾽ νὖλ ζαλόληνο εἴηε θαὶ δληνο πέξη127

ιέγσ (Eacutesquilo Agamecircmnon 832-843)

Poucos entre os homens tecircm congecircnito

Respeito sem inveja por amigo fausto

Maleacutevolo veneno sentado no coraccedilatildeo

Duplica o mal de quem dela adoece

Eacute oprimido por seu proacuteprio sofrimento

E pranteia ao ver alheia prosperidade

Ciente eu diria pois bem conheccedilo

O espelho social imagem de sombra

Satildeo aparentes os beneacutevolos comigo

Soacute Odisseu que invito navegou

Foi sob o jugo o meu pronto parceiro

Fale eu dele morto ou ainda vivo128

Atraveacutes dessa passagem percebemos que toda a relaccedilatildeo construiacuteda entre Odisseu

e Agamecircmnon intensifica seu compadecimento para com o Atrida E isto foi aproveitado

tambeacutem por Eacutesquilo (2004) na elaboraccedilatildeo do primeiro livro da Oresteacuteia Assim verificamos

que Homero legou aos tragedioacutegrafos a essecircncia do traacutegico como procuramos demonstrar

nesta anaacutelise do Canto XI Sabemos de um modo geral que algumas cenas eacutepicas serviram

de inspiraccedilatildeo para as trageacutedias mas no caso do Canto XI temos duas em especiacutefico uma

relacionada aos momentos de diaacutelogo entre Odisseu e Agamecircmnon e a outra do Laertida com

Aacutejax como veremos mais agrave frente E a influecircncia que duas cenas deste canto tiveram para o

surgimento de duas peccedilas Agamecircmnon de Eacutesquilo (2004) e Aacutejax de Soacutefocles (2008)

mostrando o quanto satildeo significativas as imagens traacutegicas que analisamos nesse canto jaacute que

estas produzem o que para muitos eacute o objetivo maior da trageacutedia a kaqarjij Mas isso

veremos com mais acuidade mais a frente por hora continuemos a analisar o texto pela

linearidade da narrativa

Pego por esse destino Agamecircmnon lamenta e ainda inconformado chora pois

jamais pensara que em casa aguardava-o a morte Ao contraacuterio apoacutes os dez anos de Guerra

dos combates dos sofrimentos comuns no campo de batalha da vitoacuteria sobre os troianos

sendo ele o comandante o aAtildenac asup1ndrwIacuten deparou-se com o inesperado destino

127

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100033Acard3D810 retirado agraves

1816h em 15 de outubro de 2010 128

(TORRANO 2004 p161)

129

() ἦ ηνη ἔθελ γε

ἀζπάζηνο παίδεζζηλ ἰδὲ δκώεζζηλ ἐκνῖζηλ

νἴθαδ᾽ ἐιεύζεζζαη ()129

(Odisseia XI 430-432)

Na verdade ele dizia

bem-vindo eu esperava ser para os filhos e para os escravos

em minha volta para casa

Na passagem acima podemos perceber dois fatos importantes o primeiro eacute o

conflito entre o plano humano e o divino o segundo eacute o confronto entre o heroacutei eacutepico e o

traacutegico Entre os versos 430 e 432 observamos que Agamecircmnon diante do grande feito em

Troacuteia espera em casa ser glorificado exaltado pelo povo de Argos e saudado pelos filhos e

pela consorte Ou seja o Atrida conta com a gloacuteria mas o que o espera eacute a morte vergonhosa

Esse conflito decorre do fato de termos dois planos incongruentes um feito pelo homem e

outro pelos deuses Neste caso o homem eacute Agamecircmnon planejando ser exaltado no retorno

da guerra e a divindade eacute a Moicurrenra que planeja sua morte indigna para apagar o miasmoj

da famiacutelia Atrida e a sua aumlmartia ao ter matado mesmo por necessidade a proacutepria filha E

neste caso ―haacute uma consciecircncia traacutegica da responsabilidade quando os planos humano e

divino satildeo bastante distintos para se oporem sem que entretanto deixem de parecer

inseparaacuteveis (VERNANT 2008 p 4) Nessa situaccedilatildeo naturalmente o plano divino se opotildee

levando o homem agrave cataacutestrofe Odisseu a tudo ouve atentamente e percebe que nenhum

homem pode medir-se com o plano divino pois apesar da ideacuteia de que ―a presenccedila divina

ilumina o homem e lhe evita o tropeccedilo (OTTO 2005 p253) sabe-se tambeacutem que ―() tudo

procede das matildeos dos deuses inclusive o traacutegico da vida humana (ibidem p 255)

O outro fato importante citado no iniacutecio do paraacutegrafo anterior diz respeito ao

choque de sua proacutepria figura enquanto heroacutei eacutepico tornando-se heroacutei traacutegico Como sabemos

na Iliacuteada (2009) Agamecircmnon teraacute papel fundamental sendo o chefe dos guerreiros e

comandando as decisotildees tanto que o Canto XI da Iliacuteada eacute dedicado a contar seus grandes

feitos eacute a aristia do Atrida E eacute esse personagem que chega em Argos com todo o seu orgulho

e toda a sua gloacuteria mas ao desembarcar ele jaacute natildeo eacute mais o heroacutei eacutepico passando entatildeo

como vemos em Agamecircmon (2004) a representar o heroacutei traacutegico que encontra a morte nas

matildeos da esposa E nesse diaacutelogo com Odisseu Agamecircmnon deixa evidente o conflito que ele

129

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D113Acard3

D404 retirado agraves 1800h em 15 de outubro de 2010

130

proacuteprio sofreu esperando ser tratado como eacutepico Por isso diz que esperava ser bem-recebido

pelos familiares e pelos servos do palaacutecio (XI 430-434)

Contudo na conversa em que Odisseu tem com o Atrida este deixa-nos perceber

seu conflito pois o que ele pensara ser (heroacutei eacutepico) antepotildee-se com o que ele veio a ser um

heroacutei traacutegico no momento em que desembarca em Argos Isso porque apesar de estarmos

estudando uma eacutepica podemos perceber que a configuraccedilatildeo de Agamecircmnon jaacute na Odisseacuteia eacute

a de um heroacutei de destino traacutegico fato esse que posteriormente Eacutesquilo desenvolveu na

trageacutedia E esse conflito que o proacuteprio Atrida nos expotildee ao esperar em casa ser tratado com

as honrarias do heroacutei eacutepico acentua ainda mais a tragicidade desse personagem refletido na

Odisseacuteia Isso porque atraveacutes da conversa com o Laertida o Atrida mostra a transposiccedilatildeo de

como ele se reconhecia eacutepico e passou a ver-se como traacutegico chegando a exclamar ―ὣς

θάνον οἰκηίζηῳ θανάηῳrdquo130 isto eacute ―Assim morri com a morte mais lamentaacutevel (Odisseacuteia

Canto XI v 412)

Apoacutes ter ouvido como o senhor dos heroacuteis morreu pelas matildeos da esposa e do

amante Odisseu apieda-se e mostra perceber a accedilatildeo do daimacrmwn no destino de Agamecircmnon

por isso fala que Zeus natildeo destinou coisas boas para os Atridas pois Menelau tinha uma

esposa Helena culpada pela morte de muitos homens em Troacuteia e ele tinha Cliptemenstra

que veio ocasionar sua proacutepria morte (Odisseia XI 436-439)

Essa percepccedilatildeo que Odisseu tem da accedilatildeo dos superiores no destino de

Agamecircmnon eacute uma habilidade que em muitos momentos ele nos mostra Tanto que ao

decorrer do toacutepico anterior vimos que ele sempre percebia quando o daimacrmwn agia sobre ele e

seus companheiros Entatildeo assim tambeacutem ele faz com o Atrida exemplificando a accedilatildeo do

daimacrmwn atraveacutes dos feitos de Helena e Clitmenestra Observemos que essa accedilatildeo do divino

pode levar o homem ao traacutegico ou agrave ventura No caso de Agamecircmnon leva-o ao destino

traacutegico no caso de Odisseu como foi visto no toacutepico anterior leva-o agraves situaccedilotildees traacutegicas E

o seu destino soacute natildeo eacute traacutegico por causa da accedilatildeo divina especificamente pela proteccedilatildeo de

Atena E isso o heroacutei de Iacutetaca tambeacutem observa Assim ao desembarcar em sua cidade e ser

avisado pela deusa do perigo dos pretendentes ele diz que se natildeo fosse pelos avisos de

Atena ele teria em casa o destino funesto assim como Agamecircmnon (XIII 383-386)

Na continuidade do diaacutelogo entre Odisseu e Agamecircmnon este pergunta sobre

notiacutecias do filho O esposo de Peneacutelope diz natildeo saber E insistentemente o Atrida repete para

130

Texto disponiacutevel em httpwwwhs-

augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_od11html agraves 1533hs ded 12 de julho de

2010

131

que Odisseu natildeo confie na esposa e tenha cuidado ao retornar pois um grande mal pode estar

aguardando-o E ficam conversando e chorando um por seu destino traacutegico e o outro pelas

situaccedilotildees traacutegicas que ateacute entatildeo vinha sofrendo

A dor manifestada por ambos eacute fruto do enlace traacutegico em que se assemelham um

no destino o outro nas circunstacircncias da vida E assim percebemos a presenccedila do traacutegico na

vida desses personagens Contudo para Odisseu este contato reserva-lhe natildeo apenas o

protagonismo do traacutegico como analisamos no toacutepico anterior mas tambeacutem a experiecircncia do

traacutegico como espectador Pois apesar de o fato natildeo ocorrer aos seus olhos a descriccedilatildeo

detalhada dos fatos torna possiacutevel a visualizaccedilatildeo de todo o ocorrido Aleacutem do mais jaacute nos diz

Aristoacuteteles

ηλ δὲ ινηπλ ἡ κεινπνηία κέγηζηνλ ηλ ἡδπζκάησλ ἡ δὲ ὄςηο

ςπραγσγηθὸλ κέλ ἀηερλόηαηνλ δὲ θαὶ ἥθηζηα νἰθεῖνλ ηῆο πνηεηηθῆο ἡ γὰξ

ηῆο ηξαγῳδίαο δύλακηο θαὶ ἄλεπ ἀγλνο θαὶ ὑπνθξηηλ ἔζηηλ ()131

(Poeacutetica

VI 1450b 18-20)

Assim mesmo sem atores e sem encenaccedilatildeo a trageacutedia por si proacutepria eacute

convincente aleacutem do mais para a montagem mais importante satildeo os

inteacuterpretes do que os poetas

Assim como espectador do traacutegico cantado satildeo suscitados em Odisseu tanto a

esup1leoj como jaacute explicamos assim tambeacutem como o fomacrboj levando-o agrave kaqarsij Para

que compreendamos tal afirmaccedilatildeo assim como fizemos para entender a esup1leoj recorramos

tambeacutem agrave Retoacuterica das Paixotildees para entendermos o fomacrboj Em nosso estudo da Poeacutetica no

segundo capiacutetulo vimos que Aristoacuteteles afirma que o sentimento de temor eacute gerado para com

nosso semelhante (Poeacutetica XIII 1453a 5-6) Entatildeo para que esse sentimento seja melhor

compreendido buscamos na Retoacuterica das Paixotildees um maior esclarecimento sobre o fomacrboj

o que ele significa como ele eacute suscitado enfim Assim Aristoacuteteles (2003) define o fomacrboj

ἔζησ δὴ ὁ θόβνο ιύπε ηηο ἢ ηαξαρὴ ἐθ θαληαζίαο κέιινληνο θαθνῦ

θζαξηηθνῦ ἢ ιππεξνῦ νὐ γὰξ πάληα ηὰ θαθὰ θνβνῦληαη νἷνλ εἰ ἔζηαη

ἄδηθνο ἢ βξαδύο ἀιι᾽ ὅζα ιύπαο κεγάιαο ἢ θζνξὰο δύλαηαη θαὶ ηαῦηα ἐὰλ

κὴ πόξξσ ἀιιὰ ζύλεγγπο θαίλεηαη ὥζηε κέιιεηλ132

(Retoacuterica das Paixotildees II 5 21-25)

131

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100553Asection3D1450b

retirado agraves 0900h em 18 de outubro de 2010 132

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100593Abook3D23Achapter

3D53Asection3D1 retirado agraves 2012h em 15 de outubro de 2010

132

Seja entatildeo o temor certo desgosto ou preocupaccedilatildeo resultantes da suposiccedilatildeo

de um mal iminente ou danoso ou penoso pois natildeo se temem todos os

males por exemplo o de que algueacutem injusto ou de espiacuterito obtuso mas sim

aqueles males que podem provocar grandes desgostos ou danos e isso

quando natildeo se mostram distantes mas proacuteximos e iminentes133

(ARISTOacuteTELES 2003 p31)

Pela definiccedilatildeo observamos que o fomacrboj eacute suscitado por um mal que

injustamente acarreta danos graves a uma pessoa e aleacutem do mais aparece na iminecircncia de

ocorrer tambeacutem para outrem - assim este veraacute em si surgir o fomacrboj Aristoacuteteles (2003)

completa ainda que satildeo temiacuteveis os danos sem soluccedilatildeo gerados por forccedila superior e que soacute

tememos por aquilo que tambeacutem podemos vir a sofrer Aleacutem disso o temor surge quando o

ouvinte presencia o sofrimento de algueacutem mais forte superior ou semelhante a ele Explica-

nos Aristoacuteteles

ὥζηε δεῖ ηνηνύηνπο παξαζθεπάδεηλ ὅηαλ ᾖ βέιηηνλ ηὸ θνβεῖζζαη αὐηνύο ὅηη

ηνηνῦηνί εἰζηλ νἷνλ παζεῖλ (θαὶ γὰξ ἄιινη κείδνπο ἔπαζνλ) θαὶ ηνὺο

ηνηνύηνπο δεηθλύλαη πάζρνληαο ἢ πεπνλζόηαο θαὶ ὑπὸ ηνηνύησλ ὑθ᾽ ὧλ νὐθ

ᾤνλην θαὶ ηαῦηα ltἃgt θαὶ ηόηε ὅηε νὐθ ᾤνλην (Retoacuterica das Paixotildees II 5

8-12)

Assim quando eacute melhor que os ouvintes sintam temor eacute preciso pocirc-los nessa

disposiccedilatildeo de espiacuterito dizendo-lhes que podem sofrer algum mal pois

outros mais fortes que eles sofreram e mostrar-lhes que pessoas como eles

sofrem ou sofreram por parte de que natildeo imaginavam essas provaccedilotildees e em

circunstacircncias que natildeo esperavam (p 35)

Diante das definiccedilotildees e explicaccedilotildees acima podemos sugerir entatildeo que o fomacrboj eacute

suscitado em Odisseu atraveacutes do canto de Agamecircmnon tendo em vista que o Laertida eacute

colocado a defrontar-se com um grande mal imerecido injusto que ao mesmo tempo

aparece-lhe iminente jaacute que ele pode vir a passar pelo mesmo quando voltar a Iacutetaca Aleacutem

disso esse mal eacute sofrido por um superior que padeceu de um mal inesperado Assim

constatamos que Odisseu aleacutem de ser inspirado pela compaixatildeo (esup1leoj) tambeacutem o eacute pelo

temor (fomacrboj) podendo desta forma chegar agrave kaqarsij dos seus sofrimentos (Poeacutetica VI

1449b 24-28)

No Canto XI da Odisseacuteia por meio do diaacutelogo de Odisseu e Agamecircmnon no

Hades percebemos o traacutegico circundar a vida dos dois personagens O primeiro visualiza

como um espectador traacutegico a dolorosa e indigna morte do Atrida atraveacutes de sua narraccedilatildeo

133

(Trad FONSECA 2003 P31)

133

Essa visualizaccedilatildeo do traacutegico permite que em Odisseu sejam suscitados o fomacrboj e a esup1leoj

que o levam agrave kaqarsij ou seja a purificaccedilatildeopurgaccedilatildeo de todos seus padecimentos Jaacute em

relaccedilatildeo a Agamecircmnon percebemos atraveacutes da narraccedilatildeo que ele mesmo faz de sua morte que

ele natildeo eacute mais um heroacutei eacutepico como jaacute fora na Iliacuteada (2009) e sim bem mais proacuteximo do

heroacutei traacutegico atraveacutes do qual Eacutesquilo (2004) desenvolveu na trageacutedia Heroacutei esse envolto com

os elementos mais comuns de tragicidade o imerecido injusto aumlmartia a uAacutebrij a accedilatildeo

do daimacrmwn fazendo surgir a esup1leoj e o fomacrboj para desencadear na kaqarsij

No transcorrer da conversa lamuriosa entre Odisseu e o Atrida aparece o

eiAtildedwlon de Aquiles O Pelida questiona ao filho de Laertes o porquecirc dessa nova empreitada

e principalmente porque teve que ser logo no Hades local dos mortos sem consciecircncia em

que haacute apenas os simulacros dos homens que um dia viveram (XI 467-472) Jaacute podemos

perceber por essa fala de Aquiles a condiccedilatildeo miseraacutevel das sombras no Hades em que a

inconsciecircncia supera todas as gloacuterias que tiveram em vida O Laertida responde ao Pelida que

desde que saiu de Troacuteia natildeo retornou agrave paacutetria ao contraacuterio sofre a vagar pelas terras e que

sua visita ao Hades foi para consultar Tireacutesias para que este pudesse orientar-lhe sobre o

retorno para casa Odisseu depois de ter visto a lamentaacutevel situaccedilatildeo de Agamecircmnon espera

enfim ver que pelo menos o Pelida encontra-se glorificado apoacutes a morte por isso exclama

νὐ γάξ πσ ζρεδὸλ ἦιζνλ Ἀραηΐδνο νὐδέ πσ ἁκῆο

γῆο ἐπέβελ ἀιι᾽ αἰὲλ ἔρσ θαθά ζεῖν δ᾽ Ἀρηιιεῦ

νὔ ηηο ἀλὴξ πξνπάξνηζε καθάξηαηνο νὔη᾽ ἄξ᾽ ὀπίζζσ

πξὶλ κὲλ γάξ ζε δσὸλ ἐηίνκελ ἶζα ζενῖζηλ

Ἀξγεῖνη λῦλ αὖηε κέγα θξαηέεηο λεθύεζζηλ

ἐλζάδ᾽ ἐώλ ηῶ κή ηη ζαλὼλ ἀθαρίδεπ Ἀρηιιεῦlsquo134

(Odisseacuteia XI 481-486)

Pois ateacute esse momento nunca fui proacuteximo dos Acaios nem ainda

pus o peacute em nossa terra e sempre tenho enfrentado coisas maacutes

Contudo nenhum guerreiro Aquiles eacute mais abenccediloado do que tudo no

passado e no futuro]

Antes quando eras vivo eu e os Argivos honravamo-te tanto quanto aos

deuses]

agora aqui entre os mortos exerces grande poder

Assim sendo natildeo sofra por ter morrido Aquiles

Aquiles o maior e mais temido heroacutei grego na guerra de Troacuteia desceu ao Hades

com o destino que ele mesmo escolhera viver pouco mas ser honrado e glorificado em

134

Texto disponeacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D113Acard3

D440 retirado agraves 1828h em 15 de outubro de 2010

134

campo de batalha135

Eacute por isso que no Canto I da Iliacuteada (2009) ao ter perdido Briseida seu

precircmio de guerra (geraj) ele pede agrave matildee que cobre de Zeus a sua honra a timh pois jaacute que

morreraacute jovem ao menos que tenha uma curta existecircncia poreacutem gloriosa Vejamos o que ele

dissera a sua matildee cobrando a vida curta mas honrada

κῆηεξ ἐπεί κ᾽ ἔηεθέο γε κηλπλζάδηόλ πεξ ἐόληα

τιμήν πέξ κνη ὄθειιελ ιύκπηνο ἐγγπαιίμαη

Ζεὺο ὑςηβξεκέηεο λῦλ δ᾽ νὐδέ κε ηπηζὸλ ἔηηζελ (Iliacuteada I 353-355)

Matildee como me geraste de curta existecircncia

seria justo o Oliacutempio Zeus a minha honra fazer aumentar

aquele que ressoa do alto ceacuteu

O discurso de Odisseu ao encontrar o Pelida mostra que seu desejo foi cumprido

uma existecircncia curta poreacutem gloriosa tanto que o filho de Laertes reforccedila que enquanto

esteve vivo foi honrado como um deus (XI 483) Como vemos Aquiles teve todas as

honrarias em vida sendo inclusive comparado a uma figura divina Assim jaacute que Zeus

concedeu-lhe o destino cobrado (ver Canto I da Iliacuteada) entatildeo eacute de se imaginar que agora

morto Aquiles continua feliz ateacute mesmo porque realiza domiacutenio sobre os mortos Esta razatildeo

faz com que Odisseu entenda que de nada poderia o Pelida se queixar (XI 485-486) Odisseu

apoacutes tanto ter sofrido ao ouvir a desonrosa morte que teve o seu comandante Agamecircmnon

imagina que enfim veraacute um de seus heroacuteicos companheiros satisfeito com a vida e com o

poacutes-morte que teve Vimos que na conversa com o Atrida ele se encheu de esup1leoj e fomacrboj

mas agora com o Pelida pensa ser diferente atenuando todo o seu temor ao ver que um de

seus companheiros tivera a vida e o destino que almejara que eacute desejo de todo o heroacutei ter

gloacuteria e honra tanto em vida quanto em morte Contudo mais uma vez sua expectativa seraacute

desconstruiacuteda e Aquiles responde-lhe

―ὣο ἐθάκελ ὁ δέ κ᾽ αὐηίθ᾽ ἀκεηβόκελνο πξνζέεηπε

κὴ δή κνη ζάλαηόλ γε παξαύδα θαίδηκ᾽ δπζζεῦ

βνπινίκελ136

θ᾽ ἐπάξνπξνο ἐὼλ ζεηεπέκελ ἄιιῳ

135

No primeiro capiacutetulo do nosso trabalho fizemos uma explanaccedilatildeo sobre o destino de Aquiles e a sua escolha

fato que estaacute narrado no Canto I da Iliacuteada (2009) 136

Atraveacutes dos optativos bouloimhn deboulomai ndash desejar preferir e eiAtildeh- infinitivo optativo de eiAcircmi-ser

exprime-se o desejo de Aquiles pois ele bem sabe que natildeo pode ser mais realizado pois seu destino jaacute foi

selado

135

ἀλδξὶ παξ᾽ ἀθιήξῳ ᾧ κὴ βίνηνο πνιὺο εἴε

ἢ πᾶζηλ λεθύεζζη θαηαθζηκέλνηζηλ ἀλάζζεηλ137

(Odisseacuteia XI 487-491)

Desse modo dizia ele imediatamente mudando falou

Natildeo me convenccedila da morte ilustre Odisseu

Pois eu preferiria viver sendo trabalhador de campo para um

Homem ateacute mesmo sem recursos se bem vivo eu estivisse

a ser rei de todos estes cadaacuteveres dos que morreram

Aquiles como mostra a passagem acima mostra-se arrependido da escolha que

fizera em ter uma vida guerreira curta ao inveacutes de uma vida longa e comum Esse discurso

potildee em questatildeo o valor da vida guerreira e toda a sua nobreza por isso Platatildeo considera

perigosas passagens como essas elaboradas por Homero (Repuacuteblica III ndash 386c-d) O Pelida

ao levantar o arrependimento da vida guerreira que tivera potildee em questatildeo os maiores valores

para o mundo grego E essa tomada de decisatildeo que eleva o homem mais tarde ao

arrependimento aflige-no e torna-o um sujeito traacutegico viacutetima de sua proacutepria escolha Por

isso diz-nos Vernant (2008) em Mito e trageacutedia na Greacutecia Antiga que o fato traacutegico

relaciona-se a deliberar tomar decisatildeo vindo desta sua proacutepria escolha todo seu mal daiacute o

fato traacutegico Isso tambeacutem nos lembra a exposiccedilatildeo no capiacutetulo anterior de Romilly (2008) em

A trageacutedia Grega de que o traacutegico implica uma accedilatildeo e esta seja boa ou maacute iraacute sempre trazer

ao heroacutei graves consequecircncias Em decorrecircncia disso a autora acredita na existecircncia de uma

inocecircncia do personagem traacutegico assegurando mesmo apoacutes a cataacutestrofe o seu heroiacutesmo

Aflito por sua proacutepria escolha e viacutetima inocente de sua proacutepria accedilatildeo o Aquiles

com o qual Odisseu depara-se no Hades natildeo eacute mais o heroacutei eacutepico honrado e glorificado

como um deus ele eacute agora se assemelha a um heroacutei traacutegico Naquele instante o Laertida

enxerga em Aquiles o arrependimento comum aos heroacuteis traacutegicos ―βοσλοίμην κ᾽ ἐπάροσρος

ἐὼν θηηεσέμενrdquo (Odisseacuteia Canto XI 489) ou seja ―pois eu preferiria viver sendo

trabalhador do campo mas para o qual natildeo haacute mais soluccedilatildeo pois o destino jaacute foi selado

Sandra Luna (2005) afirma-nos que no Hades Aquiles ―potildee em questatildeo os

valores mais aclamados entre os gregos a honra a nobreza e a riqueza (LUNA 2005 p

182) Valores estes que naturalmente tambeacutem aclamados por Odisseu fazem-no conflitar-se

natildeo apenas em ver Aquiles infeliz mas por vecirc-lo desprezar os valores que distinguem a honra

do guerreiro pela qual ele tanto lutou em Troacuteia Diante do espetaacuteculo inesperado Odisseu vecirc

137

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D113Acard3

D486 retirado agraves 1924h em 16 de novembro de 2010

136

o maior heroacutei grego em Troacuteia preferindo ser um simples trabalhador do campo E esse destino

injusto e imerecido para um heroacutei tatildeo valoroso e distinto faz Odisseu apiedar-se para com seu

semelhante ao mesmo tempo em que tambeacutem sente temor de vir a ter a mesma trajetoacuteria

Todo esse cenaacuterio suscita-lhe o fomacrboj e a esup1leoj sentimentos responsaacuteveis por

proporcionar-lhe a kaqarsij

A respeito de todo esse ―espetaacuteculocenaacuterio traacutegico realizado perante os olhos de

Odisseu queremos esclarecer que estruturalmente haacute dois fatos que permitem-nos essa

interpretaccedilatildeo no Canto XI O primeiro deles eacute a riqueza de detalhes como ilustramos no caso

do diaacutelogo de Odisseu com Agamecircmnon Detalhes esses utilizados como recurso na epopeacuteia

homeacuterica que tambeacutem influenciaram as trageacutedias Ateacute porque sabemos que nas encenaccedilotildees

das trageacutedias gregas as mortes natildeo eram realizadas na frente do puacuteblico cabendo aos

espectadores saber da ocorrecircncia das mortes por outros meios a exemplo da fala do coro Daiacute

a necessidade de detalhes para proporcionar ao puacuteblico o entendimento da accedilatildeo traacutegica

Mas aleacutem dessa riqueza de detalhes para presentificaccedilatildeo da cena narrada temos

no Canto XI outro elemento fundamental para representaccedilatildeo dramaacutetica e que foi alicerce para

as trageacutedias gregas os diaacutelogos Podemos observar que a estrutura do Canto XI eacute baseada nos

diaacutelogos que Odisseu teraacute com as sombras de sua matildee Agamecircmnon Aquiles Aacutejax enfim

Sobre o diaacutelogo Anatol Rosenfeld (1985) em A teoria dos gecircneros diz-nos que eacute atraveacutes

dele que a accedilatildeo dramaacutetica eacute manifestada aleacutem de ser o responsaacutevel por levar a accedilatildeo dramaacutetica

ao conflito Este que por sua vez eacute base para o traacutegico pois o protagonista deve estar em

conflito com algo seja consigo mesmo com os outros ou com o seu destino A necessidade

do conflito para a accedilatildeo traacutegica pode ser ilustrada nos diaacutelogos acima pois como vimos

Agamecircmnon conflitua-se com o destino imposto pelos deuses a morte indigna pelas matildeos da

esposa e Aquiles estaacute em conflito com a decisatildeo de destino que ele proacuteprio fez morrer jovem

em campo de batalha mas que agora preferia viver como ―ἐπάροσρος θηηεσέμενrdquo (XI 489)

ou seja um trabalhador do campo E para aleacutem desses importantes elementos numa

construccedilatildeo dramaacutetica mesmo que esteja sendo analisada sua presenccedila numa eacutepica Aristoacuteteles

diz-nos que o fomacrboj e a esup1leoj podem ser suscitados natildeo soacute atraveacutes da encenaccedilatildeo teatral

Vejamos o porquecirc

δεῖ γὰξ θαὶ ἄλεπ ηνῦ ὁξᾶλ νὕησ ζπλεζηάλαη ηὸλ κῦζνλ ὥζηε ηὸλ [5]

ἀθνύνληα ηὰ πξάγκαηα γηλόκελα θαὶ θξίηηεηλ θαὶ ἐιεεῖλ ἐθ ηλ

137

ζπκβαηλόλησλ ἅπεξ ἂλ πάζνη ηηο ἀθνύσλ ηὸλ ηνῦ Οἰδίπνπ κῦζνλ138

(Poeacutetica XIV 1453b 4-7)

Pois eacute preciso que tendo o mito manifestado-se os ouvintes mesmo sem ver

os trabalhos venham a arrepiar-se e apiedar-se dos acontecimentos eacute o que

sofreria algueacutem ouvindo o mito de Eacutedipo

Assim Odisseu ao presenciar os fatos traacutegicos na vida de seus companheiros se

apieda como tambeacutem sente temor E apoacutes ter-lhe revelado ser infeliz mesmo reinando sobre

os mortos Aquiles diz ser melhor saber notiacutecias do filho e do pai a ficar falando desses

assuntos O Pelida pergunta se o filho Neoptoacutelemo nas batalhas fica agrave frente ou atraacutes e se o

pai Peleu vive ainda honrado junto aos Mirmidotildees Odisseu diz natildeo poder dar notiacutecias de

Peleu mas sobre Neoptoacutelemo diz que o conduziu e que nas assembleacuteias era o primeiro a

falar sempre de modo adequado No discurso soacute perdia para Nestor e Odisseu mas nas

batalhas a todos vencia saindo de Troacuteia sem nenhum ferimento Aquiles alegra-se contudo

o cenaacuterio traacutegico natildeo eacute atenuado apesar da alegria momentacircnea de Aquiles pois ao seu redor

o quadro eacute destoante

αἱ δ᾽ ἄιιαη ςπραὶ λεθύσλ θαηαηεζλεώησλ

ἕζηαζαλ ἀρλύκελαη εἴξνλην δὲ θήδε᾽ ἑθάζηε139

(Odisseacuteia XI 541-542)

Mas as outras sombras dos que foram pegos para baixar a morte

tristes mantiveram-se a narrarem sua infelicidade

Discutimos no segundo capiacutetulo agrave luz de Sandra Luna (2005) que Homero

dissolve as cenas traacutegicas presentes em suas epopeacuteias exemplificando inclusive os

momentos dessa diluiccedilatildeo do traacutegico Contudo atraveacutes do que estamos analisando no Canto XI

da Odisseacuteia percebemos que as cenas traacutegicas satildeo sobrepostas sem atenuante Assim o

Laertida dialoga com Agamecircmnon depois com Aquiles e em cada um desses diaacutelogos

depara-se com a manifestaccedilatildeo do sentimento traacutegico E no fim do diaacutelogo com o Pelida ao

vermos este ter um instante de alegria logo pensamos que haveria uma dissolviccedilatildeo do traacutegico

mas ao contraacuterio a alegria momentacircnea do Pelida contrasta com o quadro de dor e

sofrimento de muitas almas tristes narrando umas para as outras seus proacuteprios infortuacutenios

138

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100553Asection3D1453b

retirado agraves 2035h em 02 de dezembro de 2010 139

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D113Acard3

D538 retirado agraves 2052h em 02 de dezembro de 2010

138

Isso nos mostra a presenccedila marcante da tragicidade no canto XI da Odisseacuteia e que natildeo eacute

dissolvida por atenuantes como banquetes confraternizaccedilotildees soluccedilotildees para o conflito cortes

de cena enfim Recursos atenuantes estes que vimos serem comuns na eacutepica homeacuterica e

inclusive ao longo da proacutepria Odisseacuteia como analisamos no toacutepico primeiro deste capiacutetulo O

que observamos ao lonho dos diaacutelogo eacute o traacutegico mediado em que Odisseu eacute o espectador

Odisseu na continuidade da narrativa ao ter-se deparado com a cena das almas

tristes a lamentarem seu destino observa Aacutejax afastado das outras almas Este aparenta ainda

estar inconformado com a disputa pelas armas de Aquiles da qual foram juiacutezes os filhos dos

troianos e a deusa Palas Atena Contudo Aacutejax natildeo consegue ver que a accedilatildeo do daimacrmwn foi

responsaacutevel por esta decisatildeo por isso ainda alimenta raiva de Odisseu fazendo com que este

imerecidamente sinta-se culpado pelo seu mal Assim o filho de Laertes exclama que

desejaria nunca ter ganho a disputa pelas armas de Aquiles jaacute que essa decisatildeo fez com que

Aacutejax o mais valoroso dos gregos depois de Aquiles viesse a morrer tragicamente (Odisseacuteia

XI 548-551)

Contudo o ressentimento era tatildeo grande para com Odisseu que o Telemocircnio natildeo

percebia que a forccedila superior fizera-o padecer E segundo Walter Friedrich Otto em

Teofania o reconhecimento de que uma forccedila maior levou-o ao traacutegico acaba por enobrececirc-

lo pois ―Por mais que o homem perceba ter cometido um erro e por graves que sejam para si

as consequecircncias isso natildeo o rebaixa enquanto ele reconhece estar nas matildeos da divindade

(OTTO 2006 p 80) Mas Aacutejax natildeo percebe a accedilatildeo do daimacrmwn ao contraacuterio responsabiliza

Odisseu que injustamente sofre a culpa da morte de um antigo e valoroso companheiro Natildeo

bastasse ter sido posto como responsaacutevel pela morte da matildee e pelos sofrimentos de seus

familiares o Laertida tem que carregar o traacutegico fardo do suiciacutedio de Aacutejax

O peso dessa imerecida culpa faz Odisseu lamentar-se por ter ficado com as armas

de Aquiles Entendamos a gravidade do desejo de Odisseu de natildeo ter sido contemplado com

as armas pois a disputa das armas do heroacutei que morria mostrava a distinccedilatildeo do heroacutei que as

herdava daiacute a inconformidade de Aacutejax Imaginemos entatildeo o valor das armas de Aquiles

que naturalmente simbolizaria para o seu herdeiro todo o prestiacutegio do maior heroacutei grego que

combateu em Troacuteia Desse modo as armas de Aquiles muito significavam Por obra divina

elas ficaram com Odisseu aiacute este encontra a grande queixa de Aacutejax Pois como era

considerado o maior depois de Aquiles considerava que ele deveria ser o detentor das armas

do Pelida Mas natildeo eacute o que ocorre Diante do sofrer do companheiro no Hades Odisseu

139

amargura-se desejando inclusive nunca ter ficado com aquelas armas apesar de todo o valor

delas

Ao natildeo reconhecer o desejo divino voltando toda a sua raiva para Odisseu Aacutejax

acaba sendo rebaixado ainda mais por natildeo ter como diz-nos Otto (2006) o ―reconhecimento

do erro que eacute enobrecido pela consciecircncia do divino e isso lhe preserva a grandeza de alma

() (Ibidem) Sem a consciecircncia da accedilatildeo divina Aacutejax culpa Odisseu por todo o seu mal

Sabemos que a partir dessa cena Soacutefocles inspira-se para composiccedilatildeo da peccedila Aacutejax em que

se narra a morte deste Morte esta que ele mesmo efetuou na busca de preservar ainda alguma

gloacuteria depois de ter matado animais pensando que matara os guerreiros gregos como

Agamecircmnon Menelau Odisseu Essa loucura como vemos na peccedila foi-lhe imposta para sua

cataacutestrofe por Atena a fim de proteger os demais de todo o seu oacutedio Mas Aacutejax natildeo se

convence por isso a peccedila iraacute refletir tambeacutem como jaacute o vemos neste Canto XI essa

responsabilidade dada por Aacutejax a Odisseu acusando este como culpado do seu mal140

Assim

culpado imerecidamente o filho de Laertes observa-se como aquele heroacutei traacutegico explicitado

por Vernant (2008) em Mito e Trageacutedia na Greacutecia Antiga que traz o mal natildeo soacute para si

como tambeacutem para os outros

Surpreendido pelo fato de Aacutejax ter-lhe rancor mesmo ali no Hades entre os

mortos Odisseu continua a falar ao Telamocircnio que as armas pelos deuses tornaram-se

malditas por isso que por elas veio a padecer o baluarte dos Aqueus Diz ainda que assim

como sofreram pela morte do Pelida sentiram tambeacutem profundamente a sua morte E mais

uma vez Odisseu tenta fazer com que Aacutejax reconheccedila a accedilatildeo divina e enobrecido por esse

reconhecimento venha a abrandar o coraccedilatildeo Vejamos

αἴηηνο ἀιιὰ Ζεὺο Δαλαλ ζηξαηὸλ αἰρκεηάσλ

ἐθπάγισο ἤρζεξε ηεῒλ δ᾽ ἐπὶ κνῖξαλ ἔζεθελ

ἀιι᾽ ἄγε δεῦξν ἄλαμ ἵλ᾽ ἔπνο θαὶ κῦζνλ ἀθνύζῃο

ἡκέηεξνλ δάκαζνλ δὲ κέλνο θαὶ ἀγήλνξα ζπκόλlsquo

140

Na Odisseacuteia Aacutejax natildeo reconhece ter sofrido pela accedilatildeo divina tanto que Odisseu enfatizaraacute isso vaacuterias vezes

para que ele natildeo lhe tenha oacutedio jaacute que ambos seja para o bem seja para o mal foram viacutetimas do desejo divino

Contudo por termos a leitura da peccedila sabemos que Aacutejax iraacute responsabilizar tanto Odisseu acusando-o de ser o

mais canalha do exeacutercito como tambeacutem a deusa Vejamos o momento em que ele reconhecendo que caiacutera no

traacutegico percebe a accedilatildeo de Atena

ἀιιά κ᾽ ἁ Δηὸο ἀιθίκα ζεὸο ὀιέζξη᾽ αἰθίδεη

140

(Aacutejax 394-403)

Todavia a filha de Zeus

o poderoso deus

atormenta-me para destruiccedilatildeo

140

―ὣο ἐθάκελ ὁ δέ κ᾽ νὐδὲλ ἀκείβεην βῆ δὲ κεη᾽ ἄιιαο

ςπρὰο εἰο Ἔξεβνο λεθύσλ θαηαηεζλεώησλ141

(Odisseacuteia XI 559-564)

Todavia a culpa eacute de Zeus que terrivelmente odiou o exeacutercito

dos guerreiros Dacircnaos ele te colocou o destino funesto

Poreacutem conduzi-te para aqui heroacutei para que possas ouvir a

minha palavra e a minha histoacuteria domina a ira do teu valoroso coraccedilatildeo

Assim eu falava ele nada respondia e caminhou com as outras

almas que haviam morrido para o Eacuterebo

Como percebemos apesar de todas as tentativas de Odisseu de abrandar o rancor

de Aacutejax tudo eacute em vatildeo e este parte sem nada dizer-lhe desprezando o astuto guerreiro Para

entendermos essa reaccedilatildeo de desprezo de Aacutejax para com Odisseu recorremos a Aristoacuteteles

(2003) em Retoacuterica das Paixotildees Para o filoacutesofo o sentimento de desprezo ―() eacute a

atualizaccedilatildeo de uma opiniatildeo acerca do que natildeo parece digno de consideraccedilatildeo () e diz ainda

que ―trecircs satildeo as espeacutecies de desprezo o desdeacutem a difamaccedilatildeo e o ultraje (ARISTOacuteTELES

2003 p7) Assim Aacutejax mostra desprezar Odisseu negando-lhe inclusive a palavra

mostrando-se indiferente para com toda a tentativa de Odisseu de reaproximaccedilatildeo E se

―desprezamos o que natildeo tem valor algum (Ibidem p9) Aacutejax natildeo apenas culpa Odisseu por

todo seu mal como tambeacutem o desdenha e desmerece todo seu valor Desse modo vemos que

o Telemocircnio desconsidera os combates em que juntos trouxeram a gloacuteria para os gregos

como tambeacutem a accedilatildeo conjunta nas empreitadas a exemplo da que os dois fizeram ao lado de

Fenice para convencer Aquiles a voltar a lutar com os gregos (Iliacuteada IX 167-169)

Culpado pela humilhaccedilatildeo e pelo fim da vida de seu companheiro e aleacutem do mais

desprezado por ele mesmo no Hades em que o seu destino jaacute fora selado Odisseu aproxima-

se da representaccedilatildeo do heroacutei traacutegico sem a gloacuteria e sem a honra consagrada ao heroacutei eacutepico

Como todo heroacutei traacutegico o filho de Laertes carrega a culpa pelo seu mal e pelo mal dos

outros mesmo quando foram os deuses que assim determinaram mesmo quando a

necessidade impelia-o a agir mesmo quando tentava agir bem Traacutegico tambeacutem eacute para

Odisseu observar que nem no Hades Aacutejax pocircde ficar bem livrando-se do mal que cercara

sua morte Ao contraacuterio natildeo bastasse o destino traacutegico que os deuses lhe reservaram ele

levou consigo para o Hades todo o rancor e o oacutedio pelo mal que lhe fizeram natildeo podendo

assim ficar em paz e gozar dos gloriosos feitos que fizera em vida Como vemos no Hades

toda a gloacuteria eacute esquecida as conquistas no campo de batalha as honrarias comuns ao heroacutei

141

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D113Acard3

D538 retirado agraves 2214h em 02 de dezembro de 2010

141

eacutepico satildeo apagadas Em vez da honra Odisseu vecirc que para Aacutejax natildeo haacute gloacuteria nem

consagraccedilatildeo eacutepica mas apenas a amargura e o ressentimento do heroacutei traacutegico na escuridatildeo do

Hades

Apoacutes a saiacuteda de Aacutejax Odisseu deseja ver outros mortos Entatildeo vecirc primeiro

Minos o filho de Zeus a distribuir a justiccedila depois vecirc Oriatildeo cercado por feras Tiacutecio tendo

seu fiacutegado devorado por dois abutres Tacircntalo castigado com sede e com fome diante de lago

cheio de aacutegua que seca quando ele vai beber e quando quer comer as frutas satildeo levadas pelo

vento no momento em que ele vai pegaacute-las das aacutervores vecirc Siacutesifo que carrega uma enorme

pedra que cai quando ele alcanccedila o topo do penhasco depois Odisseu vecirc a sombra de

Heacuteracles

O filho de Zeus reconhece-o e fala-lhe entre gemidos dos grandes trabalhos que

enfrentou Chega a associar os seus trabalhos com a nova empreitada de Odisseu (XI 618-

619) pois Heacuteracles teve que natildeo apenas ir ao Hades mas pegar o catildeo e depois devolvecirc-lo

tarefa que fez com ajuda de Atena e Hermes Esse encontro eacute importante pois serve de

imagem alegoacuterica para Odisseu do destino no qual deve espelhar-se O contato que tivera com

seus companheiros em Troacuteia foi suficiente para ele observar que eles natildeo satildeo mais modelos de

vida como eram quando heroacuteis eacutepicos Figurados neste Canto XI como heroacuteis traacutegicos

Odisseu natildeo pode espelhar-se em seus destinos muito menos dos castigados (Tacircntalo Siacutesifo

etc) Deve entatildeo ter Heacuteracles como o protoacutetipo heroacuteico daquele que apesar dos muitos

trabalhos e das vivecircncias traacutegicas veio alcanccedilar no fim da vida a gloacuteria eterna e

recompensado pelos sofrimentos foi morar ao lado dos deuses no Olimpo Depois Heacuteracles

parte

Odisseu permanece ateacute que muitas almas aparecem em tumulto fazendo com que

ele se sinta tomado pelo medo (XI 633) amedrontado de que Perseacutefone enviasse-lhe a cabeccedila

de Goacutergona Impelido pelo fomacrboj no imediato instante Odisseu sobe agrave nau e exorta os

soacutecios a embarcarem para que pudessem logo partir E assim o fazem terminando o Canto

XI

Como pudemos ver ao longo de nossa anaacutelise do Canto XI da Odisseacuteia muitos

satildeo os seus momentos de tragicidade justificando a nossa escolha desse Canto para a anaacutelise

central deste trabalho dissertativo Assim pudemos analisar a configuraccedilatildeo traacutegica do heroacutei

observada a partir de Agamecircmnon Aquiles e Aacutejax E reforccedilando a forte presenccedila traacutegica

contida nesse Canto viemos ter alguns seacuteculos apoacutes a produccedilatildeo dessa epopeacuteia a peccedila

Agamecircmnon primeiro livro da Oresteacuteia de Eacutesquilo como tambeacutem Aacutejax de Soacutefocles A

142

primeira baseada na traacutegica morte do Atrida e em suas graves consequecircncias e a segunda

sobre o suiciacutedio de Aacutejax Ambos os fatos jaacute prenunciados e tragicamente desenvolvidos no

Canto XI da Odisseacuteia

Isso ocorre porque mesmo o heroacutei eacutepico estaacute facilmente propenso agrave uAacutebrij jaacute que

ele ―estaacute sempre numa situaccedilatildeo limite e a areteacute a excelecircncia leva-o facilmente a transgredir

os limites impostos pelo meacutetron suscitando-lhe o orgulho desmedido e a insolecircncia (hyacutebris)

(BRANDAtildeO 1998 p 67) Ou seja inerentemente agrave estrutura do heroacutei seja eacutepico ou traacutegico

encontramos certa disposiccedilatildeo que lhe permite cometer a desmedida esta que por sua vez iraacute

encaminhaacute-lo definitivamente para aumlmartia ndash tornando-o de protagonista eacutepico em um

heroacutei com relevantes semelhanccedilas de um protagonista traacutegico

A tarefa de ir ao Hades e voltar jaacute era para Odisseu considerada impossiacutevel daiacute

seu desespero no momento em que Circe anuncia seu novo trabalho (X 496-498) Contudo

ele natildeo esperava que para acentuar ainda mais essa empreitada ele iria encontrar-se com a

matildee que ele natildeo sabia que morrera e com seus antigos companheiros em estado traacutegico de

insatisfaccedilatildeo com o destino acionado pelos deuses como eacute o caso de Agamecircmnon ou com o

destino escolhido por ele proacuteprio como eacute exemplificado atraveacutes de Aquiles ou ainda como

ocorre com Aacutejax inconformado e rancoroso com Odissseu sobre quem ele descarrega toda a

culpa do seu mal Aqueles valorosos heroacuteis eacutepicos no Hades natildeo passam de sombras de

eiAtildedwlon a vagarem paacutelidas sem consciecircncia sem nome sem honra E no instante em que

tecircm a razatildeo por causa do ritual feito por Odisseu natildeo recordam nada da gloacuteria e das

conquistas que tiveram quando heroacuteis eacutepicos ao contraacuterio restam-lhes apenas a lembranccedila e a

dor dos heroacuteis traacutegicos que se tornaram no final da vida E nesses como vimos o Laertida

natildeo pode espelhar-se pois como diz-nos Sandra Luna (2005)

Natildeo eacute por acaso que no aproveitamento da literatura grega como instrumento de

educaccedilatildeo humanista o heroacutei traacutegico desenha uma trajetoacuteria a ser evitada enquanto

a do heroacutei das epopeacuteias por seus gloriosos feitos mas sobretudo porque consegue

vencer o traacutegico projeta uma imagem a ser emulada Por tudo isso eacute possiacutevel

enquadrar a trageacutedia grega como uma estrateacutegia poeacutetica de racionalizaccedilatildeo do

traacutegico (LUNA 2005 p 383)

Configurados no Canto XI da Odisseacuteia como heroacuteis traacutegicos Agamecircmnon

Aquiles e Aacutejax natildeo mais podem servir para Odisseu como exemplo ao contraacuterio como todo e

qualquer heroacutei traacutegico seus caminhos devem ser evitados Desse modo em Odisseu como

espectador de todo esse cenaacuterio traacutegico satildeo suscitados os sentimentos de fomacrboj e esup1leoj O

primeiro porque todos eles satildeo seus semelhantes e ele estaacute suscetiacutevel a vivenciar o mesmo

143

tendo que portanto procurar fugir142

desses destinos Consequentemente a inspiraccedilatildeo desses

sentimentos levaraacute Odisseu agrave kaqarsij a fim de que tenha a purificaccedilatildeopurgaccedilatildeo desses

males (Poeacutetica 1449b) E apoacutes toda a vivecircncia traacutegica que o leva agrave kaqarsij Odisseu

pode enfim prosseguir purificado em seu caminho de retorno ao lar e da busca da gloacuteria

domeacutestica Pois como ele bem viu no Hades natildeo haacute lembranccedila das eacutepicas vitoacuterias e gloacuterias

resta aos mortos apenas o lamuacuterio pelo destino ingrato e a recordaccedilatildeo da traacutegica morte

Desse modo considerando-se que a kaqarsij como resultado da accedilatildeo traacutegica

constatamos que no Canto XI da Odisseacuteia a kaqarsij realiza-se no momento em que

Odisseu presencia situaccedilotildees traacutegicas de sua matildee e dos seus companheiros assim como

tambeacutem as escuta Assim essa narrativa permeada por elementos traacutegicos como aatildeth Moiordfra

asup1namacrgkh daimacrmwn aumlmartia uAacutebrij fomacrboj esup1leoj e asup1nagnwiquestrisij propicia a Odisseu

ser um espectador do traacutegico atraveacutes do que vecirc e ouve levando-o a kaqarsij Ao longo

deste trabalho pode-se observar a experiecircncia traacutegica vivida por Odisseu como rito de

passagem instrumento para o heroacutei passar pela kaqarsij e assim estar preparado para

finalizar sua jornada em Iacutetaca Com a realizaccedilatildeo da kaqarsij arriscamos a afirmar que

especificamente no Canto XI da Odisseacuteia Homero lega-nos natildeo apenas os germes traacutegicos

(Lesky 2006) mas a primeira representaccedilatildeo de um espectador traacutegico que eacute levado a

kaqarsij Assim tendo vivido e presenciado experiecircncias traacutegicas e tambeacutem tendo

purificado e purgado os sentimentos que foram suscitados com a kaqarsij Odisseu pocircde

seguir seu caminho de retorno a paacutetria- seu objetivo maior desde que saiacutera de Troacuteia

142

Verificar a explicaccedilatildeo dada no segundo capiacutetulo sobre fomacrboj que etimologicamente indica o medo que faz

fugir

144

Consideraccedilotildees finais

Em nosso trabalho dissertativo ―Tragicidade no Canto XI da Odisseacuteia Anticleacuteia

Agamecircmnon Aquiles Aacutejax analisamos o teor traacutegico que percorre a eacutepica Odisseacuteia mais

especificamente no Canto XI em que Odisseu encontra-se com sua matildee e com alguns que

foram seus companheiros na Guerra de Troacuteia A partir dos diaacutelogos desenvolvidos entre o

filho de Laertes com os demais personagens pudemos identificar diversos elementos traacutegicos

que inclusive seratildeo responsaacuteveis por desencadear em Odisseu a kaqarsij como resultado

dos sentimentos de fomacrboj e esup1leoj que lhe foram inspirados

A fim de alcanccedilar o objetivo pretendido desenvolvemos em nosso trabalho trecircs

capiacutetulos No primeiro intitulado ―Contextualizaccedilatildeo miacutetica e religiosa da Odisseacuteia fizemos

uma explanaccedilatildeo a respeito das representaccedilotildees miacuteticas e seus significados para o mundo

homeacuterico como tambeacutem realizamos uma apresentaccedilatildeo da Odisseacuteia Ainda discorremos sobre

a estrutura do poema eacutepico a ser estudado e do perfil multifacetado do seu heroacutei Odisseu

Todas essas informaccedilotildees contribuiacuteram para entendermos em qual contexto o traacutegico pocircde

despontar em meio a esse contorno eacutepico

No segundo capiacutetulo ―Traacutegico aspectos teoacutericos e conceituais discorremos

sobre a accedilatildeo traacutegica sua origem formaccedilatildeo seus elementos constitutivos e seus meios de

efetivaccedilatildeo literaacuteria Para tanto expusemos a relaccedilatildeo do traacutegico com a trageacutedia gecircnero atraveacutes

do qual foi consagrado aleacutem de discutirmos tambeacutem a configuraccedilatildeo do traacutegico na Poeacutetica

atraveacutes de Aristoacuteteles como tambeacutem por meio de outros autores que se dedicaram ao estudo

da accedilatildeo traacutegica Jean Pierre Vernant Pierre Grimal Jacqueline de Romilly Anatol Rosenfeld

Junito Brandatildeo e Sandra Luna

No terceiro capiacutetulo ―Tragicidade no Canto XI da Odisseacuteia Anticleacuteia Aquiles

Agamecircmnon e Aacutejax fizemos uma anaacutelise da realizaccedilatildeo do traacutegico dentro do contexto eacutepico

especificamente no Canto XI da Odisseacuteia Contudo para entendermos que essa tragicidade

natildeo era um fato isolado dentro da obra primeiro realizamos a identificaccedilatildeo e anaacutelise da

tragicidade presente ao longo da Odisseacuteia no primeiro toacutepico nomeado ―Odisseacuteia momentos

de tragicidade No segundo toacutepico depois de compreender que o traacutegico permeia toda a

Odisseacuteia analisamos o Canto XI a partir dos encontros de Odisseu no Hades com sua matildee

que ele natildeo sabia que morrera e com os antigos companheiros Agamecircmnon Aquiles e Aacutejax

todos sofrendo pelo destino traacutegico que a vida lhes reservou Como espectador das cenas

145

traacutegicas no Hades Odisseu ao mesmo tempo em que se apieda tambeacutem fica amedrontado de

vir a ter o mesmo destino traacutegico de seus companheiros em Troacuteia E todos esses encontros

proporcionam ao heroacutei de Iacutetaca vivenciar fatos traacutegicos e atraveacutes deles ser inspirado pelo

fomacrboj e pela esup1leoj levando-o agrave kaqarsij

146

REFEREcircNCIAS

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Petroacutepolis Vozes 1998

_______―Introduccedilatildeo ao mito dos heroacuteis In Mitologia grega 12ed Petroacutepolis Vozes

1998

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EacuteSQUILO ―Prometeu Cadeeiro In Trageacutedias Trad Jaa Torrano Satildeo Paulo Iluminuras

2009

_______ Oresteacuteia Agameacutemnon Traduccedilatildeo Jaa Torrano Satildeo Paulo Iluminuras 2004

EURIacutePEDES Alceste Trad JS BRANDAtildeO Rio de Janeiro Bruno Buccini 1968

_______ Hipoacutelito Trad Bernardina de Sousa Oliveira Brasiacutelia UNB 1997

EURIacutePEDES Medeacuteia Trad Trajano Vieira Satildeo Paulo Editora 34 2010

_______ Iphigeacutenie agrave Aulis Trad Franccedilois Jouan Paris Les Belles Lettres 2002

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5ed Rio de Janeiro Bertrand Brasil 2005

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Martins Fontes 1995

HESIacuteODO Teogonia Trad Jaa Torrano 7 ed Satildeo Paulo Iluminuras 2009

_______ Os trabalhos e os dias Trad Mary de Camargo 6 ed Satildeo Paulo Iluminuras 2008

HOMEgraveRE Lrsquo Odysseacutee Trad Victor Beacuterard 12 ed Paris Les Belles Lettres 2002

_______ IlIacuteada Traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes 5edRio de Janeiro Edioro 2009

_______ Odisseacuteia Trad Carlos Alberto Nunes 2ed Satildeo Paulo Ediouro 2009

_______ Odisseacuteia Trad Jaime Bruna Rio de Janeiro Otto Pierre Editores1980

_______ Odisseia Traduccedilatildeo do grego prefaacutecios e notas pelos Padres E Dias Palmeira e M

Alves Correia Ediccedilatildeo revista por E Dias Palmeira 5 Ed Lisboa Livraria Saacute da Costa 1980

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Guzik 3ed Satildeo Paulo Perspectiva 1996

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3 ed Satildeo Paulo Discurso editorial Editora Vozes 2007

_______ Liacutengua Grega visatildeo semacircntica loacutegica orgacircnica e funcional Vol 2 3 ed Satildeo

Paulo Discurso editorial Editora Vozes 2007

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_______ ―Livro IIIX In A Repuacuteblica Trad Carlos Alberto Nunes 2ed Beleacutem Graf e

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2008

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_______ Antiacutegona Trad Domingos Paschoal Satildeo Paulo DIFEL 2001

_______ Edipo Rei Trad Vieira Trajano Satildeo Paulo Perspectiva 2001

VERGIacuteLIO Eneida Trad Tassilo Orpheu 6 ed Satildeo Paulo Cultrix 2006

_______ Eneida Trad Carlos Alberto NunesSatildeo Paulo A Montanha Ediccedilotildees 1981

VERNANT Jean-Pierre Mito e pensamento entre os gregos 2 ed Rio de Janeiro Paz e

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Fontes 2006

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Perspectiva 2008

_______ VIDAL-NAQUET Pierre La Gregravece ancienne Du mythe agrave la raison Paris Seuil

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_______ Lrsquo individu la mort lrsquo amour Soi-ecircme et llsquo autre en Gregravece ancienne Paris

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149

WILAMOWITZ-MOELLEENDORFF Ulrich Von Qursquoest-ce qursquoune traeacutedie attique

Trad Alexandre Hasnaoui Paris Les Belles Lettrers 2001

150

Joatildeo Pessoa ____ ____ ______

_____________________________________

Michelle Bianca Santos Dantas

Page 3: MICHELLE BIANCA SANTOS DANTAS

3

D192t Dantas Michelle Bianca Santos

Tragicidade no canto XI da Odisseacuteia Anticleacuteia Agamecircmnon Aquiles

e Aacutejax Michelle Bianca Santos Dantas - - Joatildeo Pessoa [sn] 2011

149f

Orientador Arturo Gouveia de Arauacutejo

Dissertaccedilatildeo (Mestrado) ndash UFPBCCHLA

1 Literatura e cultura 2 Literatura claacutessica 3 Homero 4 Gecircnero

traacutegico 5 Homero

UFPBBC CDU 82(043)

4

MICHELLE BIANCA SANTOS DANTAS

TRAGICIDADE NO CANTO XI DA ODISSEacuteIA

ANTICLEacuteIA AGAMEacuteMNON AQUILES E AacuteJAX

Dissertaccedilatildeo apresentada agrave Univesidade Federal da

Paraiacuteba como requisito parcial para obtenccedilatildeo do

tiacutetulo de Mestre na aacuterea de Literatura e cultura e

Linha de Pesquisa Tradiccedilatildeo e Modernidade

Aprovado em __________________________

BANCA EXAMINADORA

Prof Dr Arturo Gouveia de Arauacutejo (Orientador)

Universidade Federal da Paraiacuteba - UFPB

Profordf Drordf Sandra Luna (Examinadora)

Universidade Federal da Paraiacuteba - UFPB

Prof Dr Alzir Oliveira (Examinador)

Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN

Profordf Drordf Marinalva Vilar de Lima (Suplente)

Universidade Federal de Campina Grande - UFCG

5

A todos que comigo compartilharam as dificuldades e alegrias desta jornada

dedico este meu trabalho de Dissertaccedilatildeo

6

AGRADECIMENTOS

A Deus primeiramente agradeccedilo pelo dom da vida pelo amor e por toda

proteccedilatildeo Sem a forccedila divina eu natildeo conseguiria ultrapassar os obstaacuteculos enfrentados ao

longo deste mestrado

Agrave minha matildee D Bernadete agradeccedilo por ter me dado a luz iluminando-me no

meu nascer e no meu desenvolver assim como fez tambeacutem com minha irmatilde Mileyde a quem

agradeccedilo pela torcida

Ao meu esposo amado e fiel amigo agradeccedilo cada dia e cada segundo de

companheirismo e amor Juntos suportamos os desafios e renuacutencias juntos brindamos as

conquistas Por isso a Faacutebio agradeccedilo o amor que palavras natildeo tenho para expressar

Aos amigos agradeccedilo pelo apoio prestado pois estando perto ou distante sempre

torcem pelo meu sucesso e que naturalmente se reconhecem neste agradecimento

Agradeccedilo aos professores que foram importantes desde os passos iniciais da

minha vida acadecircmica Graccedila Martins Camen Servilla Elisalva Madruga Arturo Gouveia

como tambeacutem aos professores Milton Marques e Juvino Alves especialmente pela iniciaccedilatildeo

aos estudos claacutessicos

Ao meu orientador Prof Dr Arturo Gouveia agradeccedilo as pertinentes

consideraccedilotildees todo o aprendizado e a orientaccedilatildeo imparcial e efetiva

Agradeccedilo ao Prof Dr Fabriacutecio Possebon por dispor-se a revisar algumas

traduccedilotildees Ao Prof Dr Alzir Oliveira por aceitar a avaliar meu trabalho assim como a Profordf

Drordf Marinalva Vilar e a Prof Drordf Sandra Luna que atraveacutes de sua obra e de suas aulas

muito me ensinou sobre o traacutegico claacutessico

Agradeccedilo a Profordf Drordf Ana Marinho coordenadora do Programa de Poacutes-

Graduaccedilatildeo em Letras (PPGL) pelo apoio nesta jornada

Agrave Capes agradeccedilo o investimento que viabilizou a realizaccedilatildeo desta pesquisa

7

ὢ πόποι οἷον δή νυ θεοὺς βροτοὶ αἰτιόωνται

ἐξ ἡμέων γάρ φασι κάκ᾽ ἔμμεναι οἱ δὲ καὶ αὐτοὶ

σφῆισιν ἀτασθαλίηισιν ὑπὲρ μόρον ἄλγε᾽ ἔχουσιν

Oh grandes deuses Agora os mortais culpam os deuses

Pois de noacutes dizem vir a causa de todos seus males

quando]

eles mesmos por suas loucas presunccedilotildees suportam dores

contra o destino]

(Odisseacuteia I 32-34

8

RESUMO

O presente trabalho Tragicidade no Canto XI da Odisseacuteia Anticleacuteia

Agameacutemnon Aquiles e Aacutejax visa analisar os aspectos traacutegicos observados no Canto XI da

Odisseacuteia e consequentemente sua relevacircncia na estrutura da referida eacutepica homeacuterica Esses

aspectos seratildeo estudados a partir dos encontros de Odisseu no Hades com a sua matildee

Anticleacuteia Agameacutemnon Aquiles e Aacutejax Para tanto utilizaremos entre outras obras A

Poeacutetica de Aristoacuteteles e suas consideraccedilotildees sobre o gecircnero eacutepico e o traacutegico Esta obra seraacute

fundamental para o desenvolvimento do nosso trabalho por ser um legado dos mais

importantes que temos sobre a definiccedilatildeo dos gecircneros e da estrutura da poicenthsij Aleacutem do

mais nela tambeacutem encontramos consideraccedilotildees sobre os elementos traacutegicos como aatildeth

Moiordfra asup1namacrgkh daimacrmwn aumlmartia uAacutebrij fomacrboj esup1leoj asup1nagnwiquestrisij e

principalmente sobre a katarsij Tais elementos como analisaremos tambeacutem podem ser

reconhecidos na eacutepica homeacuterica Assim constataremos em nossa pesquisa a assertiva de

Aristoacuteteles no seacuteculo V dC acerca da intergenaricidade Como vemos esse fato natildeo eacute

privilegio das literaturas modernas mas ao contraacuterio pode ser contemplado desde o Periacuteodo

Arcaico da Literatura Grega no seacuteculo VIII aC a partir de Homero e no caso especiacutefico do

nosso estudo no Canto XI da Odisseacuteia Neste observamos a manifestaccedilatildeo da tragicidade

que mais tarde no seacuteculo V aC seraacute o fundamento miacutetico das trageacutedias gregas Utilizaremos

tambeacutem para fundamentar-nos compreensatildeo do traacutegico autores como Vernant Pierre

Grimal Jacqueline de Romilly Sandra Luna Junito Brandatildeo entre outros A fim de que

possamos melhor abarcar o objetivo do nosso trabalho dividimo-lo em trecircs capiacutetulos o

primeiro intitulado ―Contextualizaccedilatildeo miacutetica e religiosa da Odisseacuteia o segundo ―Traacutegico

aspectos teoacutericos e conceituais e por fim o terceiro ―Tragicidade no Canto XI da Odisseacuteia

Anticleacuteia Agamecircmnon Aquiles Aacutejax em que analisaremos o aspecto traacutegico desses

encontros

Palavras-chave Literatura Claacutessica Homero Odisseacuteia Traacutegico

9

REacuteSUMEacute

Le preacutesent travail Tragiciteacute dans le Chant XI de lrsquoOdysseacutee Anticlea

Agamemnon Achilles et Ajax vise agrave analyser les aspects tragiques observeacutes dans le Chant XI

de llsquoOdysseacutee et en conseacutequence sa pertinance dans la structure de llsquoeacutepique homeacuterique

rapporteacutee Ces aspects seront eacutetudieacutes a partir des rencontres dlsquoOdysseus dans llsquoHadegraves avec

sa megravere Anticlea Agamemnon Achilles et Ajax De telle faccedilon nous utiliserons entre autres

oeuvres La Poeacutetique dlsquoAristote et ses consideacuterations sur le genre eacutepique et le tragique Cette

oeuvre sera fondamentale pour le deacuteveloppement de notre travail par ecirctre un heacuteritage des plus

importants que nous avons sur la deacutefinition des genres et de la structure de la poicenthsij En

outre dans cette oeuvre nous trouvons aussi consideacuterations sur les eacuteleacutements tragiques comme

aatildeth Moiordfra asup1namacrgkh daimacrmwn aumlmartia uAacutebrij fomacrboj esup1leoj asup1nagnwiquestrisij et

principalement sur la katarsij Tels eacuteleacutements comme nous analyserons peuvent aussi ecirctre

reconnus dans llsquoeacutepique homeacuterique Ainsi nous constaterons dans notre recherche llsquoassertive

dlsquoAristote au Ve siegravecle ap J-C concernant llsquointergeacuteneacutericiteacute Comme nous voyons ce fait

nlsquoest pas privilegravege des litteacuteratures modernes mais au contraire cela peut ecirctre envisageacute depuis

la Peacuteriode Archaiumlque de la Litteacuterature Grecque au VIIIe siegravecle avJ-C agrave partir dlsquoHomegravere et

dans le cas espeacutecifique de notre eacutetude dans le Chant XI de llsquoOdysseacutee Dans celui-ci nous

observons la manifestation de la tragiciteacute que plus tard au Ve siegravecle av J -C ce sera le

fondement mythique des trageacutedies grecques Nous utiliserons aussi pour se baser

compreacutehension du tragique auteurs comme Vernant Pierre Grimal Jacqueline de Romilly

Sandra Luna Junito Brandatildeo entre autres Afin que nous puissions mieux embrasser llsquoobjectif

de notre travail nous llsquoavons diviseacute en trois chapitres le premier intituleacute laquo Contextualisation

mythique et religieuse de llsquoOdysseacutee raquo le deuxiegraveme laquo Tragique aspects theacuteoriques et

conceptuels raquo et finalement le troisiegraveme laquo Tragiciteacute dans le Chant XI de llsquoOdysseacutee

Anticlea Agamemnon Achilles Ajax raquo ougrave nous analyserons llsquoaspect tragique de ces

rencontres

Mots-cleacute Litteacuterature Classique Homegravere Odysseacutee Tragique

10

SUMAacuteRIO

INTRODUCcedilAtildeO________________________________________________________11

1 CONTEXTUALIZACcedilAtildeO MIacuteTICA E RELIGIOSA DA ODISSEacuteIA___________17

11 Representaccedilotildees e significados do mundo homeacuterico___________________17

12 Apresentaccedilatildeo da Odisseacuteia_______________________________________23

121 A Estrutura do poema___________________________________ _28

122 Odisseu o heroacutei multifacetado _____________________________36

2 TRAacuteGICO ASPECTOS TEOacuteRICOS E CONCEITUAIS_____________________47

21 Uma breve consideraccedilatildeo sobre o nosso estudo do Traacutegico______________47

22 O traacutegico e a trageacutedia___________________________________________48

23 O Traacutegico na Poeacutetica___________________________________________60

24 A busca do traacutegico outras reflexotildees teoacutericas ________________________79

3 TRAGICIDADE NO CANTO XI DA ODISSEacuteIA ANTICLEacuteIA AGAMEcircMNON

AQUILES AacuteJAX________________________________________________________89

31 Odisseacuteia momentos de tragicidade_________________________________89

32 Tragicidade no Canto XI da Odisseacuteia Anticleacuteia Agamecircmnon Aquiles

Aacutejax___________________________________________________________________115

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS______________________________________________144

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS______________________________________146

11

INTRODUCcedilAtildeO

A Odisseacuteia (do grego Obrvbardusseia) cuja autoria eacute atribuiacuteda a Homero pertence

juntamente com a Iliacuteada ao chamado periacuteodo arcaico da literatura grega que compreende do

seacuteculo VIII aC ao seacuteculo V aC Ambas as epopeacuteias homeacutericas satildeo ―os mais antigos poemas

em grego que sobreviveram ateacute noacutes (HAUSER 1995 p55) e constituem verdadeiros

legados artiacutesticos Isso entre outros fatores explicaria o fato de em pleno seacuteculo XXI essas

epopeacuteias ainda nos trazerem a possibilidade de pesquisas e estudos demonstrando a

inesgotabilidade de leituras literaacuterias

Logo ao iniacutecio da narrativa percebemos que a Odisseacuteia canta o noacutestos o regresso

ao lar e a paacutetria Assim o argumento da Odisseacuteia eacute o regresso de Odisseu a Iacutetaca apoacutes vinte

anos em metade deste tempo o heroacutei ocupa-se nos combates travados na Guerra de Troacuteia e

nos outros dez anos passa errante por mar e terra Com base nessa narrativa homeacuterica

pretendemos realizar um estudo de aplicaccedilatildeo do traacutegico na Odisseacuteia especificamente no

Canto XI quando Odisseu em sua passagem pelo Hades encontra-se respectivamente com

Anticleacuteia sua matildee cuja morte ele ignorava Agamecircmnon que sofre pela traiccedilatildeo armada pela

sua esposa com o amante Egisto Aquiles inconformado preferindo ser um trabalhador

campestre a ter que reinar sobre os mortos e Aacutejax ressentido ainda com o ocorrido na

disputa das armas do filho de Peleu

Para que realizemos essa anaacutelise estudaremos diversos autores desde os claacutessicos

como Platatildeo ateacute os mais modernos como Jean-Pierre Vernant Junito Brandatildeo entre outros

Contudo ressaltamos que nossa fundamentaccedilatildeo teoacuterica seraacute a Poeacutetica de Aristoacuteteles

Na Repuacuteblica como sabemos Platatildeo nega o traacutegico e a poesia para a organizaccedilatildeo

estatal argumentando que a sociedade deveria vigiar ―() os que se aventuram a tratar desse

gecircnero de faacutebulas () pois natildeo apenas eacute falso tudo que contam como de tudo inuacutetil para os

futuros combatentes (PLATAtildeO 2000 p 117) Jaacute Aristoacuteteles em A Poeacutetica ao contraacuterio

refere-se agrave poesia natildeo apenas como instrumento de educaccedilatildeo mas como um ato de criaccedilatildeo

delineado por estruturas e caracteriacutesticas proacuteprias que deve ser antes de tudo verossiacutemil O

estudo aristoteacutelico da poihsij natildeo estaacute centralizado ao contraacuterio de Platatildeo nos valores que

ela veicula e sim na organicidade estrutural e interna Desta forma em A Poeacutetica Aristoacuteteles

define a epopeacuteia e a trageacutedia como ―imitaccedilatildeo de homens superiores (ARISTOacuteTELES 1988

p 109) No entanto ele tambeacutem nos informa que esses gecircneros diferem visto que a epopeacuteia

12

tem metro uacutenico forma narrativa e maior extensatildeo enquanto a trageacutedia por se realizar dentro

de um periacuteodo do sol eacute mais breve O pensador grego diz ainda que apesar de todas as partes

da epopeacuteia estarem na trageacutedia e a reciacuteproca natildeo ser verdadeira haacute alguns elementos da

trageacutedia que podem ser encontrados nas epopeacuteias E esse argumento seraacute fundamental para

nosso trabalho pois observaremos jaacute na epopeacuteia homeacuterica especificamente no Canto XI da

Odisseacuteia aspectos de tragicidade que seratildeo mais tarde no seacuteculo IV aC a essecircncia miacutetica

das trageacutedias sejam elas de Eacutesquilo Soacutefocles eou Euriacutepides

Deste modo nossa pesquisa justifica-se pela necessidade de sugerir uma leitura

criacutetica que promova uma atualizaccedilatildeo dessa obra claacutessica Isso porque esse poema homeacuterico

ultrapassa os limites geograacutefico-temporais da Greacutecia Antiga constituindo-se assim numa

obra universal Inclusive sabemos da importacircncia dos textos homeacutericos dentro da proacutepria

cultura grega sendo sempre citados pelos filoacutesofos como por exemplo Platatildeo em A

Repuacuteblica e em Iacuteon e Aristoacuteteles em A Poeacutetica Os textos homeacutericos influenciaram tambeacutem

a produccedilatildeo poeacutetica que os sucedeu a exemplo das contribuiccedilotildees dos tragedioacutegrafos Neste

caso especiacutefico podemos ver o Canto XI da Odisseacuteia como um prenuacutencio das peccedilas

Agamecircmnon de Eacutesquilo componente da Oresteacuteia e Aacutejax de Soacutefocles jaacute que estas

desenvolvem as circunstacircncias jaacute pronunciadas no canto eacutepico citado Agamecircmnon sofrendo

por uma armadilha montada pela proacutepria esposa e Aacutejax sentindo-se desonrado por ter sido

preterido na disputa das armas de Aquiles permanecendo-se indiferente a Odisseu Desta

maneira entendemos nosso trabalho como relevante para o aprofundamento das pesquisas na

aacuterea da Literatura Claacutessica especificamente no que diz respeito agrave eacutepica homeacuterica Odisseacuteia e

aos estudos do traacutegico Aleacutem do mais temos consciecircncia de que nossa pesquisa seraacute tambeacutem

importante aos estudiosos da literatura em geral os quais natildeo devem perder de vista o berccedilo

literaacuterio ocidental

Atraveacutes de nossa pesquisa ―Tragicidade no Canto XI da Odisseacuteia Anticleacuteia

Agameacutemnon Aquiles e Aacutejax analisaremos como jaacute foi dito aspectos traacutegicos na citada

epopeacuteia de Homero a partir da ida ao Hades de seu heroacutei Odisseu em busca do adivinho

Tireacutesias No Hades ele encontra natildeo soacute o adivinho que o auxiliaraacute no trajeto de retorno agrave

paacutetria como tambeacutem a sua matildee Anticleacuteia e os destacados heroacuteis que combateram ao seu

lado na Guerra de Troacuteia Agamecircmnon Aquiles e Aacutejax

Para fundamentarmos o nosso trabalho aleacutem de Aristoacuteteles utilizaremos outros

autores que vatildeo auxiliar-nos na compreensatildeo da estrutura da eacutepica e da manifestaccedilatildeo do

traacutegico O estudo destes temas sugere-nos a ocorrecircncia da interrelaccedilatildeo entre os gecircneros

literaacuterios fazendo-nos compreender que este procedimento natildeo eacute um qualificativo especiacutefico

13

das literaturas modernas jaacute que pode ser constatado desde a Antiguidade Claacutessica O proacuteprio

Aristoacuteteles (1449a) chega a afirmar que o cocircmico estaacute para a Iliacuteada assim como a trageacutedia

estaacute para Odisseacuteia

Deste modo versando sobre os aspectos dos gecircneros claacutessicos e de suas

caracteriacutesticas auxiliar-nos-atildeo outros autores como por exemplo Anatol Rosenfeld Em O

teatro eacutepico (1985) Rosenfeld conceitua as caracteriacutesticas substantivas ou adjetivas dos

gecircneros dizendo-nos que ―No fundo toda obra literaacuteria de certo gecircnero conteraacute aleacutem dos

traccedilos estiliacutesticos mais adequados ao gecircnero em questatildeo tambeacutem traccedilos estiliacutesticos mais

tiacutepicos dos outros gecircneros (ROSENFELD 1985 p 18) Albin Lesky em A trageacutedia grega

(2006) ao tratar sobre o problema do traacutegico ressalta que nas epopeacuteias homeacutericas ―jaacute se

encontram germes em que se prepara a primeira e ao mesmo tempo a mais perfeita

objetivaccedilatildeo da visatildeo traacutegica do mundo no drama do seacuteculo V (LESKY 1976 p 18) E

assim como Platatildeo no Livro X da Repuacuteblica destaca a referecircncia de Homero como o pai da

trageacutedia

Utilizaremos tambeacutem a obra Arqueologia da accedilatildeo traacutegica o legado grego (2005) de

Sandra Luna para dar-nos respaldo teoacuterico-criacutetico acerca das origens e conceitos do traacutegico

A autora considera ―ser possiacutevel identificar nos versos homeacutericos momentos de intensa

tragicidade (LUNA 2005 p 30) Satildeo estes momentos de tragicidade que analisaremos no

Canto XI da Odisseacuteia por percebermos que haacute neste canto especificamente uma maior

potencialidade traacutegica apesar de termos momentos de tragicidade por toda a obra A presenccedila

do traacutegico revela-se ateacute mesmo pela circunstacircncia por Odisseu na porta do Hades buscando

Tireacutesias para que possa indicar-lhe o caminho de volta para casa que jaacute tentava haacute anos

Todavia encontra imagens muito mais desoladoras ndash sua matildee morta por saudades suas e seus

amigos de combate Agamecircmnon Aquiles e Aacutejax O primeiro foi encontrar a morte ingloacuteria

em casa pela proacutepria esposa o segundo havia conquistado a bela morte em campo de batalha

mas preferia ser um trabalhador do campo e o terceiro mantinha-se ainda tomado pelo

sentimento de desonra por natildeo ter ficado com as armas de Aquiles Aleacutem do mais muito do

que Tireacutesias iraacute revelar eacute bastante traacutegico mesmo Odisseu sabendo que cumprindo todos os

desiacutegnios conseguiraacute voltar para casa Isso porque apesar de Odisseu ter a revelaccedilatildeo de que

teraacute o esperado retorno fica tambeacutem tendo o conhecimento de que deveraacute enfrentar ainda

muitos outros obstaacuteculos a exemplo do combate que travaraacute contra os pretendentes jaacute em

Iacutetaca

Sobre a origem da trageacutedia Junito Brandatildeo (2007) seguindo o jaacute afirmado por

Aristoacuteteles reafirma a ligaccedilatildeo de Dioniso com esse gecircnero dramaacutetico por isso diz ldquoA

14

trageacutedia nasceu do culto de Dioniso isto apesar de algumas tentativas ainda natildeo se

conseguiu negar Ningueacutem pocircde ateacute hoje explicar a gecircnese do traacutegico sem passar pelo

elemento satiacuterico (BRANDAtildeO 2007 p 9) Em ―Homero e seus poemas deuses mitos e

escatologia Junito Brandatildeo (1998) tambeacutem nos respalda ao dizer que a maior novidade

trazida pela Odisseacuteia ―estaacute no embriatildeo da ideacuteia de culpa e castigo em que a hyacutebris a

violecircncia a insolecircncia a ultrapassagem do meacutetron que seraacute a mola mestra da trageacutedia

comeccedilam a despontar (BRANDAtildeO 1998 p 134)

Com a realizaccedilatildeo da pesquisa supracitada pretendemos contribuir para a

ampliaccedilatildeo dos estudos sobre a Odisseacuteia de Homero enaltecendo a sua importacircncia literaacuteria

mas tambeacutem miacutetico-religiosa e sua inter-relaccedilatildeo traacutegica especificamente no Canto XI Para

tanto iremos expor as discussotildees acerca dos conceitos da epopeacuteia e do traacutegico realizadas

primeiramente por Aristoacuteteles que nos deu valiosas contribuiccedilotildees acerca dos gecircneros

claacutessicos e suas especificidades Tambeacutem realizaremos a traduccedilatildeo dos versos a serem citados

da Odisseacuteia para que entremos em contato com o texto original na perspectiva de nos

aproximarmos mais de sua estrutura morfossintaacutetica e semacircntica Seratildeo realizadas as

traduccedilotildees das citaccedilotildees da Poeacutetica por considerarmos este o texto teoacuterico base para a nossa

produccedilatildeo analiacutetica centralizada justamente na tragicidade do Canto XI da Odisseacuteia

Tracicidade esta que funciona como prenuacutencio das trageacutedias Aacutejax de Soacutefocles e Agamecircmnon

de Eacutesquilo

A fim de que melhor possamos abarcar o estudo do traacutegico no jaacute citado canto da

epopeacuteia homeacuterica dividimos o desenvolvimento do nosso trabalho em trecircs capiacutetulos que

seratildeo descriminados a seguir

No primeiro intitulado ―Contextualizaccedilatildeo miacutetica e religiosa da Odisseacuteia

realizaremos a apresentaccedilatildeo desta eacutepica destacando suas caracteriacutesticas e especificidade

temaacutetica e estrutural Assim discorreremos acerca das representaccedilotildees e significaccedilotildees comuns

ao mundo homeacuterico aleacutem de realizarmos uma apresentaccedilatildeo do poema a partir de sua

estrutura e de seu heroacutei Odisseu Deste analisaremos o caraacuteter multifacetado que eacute revelado

tanto em suas accedilotildees como preconiza Aristoacuteteles na Poeacutetica bem como atraveacutes dos seus

epiacutetetos polutropoj polumhtij entre outros Estes e outros epiacutetetos seratildeo aprofundados

estrutural e semanticamente no momento propiacutecio todavia os jaacute citados podem ser traduzidos

por o de muitas voltas e o muito astuto

O tiacutetulo do nosso segundo capiacutetulo eacute ―Traacutegico aspectos teoacutericos e conceituais

em que pretendemos discorrer acerca do traacutegico tanto pelo aspecto teoacuterico como tambeacutem

15

conceitual para que possamos entender melhor sua constituiccedilatildeo e manifestaccedilatildeo natildeo apenas

nas trageacutedias como tambeacutem na eacutepica homeacuterica principalmente no Canto XI da Odisseacuteia

Para tanto desenvolveremos primeiramente um subtoacutepico sobre o traacutegico e a trageacutedia

estabelecendo as relaccedilotildees existentes entre ambos Entatildeo partiremos para observar e discutir a

partir da Poeacutetica e posteriormente faremos a anaacutelise das perspectivas que outros teoacutericos tecircm

sobre o traacutegico e ateacute que ponto eles se aproximam distanciam ou auxiliam no entendimento

do traacutegico ressalta-se no entanto que o conceito de traacutegico para noacutes relevante eacute o claacutessico

especificamente o realizado no mundo grego

No terceiro capiacutetulo intitulado ―Tragicidade no Canto XI da Odisseacuteia Anticleacuteia

Aquiles Agamecircmnon e Aacutejax faremos a anaacutelise dos elementos motivadores de nossa

dissertaccedilatildeo Por isso consideramos conveniente logo no iniacutecio de nossa proposta dedicarmos

um subtoacutepico para ilustrar que ao decorrer de toda a obra podemos identificar momentos de

tragicidade Desta maneira veremos que o aspecto traacutegico natildeo se restringe ao Canto XI

objeto central de nossas ponderaccedilotildees tanto que poderemos encontraacute-lo em outros Cantos

Entretanto justificamos nossa escolha pelo Canto XI por enxergarmos como o que possui a

manifestaccedilatildeo mais traacutegica ao longo de toda a Odisseacuteia estes motivos e consideraccedilotildees seratildeo

discutidos no momento propiacutecio E no segundo toacutepico deste terceiro capiacutetulo ―Tragicidade

no Canto XI da Odisseacuteia Anticleacuteia Aquiles Agamecircmnon Aacutejax realizaremos a anaacutelise de

toda a nossa proposta inicial jaacute que ateacute laacute teremos maior possibilidade de apreendecirc-lo de uma

maneira mais consistente Ateacute mesmo porque nos capiacutetulos e toacutepicos anteriores discutiremos

com clareza necessaacuteria os elementos que nos ajudaratildeo a entender a proposta geral da

dissertaccedilatildeo e sua efetuaccedilatildeo analiacutetica

Partindo da perspectiva do traacutegico presente na Poeacutetica objetivamos realizar uma

aplicaccedilatildeo desse estudo no Canto XI da Odisseacuteia E assim tentarmos (fazer) compreender a

realizaccedilatildeo do traacutegico neste Canto homeacuterico Pois mesmo sabendo que o traacutegico soacute foi

desenvolvido efetivamente pelos tragedioacutegrafos gregos percebemos que sua realizaccedilatildeo eacute

comum jaacute nas epopeacuteias homeacutericas Desta maneira poderemos ver Homero como o poeta que

nos legou natildeo apenas as duas primeiras obras literaacuterias do Ocidente Iliacuteada e Odisseacuteia mas

tambeacutem as primeiras manifestaccedilotildees traacutegicas de nossa literatura

Ao longo de nossa pesquisa utilizamo-nos de diversas ediccedilotildees de uma mesma obra

tanto para realizaccedilatildeo das leituras como das traduccedilotildees (em que cotejamos as jaacute editadas

traduccedilotildees) Por isso indicaremos a seguir todas as ediccedilotildees usadas apesar de todas elas jaacute

constarem nas Referecircncias Bibliograacuteficas Acreditamos que tal procedimento facilitaraacute

16

metodologicamente a construccedilatildeo e a leitura do nosso trabalho Logo no decorrer do nosso

texto citaremos soacute o nome das obras e natildeo as datas de ediccedilotildees

Assim utilizamos para entendimento da Poeacutetica Repuacuteblica e Odisseacuteia aleacutem do

texto original as ediccedilotildees que listaremos a seguir Para Poeacutetica usamos Les Belles Lettres de

1979 com traduccedilatildeo de Hardy Cultrix de 1988 traduzida por Jaime Bruna Ars Poeacutetica de

1992 com traduccedilatildeo de Eudoro de Sousa Para Repuacuteblica fizemos uso das ediccedilotildees de I

mammut em Tutte le opere de 2009 e da Editora Universitaacuteria da UFPA de 2000 cuja

traduccedilatildeo foi feita por Carlos Alberto Nunes Para Odisseacuteia utilizamos Otoo Pierre Editores

de 1980 com traduccedilatildeo de Jaime Bruna a Livraria Saacute da Costa de 1980 traduzida por Dias

Palmeira e Alves Correia Les Belles Lettres 2002 por Victor Beacuterard e Ediouro de 2009

traduzida por Carlos Alberto Nunes

17

1 CONTEXTUALIZACcedilAtildeO MIacuteTICA E RELIGIOSA DA ODISSEacuteIA

11 Representaccedilotildees e significados do mundo homeacuterico

Segundo a tradiccedilatildeo Homero eacute o autor das duas primeiras obras literaacuterias do Ocidente

que nos chegaram Iliacuteada e Odisseacuteia Tal afirmaccedilatildeo contudo natildeo nos soluciona

problemaacuteticas como por exemplo o de sua bibliografia que ateacute hoje eacute um grande desafio

Mas se a ciecircncia moderna natildeo consegue provas de sua existecircncia permitindo-nos afirmar

seguramente quem foi Homero como viveu quando e onde nasceu Para a tradiccedilatildeo claacutessica

sua existecircncia eacute inquestionaacutevel por isso autores como Platatildeo Aristoacuteteles e Hesiacuteodo referem-

se claramente agrave sua figura Vejamos o que diz Platatildeo

() ῥεηένλ ἦλ δ᾽ ἐγώ θαίηνη θηιία γέ ηίο κε θαὶ αἰδὼο ἐθ παηδὸο ἔρνπζα

πεξὶ κήξνπ ἀπνθσιύεη ιέγεηλ (PLATAtildeO X 595 b-c)

Preciso falar dizia eu contudo o afeto e o respeito certamente que tenho

sobre Homero desde a infacircncia impede-me de falar1

Isso tambeacutem o faz Aristoacuteteles (Poeacutetica Livro III 1448 a 22-26) porque

discutindo acerca da poesia e de seus objetos de imitaccedilatildeo tambeacutem se refere objetivamente a

Homero e a sua poesia comentando sua produccedilatildeo eacutepica e caracteriacutesticas Como podemos ver

parece indiscutiacutevel para os gregos claacutessicos a existecircncia de Homero

No entanto deixando as incertezas biograacuteficas de lado compreendamos que o

autor da Odisseacuteia nosso objeto de pesquisa existiu provavelmente no periacuteodo arcaico da

literatura grega que compreende o periacuteodo do seacuteculo VIII ateacute V aC Homero produziu suas

eacutepicas no dialeto jocircnio com alguns empreacutestimos do eoacutelico e apesar de terem surgido

oralmente por volta do seacuteculo VIII aC soacute em VI aC eacute que passam para escrita a mando do

tirano Pisiacutestratos que acreditava descender de Nestor de Pilos Neste mesmo seacuteculo como

nos informa Hauser (1995 p63) havia uma lei que estabelecia obrigatoriamente a recitaccedilatildeo

completa dos poemas de Homero no Festival de Panateneacuteias Como no seacuteculo VI aC as

eacutepicas homeacutericas passaram para a forma escrita aleacutem de terem seus recitais como

1 Ressaltamos que as traduccedilotildees utilizadas ao longo do trabalho satildeo nossas Contudo quando natildeo o forem

indicaremos seus respectivos autores Aleacutem disso a finalidade das traduccedilotildees feitas eacute operacional sem fins

esteacuteticos

18

obrigatoacuterios crecirc-se que desde entatildeo os poemas homeacutericos natildeo sofreram tantas mudanccedilas em

relaccedilatildeo aos poemas orais iniciais

Para Albin Lesky em Historia da Literatura Grega (1995) Homero eacute iniacutecio e

resultado herdeiro e criador Ele eacute o iniacutecio e criador da poesia grega influente ao mesmo

tempo eacute o fim e o herdeiro de um longo resultado de desenvolvimento poeacutetico e miacutetico

Diante disso o que nos importa mesmo entender eacute que muito do que sabemos

hoje sobre o mundo grego arcaico veio-nos por meio das eacutepicas homeacutericas Iliacuteada e Odisseacuteia

que nos legaram as visotildees sobre os mitos os deuses os heroacuteis a organizaccedilatildeo social enfim O

que natildeo podemos esquecer eacute que natildeo haacute tatildeo facilmente uma uacutenica visatildeo de mundo sobretudo

quando contrapomos as duas eacutepicas pois aiacute as diferenccedilas comeccedilam a aumentar

Assim como vimos anteriormente existem ainda discussotildees acerca da

comprovaccedilatildeo histoacuterica de Homero suas nuances e complicaccedilotildees Isto faz com que natildeo

possamos afirmaacute-lo como autor da Iliacuteada e da Odisseacuteia e sim que estas obras tecircm sua

autoria atribuiacuteda a Homero No entanto uma nova incongruecircncia surge quando centralizamos

nosso estudo para a Odisseacuteia Resumindo entendamos entatildeo que se a autoria de Homero

para a Iliacuteada eacute incerta esta se amplia ainda mais em relaccedilatildeo agrave Odisseacuteia A causa desse fato

daacute-se porque analisando-se ambas as eacutepicas percebem-se diferenccedilas natildeo apenas temaacuteticas

mas estruturais e conceituais que nos fazem deduzir que aleacutem de a Odisseacuteia ter sido escrita

depois da Iliacuteada poderia inclusive natildeo ser homeacuterica Na verdade natildeo nos importa muito

saber se Homero foi o autor ou natildeo da Odisseacuteia ateacute porque nossa anaacutelise basear-se-aacute no texto

mas nos interessa sim perceber quais satildeo estas diferenccedilas entre a Iliacuteada e a Odisseacuteia

principalmente as de cunho estrutural e de concepccedilatildeo de mundo

Uma destas diferenccedilas por exemplo pode ser vista a partir da representaccedilatildeo da

a)reth Para W Jaeger (2001 p 27) Homero deu-nos o mais antigo testemunho da cultura

aristocraacutetica grega principalmente atraveacutes da a)reth 2 cent Seja ela manifestada pela excelecircncia

guerreira como ocorre na Iliacuteada seja pelas qualidades intelectuais como ocorre na Odisseacuteia

E ainda completa ―a Odisseacuteia exalta sobretudo no seu heroacutei principal acima da valentia que

passa a lugar secundaacuterio a prudecircncia e a astuacutecia (JAEGER 2001 p 27) Muitas outras

2 De acordo com Renato Romizi (2007) o tema deste nome abrvbarre eacute oriundo de abrvbarreskw piaccio ou seja

agradar seu radical abrvbarr indica superioridade daiacute abrvbarrethcent significa excelecircncia de bravura coragem no sentido

militar ou virtude meacuterito no sentido moral O Le grand Bailly daacute-nos a traduccedilatildeo meacuterite ou qualiteacute ou seja

meacuterito e qualidade num sentido de excelecircncia e tambeacutem nos aponta para abrvbarreiwn que se relaciona a coragem

valentia E o Liddell and Scottrsquos Greek-English Lexicon relaciona a abrvbarrethcent grega a uirtus latina e aponta

tambeacutem para uma diferenccedila de sentido em relaccedilatildeo ao valor guerreiro valour e o moral for virtue merit da

virtude ou do meacuterito Assim podemos entender abrvbarrethcent como a qualidade guerreira eou a distinccedilatildeo do meacuterito

da virtude de um homem nobre

19

diferenccedilas podem ser observadas mas por hora nos deteremos neste exemplo jaacute que no

proacuteximo toacutepico ―Apresentaccedilatildeo da Odisseacuteia discutiremos mais sobre essas questotildees

De todo o modo apesar de especificidades diversas o que importa eacute percebermos que

os heroacuteis homeacutericos buscam a timh a honra como meio de assegurarem sua a)reth

qualidade do guerreirodo nobre Isso porque ―() o homem homeacuterico soacute adquire consciecircncia

do seu valor pelo reconhecimento da sociedade a que pertence () ele mede a Arete proacutepria

pelo prestiacutegio que disputa entre seus semelhantes (Ibidem p 31) Portanto se tudo o que

almeja o homem homeacuterico eacute a timh para atraveacutes dela alcanccedilar a a)reth que eacute perpeacutetua daiacute

a sua negaccedilatildeo ou ultraje torna-se um grave problema pois ―Para o homem homeacuterico e para o

mundo da nobreza desse tempo a negaccedilatildeo da honra era em contrapartida a maior trageacutedia

humana(JAEGER 2001 p 31)

Muitos satildeo os exemplos na literatura grega a respeito dessa honra ultrajada

inclusive como disse Jaeger (2001) resultando em trageacutedia Aliaacutes o grande tema das

trageacutedias gregas seraacute justamente a queda de um heroacutei Em Aacutejax de Soacutefocles por exemplo o

heroacutei ao vecirc-se desonrado por ter sido preterido na disputa das armas de Aquiles parte para

vingar-se dos chefes gregos mas iludido por Atena mata animais do rebanho Ao reconhecer

a falha cometida resolve entatildeo matar-se por vecirc-se totalmente desonrado

Bem provavelmente estaacute no Canto I da Iliacuteada um dos maiores exemplos de

desonra da literatura grega Neste Canto Aquiles retira-se da guerra quando tem seu geraj

ou seja seu precircmio de guerra3 tomado por Agamecircmmnon Este geraj distingue o heroacutei dos

demais e sem ele natildeo pode ter a sua timh logo sem esta natildeo poderaacute alcanccedilar a a)reth A

importacircncia da timh fica bem clara nas palavras reclamantes de Aquiles a matildee vejamos

μῆτερ ἐπεί μ᾽ ἔτεκές γε μινυνθάδιόν περ ἐόντα

τιμήν πέρ μοι ὄφελλεν Ὀλύμπιος ἐγγυαλίξαι

355 Ζεὺς ὑψιβρεμέτης νῦν δ᾽ οὐδέ με τυτθὸν ἔτισεν

ἦ γάρ μ᾽ ἈτρεἸδης εὐρὺ κρείων Ἀγαμέμνων

ἠτίμησεν ἑλὼν γὰρ ἔχει γέρας4 αὐτὸς ἀπούρας5

(Iliacuteada I 353-357)

Matildee como me geraste de curta existecircncia

3 O referido precircmio era Briseide escrava de Aquiles que eacute tomada por Agamecircmnon ao ter que ceder a sua

escrava Criseide a fim de aplacar a fuacuteria de Apolo 4 Os destaques satildeo nossos

5 Texto disponiacutevel em

httpwwwhsaugsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_il01html acessado em 22 de

abril agraves 1604 hs

20

seria justo o Oliacutempio Zeus a minha honra fazer aumentar aquele que

355 ressoa do alto ceacuteu Agora em verdade ele natildeo me honra nem um

[pouco

pois o Atrida Agamecircmnon o poderoso senhor desonrou-me

jaacute que capturando tem o meu precircmio de guerra tendo ele mesmo

[arrancado-me

Esta busca de Aquiles em ter seu geraj e consequentemente sua timh eacute

natural e justificaacutevel pois este mundo grego arcaico girava em torno desses elementos Nesta

cena em que reclama agrave matildee sua honra e questiona o compromisso de Zeus com sua causa natildeo

haacute arrogacircncia por parte de Aquiles ele busca a realizaccedilatildeo de aidwj e nemesij ou seja do

pudor e da justiccedila Pois natildeo eacute justo que ele aleacutem de morrer jovem tenha tambeacutem que morrer

desonrado E tanto aidwj quanto nemesij ―satildeo em Homero conceitos constitutivos do

ideal eacutetico da aristocracia (JAEGER 2001 p28) Devemos perceber a significaccedilatildeo que estes

conceitos tecircm para o mundo homeacuterico e como satildeo representados a fim de que entendamos

seus valores e significados A citaccedilatildeo abaixo eacute bastante esclarecedora deste fato

Os heroacuteis travavam-se mutuamente com respeito e honra constantes

Assentava nisso toda a sua ordem social A acircnsia de honra era neles

simplesmente insaciaacutevel sem que isto seja caracteriacutestica moral peculiar aos

indiviacuteduos como tais Era natural e indiscutiacutevel que os heroacuteis maiores e os

priacutencipes mais poderosos exigissem uma honra cada vez mais alta Ningueacutem

receia na Antiguidade reclamar a honra devida a um serviccedilo prestado

(JAEGER 2001 p 31)

Como vemos eacute natural dos heroacuteis buscarem sua timh a fim de alcanccedilarem a

a)reth e isso para os gregos natildeo se confunde com vaidade mas pelo contraacuterio relaciona-

se agrave aspiraccedilatildeo do valor pessoal Na Odisseacuteia como jaacute foi dito essa a)reth estaacute relacionada agrave

virtude intelectual e natildeo guerreira como ocorre na Iliacuteada Por isso Odisseu destaca-se como

o polumhtij o muito astuto que remete a um valor intelectual diferentemente do epiacuteteto de

Aquiles aOacuteristoj a)xaiwcurrenn o melhor dos aqueus que se refere a sua qualidade guerreira de

superioridade de batalha em relaccedilatildeo aos demais

Aleacutem de observarmos essa modificaccedilatildeo conceitual que existe na a)reth da Iliacuteada

para a Odisseacuteia vecirc-se tambeacutem nesta a busca da gloacuteria feita atraveacutes da sobrevivecircncia e natildeo da

morte como ocorre na Iliacuteada Aquiles por exemplo pretende para ser imortalizado morrer

em campo de batalha jaacute Odisseu busca natildeo soacute viver mas sobreviver a todos os obstaacuteculos

para que em sua casa e em sua paacutetria alcance a gloacuteria domiciliar Esses fatos satildeo importantes

21

para que enxerguemos a natildeo homogeneidade nas representaccedilotildees e significaccedilotildees homeacutericas e

devem ser compreendidos em sua completude e diversidade O mundo grego representado por

Homero natildeo eacute homogecircneo assim sendo tambeacutem natildeo pode ser homogecircneo o mundo homeacuterico

de que tantos falam

A respeito da religiosidade Walter Friedrich Otto em Os deuses da Greacutecia (2005)

diz haver em Homero uma clara e natural expressatildeo religiosa Neste mundo de Homero vecirc-se

tambeacutem a organizaccedilatildeo divina a partir da religiatildeo oliacutempica que era segundo Otto mais

paternalista diferente da primordial relacionada agrave Gaicurrena a Terra e portanto mais ao

feminino Otto diz-nos tambeacutem que no mundo homeacuterico o contato com o morto natildeo vai

significar contaminaccedilatildeo ao contraacuterio do que comeccedila a ocorrer nas trageacutedias gregas Ao fazer

uma comparaccedilatildeo entre Hesiacuteodo e Homero ou seja dois representantes do mundo grego

arcaico Otto observa que em Hesiacuteodo temos narrativas mais proacuteximas do fantaacutestico do que

em Homero Segundo o autor Hesiacuteodo aproximar-se-ia do fantaacutestico com suas narraccedilotildees

sobre o surgimento do universo dos deuses dos poetas enfim Jaacute Homero ao contraacuterio

poupar-nos-ia de descriccedilotildees mais proacuteximas do fantaacutestico Para exemplificar sua tese Otto cita

o fato de que Atena mesmo epitetada por o)brimopater ou seja a filha do pai poderoso

natildeo teraacute em nenhum momento descriccedilatildeo do seu nascimento Atena como sabemos eacute

concebida a partir da cabeccedila do proacuteprio pai Zeus inclusive jaacute nascendo adulta e armada

Homero pode ateacute natildeo descrever este episoacutedio mas Hesiacuteodo o faz na Teogonia Vejamos o

excerto abaixo

Ζεὺς δὲ θεῶν βασιλεὺς πρώτην ἄλοχον θέτο Μῆτιν

πλεῖστα θεῶν εἰδυῖαν ἰδὲ θνητῶν ἀνθρώπων

ἀλλ ὅτε δὴ ῥ ἤμελλε θεὰν γλαυκῶπιν Ἀθήνην

τέξεσθαι τότ ἔπειτα δόλωι φρένας ἐξαπατήσας

890 αἱμυλίοισι λόγοισιν ἑὴν ἐσκάτθετο νηδὺν

Γαίης φραδμοσύνηισι καὶ Οὐρανοῦ ἀστερόεντος ()

Αὐτὸς δ ἐκ κεφαλῆς γλαυκώπιδα γείνατ Ἀθήνην

925 δεινὴν ἐγρεκύδοιμον ἀγέστρατον ἀτρυτώνην

πότνιαν ἧι κέλαδοί τε ἅδον πόλεμοί τε μάχαι τε

Ἥρη δ Ἥφαιστον κλυτὸν οὐ φιλότητι μιγεῖσα

γείνατο καὶ ζαμένησε καὶ ἤρισε ὧι παρακοίτηι

ἐκ πάντων τέχνηισι κεκασμένον Οὐρανιώνων6

(Teogonia 886-891924-929)

6 Texto disponiacutevel em httpwwwhs-

augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Hesiodoshes_theohtml acessado em 22 de abril agraves 2048

hs

22

Zeus rei dos Deuses primeiro desposou Astuacutecia

mais saacutebia que os deuses e os homens mortais

Mas quando ia parir a Deusa de olhos glaucos Atena

ele enganou sua entranhas com ardil

890 com palavras sedutoras e engoliu-a ventre abaixo

por conselhos de Terra e do Ceacuteu constelado

()

Ele proacuteprio da cabeccedila gerou a de olhos glaucos

925 Atena terriacutevel estrondante guerreira infatigaacutevel

soberana a quem apraz fragor combate e batalha

Hera por raiva e por desafio a seu esposo

natildeo unida em amor gerou Hefesto

nas artes brilho agrave parte de toda raccedila do Ceacuteu7

Ainda segundo Otto em Homero temos pela primeira vez uma ideacuteia clara a

respeito do destino humano Por isso no Canto XXII da Iliacuteada Atena ao impelir Heitor ao

combate com Aquiles natildeo o faz agir assim apenas por desafeto mas tambeacutem para ajudaacute-lo a

cumprir seu destino como bem explica Otto ―O divino se faz demoniacuteaco para quem foi

chamado pelo destino (2005 p 252)

Otto chama-nos a atenccedilatildeo para outro aspecto importante na representaccedilatildeo

homeacuterica a respeito da significaccedilatildeo das Moiras e as diferenccedilas de posicionamento em relaccedilatildeo

a elas por parte de Hesiacuteodo e Homero Desta maneira as Moiras referidas por Hesiacuteodo na

Teogonia fazem parte do mundo grego arcaico e cada uma cumpre uma funccedilatildeo especiacutefica

Cloto tece o fio da vida a Laacutequesis mede e a Aacutetropos corta

Na Teogonia elas satildeo sempre referidas no plural Moiras e satildeo representadas

como aquelas que nos datildeo bens e males ou seja datildeo a parte que nos cabe e esta pode ser boa

ou maacute Elas aparecem nomeadas tambeacutem por Queres Eriacutenias sempre no plural estatildeo sempre

pressentes em nascimentos mortes e casamentos e satildeo perseguidoras implacaacuteveis daqueles

que cometem crimes de sangue derramando sangue de parente Em Homero ao contraacuterio

essa representaccedilatildeo do destino eacute realizada no singular Moicurrenra e estaacute relacionada agraves

determinaccedilotildees negativas de morte quinhatildeo cataacutestrofe destino ndash esta observaccedilatildeo pode ser

feita principalmente na Iliacuteada Na Odisseacuteia contudo observamos uma exceccedilatildeo pois apesar

de serem unificadas daiacute a utilizaccedilatildeo do singular elas seratildeo responsaacuteveis pela determinaccedilatildeo do

destino de Odisseu e este estaacute destinado a alcanccedilar a meta traccedilada Mesmo assim apesar da

Moicurrenra ter-lhe destinado bens futuros Odisseu teraacute que passar por inuacutemeras dificuldades ateacute

7 Traduccedilatildeo de Jaa Torrano (2009)

23

que possa retornar ao lar Ateacute porque em Homero o caraacuteter da Moicurrenra eacute restritivo Assim

mesmo para Odisseu ela prescreve em muitos momentos que ele voltaraacute mas ainda natildeo ateacute

que venha a sofrer e cumprir todos os desiacutegnios

Na eacutepoca homeacuterica segundo Otto vemos tambeacutem a representaccedilatildeo de perda do

culto ao divino mais especificamente na Odisseacuteia Como exemplo maior desta situaccedilatildeo em

que o culto ao divino mostra-se enfraquecido constatamos em VIII v 267 a narraccedilatildeo por

Demoacutedoco do caso amoroso entre Ares e Afrodite servindo de contentamento para os

ouvintes assim o culto divino eacute transformado em diversatildeo Na Odisseacuteia Telecircmaco chega a

desconfiar se mesmo com a ajuda de Atena consiguiraacute vencer os pretendentes Esta

peculiaridade em Homero eacute importante pois influencia produccedilotildees poeacuteticas posteriores a

exemplo das trageacutedias em que o poder divino seraacute questionado

Sobre as variadas representaccedilotildees culturais que faz Homero do mundo grego

arcaico sabemos que ela natildeo eacute uniforme mesmo sendo a micecircnica a realidade central da

eacutepica homeacuterica Desse modo diz-nos Denys Page (1977) acerca da heterogeneidade

mimetizada por Homero que ―quando nos voltamos para o ambiente poliacutetico e social de

Homero a dificuldade estar em ele nos parecer um quadro composto com elementos de

civilizaccedilotildees diferentes (PAGE 1977 p 19) Assim temos nas obras homeacutericas todo um

arcabouccedilo de representaccedilotildees e evoluccedilotildees do mundo grego sejam estas religiosas culturais

linguumliacutesticas dos versos dos mitos heroacuteicos sejam divinas entre outras

12 Apresentaccedilatildeo da Odisseacuteia

A respeito da literatura grega podemos identificar no geral trecircs momentos

baacutesicos de produccedilatildeo literaacuteria ocorridos antes de Cristo satildeo eles o Periacuteodo Arcaico que se

inicia no seacuteculo VIII aC e termina em V aC o Periacuteodo Claacutessico de V aC ao seacuteculo IV aC

e o denominado Periacuteodo Alexandrino iniciado em IV aC e estendendo-se ateacute III aC

O Periacuteodo Arcaico (VIII ndash V a C) eacute o iniciador da literatura ocidental marcado

notadamente por forte influecircncia da oralidade dos rapsodos e aedos Nesse periacuteodo satildeo

compostas as obras iniciadoras de toda a literatura ocidental Iliacuteada e Odisseacuteia de Homero e

Teogonia e Os Trabalhos e os Dias de Hesiacuteodo A visatildeo de mundo dessa eacutepoca eacute regida pelas

24

leis da qemij para os deuses e dimacrkh para os homens o muordfqoj8 explica o mundo e sua

organizaccedilatildeo os heroacuteis defendem a paacutetria a famiacutelia e sua timh a honra para consagrarem-se

com a a)reth (a virtude guerreira intelectual da nobreza)

No Periacuteodo Claacutessico (seacuteculo V ndash IV a C) representa-se o mundo da poacutelis Nesse

periacuteodo natildeo haacute a centralizaccedilatildeo na lei divina dos deuses qemij nem na lei divina direcionada

aos homens dikh como ocorre no mundo arcaico Agora haacute o nomoj a lei escrita que deve

nortear os cidadatildeos da poacutelis Assim o loacutegoj atraveacutes do discurso e do raciociacutenio loacutegico eacute

quem explica o mundo sob a reflexatildeo filosoacutefica A literatura dessa fase representa por meio

das trageacutedias o conflito e a fragilidade humana diante desse mundo Dessa maneira observar-

se-aacute o conflito entre o muordfqoj e o loacutegoj ou seja os heroacuteis do mundo arcaico estaratildeo em

conflito com o novo mundo e suas novas leis Representam essa fase os tragedioacutegrafos

Eacutesquilo Soacutefocles e Euriacutepedes

No Periacuteodo Alexandrino (seacuteculo IV ndash III a C) temos a expansatildeo do mundo

grego atraveacutes de Alexandre o Grande (335-323 a C) e aproximadamente no seacuteculo III

aC a construccedilatildeo da Biblioteca de Alexandria que como sabemos reuacutene uma infinidade de

obras de extrema importacircncia sendo das maiores bibliotecas que o mundo antigo registra

Nesse periacuteodo Apolocircnio de Rhodes produz Argonaacuteuticas por volta de 295 aC Mas logo

apoacutes o povo romano que comeccedila a expandir suas conquistas e domiacutenios pelo mundo toma a

Greacutecia e a partir dessa influecircncia forma a sua proacutepria literatura

A Odisseacuteia entatildeo composta no seacuteculo VIII aC pertence ao chamado Periacuteodo

Arcaico (VIII ndash V a C) da literatura grega Sua autoria eacute atribuiacuteda a Homero e sabe-se que

foi produzida posteriormente agrave Iliacuteada apesar de natildeo podermos determinar com certeza qual o

periacuteodo de produccedilatildeo de ambas Contudo de acordo com Jaeger observamos que ―do ponto de

vista histoacuterico a Iliacuteada eacute um poema muito mais antigo A Odisseacuteia reflete um quadro muito

posterior da histoacuteria da cultura (JAEGER 2001 p 37) Na Iliacuteada temos como eixo central

da narraccedilatildeo a ira funesta de Aquiles sua retirada e retorno aos combates na Guerra de Troacuteia

Jaacute na Odisseacuteia o eixo estaacute no retorno de Odisseu agrave sua paacutetria e os combates que iraacute travar

com os pretendentes que apoacutes sua saiacuteda para a Guerra de Troacuteia invadem a sua casa

banqueteam-se diariamente pretendendo casar com a sua esposa e apossar-se de seus bens

8 Conforme nos esclarece Vernant em La gregravece ancienne du mythe agrave la raison (1990 p 9-11) em grego

arcaico mucurrenqoj significa palavra discurso mas a partir das discussotildees filosoacuteficas do seacuteculo V aC passa a

figurar em oposiccedilatildeo a logoj designando entatildeo a palavra pronunciada sem reflexatildeo racional contrariamente a

logoj que passa a ser o discurso racional diferenccedilas estas que natildeo existiam no mundo grego arcaico

25

Odisseu enfrenta muitos obstaacuteculos a fim de que possa retornar ao lar apoacutes vinte anos

afastado E ao voltar vecirc que desde entatildeo muitas coisas aconteceram seu filho que quando

ele saiacutera era apenas uma crianccedila cresceu sua matildee faleceu de saudades seu pai preferiu a

reclusatildeo sua esposa para ludibriar os pretendentes de dia tece uma mortalha para Laertes e

agrave noite desfaz-a Em suma o seu palaacutecio encontra-se invadido por pretendentes que natildeo

respeitaram os dons da hospitalidade e por isso seratildeo punidos

Realizando uma anaacutelise comparada entre a Iliacuteada e a Odisseacuteia podemos observar

algumas siginificativas diferenccedilas Entre elas podemos destacar a relaccedilatildeo entre o homem e o

divino Na Odisseacuteia por exemplo os homens possuem maior consciecircncia dos atos e

independecircncia em relaccedilatildeo aos deuses tanto que haacute pouca interferecircncia divina Natildeo

pretendemos dizer natildeo haver presenccedila divina na Odisseacuteia tanto que ilustramos algumas

dessas apariccedilotildees a trama inicia com uma assembleacuteia divina Palas Atena sempre acompanha

Odisseu eou Telecircmaco em suas jornadas e Possidon aparece para vingr-se para vingar-se de

quem feriu seu filho Polifemo Contudo percebe-se que haacute uma interferecircncia divina menor

se compararmos com a Iliacuteada Para este fato eacute bem ilustrativa a fala de Zeus abrindo a

Assembleacuteia dos Deuses no Canto I da Odisseacuteia sob o argumento de que os homens erram e

culpam os deuses por suas falhas Vejamos

ὢ πόποι οἷον δή νυ θεοὺς βροτοὶ αἰτιόωνται

ἐξ ἡμέων γάρ φασι κάκ᾽ ἔμμεναι οἱ δὲ καὶ αὐτοὶ

σφῆισιν ἀτασθαλίηισιν ὑπὲρ μόρον ἄλγε᾽ ἔχουσιν

35 ὡς καὶ νῦν Αἴγισθος ὑπὲρ μόρον ἈτρεἸδαο

γῆμ᾽ ἄλοχον μνηστήν τὸν δ᾽ ἔκτανε νοστήσαντα9 (Odisseacuteia I 32-36)

Oh grandes deuses Agora os mortais culpam os deuses

Pois de noacutes dizem vir a causa de todos seus males quando

eles mesmos por suas loucas presunccedilotildees suportam dores contra o destino

35 assim tambeacutem Egisto contra a decisatildeo do destino do Atrida

desposou a mulher legiacutetima e o matou depois do seu retorno

Na Iliacuteada ao contraacuterio temos a apariccedilatildeo e interferecircncia de diversos deuses em

diversos momentos da narrativa a fim de favorecerem seus aliados Apolo Atena Hera

Posiacutedon Ares Afrodite Apoacutes eles terem lutado a favor dos seus protegidos Zeus no Canto

VIII poriacutebe que eles atuem no campo de batalha vindo a liberaacute-los no Canto XX

9 Texto retirado de httpwwwhs-augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_od01html

agraves 1100hs de 15 de julho

26

Como vimos na Iliacuteada os deuses estatildeo o tempo todo a intervir a favor dos seus

Uma outra caracteriacutestica desta obra e que difere em relaccedilatildeo agrave Odisseacuteia estaacute no relato e

representaccedilatildeo social Isto ocorre porque na primeira haacute uma maior restriccedilatildeo em relaccedilatildeo aos

grupos sociais representados na obra em especial a aristocracia Jaacute a segunda possui um

quadro social mais amplo aparecendo a representaccedilatildeo natildeo soacute da aristocracia como tambeacutem

de pessoas de outra classe como porqueiros mendigo criadas enfim A representaccedilatildeo de

embates eacute mais acentuada na Iliacuteada que na Odisseacuteia por isso

O mais antigo dos poemas mostra-nos o predomiacutenio absoluto do estado de

guerra tal como devia ser no tempo das grandes migraccedilotildees das tribos gregas

A Iliacuteada fala-nos de um mundo situado num tempo em que domina

exclusivamente o espiacuterito heroacuteico da areteacute () A Odisseacuteia ao contraacuterio tem

poucas ocasiotildees para descrever o comportamento dos heroacuteis na luta

(BRANDAtildeO 1998 p 40)

A caracterizaccedilatildeo dos heroacuteis principais Aquiles da Iliacuteada e Odisseu da Odisseacuteia

tambeacutem forma outro ponto de divergecircncia entre os poemas Como sabemos o primeiro heroacutei

distingue-se por sua habilidade guerreira enquanto o segundo por sua habilidade com o

pensamento inteligecircncia Albin Lesky comparando os dois personagens resume de forma

esclarecedora a diferenccedila entre eles dizendo-nos que haacute ―uma prudente reflexatildeo frente a uma

nobre imoderaccedilatildeo um haacutebil espiacuterito de conciliaccedilatildeo face a uma brusca aspereza um prudente

caacutelculo do procedimento mais oportuno face agrave corrida precipitada pelo caminho mais curto

(LESKY 1995 p 60)

Em relaccedilatildeo agrave estrutura da Odisseacuteia comparando-a com a da Iliacuteada diz-nos

Aristoacuteteles no capiacutetulo 24 verso 1458b da Poeacutetica que aquela eacute bem mais complexa ateacute

mesmo por ter cenas de asup1nagnwiquestrisij Este como sabemos eacute um elemento estrutural

importante por atribuir mais complexidade ao enredo e na Odisseacuteia temos mais de uma

ocasiatildeo em que aparece asup1nagnwiquestrisij Por exemplo no Canto XVII versos 290-327 o

cachorro Argos reconhece Odisseu apoacutes vinte anos e jaacute cansado e velho aleacutem de toda a

emoccedilatildeo pela qual eacute tomado vem a falecer Observemos a cena como ocorre

300 ἔνθα κύων κεῖτ᾽ Ἄργος ἐνίπλειος κυνοραιστέων δὴ τότε γ᾽ ὡς ἐνόησεν10 Ὀδυσσέα ἐγγὺς ἐόντα

10

Este verbo ecopynoiquesthsen eacute o aoristo de noew que significa conhecer perceber Neste caso eacute importante

entendermos que o aoristo natildeo eacute tempo verbal nem modo e sim aspecto indicando a accedilatildeo pontual Essa

27

οὐρῆι μέν ῥ᾽ ὅ γ᾽ ἔσηνε καὶ οὔατα κάββαλεν ἄμφω ἆσσον δ᾽ οὐκέτ᾽ ἔπειτα δυνήσατο οἷο ἄνακτος ἐλθέμεν αὐτὰρ ὁ νόσφιν ἰδὼν ἀπομόρξατο δάκρυ ()

326 Ἄργον δ᾽ αὖ κατὰ μοῖρ᾽ ἔλαβεν μέλανος θανάτοιο αὐτίκ᾽ ἰδόντ᾽ Ὀδυσῆα ἐεικοστῶι ἐνιαυτῶι11 (Odisseacuteia XVII 290-327)

Ali jazia o cachorro Argos cheio de carrapatos

Por um lado como percebeu Odisseu passando proacuteximo

por outro abanou a cauda e baixou ambas orelhas

depois natildeo pocircde de ir para perto do seu senhor

Este tendo visto isso ao longe enxugou uma laacutegrima

Por sua vez o destino de negra morte levou Argos para baixo

Logo depois de ver Odisseu apoacutes vinte anos

Outros encontros de reconhecimento tambeacutem ocorrem ao longo da Odisseacuteia

como o de Telecircmaco que reconhece o pai quando este por orientaccedilatildeo de Atena aparece para

o filho em sua forma original (Canto XVI versos 180-219) o da ama Euricleacuteia que

reconhece Odisseu por meio de uma cicatriz (Canto XIX versos 467-500) Peneacutelope tambeacutem

reconhece o esposo quando este revela ter construiacutedo o proacuteprio leito ao casarem (Canto

XXIII versos 181-206) e Laertes pai de Odisseu reconhece o filho quando este lhe indica

todas as plantas que haacute na propriedade (Canto XXIV versos 320-346)

Como pudemos ver a Odisseacuteia possui suas peculiaridades em relaccedilatildeo agrave Iliacuteada

inclusive nas representaccedilotildees sociais e todas essas convergem para a afirmativa de que ela foi

escrita posteriormente A modificaccedilatildeo do sentido da abrvbarrethcent a ampliaccedilatildeo nas representaccedilotildees

sociais a relaccedilatildeo com os deuses a caracterizaccedilatildeo dos heroacuteis principais a complexidade

estrutural e o ponto de vista histoacuterico satildeo alguns exemplos de diferenccedilas existentes entre as

duas eacutepicas homeacutericas Por isso natildeo podemos referir-nos agraves eacutepicas homeacutericas englobando-as

num todo homogecircneo ateacute porque numa anaacutelise mais especiacutefica observamos diferenccedilas

relevantes apesar de possuiacuterem ligaccedilotildees claras uma com a outra

peculiaridade do verbo grego explica-se atraveacutes do verbo indo-europeu cujas formas indicavam apenas a noccedilatildeo

de aspecto E eram trecircs as noccedilotildees de aspecto o imperfectivo o perfectivo e o pontual (FARIA 1958) O

primeiro designava a accedilatildeo era inacabada o segundo a accedilatildeo acabada e o terceiro a accedilatildeo pontual por isso eacute

bastante usado em narrativas Na citaccedilatildeo acima Homero utilizou-se da forma do aoristo ecopynoiquesthsen que

traduzimos por ―percebeu ou seja indicando um fato pontual (aoristo) do momento em que o cachorro

reconhece Odisseu numa accedilatildeo que nem estaacute acabada (perfectivo) nem inacabado (imperfectivo) 11

Texto disponiacutevel em

httpwwwhsaugsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_od17html

28

A explanaccedilatildeo que fizemos tem como objetivo contextualizar situar e caracterizar o

nosso objeto de pesquisa o Canto XI da Odisseacuteia Tais referecircncias satildeo relevantes para que

compreendamos o seu todo e assim mais facilmente seja compreendida a nossa anaacutelise

especiacutefica que eacute analisar o traacutegico na Odisseacuteia mais especificamente no Canto XI

121 A Estrutura do poema

Como jaacute dissemos A Odisseacuteia enquadra-se no Periacuteodo Arcaico (VIII ndash V a C)

da literatura Grega e portanto possui marcas da oralidade como a repeticcedilatildeo e o uso de

epiacutetetos aleacutem de ter a partir do muordfqoj as explicaccedilotildees dos fatos Essa sociedade retratada

tem na a)reth a distinccedilatildeo de excelecircncia do nobre principalmente por meio do seu heroacutei

principal Odisseu soacute que mais especificamente relacionada agrave virtude intelectual de

inteligecircncia de astuacutecia e de prudecircncia

De estrutura complexa e narrada in medias res a Odisseacuteia naturalmente condiz

com os aspectos estruturais da epopeacuteia e que satildeo descritos por Aristoacuteteles no momento em

que a compara com a estrutura da trageacutedia Mas para que possamos entender a estrutura da

epopeacuteia faz-se necessaacuterio que entendamos primeiramente o que ela significa Esta

denominaccedilatildeo eacute oriunda do termo grego iexclepopoiia e serve para designar genericamente a

poesia eacutepica Esta palavra como indica Romizi (2007) eacute formada por eAtildepoj que significa

palavra o que eacute dito esta por sua vez relaciona-se ao verbo eagravepw dizer cantar nomear e a

poiew verbo temaacutetico que significa criar produzir Estes nomes possuem o mesmo radical

das palavras poihsij e poihthj a primeira refere-se agrave criaccedilatildeo poeacutetica e o segundo ao

criador da poesia A partir desse referencial etimoloacutegico podemos entender iexclepopoiia natildeo

simplesmente como poesia eacutepica como genericamente definem muitos dicionaacuterios mas como

o canto (eagravepw) daquilo que fora criado (poihsij) pelo poeta (poihthj) daiacute a formaccedilatildeo de

epopeacuteia (ecopypopoiia)

Assim entendido agora o que designamos como epopeacuteia podemos compreender

melhor a sua estrutura delineada primeiramente por Aristoacuteteles Na Poeacutetica o filoacutesofo define

a trageacutedia e para tanto realiza um estudo comparativo com a comeacutedia e com a epopeacuteia A

partir dessa comparaccedilatildeo podemos extrair o entendimento sobre a estrutura e as caracteriacutesticas

29

da epopeacuteia jaacute que em alguns momentos ela se assemelha e em outros diferencia-se da

trageacutedia objeto central da anaacutelise aristoteacutelica

Segundo Aristoacuteteles a trageacutedia e a epopeacuteia possuem uma semelhanccedila em relaccedilatildeo

aos objetos da imitaccedilatildeo isto porque em ambas imitam-se seres superiores os heroacuteis a

aristocracia enquanto que na comeacutedia satildeo imitados os chamados seres inferiores e todas as

suas caracteriacutesticas risiacuteveis Homero assim como os tragedioacutegrafos teria cantado com

unidade de accedilatildeo Assim explica Aristoacuteteles no capiacutetulo VII da Poeacutetica que Homero em suas

epopeacuteias delinea um argumento uacutenico agrupando-o com episoacutedios que convergem para o seu

eixo por isso natildeo canta toda a Guerra de Troacuteia nem muito menos todos os acontecimentos

da vida de Odisseu Apesar de que para Lesky (1995) haacute na Odisseacuteia algumas discussotildees

sobre a sua unidade principalmente em relaccedilatildeo agrave Telemaquia que vai do Canto I ao IV e que

alguns pensam ter sido uma parte ou um acreacutescimo Todavia mesmo diante dessas

controveacutersias Lesky diz-nos que nos importa saber que ela ―daacute voz a uma forccedila de

composiccedilatildeo e uma mestria de narraccedilatildeo que soacute se encontram nas grandes obras de arte Nesse

sentido tambeacutem ela constitui uma unidade (LESKY 1995 p 71)

Continuando a definiccedilatildeo sobre os gecircneros no capiacutetulo XXIV Aristoacuteteles diz que

a epopeacuteia difere da trageacutedia em relaccedilatildeo ao emprego e dimensatildeo do metro como tambeacutem pela

extensatildeo jaacute que a trageacutedia deve limitar seus fatos a um periacuteodo do sol enquanto a epopeacuteia

natildeo tem duraccedilatildeo limitada em contrapartida assemelham-se por tratarem de assuntos seacuterios

Como vemos a partir das comparaccedilotildees realizadas por Aristoacuteteles na tentativa de

elucidar as caracteriacutesticas da trageacutedia acabamos por compreender tambeacutem a estruturaccedilatildeo da

epopeacuteia Dessa maneira como epopeacuteia a Odisseacuteia nosso objeto de estudo realiza imitaccedilatildeo

de homens superiores possui argumento uacutenico e episoacutedios que o desenvolvem neste caso o

retorno de Odisseu Aleacutem de natildeo ter limitaccedilatildeo de duraccedilatildeo jaacute que durante toda a epopeacuteia

narram-se fatos ocorridos ao longo de vinte anos

Somado aos elementos estruturais da eacutepica apresentados por Aristoacuteteles e jaacute

exemplificados por noacutes anteriormente destacaremos agora a partir da Odisseacuteia o proecircmio a

narraccedilatildeo e o epiacutelogo que satildeo trecircs importantes elementos constitutivos do um texto eacutepico

O proecircmio eacute composto pela invocaccedilatildeo e pela proposiccedilatildeo Na Odisseacuteia ele se

encontra nos dez primeiros versos Atraveacutes da Teogonia (2007) entendemos o porquecirc da

invocaccedilatildeo processo no qual o poeta chama as Musas Vejamos o trecho abaixo

25 Μοῦσαι Ὀλυμπιάδες κοῦραι Διὸς αἰγιόχοιο

ποιμένες ἄγραυλοι κάκ ἐλέγχεα γαστέρες οἶον

30

ἴδμεν ψεύδεα πολλὰ λέγειν ἐτύμοισιν ὁμοῖα

ἴδμεν δ εὖτ ἐθέλωμεν ἀληθέα γηρύσασθαι

ὣς ἔφασαν κοῦραι μεγάλου Διὸς ἀρτιέπειαι

30 καί μοι σκῆπτρον ἔδον δάφνης ἐριθηλέος ὄζον

δρέψασαι θηητόν ἐνέπνευσαν δέ μοι αὐδὴν

θέσπιν ἵνα κλείοιμι τά τ ἐσσόμενα πρό τ ἐόντα

καί μ ἐκέλονθ ὑμνεῖν μακάρων γένος αἰὲν ἐόντων

σφᾶς δ αὐτὰς πρῶτόν τε καὶ ὕστατον αἰὲν ἀείδειν

35 ἀλλὰ τίη μοι ταῦτα περὶ δρῦν ἢ περὶ πέτρην12 (Teogonia 22-35)

Musas olimpiacuteades virgens de Zeus porta-eacutegide

―Pastores agrestes vis infacircmias e ventres soacute

sabemos muitas mentiras dizer siacutemeis aos fatos

e sabemos se queremos dar a ouvir revelaccedilotildees

Assim falaram as virgens do grande Zeus veriacutedicas

por cetro deram-me um ramo a um loureiro viccediloso

colhendo-o admiraacutevel e inspiraram-me um canto

divino para que eu glorie o futuro e o passado

impeliram-me a hinear o ser dos venturosos sempre vivos

e a elas primeiro e por uacuteltimo sempre cantar13

Assim como foi indicado na citaccedilatildeo acima na Odisseacuteia o poeta invocaraacute as

Musas a fim de que o ajudem a cantar o polumhtij ou seja o muito astucioso Odisseu No

proecircmio da Odisseacuteia como jaacute foi dito entre o primeiro e o deacutecimo verso do Canto I

encontramos tambeacutem a proposiccedilatildeo do poema e naturalmente o seu argumento que eacute cantar as

muitas aventuras e desventuras vividas por Odisseu e seus companheiros durante dez anos

desde que saiacuteram da Guerra de Troacuteia ateacute o retorno a Iacutetaca Vejamos

Ἄνδρα μοι ἔννεπε μοῦσα πολύτροπον ὃς μάλα πολλὰ

πλάγχθη14 ἐπεὶ Τροίης ἱερὸν πτολίεθρον ἔπερσεν

πολλῶν δ᾽ ἀνθρώπων ἴδεν ἄστεα καὶ νόον ἔγνω

πολλὰ δ᾽ ὅ γ᾽ ἐν πόντωι πάθεν ἄλγεα ὃν κατὰ θυμόν

5 ἀρνύμενος ἥν τε ψυχὴν καὶ νόστον ἑταίρων

ἀλλ᾽ οὐδ᾽ ὣς ἑτάρους ἐρρύσατο ἱέμενός περ

αὐτῶν γὰρ σφετέρηισιν ἀτασθαλίηισιν ὄλοντο

νήπιοι οἳ κατὰ βοῦς Ὑπερίονος Ἠελίοιο

12

Texto diponiacutevel em httpwwwhsaugsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Hesiodoshes_theohtml

retirado agraves 1633hs do dia 27 de abril de 2010 13

Traduccedilatildeo de Torrano (2009) 14

Neste proecircmio da Odisseacuteia verificamos que praticamente todas as formas verbais estatildeo no aoristo satildeo elas

plaiquestgxqh eOacutepersen iOacuteden eOacutegnw paiquestqen ecopyrruiquestsato oOacutelonto e acopyfeiiquestleto Essa constataccedilatildeo linguumliacutestica eacute

bem coerente com o teor literaacuterio desta citaccedilatildeo ateacute porque por tratar-se de um proecircmio em que os fatos satildeo

aunciados e resumido ao iniacutecio da narrativa entendemos natiralmente que natildeo deve haver noccedilatildeo verbal de

aspecto acabado (perfectivo) ou inacabado (imperfectivo) jaacute que as accedilotildees estatildeo sendo apenas pontualmente

assinaladas daiacute a pertinecircncia do uso do aoristo

31

ἤσθιον αὐτὰρ ὁ τοῖσιν ἀφείλετο νόστιμον ἦμαρ

10 τῶν ἁμόθεν γε θεά θύγατερ Διός εἰπὲ καὶ ἡμῖν15 (Odisseacuteia I 1-10)

Musa conta-me sobre o varatildeo de muitas voltas que muito

vagou depois que saqueou a sagrada cidade de Troacuteia

Viu as cidades de muitos homens e conheceu sua mente

no mar padeceu muitos sofrimentos de encontro ao seu acircnimo

esforccedilando-se por sua alma e pelo regresso dos companheiros

Poreacutem natildeo salvou os companheiros mesmo lanccedilando-se para isso

Pois pereceram por causa das accedilotildees insensatas deles mesmos

Tolos que devoravam os bois do Hiperiocircnio Sol

Por outro lado este os tirou o dia do retorno

Deusa filha de Zeus conta para noacutes a partir de qualquer ponto

Jaacute atraveacutes da narraccedilatildeo que eacute o desenvolvimento do argumento satildeo cantadas ao

longo dos vinte e quatro cantos e de seus quase treze mil versos todas as viagens e encontros

de Odisseu sua estada em Ogiacutegia a visita agrave Feaacutecia onde narra sua visita aos Lotoacutefagos aos

Ciclopes Eacuteolo os Lestrigotildees Circe a realizaccedilatildeo da evocaccedilatildeo aos mortos o encontro com as

Sereias Cila Cariacutebdes os Bois do Sol ateacute a sua volta para Iacutetaca onde efetua a chacina dos

pretendentes

No epiacutelogo por sua vez ocorre o fechamento da narrativa com uma nova

invocaccedilatildeo e com a abertura de perspectiva para um novo canto Na Odisseacuteia natildeo haacute uma

manifesta invocaccedilatildeo agraves Musas no fim da narraccedilatildeo como temos no iniacutecio mas deixa-se

abertura para um novo canto que neste caso seria o da instalaccedilatildeo da paz e da harmonia em

Iacutetaca Mas a paz para Odisseu e seu povo mesmo depois de vinte anos de aacuterduos e de intensos

trabalhos soacute iria se concretizar caso Odisseu seguindo as orientaccedilotildees de Tireacutesias dadas no

Canto XI fizesse uma nova viagem e cumprisse com os desiacutegnios divinos

Para que melhor possamos entender os episoacutedios ocorridos ao longo da Odisseacuteia e

o contexto em que se realiza o Canto XI - nosso objeto de anaacutelise - abaixo realizamos uma

siacutentese de cada Canto

Canto I - Ocorre a Assembleacuteia dos Deuses Os divinos reuacutenem-se com exceccedilatildeo de Posiacutedon a

fim de decidir o regresso de Odisseu a Iacutetaca visto que o heroacutei permanece na ilha de Calipso

haacute muito tempo sem perspectiva de regresso Fica decidido que ele deve voltar para sua paacutetria

e Atena disfarccedilada em Mentes rei dos Taacutefios vai ateacute Telecircmaco filho de Odisseu com

15

Texto disponiacutevel em

httpwwwhsaugsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_od01html retirado agraves 2107hs

de 27 de abril de 2010

32

Peneacutelope para aconselhaacute-lo e orientaacute-lo na busca do pai Neste iacutenterim ocorre a Festa dos

Pretendentes no palaacutecio de Odisseu

Canto II - Telecircmaco exortado por Atena convoca uma assembleacuteia com os itacenses para

solicitar um navio que o levasse a Pilo cidade de Nestor e a Esparta paacutetria do atrida

Menelau para que pudesse buscar informaccedilotildees sobre o pai Ele entatildeo parte escondido de sua

matildee logo apoacutes receber um navio de Noeacutemone e de revelar soacute a Euricleacuteia sobre sua partida

Canto III - O jovem priacutencipe chega a Pilo acompanhado por Atena disfarccedilada de Mentor e

encontram os Piacutelios no teacutermino da realizaccedilatildeo de sacrifiacutecios ao deus Posiacutedon Telecircmaco dirige-

se a Nestor perguntando por seu pai As suas respostas natildeo satildeo muito animadoras apenas faz

relatos sobre Troacuteia seu retorno com Menelau e o fim traacutegico de Agamecircmmnon Todavia

Nestor auxilia Telecircmaco em sua jornada enviando-lhe para Lacocircnia com Pisiacutestrato seu filho

Canto IV - Em Esparta Menelau recebe Telecircmaco com Pisiacutestrato O Atrida lhes conta sobre

o seu retorno dificultoso a destruiccedilatildeo de Troacuteia a profecia de Proteu a tristeza pela morte do

irmatildeo Agamecircmnon e a estadia de Odisseu na ilha de Calipso Telecircmaco natildeo tendo obtido as

notiacutecias que esperava prepara-se para retonar Em Iacutetaca ocorre uma assembleacuteia entre os

pretendentes a fim de tramarem uma emboscada para raptar Telecircmaco

Canto V ndash Na segunda Assembleacuteia dos Deuses fica decidido pelo imediato retorno de

Odisseu Atena solicita a Zeus para que Hermes vaacute a Ogiacutegia onde Odisseu estaacute retido e

liberte-o O cronida cumpre Entatildeo o heroacutei parte em uma jangada que construiu Jaacute no deacutecimo

oitavo dia em que navegava Odisseu eacute visto por Posiacutedon que levanta uma tempestade

destruindo a sua jangada Odisseu eacute salvo pelo veacuteu de Ino e chega agrave ilha dos Feaacutecios

Canto VI - Jaacute na terra dos Feaacutecios Odisseu eacute ajudado por Nausiacutecaa filha do rei dos Feaacutecios

A moccedila ao dormir sonha com Atena a pedir-lhe que fosse lavar roupas no rio Nausiacutecaa

obedece agraves instruccedilotildees de Atena e segue com algumas companheiras Apoacutes lavar as roupas

comeccedilam a brincar Odisseu que dormia desperta com o barulho e recorre ao auxiacutelio de

Nausiacutecaa Esta lhe concede oferece-lhe roupas e alimentos Eles partem para cidade

Canto VII - Seguindo as orientaccedilotildees de Nausiacutecaa ao chegar ao palaacutecio Odisseu ajoelha-se

aos peacutes da rainha Arete para que ela o envie para casa Alciacutenoo o rei dos Feaacutecios concede

33

sua solicitaccedilatildeo coloca-o ao seu lado e oferece-lhe comida Odisseu sem revelar-se conta

sobre o que lhe ocorreu desde que partira da ilha de Calipso ateacute o auxiacutelio de Nausiacutecaa

Canto VIII - Uma assembleacuteia eacute realizada pelos Feaacutecios para decidirem os meios de

devolverem o estrangeiro agrave sua terra Decidem pocircr a disposiccedilatildeo um navio para o seu retorno

Depois banqueteiam-se na casa do rei Alciacutenoo e jogam do disco Demoacutedoco o aedo dos

Feaacutecios comeccedila a cantar a amor de Ares e Afrodite e o cavalo de madeira que penetrou as

muralhas troianas Odisseu derrama laacutegrimas initerruptamente Alciacutenoo natildeo compreende

desconfia do heroacutei e pergunta o porquecirc do choro de onde ele vem e quem ele eacute

Canto IX - Odisseu revela sua identidade e filiaccedilatildeo iniciando a narraccedilatildeo de tudo o que

passou desde a sua saiacuteda da guerra de Troacuteia no paiacutes dos Ciacuteconos na Maleacuteia onde um vento

forte fez-lhes desviar-se do caminho indo para a terra dos Lotoacutefagos Depois param no paiacutes

dos Ciclopes onde o Polifemo devorou seis dos seus guerreiros O heroacutei astutamente

consegue escapar

Canto X - Odisseu vai buscar ajuda com Eacuteolo guardiatildeo dos ventos e recebe dele uma sacola

com todos os ventos O heroacutei dorme Seus companheiros pensando haver ouro na sacola

abrem-na entatildeo os ventos satildeo disparados aleatoriamente Odisseu acorda e volta para Eacuteolo

Este agora recusa a ajuda e expulsa-os A narraccedilatildeo aos Feaacutecios continua sobre a passagem

pela terra dos Lestrigotildees antropoacutefagos e de Circe feiticeira em Eacuteeia Nesta terra Odisseu jaacute

acomodado eacute exortado pelos companheiros para retornar Circe como prometera auxilia-o

no retorno e diz para ele ir ao Hades para falar com o adivinho Tireacutesias

Canto XI - Odisseu narra aos Feaacutecios como chegou agrave borda do Hades para consultar

Tireacutesias e sua evocaccedilatildeo aos mortos Pergunta a Tireacutesias se voltaria para casa e como deveria

proceder Tireacutesias daacute-lhe todas as informaccedilotildees diz-lhe inclusive que ele conseguiraacute o retorno

agrave paacutetria mas que enfrentaraacute muitas dificuldades Depois muitos mortos vatildeo se aproximando

de Odisseu como sua matildee Anticleacuteia e os companheiros de Troacuteia Aquiles Agamecircmnon e

Aacutejax

Canto XII - Relata sobre seu retorno desde o Hades ateacute Eacuteeia na ilha de Circe Esta o

adverte sobre os desafios que encontraraacute e como deve proceder Entatildeo Odisseu lanccedila-se ao

mar Primeiro resiste ao belo canto das Sereias depois passa por Cila e Cariacutebdes ateacute chegar agrave

34

ilha de Heacutelio Nesta seus companheiros natildeo resistem agrave fome e alimentam-se com as vacas do

deus Heacutelio desrespeitado o deus eacute vingado por Zeus que fulmina a nau de Odisseu e dos

demais Odisseu narra tambeacutem como sozinho chegou agrave ilha de Calipso apenas em uma balsa

Canto XIII - Termina a narraccedilatildeo aos Feaacutecios Impressionados Alciacutenoo e os demais

oferecem-lhe presentes em sinal de honra Como havia sido combinado os Feaacutecios levam

Odisseu a Iacutetaca e o deixam em solo paacutetrio Por castigo de Posiacutedon o navio que o leva eacute

petrificado ao retornar Atena auxilia Odisseu aconselha-o sobre a vinganccedila dos pretendentes

e desfigura-o em mendigo para natildeo ser reconhecido

Canto XIV - O agora aparente mendigo Odisseu chega agrave casa de um fiel serviccedilal o porqueiro

Eumeu Apesar de natildeo reconhecer seu rei concede-lhe toda a hospitalidade e o informa sobre

o que sofre com os desmandos do palaacutecio como as coisas estatildeo ocorrendo na cidade e diz que

acredita no retorno de Odisseu

Canto XV - Neste canto ocorre o retorno de Telecircmaco O priacutencipe permanecia ainda no reino

de Menelau mas em sonho Atena exorta-o retornar para Iacutetaca indicando-lhe o que fazer

para evitar a emboscada armada pelos pretendentes Presenteado por Menelau Telecircmaco

parte Em Iacutetaca vai direto para a casa de Eumeu

Canto XVI ndash Na casa de Eumeu Telecircmaco orienta o porqueiro para que avise a sua matildee do

seu retorno Odisseu e Tlecircmaco por obra de Atena se reconhecem e tramam a vinganccedila dos

pretendentes Eumeu retorna do palaacutecio apoacutes dar a notiacutecia a Peneacutelope do retorno do seu filho

Canto XVII - Odisseu vai com Eumeu para o seu palaacutecio enquanto Telecircmaco conta agrave matildee o

que ocorreu em sua viagem No paacutetio do palaacutecio Argos o velho catildeo de Odisseu reconhece-o

apoacutes os vinte anos decorridos e morre O rei disfarccedilado em mendigo eacute insultado por

Antiacutenoo um dos pretendentes

Canto XVIII - A fim de satisfazer os pretendentes Odisseu luta com Ino um mendigo no

palaacutecio Peneacutelope recrimina o tratamento dado ao estrangeiro questiona a Telecircmaco a falta de

firmeza diante daquela injusticcedila Odisseu como hoacutespede por decisatildeo de Peneacutelope fica esta

noite na sala da casa Todos vatildeo dormir depois de beberem e comerem

35

Canto XIX - Odisseu diz a Peneacutelope ser de Creta e garante que seu esposo iraacute voltar

Peneacutelope muito astuta natildeo acredita na histoacuteria criada e questiona Ele responde corretamente

mas ela natildeo acredita que o Rei regressaraacute Manda que as criadas sirvam bem o hoacutespede A

ama Euricleacuteia lava seus peacutes e o reconhece por uma antiga cicatriz Diante das evidecircncias o

heroacutei confirma a descoberta mas diz para que ela natildeo o revele

Canto XX - Os pretendentes novamente reuacutenem-se em banquete Odisseu pede a Zeus que

de sua casa surja algueacutem para ajudar-lhe na vinganccedila como um sinal de que sairia vitorioso

Zeus faz trovejar e aparece uma criada que lhe conta o pressaacutegio Pede ainda que Zeus

sinalize se aquele eacute o uacuteltimo dia de gozo dos pretendentes em seu palaacutecio Mais uma vez

Zeus faz trovejar Odisseu alegra-se e vai conversar com Eumeu e Fileacutecio Os pretendentes

banqueteiam-se

Canto XXI - Atena instiga no coraccedilatildeo de Peneacutelope uma atitude para pocircr fim agravequela indecisatildeo

e agraves regalias dos pretendentes os quais vinham a sua casa banquetear-se desrespeitando os

dons da hospitalidade Entatildeo ela corre pega o arco de Odisseu e diz que casaraacute com aquele

que o envergar retesar a corda e remessar a seta pelos doze orifiacutecios Os pretendentes vatildeo

tentando inutilmente Eacute a vez de Odisseu ainda como mendigo Todos desacreditam mas eis

que ele cumpre o indicado e triunfa sobre todos

Canto XXII ndash Odisseu revela-se como o senhor de Iacutetaca e inicia a chacina dos pretendentes

Atena estaacute presente em seu auxiacutelio Melacircntio aparece com armas e escudos Odisseu abalado

diz a Telecircmaco que algueacutem os traiu O priacutencipe revela ser o culpado em deixar a porta aberta

e manda fechar a porta Telecircmaco e os fieacuteis serventes Eumeu e Fileacutecio partem para vingar-se

dos serviccedilais e de Melacircntio O aedo e o arauto satildeo poupados da chacina

Canto XXIII ndash Euricleacuteia apoacutes a chacina avisa a Peneacutelope que seu esposo chegara e havia se

vingado dos pretendentes Desconfiada diz que a ama enlouqueceu Mas quis ver a chacina e

quem a realizou De frente para Odisseu permaneceu descrente Telecircmaco acusa a matildee de

frieza mas Odisseu o conteacutem Ela soacute acredita no retorno do esposo quando ele diz como foi

quem construiu o leito do casal Ela entatildeo abraccedila-o saudando seu regresso

Canto XXIV - As almas dos pretendentes satildeo guiadas por Hermes ateacute o Hades Odisseu vai

ateacute seu pai Laertes que demora a acreditar em seu retorno e pede um sinal Odisseu mostra a

36

cicatriz nomeia e quantifica cada fruteira do pomar O pai convencido fraqueja os joelhos e

vai em laacutegrimas abraccedilar o filho Nem tudo estaacute apaziguado pois as famiacutelias dos

pretendentes mortos realizam uma revolta Atena interveacutem para que a ordem seja instaurada

Objetivando comentar acerca da estrutura da Odisseacuteia vimos primeiramente os

periacuteodos da literatura grega com sua duraccedilatildeo e especificidade Depois a fim que pudeacutessemos

melhor explicar a significaccedilatildeo da epopeacuteia claacutessica remetemos nosso estudo para a etimologia

de epopeacuteia do grego epopoiia e sua significaccedilatildeo Passamos entatildeo para as ponderaccedilotildees de

Aristoacuteteles sobre a estrutura da epopeacuteia seu objeto de imitaccedilatildeo duraccedilatildeo suas semelhanccedilas e

diferenccedilas em relaccedilatildeo agrave trageacutedia a fim de compreendermos agrave luz da Poeacutetica as

peculiaridades do gecircnero eacutepico A invocaccedilatildeo a proposiccedilatildeo e a narraccedilatildeo as trecircs partes

estruturais da eacutepica tambeacutem foram referidas por noacutes neste toacutepico e que foram

exemplificados na Odisseacuteia Apoacutes identificar os cantos e versos em que cada parte se realiza

fizemos uma siacutentese de cada Canto Este uacuteltimo processo foi importante para que pudeacutessemos

destacar os episoacutedios narrados ao longo dessa epopeacuteia como tambeacutem para situar o nosso

objeto de pesquisa o Canto XI da Odisseacuteia dentro da obra e do processo sequencial dos

acontecimentos que nele se inserem Por meio dessas etapas constitutivas e construtivas do

presente trabalho acreditamos ter realizado uma apresentaccedilatildeo geral sobre a obra na qual se

insere o nosso corpus

122 Odisseu o heroacutei multifacetado

Antes de inciarmos nossa discussatildeo sobre o multifacetado Odisseu pretendemos

expor brevemente sobre heroacutei e sua significaccedilatildeo no mundo claacutessico Buscando as definiccedilotildees

do Le Grand Bailly (2000) deparamo-nos com a seguinte traduccedilatildeo para hAgraverwj maicirctre chef

noble e completa ―de tout homme noble par la naissance le courage ou le talent (BAILLY

2000 p 909) ou seja o senhor o chefe o nobre e ―todo homem de descendecircncia nobre de

coragem ou de talento Liddell amp Scottlsquos em A Greek-English lexicon (1996) datildeo-nos a

traduccedilatildeo primaacuteria hero (heroacutei) e exemplificam que ―in Homer not restricted to warriors but

applied to all free men of that age as to minstrel the herald (LIDDEL amp SCOTT 1996 p

309) Quer dizer ―em Homero natildeo se restringe apenas aos guerreiros mas se aplica a todo

37

homem livre daquela eacutepoca o menestrel o arauto (Ibidem) Vale ressaltar que essas

definiccedilotildees dos dicionaacuterios baseiam-se na vasta literatura do mundo claacutessico grego a fim de

tentar defini-lo

Para compreendermos melhor a significaccedilatildeo do heroacutei claacutessico veremos tambeacutem

os posicionamentos de Hesiacuteodo e Aristoacuteteles No mito das cinco raccedilas presente em Os

trabalhos e os dias Hesiacuteodo enumera a existecircncia de cinco raccedilas humanas A Raccedila de Ouro a

Raccedila de Prata a Raccedila de Bronze a Raccedila dos Heroacuteis e a Raccedila de Ferro Como vemos as raccedilas

satildeo nomeadas a partir do valor dos metais ouro prata bronze mas entre a de bronze e a de

ferro temos a dos heroacuteis Esta se encontra especificamente dos versos 156 ao 172 Hesiacuteodo a

define como a os hcedilmiqeoi (V 160) os semi-deuses dos oAtildelbioi hAgraverwej (V 172) os heroacuteis

venturosos Uma raccedila criada por Zeus mais justa mais corajosa e de descendecircncia divina dos

que atuaram em Tebas levando muitos agrave morte e outros em Troacuteia por causa de Helena

Diante disso ao morrerem os heroacuteis satildeo levados por ZeuUumlj Kronidhj (V 168) o Zeus

Cronida para a Ilha dos Bem-Aventurados

Aristoacuteteles na Poeacutetica em 1453a define os heroacuteis como seres de situaccedilatildeo

intermediaacuteria pelo fato de que nem satildeo virtuosos nem justos em demasia como tambeacutem natildeo

satildeo tatildeo maldosos aleacutem de pertencerem ao grupo dos que gozam de prestiacutegio e poder e que

satildeo superiores aos homens Por isso seriam os personagens ideais da trageacutedia mesmo porque

as falhas que cometem satildeo muito mais por consequecircncia de um erro do que por falha de

caraacuteter Assim o erro dos heroacuteis conforme preconiza Aristoacuteteles eacute proveniente da accedilatildeo e

natildeo do caraacuteter do personagem Aleacutem do mais o fato de ter prestiacutegio perante a sociedade

tambeacutem facilita a realizaccedilatildeo da empatia do puacuteblico para com o personagem traacutegico e

consequentemente a efetivaccedilatildeo da katarsij16

Odisseu como heroacutei possui os elementos descritos anteriormente Assim como eacute

mostrado no Le Grand Bailly (2000) eacute de descendecircncia nobre um homem de coragem jaacute

segundo Liddlel amp Scott (1996) ele eacute tanto o guerreiro como tambeacutem o aedo basta-nos

lembrar dos Cantos VIII IX X XI e XII da Odisseacuteia quando o heroacutei relata todos os

acontecimentos pelos quais passou ateacute o presente momento Como pressupotildee Hesiacuteodo ele eacute

da raccedila dos heroacuteis que atuou em Troacuteia portanto eacute justo e corajoso de descendecircncia divina

Vale lembrar que Odisseu filho de Laertes eacute descendente da raccedila de Deucaliatildeo e este por

sua vez do titatilde Prometeu Vejamos abaixo a genealogia de Odisseu

16

Esse termo aristoteacutelico seraacute melhor discutido por noacutes no segundo e terceiro capiacutetulos quando detivermos a

nossa anaacutelise para a conceituaccedilatildeo e anaacutelise do traacutegico

38

Prometeu ~ Cliacutemene

darr

Deucaliatildeo ~ Pirra

darr

Deacuteion ~ Diomedes

darr

Ceacutefalo Hermes ~ Quiacuteone

darr darr

Arciacutesio ~ Calcomedusa Autoacutelico ~ Antiacutefea

Laertes ~ Anticleacuteia

darr

Odisseu ~ Peneacutelope

darr

Telecircmaco

Aleacutem disso como pressupotildee Aristoacuteteles Odisseu possui como todo e qualquer

heroacutei prestiacutegio e poder e seu caraacuteter nem eacute tatildeo virtuoso nem tatildeo maleacutefico Deste modo apoacutes

esta breve elucidaccedilatildeo a respeito do heroacutei grego entendemos que natildeo eacute aleatoacuterio o fato de

Odisseu ser o personagem principal e por isso mesmo seu nome daacute o tiacutetulo de uma das mais

importantes obras do ocidente a Odisseacuteia Esta como jaacute dissemos propotildee cantar os seus

feitos desde que partiu de Troacuteia ateacute seu tatildeo pretendido retorno ao lar Por tudo isso Odisseu

eacute um dos maiores e mais completos siacutembolos do heroiacutesmo claacutessico ndash eacute piedoso astuto viril

Aleacutem de assumir as funccedilotildees do heroacutei indo-europeu sacerdotal empreendedor e guerreiro

prescritas por Dumeacutezil em Mythe et Epopee (1995) Natildeo iremos nos alongar nestas

ponderaccedilotildees mas a seguir comentaremos brevemente acerca das identificaccedilotildees de Odisseu

com essas funccedilotildees

A primeira funccedilatildeo a sacerdotal realiza-se a partir do caraacuteter piedoso e temente

aos deuses de Odisseu Para exemplificar eacute soacute nos remetermos ao Canto XII ao contraacuterio dos

seus companheiros Odisseu natildeo se alimenta dos bois do Sol Por saber que tal ato ofende uma

divindade ele evita a imprudecircncia da desonra jaacute seus companheiros cometem a cediluagravebrij e por

isso todos eles seratildeo punidos por Zeus

A segunda a de empreendedor daacute-se atraveacutes de seu empreendedorismo de

fundador e solidificador de cidades fato que pode ser observado ateacute mesmo pela busca da

gloacuteria domeacutestica e natildeo em campo de batalha Lembremos inclusive que Odisseu prefere a

39

mortalidade agrave imortalidade bem como renega a eterna juventude oferecida por Calipso para

regressar a Iacutetaca

A terceira funccedilatildeo do indo-europeu a de guerreiro pode ser vista mais

explicitamente no Canto XXII entre os versos 401 a 406 quando Odisseu realiza a chacina

dos pretendentes e eacute comparado a um leatildeo ensanguentado em meio a suas viacutetimas Estas

compotildeem um nuacutemero de cento e dezesseis jaacute contando com os pretendentes e os servos

Vejamos a referida passagem

εὗρεν ἔπειτ᾽ Ὀδυσῆα μετὰ κταμένοισι νέκυσσιν

αἵματι καὶ λύθρωι πεπαλαγμένον ὥστε λέοντα

ὅς ῥά τε βεβρωκὼς βοὸς ἔρχεται ἀγραύλοιο

πᾶν δ᾽ ἄρα οἱ στῆθός τε παρήϊά τ᾽ ἀμφοτέρωθεν

405 αἱματόεντα πέλει δεινὸς δ᾽ εἰς ὦπα ἰδέσθαι

ὣς Ὀδυσεὺς πεπάλακτο πόδας καὶ χεῖρας ὕπερθεν17

(Odisseacuteia XXII 401- 406)

Entatildeo encontrou Odisseu junto aos cadaacuteveres que havia matado

manchado de sangue e impureza Do mesmo modo que um leatildeo

apoacutes devorar um boi do campo vai embora

Todo o seu peito e as mandiacutebulas de ambos os lados tinha ensanguumlentados

Assim terriacutevel nas faces era de se ver

Deste modo Odisseu em cima tinha manchados as matildeos e os peacutes

Como jaacute antecipamos em toacutepico anterior a Iliacuteada e Odisseacuteia diferem em alguns

aspectos e um deles eacute a caracterizaccedilatildeo do heroacutei Uma diferenccedila baacutesica eacute que a gloacuteria de

Odisseu natildeo se relaciona agrave morte no campo de batalha Jaacute para Aquiles a kaloj qanatoj

a bela morte deve ser imprescindivelmente conquistada em campo de batalha pois de outra

maneira o heroacutei natildeo alcanccedilaria a gloacuteria eterna Deste modo para conseguir a pretendida

gloacuteria Aquiles natildeo pode voltar a seu lar jaacute Odisseu tem de voltar por isso Vernant diz que

ele eacute ―o homem da relembranccedila disposto a aceitar todas as provas e todos os sofrimentos para

cumprir seu destino () voltar e encontrar-se consigo mesmo (VERNANT 2000 p 36)

Assim eacute o ―heroacutei do retorno (Ibidem)

Na Iliacuteada por exemplo por mais que saibamos que o heroacutei principal cantado seja

Aquiles este em muitos momentos divide seu posto com outros heroacuteis os quais inclusive

tecircm um momento especiacutefico soacute para serem cantados Deste modo no Canto V temos a aristia

de Diomedes no VII o combate singular entre Heitor e Aacutejax no XI a aristia de Agamecircmnon

17

Texto retirado em 30 de abril de 2010 agraves 1024hs de httpwwwhs-

augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_od22html

40

no Canto XVI os feitos gloriosos de Paacutetroclo e no XVII a aristia de Menelau entre outros

Como se pode ver cantos seratildeo dedicados agrave exaltaccedilatildeo de outros heroacuteis e dos seus feitos

proporcionando uma descentralizaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave figura do heroacutei maior Aquiles

Na Odisseacuteia ao contraacuterio temos uma centralizaccedilatildeo do siacutembolo heroacuteico a partir de

Odisseu Este conduz o percurso de quase todos os cantos como eixo de glorificaccedilotildees salvo

em alguns momentos em que se daacute espaccedilo para Telecircmaco a chamada Telemaquia (nos

Cantos I ao IV) mas esta natildeo proporciona uma descentralizaccedilatildeo e sim uma acentuaccedilatildeo da

centralizaccedilatildeo visto que eacute a saga do filho de Odisseu assim constitui o siacutembolo da

descendecircncia heroacuteica18

Siacutembolo de piedade de prudecircncia e de respeito ao pudor (aidwj) Odisseu

sempre honra as divindades e esse eacute o argumento utilizado por Atena para Zeus ao pedir que

Odisseu possa regressar ao lar No Canto XXII entre os versos 401 a 416 apoacutes ter matado os

pretendentes e encontrar-se ensanguentado em meio a todos eles Odisseu encontra a ama

Euricleacuteia e esta regozijando-se de alegria eacute contida pelo heroacutei Observemos a accedilatildeo do

prudente Odisseu

εὗρεν ἔπειτ᾽ Ὀδυσῆα μετὰ κταμένοισι νέκυσσιν

αἵματι καὶ λύθρωι πεπαλαγμένον ὥστε λέοντα

ὅς ῥά τε βεβρωκὼς βοὸς ἔρχεται ἀγραύλοιο

πᾶν δ᾽ ἄρα οἱ στῆθός τε παρήϊά τ᾽ ἀμφοτέρωθεν

405 αἱματόεντα πέλει δεινὸς δ᾽ εἰς ὦπα ἰδέσθαι

ὣς Ὀδυσεὺς πεπάλακτο πόδας καὶ χεῖρας ὕπερθεν

ἡ δ᾽ ὡς οὖν νέκυάς τε καὶ ἄσπετον εἴσιδεν αἷμα

ἴθυσέν ῥ᾽ ὀλολύξαι ἐπεὶ μέγα εἴσιδεν ἔργον

ἀλλ᾽ Ὀδυσεὺς κατέρυκε καὶ ἔσχεθεν ἱεμένην περ

410 καί μιν φωνήσας ἔπεα πτερόεντα προσηύδα

ἐν θυμῶι γρηῦ χαῖρε καὶ ἴσχεο μηδ᾽ ὀλόλυζε

οὐχ ὁσίη κταμένοισιν ἐπ᾽ ἀνδράσιν εὐχετάασθαι

τούσδε δὲ μοῖρ᾽ ἐδάμασσε θεῶν καὶ σχέτλια ἔργα

οὔ τινα γὰρ τίεσκον ἐπιχθονίων ἀνθρώπων

415 οὐ κακὸν οὐδὲ μὲν ἐσθλόν ὅτις σφέας εἰσαφίκοιτο

τῶι καὶ ἀτασθαλίηισιν ἀεικέα πότμον ἐπέσπον19 (Odisseacuteia XXII 401- 416)

18

Ver quadro genealoacutegico na paacutegina 40 19

Texto disponiacutevel em httpwwwhs-

augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_od22html agraves 1500hs de 15 de julho de

2010

41

Entatildeo encontrou Odisseu junto aos cadaacuteveres que havia matado

Tendo sido manchado com sangue e impureza Do mesmo modo

que um leatildeo apoacutes devorar um boi do campo que em consequumlecircncia

possui todo o peito e as mandiacutebulas ensanguumlentadas dos dois lados

assim ele se encontra e faz-se ver em direccedilatildeo ao terror

Deste modo as matildeos e os peacutes de Odisseu estavam em cima manchados

Entatildeo a ama Euricleacuteia viu os cadaacuteveres e o imenso sangue

e eacute verdade que atacou a gritar quando viu o grande trabalho

Mas Odisseu a deteve e decerto segurou sua agitaccedilatildeo

Tambeacutem ele mesmo tendo falado alto dirigia-lhe essas palavras aladas

Na alma velha alegra-te mas natildeo grita reprime pois para si

Natildeo eacute da lei divina manifestar-se assim sobre os homens que perecem

Estes o destino dos deuses submeteu como tambeacutem a seus trabalhos

[funestos

Eles natildeo respeitavam nenhum dos homens viventes da terra

nem o mau nem certamente o bom que a eles se apresentou

E por essas accedilotildees insanas perseguiu-lhes o destino indigno

Junito Brandatildeo em Introduccedilatildeo ao mito dos heroacuteis (1998) relata sobre a origem

do termo grego hAgraverwj que teria sido oriunda da forma do indo-europeu serva relacionada

tambeacutem ao termo latino seruuare daiacute o fato de a palavra heroacutei significar aquele que nasceu

para servir Odisseu cumpre bem esta tarefa de servidor de uma naccedilatildeo haja vista seu

importante papel na Guerra de Troacuteia participando da embaixada a Aquiles idealizando o

Cavalo de Troacuteia e em seu retorno a Iacutetaca estabelecendo a paz e a ordem junto com Atena

em sua paacutetria

Ainda segundo Junito o heroacutei tem que enfrentar dificuldades em sua trajetoacuteria

como tambeacutem em seu nascimento ser filho de mortal com imortal ter educaccedilatildeo diferenciada

dos demais e passar pelos ritos de formaccedilatildeo iniciaacutetica e de passagem No primeiro rito o

heroacutei ausenta-se do pai eou da paacutetria como faz Telecircmaco no Canto I da Odisseacuteia que em

busca do seu pai teve que sair de Iacutetaca sua paacutetria no segundo o heroacutei realiza seu momento

de transiccedilatildeo com algum grande feito como descer ao Hades desvendar a saiacuteda de um

labirinto entre tantos outros Na Odisseacuteia por exemplo o rito de passagem do Laertida eacute

realizado no Canto XI apoacutes realizar a nemacrkuia20 e vecirc-se devidamente pronto e experimentado

para saber como fazer e como deve agir para retornar a seu tatildeo pretendido lar

No geral como explica-nos Brandatildeo o heroacutei eacute representado belo mas sempre tecircm

algumas deficiecircncias fiacutesicas como o gigantismo em excesso a exemplo de Heacuteracles ou

estatura baixa demais como eacute o caso de Odisseu Sobre este fato Charles Beye comenta ―a

20

Em grego nemacrkuia indica o ritual de sacrifiacutecio feito aos mortos

42

definiccedilatildeo tradicional de heroacutei pressupotildee em geral beleza fiacutesica e forccedila O Odisseu pode ter

sido forte mas parece que natildeo foi nenhum modelo de beleza (BEYE 2006 p 58)

Ateacute o momento discutimos caracteriacutesticas gerais a respeito dos heroacuteis gregos

sejam atraveacutes das definiccedilotildees baacutesicas como a dos dicionaacuterios didaacuteticas como as de Hesiacuteodo

filosoacuteficas e literaacuterias como as de Aristoacuteteles sejam as analiacuteticas e teoacutericas como as de

Junito Neste percurso tentamos relacionar as caracteriacutesticas citadas de heroiacutesmo ao

personagem maior da Odisseacuteia

Neste instante partiremos para uma anaacutelise mais especiacutefica do perfil de Odisseu

representado na Odisseacuteia Para tanto escolhemos os cinco primeiros versos do seu proecircmio21

e dois dos epiacutetetos de Odisseu polutropoj e polumhtij Esta delimitaccedilatildeo faz-se

relevante para que possamos abarcar da melhor maneira possiacutevel o objeto em questatildeo

Como sabemos os epiacutetetos satildeo recursos comuns na literatura grega em geral

principalmente na arcaica por sua ligaccedilatildeo com a oralidade Deste caraacuteter oral proveacutem a

importacircncia da utilizaccedilatildeo de alguns recursos como por exemplo o dos epiacutetetos as repeticcedilotildees

num processo mnemocircnico Diante deste fato Junito Brandatildeo (1998) informa-nos a partir dos

dados colhidos por Lloyd-Jones que na eacutepica homeacuterica haacute ao todo vinte e oito mil versos e

vinte e cinco mil frases pequenas ou longas repetidas Os epiacutetetos tambeacutem fazem parte destes

recursos mnemocircnicos por isso Junito cita a pesquisa realizada por Joseacute Marques Leite a qual

atesta a existecircncia de quatro mil quinhentos e sessenta epiacutetetos utilizados nos seus dois

poemas

Desta maneira importante natildeo apenas como recurso literaacuterio como tambeacutem

mnemocircnico Homero utiliza-se aleacutem da representaccedilatildeo pela accedilatildeo dos epiacutetetos para simbolizar

os atributos heroacuteicos de Odisseu ilustrando as caracteriacutesticas especiacuteficas do heroacutei

Selecionamos o proecircmio e os dois epiacutetetos jaacute citados para que a partir deles possamos

revelar os elementos qualitativos que constituem a formaccedilatildeo do Odisseu Ateacute porque assim

como passa vinte anos distante de sua paacutetria seu nome natildeo consta nos vinte primeiros versos

sendo entatildeo sua referecircncia realizada pela citaccedilatildeo de seus feitos e pelo epiacuteteto polutropoj

Observemos os cinco primeiros versos do proecircmio da Odisseacuteia

21 Haacute um estudo interessante sobre o proecircmio da Odisseacuteia e que nos auxiliou na construccedilatildeo deste trabalho Este

eacute intitulado ―Polluacute Pollaacute Pollocircn Multiplicidade no proecircmio da Odisseacuteia de Andreacute Malta (USP) e estaacute

disponiacutevel em httpwwwscieloorgarscielophpscript=sci_arttextamppid=S0328-12052007000100004

43

Ἄλδξα κνη ἔλλεπε κνῦζα πολύτροπον ὃο κάια πολλὰ

πιάγρζε ἐπεὶ Τξνίεο ἱεξὸλ πηνιίεζξνλ ἔπεξζελ

πολλῶν δ᾽ ἀλζξώπσλ ἴδελ ἄζηεα θαὶ λόνλ ἔγλσ

πολλὰ δ᾽ ὅ γ᾽ ἐλ πόληση πάζελ ἄιγεα ὃλ θαηὰ ζπκόλ

5 ἀξλύκελνο ἥλ ηε ςπρὴλ θαὶ λόζηνλ ἑηαίξσλ22

Musa conta-me sobre o heroacutei de muitas voltas que muito

errou depois que saqueou a sagrada cidade de Troacuteia

Viu as cidades de muitos homens e conheceu sua mente

no mar padeceu muitos sofrimentos de encontro ao seu acircnimo

esforccedilando-se por sua alma e pelo regresso dos companheiros

Como vemos o primeiro epiacuteteto utilizado para Odisseu eacute o de polutropoj para

o qual Bailly daacute a traduccedilatildeo ―qui se tourne en beaucoup de sens (BAILLY 2000 p 1601) ou

seja o que se volta em muitos sentidos ou versatile astuto versaacutetil astuto como traduz

Romizi (2007) Mas estudando a formaccedilatildeo deste epiacuteteto polutropoj observamos que ele eacute

feito pela junccedilatildeo de polu expressatildeo adjetiva de quantidade intensificadora que significa

muito mais o substantivo masculino tropoj que significa modo maneira atitude direccedilatildeo

Este substantivo por sua vez eacute originado do verbo trepw voltar tornar dirigir Esta

retomada ao verbo que origina o epiacuteteto muito nos esclarece visto que Odisseu anda por

muitos lugares e volta para os mesmos Por exemplo Oisseu sai da Ilha de Circe no Canto X

e volta no Canto XI depois de ter estado na entrada do Hades

Ao mesmo tempo aleacutem do sentido fiacutesico este epiacuteteto tambeacutem nos revela o poder

de arguiccedilatildeo de habilidade com o pensamento Este epiacuteteto talvez seja o mais representativo

de Odisseu que como sabemos eacute o heroacutei do regresso da volta agrave paacutetria sem falar que seus

discursos tambeacutem satildeo cheios de contornos No Canto IX com Polifemo ele diz chamar-se

oucurrentij Ningueacutem no verso 366 mas jaacute no verso 455 diz chamar-se Odisseu revelando seu

verdadeiro nome assim ele vai e volta em seu discurso Seria entatildeo polutropoj o de

muitas voltas de muitos contornos de muitas maneiras intensificando o caraacuteter maleaacutevel e

multiforme de Odisseu de adaptar-se agraves circunstacircncias para no final sair vencedor Assim

ele se esconde como o rebanho de Polifemo eacute o amante de Circe o amante de Calipso o

mendigo de Iacutetaca o navegante o hoacutespede isto eacute muitas figuras para o mesmo heroacutei que com

todas elas tem a vitoacuteria como uacutenico objetivo A exposiccedilatildeo semacircntica do termo polutropoj

nem sempre fica clara nas traduccedilotildees o que afeta o sentido tatildeo necessaacuterio para uma

compreensatildeo do heroacutei e da obra como um todo vejamos algumas exemplificaccedilotildees

22

Os destaques satildeo nossos Texto retirado agraves 2107hs de 27 de abril de 2010 do site

httpwwwhsaugsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_od01html

44

Musa reconta-me os feitos do heroacutei astucioso que muito

peregrinou decircs que esfez as muralhas sagradas de Troacuteia

muitas cidades dos homens viajou conheceu seus costumes

como no mar padeceu sofrimentos inuacutemeros na alma

para que a vida salvasse e de seus companheiros a volta

(NUNES 2009 p 28)

Oacute Musa fala-me do solerte varatildeo que depois de ter destruiacutedo a cidade

sagrada de Troacuteia andou errante por muitas terras viu as cidades de

numerosas gentes e conheceu-lhes os costumes e por sobre o mar sofreu

no seu coraccedilatildeo afliccedilotildees sem conta no intento de salvar a sua vida e de

conseguir o regresso dos companheiros

(PALMEIRA amp CORREIA 1980 p 1)

Clsquoest llsquoHomme aux mille tours Muse qulsquoil faut me

dire Celui tant erra quand de Troade il eut pilleacute la

ville sainte Celui qui visita les citeacutes de tant dlsquohommes

et connut leur esprit Celui qui sur ler mers passa par

tant dlsquoangoisses en luttant pour survivre et ramener ses gens23

(BEacuteRARD 2009 p1)

Como vemos as traduccedilotildees do termo polutropoj natildeo datildeo conta do seu potencial

semacircntico principalmente porque os autores deixam de traduzir o seu qualificador e

acentuador polu A exceccedilatildeo fica para a traduccedilatildeo de Beacuterard que usa a expressatildeo ―mille

tours ou seja ―mil voltas Ainda assim o numeral ―mil natildeo exatamente reflete a expressatildeo

grega jaacute que esta natildeo eacute quantificada pois se traduz como ―muitos ―indeterminadamente

Esquecer ou ignorar a traduccedilatildeo de polu natildeo eacute adequado mesmo porque se o quisesse

Homero poderia deixaacute-lo impliacutecito ou natildeo o ter utilizado mas se o fez eacute porque considera

importante ser dada a ecircnfase ao substantivo tropoj

Ao longo dos cinco primeiros versos deste proecircmio vemos a repeticcedilatildeo dos

intensificadores pollaUuml pollwordfn pollaUuml fora o polu de polutropoj que jaacute foi

estudado por noacutes O primeiro termo um adveacuterbio pollaUuml refere-se agrave plagxqh indicando

aquele que muito vagou errou O segundo pollwordfn relaciona-se a a)nqrwpwn para

expressar que ele andou por cidades de muitos homens E o terceiro pollaUuml direciona-se

23

Traduccedilatildeo

Eacute o homem de mil voltas Musa que eacute preciso me dizer

Este que tanto vagou errante quando da Trocircade tinha saqueado

a cidade santa este que visitou as cidades de tantos homens

e conheceu seu espiacuterito Este que sobre os mares passou por

tantas anguacutestias lutando para sobreviver e o seu povo fazer retornar

45

para especificar aAtildelgea ou seja as muitas dores sofrimentos pelos quais passou no mar

buscando os seus retornos e o dos seus companheiros Essa sequecircncia de intensificadores

logo ao iniacutecio do proecircmio apesar de breve eacute uma boa representaccedilatildeo da multiplicidade

representada ao longo da Odisseacuteia epopeacuteia em que tudo eacute grandioso excessivo sejam os

feitos do heroacutei os locais pelos quais ele passa sejam tambeacutem suas dores Sem falar no seu

poder ilustrado pelo primeiro epiacuteteto polutropoj que exprime sua capacidade de muitas

voltas o multiforme ou pelo sentido concreto ou abstrato

Outro epiacuteteto bastante relevante eacute o de polumhtij pois aleacutem de configurar a

persona de Odisseu acentua essa qualificaccedilatildeo jaacute que eacute caracteriacutestico de outros personagens e

evoca nomes importantes como os de Zeus e Atena Deste modo Hesiacuteodo no verso 457 de

Teogonia (2009) define o pai dos deuses e dos homens como o Zhordfna te mhtioenta ou

seja Zeus astuto saacutebio sagaz Ainda na Teogonia (2009) Hesiacuteodo conta-nos dos versos 881

ateacute o 900 que Zeus aconselhado por Terra engole Meacutetis sua primeira esposa ainda graacutevida

de Atena para que seus filhos natildeo o destronassem Desta forma com a prudecircncia dentro de si

Zeus torna-se ainda mais poderoso Atena sendo filha de Meacutetis tambeacutem tem a caracteriacutestica

da prudecircncia aleacutem de que o proacuteprio Hesiacuteodo (2009) sempre a compara a seu pai tanto em

poder quanto em prudecircncia24

Segundo Otto (2005) no hino homeacuterico agrave Atena Meacutetis a

chama de polumhtij Sem falar que no Canto XIII verso 297 da Odisseacuteia a proacutepria Atena

compara-se a Odisseu Isto ocorre quando ela se revela para o heroacutei e diz que ele eacute um exiacutemio

astucioso muito sagaz que consegue tudo o que almeja Na formaccedilatildeo desse epiacuteteto temos o

intensificador polu muito e o substantivo mhordftij que significa prudecircncia sagacidade

Assim o epiacuteteto polumhtij que evoca e relaciona Odisseu a Zeus e a Atena significa o de

muita prudecircncia muita sagacidade E sabemos que ambos os deuses protegem Odisseu em

sua erracircncia ateacute retornar agrave paacutetria

Esse epiacuteteto eacute importante pois aleacutem de relacionar Odisseu agraves caracteriacutesticas de

Zeus relaciona-o tambeacutem ao de sua proacutepria deusa-guia Atena Esta eacute a deusa que acompanha

Odisseu como tambeacutem seu filho Telecircmaco em toda a sua jornada Telecircmaco Atena auxilia

no rito de iniciaccedilatildeo heroacuteica e Odisseu em sua longa jornada em busca da gloacuteria domeacutestica25

Na proacutepria Iliacuteada (2009) ela jaacute acompanha Odisseu em sua empreitada noturna com

24

Versos 892 e 898 da Teogonia 25

A gloacuteria que Odisseu busca eacute a domiciliar ateacute porque a kleoj aOacutefqiton gloacuteria impereciacutevel ele jaacute havia

conquistado ainda em vida Uma prova disso eacute que no Canto VIII da Odisseacuteia entre os versos 499-531

Demoacutedoco canta a construccedilatildeo do cavalo de madeira idealizado por Odisseu E o Laertida vai agraves laacutegrimas tendo

percebido que se tornara mito ainda em vida

46

Diomedes no Canto X ajudando-os a matar os inimigos e a voltar com seguranccedila para o

acampamento Sob essa proteccedilatildeo divina Odisseu cumpre sua jornada retorna ao seu lar apoacutes

vinte anos realiza a chacina dos pretendentes e instaura a paz em Iacutetaca

Por tudo isso que foi explicitado acerca deste multiforme heroacutei eacute que ―()

Odisseu era o modelo supremo para o homem do mundo antigo (BEYE 2006 p 206) aleacutem

de ser apontado como ―o heroacutei mais ceacutelebre de toda a antiguidade (GRIMAL 2005 p 458)

A fim de mostrar a importacircncia deste heroacutei trabalhamos neste toacutepico com dois aspectos

centrais no primeiro fizemos elucidaccedilotildees a respeito da definiccedilatildeo e caracterizaccedilatildeo do heroacutei

sua funccedilatildeo no mundo grego a partir dos estudos de Hesiacuteodo em Teogonia (2009) e Os

trabalhos e os dias (2008) Aristoacuteteles na Poeacutetica Dumegravezil (1995) Junito Brandatildeo (1995)

No segundo fizemos um breve estudo dos cinco primeiros versos do proecircmio da Odisseacuteia e

de dois importantes e ilustrativos epiacutetetos de Odisseu o polumhtij e o polutropoj Tudo

isso para poder mostrar a relevacircncia heroacuteica que este personagem tem natildeo soacute na epopeacuteia que

o retrata mas em toda a representatividade da literatura claacutessica

47

2 O TRAacuteGICO - ASPECTOS TEOacuteRICOS E CONCEITUAIS

21 Uma breve consideraccedilatildeo sobre o nosso estudo do Traacutegico

Antes de iniciarmos nossas ponderaccedilotildees teoacutericas e conceituais a respeito do

traacutegico consideramos importante elucidar que iremos fundamentar nossas discussotildees a partir

dos preceitos aristoteacutelicos do traacutegico presentes na Poeacutetica Contudo reconhecemos que este

autor assim como diz-nos Albin Lesky (1996) natildeo nos deixou tatildeo claro esses aspectos

Vejamos

Haacute algo sem duacutevida que podemos afirmar com inteira seguranccedila os gregos

criaram a grande arte traacutegica e com isso realizaram uma das maiores

faccedilanhas do campo do espiacuterito mas natildeo desenvolveram nenhuma teoria do

traacutegico que tentasse ir aleacutem da plasmaccedilatildeo deste no drama e chegasse a

envolver a concepccedilatildeo do mundo como um todo (LESKY 1996 p 21)

Lesky coloca-nos a exposiccedilatildeo de maneira clara foram os gregos que nos legaram

o traacutegico legado esse importantiacutessimo todavia natildeo deixaram para posteridade o

desenvolvimento e a interpretaccedilatildeo desse traacutegico ou seja nenhuma ―teoria do traacutegico Apesar

de que ele proacuteprio ao longo de A trageacutedia Grega (1996) percorre os elementos traacutegicos

presentes na Poeacutetica E para esclarecer esses aspectos que natildeo estatildeo desenvolvidos em

profundidade por Aristoacuteteles outros autores aleacutem do jaacute citado Albin Lesky tambeacutem se

dedicam ao desvendamento da significaccedilatildeo do traacutegico a citar Jean Pierre Vernant Pierre

Grimal Jacqueline de Romilly Anatol Rosenfeld Junito Brandatildeo e Sandra Luna A seleccedilatildeo

destes autores realiza-se atraveacutes de criteacuterios que levam em consideraccedilatildeo a adequaccedilatildeo ao nosso

trabalho

Acreditamos ser importante fazer esta ressalva pois como se sabe muitos

trabalhos foram realizados sobre o traacutegico principalmente pelos filoacutesofos alematildees legando-

nos uma ―filosofia do traacutegico Esta foi realizada por autores como Schelling Houmllderlin

Hegel Solger Goethe Schopenhauuer Vischer Kierkegaard Hebbel Nietzscche Simmel e

Schiler Todos eles detiveram parte de seus estudos para entenderem a manifestaccedilatildeo do

traacutegico Reconhecemos as contribuiccedilotildees dadas por cada um mas no presente trabalho

delimitamos alguns autores por considerarmos mais adequados ao nosso objetivo central que

48

eacute analisar o traacutegico jaacute existente na eacutepica especificamente no Canto XI da Odisseacuteia a partir

dos encontros que Odisseu tem no Hades

Ao longo deste capiacutetulo desenvolveremos trecircs eixos do traacutegico que seratildeo

importantes para a compreensatildeo e embasamento de nossa anaacutelise ―O traacutegico e a trageacutedia ―O

traacutegico na Poeacuteticardquo e ―A busca do traacutegico - outras acepccedilotildees teoacutericas No primeiro

discorreremos sobre as diferenccedilas e especificidades da trageacutedia e do traacutegico no segundo

sobre os conceitos do traacutegico jaacute referidos por Aristoacuteteles na Poeacutetica interpretando-os a partir

da traduccedilatildeo de excertos extraiacutedos do original no terceiro iremos expor e discutir os estudos

de outros autores sobre o traacutegico claacutessico sempre observando sua aplicabilidade agrave nossa

anaacutelise central que seraacute desenvolvida especificamente no capiacutetulo subsequente

22 O traacutegico e a trageacutedia

No momento em que comeccedilamos a discutir sobre as questotildees da trageacutedia e do

traacutegico desde o iniacutecio nos eacute imposto mesmo que indiretamente o dilema da anterioridade de

um ou de outro Assim perguntamo-nos quem teria vindo primeiro A trageacutedia ou o traacutegico

Aparentemente eles satildeo indissociaacuteveis tornando difiacutecil definir quem veio primeiro e a

delimitaccedilatildeo onde um inicia e o outro termina Ateacute que ponto ser-nos-ia possiacutevel contemplar

traacutegico sem trageacutedia ou ainda mais trageacutedia claacutessica sem o traacutegico Diante destas

interrogativas jaacute adiantamos que a realizaccedilatildeo daquele (traacutegico sem trageacutedia) eacute viaacutevel ao

contraacuterio deste (trageacutedia claacutessica sem traacutegico) em que sua estrutura prescinde do elemento

traacutegico como jaacute bem nos disse Aristoacuteteles na Poeacutetica inclusive para a efetivaccedilatildeo da

kaqamacrrsij26

Para que possamos entender essa dita viabilidade de traacutegico sem trageacutedia e a

inviabilidade da trageacutedia claacutessica sem o traacutegico iremos discorrer sobre a origem a

conceituaccedilatildeo e a significaccedilatildeo que eles possuem dentro do contexto da literatura claacutessica

grega

A palavra tragikoj tem como sentido geral aquilo que concerne agrave trageacutedia ou

ateacute mesmo ao ator ou ao poeta traacutegico algo de natureza grave majestosa poeacutetica assim nos

26

Sabe-se que a respeito deste termo grego existem algumas discussotildees as quais seratildeo expostas no decorrer do

trabalho Por hora basta-nos compreender que este termo oriundo do verbo kaqairw tem como sentido

primaacuterio o significado meacutedico de purgaccedilatildeo aleacutem de ter uma acepccedilatildeo religiosa de purificaccedilatildeo

49

define A Bailly (2000) e Liddlel e Scott (1996) Mas a partir de uma perspectiva

etimoloacutegica indicada por Renato Romizi (2001) tragikoj com o radical de tragoj

(bode) e o sufixo adjetivo ikoj significa primordialmente o que eacute proacuteprio do bode ou

semelhante ao bode Contudo considerando as utilizaccedilotildees deste nome no cenaacuterio da literatura

grega claacutessica com o surgimento das trageacutedias tragikoj passa a significar tambeacutem o

traacutegico elemento proacuteprio da trageacutedia vista aqui como gecircnero literaacuterio e natildeo como

manifestaccedilatildeo de ritual religioso que inclusive deu origem a sua nomeaccedilatildeo Todavia

veremos estes aspectos mais agrave frente quando formos tratar especificamente da trageacutedia

Como vimos o aspecto etimoloacutegico natildeo nos esclarece por completo os enigmas

do traacutegico todavia jaacute nos daacute pistas de sua significaccedilatildeo e origem Podemos entender que o

tragikoj estaacute ligado ao siacutembolo do bode este que por sua vez passa a ser relacionado ao

gecircnero literaacuterio da trageacutedia (do grego tragwlaquodimacra ou seja canto do bode) E sendo o bode

siacutembolo do sacrifiacutecio realizado a Dioniso dentro de um ritual religioso importante

socialmente podemos entender porque ambos tanto o traacutegico quanto a trageacutedia estatildeo

envoltos em uma accedilatildeo grandiosa

Em nossa pesquisa bibliograacutefica os estudos sobre o traacutegico que encontramos estatildeo

dentro dos estudos da trageacutedia numa intriacutenseca relaccedilatildeo que tanto pode ser beneacutefica como

pode tambeacutem natildeo nos beneficiar por acreditarmos nem sempre ter sido assim O traacutegico

como desenvolveremos a seguir jaacute se manifestava socialmente entre os gregos e em suas artes

desde muito cedo ao contraacuterio da trageacutedia que soacute viria a existir a partir do seacuteculo V aC

Diante dos estudos a respeito do traacutegico claacutessico a que jaacute nos referimos

destacamos o trabalho realizado por Sandra Luna em Arqueologia da accedilatildeo traacutegica (2005)

Neste temos algumas consideraccedilotildees sobre a existecircncia do traacutegico antes da trageacutedia o que

pode ser comprovado por estudos antropoloacutegicos verificando-se que ―natildeo surpreende o

adentramento precoce do traacutegico na tessitura das artes verbais (LUNA 2005 p 29) Um

exemplo bastante claro dessa preacute-existecircncia do traacutegico natildeo soacute na perspectiva social mas na

produccedilatildeo literaacuteria satildeo as epopeacuteias homeacutericas pois eacute fato que

() Homero convida-nos a ponderar gravemente sobre o traacutegico fim da

existecircncia humana Contudo a despeito do tratamento refinado de elementos

traacutegicos na eacutepica grega natildeo parece ser exatamente ―traacutegico o efeito

pretendido pelo poeta (Ibidem)

Assim apesar de o traacutegico como diz a autora natildeo ser objetivo de Homero eacute

inegaacutevel que nas duas primeiras obras de nossa literatura ocidental precursoras de tantas

50

categorias literaacuterias inaugura-se tambeacutem o traacutegico mesmo que ―a estrutura da accedilatildeo na

narrativa eacutepica dispersa o efeito traacutegico em favor de outros efeitos (LUNA 2005 p 30)

Compartilhamos com esse pensamento de que Homero realiza a dispersatildeo do traacutegico e isso

ele faz utilizando-se de recursos como a modificaccedilatildeo de uma cena traacutegica para outra sem

tragicidade diluindo a tragicidade da cena anterior Entre tantos exemplos desse fato

podemos citar o Canto XXIV no qual Priacuteamo natildeo soacute pede o resgate do corpo do seu filho

Heitor como tambeacutem beija a matildeo do assassino de seu filho Aquiles (v 506) Este concede o

pedido feito pelo rei dos troianos e convida-o para um banquete Vejamos

ἦ ῥα θαὶ ἐο θιηζίελ πάιηλ ἤτε δῖνο Ἀρηιιεύο

ἕδεην δ᾽ ἐλ θιηζκη πνιπδαηδάιση ἔλζελ ἀλέζηε

ηνίρνπ ηνῦ ἑηέξνπ πνηὶ δὲ Πξίακνλ θάην κῦζνλ

πἱὸο κὲλ δή ηνη ιέιπηαη γέξνλ ὡο ἐθέιεπεο

600 θεῖηαη δ᾽ ἐλ ιερέεζζ᾽ ἅκα δ᾽ ἠνῖ θαηλνκέλεθηλ

ὄςεαη αὐηὸο ἄγσλ λῦλ δὲ κλεζώκεζα δόξπνπ27

(Iliada XXIV 596-601)

Dizia e em seguida o divino Aquiles volta para o seu acampamento

sentou-se em seu alto trono e entatildeo fez-se ficar do

outro lado do muro diante de Priacuteamo a quem declarou o discurso

Velho como incitavas o seu filho foi libertado para ti

estaacute colocado em um atauacutede Que tu o revejas raiando a manhatilde

ao mesmo tempo conduzindo-o Mas nesse instante pensemos no banquete

Nesta cena e nas outras que a antecedem temos a realizaccedilatildeo do pedido de Priacuteamo

pelo resgate do filho morto e ultrajado Nesta passagem o aspecto comovente poderia

desencadear no traacutegico mas Homero natildeo a intensifica e sim atenuando a manifestaccedilatildeo do

sentimento traacutegico dirige a cena para uma celebraccedilatildeo simbolizada pelo banquete Segundo

informa-nos Jean Chevalier e Alain Gheerbrant (2009) o banquete eacute um siacutembolo universal

que representa a alianccedila um rito comunial de participaccedilatildeo social envolta e direcionada a um

mesmo projeto geralmente festivo Reconhecemos tambeacutem que nem sempre o banquete

ocorre numa situaccedilatildeo comemorativa apesar de geralmente ser assim e a citaccedilatildeo acima eacute bem

ilustrativa disso Ainda que sejam inimigos Priacuteamo e Aquiles celebram um pacto de respeito

e natildeo uma festividade Mas de todo o modo tal conciliaccedilatildeo representada pelo siacutembolo do

banquete ameniza o conflito este que por sua vez atenua o traacutegico

Deste modo concordamos que o autor da Odisseacuteia ―natildeo alimenta o traacutegico

(Ibidem p 31) ateacute mesmo porque ―() mal comeccedilamos a experimentar a dor somos

27

Texto disponiacutevel em httpwwwhs-

augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_il24html agraves 1018hs de 12 de julho de 2010

51

convidados a mais um dos banquetes de Homero () (LUNA 2005 p 34) Contudo aleacutem

de ser natural eacute bastante coerente da parte do Homero natildeo se aprofundar no efeito traacutegico

natildeo o objetivando pois ao inveacutes de ter produzido o gecircnero eacutepico ele teria legado-nos uma

incipiente trageacutedia Isso ocorre porque como sabemos o objetivo da eacutepica relaciona-se agrave

exaltaccedilatildeo dos grandes homens e de seus magnos feitos logo natildeo seria coerente Homero

direcionar-se unicamente ao traacutegico Tal fato seria uma relevante incongruecircncia estrutural

com o gecircnero eacutepico com o qual produziu duas notificadas obras que exaltaram as accedilotildees de

Aquiles e Odisseu respectivamente a partir da Iliacuteada e da Odisseacuteia

Todavia jaacute encontramos nas eacutepicas de Homero uma forte e inegaacutevel evidecircncia

traacutegica esta que se natildeo eacute objetivo deste poeta eacutepico seraacute das trageacutedias gregas produzidas

entre os seacuteculos V e IV aC Por isso os tragedioacutegrafos que iratildeo produziacute-las seratildeo bastante

influenciados pela produccedilatildeo homeacuterica inclusive aproveitam-se de certas passagens de teor

traacutegico natildeo desenvolvidas para construiacuterem suas peccedilas Eacute o que provavelmente ocorreu com

Aacutejax de Soacutefocles e com Agamecircmnon de Eacutesquilo que tecircm como prenuacutencios o Canto XI da

Odisseacuteia canto esse permeado de tragicidade Desta forma concordamos com o seguinte

posicionamento de Jacqueline de Romilly

Como quer que seja os autores das trageacutedias foram buscar o assunto das

suas obras agrave epopeacuteia E natildeo eacute duvidoso que ao mesmo tempo tenham ido

buscar a arte de construir personagens e cenas capazes de comover

Apresentar o sentimento da vida inspirar terror e piedade obrigar a partilhar

um sofrimento ou uma ansiedade ndash a epopeacuteia fizera-o sempre e ensinou os

tragedioacutegrafos a fazecirc-lo Poderiacuteamos ainda dizer que se a festa criou o

gecircnero traacutegico foi a influecircncia da epopeacuteia que fez dele um gecircnero literaacuterio

(ROMILLY 2008 p 22)

Assim tendo jaacute nos inspirado o traacutegico Homero seraacute fundamental para os

tragedioacutegrafos pois ele consegue apresentar-nos a tragicidade em suas eacutepicas mesmo em

meio a tantos banquetes celebraccedilotildees e grandes feitos visto que ―A transfiguraccedilatildeo do traacutegico

contudo natildeo rasura completamente os momentos de intensa dramaticidade presente nas

epopeacuteias (Luna 2005 p 34) Diante dessa constataccedilatildeo do traacutegico em Homero reiteramos

que o traacutegico veio antes da trageacutedia natildeo soacute pela sua manifestaccedilatildeo social na vida humana mas

atraveacutes da proacutepria representaccedilatildeo literaacuteria como nos fica claro a partir das epopeacuteias

homeacutericas

Um elemento que nos propicia essa relaccedilatildeo do traacutegico nas eacutepicas vindo a

influenciar a produccedilatildeo das trageacutedias eacute a figura do heroacutei eacutepico pois muitos deles estatildeo fadados

52

a um final traacutegico e inclusive jaacute prenunciados por Homero Sobre este fato elucida-nos

Sandra Luna

() sobre o heroacutei eacutepico tambeacutem paira o terriacutevel horizonte da uacutenica certeza

humana ou seja ao final de sua trajetoacuteria para aleacutem de todas as honras das

quais venha a desfrutar a tragicidade estaraacute sempre suspensa sobre sua

cabeccedila ndash a proacutepria construccedilatildeo eacutepica se encarregou de evidenciar que o

desfecho da vida eacute irrevogavelmente traacutegico Apesar de sua caracteriacutestica

sobre-humana sabe-se que o heroacutei haveraacute um dia de ser igualado aos seus

os mortais Com isso queremos dizer que das alturas do heroacutei eacutepico seraacute

sempre possiacutevel vislumbrar momentos de tragicidade (LUNA 2005 p 31)

Como vemos na proacutepria estrutura eacutepica de eixo celebrativo haacute um elemento

favorecedor para o surgimento do traacutegico o heroacutei Sobre este fato tambeacutem complementa

Vernant ―No novo quadro do jogo traacutegico portanto o heroacutei deixou de ser um modelo

tornou-se para si mesmo e para os outros um problema (VERNANT 2008 p 2) Esta

problemaacutetica em relaccedilatildeo agrave representatividade do heroacutei que seraacute distinta no gecircnero eacutepico do

traacutegico pode ser bem ilustrada nos encontros que Odisseu tem no Hades narrado por Homero

no Canto XI da Odisseacuteia com Anticleacuteia Aquiles Agamecircmnon e Aacutejax Tanto que no caso de

Agamecircmnon e Aacutejax temos duas trageacutedias para contar-nos o fim traacutegico desses heroacuteis A saga

de Agamecircmnon eacute contada por Eacutesquilo no primeiro livro da Oresteacuteia e Soacutefocles lega-nos a

peccedila que relata o descontrole e suiciacutedio de Aacutejax Estes dois destinos traacutegicos dos heroacuteis

gregos que antes brilharam nas eacutepicas como modelos principalmente em seus feitos narrados

na Iliacuteada jaacute satildeo prenunciados no Canto XI da Odisseacuteia como veremos detalhadamente no

proacuteximo capiacutetulo

Aleacutem dessa figura eacutepica que posteriormente figuraraacute nas trageacutedias haacute outros

elementos propiacutecios ao traacutegico jaacute presentes na epopeacuteia como nos alerta Aristoacuteteles e reforccedila-

nos Jacqueline de Romilly (2008) como por exemplo a accedilatildeo uacutenica28

os personagens nobres

e a base miacutetica do conteuacutedo desenvolvido No caso do mito destaca-nos Lesky (1995) que a

sua presenccedila evidencia-se natildeo apenas na eacutepica e na trageacutedia mas tambeacutem na liacuterica A

diferenccedila eacute que na primeira e na terceira o mito representa a simboacutelica origem e organizaccedilatildeo

do mundo diante de sua grandiosidade jaacute na trageacutedia o mito passa a ser traacutegico

Diante dos aspectos discutidos percebemos a anterioridade do traacutegico

principalmente no que concerne agraves epopeacuteias homeacutericas visto que nestas o traacutegico jaacute se efetiva

28

O proacuteprio Aristoacuteteles na Poeacutetica (1555b) diz-nos que a accedilatildeo das epopeacuteias transcorre a partir de um eixo

centralizador os demais satildeo episoacutedios Assim desenvolvidas em vinte e quatro cantos cada uma a Iliacuteada e a

Odisseacuteia possuem um argumento uacutenico a primeira a ira funesta de Aquiles a segunda o regresso de Odisseu a

Iacutetaca

53

como manifestaccedilatildeo literaacuteria Assim aleacutem de tantos outros elementos literaacuterios as epopeacuteias de

Homero legaram-nos o traacutegico

Observada a presenccedila do traacutegico jaacute nas epopeacuteias de Homero discutiremos sobre a

trageacutedia sua estrutura e relaccedilatildeo com as epopeacuteias e com o traacutegico A partir deste percurso

acreditamos que entendendo melhor a trageacutedia elucidaremos melhor o traacutegico jaacute que este se

realiza atraveacutes daquela inegavelmente pois ―eacute fato que na trageacutedia os traccedilos do traacutegico se

tornaratildeo mais evidentes e seus efeitos mais perceptiacuteveis (LUNA 2005 p 34) Daiacute urge a

necessidade de voltarmos atenccedilatildeo ao entendimento da trageacutedia a fim de adquirirmos suporte

suficiente para compreender o traacutegico e assim no capiacutetulo subsequente aplicarmos esta

exposiccedilatildeo teoacuterica na anaacutelise do Canto XI da Odisseacuteia

Do mesmo modo que ocorre com o traacutegico falar sobre a trageacutedia ainda nos impotildee

certas incertezas principalmente no que se trata de sua origem mesmo que sobre ela haja um

nuacutemero bem maior de livros e artigos Ao que nos parece ―o nuacutemero dos ensaios explica-se

precisamente pela ausecircncia de certezas De fato uma grande sombra paira sobre essas

origens (ROMILLY 2008 p 13) Outro autor que compartilha e explicita essa ideacuteia das

dificuldades no estudo da trageacutedia eacute Albin Lesky em Histoacuteria da Literatura Grega (1995)

Segundo o autor natildeo podemos conhecer precisamente o trabalho dos tragedioacutegrafos por falta

de dados satisfatoacuterios ―assim a questatildeo referente agraves origens do drama traacutegico eacute desde a

eacutepoca da ciecircncia alexandrina um dos problemas mais difiacuteceis e discutidos (LESKY 1995

p 253) Finley refletindo sobre a formaccedilatildeo do gecircnero traacutegico sobretudo em comparaccedilatildeo com

outros como a eacutepica e a liacuterica afirma ―Sus oriacutegenes son oscuras (FINLEY 1970 p 101) 29

ressaltando o caraacuteter nebuloso da origem deste gecircnero literaacuterio

De todas estas discussotildees o que podemos concluir eacute que o ditirambo as festas

dionisiacuteacas os saacutetiros os festivais o estado satildeo referecircncias certas de qualquer estudo que

almeja explicar a origem da trageacutedia Adiante poderemos avaliar melhor essa assertiva

Segundo Aristoacuteteles a origem da trageacutedia estaacute relacionada ao ditirambo

Vejamos

Γελνκέλε30

δ᾽ νὖλ ἀπ᾽ ἀξρῆο αὐην[10]ζρεδηαζηηθῆο (θαὶ αὐηὴ θαὶ ἡ

θσκσηδία θαὶ ἡ κὲλ ἀπὸ ηλ ἐμαξρόλησλ ηὸλ δηζύξακβνλ ἡ δὲ ἀπὸ ηλ ηὰ

θαιιηθά ἃ ἔηη θαὶ λῦλ ἐλ πνιιαῖο ηλ πόιεσλ διαμένει νομιζόμενα )

κατὰ μικρὸν ηὐξήθη προαγόντων ὅσον ἐγίγνετο φανερὸν αὐτῆς

29

Traduccedilatildeo nossa Suas origens satildeo obscuras 30

A utillizaccedilatildeo deste particiacutepio aoristo gενομένη indica a anterioridade da accedilatildeo (MURACHO 2007) diferente

do uso do particiacutepio presente que indica a simultaneidade dos fatos Por isso a traduccedilatildeo ―tendo surgido que nos

reflete a noccedilatildeo de anterioridade jaacute que a trageacutedia tem sua existecircncia anterior ao que estaacute sendo descrito

54

θαὶ πνιιὰο κεηαβνιὰο κεηαβαινῦζα ἡ [15] ηξαγσηδία ἐπαύζαην ἐπεὶ ἔζρε

ηὴλ αὑηῆο θύζηλ31 ((Poeacutetica IV 1449a 9-15)

Portanto tendo surgido de um princiacutepio de improvisaccedilatildeo natildeo soacute ela mesma

(a trageacutedia) quanto a comeacutedia aquela pelos iniciantes do ditirambo e esta

pelos iniciantes dos cantos faacutelicos que ainda permanece estimada em muitas

cidades Estas coisas fazem-me crer que pouco a pouco a trageacutedia cresceu

desenvolvendo-se o que se tornava proacuteprio dela E tendo se transformado

apoacutes muitas mudanccedilas a trageacutedia estabilizou-se quando alcanccedilou sua

natureza proacutepria

Percebe-se que a origem da trageacutedia estaria intrinsecamente relacionada ao

ditirambo diquramboj ateacute que ela comeccedila a desenvolver-se adquirindo especificidades

proacuteprias Sendo o ditirambo um canto de louvor ao deus Dioniso entendemos o porquecirc de a

trageacutedia ser relacionada a esta divindade e ao seu culto religioso Algumas vezes essa

conexatildeo traz-nos certas complicaccedilotildees para o entendimento do gecircnero traacutegico que mesmo

tendo origem ligada ao culto do deus posteriormente veio a se distanciar como jaacute nos indica

Aristoacuteteles na passagem que citamos Daiacute entendemos porque em alguns momentos natildeo nos

eacute tatildeo clara a relaccedilatildeo entre a trageacutedia claacutessica e o culto ao deus Tal fato justifica-se por essa

relaccedilatildeo remontar agraves suas origens e natildeo ao seu desenvolvimento pois a trageacutedia transformou-

se e estabeleceu-se com caracteriacutesticas proacuteprias

Ulrich Von Moellendorff-Wilamowitz em Qursquo est-ce qursquo une trageacutedie

attique(2001) sobre as definiccedilotildees aristoteacutelicas referidas acima considera que ―Aristote

nlsquoavait pas pour but de deacutefinir historiquement la trageacutedie attique il voulait parvenir agrave une

deacutefinition conceptuelle de la trageacutedie32

(WILAMOWITZ 2001 p 118) Entatildeo seguindo as

consideraccedilotildees iniciadas por Aristoacuteteles o autor desenvolve o preceito da origem da trageacutedia

relacionada ao ditirambo e reforccedila a contribuiccedilatildeo dada pelos tragedioacutegrafos Eacutesquilo e

Soacutefocles Diz-nos

La trageacutedie a pour origine les chanteurs de dithyrambe elle a tout dlsquo abord

eacuteteacute un jeu satyrique composeacute dans des rythmes vifs et dans une langue

amusante il fallut attendre Eschyle pour que soit introduit le deuxiegraveme

acteur et pour qulsquo on retire du choeur as place de protagoniste le trosiegraveme

acteur fut introduit pour la premieacutere fois par Sophocle33

(Ibidem p 19)

31

Texto retirado de httpwwwhs-augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante04Aristotelesari_poi1html

agraves 1152hs em 12 de julho de 2010 32

Traduccedilatildeo nossa Aristoacuteteles natildeo tinha por objetivo definir historicamente a trageacutedia aacutetica ele queria chegar a

uma definiccedilatildeo conceitual da trageacutedia 33

Traduccedilatildeo nossa A trageacutedia tem a origem nos cantores de ditirambo ela foi inicialmente um jogo composto

em ritmos vivos e de uma linguagem divertida foi necessaacuterio esperar Eacutesquilo para que fosse introduzido o

segundo ator e que se retirasse do coro sua posiccedilatildeo de protagonista o terceiro ator foi introduzido pela primeira

vez por Soacutefocles

55

Wilamowitz contribui ainda com outras informaccedilotildees contextuais sobre a trageacutedia

informando-nos que em 534 aC ocorre a primeira representaccedilatildeo de uma trageacutedia durante o

festival das Grandes Dionisiacuteacas por Teacutespis34

de Lesbos Este se consagra como o primeiro

ganhador do precircmio quando o festival foi reorganizado por Pisiacutestrato Apoacutes estas

informaccedilotildees gerais o autor diante de seus estudos cria situaccedilatildeo adequada para expor uma

definiccedilatildeo de trageacutedia afirmando

Une trageacutedie attique est un eacutepisode tireacute de la leacutegende heacuteroiumlque

ayant son uniteacute propecirc traiteacute de faccedilon poeacutetique dans un style noble et destine

agrave ecirctre representeacute par um choeur de citoyens attique e deux voire trois

acteurs dans le sanctuaire de Dionysos comme partie integrante de la

ceacuteleacutebration publique du culte du dieu35

(WILAMOWITZ 2001 p 117)

Percebe-se que esta definiccedilatildeo eacute respaldada pela concepccedilatildeo que Aristoacuteteles nos

legou a partir da Poeacutetica vindo esta a ser reiterada por Wilamowitz (2001) Sabemos que

muitos estudos posteriores ao do filoacutesofo grego tentaram abarcar suas ideacuteias explicando-as

exemplificando-as de modo a atualizaacute-las para o entendimento da modernidade de uma

temaacutetica de discussotildees inesgotaacuteveis Esse eacute o caso dos autores que discutiremos a seguir

Para Romilly em A trageacutedia Grega (2008) o fator religioso eacute inegaacutevel no

surgimento e formaccedilatildeo da trageacutedia Ele reconhece tambeacutem a influecircncia poliacutetica da tirania

Ressalta que as representaccedilotildees das trageacutedias dependem do culto a Dioniso mesmo porque soacute

nas festas dedicadas ao filho de Secircmele eacute que havia a encenaccedilatildeo das peccedilas Informa-nos

ainda

A grande ocasiatildeo era na eacutepoca claacutesssica as festas das Dionisiacuteacas

urbanas que se celebrava na Primavera mas tambeacutem havia concursos de

trageacutedias na festa das Leneias que tinha lugar pelo final de Dezembro A

proacutepria representaccedilatildeo inseria-se assim num conjunto eminentemente

religioso era acompanhada de procissotildees e sacrifiacutecios (ROMILLY 2008 p

14)

Jacqueline de Romilly completa que no centro do teatro havia um assento de

pedra destinado ao deus como tambeacutem um altar onde ocorria a evoluccedilatildeo do coro Diante

34

Grimal (2002) registra atraveacutes de Soacutelon e Heroacutedoto a existecircncia de Aacuterion que em Siacutecion (Peloponeso) seria

reconhecido como o autor da primeira trageacutedia por volta de VII aC 35

Traduccedilatildeo nossa Uma trageacutedia aacutetica eacute um episoacutedio tirado de uma lenda heroacuteica tendo unidade proacutepria tratada

de modo poeacutetico em um estilo nobre e destinado a ser representado por um coro de cidadatildeos aacuteticos com dois e

ateacute mesmo trecircs atores no santuaacuterio de Dioniso como parte integrante da celebraccedilatildeo puacuteblica do culto ao deus

56

dessa constataccedilatildeo e embasada pela teorizaccedilatildeo de Aristoacuteteles (Poeacutetica 1449 a) ela afirma que

a trageacutedia tendo vindo do ditirambo seria uma amplificaccedilatildeo do rito religioso assim como a

comeacutedia

Pierre Grimal em O Teatro Antigo (2002) afirma natildeo poder dar uma explicaccedilatildeo

clara sobre o termo ―trageacutedia Isto porque haacute certa dificuldade em encaixar os dois elementos

distintos que compotildeem a formaccedilatildeo do vocaacutebulo tragwlaquodimacra ou seja tragomacrj bode e wlaquocopydimacra

(de Acircdhmacr) canto Para Grimal natildeo haacute uma relaccedilatildeo direta entre os termos tragomacrj e wlaquocopydimacra por

isso levanta diversos questionamentos o coro vestia-se com a pele do bode ou o bode seria o

precircmio para o poeta vencedor ou o bode era a viacutetima sacrifical do que era cantado Enfim

sem poder chegar a uma definiccedilatildeo mais objetiva ele conclui que essa palavra natildeo pode ser

primitiva e sim contemporacircnea ao surgimento da trageacutedia relacionada ao ritual de Dioniso

O autor ainda nos alerta citando Romilly que natildeo podemos esquecer que os

rituais religiosos passam das improvisaccedilotildees para formas literaacuterias ateacute mesmo por causa da

reorganizaccedilatildeo poliacutetica e social e daiacute surge o advento dos concursos Diante disso Grimal

aponta duas causas para o surgimento da trageacutedia a literaacuteria que teria sido iniciada por

Teacutespis e a poliacutetica relacionada ao desejo da tirania de forjar ao povo atraveacutes das festas a

centralizaccedilatildeo do poder

Como jaacute foi dito Pierre Grimal refere-se a uma importante influecircncia das

transformaccedilotildees soacutecio-poliacuteticas para as modificaccedilotildees da trageacutedia Tais influecircncias justificariam

o porquecirc de antigas manifestaccedilotildees ritualiacutesticas ligadas a Dioniso como os ditirambos e os

cantos faacutelicos viessem a originar gecircneros literaacuterios como a trageacutedia e a comeacutedia Para melhor

entendermos a importacircncia desses elementos sociais e poliacuteticos na formaccedilatildeo de um gecircnero

literaacuterio como a trageacutedia vejamos o que nos diz Arnould Hauser

A trageacutedia eacute a criaccedilatildeo artiacutestica mais caracteriacutestica da democracia

ateniense em nenhuma outra forma de arte satildeo apreciados tatildeo direta e

claramente quanto nela os conflitos internos da estrutura social de Atenas

Os aspectos externos de sua apresentaccedilatildeo agraves massas eram democraacuteticos mas

o conteuacutedo as sagas heroacuteicas com sua perspectiva traacutegico-heroacuteica da vida

eram aristocraacuteticos (HAUSER 1995 p 84)

Esta relaccedilatildeo social em que a arte traacutegica estaacute firmada natildeo pode ser dissociada

facilmente ateacute porque ―Fue Atenas la democraacutetica ciudad-estado por excelecircncia la que

produjo y patrocinoacute estrictamente hablando ndash la trageacutedia ()36

(FINLEY 1970 p 101)

36

Traduccedilatildeo nossa Foi Atenas a democraacutetica cidade-estado por excelecircncia que produziu e patrocinou -

estritamente falando ndash a trageacutedia ()

57

Ainda sobre esse momento histoacuterico da trageacutedia suas condiccedilotildees sociais e ateacute mesmo

psicoloacutegicas Jean-Pierre Vernant em Mito e Trageacutedia na Greacutecia Antiga (2008) informa-nos

que muitas discussotildees nos uacuteltimos cinquenta anos ocorreram sobre trageacutedia e mais

precisamente sobre suas origens E diante de todas as interrogaccedilotildees dos helenistas e

proposiccedilotildees de respostas natildeo foram suficientes para resolver o problema da trageacutedia A este

problema exposto por Vernant incluiacutemos o que consideramos como intriacutenseco agrave trageacutedia a

manifestaccedilatildeo traacutegica Isto porque esta foi iniciada na literatura a partir das eacutepicas homeacutericas e

estabilizada a partir das trageacutedias gregas Diante deste quadro complexo que gerou tanto a

comeacutedia quanto a trageacutedia Vernant concebe esta da seguinte maneira

A trageacutedia natildeo eacute apenas uma forma de arte eacute uma instituiccedilatildeo

social que pela fundaccedilatildeo dos concursos traacutegicos a cidade coloca ao lado dos

seus oacutergatildeos puacuteblicos e judiciaacuterios () um espetaacuteculo aberto a todos os

cidadatildeos dirigido desempenhado julgado por representantes qualificados

das diversas tribos a cidade se faz teatro ela se toma de certo modo como

objeto de representaccedilatildeo e desempenha a si proacutepria diante do puacuteblico

(Ibidem p 10)

Irredutivelmente traacutegica em sua essecircncia a trageacutedia reflete a realidade em que ela

se originou e se estabeleceu por isso diz-nos Vernant que ―a proacutepria consciecircncia traacutegica

nasce e desenvolve-se com a trageacutedia (2008 p 9) Mas para aleacutem da representaccedilatildeo a

trageacutedia questiona a sociedade em que se instaurou E o seu constituinte traacutegico eacute elemento

importante nesse fato visto que potildee em cena o conflito da condiccedilatildeo humana diante de sua

fragilidade e limitaccedilatildeo

E esse elemento traacutegico estaacute relacionado ao deus que assiste do centro do teatro agrave

representaccedilatildeo da tragicidade humana Referimo-nos a Dioniso o deus que representa

contraditoriamente (ou natildeo) tanto a trageacutedia quanto a comeacutedia gecircneros que chegam a ser

completamente opostos a depender da perspectiva em que sejam analisados Um deus tatildeo

associado agrave celebraccedilatildeo ao vinho ao canto faacutelico ao ecircxtase causa-nos certa estranheza em

estar na representaccedilatildeo do gecircnero traacutegico

Mas essa ligaccedilatildeo entre o deus e o traacutegico pode ser bem entendida pelo fato de

que assim como a trageacutedia questiona a proacutepria realidade que representa tambeacutem ―Dioniso

questiona essa ordem Ele a faz despedaccedilar-se ao revelar por sua presenccedila outro aspecto do

sagrado jaacute natildeo regular estaacutevel e definido mas estranho inapreensiacutevel e desconcertante

(VERNANT 2006 p 77) Como vemos assim como o traacutegico o deus que o representa

possui os mesmos atributos daiacute a adequaccedilatildeo entre ambos E toda essa complexidade

58

representativa ocorre porque Dioniso ―nos ensina ou nos obriga a tornar-nos o contraacuterio

daquilo que somos comumente (VERNANT 2006 p 80) Toda essa transmutaccedilatildeo pela qual

passa o personagem traacutegico que segundo Vernant eacute obrigada ou ensinada por Dioniso

reitera a proacutepria situaccedilatildeo traacutegica prescrita por Aristoacuteteles que se baseia numa passagem da

fortuna ao infortuacutenio ou vice-versa (Poeacutetica 1451a) Apesar de que a passagem da fortuna ao

infortuacutenio segundo Aristoacuteteles (1453a) eacute considerada mais traacutegica tal aspecto pode ser

observado no corpus do nosso trabalho jaacute que no Canto XI Agamecircmnon Aacutejax Aquiles e

Anticleacuteia mostram-se infelizes lamuriantes com o destino que tiveram e esse fim desditoso eacute

o mais traacutegico

Permeada pela tragicidade em sua essecircncia a trageacutedia possui uma estrutura formal

geralmente bem delimitada Para Aristoacuteteles um fato decisivo na qualificaccedilatildeo da estrutura de

uma trageacutedia eacute a sua caracterizaccedilatildeo como complexa Na Poeacutetica (1452a) o filoacutesofo diz-nos

que haacute trageacutedias de estrutura simples e complexa Nesta a mudanccedila da fortuna ocorre com

reconhecimento37

do grego a)nagnwiquestrisij eou peripeacutecia38

do grego peripemacrteia

diferentemente da simples em que a mudanccedila da fortuna ocorre sem nenhum desses

elementos Segundo o filoacutesofo as faacutebulas mais belas satildeo as complexas desde que toda a accedilatildeo

esteja conexa com a necessidade e a verossimilhanccedila

Aleacutem desse aspecto baacutesico da estrutura da trageacutedia Aristoacuteteles indica-nos os seus

elementos constitutivos presentes em todas as peccedilas a saber proacutelogo episoacutedio ecircxodo canto

coral com este se distinguindo entre paacuterodo e estaacutesimo39

O primeiro constitui a parte da

trageacutedia que precede a entrada do coro o episoacutedio eacute uma parte da peccedila que fica situada entre

dois cantos completos do coro apoacutes o ecircxodo natildeo haacute canto do coro o canto do coro possui

dois momentos distintos um eacute o paacuterodo que eacute o primeiro pronunciar do coro e o outro eacute o

estaacutesimo que eacute o canto realizado no final de um episoacutedio em anapestos e troqueus

Completando essa determinaccedilatildeo aristoteacutelica sobre a estrutura da trageacutedia citamos

a divisatildeo estrutural da trageacutedia de Jacqueline de Romilly (2008) A autora apesar de basear-se

e em muitos momentos apenas transcrever a definiccedilatildeo de Aristoacuteteles determina dois

37

Do grego a)nagnwiquestrisij proveniente do verbo a)nagnwricentzw formado pelo prefixo a)na de novo

mais o radical gnwrizw que indica fazer conhecer saber Deste modo a)nagnwiquestrisij significa fazer

conhecer novamente ou seja reconhecer de novo fazer saber revelar 38

Do grego peripemacrteia esta palavra eacute composta pela preposiccedilatildeo periindicando o entorno a sobre de

mais o radical pemacrt do verbo piiquestptw que significa queda atirar-se em indicando a mudanccedila a

imprevisibilidade o inesperado Assim peripemacrteia indica o que estaacute envolta do imprevisto acerca do

inesperado aquilo estaacute estaacute relacionado a queda 39

Haacute tambeacutem o canto dos atores e o koacutesmos que era o canto de lamento do coro estes dois natildeo satildeo comuns em

todas as trageacutedias por isso natildeo nos iremos ater neste momento em suas ponderaccedilotildees

59

elementos centrais na estrutura da trageacutedia que a distingue dos demais gecircneros satildeo eles o

coro e os personagens O primeiro desde a origem da trageacutedia relacionada ao ditirambo

figura como importante elemento da peccedila O segundo passa por transformaccedilotildees no nuacutemero de

atores que o representam ao longo do desenvolvimento da trageacutedia Assim com Teacutespis havia

apenas um ator com Eacutesquilo esse nuacutemero foi elevado para dois e com Soacutefocles para trecircs

Assim como faz Aristoacuteteles Romilly (2008 p 43-51) afirma ainda ser a accedilatildeo um elemento

primordial na estrutura da trageacutedia poreacutem natildeo eacute especiacutefico jaacute que na epopeacuteia tanto quanto

na trageacutedia a accedilatildeo deve ser una Ou seja a epopeacuteia pode tambeacutem ter sua accedilatildeo envolta de

peripeacutecias e reconhecimentos e no fim essa accedilatildeo pode levar o personagem agrave cataacutestrofe

Diante desses aspectos estruturais da trageacutedia que ora a distingue ora a identifica

com outros gecircneros entendemos porque Jaeger considera que ―a trageacutedia tanto pelo seu

material miacutetico como pelo seu espiacuterito eacute a herdeira integral da epopeacuteia (JAEGER 2003 p

70) Tal constataccedilatildeo reforccedila nossa tese sobre a tragicidade presente na epopeacuteia Por essa

relaccedilatildeo entre os gecircneros gregos sejam eles arcaicos ou claacutessicos Jaeger afirma

A trageacutedia devolve agrave poesia grega a capacidade de abarcar a

unidade de todo humano Nesse sentido soacute a epopeacuteia homeacuterica se pode

comparar a ela Apesar da grande fecundidade da literatura nos seacuteculos

intermediaacuterios soacute a epopeacuteia a iguala quanto agrave riqueza do conteuacutedo agrave forccedila

estruturadora e amplitude do seu espiacuterito criador Eacute como se o renascimento

do gecircnio poeacutetico da Greacutecia se tivesse mudado da Jocircnia para Atenas A

epopeacuteia e a trageacutedia satildeo como duas grandes formaccedilotildees montanhosas ligadas

por uma seacuterie ininterrupta de serras menores (Ibidem p 287)

A partir da reflexatildeo acima e das consideraccedilotildees realizadas ao longo deste toacutepico

acerca do traacutegico e da trageacutedia percebemos que satildeo elementos num certo ponto

indissociaacuteveis mas que podem ser visto agrave luz de uma anaacutelise que os distingue e que nos faz

perceber a anterioridade do traacutegico em relaccedilatildeo agrave trageacutedia Tal constataccedilatildeo pode ser verificada

tanto na sociedade grega levando em consideraccedilatildeo o traacutegico como elemento soacutecio-cultural

verificado nos estudos antropoloacutegicos como na literatura grega arcaica Assim se quisermos

ver o surgir do traacutegico na literatura ocidental devemos recorrer agraves epopeacuteias homeacutericas pois laacute

encontramos os germes da manifestaccedilatildeo traacutegica estabilizada no periacuteodo claacutessico da literatura

grega atraveacutes das trageacutedias

No decorrer deste capiacutetulo aleacutem de discorrermos sobre o traacutegico sua

manifestaccedilatildeo e origem permeamos nosso estudo tambeacutem com ponderaccedilotildees sobre a trageacutedia

sua formaccedilatildeo e estrutura porque consideramos que essas relaccedilotildees satildeo fundamentais para o

objetivo geral de nosso trabalho que eacute analisar a presenccedila do traacutegico num texto eacutepico a partir

60

do Canto XI da Odisseacuteia Essa realizaccedilatildeo do traacutegico na eacutepica mesmo natildeo sendo seu objetivo

eacute para a literatura ocidental a primeira apariccedilatildeo traacutegica que fundamentaraacute as trageacutedias gregas

no seacuteculo IV aC

23 O traacutegico na Poeacutetica

Antes de iniciarmos nossas discussotildees sobre a perspectiva do traacutegico presente na

Poeacutetica iremos expor brevemente as consideraccedilotildees realizadas por Platatildeo na Repuacuteblica

sobre a arte literaacuteria e mais especificamente sobre a arte traacutegica Esta introduccedilatildeo faz-se

importante para que percebamos e possamos avaliar ateacute que ponto Aristoacuteteles foi

influenciado por seu mestre ou ao contraacuterio construiu teorizaccedilatildeo oposta mais centrada na

estrutura e verossimilhanccedila textual do que no valor moral e educativo que a arte poderia

veicular aos jovens do estado

Faz-se necessaacuterio retomar a teorizaccedilatildeo platocircnica visto que esta eacute de algum modo

relevante na produccedilatildeo de Aristoacuteteles pois no miacutenimo fez parte de sua formaccedilatildeo intelectual

Aleacutem do mais foi Platatildeo o primeiro a iniciar uma discussatildeo sobre a arte literaacuteria e noacutes diante

desse pioneirismo devemos entender o que foi preconizado

Para tanto selecionamos os Livros III e X da Repuacuteblica a fim de avaliarmos os

posicionamentos de Platatildeo e as diferenccedilas que seu disciacutepulo Aristoacuteteles teraacute diante da

perspectiva da anaacutelise do texto literaacuterio Esses dois livros foram selecionados por

considerarmos que neles encontramos reflexotildees importantes de Platatildeo a respeito da arte

literaacuteria

Platatildeo como dissemos iniciou as discussotildees sobre a literatura contudo avaliou-a

a partir do ponto de vista da utilidade se ela poderia servir ao estado ou ao contraacuterio se

prejudicaria na formaccedilatildeo dos jovens A seguir podemos avaliar melhor essa assertiva atraveacutes

da anaacutelise do proacuteprio texto platocircnico

No Livro III praticamente todas as exposiccedilotildees de Platatildeo convergem para um

mesmo foco no estado ideal deve-se estar vigilante a fim de eliminar a arte literaacuteria que natildeo

contribui positivamente na formaccedilatildeo dos jovens isto eacute aquela que os incita agrave impiedade Mas

o que a arte poderia veicular que natildeo favorecesse a formaccedilatildeo do jovens Platatildeo deixa bem

claro quais seriam as faacutebulas inadequadas pois quase como em um manual ele descreve o

que natildeo deve fazer parte da narraccedilatildeo pura e moderada Entre tantas inadequaccedilotildees literaacuterias a

61

que ele se refere podemos citar falsificaccedilatildeo das situaccedilotildees ocorridas no inferno descriccedilatildeo de

heroacuteis em lamentaccedilatildeo pela morte ou pela perda material chorosos homens nobres em

situaccedilatildeo de arrependimento e fraqueza dados ao riso excessivo entre tantas outras indicaccedilotildees

feitas pelo filoacutesofo Diante dessas prerrogativas Platatildeo chega inclusive ao ponto de

considerar que a beleza poeacutetica natildeo caminha ao lado do valor moral tanto que diz

[387β] ηαῦηα θαὶ ηὰ ηνηαῦηα πάληα παξαηηεζόκεζα Ὅκεξόλ ηε θαὶ ηνὺο

ἄιινπο πνηεηὰο κὴ ραιεπαίλεηλ ἂλ δηαγξάθσκελ νὐρ ὡο νὐ πνηεηηθὰ θαὶ ἡδέα ηνῖο πνιινῖο ἀθνύεηλ ἀιι᾽ ὅζῳ πνηεηηθώηεξα ηνζνύηῳ ἧηηνλ

ἀθνπζηένλ παηζὶ θαὶ ἀλδξάζηλ νὓο δεῖ ἐιεπζέξνπο εἶλαη δνπιείαλ ζαλάηνπ

κᾶιινλ πεθνβεκέλνπο40

(Repuacuteblica III 387b)

Pediremos a Homero e aos outros poetas para excluir estas espeacutecies (de

narrativas) assim como natildeo as invalidariacuteamos por falta de poeacutetica e agrado

aos muitos que as ouvir Pelo contraacuterio quanto mais poeacuteticas tanto menos

audiacutevel seratildeo para crianccedilas e homens os quais devem ser livres tendo

receado mais a escravidatildeo do que a morte

Platatildeo natildeo apenas se refere agraves circunstacircncias que devem ser evitadas como cita as

passagens literaacuterias muitas delas de Homero as quais ele natildeo considera beneacuteficas para

compor a estruturaccedilatildeo do estado ideal Uma dessas referecircncias remete-nos ao Canto XI da

Odisseacuteia constataccedilatildeo esta que fazemos mesmo sem o filoacutesofo referir-se diretamente ao seu

objeto de criacutetica Vejamos

[386c] ἐμαιείςνκελ ἄξα ἦλ δ᾽ ἐγώ ἀπὸ ηνῦδε ηνῦ ἔπνπο ἀξμάκελνη πάληα

ηὰ ηνηαῦηαmdash―βνπινίκελ θ᾽ ἐπάξνπξνο ἐὼλ ζεηεπέκελ ἄιιῳ

ἀλδξὶ παξ᾽ ἀθιήξῳ ᾧ κὴ βίνηνο πνιὺο εἴε

ἢ πᾶζηλ λεθύεζζη θαηαθζηκέλνηζηλ ἀλάζζεηλ41

(Repuacuteblica III 386c)

Dizia eu neste discurso portanto anulemos de iniacutecio todas as coisas desta

natureza que assim tenham iniciado ndash ―pois eu preferiria viver sendo um

trabalhador do campo para um outro homem ateacute mesmo sem nobreza e

que eventualmente sua vida natildeo fosse de posses do que reinar sobre

cadaacuteveres que tiveram sido destruiacutedos

Como nos fica evidente temos na citaccedilatildeo acima uma criacutetica agrave produccedilatildeo literaacuteria

homeacuterica especificamente ao Canto XI da Odisseacuteia em que Odisseu encontra-se no Hades

com alguns companheiros da Guerra de Troacuteia Nesse encontro os guerreiros de alta estirpe

40

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101673Abook3D33Asection

3D387b agraves 1523hs de 12 de julho de 2010 41

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101673Abook3D33Asection

3D386c agraves 1530hs de 12 de julho de 2010

62

como Agamecircmnon Aquiles e Aacutejax mostram-se numa situaccedilatildeo natildeo gloriosa A morte para

eles representa um infortuacutenio

Na conversa que Odisseu tem com Agamecircmnon percebe-se que o Atrida vecirc-se

desolado pela traiccedilatildeo da esposa que o levou a uma morte traacutegica inclusive chama atenccedilatildeo

para que Odisseu tenha cuidado no retorno ao lar precavendo-se de uma armadilha que assim

como Cliteminestra Peneacutelope poderia ter preparado para o Laertida Agamecircmnon conta em

detalhes a sua morte de seus companheiros e de Cassandra todos pegos pela artimanha

realizada por sua esposa Cliteminestra junto com seu amante Egisto E depois da narraccedilatildeo o

Atrida no verso 412 conclui ―wAgravej qanon oi)ktistwi qanatwi rdquo42 isto eacute ―Assim morri

com a morte mais lamentaacutevel (Odisseacuteia Canto XI v 412)

O diaacutelogo entre Odisseu e Aquiles natildeo seraacute diferente tanto que Platatildeo chega a falar

(III ndash 386c-d) que narraccedilotildees desse tipo devem ser anuladas O teor desse diaacutelogo sugere para

Platatildeo certa inutilidade para composiccedilatildeo do estado ideal por significar uma ameccedila ao estado

beacutelico E como sabemos nessa passagem Aquiles revela-se insatisfeito em ser rei dos

mortos preferindo ser um ―bouloimhn krsquo e)parouroj e)wUumln qhteuemenrdquo43 (Odisseacuteia

Canto XI v 489) ou seja ―pois eu preferiria viver sendo trabalhador do campo desde que

ainda estivesse vivo Uma narraccedilatildeo como essa segundo Platatildeo abalaria a propensatildeo guerreira

dos heroacuteis que natildeo devem temer a morte pois se um heroacutei como Aquiles mostra-se

arrependido os jovens ver-se-atildeo influenciados negativamente Por isso Platatildeo

definitivamente indica que tais faacutebulas devem ser eliminadas do estado jaacute que natildeo satildeo

beneacuteficas na formaccedilatildeo dos homens dos jovens enfim da sociedade em geral

Aacutejax conhecido como o maior guerreiro grego depois de Aquiles tambeacutem natildeo se

encontra em estado de graccedila e glorificado no Hades Pelo contraacuterio aparece ainda ressentido e

negando-se a falar com Odisseu magoado pela destinaccedilatildeo das armas de Aquiles Estas ao

inveacutes de ficarem com ele satildeo destinadas a Odisseu justificando-se entatildeo a sua atitude de

desdeacutem Esta passagem tambeacutem natildeo eacute adequada aos jovens pois natildeo os enobrece e sim

mostra a desobrigaccedilatildeo para com a filiiquesta ou seja com aqueles que compotildeem o grupo de

amizade

42

Texto disponiacutevel em httpwwwhs-

augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_od11html agraves 1533hs ded 12 de julho de

2010 43

Texto disponiacutevel em httpwwwhs-

augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_od11html agraves 1540hs de 12 de julho de

2010

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Seja atraveacutes de Agamecircmnon Aquiles eou Aacutejax o que queremos mostrar com a

explanaccedilatildeo acima eacute o posicionamento e os criteacuteios utilizados por Platatildeo diante da avaliaccedilatildeo

do texto literaacuterio que como se vecirc eacute baseada em criteacuteios morais de utilidade Platatildeo avalia a

arte atraveacutes de sua utilidade ou inutilidade buscando um fundamento de serventia para a

sociedade e para os homens que a compotildee Assim perguntado sobre quais gecircneros poderiam

permanecer no estado apoacutes ter apontado tantas ―faacutebulas inuacuteteis a exemplo das de Homero

responde

[397δ] ηί νὖλ πνηήζνκελ ἦλ δ᾽ ἐγώ πόηεξνλ εἰο ηὴλ πόιηλ πάληαο ηνύηνπο

παξαδεμόκεζα ἢ ηῶλ ἀθξάησλ ηὸλ ἕηεξνλ ἢ ηὸλ θεθξακέλνλ44

(Repuacuteblica

III 397d)

Entatildeo como realizaremos Dizia eu Seraacute por acaso que aceitaremos para

cidade todos (gecircneros) desta espeacutecie ou outro puro ou o que mistura

O Canto XI nosso objeto central de anaacutelise no proacuteximo capiacutetulo eacute avaliado por

Platatildeo a partir de um criteacuterio utilitaacuterio daiacute a sua opccedilatildeo em eliminar tal arte do estado Jaacute

Aristoacuteteles diferentemente natildeo analisa o texto literaacuterio pelo pressuposto da utilidade mas da

estrutura e verossimilhanccedila interna do texto independentemente da accedilatildeo narrada vir a ser

positiva ou negativa para a formaccedilatildeo do cidadatildeo Por haver essas distinccedilotildees teoacutericas

consideramos explanar mesmo que resumidamente acerca dos paracircmetros de avaliaccedilatildeo que

Platatildeo faz da arte literaacuteria ainda que a nossa pesquisa fundamente-se nos escritos

aristoteacutelicos

Ainda no Livro III (393d) Platatildeo diz preferir a exposiccedilatildeo a narraccedilatildeo pois

considera que no momento em que o poeta se oculta dando voz aos personagens transfigura-

se em outros seres Essa transfiguraccedilatildeo ocorre bem nitidamente nas trageacutedias e comeacutedias

mas no preceito platocircnico ao realizar tal imitaccedilatildeo o poeta afasta-se trecircs vezes da realidade

No Livro X esta distacircncia da arte imitativa em relaccedilatildeo agrave realidade seraacute ainda mais

desenvolvida por Platatildeo chegando afirmar que a arte poeacutetica estaacute muito afastada da realidade

por isso ele afirma que todos os poetas desde Homero ―thordfj deUuml a)lhqeiaj ousup1x

aAgraveptesqairdquo45 (Ibidem 601a) ou seja ―da verdade natildeo consegue se unir Mais proacutexima da

irracionalidade e distante da realidade a arte segundo Platatildeo pode causar danos aos homens

44

Textop retirado de

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101673Abook3D33Dsection

3D3976d agraves 1530hs de 15 de julho de 2010 45

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httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A199901016710Abook3D33Asection

10A601ac agraves 1530hs de 15 de julho de 2010

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E uma cidade sob sua influecircncia acaba sendo governada pela dor pela emoccedilatildeo e natildeo pelo

nomoj46

Uma outra exposiccedilatildeo de Platatildeo no Livro X tambeacutem nos interessa Eacute que o autor

da Repuacuteblica apesar das criacuteticas feitas a Homero admite haver uma certa dificuldade eou

estranheza em ter que falar o que pensa a respeito da arte homeacuterica tendo em vista que haacute de

sua parte uma dedicaccedilatildeo e respeito fruto de sua infacircncia Segue abaixo esse discurso aleacutem de

outro que mostra a importacircncia de Homero para a sociedade grega natildeo soacute a arcaica como

tambeacutem a claacutessica Por isso Platatildeo realiza as seguintes afirmaccedilotildees sobre o autor da Odisseacuteia

θαίηνη θηιία γέ ηίο κε θαὶ αἰδὼο ἐθ παηδὸο ἔρνπζα πεξὶ Ὁκήξνπ ἀπνθσιύεη

ιέγεηλ47

(Repuacuteblica X 595b)

E de fato haacute alguma amizade e respeito que possuo desde a infacircncia a

respeito de Homero que impede-me de falar

() γὰξ ηῶλ θαιῶλ ἁπάλησλ ηνύησλ ηῶλ ηξαγηθῶλ πξῶηνο δηδάζθαιόο ηε

θαὶ ἡγεκὼλ γελέζζαη48

(Ibidem 595c)

Na verdade vem a ser ele o primeiro mestre e guia de todos esses belos

autores traacutegicos

Essa afirmaccedilatildeo de Platatildeo mais uma vez confirma-nos a influecircncia que Homero

realizou sobre os autores traacutegicos Influecircncia essa que pode ser observada natildeo apenas na base

mitoloacutegica como tambeacutem nas cenas homeacutericas aproveitadas e desenvolvidas pelos autores

traacutegicos Ainda mais essa influecircncia pode ser observada nisso acreditamos na proacutepria

elaboraccedilatildeo do traacutegico Este seraacute afixado na literatura grega por meio dos tragedioacutegrafos mas

como podemos notar jaacute se manifesta nas eacutepicas homeacutericas em especial Essa influecircncia

exercida por Homero nos autores traacutegicos como Eacutesquilo Soacutefocles e Euriacutepedes justifica sua

intitulaccedilatildeo como o primeiro mestre dos traacutegicos ldquoprwordftoj didaskaloj twordfn tragikwordfnrdquo

como bem nos caracterizou Platatildeo

46

Em grego nocentmoj de necentmw verbo que significa distribuir partilhar dividir Tem como sentido

primordial o que eacute estabelecido pelo uso o costume justamente por ser uma accedilatildeo de partilha entre os integrantes

da comunidade daiacute o radical derivar de necentmw Como segundo sentido indicado por Romizi (2006) ) nocentmoj indica o que ocorre segundo o termo da lei da norma distribuiacuteda pelo estado 47

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httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A199901016710Abook3D33Asection

10cD595b agraves 1530hs de 15 de julho de 2010 48

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httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A199901016710Abook3D33Asection

10cD595c agraves 1530hs de 15 de julho de 2010

65

Diante da exposiccedilatildeo acima jaacute podemos inferir que Aristoacuteteles ao contraacuterio do seu

mestre analisa a arte literaacuteria em sua estrutura e construccedilatildeo poeacutetica como criaccedilatildeo bem no

sentido etimoloacutegico do termo poihsije natildeo como fez Platatildeo pela perspectiva da

funcionalidade social da arte dos valores e da moral propagada Vejamos pois em siacutentese as

concepccedilotildees aristoteacutelicas da arte literaacuteria presentes na Poeacutetica

Na PeriUuml PoihtikhUumlj49 de Aristoacuteteles que conhecemos geralmente como

Poeacutetica ou Arte Poeacutetica temos comentaacuterios acerca da poeacutetica como indica sua proacutepria

etimologia ou seja da criaccedilatildeocomposiccedilatildeo artiacutestica A poeacutetica central para qual se dirigem os

comentaacuterios do autor eacute a trageacutedia Esta ele considera como mais elevada do que os demais

gecircneros ao ponto de no capiacutetulo XXVI apoacutes suscitar um grau de comparaccedilatildeo entre a

trageacutedia e a epopeacuteia (1461b) demonstrando os atributos de uma e de outra Aristoacuteteles afirma

Eicopy ouAcircn toumacrtoij te diafemacrrei pacurrensi kaiUuml eaumlti twcurrenlaquo thcurrenj temacrxnhj eaumlrgw ()

fanerocentn oagraveti kreittwn aatilden eiOacuteh maIacutellon toucurren Iacutetelouj tugxaiquestnousa

thIacutej epopoiiaj50 (Poeacutetica 26 1462b 11-14)

Entatildeo se ela se distingue por todas essas coisas e ainda pelo trabalho

artiacutestico () eacute claro que a trageacutedia eacute superior agrave epopeacuteia obtendo melhor sua

finalidade

Antes de iniciarmos as nossas consideraccedilotildees sobre o traacutegico a partir da Poeacutetica

ressaltamos que natildeo haacute objetivamente um esclarecimento de Aristoacuteteles do que seria o

traacutegico ao contraacuterio do que ocorre com a trageacutedia cuja estrutura ele conceitua e define

Portanto o que faremos eacute por meio de uma leitura arguta tentar depreender quais elementos

constituem uma accedilatildeo traacutegica e para tanto nos serviremos das exposiccedilotildees que Aristoacuteteles faz

da trageacutedia Ateacute porque como dissemos anteriormente eacute nesta poeacutetica que encontramos de

fato a efetuaccedilatildeo do traacutegico apesar de este jaacute se manifestar nas eacutepicas homeacutericas

Logo ao iniacutecio de sua exposiccedilatildeo no capiacutetulo I Aristoacuteteles afirma-nos que a

epopeacuteia a trageacutedia enfim a criaccedilatildeo poeacutetica de modo geral eacute uma mimhsij51 (1447a) ou

49

Em grego PeriUuml eacute uma preposiccedilatildeo que significa o que estaacute em torno de algo envolta de acerca de eou sobre

algo PoihtikhUumlj eacute formada pelo radical Poihoriundo do verbo temaacutetico poieiquestw que indica o fazer o

compor o criar jaacute o sufixo tikhj conforme nos informa Romizi (2007) indica a atitude a relaccedilatildeo com alguma

coisa o que pertence a algo daiacute PoihtikhUumlj vir a significar o que eacute relativo a criaccedilatildeo a poeacutetica Logo

poderiacuteamos sugerir como traduccedilatildeo para PeriUuml PoihtikhUumljliteralmente ―sobre o que pertencerelativo a

poeacutetica 50

ARISTOacuteTELES 1979 p 75 51

Etimologicamente a palavra mimhsij eacute formada pelo radical mimhiquest do verbo meacutedio mimemacromai que

significa imitar representar reproduzir por meio da imitaccedilatildeo Este verbo por ser meacutedio jaacute nos daacute outra

informaccedilatildeo eacute a de que esta accedilatildeo para que se realize necessita da participaccedilatildeo do envolvimento subjetivo de

66

seja eacute o produto de uma representaccedilatildeo Portanto a concepccedilatildeo aristoteacutelica da arte literaacuteria jaacute eacute

bem demonstrada neste iniacutecio em que estabelecendo a poeacutetica como mimhsij afasta dela

os criteacuterios de avaliaccedilatildeo eacutetica e moral visto que ela natildeo eacute a realidade e sim uma

representaccedilatildeo criativa baseada na necessidade do contexto e na verossimilhanccedila

A anaacutelise literaacuteria seguindo os ditames aristoteacutelicos deve centrar-se na estrutura do

texto e na sua coerecircncia interna e natildeo nos preceitos morais que ela veicula aos jovens como

doutrina Platatildeo baseado na funcionalidade social da poesia Aleacutem da anaacutelise natildeo dever

pautar-se nos valores transmitidos tambeacutem natildeo deve ser feita atraveacutes do aspecto meramente

formal por exemplo preso agrave meacutetrica Essa consideraccedilatildeo de Aristoacuteteles pode ser esclarecida

quando ele distingue a composiccedilatildeo de Empeacutedocles com a de Homero (1447b) tanto que

mesmo ambos utilizando-se da meacutetrica Homero seraacute identificado como poihthmacrj52 e aquele

como o fusioloiquestgoj53

No capiacutetulo II da Poeacutetica o autor explicita-nos que o objeto da imitaccedilatildeo tanto da

trageacutedia quanto da epopeacuteia satildeo os homens superiores (1448a) o que bem nos demonstra a

poeacutetica de Soacutefocles e Homero Tais personagens diferem dos da comeacutedia pois esta imita os

homens natildeo elevados O pressuposto levantado jaacute nos daacute um indiacutecio a respeito do sujeito

traacutegico que eacute pertencer necessariamente a essa dita classe dos superiores honrados e

gloriosos porque estes satildeo os objetos de imitaccedilatildeo da trageacutedia gecircnero em que o traacutegico

realiza-se

Este conhecimento tambeacutem nos ilumina sobre outro aspecto do traacutegico que eacute a

sua relaccedilatildeo com a epopeacuteia pois como observamos eles tecircm em comum o mesmo perfil

Assim as personagens da eacutepica e da arte traacutegica tatildeo diferentes em alguns pontos identificam-

se essencialmente por serem pertencentes a uma mesma classe de homens e mulheres

nobres a citar Agamecircmnon Aacutejax Eacutedipo Antiacutegona Medeacuteia Ifigecircnia enfim Os nomes

citados satildeo de personagens que compotildee a trageacutedia e a epopeacuteia e ainda mais nos casos de

Agamecircmnon e Aacutejax temos personagens de trajetoacuteria eacutepica como tambeacutem traacutegica eles

quem age jaacute que a voz meacutedia inclui o sujeito na accedilatildeo verbal Portanto o imitar parte de um interesse do sujeito

natildeo eacute uma accedilatildeo pragmaacutetica A palavra em estudo possui tambeacutem o sufixo sij Este indica a accedilatildeo e o efeito da

accedilatildeo logo mimhsij traduz-se como a accedilatildeoefeito do imitar do representar 52

Este vocaacutebulo refere-se ao criador da composiccedilatildeo literaacuteria jaacute que poihthmacrj eacute formado pelo radical poihdo

verbo poieiquestw criar mais o sufixo thmacrjindicador da pessoa que realiza a accedilatildeo Assim poihthmacrj representa a

pessoa que cria que compotildee logo o que podemos chamar de poeta artiacutefice 53

O termo referido fusioloiquestgoj eacute formado pela composiccedilatildeo de fusija natureza mais loiquestgoj

genericamente tido como razatildeo proveniente de lemacrgw o dizer atraveacutes da racionalidade da reflexatildeo intelectual

Aleacutem do mais o sufixo oj como diz-nos Romizi (2007) reflete a pessoa que age Logo fusioloiquestgoj vem a

significar aquele que estuda a nureza que se traduz como o fisioacutelogo

67

protagonizam cenas na Iliacuteada e na Odisseacuteia bem como em peccedilas de Eacutesquilo e de Soacutefocles

Ressaltamos poreacutem que na Odisseacuteia jaacute percebemos o caraacuteter traacutegico desses heroacuteis mesmo

estando presentes numa narrativa eacutepica

No capiacutetulo IV dissertando sobre a origem da poesia Aristoacuteteles informa-nos que

Homero foi o responsaacutevel por traccedilar as diretrizes para outros gecircneros literaacuterios Ou seja o

autor da Odisseacuteia natildeo soacute instaurou a literatura no mundo Ocidental como nos legou os

direcionamentos para as demais produccedilotildees literaacuterias vejamos

Ὥζπεξ δὲ θαὶ ηὰ ζπνπδαῖα κάιηζηα πνηεηὴο Ὅκεξνο [35] ἦλ (κόλνο γὰξ νὐρ

ὅηη εὖ ἀιιὰ θαὶ κηκήζεηο δξακαηηθὰο ἐπνίεζελ) νὕησο θαὶ ηὸ ηῆο

θσκσηδίαο ζρῆκα πξηνο ὑπέδεημελ νὐ ςόγνλ ἀιιὰ ηὸ γεινῖνλ

δξακαηνπνηήζαο ὁ γὰξ Μαξγίηεο ἀλάινγνλ ἔρεη ὥζπεξ Ἰιηὰο [1449a] θαὶ ἡ

δύζζεηα πξὸο ηὰο ηξαγσηδίαο νὕησ θαὶ νὗηνο πξὸο ηὰο θσκσηδίαο54

(Poeacutetica IV144b-1449a 34-39)

Assim como Homero era sobretudo poeta com relaccedilatildeo aos (gecircneros)

nobres pois sozinho criou bem representaccedilotildees de accedilotildees desse modo

tambeacutem primeiro mostrou a forma da comeacutedia natildeo o censurado mas a

poesia dramaacutetica que provoca o riso Na verdade o Margites tem sua

analogia pois assim como a Iliacuteada e a Odisseacuteia estatildeo relacionadas as

trageacutedias desse modo aquele (Margites) estaacute para as comeacutedias

Como pode ser visto a importacircncia de Homero daacute-se natildeo apenas pela produccedilatildeo

dos gecircneros que produziu como a epopeacuteia mas para os que natildeo chegou a compor como

comeacutedia e trageacutedia Isto porque a partir de suas obras legou-nos a dramaticidade e outros

elementos que constituem as linhas baacutesicas para a trageacutedia e comeacutedia Desse modo tendo

traccedilado as linhas da trageacutedia e da comeacutedia como Aristoacuteteles afirma-nos acreditamos tambeacutem

que Homero traccedilou as linhas do traacutegico legando-nos o que veio a ser elemento essencial da

trageacutedia

Apoacutes no capiacutetulo V comentar a respeito da comeacutedia sua estrutura e

caracteriacutestica distinguindo-a e comparando-a com a trageacutedia e a epopeacuteia Aristoacuteteles no

capiacutetulo VI propotildee uma definiccedilatildeo para a trageacutedia e descreve suas partes essenciais Logo ao

iniacutecio ele expotildee uma definiccedilatildeo esclarecedora e sinteacutetica sobre a trageacutedia

Ἔζηηλ νὖλ ηξαγσηδία κίκεζηο πξάμεσο ζπνπδαίαο [25] θαὶ ηειείαο κέγεζνο

ἐρνύζεο ἡδπζκέλση ιόγση ρσξὶο ἑθάζηση ηλ εἰδλ ἐλ ηνῖο κνξίνηο

54

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augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante04Aristotelesari_poi1html agraves 1800hs em 16 de julho de

2010

68

δξώλησλ θαὶ νὐ δη᾽ ἀπαγγειίαο δη᾽ ἐιένπ θαὶ θόβνπ πεξαίλνπζα55

ηὴλ ηλ

ηνηνύησλ παζεκάησλ θάζαξζηλ56 (Poeacutetica VI 1449b 24-28)

Portanto a trageacutedia eacute representaccedilatildeo de uma accedilatildeo grave e acabada que possui

certa extensatildeo com uma linguagem ornada cada uma das partes aparece em

seccedilatildeo em que se age e natildeo atraveacutes de narraccedilatildeo levando a atingir por meio

da piedade e do temor a catarse de tais sofrimentos

Pela passagem acima selecionada depreendemos a partir de quatro caracteriacutesticas

baacutesicas o que Aristoacuteteles entende por trageacutedia Primeiro a trageacutedia representa uma accedilatildeo que

deve ser completa e ter certa extensatildeo segundo a linguagem dever ser ornada o que mais agrave

frente o proacuteprio autor explica como uma linguagem que possui ―rucedilqmoUumln kaiUuml acedilrmonimacran

kaiUuml memacrloj ou seja ―ritmo harmonia e melodia terceiro na trageacutedia natildeo deve haver

narraccedilatildeo isto porque os atores eacute quem agem sem a necessidade da intervenccedilatildeo de um

narrador para esclarecer o que ocorre pois a accedilatildeo transcorre aos nossos olhos quarto e muito

importante a trageacutedia mediante toda a estrutura citada deve suscitar ―esup1leou kaiUuml

fomacrbou57 (Ibidem) isto eacute ―compaixatildeo e medo

Desse modo a trageacutedia mediante as accedilotildees encenadas faz surgir o temor e a

piedade sentimentos contraacuterios mas que se completam pois um a esup1leoj aproxima os

espectadores propicia a identificaccedilatildeo para que possam apiedar-se do sujeitosituaccedilatildeo traacutegico

enquanto o outro o fomacrboj faz com que haja um certo afastamento do espectador em

relaccedilatildeo ao traacutegico posto em cena Assim nessa posiccedilatildeo intermediaacuteria envolta pelo sentimento

55

A utilizaccedilatildeo de perainousa uma forma de particiacutepio presente de perainw que siginifa atingir alcanccedilar

levar denota a simultaneidade da accedilatildeo verbal Por isso ele eacute construiacutedo a partir do tema do infectum que indica

a accedilatildeo inacabada (MURACHO 2007) No caso da citaccedilatildeo o uso de perainousa sugere-nos que

simultaneamente ao processo de narraccedilatildeo traacutegica somos levados a atingir a catarse 56

Texto disponiacutevel em httpwwwhs-

augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante04Aristotelesari_poi1html agraves 1805hs em 16 de julho de

2010 57

Fomacrboj eacute segundo Romizi (2007) a forma nominal do verbo femacrbomai indicando a fuga apavorada em

temor que tambeacutem se relaciona ao verbo fobemacrw que tem o sentido primeiro de fazer pavor aterrorizar fazer

fugir meter em fuga pelo temor Como vemos haacute uma semacircntica ligada ao aterrorizante do que potildee medo ao

ponto de fazer algoalgueacutem lanccedilar-se em fuga Por isso haacute algumas complicaccedilotildees na traduccedilatildeo que fazem deste

termo Uns optam por terror como Eudoro de Sousa (1992) e outros por temor como Jaime Bruna (1995) J

Hardy (1979) traduz-se como crainte ou seja receio num campo semacircntico mais proacuteximo de temor do que

terror Com base nessas discussotildees Lessing e John citados por Sandra Luna (2005) preferem traduzir Fomacrboj

apenas como temor jaacute que terror indicaria um sentimento mais desmedido Diante dessas controveacutersias e da

referecircncia etimoloacutegica consideramos a traduccedilatildeo por temor mais adequada jaacute que ela em si traz ainda o sentido

daquilo que de tatildeo apavorante faria fugir todavia natildeo o faz pelo sentimento de esup1leoj da compaixatildeo piedade

que eacute suscitado junto com ele estabelecendo assim um certo equiliacutebrio Se traduziacutessemos Fomacrboj por terror

acabariacuteamos por indicar um sentimento desmedido que de tatildeo aterrorizante paralisa proacuteximo ao mostruoso

bem contraacuterio ao sentido etimoloacutegico que vimos de fobemacrw Por tudo isso a traduccedilatildeo por terror natildeo eacute

apropriada para as trageacutedias gregas

69

de piedade e de temor a trageacutedia que promove o surgimento dessas emoccedilotildees ―perainousa

thUumln twordfn toioutwn paqhmatwn kaqarsinrdquo (Poeacutetica 1449b) isto eacute ―levando a atingir a

catarse de tais sofrimentos

Sobre a kaqarsij muitas satildeo as discussotildees sobre o sentido real e o uso desse

termo verificado nas trageacutedias tanto que Alfredo Carvalho citado por Sandra Luna (2005)

sugere que se mantenha transcrito nas traduccedilotildees a palavra catarse natildeo delimitando seu

sentido como purgaccedilatildeo eou purificaccedilatildeo fato que ocorre em muitas ediccedilotildees O motivo para

tal indicaccedilatildeo estaacute justamente no fato de essa palavra remeter-nos a uma plurisignificaccedilatildeo

para qual natildeo temos em nossa liacutengua uma palavra que possa vir a cobrir sua semacircntica

A palavra catarse do grego kamacrqarsij tem seu radical kamacrqarproveniente do

verbo kaqaimacrrw que genericamente traduz-se como purificar a exemplo de Bailly (2000)

Romizi (2007) e Liddell amp Scottlsquos (1996) Por isso kaqaromacrj de mesmo radical significa

puro Formada pelo radical kamacrqar- mais o sufixo -sijque indica a accedilatildeo eou efeito da

accedilatildeo kamacrqarsij entatildeo etimologicamente significaria purificaccedilatildeo Todavia atentamos que

esta palavra pode ter uma semacircntica diversa a depender do contexto em que eacute utilizada seja

este meacutedico seja religioso

Assim na utilizaccedilatildeo meacutedica o uso deste verbo kamacrqarsij indica purgaccedilatildeo

limpeza esvaziamento do que for de maleacutefico para a sauacutede orgacircnica do inviacuteduo Na utilizaccedilatildeo

religiosa kamacrqarsij significa purificaccedilatildeo que simboliza a limpeza do espiacuterito impuro que

desagrada ao divino Segundo Jean Chevalier e Alain Gheerbrant (2009) a purificaccedilatildeo eacute um

rito presente em todas as religiotildees

Na verdade mesmo diante dessas aparentes distacircncias entre os termos

acreditamos que purgaccedilatildeo e purificaccedilatildeo encontram-se num mesmo campo semacircntico apesar

de utilizadas em contextos diferentes pois ambas indicam a eliminaccedilatildeo de impurezas e

malefiacutecios sejam eles fiacutesicos (purgaccedilatildeo) ou espirituais (purificaccedilatildeo) De todo o modo para

que possamos explicitar essa duplicidade semacircntica presente no termo em questatildeo

utilizaremos ao longo do nosso trabalho como indica Carvalho o vocaacutebulo catarse Assim

natildeo pomos fim a essa vaacutelida discussatildeo linguiacutestica e literaacuteria aleacutem de sua duplicidade

semacircntica

Entendida a explanaccedilatildeo sobre a carga semacircntica presente em

kamacrqarsijrelacionaremos esse conceito e sua importacircncia inseridos no entendimento da

trageacutedia e do traacutegico Para Lesky (1995) a catarse pode ser um instrumento para

70

entendermos melhor o traacutegico e seu efeito jaacute que seria o resultado da accedilatildeo traacutegica Se para

Aristoacuteteles a trageacutedia propicia o despertar de sentimentos como o temor e a piedade e aleacutem

disso vem a operar a catarse dessas emoccedilotildees que ela mesma fez surgir entendemos que isso

natildeo ocorre apenas pela linguagem condimentada pelo ritmo ou melodia Entatildeo o componente

da trageacutedia essencial para inspirar esses sentimentos eacute justamente o traacutegico

Toda essa explanaccedilatildeo sobre a kamacrqarsij nos eacute importante por acreditarmos que

o Canto XI da Odisseacuteia passa por um processo kartaacutetico Ao ver os grandes heroacuteis em

infortuacutenio Odisseu apieda-se perante o sofrer de seus semelhantes ao mesmo tempo em que

tambeacutem sente temor de que pudesse vir a ter um destino desventuroso o que natildeo seria difiacutecil

por haacute tanto vir enfrentando sofrimentos diversos na busca de retornar ao lar Tendo passado

pelo processo de kamacrqarsij Odisseu purificado livre das enfermidades espirituais do

excesso e da desmedida pode finalmente alcanccedilar seu objetivo buscado jaacute por longos anos

chegar a Iacutetaca

Aliado aos demais elementos da trageacutedia o traacutegico eacute o responsaacutevel para que se

suscitem as emoccedilotildees de piedade e temor as quais segundo Aristoacuteteles satildeo fruto das accedilotildees

representadas na peccedila e natildeo narraccedilotildees Pois mais do que as outras partes da trageacutedia como

ritmo melodia e linguagem condimentada eacute o traacutegico que essencialmente tem a capacidade

de provocar e inspirar a esup1leojpiedade e o fomacrbojo temor

Deste modo uma representaccedilatildeo traacutegica como a de Agamecircmnon que apoacutes dez

anos volta agrave sua terra glorificado pela vitoacuteria mas que logo eacute pego por uma armadilha da

esposa e de seu amante matando-o indignamente faz surgir dois sentimentos

esup1leojpiedade e o fomacrbojo temor O primeiro porque diante de um sofrer que parece

indigno injusto imerecido acaba-se por sentir compaixatildeo Lembremos de que Agamecircmnon

um homem de grandes feitos aAtildenac asup1ndrwIacuten58 o senhor dos heroacuteis retorna trazendo a gloacuteria

para o lar e como recepccedilatildeo encontra a morte preparada pela esposa numa banheira Tudo

isso nos inspira a esup1lemacroj Ao mesmo tempo toda essa situaccedilatildeo traacutegica se veio atingir um

grande rei como Agamecircmnon por este ter cometido uma accedilatildeo errocircnea poderia vir atingir

tambeacutem os demais menos ilustres Logo desponta-se entatildeo o receio de que o traacutegico possa

tambeacutem nos atingir E essa circunstacircncia inspira o fomacrboj Por isso o coro diz em

Agamecircmnon

58

Este eacute um epiacuteteto bastante utilizado para Agamecircmnon na Iliacuteada e que o distingue dos demais indicando que

ele eacute o que comanda os demais heroacuteis e reis como Aquiles Aacutejax Odisseu enfim

71

ἰὼ ἰὼ βαζηιεῦ βαζηιεῦ

πο ζε δαθξύζσ

θξελὸο ἐθ θηιίαο ηί πνη᾽ εἴπσ

θεῖζαη δ᾽ ἀξάρλεο ἐλ ὑθάζκαηη ηῶδ᾽

ἀζεβεῖ ζαλάηῳ βίνλ ἐθπλέσλ

ὤκνη κνη θνίηαλ ηάλδ᾽ ἀλειεύζεξνλ

δνιίῳ κόξῳ δακεὶο

ἐθ ρεξὸο ἀκθηηόκῳ βειέκλῳ

(Agamecircmnon v 1513 -1520)

Ioacute ioacute Rei rei

Como chorar-te-ei

O que falar a partir do coraccedilatildeo amigo

Eacutes posto nessa teia de aranha expirando

a vida por uma impiedosa morte

Oacutemoi oacutemoi Neste indigno repouso

Tendo sido dominado sob trapaceira sorte

Pela matildeo com arma cortante de ambos os lados

A trageacutedia por meio do traacutegico tendo feito surgir os sentimentos de temor e

piedade realiza a catarse desses sentimentos assim os sentimentos que ela mesma inspirou

formam um processo cartaacutetico Processo possiacutevel pela existecircncia do traacutegico na composiccedilatildeo

estrutural da trageacutedia pois como vimos o traacutegico eacute o elemento responsaacutevel por inspirar o

temor e a piedade Desta maneira proporcionando meios de ser efetuado o que eacute

provavelmente o maior objetivo da trageacutedia a kaqarsij

Apesar de Aristoacuteteles natildeo nos definir exatamente o que eacute o traacutegico podemos

percorrer suas ponderaccedilotildees na Poeacutetica sobre os elementos da trageacutedia Com isso se natildeo

chegamos ao traacutegico aristoteacutelico pelo menos nos aproximamos de sua significaccedilatildeo Assim a

partir do raciociacutenio de que o traacutegico tem a capacidade de fazer surgir os sentimentos de temor

e piedade e depois realizar a catarse deles podemos chegar a mais uma conclusatildeo sobre o

traacutegico Porque se o inspirar do temor e da piedade como nos diz Aristoacuteteles ocorre atraveacutes

da accedilatildeo dos atores e natildeo da narraccedilatildeo chegamos a mais uma caracteriacutestica sobre o traacutegico ele

decorre da accedilatildeo dos personagens

E essa accedilatildeo traacutegica segundo Aristoacuteteles eacute o elemento mais importante da trageacutedia

grega porque nela encontramos a origem para a fortuna humana seja ela boa ou maacute (1450a)

e eacute tambeacutem atraveacutes da accedilatildeo que o caraacuteter se revela jaacute que a qualidade dos personagens estaacute

exposta em suas accedilotildees Desta maneira elencando o mito o caraacuteter a elocuccedilatildeo o pensamento

o espetaacuteculo e a melopeacuteia como as seis partes componentes da trageacutedia ele afirma

72

Μέγηζηνλ δὲ ηνύησλ ἐζηὶλ ἡ ηλ πξαγκάησλ ζύζηαζηο ἡ γὰξ ηξαγσηδία

κίκεζίο ἐζηηλ νὐθ ἀλζξώπσλ ἀιιὰ πξάμεσλ θαὶ βίνπ θαὶ εὐδαηκνλία θαὶ

θαθνδαηκνλία ἐλ πξάμεη ἐζηίλ θαὶ ηὸ ηέινο πξᾶμίο ηηο ἐζηίλ νὐ πνηόηεο59

(Poeacutetica VI 1450a 15-19)

O mais importante (elemento) eacute a composiccedilatildeo dos fatos pois a trageacutedia eacute

representaccedilatildeo natildeo de seres humanos mas de accedilotildees e da vida Tambeacutem a

fortuna e o infortuacutenio estatildeo na accedilatildeo e a finalidade eacute alguma accedilatildeo natildeo uma

qualidade

Apoacutes ter identificado a accedilatildeo como a parte mais importante da trageacutedia Aristoacuteteles diz

que sem accedilatildeo natildeo haacute trageacutedia Tal definiccedilatildeo como vemos faz parte de um argumento bem

loacutegico pois se antes ele havia dito que a accedilatildeo eacute o elemento mais importante da trageacutedia logo

supomos que sem ela natildeo haacute trageacutedia e eacute isso que ele nos confirma ―brvbarbrvbarEti aAtildeneu meUumln

pracewj ousup1k aAtilden genoito tragdia aAtildeneu deUuml hsup1qwordfn ge noitrsquo aAtilden60 (Ibidem 23-25)

ou seja ―Ainda assim a trageacutedia natildeo poderia vir a ser sem accedilatildeo mas sim sem os caracteres

Mesmo porque a accedilatildeo ―sup1ArxhUuml meUumln ouaringn kaiUuml oiaringon yuxhUuml ocedil muordfqoj thordfj tragdiaj61

(Poeacutetica VI 1450a 39-40) ― Portanto o mito eacute como que o princiacutepio e a alma da trageacutedia

Seguindo tambeacutem o raciociacutenio loacutegico de Aristoacuteteles poderiacuteamos dizer o traacutegico eacute

proveniente da accedilatildeo dos personagens sem accedilatildeo natildeo haacute trageacutedia logo concluiacutemos que sem

traacutegico natildeo haacute trageacutedia Chegamos entatildeo temos mais um pressuposto para legitimar nossa

tese do traacutegico como essecircncia da trageacutedia grega seja esse refletido no destino ou apenas em

uma situaccedilatildeo de vida

Esta accedilatildeo traacutegica deve tambeacutem estar ligada a dois meios que realizam a comoccedilatildeo

dos acircnimos satildeo eles asup1nagnwiquestrisij e peripemacrteia ou seja reconhecimento e peripeacutecia

Anteriormente jaacute explicamos a etimologia e o significado de cada um agora nos eacute importante

compreender a importacircncia deles na estrutura da trageacutedia percebamos

Πξὸο δὲ ηνύηνηο ηὰ κέγηζηα νἷο ςπραγσγεῖ ἡ ηξαγσηδία ηνῦ κύζνπ κέξε

ἐζηίλ αἵ ηε πεξηπέηεηαη θαὶ ἀλαγλσξίζεηο62 (Poeacutetica VI 1450a 33-35)

59

Texto disponiacutevel em httpwwwhs-

augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante04Aristotelesari_poi2html agraves 1905hs de 16 de julho de

2010 60

Texto disponiacutevel em httpwwwhs-

augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante04Aristotelesari_poi2html agraves 1910hs de 16 de julho de

2010 61

Ibidem 62

Texto disponiacutevel em httpwwwhs-

augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante04Aristotelesari_poi2html agraves 1910hs de 16 de julho de

2010

73

Para junto disso a trageacutedia extasia-os com seus importantes elementos que

satildeo parte do mito as peripeacutecias e os reconhecimentos

Entatildeo se asup1nagnwiquestrisij e peripemacrteia satildeo meios fundamentais atraveacutes dos

quais a trageacutedia alcanccedila a comoccedilatildeo do espiacuterito portanto satildeo tambeacutem fundamentais para

intensificaccedilatildeo do traacutegico jaacute que este corresponde ao elemento miacutetico na estrutura da trageacutedia

Ressaltamos que esses dois elementos para que o traacutegico seja desenvolvido devem estar

aliado a outros elementos pois sozinho natildeo realizam o traacutegico Ateacute porque como sabemos

asup1nagnwiquestrisij e peripemacrteia satildeo elementos comuns tambeacutem da comeacutedia Mas como partes

do mito reconhecimento e peripeacutecia aleacutem de fazerem a estrutura literaacuteria ser como define

Aristoacuteteles mais complexa tambeacutem corroboram para a intensificaccedilatildeo do efeito traacutegico Por

isso classificando os tipos de reconhecimento no capiacutetulo XVI da Poeacutetica o filoacutesofo

informa-nos que apesar de existirem vaacuterias realizaccedilotildees do reconhecimento a melhor delas eacute a

que deriva do conflito (1455a v 17-22) da accedilatildeo Como a de Ifigecircnia em Aacuteulis (2002) e a de

Eacutedipo Rei (2001) e natildeo as que se realizam por meios artificiais a exemplo de sinais da

memoacuteria e do silogismo

Isto porque quando sofre uma peripeacutecia o sujeito traacutegico vecirc-se num conflito

Basta lembrarmos de Eacutedipo Rei em que o rei procura o assassino de Laio quando ele mesmo

vem a ser a proacutepria causa de tantos malefiacutecios Do mesmo modo com o reconhecimento pois

quando o indiviacuteduo vecirc-se tomado pela indesejada circunstacircncia ou destino traacutegicos ele se

reconhece como sujeito traacutegico proacuteximo de sua cataacutetrofe Para tanto eacute soacute nos lembrarmos

por exemplo de Eacutedipo Aacutejax Ifigecircnia e Hipoacutelito quando se reconhecem como figuras

traacutegicas O primeiro ao perceber que era ele mesmo a causa do mal que procurava o

segundo ao entender que havia matado animais e natildeo os guerreiros gregos a terceira ao ver

que sua vida seraacute aniquilada pelo proacuteprio pai e o quarto enxergando-se como vitimado por

um crime que natildeo cometera Observemos

ἰνὺ ἰνύ ηὰ πάλη᾽ ἂλ ἐμήθνη ζαθῆ

ὦ θο ηειεπηαῖόλ ζε πξνζβιέςαηκη λῦλ

ὅζηηο πέθαζκαη θύο η᾽ ἀθ᾽ ὧλ νὐ ρξῆλ63

(Eacutedipo Rei 1182-1184)

Ioacuteu ioacuteu Atingiste-me e todas as coisas estatildeo claras

Oacute luz nesse instante eu poderia olhar-te o fim

eu fiz aparecer o filho de que natildeo havia necessidade

63

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101913Acard3D1196 agraves

1940hs de 17 de julho de 2010

74

ἰὼ

ζθόηνο ἐκὸλ θάνο

ἔξεβνο ὦ θαελλόηαηνλ ὡο ἐκνί

ἕιεζζ᾽ ἕιεζζέ κ᾽ νἰθήηνξα

ἕιεζζέ κ᾽ νὔηε γὰξ ζελ γέλνο νὔζ᾽ ἁκεξίσλ

ἔη᾽ ἄμηνο βιέπεηλ ηηλ᾽ εἰο ὄλαζηλ ἀλζξώπσλ

ἀιιά κ᾽ ἁ Δηὸο ἀιθίκα ζεὸο ὀιέζξη᾽ αἰθίδεη

64

(Aacutejax 394-403)

Ioacute Treva toda minha luz

Oacute Eacuterebo como eacutes brilhantiacutessimo para mim

Leva-me leva-me para tua morada

leva-me Pois nem mereccedilo olhar nem por um dia

para a raccedila dos deuses nem igualmente para a dos homens

Todavia a filha de Zeus

o poderoso deus

atormenta-me para destruiccedilatildeo

νἲ γώ κᾶηεξ ηαὐηὸλ ηόδε γὰξ

κέινο εἰο ἄκθσ πέπησθε ηύρεο

θνὐθέηη κνη θο

νὐδ᾽ ἀειίνπ ηόδε θέγγνο

ἰὼ ἰώ65

(Ifigecircnia em Aacuteulis 1279-1283)

Ai de mim matildee Pois este mesmo

canto do acaso caiu para ambas

Para mim natildeo (haveraacute) mais luz

e nem a claridade do sol

Ioacute ioacute

αἰαῖ αἰαῖ

δύζηελνο ἐγώ παηξὸο ὡο ἀδίθνπ

ρξεζκνῖο ἀδίθνηο δηειπκάλζελ

ἀπόισια ηάιαο νἴκνη κνη

()

αἰαῖ αἰαῖ

θαὶ λῦλ ὀδύλα κ᾽ ὀδύλα βαίλεη

κέζεηέ κε ηάιαλεο

θαί κνη ζάλαηνο Παηὰλ ἔιζνη

πξνζαπόιιπη᾽ ἀπόιιπηε66

(Hipoacutelito 1348-501370-74)

64

Tento disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101833Acard3D394 `s 2000hs

de 17 de julho de 2010 65

Texto disponiacutevel em httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseustext1999010107 agraves 2020hs de

17 de julho de 2010 66

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101053Acard3D1370 agraves

2030hs de 17 de juho de 2010

75

Aiacuteaiacute aiacuteaiacute

Eu sou miseraacutevel por causa de um pai injusto

de profecias injustas desfeitas vergonhosamente

fui destruiacutedo estou desgraccedilado ai de mim

Aiacuteaiacute aiacuteaiacute

E agora vai causa-me dor causa-me dor

deixais-me ir desgraccedilado

e que o Curador da morte venha para mim

destroacutei-me destroacutei-me

As passagens citadas ilustram bem que a tragicidade da peccedila eacute aumentada quando

os personagens passam do estado da ignoracircncia para o conhecimento e consciecircncia dos fatos

Para entendermos mais claramente eacute soacute imaginarmos um homem que mata o pai e casa com a

matildee mas sem saber ou seja sem a asup1nagnwiquestrisij Isso nos causaria piedade eou temor

Acreditamos que natildeo e o proacuteprio Eacutedipo retifica-nos pois antes de saber que ele era o

responsaacutevel pelo mal que assolava Tebas ele natildeo se lamentava apenas buscava o culpado

enfim ele natildeo se reconhecia como um personagem traacutegico Do mesmo modo a falta de

reconhecimento com Aacutejax Ifigecircnia Hipoacutelito pode diminuir ou ateacute mesmo vir a extinguir

toda a tragicidade

Como percebemos peripemacrteia e asup1nagnwiquestrisij surgidas da estrutura interna

do mito satildeo importantes natildeo apenas para a trageacutedia e seus aspectos formais mas para o

desdobramento intensificado do traacutegico Aristoacuteteles diz-nos ainda que ocorrendo juntas a

peripeacutecia e o reconhecimento compotildeem uma estrutura complexa Podemos depreender pela

explanaccedilatildeo e exemplificaccedilatildeo que fizemos acima que juntas a peripeacutecia e o reconhecimento

reforccedilam a dramaticidade da peccedila Tal ideacuteia talvez nos permita afirmar que uma trageacutedia

aristotelicamente complexa possui mais teor traacutegico do que as de estrutura simples sem

reconhecimento e peripeacutecia

Para Aristoacuteteles a estrutura do mito traacutegico bem realizado deve ser uniforme e

como um todo deve ter iniacutecio meio e fim Por isso ele explica que um ser muito grande ou

muito pequeno natildeo se aproximaria do que eacute belo (1451a) Esse comentaacuterio ajuda-nos a

compreender entre outros fatores o porquecirc da unidade de accedilatildeo ser tatildeo relevante para a

teorizaccedilatildeo aristoteacutelica devendo estar presente tanto numa trageacutedia quanto numa epopeacuteia

Tanto que Aristoacuteteles aponta as epopeacuteias homeacutericas como exemplos dessa unidade de accedilatildeo jaacute

que apesar de extensas os episoacutedios convergem para accedilatildeo central compondo o todo Aleacutem

do mais tambeacutem podemos perceber o porquecirc de a extensatildeo da trageacutedia ser baseada no tempo

76

suficiente em que se possa transcorrer a mudanccedila da fortuna do personagem Vejamos o que

ele diz

ὡο δὲ ἁπιο δηνξίζαληαο εἰπεῖλ ἐλ ὅζση κεγέζεη θαηὰ ηὸ εἰθὸο ἢ ηὸ

ἀλαγθαῖνλ ἐθεμῆο γηγλνκέλσλ ζπκβαίλεη εἰο εὐηπρίαλ ἐθ δπζηπρίαο ἢ ἐμ

εὐηπρίαο εἰο δπζηπρίαλ κεηαβάιιεηλ ἱθαλὸο [15] ὅξνο ἐζηὶλ ηνῦ κεγέζνπο67

(Poeacutetica VII 1451a 11-15)

Em certa extensatildeo simplesmente devem realizar o narrar um apoacutes outro

segundo a verossimilhanccedila e a necessidade e que ocorra com o traspassar

para a fortuna a partir do infortuacutenio e da fortuna para o infortuacutenio este eacute o

limite conveniente de sua extensatildeo

A unidade de accedilatildeo segundo os preceitos aristoteacutelicos eacute fundamental para a

estruturaccedilatildeo de uma faacutebula Assim mesmo numa epopeacuteia os episoacutedios devem convergir para

a accedilatildeo central tornando-a una e coesa E essa limitaccedilatildeo temporal da trageacutedia que deve

desenvolver-se numa temporalidade suficiente para que possamos ter a mudanccedila de fortuna

tambeacutem nos colabora para outra compreensatildeo do traacutegico Pois este para ser melhor realizado

tambeacutem deve ter unidade pois faltaria totalidade a um mito que depois de ocorrer a accedilatildeo

traacutegica passasse a desenvolver outros temas dispersando e diluindo o traacutegico Isso nos faz

compreender o porquecirc das criacuteticas agrave peccedila de Soacutefocles Aacutejax Nesta peccedila apoacutes concretizada a

mudanccedila da fortuna do heroacutei com o seu suiciacutedio vemos o desenvolver da defesa de seu corpo

por Teucro seu meio-irmatildeo Muitos criacuteticos entendem que essa continuidade da peccedila

prejudicaria sua qualidade Natildeo entraremos nessa discussatildeo contudo podemos compreender

que a accedilatildeo traacutegica deve ser condensada deve ter unidade a fim de que natildeo se dilua por

completo nem se disperse Assim sendo conforme as indicaccedilotildees de Aristoacuteteles o tempo da

accedilatildeo traacutegica deve limitar-se agrave mudanccedila de fortuna

No capiacutetulo XIII Aristoacuteteles expotildee-nos mais diretamente a respeito do traacutegico

comentando o que viria a ser uma situaccedilatildeo traacutegica por excelecircncia para que possa inspirar o

temor e a piedade e depois a catarse desses sentimentos Para termos essa ―plausiacutevel

situaccedilatildeo traacutegica ela natildeo deve ter homens muito bons passando para o infortuacutenio - o que

causaria excesso de piedade - nem muito maus o que levaria a um distanciamento Mesmo

porque essas circuntacircncias natildeo fazem surgir o temor fomacrboj nem a piedade esup1lemacroj estes

sentimentos que devem vir da accedilatildeo dos personagens e que satildeo inspirados em determinadas

situaccedilotildees

67

Texto disponiacutevel em httpwwwhs-

augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante04Aristotelesari_poi2html agraves 2025hs de 17 de julho de

2010

77

ἔιενο κὲλ πεξὶ ηὸλ ἀλάμηνλ θόβνο δὲ πεξὶ ηὸλ ὅκνηνλ68

(Poeacutetica XIII 1453a 5-6)

() a piedade sobre o imerecido o temor sobre o semelhante

Diante disso resta ao heroacutei uma situaccedilatildeo intermediaacuteria (1453a) pois nem tatildeo

virtuoso nem tatildeo maldoso Sua tragicidade viraacute natildeo pelo caraacuteter mas por uma accedilatildeo errocircnea

Este erro a aumlmartian seria o responsaacutevel por fazer algueacutem passar da fortuna ao infortuacutenio

ou vice-versa Muitas discussotildees haacute sobre essa hamartia aristoteacutelica e qual seria seu

significado essencial mas por hora vejamos o que nos diz o filoacutesofo referindo-se ao heroacutei

que natildeo cai no erro por falha de caraacuteter mas por causa de

ἁμαρτίαν τινά ηλ ἐλ κεγάιῃ δόμῃ ὄλησλ θαὶ εὐηπρίᾳ νἷνλ Οἰδίπνπο θαὶ

Θπέζηεο θαὶ νἱ ἐθ ηλ ηνηνύησλ γελλ ἐπηθαλεῖο ἄλδξεο () ἐμ εὐηπρίαο εἰο

δπζηπρίαλ κὴ δηὰ κνρζεξίαλ ἀιιὰ δη᾽ ἁμαρτίαν μεγάλην ἢ νἵνπ εἴξεηαη ἢ

βειηίνλνο κᾶιινλ ἢ ρείξνλνο69 (Poeacutetica XIII 1453 a 10-1215-17)

() algum erro daqueles de grande gloacuteria e boa fortuna como o de Eacutedipo e

Tiestes tambeacutem por homens ilustres de famiacutelias tais () a partir da fortuna

para o infortuacutenio natildeo por maldade mas atraveacutes de um grande erro ou como

o que foi dito ou de um (erro) melhor ou ainda pior

A primeira referecircncia de hamartia presente no texto de Aristoacuteteles diz ἁμαρηίαν

ηινά Liddell e Sccottlsquos (1996) informam-nos que aumlmartia significa filure error ou seja

falha erro Este substantivo eacute originado pelo verbo aumlmartanw definido como to miss miss

the mark quer dizer falharerrar eou errar o alvo Seu qualificador tina sendo pronome

indefinido expressa a indefiniccedilatildeo por meio de ―um algum Podemos entatildeo chegar agrave

traduccedilatildeo para aumlmartian tina como ―errar um alvo Este sentido indefinido dificulta-nos

para sabermos a que erro Aristoacuteteles se refere contudo essa indefiniccedilatildeo daacute-nos um indiacutecio

importante esse erro pode ser de origens diversas

Em aumlmartian megalhn poderemos entender melhor o que seria o erro traacutegico

indicado por Aristoacuteteles O termo megalhn equivale a megaj que significa aquilo que eacute

largo grande importante Logo aumlmartian megalhn pode ser traduzido por ―grande erro

68

Ibidem 69

Os destaques satildeo nossos Texto disponiacutevel em httpwwwhs-

augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante04Aristotelesari_poi2html agraves 2035hs de 17 de julho de

2010

78

Percebemos entatildeo que este erro fundamental para o decorrer da accedilatildeo traacutegica eacute grandioso

grave muito importante para todo o contexto em que se estabelece

Baseada nas discussotildees acima sobre a hamartia aristoteacutelica podemos chegar agrave

conclusatildeo de que a hamartia natildeo estaacute relacionada como poder-se-ia pensar a um erro moral

originado em decorrecircncia de uma falha de caraacuteter Na verdade apesar de ser um grande eou

grave erro ele eacute sem intencionalidade Todavia esta falta de intenccedilatildeo natildeo o exime do traacutegico

Este natildeo deve ser confundido como um castigo e sim como uma mudanccedila de fortuna que

geralmente ocasiona para o agente um infeliz resultado

Esse grandioso erro tambeacutem eacute indefinido por isso o aumlmartian tina que nos

sugere uma falha natildeo especiacutefica impedindo-nos de definir o que seria um erro traacutegico ou natildeo

mas que eacute um aumlmartian megalhn um grande erro Todavia ressaltamos que haacute falhas

traacutegicas por excelecircncia como por exemplo as cometidas contra os deuses aleacutem das

realizadas como diz-nos o proacuteprio Aristoacuteteles (19791995) no capiacutetulo XIV contra pessoas

da famiacutelia

Ὅταν δ᾽ ἐν ταῖς φιλίαις ἐγγένηται τὰ πάθη οἷον ἢ ἀδελφὸς

ἀδελφὸν ἢ υἱὸς πατέρα ἢ μήτηρ υἱὸν ἢ υἱὸς μητέρα ἀποκτείνηι ἢ

μέλληι ἤ τι ἄλλο τοιοῦτον δρᾶι ταῦτα ζητητέον70 (Ibidem XIV

1453b 20-23)

Quando estas cataacutestrofes realizam-se em amizades ou com um irmatildeo que

mata irmatildeo ou um filho que mata o pai ou a matildee que mata o filho ou o

filho que mata a matildee ou quando venha ocorrer alguma outra coisa desta

natureza estas coisas tecircm que ser buscadas

O fato de existirem essas situaccedilotildees traacutegicas por natureza faz com que entendamos

o impacto traacutegico das trageacutedias Medeacuteia Oresteacuteia e Eacutedipo Rei ateacute hoje pelos assassinatos

entre familiares Por isso temos a existecircncia de famiacutelias em que se delineiam o traacutegico

mesmo com o passar das geraccedilotildees a exemplo da dos Labdaacutecidas e dos Atridas E eacute esse

aspecto do conflito familiar somado aos finais infortunados que segundo Aristoacuteteles acaba

por fazer Euriacutepedes ser o mais tragikomacrj dos poetas

Atraveacutes das consideraccedilotildees acima realizadas tentamos compreender definiccedilotildees e

aspectos relativos ao traacutegico a partir da Poeacutetica Esta obra legou-nos as primeiras reflexotildees

teoacutericas sobre a literatura mais especificamente sobre a trageacutedia e a epopeacuteia Tentamos

70

Texto disponiacutevel em httpwwwhs-

augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante04Aristotelesari_poi2html agraves 2035hs de 17 de julho de

2010

79

depreender atraveacutes dela a estrutura e significaccedilatildeo do traacutegico para as trageacutedias gregas como

tambeacutem para as epopeacuteias homeacutericas jaacute que nelas podemos encontrar consideraacutevel

manifestaccedilatildeo de tragicidade presente por exemplo no Canto XI da Odisseacuteia

24 A busca do traacutegico outras reflexotildees teoacutericas

Na tentativa de compreender melhor a categoria do traacutegico claacutessico

continuaremos em busca de seu entendimento mas desta vez percorrendo os conceitos e as

discussotildees realizadas por outros autores Este processo assim como os demais que

desenvolvemos ateacute entatildeo tem o propoacutesico de subsidiar-nos para a compreensatildeo do nosso

objetivo geral que eacute o de analisar a tragicidade no Canto XI da Odisseacuteia Em auxiacutelio agrave nossa

proposta contribuem os seguintes autores Jean-Pierre Vernant Grimal Jacqueline de

Romilly Anatol Rosenfeld Junito Brandatildeo Albin Lesky e Sandra Luna

Em Mito e trageacutedia na Greacutecia Antiga (2008) Jean-Pierre Vernant discorre que na

trageacutedia o homem (heroacutei) eacute posto para realizar uma escolha definitiva diante de um mundo

ambiacuteguo e instaacutevel Para o autor isso seria a ―mateacuteria-prima da trageacutedia o primeiro aspecto

do conflito Diante disso a trageacutedia possui tambeacutem algumas marcas que seriam tensatildeo entre

mito e pensamento citadino conflitos humanos de valores do mundo e do universo divino

caracteriacutestica ambiacutegua e equiacutevoco linguumliacutestico Estas marcas da trageacutedia satildeo fundamentais

tambeacutem para a realizaccedilatildeo do traacutegico principalmente no que diz respeito agrave tensatildeo e ao conflito

do homem para com os demais O homem como ―mateacuteria-prima do traacutegico vecirc-se desafiado

por decisotildees e suscetiacutevel perante sua fragilidade pois ―neste jogo do qual natildeo eacute senhor o

homem sempre corre o risco de cair na armadilha de suas proacuteprias decisotildees (VERNANT

2008 p 21)

Estas decisotildees afligem muitas vezes a jornada do homem que acaba por se tornar

uma sujeito traacutegico E assim aquele homem na eacutepica que exalta seu vigor e alcanccedila a gloacuteria

depara-se com sua fragilidade e finitude diante da vida e de suas circunstacircncias Por isso

Vernant (2008) considera que no traacutegico a accedilatildeo e o agir humano dividem-se em dois poacutelos o

primeiro eacute o de deliberar pesar eou prevecirc a melhor opccedilatildeo de escolha e o segundo eacute

considerar a presenccedila do incompreensiacutevel do desconhecido e de forccedilas sobrenaturais que

possam vir preparar seu sucesso ou sua derrota Assim o traacutegico estaacute indissoluvelmente

aliado a uma accedilatildeo que pressupotildee uma escolha

80

O autor afirma que a culpa traacutegica pode ser realizada de duas formas uma eacute

atraveacutes da hamartia que ele define como uma concepccedilatildeo religiosa do erro uma ―doenccedila do

espiacuterito em que o sujeito coagido por elementos superiores chega a cometer o delito a

outra eacute por meio do adikon71

em que o sujeito sem nenhuma coaccedilatildeo decide cometer o erro

Assim entendemos que o indiviacuteduo poder torna-se traacutegico ou por um erro sem

voluntariedade hamartia sob forccedilas superiores ou por deliberaccedilatildeo proacutepria por isso eacute

chamado de adikon injusto

Um aspecto bastante discutido sobre o traacutegico refere-se agrave existecircncia ou natildeo da

vontade e da responsabilidade humana Natildeo pretendemos aprofundar-nos nessa questatildeo

contudo ela nos serve para entender as circuntacircncias que levam ao traacutegico Assim Vernant

(2008) afirma que no Periacuteodo Arcaico da literatura grega natildeo haacute vocaacutebulo para designar a

vontade o querer direcionado ao homem mas sabemos que ela havia em relaccedilatildeo aos deuses

como se vecirc por exemplo na Iliacuteada (v5) No Periacuteodo Claacutessico mesmo ainda sem a existecircncia

dessa palavra para os homens jaacute comeccedilamos a ter o levantamento desses questionamentos

Mesmo porque o autor defende que para haver uma decisatildeo tem que existir alguma vontade

Desde que o indiviacuteduo se empenha numa decisatildeo que se decide

qualquer que seja o plano em que se situe sua resoluccedilatildeo ele se constitui a si

proacuteprio como agente isto eacute como sujeito responsaacutevel e autocircnomo que se

manifesta em atos e por atos que lhe satildeo imputaacuteveis (Ibidem 2008 p 26)

A necessidade (asup1namacrgkh) imposta pelos deuses eou pela ocasiatildeo impulsiona o

homem a tomar decisotildees Estas possuem de alguma maneira expressotildees de seus desejos

apesar de que muitas vezes soacute haacute uma escolha Por isso diz Vernant que se haacute uma vontade

ela natildeo eacute autocircnoma e sim ―amarrada pelo temor que o divino inspira se natildeo constragida por

potecircncias sagradas que assediam o homem no seu proacuteprio iacutentimo (VERNANT 2008 p 28)

Entatildeo concluimos que a partir da necessidade emana a accedilatildeo do homem pois segundo

Vernant ainda natildeo podemos falar em vontade na trageacutedia grega Na verdade ela ―marca uma

etapa e como que uma virada na histoacuteria dos avanccedilos do homem grego antigo na direccedilatildeo da

vontade (Ibidem p 42)

A partir de sua exposiccedilatildeo Vernant (2008) define o traacutegico como a interrogaccedilatildeo do

homem sobre seus atos chegando ao ponto de fazer daquele heroacutei eacutepico exemplar o

responsaacutevel por sua accedilatildeo errocircnea Tal accedilatildeo volta-se contra ele mesmo ocasionando o

71

Esta palavra em grego aatildedikoj eacute formada pelo a privativo mais o radical dik de dikhmacr justiccedila Logo

aatildedikoj significa injusto

81

contraacuterio do que ele pretendia Percebemos por isso que o traacutegico faz-nos interrogar sobre a

condiccedilatildeo humana e suas fronteiras estas que satildeo colocadas a cada um sejam aos grandes

heroacuteis como Aquiles ou aos deuses como vemos em Prometeu Cadeeiro (2009) Por

exemplo o Pelida no encontro com Odisseu no Hades mostra-se arrependido da escolha que

fez de morrer em campo de batalha Como se vecirc a decisatildeo de Aquiles voltou-se contra ele

mesmo Entretanto tal situaccedilatildeo analisaremos melhor no capiacutetulo a seguir

Pierre Grimal em O Teatro Antigo (2002) diz que a trageacutedia grega desenvolve-se

num periacuteodo histoacuterico de bastante relevacircncia jaacute que nesse momento foi realizada uma

elevada criaccedilatildeo filosofia Diante desse contexto as trageacutedias em forma de accedilatildeo de drama

representavam acontecimentos oriundos das lendas heroacuteicas tatildeo cantadas pelos autores

eacutepicos todavia Grimal faz-nos a seguinte ressalva se para noacutes os acontecimentos encenados

possuem caraacuteter lendaacuterio para os gregos havia um significado histoacuterico E mais ainda na

trageacutedia aquele heroacutei que para os gregos fazia parte da histoacuteria vecirc sua fragilidade diante de

um impasse porque

A trageacutedia mais do que esclarescer o significado metafiacutesico do mito

(como o faraacute Heacutercules no Etna de Secircneca) traz agrave luz do dia a infeliz

condiccedilatildeo dos mortais incapazes de compreenderem as consequumlecircncias de

suas accedilotildees quando cedem natildeo soacute ao irresistiacutevel poder do Amor como agraves

outras paixotildees que os deuses lhes enviam (GRIMAL 2002 p 45)

Se no Periacuteodo Arcaico as eacutepicas ilustram as grandes guerras e os magistrais

combates dos heroacuteis no Periacuteodo Claacutessico tanto poetas quanto filoacutesofos conforme indica

Grimal (2002) centralizam suas discussotildees no ser humano Este seraacute o protagonista do

traacutegico pois deparando-se com o conflito as armas e o vigor fiacutesico natildeo mais podem fazecirc-lo

vencedor como ocorria nas eacutepicas Ao contraacuterio toda a sua accedilatildeo reverte-se para si mesmo e

levando-o ao traacutegico Isso veremos bem no proacuteximo capiacutetulo atraveacutes do relato de

Agamecircmnon no Canto XI da Odisseia em que se percebe que toda a sua nobreza e heroiacutesmo

relatados na Iliacuteada natildeo o impediu de ter uma morte traacutegica e indigna

Em A trageacutedia Grega (2008) Jacqueline de Romilly considera que o mito se

introduz na trageacutedia proporcionando-lhe sentido Assim podemos concluir que o traacutegico alia-

se ao mito e natildeo agrave estrutura formal da trageacutedia e ainda mais que o traacutegico eacute que daacute sentido a

trageacutedia grega Vejamos como ela considera a importacircncia do traacutegico dentro do panorama da

trageacutedia claacutessica

82

No conjunto a trageacutedia grega adquire assim mais uma ressonacircncia

particular por ter conservado um contato constante com as realidades

colectivas da vida poliacutetica tal como adquire uma forccedila mais rude por ter

conservado o contacto com os mitos originais mas nem num caso nem no

outro se confunde com a mateacuteria que lhe eacute fornecida assim O seu

verdadeiro alcance vem da interpretaccedilatildeo humana que daacute dos males evocados

E soacute esta interpretaccedilatildeo define verdadeiramente o traacutegico (ROMILLY 2008

p 168)

Por isso eacute que o traacutegico aleacutem de natildeo se relacionar tambeacutem natildeo deve ser

confundido com o melodrama moderno Mas para que essa proximidade natildeo ocorra e que

crimes como os de Medeacuteia Clitemnestra e Eacutedipo por exemplo natildeo sejam melodramas deve

haver o que Romilly (2008) chama de ―luz traacutegica Esta fundamentada na asup1namacrgkh

(necessidade) ou seja nas ―causas que ultrapassem o caso individual e que os tornem

necessaacuterios em nome das circuntacircncias que se impotildee aos homens Tanto que essas situaccedilotildees

traacutegicas poreacutem necessaacuterias ―ao mesmo tempo em que inspiram piedade pelas viacutetimas

inspiram tambeacutem piedade por eles piedade pelo homem (Ibidem p 168-169) E a accedilatildeo

dessas forccedilas sobrehumanas que impulsionam o homem pela necessidade satildeo indicadas pelo

proacuteprio coro segundo Romilly (2008)

Este sentimento de piedade Odisseu sentiraacute ao deparar-se com seus distintos

companheiros no Hades e ouvir o lamuacuterio pelo final traacutegico que a vida lhes reservou Isto

ocorre ateacute no caso de Aacutejax que mesmo sem falar ignorando a presenccedila de Odisseu

demonstra seu rancor por aquele que julga culpado de seu mal No caso de Agamecircmnon

segundo Romilly (2008) eacute a accedilatildeo do daacuteimon daimacrmwn 72 enquanto para Aacutejax eacute a accedilatildeo do

destino Teriacuteamos em suma duas causalidades uma que eacute regida pela forccedila superior e outra

pela vontade humana e que segundo a autora ―jaacute presente em Homero esta dupla

causalidade existe para sempre na trageacutedia (Ibidem p 172) ateacute porque no mundo grego em

geral elas coexistiam sem haver contradiccedilotildees

A autora por mais que natildeo acredite haver vontade nas trageacutedias considera que haacute

algum comprometimento humano Pois certo eacute que tudo ocorre pela vontade divina mas

tambeacutem o homem toma para si a responsabilidade no momento em que adere a accedilatildeo Natildeo haacute

renuacutencia entatildeo o sujeito traacutegico compromete-se Isto faz Romilly (2008) afirmar que ―o

divino e o humano combinam-se sobrepotildee-se A trageacutedia implica necessariamente a accedilatildeo e

seu autor sempre tenta agir bem ou mal Mas esta accedilatildeo traz-lhe graves consequecircncias Por

72

O daimacrmwn representa o divino sua vontade a sorte dividida pelo deus por isso o radical dai de daimacromai que eacute dividir partilhar

83

isso Romilly defende que haacute sempre uma espeacutecia de inocecircncia esta funcionando como

sinocircnimo de heroiacutesmo Vejamos

Que sofram uma sorte querida pelos deuses que paguem pelos erros

dos antepassados ou que paguem por sua proacutepria imprudecircncia haacute sempre

neles uma parte de inocecircncia E mesmo quando nos satildeo apresentados como

culpados mesmo quando suas accedilotildees os arrastam satildeo-no porque o erro eacute o

lote do homem ou porque correspondem a situaccedilotildees que satildeo igualmente o

lote do homem (ROMILLY 2008 p 175)

Esse heroiacutesmo imanente e ao mesmo tempo indissociaacutevel do heroacutei traacutegico faz

com que seja conservada a sua grandeza tendo triunfo mesmo na queda Isto eacute o personagem

traacutegico mesmo vendo mudar a sua figura de heroacutei eacutepico para a de heroacutei traacutegico ainda

manteacutem certa expressatildeo de inocecircncia de heroiacutesmo que provoca a simpatia e justifica o surgir

da piedade Como poderemos ver no momento de nossa anaacutelise Odisseu sente piedade pelos

seus companheiros ao reencontraacute-los no Hades por constatar o destino lamuriado de cada um

E mesmo apoacutes ouvir os relatos traacutegicos dos guerreiros manteacutem ainda o sentimento de

respeito natildeo se esquecendo da distinccedilatildeo proacutepria que ele mesmo testemenhou um dia

Anatol Rosenfeld em A teoria dos Gecircneros (1985) observa que a definiccedilatildeo e

classificaccedilatildeo dos gecircneros eacute artificial pois ―natildeo existe pureza de gecircneros em sentido absoluto

(ROSENFELD 1985 p 16) Contudo o autor avalia como importante esta sistematizaccedilatildeo

dos gecircneros por definir as diversas categorias literaacuterias E esta artificialidade eacute comprovada

com o fato de natildeo haver gecircnero puro O que haacute para o autor eacute o significado substantivo e

adjetivo dos gecircneros Naquele encontramos a essecircncia estiliacutestica de cada gecircnero eacute o que nos

possibilita definir o gecircnero de um texto pois eacute especiacutefico Por significado adjetivo

entendemos o traccedilo estiliacutestico aquilo que pode ser encontrado em todos os outros gecircneros

Por exemplo o corpus de nossa pesquisa Canto XI da Odisseacuteia tem como significado

substantivo o gecircnero eacutepico e como adjetivo o traccedilo do traacutegico Tal exemplificaccedilatildeo pode ser

feita com muitas outras obras porque ―no fundo poreacutem toda obra literaacuteria de certo gecircnero

conteraacute aleacutem dos traccedilos estiliacutesticos mais adequados ao gecircnero em questatildeo tambeacutem traccedilos

estiliacutesticos mais tiacutepicos dos outros gecircneros (Ibidem p 19)

Todas essas ponderaccedilotildees de Rosenfeld (1985) a respeito da teoria dos gecircneros e

de seus significados adjetivo e substantivo contribuem para o nosso trabalho em alguns

pontos Elas creditam nossa pesquisa em analisar a presenccedila do traacutegico numa epopeacuteia

homeacuterica Tais consideraccedilotildees aleacutem de reforccedilar que natildeo haacute gecircnero puro (e que talvez nunca

tenha existido) permite-nos demonstrar que essa pureza nem mesmo na Antiguidade Claacutessica

84

existiu apesar de muitos verem esse periacuteodo como sinocircnimo de uma produccedilatildeo literaacuteria

regrada de estrutura fechada A anaacutelise do nosso trabalho abre perspectivas para entendermos

que as inovaccedilotildees estiliacutesticas as influecircncias e a interpenetraccedilatildeo de gecircneros satildeo procedimentos

realizados desde a Antiguidade e natildeo como uma singularidade moderna No final das

avaliaccedilotildees como diz o proacuteprio Rosenfeld (1985) ser puro ou natildeo natildeo define a qualidade de

um trabalho

Apoacutes discorrer sobre o nascimento da trageacutedia Junito Brandatildeo em Teatro Grego

(2009) fala-nos a respeito de outro elemento importante para a compreensatildeo do traacutegico

uAgravebrij73 e aatildeth74

A primeira ocorre quando o heroacutei ultrapassa o meacutetron a medida

cometendo entatildeo a uAgravebrij A segunda eacute o resultado da hyacutebris pois diante desta soacute resta ao

heroacutei ser punido pelos deuses que lhe lanccedilam a ateacute Tomado pela uAgravebrij e aatildeth todo e

qualquer ato que o heroacutei realizar se voltaraacute contra ele Para o autor o traacutegico se enquadra com

os seguintes envolvimentos apoacutes a ultrapassagem do meacutetron hyacutebrisrarr neacutemesis (nemacrmesij-

ciuacuteme divino)rarr ateacuterarr Moira (Moiordfra- destino cego puniccedilatildeo divina) Por esse processo ele

afirma que no sentido religioso a trageacutedia grega suplica contra a desmedida

No Canto XI da Odisseacuteia avaliaremos a presenccedila desses elementos da trageacutedia

(uAgravebrij aatildeth nemacrmesij Moiordfra) Observaremos atraveacutes do destino dos heroacuteis mais

precisamente de Agamecircmnon e de Aacutejax a influecircncia destas forccedilas sobre-humanas

Junito Brandatildeo faz uma distinccedilatildeo importante entre conflito traacutegico fechado e uma

situaccedilatildeo traacutegica A primeira implica um final desditoso eacute a accedilatildeo do destino traacutegico como

vemos em Eacutedipo Rei e em Antiacutegona Jaacute no segundo o final natildeo eacute desditoso Parte-se do

infortuacutenio para a fortuna pois o que eacute traacutegica eacute a situaccedilatildeo vivida natildeo o seu fim como o

exemplo lido em Alceste Porque ―() o traacutegico pode natildeo estar no fecho mas no corpo da

trageacutedia Chamamos por isso mesmo trageacutedia a peccedila cujo conteuacutedo eacute traacutegico e natildeo

necessariaamente o fecho (Ibidem p 15) Esta diferenccedila eacute importante para a nossa anaacutelise

porque observaremos uma situaccedilatildeo traacutegica jaacute que na Odisseacuteia natildeo haacute espaccedilo para se falar

em destino traacutegico No Canto XI podemos observar tanto uma ―situaccedilatildeo traacutegica como por

exemplo a vivida por Odisseu como tambeacutem um ―conflito traacutegico fechado o que pode ser

73

Em grego uAgravebrij indica a accedilatildeo de insolecircncia violecircncia soberba excesso ou seja uma accedilatildeo fruto de uma

desmedida 74

Em grego aatildeth significa um infortuacutenio segundo o Bailly (2000) eacute um flagelo enviado pelos deuses como a

puniccedilatildeo por algum fato conhecida tambeacutem como uma cegueira enviada pelos deuses

85

visto por exemplo atraveacutes do relato de Agamecircmnon e da visualizaccedilatildeo de Aacutejax e seu eterno

sentimento de desonra

Albin Lesky em A trageacutedia Grega (2006) alerta-nos logo ao iniacutecio de que natildeo

tentaraacute encontrar uma foacutermula para o traacutegico Entre outras coisas sua obra ajuda-nos a tentar

compreender se o traacutegico estaacute unicamente relacionado agrave trageacutedia ou se como acreditamos a

outros meios literaacuterios Tendo em vista que ―() jaacute se encontram os germes em que se prepara

a primeira e ao mesmo tempo a mais perfeita objetivaccedilatildeo da visatildeo do mundo no drama do

seacuteculo V (LESKY 2006 p 23) Inclusive a partir dos novos estudos feitos da Iliacuteada e da

Odisseacuteia o autor informa-nos que ―suscita-se com crescente vivacidade a questatildeo relativa aos

germes do traacutegico nas duas epopeacuteias (Ibidem) Eacute por isso que Karl Jaspers citado por Lesky

(2006) refere-se a Homero como a mais antiga manifestaccedilatildeo do traacutegico Tal posicionamento

respalda nossa pesquisa

Na comprovaccedilatildeo dessa existecircncia do traacutegico jaacute nas epopeacuteias homeacutericas Lesky

(2006) aponta-nos alguns fatores para esse entendimento Assim em Homero jaacute vemos que

os heroacuteis apesar de na maioria das vezes serem exaltados podem ter um destino venturoso

ou desventuroso a depender dos desiacutegnios divinos Como exemplo ele cita o Canto I da

Iliacuteada mas noacutes exemplificaremos pelo Canto XI da Odisseacuteia pois neste vemos a desventura

narrada por exemplo por Aquiles dizendo preferir ser um trabalhador do campo a reinar

sobre os mortos Eacute narrada tambeacutem a desventura de Agamecircmnon que pelo histoacuterico da

famiacutelia Atrida e por ter sacrificado sua filha seraacute penalizado pelo proacuteprio cocircnjuge Como

destino venturoso podemos citar o do proacuteprio Odisseu que cumpre uma das suas mais

difiacuteceis missotildees que eacute descer ateacute a entrada do Hades e depois voltar tendo o direito de poder

continuar em sua jornada

Aleacutem dessa mobilidade humana entre a ventura e a desventura Lesky (2006) cita

tambeacutem que vemos em Homero o encadeamento das accedilotildees e de tudo o que as envolvem Haacute

tambeacutem a centralidade do tempo e da accedilatildeo ocorrendo em alguns momentos a

presentificaccedilatildeo de algumas narraccedilotildees como se elas ocorressem naquele instante mesmo com

narraccedilotildees em flah-back Para noacutes vale destacar que estes elementos tambeacutem podem ser

verificados na Odisseacuteia em que as accedilotildees assim como na Iliacuteada satildeo encadeadas havendo

para cada uma delas um resultado que leva o personagem ao seu objetivo No Canto XI por

exemplo o cumprimento do ritual (nemacrkuia) por Odisseu o leva para casa Vecirc-se tambeacutem

neste canto uma narraccedilatildeo bastante centralizada no tempo em que os fatos ocorrem e de tudo

86

que estaacute em volta De modo que ateacute as narraccedilotildees feitas por Odisseu aos Feaacutecios de tudo que

passara aparentam estar ocorrendo naquele mesmo instante

Assim segundo o autor como natildeo eacute faacutecil descrever o processo de evoluccedilatildeo do

traacutegico tambeacutem natildeo eacute de entendecirc-lo no contexto claacutessico por natildeo ter sido legada uma teoria

pelos gregos Mesmo diante da complexidade expressa ele faz alguns comentaacuterios sobre o

traacutegico conforme Aristoacuteteles Para este o traacutegico possui o sentido de algo solene desmedido

mas depois passou a indicar o terriacutevel estarrecedor o bombaacutestico perdendo completamente o

sentido da induccedilatildeo e da necessidade Lesky (2006) considera ainda que para haver o

sentimento traacutegico ―o caso deve interessar-nos afetar-nos comover-nos Quando nos

sentimos atingidos nas profundas camadas de nosso ser eacute que experimentamos o traacutegico

(Ibidem p 33) Aleacutem disso o imerecimento tambeacutem eacute fundamental para que alcancemos a

sensaccedilatildeo traacutegica pois o imerecido faz-nos sentir compaixatildeo Jaacute o sujeito para se identificar

como traacutegico deve ter consciecircncia conhecimento do seu padecer No Canto XI da Odisseacuteia

poderemos verificar alguns desses elementos como a desmedida o despertar da comoccedilatildeo a

compaixatildeo o imerecido e toda uma vivecircncia do traacutegico mesmo que incipiente

Questionando se o traacutegico natildeo teria seu significado estabelecido na Poeacutetica Lesky

diz acreditar que na catarse estaria a essecircncia do traacutegico Por tudo o que foi referido

consideramos que Homero deu os passos iniciais das trageacutedias que estavam por vir e com

isso tambeacutem entendemos o porquecirc de ele jaacute ter sido considerado o pai da trageacutedia Natildeo

entraremos nessa discussatildeo mas concordamos com Lesky de que Homero eacute ―um preluacutedio agrave

objetivaccedilatildeo do traacutegico na obra de arte (LESKY 2006 p 25)

Sandra Luna em Arqueologia da Accedilatildeo Traacutegica (2005) realiza importantes

explicaccedilotildees sobre o traacutegico que seratildeo relevantes para a nossa pesquisa Depois de expor os

indiacutecios antropoloacutegicos e literaacuterios sobre a existecircncia do traacutegico antes da trageacutedia a autora

afirma que Homero pelas epopeacuteias jaacute nos apresentava o traacutegico apesar de este natildeo ser seu

objetivo Explica ainda que essa veiculaccedilatildeo do traacutegico com Homero deve ser feita por haver

algumas discussotildees a esse respeito Aleacutem do mais diz ser inegaacutevel a presenccedila dos momentos

de tragicidade verificadas ao longo de suas epopeacuteias Para tanto ela cita o Canto IX da

Odisseacuteia e ressalta que a morte dos companheiros de Odisseu alerta-nos sobre o destino e

sobre a fragilidade humana Pois ―() a vida gloriosa do heroacutei eacutepico projeta-se

necessariamente sobre o fundo sombrio das desventuras () (LUNA 2005 p 30)

Ao longo de nossa anaacutelise verificaremos essa tragicidade homeacuterica reforccedilada

pelos desiacutegnios divinos pela accedilatildeo do destino e da fragilidade humana pois o heroacutei um dia iraacute

deparar-se com sua condiccedilatildeo humana portanto com a fraqueza e a instabilidade Destino esse

87

que tanto conduz Odisseu agrave ventura em seu retorno ao lar como tambeacutem fez sua matildee

Anticleacuteia padecer de saudades do filho de quem ela natildeo mais tinha notiacutecias Esse destino

infortunado tambeacutem natildeo permitiu que Agamecircmnon morresse na guerra Desta forma tendo jaacute

retornado pensa estar protegido em seu palaacutecio mas eacute surpreendido pela morte traiccediloeira Por

isso Luna afirma-nos

Vale a pena refletir mais pausadamente sobre a recorrecircncia dos

elementos traacutegicos nas epopeacuteias gregas atentando para os episoacutedios que

reiteradamente fazem ecoar a condiccedilatildeo de instabilidade da vida humana Satildeo

inuacutemeras as incidecircncias aleacutem daquelas implicadas nas duas centenas de

mortes referenciadas na Iliacuteada (Ibidem p 31)

Sandra Luna natildeo considera Homero como pai da trageacutedia com isso podemos

tambeacutem concordar todavia consideramos que ele foi o responsaacutevel pela fundamentaccedilatildeo

literaacuteria do traacutegico A autora afirma tambeacutem que Homero natildeo alimenta o traacutegico dispersando-

o por meio de banquetes e mudanccedilas de cena ele apenas o deixa entrever Tal constataccedilatildeo eacute

verdadeira assim como eacute verossiacutemil que Homero natildeo o alimente senatildeo teria feito uma eacutepica

sem coerecircncia o que natildeo ocorre pois a presenccedila do traacutegico natildeo desnorteia o teor eacutepico ao

contraacuterio sua presenccedila o enriquece Mas tambeacutem natildeo podemos negar que as mortes narradas

por Homero satildeo carregadas de envolvimentos externos que aumentam a tragicidade ele natildeo

nos poupa dos detalhes traacutegicos Basta-nos lembrar das narraccedilotildees que Odisseu ouve de como

ocorreram as mortes de sua matildee de Aquiles e de Agamecircmnon e ao final de cada relato

todos se derramavam em laacutegrimas

Luna (2005) informa-nos ainda que o conflito entre mito e razatildeo seraacute

―determinante para o surgimento do que estamos chamando de espiacuterito traacutegicolsquo na trageacutedia

manifestando-se esse espiacuterito na consciecircncia da morte natildeo como parte da vida mas como fim

da vida portanto como fenocircmeno aterrorizante e lutuoso (LUNA 2005 p 169) No

proacuteximo capiacutetulo analisaremos a presenccedila desse ―espiacuterito traacutegico no Canto XI da Odisseacuteia

em que o heroacutei protagonista deparando-se com a morte de amigos e familiares vive a

assustadora finitude da vida aleacutem de sua circunstacircncia imerecida Outro fator reitera a nossa

fundamentaccedilatildeo em estudar o traacutegico na Odisseacuteia pois a autora indica-nos a existecircncia de

estudos sobre o conflito entre muordfqoj e lomacrgoj (mito e razatildeo) na Odisseacuteia

Ao falar sobre sua tese de racionalizaccedilatildeo do traacutegico Luna aponta-nos a presenccedila

de alguma responsabilidade humana nem que seja por suas fraquezas que ―() contribuem

para acionar a maacutequina traacutegica (Ibidem p 171) Pois natildeo soacute os deuses os encaminham para

o traacutegico como eles mesmos podem dirigir-se a ele Talvez seja por essa possibilidade de

88

escolha que Agamecircmon no Hades alerta Odisseu para natildeo confiar em sua esposa Peneacutelope

pois isso poderia levaacute-lo a uma indigna morte assim como havia ocorrido com ele proacuteprio

E apoacutes considerar que a catarse eacute o objetivo maior da trageacutedia a autora diz-nos

que o caminho do heroacutei eacutepico deve servir de modelo Ele eacute um exemplo de honra e vigor a ser

seguido Ao contraacuterio do heroacutei traacutegico que muitas vezes sendo ateacute o mesmo que jaacute figurou

distinto nas eacutepicas deve ter sua trajetoacuteria como modelo do que natildeo deve ser seguido e sim

do que devemos evitar Tal afirmaccedilatildeo eacute bastante vaacutelida para nossa anaacutelise do Canto XI pois

neste temos claramente perfis apresentados de heroacuteis eacutepicos e traacutegicos Deste modo

Odisseu passando pela catarse vive um processo forte de aprendizagem do que natildeo deve

seguir atraveacutes do traacutegico relato de Aquiles e Agamecircmnon e do fim de Aacutejax que pode

contemplar Assim enquanto Odisseu nos representa o que devemos seguir como modelo os

relatos do Pelida e do Atrida somada agrave lamentaacutevel condiccedilatildeo de Aacutejax ilustra-nos a condiccedilatildeo

de um heroacutei traacutegico cujo exemplo devemos evitar

Ao longo desse capiacutetulo desenvolvemos trecircs toacutepicos que consideramos

importantes para uma melhor apreensatildeo do traacutegico No primeiro discorremos sobre as

relaccedilotildees e especificidades do traacutegico e da trageacutedia As diferenccedilas estabelecidas permitem-nos

compreender a pertinecircncia em estudar uma configuraccedilatildeo do traacutegico em uma epopeacuteia No

segundo toacutepico destacamos as teorizaccedilotildees de Aristoacuteteles sobre as trageacutedias gregas e a partir

delas tentamos entender o que o filoacutesofo comprende do traacutegico e dos elementos que

circundam em sua realizaccedilatildeo No terceiro foram expostas algumas explanaccedilotildees teoacutericas do

traacutegico feitas por autores diversos De modo geral toda a abordagem realizada contribuiu

para a compreensatildeo de alguns pontos que seratildeo importantes para o nosso proacuteximo capiacutetulo no

qual nos aprofundaremos na anaacutelise da tragicidade verificada no Canto XI da Odisseacuteia

89

3 TRAGICIDADE NO CANTO XI DA ODISSEacuteIA ANTICLEacuteIA AQUILES

AGAMEcircMNON AacuteJAX

31 Odisseacuteia momentos de tragicidade

Neste terceiro capiacutetulo propomos realizar a anaacutelise da tragicidade identificada ao

longo do deacutecimo primeiro livro da Odisseacuteia Para tanto dedicamos este primeiro subtoacutepico agrave

ilustraccedilatildeo de que a tragicidade a ser analisada no Canto XI natildeo eacute uma exceccedilatildeo dentro da obra

tanto que em outros cantos podem ser vistas tambeacutem situaccedilotildees com teor traacutegico E apoacutes o

desenvolvimento dos aspectos citados dedicaremos um segundo toacutepico ―Tragicidade no

Canto XI da Odisseacuteia Anticleacuteia Aquiles Agamecircmnon Aacutejax para a anaacutelise especiacutefica do

traacutegico no Canto XI principalmente a partir das circunstacircncias em que Odisseu encontra-se

com a sua matildee Anticleacuteia e seus antigos companheiros em Troacuteia Agamecircmnon Aquiles e

Aacutejax Como pode ser percebido adiantamos que o fator de parentesco e os viacutenculos de

amizade satildeo intensificadores da accedilatildeo traacutegica ocasiatildeo que seraacute analisada no proacuteximo toacutepico

Como abordamos nos dois capiacutetulos anteriores Homero aleacutem de ter nos deixado

as duas grandes epopeacuteias do Ocidente Iliacuteada e Odisseacuteia legou-nos tambeacutem as primeiras

representaccedilotildees literaacuterias do traacutegico Representaccedilotildees estas que por volta do seacuteculo V e IV aC

seratildeo o cerne das trageacutedias elaboradas por tragedioacutegrafos como Eacutesquilo Soacutefocles e Euriacutepedes

Estes satildeo bastante influenciados pelas obras homeacutericas ao ponto de desenvolverem em suas

obras situaccedilotildees jaacute prenunciadas em Homero a exemplo da Oresteacuteia de Eacutesquio e Aacutejax de

Soacutefocles

Considerado por alguns como o ―pai da trageacutedia Homero natildeo nos poupou

representaccedilotildees traacutegicas Por isso apesar de elegermos o Canto XI da Odisseacuteia como o livro

em que haacute maior intensidade nessas representaccedilotildees destacamos tambeacutem que no transcorrer

da obra outros momentos de grande teor traacutegico podem ser contemplados Com isso

objetivamos respaldar ainda mais a nossa pesquisa mostrando que a tragicidade pode ser

encontrada na Odisseacuteia em momentos distintos natildeo estando restrita a um uacutenico canto

Lesky (2006) ressalta-nos que Homero legou-nos germes do traacutegico em suas

epopeacuteias Em congruecircncia com esta afirmaccedilatildeo Sandra Luna (2005) diz ser possiacutevel a

identificaccedilatildeo de momentos traacutegicos na literatura homeacuterica Tais assertivas jaacute discutidas no

segundo capiacutetulo acabam sendo motivadoras deste nosso percurso ao longo dos versos da

90

Odisseacuteia em busca de momentos traacutegicos ou ao menos de episoacutedios que nos vislumbrem

tragicidade Sabemos que para a ocorrecircncia de uma vivecircncia do traacutegico satildeo importantes

elementos como o imerecido a ideacuteia de culpa75

pela ultrapassagem do meacutetron a compaixatildeo o

temor pois todas essas circunstacircncias propiciam o despertar da comoccedilatildeo Assim logo ao

iniacutecio da epopeacuteia no Canto I deparamo-nos com a representaccedilatildeo de um sofrimento que nos eacute

apresentado como imerecido Tal situaccedilatildeo ocorre quando Telecircmaco entre os versos 214-220

responde agrave deusa Atena transfigurada como Mentes sobre sua ascendecircncia jaacute que esta havia

perguntado se ele seria filho de Odisseu e ele responde

215 κήηεξ κέλ ηέ κέ θεζη ηνῦ ἔκκελαη αὐηὰξ ἐγώ γε

νὐθ νἶδ᾽ νὐ γάξ πώ ηηο ἑὸλ γόλνλ αὐηὸο ἀλέγλσ

ὡο δὴ ἐγώ γ᾽ ὄθεινλ κάθαξόο λύ ηεπ ἔκκελαη πἱὸο

ἀλέξνο ὃλ θηεάηεζζηλ ἑνῖο ἔπη γῆξαο ἔηεηκε

λῦλ δ᾽ ὃο ἀπνηκόηαηνο γέλεην ζλεηλ ἀλζξώπσλ

220 ηνῦ κ᾽ ἔθ θαζη γελέζζαη ἐπεὶ ζύ κε ηνῦη᾽ ἐξεείλεηο76

((Odisseacuteia I 215-220)

Minha matildee diz que fui gerado por ele mas

pelo menos eu natildeo o sei na verdade natildeo

existe algueacutem que saiba de sua sproacutepria origem

Como eu desejei ser filho de algueacutem abenccediloado

de um varatildeo que vegasse agrave velhice com suas riquezas

Agora do mais infeliz dos homens mortais

eu descendo digo-te jaacute que tu perguntas

Como podemos perceber Telecircmaco sente anguacutestia e sofre pelo desaparecimento

do pai de quem ele natildeo se lembra da fisionomia tendo em vista que era muito pequeno

quando haacute vinte anos Odisseu partira para Troacuteia A passagem citada provoca-nos o

sentimento de piedade o que nos incita a sensaccedilatildeo do traacutegico Ou seja natildeo queremos dizer

que Telecircmaco seja um personagem traacutegico e sim que possui um estado permeado por

elementos importantes para a efetivaccedilatildeo do traacutegico como o imerecimento e o suscitar da

75

O termo referido natildeo se relaciona a ideacuteia de culpa cristatilde ligada ao pecado do indiviacuteduo a algo noscivo do qual

os cristatildeos devem distanciar-se para que natildeo sejam punidos Ao utilizarmos a palavra ―culpa remetemo-nos ao

sentimento de responsabilizaccedilatildeo projetada no homem que foi resultado de accedilotildees do divino do destino de sua

desmedida ou seja resultado de uma construccedilatildeo coletiva E essa responsabilizaccedilatildeo a que nos referimos natildeo pode

ser compreendida pelo o que concebemos de ―culpa cristatilde jaacute que esta estaacute envolta com a noccedilatildeo de indiviacuteduo

culpado e que portanto deve ser punido pelos seus proacuteprios atos No processo de realizaccedilatildeo do traacutegico podemos

encontrar a culpa a responsabilizaccedilatildeo do homem por seus atos fazendo-os chegarem ao destino ou a momentos

traacutegicos Contudo sabemos que na eacutepica e nas trageacutedias gregas a accedilatildeo divina e todo um construto coletivo

impulsionam-os ao erro daiacute o distanciamento com o sentimento de culpa apregoada pelo cristianismo 76

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D13Acard3

D178 retirado agraves 2035h em 20 de dezembro de 2010

91

piedade Mesmo porque diz-nos Lesky (2006) que o sentimento traacutegico ocorre quando algo

nos afeta nos comove fazendo com que nos sintamos atingidos ―nas profundas camadas de

nosso ser77

(LESKY 2006 p33) Contudo sentimo-nos ainda mais aflitos ao sabermos que

Telecircmaco natildeo sofre apenas por natildeo se recordar do pai e saber de seu estado se vivo ou morto

mas tambeacutem por ver toda a sua heranccedila ser consumida dia a dia pelos pretendentes que

cortejam sua matildee e destroem seus bens Vejamos o que ele diz a Atena sobre sua afliccedilatildeo

uacutenica heranccedila que ele considera que o pai deixou

νὐδέ ηη θεῖλνλ ὀδπξόκελνο78

ζηελαρίδσ

νἶνλ ἐπεί λύ κνη ἄιια ζενὶ θαθὰ θήδε᾽ ἔηεπμαλ

()

ηξύρνπζη δὲ νἶθνλ

ἡ δ᾽ νὔη᾽ ἀξλεῖηαη ζηπγεξὸλ γάκνλ νὔηε ηειεπηὴλ

250 πνηῆζαη δύλαηαη ηνὶ δὲ θζηλύζνπζηλ ἔδνληεο

νἶθνλ ἐκόλ ηάρα δή κε δηαξξαίζνπζη θαὶ αὐηόλ79

(Odisseacuteia I 243-244 248-251)

Natildeo eacute soacute por este algueacutem que eu lamento mas

nesse instante sofro por mim com os males que os deuses ocasionam-me

()

A matildeo e o palaacutecio eles me consomem e

ela nem recusa o casamento abominaacutevel nem aceitar

eacute capaz de fazer assim eles acabam consumindo

meu palaacutecio e rapidamente destruiratildeo a mim mesmo

Diante de tais lamuacuterios como sabemos a narrativa prossegue e Atena aconselha-o

a partir em busca de notiacutecias do pai Nessa citaccedilatildeo percebemos que Telecircmaco natildeo se sente

apenas angustiado por sofrer pelo pai o sentimento que o toma eacute ainda mais traacutegico a dor

imerecida A partida do pai mesmo a contragosto para a Guerra de Troacuteia provoca em

Telecircmaco a anguacutestia espera do pai que ele natildeo conheceu efetivamente A guerra se encerra

mas Odisseu natildeo retorna e nenhuma notiacutecia eacute trazida sobre o paradeiro do rei de Iacutetaca soacute

77

Apesar de servir para nossa anaacutelise destacamos que a afirmaccedilatildeo de Lesky (2006) pode ser relativizada tendo

em vista que ele define o sentimento traacutegico a partir de seu caraacuteter metafiacutesico relacionado agrave recepccedilatildeo dos

espectadoresleitores 78

A utilizaccedilatildeo do particiacutepio presente ὀδσρόμενος eacute apropiada ao contexto por indicar a simultaneidade da accedilatildeo

expressa pelo verbo Assim ὀδσρόμενος indica-nos que a lamentaccedilatildeo de Telecircmaco natildeo estaacute acabada

(perfectum) nem eacute pontual (aoristo) e sim inacabada por isso Homero coerentemente utilizou um tema do

infectum 79

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D13Acard3

D230 retirado agraves 2041h em 20 de dezembro de 2010

92

comentaacuterios incertos Sua matildee Peneacutelope comeccedila entatildeo a ser cortejada por muitos homens

de Iacutetaca antigos conterracircneos de Odisseu ou de cidades vizinhas Para adiar o enlace com um

dos pretendentes ela tece pela manhatilde uma mortalha para Laertes e agrave noite quando todos

dormem destece num trabalho infindo Nesse transcorrer de tempo os servos e os bens

deixados pelo pai satildeo consumidos pelos pretendentes jaacute que estes vatildeo ao palaacutecio todos os

dias para banquetes e festejos enquanto esperam a decisatildeo da rainha Desse modo como se jaacute

natildeo bastasse natildeo ter vivido com o pai e a incerteza se ele se encontrava vivo ou morto

Telecircmaco sofre pelos bens que via sendo diluiacutedos a cada dia que se passava Desde crianccedila

sem ter cometido erro algum imerecidamente sofria males sem razatildeo E eacute esse sentimento

diante de uma dor imerecida que nos faz sentir esup1lemacroj a piedade ao mesmo tempo em que

nos faz temer passar por tal sofrimento o fomacrboj Assim sentindo compaixatildeo e temor

aproximamo-nos de um processo cataacutertico e entatildeo experimentamos o traacutegico Lembremos do

que nos diz Aristoacuteteles sobre o sentimento provocado pela imagem traacutegica

ἔλεος μὲν περὶ τὸν ἀνάξιον φόβος δὲ περὶ τὸν ὅμοιον80

(Poeacutetica XIII 1453a 5-6)

() a piedade sobre o imerecido o temor sobre o semelhante

O imerecido sentimento que acentua nossa vivecircncia do traacutegico como jaacute vimos eacute

tambeacutem representado na vida de Odisseu o polutropoj81 que em suas muitas voltas e

maneiras protagoniza no decorrer dos cantos da Odisseacuteia cenas em que sofre com seus

muitos trabalhos Natildeo eacute pois sem propoacutesito que Atena logo no Canto I reclama a Zeus os

tantos sofrimentos de Odisseu por considerar que satildeo imerecidos diferentemente dos de

Egisto que satildeo bem cabidos agraves suas accedilotildees Por isso reclama a deusa

ἱέκελνο θαὶ θαπλὸλ ἀπνζξῴζθνληα λνῆζαη

ἧο γαίεο ζαλέεηλ ἱκείξεηαη νὐδέ λπ ζνί πεξ

80

Texto disponiacutevel em httpwwwhs-

augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante04Aristotelesari_poi2html retirado agraves 2025hs de 17 de julho

de 2010 81

Esse epiacuteteto foi explicado por noacutes anteriormente no primeiro capiacutetulo desse trabalho

93

60 ἐληξέπεηαη θίινλ ἦηνξ ιύκπηε νὔ λύ η᾽ δπζζεὺο

Ἀξγείσλ παξὰ λεπζὶ ραξίδεην ἱεξὰ ῥέδσλ

Τξνίῃ ἐλ εὐξείῃ ηί λύ νἱ ηόζνλ ὠδύζαν Ζεῦ82

(Odisseacuteia I 58-62)

Contudo Odisseu fica colocando-se a pensar sobre a fumaccedila

que se solta da sua terra que anseia ou ateacute mesmo agora morrer

Oliacutempico teu coraccedilatildeo natildeo se move Odisseu natildeo era querido

Quando ao lado das naves dos Argivos agradava-te fazendo sacrifiacutecios

Na ampla Troacuteia Agora o odeias tanto por que Zeus

A deusa questiona natildeo o sofrer de um homem mas o incompreensiacutevel fato de ver

um valoroso guerreiro um heroacutei que sempre respeitou e sacrificou pelos deuses sofrer

imerecidamente Neste caso o incompreensiacutevel soma-se ao imerecido para intensificar o

traacutegico pois aquele que cumpre com seus deveres natildeo pode sofrer sem causa o que nos

sugere a sensaccedilatildeo de injusticcedila de um destino indevido Questionado Zeus responde natildeo ter

ressentimento para com Odisseu ateacute mesmo porque ele sempre foi distinguido entre os

demais e sempre ofertou aos eternos Todavia uma uAacutebrij cometida para com Polifemo o

filho de Posiacutedon fez este desejar-lhe todo mal explica Zeus

ἀιιὰ Πνζεηδάσλ γαηήνρνο ἀζθειὲο αἰεὶ

Κύθισπνο θερόισηαη83

ὃλ ὀθζαικνῦ ἀιάσζελ

70 ἀληίζενλ Πνιύθεκνλ ὅνπ θξάηνο ἐζηὶ κέγηζηνλ84

(Odisseacuteia I 68-70)

Entretanto Posiacutedon que a terra estremece cultiva para sempre

o oacutedio enfurecido por ele ter tornado cego do olho o Ciclope

O dado agora acrescentado do desagrado cometido por Odisseu a Polifemo e

consequentemente ao seu pai Posiacutedon mostra tambeacutem que os atos iacutempios satildeo

inevitavelmente punidos A desmedida a uAacutebrij cometida eacute traacutegica porque eacute necessaacuteria

sendo portanto inevitaacutevel Um exemplo dessa uAacutebrij inevitaacutevel necessaacuteria encontramos

82

Texto disponiacuteevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D13Acard3

D44 retirado agraves 2039h em 20 de novembro de 2010 83

O uso do perfectum kexolwtai de xolow ndash enfurecer sugere-nos que a accedilatildeo verbal neste caso a raiva de

Posiacutedon eacute perfeita acabada ou seja natildeo indica o processo e sim o resultado de uma accedilatildeo (MURACHO 2007)

Por isso na citaccedilatildeo acima a utilizaccedilatildeo de kexolwtai representa o ―enfurecido deus como resultado da accedilatildeo

de Odisseu ao ter furado o olho do seu filho 84

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D13Acard3

D44 retirado agraves 2040h em 20 de novembro de 2010

94

no Canto IX em que se narra a perda de Odisseu dos seus doze dos mais fortes companheiros

que satildeo comidos pelo Ciclope Polifemo Tal situaccedilatildeo faraacute com que o Laertida e os soacutecios

sobreviventes presenciem cenas horrendas e dolorosas daiacute todos se vecircem impelidos pela

necessidade de agirem contra o Ciclope Para entendermos melhor a explanaccedilatildeo vejamos

uma dessas cenas em que o Polifemo devora seus companheiros

ζὺλ δὲ δύσ κάξςαο ὥο ηε ζθύιαθαο πνηὶ γαίῃ

290 θόπη᾽ ἐθ δ᾽ ἐγθέθαινο ρακάδηο ῥέε δεῦε δὲ γαῖαλ

ηνὺο δὲ δηὰ κειετζηὶ ηακὼλ ὡπιίζζαην δόξπνλ

ἤζζηε δ᾽ ὥο ηε ιέσλ ὀξεζίηξνθνο νὐδ᾽ ἀπέιεηπελ

ἔγθαηά ηε ζάξθαο ηε θαὶ ὀζηέα κπειόεληα

ἡκεῖο δὲ θιαίνληεο ἀλεζρέζνκελ Δηὶ ρεῖξαο

295 ζρέηιηα ἔξγ᾽ ὁξόσληεο ἀκεραλίε δ᾽ ἔρε ζπκόλ85

(Odisseacuteia IX 289-295)

Tendo apreendido dois como a cachorros sobre a terra

os lanccedilou o ceacuterebro de cada um correu ao chatildeo e molhou o solo

O jantar preparou com eles tendo partido seus membros

comia como um leatildeo montanhecircs natildeo deixava sair nada

entranhas carnes e ossos com tutanos

Chorando noacutes erguemos as matildeos para Zeus

enquanto assistiacuteamos aquelas terriacuteveis obras

a impotecircncia possuiacutea nosso acircnimo

Diante do espetaacuteculo horrendo Odisseu e os demais companheiros apavoram-se

pois sabem que seratildeo as proacuteximas viacutetimas Para escapar do fim aparentemente inevitaacutevel

Odisseu com toda a sua astuacutecia o polumhtij86 resolve entatildeo ludibriar o monstro

Primeiro oferece-lhe vinho O monstro aceita e bebe ainda mais por trecircs vezes O Ciclope

pergunta o nome do heroacutei Este percebendo que o vinho jaacute havia alterado a razatildeo do

Polifemo responde Oucurrentij (IX 366) ou seja Ningueacutem O monstro avisa a Odisseu que ele

seraacute o uacuteltimo a ser comido e depois acaba dormindo O heroacutei presencia outro espetaacuteculo

horriacutevel que soacute o impulsiona mais a encontrar uma saiacuteda A asup1namacrgkh a necessidade e o

daimwn um democircnio uma forccedila divina impelem-nos a agir desmedidamente observemos

() θάξπγνο δ᾽ ἐμέζζπην νἶλνο

ςσκνί η᾽ ἀλδξόκενη ὁ δ᾽ ἐξεύγεην νἰλνβαξείσλ

85

Texto disponeacutevel em

dehttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D93Acard

3D281 retirado agraves 2045h em 20 de outubro de 2010 86

O epiacuteteto polumhtij como explicamos no capiacutetulo primeiro evoca e relaciona Odisseu aos deuses Zeus e

Atena e indica o de muita prudecircncia e sagacidade

95

375 θαὶ ηόη᾽ ἐγὼ ηὸλ κνριὸλ ὑπὸ ζπνδνῦ ἤιαζα πνιιῆο

ἧνο ζεξκαίλνηην ()

380 θαὶ ηόη᾽ ἐγὼλ ἆζζνλ θέξνλ ἐθ ππξόο ἀκθὶ δ᾽ ἑηαῖξνη

ἵζηαλη᾽ αὐηὰξ ζάξζνο ἐλέπλεπζελ κέγα δαίκσλ

νἱ κὲλ κνριὸλ ἑιόληεο ἐιάηλνλ ὀμὺλ ἐπ᾽ ἄθξῳ

ὀθζαικῶ ἐλέξεηζαλ ἐγὼ δ᾽ ἐθύπεξζελ ἐξεηζζεὶο

δίλενλ87

(Odisseacuteia IX 373-376 380-384)

() para fora da garganta colocava vinho e

pedaccedilos crus de carne dos humens arrotou embriagado

alguns E eu coloquei a vara embaixo da numerosa cinza

ateacute que queimasse ()

eu o transportava de dentro do fogo os companheiros ficaram

em ambos os lados mas um grande democircnio dotou-nos de coragem

Eles levantaram a vara afiada de madeira de oliveira

e sua ponta empurraram no olho (do Ciclope) eu tendo-me

apoiado por cima fazia (a vara) girar

A asup1namacrgkh e o daimwn impulsionam Odisseu e seus companheiros a decidirem

pela tomada de accedilatildeo independente dos resultados que ela traria pois naquele momento

tinham que fugir do monstro Constrangidos pela necessidade e pelo divino tomados pelo

temor de que aquilo viesse ocorrer com eles assim enfiam o pau de oliveira no olho do

monstro Polifemo cegando o filho de Posiacutedon Como diz-nos Vernant (2008) a accedilatildeo do

homem mesmo natildeo voluntariosa emana da necessidade Eacute o que Romilly (2008) como foi

visto no segundo capiacutetulo nomeia de ―luz traacutegica jaacute que a situaccedilatildeo ocorre ―em nome das

circunstacircncias que se impotildeem aos homens (ROMILLY 2008 p 168) Ainda segundo a

autora isso nos faz sentir piedade natildeo apenas pelas viacutetimas neste caso o Polifemo mas

tambeacutem pelos agentes Odisseu e seus companheiros pois o que sentimos na verdade eacute a

―piedade pelo homem (Ibidem p169) E esse sentimento de piedade somado ao temor que

temos de vivenciar tais fatos propiciam-nos a experiecircncia do traacutegico que pelo que vimos ateacute

entatildeo pode ser conferida em muitos momentos da Odisseacuteia

No Canto IX ainda sabemos que o Ciclope pede ajuda mas quando perguntado

sobre quem teria lhe feito mal ele responde Oucurrentij (IX 366) Ningueacutem Traiacutedo e enganado

pela astuacutecia do heroacutei polumhtij Polifemo natildeo consegue ajuda Odisseu e os demais natildeo

podem sair da caverna trancada por uma imensa pedra que soacute o monstro consegue tirar Mais

87

Texto disponiacutevem em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D93Acard3

D360 Texto retirado agraves 2010h em 15 de novembro de 2010

96

uma vez sua aliada astuacutecia lhe serve e ele resolve que todos devem amarrar-se aos carneiros

pois ao raiar o filho de Posiacutedon retiraraacute a pedra da entrada da caverna para que os carneiros

possam pastar e eles presos aos animais possam escapar Assim eles fazem Ao terem

fugido Odisseu com palavras de jactacircncia ataca o Ciclope Os companheiros amedrontados

com tudo o que viram tentam deter o heroacutei Mas nada o que fazem adianta pois Odisseu

continua desmedidamente a atacar o Ciclope apesar de jaacute estar a salvo

Κύθισς αἴ θέλ ηίο ζε θαηαζλεηλ ἀλζξώπσλ

ὀθζαικνῦ εἴξεηαη88

ἀεηθειίελ ἀιασηύλ

θάζζαη δπζζῆα πηνιηπόξζηνλ ἐμαιαζαη

505 πἱὸλ Λαέξηεσ Ἰζάθῃ ἔλη νἰθί᾽ ἔρνληα89

(Odisseacuteia IX 502- 505)

Ciclope se algum dos homens mortais vier e

perguntar a causaa de tua vergonhosa cegueira do olho

podes dizer que completamente cegou-te Odisseu o saqueador de

cidades]

o filho de Laertes que em Iacutetaca tem morada

Diante do descomedimento do heroacutei e das palavras injuriosas de vaidade e

orgulho o Polifemo implora ao seu pai vinganccedila Pede que Odisseu natildeo mais retorne ao lar

mas se o seu destino natildeo o permitir que ao menos venha a ter dificuldades perdendo os

soacutecios e atraveacutes de navio estrangeiro chegue ao seu lar e laacute venha encontrar tambeacutem muitas

afliccedilotildees

Esse breve relato que fizemos da histoacuteria eacute importante para que possamos entender

como viraacute o castigo de Odisseu por sua atitude desmedida Antes do seu encontro com o

Ciclope eacute verdade ele jaacute havia andado errante mas nada em comparaccedilatildeo com o que ele iraacute

passar tendo agora como seu perseguidor Posiacutedon Depois que Odisseu e os seus soacutecios

partiram de Troacuteia haviam passado apenas pela terra dos Ciacuteconos e Lotoacutefagos Na primeira

cidade satildeo perseguidos por terem-na saqueado Depois partindo para Iacutetaca fortes ventos e

uma corrente os fazem passar nove dias errantes ateacute que chegam ao paiacutes dos Lotoacutefagos Nesta

cidade trecircs companheiros comem as flores de loto e esquecem de querer retornar Odisseu

diante do risco traz de volta os amigos Daiacute aportam no paiacutes dos Ciclopes onde ocorre tudo

88

Omodo subjuntivo exprime a ideacuteia de uma accedilatildeo possiacutevel eventual que pode vir ocorrer no futuro

(MURACHO 2007) por isso Odisseu utilizou-se desse modo em eiAtilderhtai de eAtilderomai- perguntar questionar

Assim ele exprime o fato possiacutevel de algueacutem perguntar por isso traduzimos ―se perguntar na tentativa de

transmitir essa ideacuteia do provaacutevel 89

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D93Acard3

D500 retirado agraves1520h em 2 de novembro de 2010

97

o que anteriormente narramos o Polifemo come doze dos seus companheiros mais fortes

Odisseu e os demais cegam o monstro e partem antes poreacutem o heroacutei exclama palavras

injuriosas A partir de entatildeo eacute que Odisseu amaldiccediloado por Polifemo e perseguido por

Posiacutedon iraacute sofrer errante vagando de paiacutes em paiacutes ateacute chegar a Iacutetaca

Essa contextualizaccedilatildeo faz-se importante para que possamos compreender as

circunstacircncias traacutegicas na vida de Odisseu em contraposiccedilatildeo agraves situaccedilotildees traacutegicas e

principalmente ao destino traacutegico de seus companheiros Tais diferenccedilas entre o destino de

Odisseu e dos seus soacutecios como orienta Aristoacuteteles seratildeo determinadas pelas accedilotildees dos

personagens e natildeo pelos seus caracteres Daiacute a personagem ideal da trageacutedia ser o heroacutei que

tem o caraacuteter intermediaacuterio nem valoroso demais nem maldoso em excesso Nas passagens

acima referidas sobre Odisseu e seus companheiros na terra dos Ciclopes pudemos ver que a

tragicidade atingiu a todos Mas um fator determinante faraacute com que o destino de seus

companheiros seja desventuroso fato este que estaacute relacionado ao que eles faratildeo com as vacas

do Sol no Canto XII Contudo antes que cheguemos laacute sigamos linearmente e do Canto IX

partamos para o X

No Canto X da Odisseacuteia Odisseu e seus companheiros chegam agrave ilha de Eacuteolo

onde satildeo bem recebidos e laacute permanecem por um mecircs ateacute que o heroacutei resolve partir Para

ajudaacute-los Eacuteolo daacute ao Laertida uma sacola de couro com os ventos Deste modo eles partem

Mais uma vez o daimwn a forccedila superior age prejudicando a todos Odisseu dorme e

curiosos os companheiros abrem a sacola espalhando ventos por todos os lados De volta agrave

ilha Eacuteolo recusa-se a um novo auxiacutelio por perceber que um daimwn natildeo desejava vecirc-los

bem indicando que algo de mal eles teriam feito Assim Eacuteolo potildee todos para fora de sua

cidade jaacute que natildeo satildeo homens querido pelos deuses pelo contraacuterio satildeo odiados pelos divinos

(Odisseacuteia X 72-75)

Eacuteolo percebe logo que uma vontade divina ou seja uma accedilatildeo superior ocasionou

o mal agravequeles viajantes fazendo Odisseu adormecer e os seus companheiros serem tomados

pela curiosidade Ferozmente punidos estes personagens despertam nossa comoccedilatildeo por

percebermos que uma vontade superior empurra-os ao erro Como percebemos a situaccedilatildeo

descrita tem os elementos importantes que constituem uma vivecircncia traacutegica o imerecido

injusto o erro (aumlmartia) a accedilatildeo divina (daimwn) enfim Diante desses componentes

traacutegicos fazemos lembrar Rosenfeld ao afirmar que todo gecircnero literaacuterio de alguma forma

conteacutem os ―traccedilos estiliacutesticos mais tiacutepicos dos outros gecircneros (ROSENFELD 1985 p19)

Assim apesar de estarmos analisando uma obra de gecircnero eacutepico percebemos fortes marcas

98

que satildeo mais especificamente caracteriacutesticas da trageacutedia Pela linha de Rosenfeld (1985) a

obra em sua substacircncia possui categorias baacutesicas do gecircnero eacutepico ao passo que tambeacutem traz

o traacutegico como elemento adjetivo visto ser este uma categoria mais especiacutefica do gecircnero

dramaacutetico

Ainda no Canto X temos a narraccedilatildeo de que tendo saiacutedo da ilha de Eacuteolo Odisseu

e seus companheiros vagam por seis dias ateacute chegarem agrave terra dos Lestrigotildees em Lamo

Ancoram o barco e alguns homens que satildeo enviados para conhecerem a cidade deparam-se

com a filha do rei Esta os leva ao palaacutecio local onde um deles eacute logo feito de almoccedilo

deixando os demais apavorados Em fuga alguns ainda satildeo arrebatados e levados para serem

devorados E Odisseu resolve partir imediatamente Atraveacutes dessa narrativa percebemos a

perseguiccedilatildeo incansaacutevel que eles estatildeo sofrendo sem nem se darem conta do que fizeram para

merecerem tamanha hostilidade Nesse percurso de volta para casa a accedilatildeo desmedida que eles

cometeram principalmente contra Polifemo faz com que eles sejam punidos mesmo que

tenham sido impulsionados pela asup1namacrgkh e pelo daimwn mesmo que a accedilatildeo tenha sido

involuntaacuteria e natildeo por falha de caraacuteter Nesses casos em anaacutelise aristotelicamente a accedilatildeo eacute

que os encaminha para a cataacutestrofe como veremos especificamente com os companheiros de

Odisseu no Canto XII

Guiando a nau Odisseu e seus companheiros partem de Lamo e aportam na ilha de

Eeacuteia morada de Circe Odisseu percebe a accedilatildeo do daimwn pois esse natildeo era o destino

imaginado contudo naturalmente alcanccedilam a ilha O Laertida conclui que um dos deuses

havia servido como guia Apoacutes dois dias na embarcaccedilatildeo partem para a cidade e aproximam-

se da casa de Circe onde se viam leotildees e lobos possuiacutedos por feiticcedilo Circe canta e ao vecirc-los

chama-os para entrar oferecendo-lhes bebida e comida Todos aceitam com exceccedilatildeo de

Euriacutecolo Mais uma vez por accedilatildeo inconsequente deles proacuteprios inconscientemente satildeo

levados para o seu fim Vejamos

αὐηὰξ ἐπεὶ δθέλ ηε θαὶ ἔθπηνλ αὐηίθ᾽ ἔπεηηα

ῥάβδῳ πεπιεγπῖα θαηὰ ζπθενῖζηλ ἐέξγλπ

νἱ δὲ ζπλ κὲλ ἔρνλ θεθαιὰο θσλήλ ηε ηξίραο ηε

θαὶ δέκαο αὐηὰξ νοῦς90

ἦλ ἔκπεδνο ὡο ηὸ πάξνο πεξ91

(Odisseacuteia X 237-240)

90

Do grego nooj que significa inteligecircncia consciecircncia dicernimento Os destaques satildeo nossos 91

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D103Acard3

D208 retirado em 20 de outubro de 2010

99

(Circe) deu-lhes e eles tudo beberam entatildeo imediatamente

tendo sido tocados com a varinha ela ia confinando-os nos chiqueiros

Eles tinham de porcos as cabeccedilas o grunhir as cerdas e

tambeacutem o corpo Contudo a consciecircncia anterior estava conservada

Transformados de homem em porcos nesta citaccedilatildeo podemos identificar

humanos numa representaccedilatildeo traacutegica deparando-se com a sua proacutepria finitude e fragilidade

Por uma accedilatildeo de feiticcedilo os antes vigorosos combatentes de guerra e viajantes passam a

figurar como porcos tragicamente ainda mantendo a consciecircncia de homens - fato que

intensifica o sofrer de todos por terem consciecircncia de sua fraacutegil condiccedilatildeo Essa transmutaccedilatildeo

faz-nos visualizar as maneiras pelas quais Homero nos insere num contexto traacutegico mesmo

que este natildeo seja seu objetivo final Contudo eacute inegaacutevel que ele ―convida-nos a ponderar

gravemente sobre o traacutegico fim da existecircncia humana (LUNA 2005 p 29) Eacute-nos

importante ressaltar que essa traacutegica finitude humana natildeo deve ser visualizada apenas com a

passagem da vida para a morte pois acreditamos que essa significaccedilatildeo pode ser mais ampla

No momento em que os homens passam a figurar como porcos temos tambeacutem uma marcante

representaccedilatildeo da diluiccedilatildeo da vida humana neste caso de humanos a bichos Assim seguindo

a afirmaccedilatildeo de Sandra Luna (2005) deparamo-nos tambeacutem com a diluiccedilatildeo da vida e a traacutegica

finitude da existecircncia dos mortais

Esta figuraccedilatildeo em porcos tem um siacutembolo importante jaacute que este animal

representa de um modo geral as ―tendecircncias obscuras sob todas as suas formas da

ignoracircncia da gula da luxuacuteria e do egoiacutesmo (Chevalier Gheerbrant 2009 p 734) De

maneira mais particular no caso em que Circe transforma os companheiros de Odisseu em

porcos Jean Chevalier e Alain Gheerbrant (2009) citando Grid dizem que a deusa feiticeira

transformava os homens em animais que representavam a essecircncia e o caraacuteter dos homens

aprisionados Podemos observar entatildeo que tal mutaccedilatildeo de homens para porcos revela-nos a

essecircncia desses viajantes que por sua proacutepria ignoracircncia (daiacute o siacutembolo dos porcos) padecem

na tragicidade

No capiacutetulo anterior desenvolvemos a ideacuteia de que uma accedilatildeo traacutegica eacute ainda mais

efetiva quando o seu sujeito reconhece-se como traacutegico identificando-se e tendo plena

consciecircncia de sua condiccedilatildeo Eacute a asup1nagnwiquestrisij que intensifica a vivecircncia traacutegica natildeo

apenas para os espectadoresleitores mas principalmente por seu proacuteprio sujeito que se vecirc

natildeo mais como um homem de coragem valoroso e respeitado mas como vemos neste caso

como simples porcos Assim ao dizer-nos Vernant que ―a consciecircncia traacutegica nasce e

desenvolve-se com a trageacutedia (2008 p 9) vemo-nos impulsionados a levantar uma

100

problematizaccedilatildeo pois como nos mostram os versos em discussatildeo esses personagens

homeacutericos possuem consciecircncia de sua tragicidade Diante do grave conflito da condiccedilatildeo

humana sua fragilidade e limitaccedilatildeo Homero explicita-nos sobre os companheiros de Odisseu

apoacutes a transformaccedilatildeo de homens viris em porcos mas que ainda mantecircm sua consciecircncia de

homens (X 240) Por isso consideramos importante confrontarmos essa afirmaccedilatildeo de

Vernant (2008) com a passagem em anaacutelise jaacute que esta e as outras que estamos destacando

mostram-nos que em Homero certamente natildeo se desenvolveu a dita ―consciecircncia traacutegica

mas bem provavelmente foi com o autor da Odisseacuteia que ela nasceu mesmo que

incipientemente Esse fato vem a respaldar nossa pesquisa que propotildee identificar e analisar

na epopeacuteia homeacuterica o despontar dos elementos traacutegicos que mais tarde seriam

desenvolvidos nas trageacutedias gregas Por tudo isso concordamos com Platatildeo ao considerar

Homero como o ―prwordftoj didaskaloj twordfn tragikwordfn (Repuacuteblica X 595b) ou seja o

mestre primeiro dos traacutegicos

Na continuidade da narrativa do Canto X Euriacuteloco que desconfiado natildeo vai ateacute a

deusa presencia tudo e corre apavorado para contar a Odisseu o que sucedera Este decide ir

sozinho ajudar os demais No caminho encontra com Hermes transfigurado em um rapaz

que lhe oferece a erva de Molu para imunizaacute-lo ao feiticcedilo de Circe Aleacutem disso indica como o

heroacutei deve proceder ateacute deitar-se ao seu leito da deusa para que consiga salvar seus

companheiros Assim Odisseu o faz Deste modo consegue salvar os companheiros que antes

transformados em porcos voltam a seus corpos humanos Esse desfazer do feiticcedilo remete-nos

agrave defesa de Sandra Luna (2005) de que Homero natildeo alimenta o traacutegico pois atraveacutes de outros

elementos como por exemplo a ocorrecircncia de banquetes ele dispersa o efeito traacutegico Neste

caso vemos que a cena traacutegica eacute dissolvida pelo desfazer do feiticcedilo jaacute que certamente natildeo eacute

―traacutegico o efeito pretendido pelo poeta (LUNA 2005 p 29) Contudo esta constataccedilatildeo natildeo

invalida ou atenua o meacuterito de nossa pesquisa mesmo porque como deixamos evidente no

segundo capiacutetulo Homero foi coerente com seu propoacutesito literaacuterio de composiccedilatildeo de uma

epopeacuteia e natildeo de uma trageacutedia apesar de ter deixado para esta valoroso legado

Circe diz a Odisseu para que ele vaacute ateacute a nau para pegar seus tesouros armas e

homens Ele assim o faz A deusa diz tambeacutem para que ele esqueccedila de todas as suas dores

Odisseu segue seu conselho e permanece na ilha de Eeacuteia por um ano em festejos ateacute que seus

companheiros exortam-no a retornar ao solo paacutetrio O Laertida resolve entatildeo falar com Circe

e esta aceita sua partida inclusive adianta-lhe que antes de chegar a Iacutetaca teraacute que ir ao

Hades falar com Tireacutesias Sabendo desta revelaccedilatildeo ele se desespera

101

ὣο ἔθαη᾽ αὐηὰξ ἐκνί γε θαηεθιάζζε θίινλ ἦηνξ

θιαῖνλ δ᾽ ἐλ ιερέεζζη θαζήκελνο92

νὐδέ λύ κνη θῆξ

ἤζει᾽ ἔηη δώεηλ θαὶ ὁξᾶλ θάνο ἠειίνην93

(Odisseacuteia X 496-498)

Assim ele dizia e rompeu-me o querido coraccedilatildeo

sentou no leito agora chorava pelo meu destino

natildeo desejava viver nem ainda ver a luz do sol

Diante da revelaccedilatildeo feita por Circe o ―heroacutei mais ceacutelebre de toda a antiguidade

(GRIMAL 2005 p 458) angustia-se por saber que para cumprir seus objetivos ndash de retorno

ao lar - ainda teraacute que passar por obstaacuteculos maiores Ir ateacute o Hades e depois voltar era uma

tarefa que poucos cumpriram Heacuteracles Orfeu Teseu e Piriacutetoo O tamanho desse desafio

desespera o heroacutei Desse modo Homero acaba por nos ―Apresentar o sentimento da vida

inspirar terror e piedade obrigar a partilhar um sofrimento ou uma ansiedade ndash a epopeacuteia

fizera-o sempre e ensinou os tragedioacutegrafos a fazecirc-lo (ROMILLY 2008 p 22) Assim

Odisseu espera o amanhecer do novo dia para contar a nova empreitada aos companheiros

Estes ficam ainda mais desesperados pensam natildeo suportar mais tantos trabalhos por isso

com o coraccedilatildeo partido eles sentam gemem aos prantos chegando a arrancar os cabelos da

frente (Odisseacuteia X 566-567)

Apoacutes toda a anguacutestia ao terem conhecimento da missatildeo de ir ao Hades Odisseu e

os demais partem para a empreitada Eles foram sabendo que apoacutes retornarem do Hades

deveriam retornar a ilha de Circe para que ela pudesse informa-lhes dos proacuteximos

acontecimentos dando-lhe as novas coordenadas Essa circunstacircncia lembra-nos o capiacutetulo

anterior em que discutimos a caracterizaccedilatildeo do heroacutei seja na epopeacuteia eou na trageacutedia e

observamos que uma relevante diferenccedila eacute a de que ―No novo quadro do jogo traacutegico

portanto o heroacutei deixou de ser um modelo tornou-se para si mesmo e para os outros um

problema (VERNANT 2008 p 2) Observemos que apesar de natildeo estarmos falando de

uma trageacutedia grega especificamente a cena citada possibilita-nos enxergar a alusatildeo de um

heroacutei no caso Odisseu figurado como um problema natildeo apenas para si mas tambeacutem para os

outros Seus companheiros embarcam nas suas mesmas empreitadas e acabam sofrendo por

uma perseguiccedilatildeo que Posiacutedon realiza especificamente contra o heroacutei de Iacutetaca Vejamos que

92

O uso do particiacutepio perfeito kaqhmenoj de kaqhmai ndash sentar indica a noccedilatildeo do aspecto acabado

concluiacutedo (MURACHO 2007) por isso a traduccedilatildeo ―sentou exprimindo o ato perfeito terminado 93

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D103Acard3

D475 retirado agraves 1630h em 18 de outubro de 2010

102

apesar de ter ocorrido uma accedilatildeo conjunta contra o Polifemo o grande mentor foi Odisseu

Aleacutem do mais este ao ter fugido ainda lanccedilou palavras injuriosas levando o Ciclope a

implorar a Posiacutedon que o pai de Telecircmaco fosse impedido de voltar agrave paacutetria ou no miacutenimo

ter seu retorno dificultado Como sabemos o deus concede ao filho o pedido e a partir daiacute

dificulta ainda mais o caminho de volta de Odisseu fato este que logo torna-se um

problema tambeacutem para os seus companheiros

No Canto XI Odisseu realiza o grande feito de ir agraves proximidades do Hades e

retornar para a terra Como jaacute adiantamos ao longo deste trabalho muitos satildeo os elementos

traacutegicos a serem analisados contudo por este ser o objetivo central do nosso trabalho

escolhido para anaacutelise deixaremos seu desenvolver para o toacutepico subsequente Partamos

entatildeo para o estudo do proacuteximo canto

Tendo retornado do Hades Odisseu e os demais vatildeo ateacute Circe Esta reforccedila os

apontamentos jaacute feitos por Tireacutesias e indica ao seu heroacutei predileto os outros tantos desafios

que teraacute de enfrentar e como deveraacute proceder para conseguir escapar Ela fala das Sereias de

Cila Cariacutebdes e da fome na ilha do Sol que enfrentaratildeo mas que deveratildeo resistir natildeo

alimentando-se de suas belas vacas para que natildeo venham padecer Odisseu minuciosamente

conta tudo aos companheiros antes de partirem e logo iniciam a jornada

Passando pelas Sereias Odisseu seguindo as orientaccedilotildees de Circe potildee cera nos

ouvidos dos viajantes enquanto estes o amarram Continuando a remar todos se apavoram ao

enxergarem uma grande neacutevoa e teriam deixado os remos se natildeo fosse Odisseu enchecirc-los de

acircnimo e confianccedila Deparam-se entatildeo com uma cena horripilante Cariacutebdes ao lado de Cila

chupava a aacutegua do mar terrivelmente e depois expelia com grande barulho metendo medo em

todos Mas Odisseu e os seus ainda vatildeo deparar-se com uma cena mais forte descrita pelo

heroacutei como a mais terriacutevel de todas que jaacute viu Nela Cila arranca da nave seis dos

companheiros engolindo-os Vejamos

αὐηνῦ δ᾽ εἰλὶ ζύξῃζη θαηήζζηε94

θεθιεγηαο

ρεῖξαο ἐκνὶ ὀξέγνληαο ἐλ αἰλῇ δεηνηῆηη

νἴθηηζηνλ δὴ θεῖλν ἐκνῖο ἴδνλ ὀθζαικνῖζη

πάλησλ ὅζζ᾽ ἐκόγεζα πόξνπο ἁιὸο ἐμεξεείλσλ95

(Odisseacuteia XII 256-259)

94

Tratando-se de uma forma verbal do imperfeito kathsqie de kathsqiw ndash devorar comer exprime a accedilatildeo

inacabada natildeo concluiacuteda (MURACHO 2007) Essa forma linguumliacutestica acentua ainda mais a tragicidade da cena

citada jaacute que Odisseu e seus companheiros acompanham a accedilatildeo em processo de Cila comer alguns de seus

soacutecios 95

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D123Acard3

D234 retirado agraves 2014h em 18 de outubro de 2010

103

Na proacutepria entrada (da caverna) ela os comia eles gritaram

estendendo aos matildeos para mim numa terriacutevel batalha

Aquilo foi a cena mais lamentaacutevel para meus olhos que eu vi

De todas as outras grandes que sofri explorando as passagens do mar

A fragilidade e a efemeridade humana potildeem-se diante dos olhos daqueles homens

que muitas coisas terriacuteveis jaacute haviam presenciado O traacutegico observado nessa passagem estaacute

representado atraveacutes da aterrorizante fraqueza e finitude inerente agrave condiccedilatildeo humana visto

que fortes guerreiros todos vencedores na grande guerra de Troacuteia num segundo enxergam-se

como pequenas presas na boca de um feroz predador Assim verificamos a respeito do heroacutei

eacutepico que para ―aleacutem de todas as honras das quais venha a desfrutar a tragicidade estaraacute

sempre suspensa sobre sua cabeccedila (LUNA 2005 p 31) pois ―Apesar de sua caracteriacutestica

sobre-humana sabe-se que o heroacutei haveraacute um dia de ser igualado aos seus os mortais

(Ibidem) Assim o heroacutei traacutegico96

deparando-se com sua fragilidade e efemeridade comum a

todos os mortais luta contra a accedilatildeo das divindades e contra as leis da natureza E satildeo essas

forccedilas sobre-humanas contra as quais sua condiccedilatildeo humana natildeo o permite combater que o

levam ao traacutegico

Aleacutem disso a cena traacutegica realizada perante os olhos dos sobreviventes faz o fomacrboj

(o medo que faz fugir) apoderar-se de todos tementes de que viessem tambeacutem a figurar nessa

grande encenaccedilatildeo dramaacutetica como presas Mas tambeacutem a esup1leoj (a compaixatildeo) acarreta a

todos ao verem aqueles seis companheiros que haacute tanto tempo juntos lutavam pela

sobrevivecircncia e pelo retorno falecerem drasticamente e sem honra alguma A uniatildeo dos

sentimentos proporcionados pelo fomacrboj e pela esup1leoj proporciona aos viajantes passarem

pelo processo cartaacutetico de purificaccedilatildeo pois como nos elucida Aristoacuteteles (Poeacutetica VI

1449b) a kaqarsij soacute pode ser atingida quando fomacrboj e esup1leoj satildeo suscitados

No transcorrer da narrativa Odisseu e os seus soacutecios saem da tenebrosa passagem

entre Cila e Cariacutebde e aportam na ilha do Sol A fim de evitar o grande mal prenunciado

Odisseu sugere afastarem-se da ilha pois bem lembra dos avisos de Tireacutesias e Circe a respeito

dos sofrimentos que passariam e da necessidade que tinham para o proacuteprio bem de deixarem

ilesas as vacas do sol Os demais retrucam e Euriacutecolo como porta-voz acusa Odisseu de

crueldade jaacute que apoacutes tantos enfrentamentos estavam todos muito cansados Sem o apoio

96

Nesse aspecto podemos destacar uma antonomia do heroacutei claacutessico com o heroacutei moderno pois enquanto o

primeiro luta contra forccedilas sobre-humanas deuses e natureza o heroacutei moderno tem seu conflito realizado no

embate contra as forccedilas sociais

104

dos soacutecios restou a Odisseu ficar Todavia o polumhtij percebe que a forccedila superior tenta

arruinaacute-los (XII 295-296) Odisseu jaacute havia avisado a todos em Eeacuteia do perigo que poderiam

enfrentar e ainda faz o mesmo ao chegarem agrave ilha do Sol Mas os companheiros

demonstravam natildeo ter ideacuteia do mal que estava por vir por isso o heroacutei impotildee a todos um

juramento O Laertida faz todos jurarem que por nada viriam a comer vacas ou ovelhas

divinas pois deveriam saciar-se apenas com as iguarias dadas por Circe Assim realizam o

juramento por isso diz Odisseu ―ὣο ἐθάκελ νἱ δ᾽ αὐηίθ᾽ ἀπώκλπνλ ὡο ἐθέιεπνλ97

ou seja

―Como eu dizia imediatamente eles juraram como eu recomendava(Odisseacuteia XII 303)

Assim conforme o filho de Laertes propocircs o juramento todos fizeram E logo

apoacutes terem selado o acordo com o juramento todos observam a tempestade que surge

mandada por Zeus Astuto Odisseu compreende o sinal enviado pela divindade e avisa mais

uma vez para que poupem as vacas do Sol para que nenhuma desgraccedila venha ocorrer a eles

Como podemos perceber atraveacutes do juramento e dos avisos o esposo de Peneacutelope teme que

um mal ainda pior venha acontecer pois naturalmente se algum mal vier acarretar seus

companheiros acarretaraacute tambeacutem em males para o proacuteprio heroacutei Por meio das ressalvas e do

juramento Odisseu tenta evitar que seus soacutecios cometam a uAgravebrij e que esta venha como um

miasmoj contaminar a todos os integrantes da nau ou no miacutenimo fazer com que sejam

perdido mais companheiros Ateacute porque a cada soacutecio perdido a jornada de Odisseu torna-se

ainda mais dolorosa tendo que tudo enfrentar sozinho - e esta eacute a justificativa para o seu

temor

Amedrontado pela uAgravebrij que seus soacutecios podem cometer Odisseu avia-os por trecircs

vezes aleacutem do juramento que orienta-os a fazer satildeo eles ainda na Ilha de Circe em Eeacuteia

depois logo ao chegarem na ilha do Sol avisa e pede-lhes o juramento e por uacuteltimo recorda-

os novamente do perigo apoacutes a tempestade lanccedilada por Zeus Apesar de todos os avisos e do

juramento estabelecido os companheiros de Odisseu natildeo suportam e jaacute tendo passado-se um

mecircs da estada na ilha do Sol falta-lhes comida Como vemos a asup1namacrgkh a necessidade

impele-os e entatildeo decidem ir procurar alimento Odisseu percebe o perigo aproximar-se e

ora mas natildeo adianta pois o daimwn age pondo-lhe em sono profundo Euriacutecolo aproveita a

ausecircncia do Laertida e discursa aos demais que morrer de fome eacute pior que morrer navegando

e sugere que faccedilam os sacrifiacutecios e devorem as vacas Diante desse discurso de Euriacuteloco

97

Texto disponiacutevel em

dehttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D13Acard

3D1 retirado agraves 0803h em 20 de outubro de 2010

105

todos manifestam estar de acordo e devoram as vacas ou seja cometem a uAgravebrij a

desmedida para com um ser divino o Hiperiocircnio Apoacutes a accedilatildeo consumada que os levaraacute ao

traacutegico Odisseu acorda e desespera-se ao perceber que havia dormido e que portanto natildeo

tinha podido controlar seus companheiros a natildeo comerem as vacas O heroacutei queixa-se com

Zeus e com os demais deuses considerando que foi para o seu mal que eles mandaram-lhe o

sono proporcionando que em sua ausacircncia os soacutecios pudessem ter cometido um terriacutevel

crime contra os deuses (Odisseacuteia XII 370-372) Essa conclusatildeo que chega Odisseu ao

acordar demonstra sua percepccedilatildeo da accedilatildeo superior do daimwn como responsaacutevel por todo o

mal que decorreria daquela accedilatildeo para o heroacutei e para os seus companheiros

A percepccedilatildeo do filho de Anticleacuteia estaacute correta ele percebe que o traacutegico aproxima-se

como resultado de uma uAgravebrij feita pelos seus soacutecios mas que foi impulsionada pelas forccedilas

superiores da asup1namacrgkh e do daimwn daiacute decorre o teor traacutegico dessa situaccedilatildeo Na

continuaccedilatildeo da narrativa o Sol recebe a notiacutecia do fim de suas vacas e implora a Zeus e aos

demais poderosos que todos os companheiros do filho de Laertes sejam punidos e ameaccedila de

que se seu desejo natildeo for atendido iraacute ao Hades para conduzir a luz aos mortos Defrontado

com o pedido divino e com a ameaccedila de acabar com a ordem do universo Zeus sinaliza

atender o pedido do Hiperiocircnio A fim de evitar o fim traacutegico que havia previsto o Laertida

tenta inultilmente recompor as vacas mas as carnes mortas gemem e movem-se Nesta cena

em que Odisseu luta contra a accedilatildeo traacutegica tentanto recompor o mal jaacute feito percebemos que a

inutilidade de sua accedilatildeo nos propicia um outro entendimento do traacutegico que eacute a

impossibilidade humana de desfazer o mal de voltar atraacutes Isso porque a accedilatildeo traacutegica eacute

fechada e natildeo se pode alterar sua jornada ou seja uma vez definida pelos deuses o traacutegico

natildeo mais pode ser evitado pelos mortais que natildeo possuem forccedilas para defrontar-se com a

determinaccedilatildeo divina Eacute por isso que apoacutes comerem as vacas por seis dias no seacutetimo com o

bom vento Odisseu e os demais partem e Zeus lanccedila um raio que lanccedila todos os soacutecios da

nau O traacutegico apanha os companheiros de Odisseu mas tambeacutem o contamina (miasmoj)

por isso ele fica sozinho a navegar

Podemos ver que apesar de todos os avisos os companheiros deixam-se levar

pela fragilidade humana ao contraacuterio de Odisseu que com sua coragem e astuacutecia heroacuteica

aleacutem da proteccedilatildeo divina consegue suportar a fome e tantos outros trabalhos que lhe foram

reservados a fim de que possa conseguir a gloacuteria domeacutestica Nesse momento da narrativa

fica-nos clara a diferenccedila do destino de Odisseu em relaccedilatildeo ao dos seus companheiros

Aristotelicamente falando o destino desventuroso destes foi ocasionado pelas suas proacuteprias

106

accedilotildees e natildeo pelos seus caracteres E isso estaacute anunciado desde os primeiros versos da

Odisseacuteia quando o cantor diz que Odisseu natildeo conseguiu salvar seus soacutecios natildeo por sua

culpa jaacute que seus soacutecios vieram a padecer pelas proacuteprias accedilotildees insensatas (Odisseacuteia I 7) A

partir dessa anaacutelise compreendemos bem a aumlmartia aristoteacutelica teorizada no nosso

segundo capiacutetulo que enfatiza o erro como fruto de uma accedilatildeo natildeo da falta de caraacuteter e eacute esse

erro que os leva agrave cataacutestrofe Vejamos o que diz Aristoacuteteles sobre a aumlmartia

ἁμαρτίαν τινά ηῶλ ἐλ κεγάιῃ δόμῃ ὄλησλ θαὶ εὐηπρίᾳ νἷνλ Οἰδίπνπο

θαὶ Θπέζηεο θαὶ νἱ ἐθ ηῶλ ηνηνύησλ γελῶλ ἐπηθαλεῖο ἄλδξεο () ἐμ

εὐηπρίαο εἰο δπζηπρίαλ κὴ δηὰ κνρζεξίαλ ἀιιὰ δη᾽ ἁμαρτίαν μεγάλην ἢ

νἵνπ εἴξεηαη ἢ βειηίνλνο κᾶιινλ ἢ ρείξνλνο98 (Poeacutetica XIII 1453 a 10-

1215-17)

() algum erro daqueles de grande gloacuteria e boa fortuna como o de Eacutedipo e

Tiestes tambeacutem por homens ilustres de famiacutelias tais () a partir da fortuna

para o infortuacutenio natildeo por maldade mas atraveacutes de um grande erro ou como

o que foi dito ou de um (erro) melhor ou ainda pior

Assim como acreditamos ter ficado bem explicitado um dos argumentos que

justificam a diferenccedila entre o destino de Odisseu e dos seus soacutecios levando estes para

cataacutetrofe estaacute na aumlmartia e no descomedimento (uAacutebrij) cometido por eles no momento em

que desrespeitando todos os avisos e ateacute mesmo os proacuteprios juramentos comem as vacas da

divindade Ressaltemos que essa aumlmartia a accedilatildeo errocircnea eacute cometida natildeo por maldade

eou falta de caraacuteter mas pela forccedila da necessidade (asup1namacrgkh) e pelo impulso superior do

daimacrmwn Lembremos que eles jaacute estavam na ilha haacute um mecircs e a comida tinha acabado por

completo (asup1namacrgkh) e que Odisseu desde que chega na ilha constatou a accedilatildeo do daimacrmwn

duas vezes A primeira foi logo quando ele chegou e seus companheiros quiseram descansar

na ilha (XII 296) e a outra ao acordar e perceber que havia sido tomado por um sono

profundo natildeo podendo impedir os companheiros de cometerem a aumlmartia (XII 370-372)

No traacutegico o personagem de sua accedilatildeo muitas vezes natildeo eacute apresentado como

responsaacutevel ou inocente logo esse ―protagonista traacutegico funde a mimesis dupla de ―culpado

e inocente pois eacute o proacuteprio responsaacutevel por seus males ao mesmo tempo em que eacute tambeacutem

sua maior viacutetima Lembremos ―que sofram uma sorte querida pelos deuses que paguem pelos

98

Os destaques satildeo nossos Texto disponiacutevel em httpwwwhs-

augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante04Aristotelesari_poi2html agraves 2035hs de 17 de julho de

2010

107

erros dos antepassados ou que paguem por sua proacutepria imprudecircncia haacute sempre neles uma

parte de inocecircncia (ROMILLY 2008 p 175) Isso eacute bem ilustrado com a situaccedilatildeo dos

companheiros de Odisseu jaacute que ao comeram as vacas do Sol fazem-nos perceber certa

inocecircncia pois foram levados pela sua fragilidade humana neste caso bem simbolizada pela

fome E esse choque de papeacuteis leva-nos a sentir piedade e temor como tambeacutem de termos

empatia para com eles Por isso para Romilly (2008) a accedilatildeo do heroacutei mesmo numa tentativa

boa ou maacute volta-se contra ele mesmo daiacute decorre sua defesa de haver sempre uma inocecircncia

no personagem traacutegico alimentando mesmo na queda o seu heroiacutesmo

Para entendermos ainda mais essa accedilatildeo traacutegica que inclusive diferencia os

destinos acima referidos recordemos que no capiacutetulo anterior expusemos a chamada ―dupla

causalidade traacutegica defendida por Romilly (2008) Dupla causalidade esta que apesar de

alicerccedilar as trageacutedias jaacute estava ―presente em Homero (Romilly 2008 p 172) Nessa ―dupla

causalidade o traacutegico decorre pelas accedilotildees dos proacuteprios personagens ou pela accedilatildeo do daacuteimon

daimacrmwn ou ainda mais elas podem coexistir sem se anularem e sem nenhuma contradiccedilatildeo

Essa accedilatildeo da ―dupla causalidade adequa-se perfeitamente agrave circunstacircncia das Vacas do Sol

pois nela observamos tanto a accedilatildeo superior do daimacrmwn como tambeacutem o traacutegico decorrendo

da proacutepria accedilatildeo humana a aumlmartia A primeira pode ser exemplificada quando Odisseu

logo percebe sua accedilatildeo convencendo-se de que um daimacrmwn tentava arruinaacute-los (XII 296) Jaacute a

segunda a aumlmartia exemplificamos a partir da descomedida atitude que os soacutecios de

Odisseu fizeram ao comer as vacas do Sol apesar dos avisos de Tireacutesias e Circe repassados

por Odisseu e do juramento realizado

Assim levados pela ―dupla causalidade traacutegica todos os companheiros padecem e

Odisseu navega sozinho durante nove dias ateacute que no deacutecimo chega agrave Ogiacutegia na ilha de

Calipso Como sabemos todas essas erracircncias de Odisseu estatildeo sendo narradas aos Feaacutecios

que tudo ouvem atentamente E pelo fato de a narrativa natildeo ser linear essa estada do heroacutei

em Ogiacutegia remete-nos ao Canto I e dura ateacute o V quando ele numa balsa feita a proacuteprio

punho parte de laacute para a Feaacutecia Contudo eacute mais precisamente no Canto V que temos a

narraccedilatildeo das lamuacuterias de Odisseu durante essa estadia com Calipso jaacute que seu anseio eacute o

mesmo de sempre retornar ao lar Intercedendo por seu protegido Atena jaacute havia desde o

Canto I cobrado de Zeus permitir que a vontade do heroacutei fosse atendida

Eacute por isso que no Canto V Hermes enviado por Zeus vai falar com Calipso para

que ela permita ao pai de Telecircmaco partir O mensageiro comparando-o com os demais

heroacuteis que combateram em Troacuteia define-o como o heroacutei mais sofrido (V 105) Hermes

108

reforccedila ainda que apesar de todo o sofrimento pelo qual Odisseu passou o seu destino exige

seu retorno por isso mesmo indignada Calipso permite o retorno do esposo de Peneacutelope

ajudando-o ainda com bons conselhos Hermes entatildeo parte e a deusa vai ao heroacutei contar-lhe

o ocorrido poreacutem encontra-o na praia aos prantos Leiamos

ηὸλ δ᾽ ἄξ᾽ ἐπ᾽ ἀθηῆο εὗξε θαζήκελνλ νὐδέ πνη᾽ ὄζζε

δαθξπόθηλ ηέξζνλην θαηείβεην δὲ γιπθὺο αἰὼλ

λόζηνλ ὀδπξνκέλῳ ἐπεὶ νὐθέηη ἥλδαλε λύκθε

() πόληνλ ἐπ᾽ ἀηξύγεηνλ δεξθέζθεην δάθξπα ιείβσλ

99

(OdisseacuteiaV 151-153 158)

Ela o encontrou sentado na margem em um

rumor de laacutegrimas ele derramava a doce vida

lamentando o retorno jaacute que a ninfa natildeo mais o agradava

()

Olhava fixo para o alto mar infecundo derramando laacutegrimas

Atraveacutes da citaccedilatildeo percebemos os sofrimentos que Odisseu sente apesar de poder

desfrutar do leito de uma deusa todos os dias bem como da eternidade Descontente o heroacutei

ansiava apenas o seu retorno Assim perante tantas dores a deusa avisa-lhe para partir jaacute que

eacute o seu desejo e orienta-o a construir uma jangada para sozinho atravessar o oceano

Odisseu desconfia e estremecido pelo medo pergunta se natildeo eacute nenhuma armadilha ela dizer-

lhe para atravessar o infindo oceano numa jangada Ele sabe que ―o homem sempre corre o

risco de cair na armadilha de suas proacuteprias decisotildees (VERNANT 2008 p 21) Por isso

Odisseu faz a deusa jurar que tem boa intenccedilatildeo e ela o faz pela Terra pelo Ceacuteu e pelo Estige

este que eacute o grande juramento o Mega oAgraverkoj100

Apoacutes ter a deusa realizado o grande juramento Odisseu parte de Ogiacutegia e navega

na pequena jangada por dezessete dias ateacute o momento em que Posiacutedon voltando do paiacutes dos

Etiacuteopes enxerga-o e fica indignado Como vemos o deus natildeo esquece a uAacutebrij cometida por

Odisseu contra seu filho o Ciclope Polifemo por isso uma nova situaccedilatildeo traacutegica seraacute

vivenciada pelo heroacutei Pois ao ver que Odisseu seguia rumo a concretizaccedilatildeo do retorno a

Iacutetaca o deus suscita uma tempestade faz surgir os ventos as nuvens cinzentas a Noite entatildeo

99

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D53Acard3

D262 retirado agraves 1730h em 20 de outubro de 2010 100

Era atraveacutes do Estige que o juramento sagrado dos deuses era realizado Esse Mega oAgraverkoj pode ser melhor

compreendido por meio da Teogonia (2009) entre os versos 386 e 401

109

Euro e Noto chocam-se Zeacutefiro e Boacutereas agem Odisseu estremece e lastima-se mais uma

experiecircncia traacutegica

ὤ κνη ἐγὼ δεηιόο ηί λύ κνη κήθηζηα γέλεηαη

()

ηξὶο κάθαξεο Δαλανὶ θαὶ ηεηξάθηο νἳ ηόη᾽ ὄινλην

Τξνίῃ ἐλ εὐξείῃ ράξηλ Ἀηξεΐδῃζη θέξνληεο

ὡο δὴ ἐγώ γ᾽ ὄθεινλ ζαλέεηλ θαὶ πόηκνλ ἐπηζπεῖλ

() ηῶ θ᾽ ἔιαρνλ θηεξέσλ θαί κεπ θιένο ἦγνλ Ἀραηνί

λῦλ δέ ιεπγαιέῳ ζαλάηῳ εἵκαξην ἁιλαη101

(Odisseacuteia V 299 306-308311-312)

Como eu sou fraco Agora o que me viraacute de pior

()

Trecircs e quatro vezes abenccediloados os Dacircnaos que morreram

na ampla Troacuteia suportando por causa dos Atridas

De qualquer forma eu preferiria seguir o destino e ali morrer

()

Eu obteria honras fuacutenebres e os Acaios divulgariam a minha gloacuteria

Agora sou capturado pelo destino para a morte miseraacutevel

Como vimos no paraacutegrafo anterior Odisseu havia desconfiado da permissatildeo de

Circe de que ele iria ao seu lar retornar Contudo nessa citaccedilatildeo vemos que o heroacutei entra em

conflito com a decisatildeo que ele mesmo havia tomado de sozinho numa jangada atravessar o

oceano Esse conflito gerado por uma escolha imposta ao heroacutei faz-nos recordar Jean-Pierre

Vernant em Mito e trageacutedia na Greacutecia Antiga (2008) de que na trageacutedia o heroacutei vecirc-se

obrigado a tomar uma decisatildeo mesmo diante de um entorno natildeo propiacutecio num mundo

ambiacuteguo e instaacutevel Exemplificando essa consideraccedilatildeo observemos que Odisseu vecirc-se

obrigado a aceitar a proposta de Calipso mesmo porque tudo o que ele fez e sofreu foi para

poder voltar para casa Mas por outro lado essa decisatildeo eacute conflituosa pois seu entorno natildeo eacute

dos melhores pelo contraacuterio teve que aceitar a proposta quase impossiacutevel de numa jangada

partir para atravessar o oceano infinito Para Vernant (2008) eacute esta tomada de decisatildeo muitas

vezes traiccediloeira que aflige o heroacutei tornando-o susceptiacutevel a sua transformaccedilatildeo em sujeito

traacutegico Isso seria a base da trageacutedia pois aquele heroacutei que normalmente na eacutepica tem seu

vigor exaltado e glorificado vecirc-se na trageacutedia como um fraacutegil homem viacutetima de suas

decisotildees cheio de limitaccedilotildees e assombrado pela finitude da vida

101

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D53Acard3

D262 retirado agraves 2032h em 25 de outubro de 2011

110

Entre os versos 299-303 306-312 do Canto V deparamo-nos com essa situaccedilatildeo

tiacutepica da trageacutedia uma vez que Odisseu arrepende-se de sua decisatildeo dizendo inclusive

preferir ter morrido em batalha a vir a padecer em alto mar sem nenhuma honraria nenhuma

fama102

Assombrado pela morte que jaacute vislumbrava a sua frente desespera-se ao ver que iria

perecer miseraacutevel e na escuridatildeo (V 312) Podemos dizer entatildeo que nos versos referidos

temos os dois poacutelos nos quais segundo Vernant (2008) a accedilatildeo traacutegica divide-se a

deliberaccedilatildeo e a consideraccedilatildeo do incompreensiacutevel de forccedilas superiores que prepararam a sorte

seja de sucesso seja de derrota Portanto encontramos na eacutepica homeacuterica um aspecto traacutegico

comum nas trageacutedias o que para Vernant (2008) relaciona-se agrave accedilatildeo que pressupotildee uma

escolha conflituosa

Haviacuteamos dito que por causa da falta de lineariade da narrativa iriacuteamos retomar o

canto V em que melhor eacute descrita a passagem de Odisseu na caverna de Calipso e como se

deu sua jornada ateacute chegar aos Feaacutecios Esta chegada ocorre no Canto VI quando ele seraacute

auxiliado por intermeacutedio de Atena por Nausiacutecaa a filha do rei dos Feaacutecios Alciacutenoo No

Canto VII o heroacutei chega ao palaacutecio e lanccedila-se sobre os peacutes da rainha Arete pedindo-lhe para

enviaacute-lo para casa e o Alciacutenoo concorda Odisseu entatildeo conta-lhes como ali chegou desde a

ilha de Calipso seu naufraacutegio e a ajuda de Nausiacutecaa na Feaacutecia concedendo-lhe roupas No

Canto VIII Odisseu eacute recepcionado pelos Feaacutecios numa assembleacuteia em que decidem a

preparaccedilatildeo do retorno do estrangeiro Depois realizam disputas nos jogos ateacute que Demoacutedoco

comeccedila a cantar sobre o adulteacuterio de Ares e Afrodite e depois sobre o Cavalo de madeira

idealizado por Odisseu para adentrarem na cidade troiana O filho de Laertes natildeo se conteacutem e

chora levando o rei Alciacutenoo a perguntar-lhe o porquecirc do choro incontido e qual a sua origem

A partir daiacute no Canto IX comeccedilam as narrativas de Odisseu sobre todas as suas erracircncias103

102

Essa fala de Odisseu remete-nos a visatildeo de bela morte tatildeo estimada pelos gregos antigos e desenvolvida por

Vernant (1989) em Lrsquoindividu la mort lrsquoamour Nesta obra Vernant exemplifica atraveacutes do Canto XXII da

Iliacuteada o significado da bela morte para os gregos sua importacircncia e o desejo que os heroacuteis tinham de padecer

belamente em campo de batalha Para os valorosos heroacuteis essa morte conservaria-lhes a honra a nobreza a

distinccedilatildeo guerreira por isso era tatildeo almejada A bela morte buscada por Heitor no Canto XXII da Iliacuteada apesar

deste saber que sua morte estaacute proacutexima demonstra-nos que soacute a bela morte pode dar-lhe a gloacuteria impereciacutevel

conservando para sempre seu brilho guerreiro Assim na referida passagem da Odisseacuteia o filho de Laertes diz

preferir ter tido a bela morte combatendo em Troacuteia a padecer em alto mar Isso porque a bela morte conservaria

sua honra sua gloacuteria e seu nome para toda eternidade jaacute a morte no imenso mar ao contraacuterio faria com que ele

morresse esquecido sem honra sem fama E eacute desse morte fatalmente traacutegica que Odisseu luta para escapar

103

Assim Odisseu fala no Canto IX de suas erracircncias na terra dos Ciacuteconos dos Lotoacutefagos ateacute encontrar a dos

Ciclopes Depois no X fala de Eacuteolo Lestrigotildees e Circe No XI sobre a consulta com Tireacuterias no Hades No XII

sobre as Sereias Cila Caribde e os bois do Sol Essa siacutentese eacute importante para que natildeo nos percamos na

narrativa nem muito menos no nosso percurso de anaacutelise que naturalmente acaba tendo como necessaacuterias as

indas e voltas ao longo da Odisseacuteia por sua estrutura natildeo linear

111

Retomemos a anaacutelise do Canto XII quando Odisseu narra aos Feaacutecios a estada

com Calipso e sua partida Partida esta na qual por obra de Posiacutedon tornou-se um naacuteufrago e

foi ajudado por Leucoteacuteia que lhe entrega o seu veacuteu imortal Este veacuteu como ela o orientou

foi amarrado ao peito para que a Morte natildeo viesse pegaacute-lo ateacute que chegasse a terra firme

neste caso a dos Feaacutecios Ainda no Canto XII o cantor Odisseu termina sua narraccedilatildeo e

iniciam-se os preparativos para seu retorno Os cantos subsequentes ao XII mostram o

desenrolar do destino de Odisseu rumo a sua gloacuteria domeacutestica Eacute assim que no Canto XIII

finalmente o nosso heroacutei polutropoj apoacutes tantas voltas retorna a Iacutetaca Como os

proacuteximos cantos mostram o desenrolar e os preparativos para a vinganccedila dos pretendentes

saltaremos nossa anaacutelise para o Canto XXII Neste o filho de Laertes apoacutes ter planejado sua

vinganccedila apresenta-se para os pretendentes (XXII 35-41) fato marcante que levaraacute agrave chacina

dos mesmos sendo punidos por todo empreendimento que fizeram contra o heroacutei e sua

famiacutelia O Laertida diz a eles que ao arruinarem seus bens violentarem suas servas e

pretenderem sua esposa eles natildeo tiveram medo dos deuses nem da vinganccedila dos homens E

logo apoacutes sua apresentaccedilatildeo Odisseu inicia a matanccedila com a ajuda do seu filho e de alguns

servos

Na ocasiatildeo da chacina dos pretendentes temos marcadamente a ideacuteia de castigo

natildeo sendo nenhum deles poupado de suas accedilotildees apesar da estirpe e de suas nobres famiacutelias

Por isso viratildeo todos os pretendentes sobrerbos padecer pelas matildeos de Odisseu No Canto II

Atena transfigurada em Mentor aconselha Telecircmaco a ir buscar notiacutecias do pai e diz para

que ele natildeo se preocupe com os pretendentes anunciando o fim que restava a todos eles

Vejamos

η λῦλ κλεζηήξσλ κὲλ ἔα βνπιήλ ηε λόνλ ηε

ἀθξαδέσλ ἐπεὶ νὔ ηη λνήκνλεο νὐδὲ δίθαηνη

νὐδέ ηη ἴζαζηλ ζάλαηνλ θαὶ θῆξα κέιαηλαλ

ὃο δή ζθη ζρεδόλ ἐζηηλ ἐπ᾽ ἤκαηη πάληαο ὀιέζζαη104

(Odisseacuteia II 281-284)

Agora despreza os pretendentes como tambeacutem teu plano e teu

dicernimento]

eles insensatos nem satildeo justos nem satildeo disscretos105

natildeo sabem eles que a morte e o negro destino

estatildeo proacuteximos para eles a fim de que todos um dia venham perecer

104

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D23Acard3

D267 retirado agraves 1010h em 25 de outubro de 2010 105

Os destaques satildeo nossos

112

Essa citaccedilatildeo eacute bem interessante para nossa discussatildeo do traacutegico na Odisseacuteia pois

bem podemos fazer a diferenccedila entre o destino dos pretendentes de Odisseu e dos seus soacutecios

O Laertida sofre como vimos passando por situaccedilotildees traacutegicas tanto pela accedilatildeo do daimacrmwn

quanto por sua proacutepria accedilatildeo errocircnea - aumlmartia Mas isso natildeo faraacute que ele tenha um destino

traacutegico e sim algumas vivecircncias Por sua vez seus companheiros passam natildeo soacute por

vivecircncias traacutegicas como tambeacutem possuem o destino traacutegico fruto da ―dupla causalidade

Ou seja suas vivecircncias e destino traacutegicos provecircm tanto pela accedilatildeo do daimacrmwn como tambeacutem

de suas proacuteprias accedilotildees

Assim seja atraveacutes de Odisseu ou dos seus companheiros Homero nos daacute uma

formulaccedilatildeo traacutegica mostrando-nos como heroacuteis experienciam o traacutegico em circunstacircncias

(Odisseu) ou definitivamente em seus proacuteprios destinos (os seus soacutecios) Nestes dois casos

podemos ver vaacuterios dos elementos que compotildee uma accedilatildeo traacutegica a aumlmartia o daimacrmwn a

asup1namacrgkh a uAacutebrij a kaqarsij o fomacrboj a esup1leoj a asup1nagnwiquestrisij Elementos estes

que nos mostram o heroacutei em conflito tendo que necessariamente deliberar e deparar-se com

sua finitude e fragilidade comum a todos os mortais Como vimos ao longo deste toacutepico

somados estes elementos levam o heroacutei a vivenciar o traacutegico (Odisseu) ou a concretizaacute-lo em

seu destino (os seus companheiros) Ressalta-se que aristotelicamente natildeo falta caraacuteter a

esses personagens mas uma accedilatildeo eacute que os encaminha para cataacutestrofe

Poderiacuteamos entatildeo pensar que na chacina ocorrida com os pretendentes temos

aspectos traacutegicos por termos o sofrer destes e muitas mortes em torno de cento e dezesseis

contando com as servas que tambeacutem satildeo punidas por terem traiacutedo seu senhor ajudando os

pretendentes Inclusive ao longo da Odisseacuteia natildeo haacute nem de perto uma quantidade tatildeo

grande de representaccedilotildees de mortes Contudo Homero aleacutem de ter-nos deixado o despontar

de representaccedilotildees traacutegicas legou-nos tambeacutem as natildeo traacutegicas mesmo que superficialmente

pudessem assim ser entendidas Deste modo atraveacutes da chacina dos pretendentes Homero

demonstra-nos que o traacutegico natildeo estaacute necessariamente relacionado agrave morte pois se assim

fosse a corte dos cortejantes agrave matildeo de Peneacutelope seria a cena mais traacutegica na Odisseacuteia

Aristoacuteteles nos ensina (Poeacutetica XIII 1453a 5-6) e Homero representa-nos que

para ocorrer o traacutegico natildeo basta encenar sangue dor e mortes haacute de se ter muitos outros

elementos a exemplo do imerecido para suscitar-nos piedade e a empatia para suscitar-nos

o temor Assim a chacina dos pretendentes nem eacute imerecida porque muito fizeram para

merecer tal castigo nem nos proporciona o temor jaacute que natildeo haacute construccedilatildeo de empatia para

com esses personagens Eacute por isso que Aristoacuteteles diz-nos (Poeacutetica 1453a 7-11) que os

113

heroacuteis com seus caracteres intermediaacuterios satildeo os protagonistas ideais do traacutegico ao contraacuterio

dos muito bons que incitam excesso de piedade e dos muito maus que incitam a satisfaccedilatildeo

humana de ver os maus em decadecircncia Por isso as cento e dezesseis mortes narradas no

Canto XXII representam a puniccedilatildeo de todos os males cometidos pelos pretendentes Males

estes resultantes natildeo apenas de uma accedilatildeo errocircnea mas tambeacutem pela falta de caraacuteter por isso

Atena diz que eles satildeo insensatos injustos e portanto agem sem bom-senso (II 281-284)

A situaccedilatildeo da chacina dos pretendentes natildeo nos incita o traacutegico pois pela falta do

imerecido e da empatia natildeo nos provoca o fomacrboj nem a esup1leoj Ao contraacuterio a nossa

tendecircncia em geral eacute de nos satisfazermos com a representaccedilatildeo dessas muitas mortes porque

consideramos que eles tiveram o fim merecido Basta-nos para entendermos melhor essa

afirmaccedilatildeo lembrar da reaccedilatildeo da ama Euricleacuteia ao ver Odisseu em meio aos corpos todo

ensanguentado Ela natildeo consegue conter a alegria sendo necessaacuteria a intervenccedilatildeo do heroacutei

para que ela se contenha (XXII 411-416) visto que natildeo eacute adequado regozijar perante os

mortos E sobre isso jaacute nos orientava Aristoacuteteles (Poeacutetica 1453a) porque um homem muito

malvado passando da felicidade para infelicidade naturalmente natildeo nos suscita nem temor

nem piedade ao contraacuterio satisfazemo-nos por considerarmos que a justiccedila foi feita e que os

pretendentes e as amas pagaram por seus erros Eacute isso que comemora Euricleacuteia e Odisseu

mostrando sua dignidade e saber reprime-a por natildeo ser divino alegrar-se diante dos que jaacute

foram castigados por seus males Lembremos

ἡ δ᾽ ὡς οὖν νέκυάς τε καὶ ἄσπετον εἴσιδεν αἷμα

ἴθυσέν ῥ᾽ ὀλολύξαι ἐπεὶ μέγα εἴσιδεν ἔργον

ἀλλ᾽ Ὀδυσεὺς κατέρυκε καὶ ἔσχεθεν ἱεμένην περ

καί μιν φωνήσας ἔπεα πτερόεντα προσηύδα

ἐν θυμῶι γρηῦ χαῖρε καὶ ἴσχεο μηδ᾽ ὀλόλυζε

οὐχ ὁσίη κταμένοισιν ἐπ᾽ ἀνδράσιν εὐχετάασθαι

τούσδε δὲ μοῖρ᾽ ἐδάμασσε θεῶν καὶ σχέτλια ἔργα

οὔ τινα γὰρ τίεσκον ἐπιχθονίων ἀνθρώπων

οὐ κακὸν οὐδὲ μὲν ἐσθλόν ὅτις σφέας εἰσαφίκοιτο

τῶι καὶ ἀτασθαλίηισιν ἀεικέα πότμον ἐπέσπον106 (Odisseacuteia XXII 407- 416)

Entatildeo a ama Euricleacuteia viu os cadaacuteveres e o imenso sangue

e eacute verdade que atacou a gritar quando viu o grande trabalho

Mas Odisseu a deteve e decerto segurou sua agitaccedilatildeo

106

Texto disponiacutevel em httpwwwhs-

augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_od22html retirado agraves 1500hs de 15 de julho

de 2010

114

Tambeacutem ele mesmo tendo falado alto dirigia-lhe essas palavras aladas

Na alma velha alegra-te mas natildeo grita reprime pois para si

Natildeo eacute da lei divina manifestar-se assim sobre os homens que perecem

Estes o destino dos deuses submeteu como tambeacutem a seus trabalhos

[funestos

Eles natildeo respeitavam nenhum dos homens viventes da terra

nem o mau nem certamente o bom que a eles se apresentou

E por essas accedilotildees insanas perseguiu-lhes o destino indigno

Essa discussatildeo tambeacutem nos faz recordar da explanaccedilatildeo de Junito Brandatildeo em

Homero e seus poemas deuses mitos e escatologia (1998) a respeito de que a Odisseacuteia

instaura na literatura ocidental representaccedilotildees novas Essas satildeo sobre a ideacuteia de culpa

castigo ―em que a hyacutebris a violecircncia a insolecircncia a ultrapassagem do meacutetron () comeccedilam

a despontar (BRANDAtildeO 1998 p 134) Junito Brandatildeo diz ainda que a culpa traacutegica

como jaacute foi dito no capiacutetulo anterior pode ser realizada de duas formas da hamartia em que

forccedilas superiores impulsionam o homem ao erro (a exemplo dos soacutecios de Odisseu no caso

das vacas do Sol) ou atraveacutes do adikon quando o sujeito deliberadamente sem coaccedilatildeo

comete o erro A esta uacuteltima culpa relacionamos os pretendentes pois por deliberaccedilatildeo

proacutepria intentaram contra Odisseu e sua famiacutelia consumindo seu palaacutecio seus bens

pretendendo sua esposa violentando suas servas aleacutem de terem chegado inclusive a planejar

a morte de seu filho Telecircmaco que soacute natildeo ocorreu por causa da proteccedilatildeo de Atena Assim

Odisseu mata-os para que eles e suas accedilotildees funestas sejam definitivamente reparadas e

abolidas

Atraveacutes de todo o percurso de anaacutelise que fizemos neste toacutepico Odisseacuteia

momentos de tragicidade pudemos perceber as valorosas contribuiccedilotildees que Homero legou-

nos tanto para literatura ocidental como mais especificamente para a trageacutedia grega Esta

desenvolveu os elementos traacutegicos jaacute bem traccedilados por Homero Nesses uacuteltimos paraacutegrafos

constatamos tambeacutem duas contribuiccedilotildees baacutesicas que nos lega Homero a representaccedilatildeo de

como os homens satildeo levados a sofrer vivecircncias traacutegicas (Odisseu) ou destinos traacutegicos (os

soacutecios do heroacutei) como tambeacutem uma amostra de como os personagens mesmo

impiedosamente mortos podem natildeo provocar nenhum sentimento de empatia nenhuma

comoccedilatildeo diante de seu sofrer Deste modo fica-nos evidente o que eacute necessaacuterio para termos

um personagem traacutegico pois natildeo basta o sofrimento ele tem tambeacutem que ter dignidade ser

levado pela asup1namacrgkh e pelo daimacrmwn a cometer a aumlmartia e a uAacutebrij e assim suscitando

o fomacrboj e a esup1leoj levar-nos agrave kaqarsij E essa tragicidade como vimos pode ser

acentuda por outros elementos a exemplo da asup1nagnwiquestrisij em que o personagem traacutegico

115

experiencia tudo com plena consciecircncia Essa accedilatildeo traacutegica apresenta-se para noacutes como

incompreensiacutevel proporcionando-nos uma vivecircncia do espiacuterito traacutegico ao observarmos o

homem defrontando-se com a sua fragilidade e limitaccedilatildeo comum aos mortais

32 TRAGICIDADE NO CANTO XI DA ODISSEacuteIA ANTICLEacuteIA AQUILES

AGAMEcircMNON AacuteJAX

Neste toacutepico realizaremos uma aplicaccedilatildeo teoacuterico-analiacutetica do traacutegico a partir do

Canto XI da Odisseacuteia em especial naqueles momentos em que Odisseu encontra-se no Hades

com a sua matildee Anticleacuteia e seus companheiros em Troacuteia Agamecircmnon Aquiles e Aacutejax Como

veremos o Laertida iraacute ao deparar-se com sua matildee tomar conhecimento de sua morte aleacutem

de constatar que seus antigos companheiros em Troacuteia amarguravam um destino funesto

Agamecircmnon sofre pela desonra de sua morte fruto da traiccedilatildeo da esposa com o amante Egisto

Aquiles inconformado diz-se infeliz em reinar sobre mortos preferindo vivo ser um

trabalhador do campo e Aacutejax mesmo apoacutes a morte encontra-se ainda ressentido pelo fato de

ter perdido as armas de Aquiles para Odisseu Consideramos a anaacutelise que segue o cerne do

nosso trabalho tendo em vista as suas relevantes cenas que nos sugerem o espiacuterito do traacutegico

A afirmaccedilatildeo acima natildeo invalida ou diminui o valor dos capiacutetulos e toacutepicos

anteriores ao contraacuterio eles satildeo os responsaacuteveis pela fundamentaccedilatildeo da nossa anaacutelise

proporcionando-nos uma maior percepccedilatildeo do traacutegico e uma mais clara justificativa do porquecirc

da escolha do Canto XI Neste podemos ver Odisseu apoacutes ter sido orientado por Tireacutesias

passar por um processo cartaacutetico atraveacutes da vivecircncia traacutegica que passa junto a Anticleacuteia

Agamecircmnon Aquiles e Aacutejax E assim por meio de sua catarse estaraacute pronto para prosseguir

seu objetivo alcanccedilar um destino glorioso de retorno e consagraccedilatildeo domeacutestica

Odisseu comunicado por Circe que deveria ir ao Hades desespera-se (X 496-

498) por saber que pouquiacutessimos homens tiveram esse privileacutegio Aflito e angustiado o heroacutei

teme natildeo ser capaz de tatildeo grande empreitada Contudo o que o aguarda no Hades eacute ainda

pior deparar-se com a matildee que havia deixado a vida como eiAtildedwlon morta e ouvir todas as

desventuras dos companheiros que antes alcanccedilaram a gloacuteria em Troacuteia

Entendamos como ocorre a chegada de Odisseu ao Hades e como seratildeo seus

encontros traacutegicos O Canto XI da Odisseacuteia inicia-se com Circe agrave beira mar enviando ventos

116

propiacutecios para Odisseu e seus companheiros Nesse momento percebamos que os mortos

comeccedilam a aproximar-se do heroacutei e quem o faz primeiro eacute Elpenor antigo soacutecio e que veio a

padecer Com a visatildeo o heroacutei sente o coraccedilatildeo apertar e vertendo laacutegrimas pergunta como ele

morreu O seu antigo soacutecio apoacutes responder suas perguntas pede para que seja sepultado

erguendo um monumento na beira do mar e fincando o remo que usara Como percebemos

Elpenor sente falta de ter seus ritos fuacutenebres realizados ateacute porque ele que combateu em

Troacuteia e que vagou com Odisseu por terras e mares morreu sem ao menos ter uma laacutepide

para lembrar sua morte Assim para evitar esse imerecido esquecimento de um companheiro

Odisseu logo se compromete a realizar seu desejo

Entatildeo apoacutes Elpenor distanciar-se a matildee do Laertida aparece Essa eacute a primeira

experiecircncia traacutegica que Odisseu tem no Hades ateacute mesmo porque ele natildeo sabia ainda da

morte da matildee jaacute que ao partir para Troacuteia havia deixado-a com vida em Iacutetaca Perante tal

visatildeo o heroacutei potildee-se a chorar pois ao ter aceitado o desafio de ir ao Hades natildeo havia

imaginado que em meio a dolorosa visatildeo das sombras encontraria sua matildee como mais uma

alma dos mortos (XI 87) Mas como ele tinha que primeiro falar com Tireacutesias o Laertida natildeo

deixa a matildee aproximar-se do sangue Para entendermos todo o cenaacuterio com o qual Odisseu

depara-se no Hades logo no iniacutecio do Canto XI em que o deinoj107 apodera-se do heroacutei

apoacutes ele ter feito todos os rituais vejamos o que nos explica Vernant (2000)

Entatildeo percebe que estaacute vindo em sua direccedilatildeo a multidatildeo formada pelos que

natildeo satildeo ningueacutem ouacutetis como ele pretendeu ser Satildeo os sem-nome os

noacutemymnoi os que natildeo tem mais rosto que natildeo satildeo mais visiacuteveis que natildeo

satildeo mais nada Formam uma massa indistinta de seres que outrora foram

indiviacuteduos mas dos quais natildeo se sabe mais nada Dessa massa que desfila a

sua frente sobe um rumor apavorante e indistinto Eles natildeo tem nome natildeo

falam eacute um barulho caoacutetico Ulisses eacute envadido por um medo terriacutevel diante

desse espetaacuteculo que representa a seus olhos e ouvidos a ameaccedila de uma

dissoluccedilatildeo completa num magma disforme sendo sua palavra tatildeo haacutebil

afogada num rumor inaudiacutevel sua gloacuteria sua fama e sua celebridade caindo

no esquecimento (VERNANT 2000 112-113)

Diante desta cena observamos que Odisseu fica rodeado por uma massa de

sombras sem nome sem rosto sem gloacuteria o que logo ao iniacutecio do Canto XI faz com ele ele

seja apoderado pelo sentimentos de foboj E este sentimento de temor inspirado o foboj

que eacute o medo que faz fugir que propicia ao heroacutei o desejo de querer afastar-se da morte

107

Em Retoacuterica das Paixotildees Aristoacuteteles diz que ao depararmo-nos com um parente proacuteximo em situaccedilatildeo

dolorosa o que sentimos natildeo eacute compaixatildeo e sim o deinoj Ou seja experienciamos o terriacutevel o apavorante por

tal fato narrado estaacute muito proacuteximo de noacutes

117

buscando retornar a Iacutetaca para que natildeo venha ser mais uma dessas sombras esquecidas

disformes e indistintas como as que ele se depara no Hades Pois toda a busca que Odisseu

faz desde que saiu de Troacuteia para retornar a Iacutetaca natildeo simboliza apenas o desejo de voltar

para casa e para os seus familiares mas tambeacutem o de fugir impelido pelo foboj da morte

desonrosa que o levaria ao esquecimento e tornaria-o mais um deinoj entre tantos que sem

gloacuteria vagueiam no Hades

E no decorrer da narrativa apoacutes a visatildeo amedrontadora das sombrasTireacutesias entatildeo

aparece e pede-lhe para recolher a espada para que possa provar do sangue e dizer-lhe toda a

verdade Observemos atraveacutes desta fala do adivinho que tudo o que ele vier a contar seraacute

verdade pois tendo Odisseu feito o ritual conforme Circe indicara todas as sombras soacute

poderatildeo falar a verdade para o heroacutei Assim o tebano prenuncia tudo o que o heroacutei teraacute que

enfrentar desde a sua saiacuteda do Hades ateacute o procedimento que deve ter ao chegar em Iacutetaca

Revela-lhe a perseguiccedilatildeo de um deus que atrapalharaacute o seu retorno mas natildeo o impediraacute caso

consiga refrear a sua cobiccedila e dos seus soacutecios diz-lhe ainda que ao chegar em Iacutetaca

enfrentaraacute muitos trabalhos pois homens soberbos destroem seus bens e pretendem sua

esposa Mas Tireacutesias tranquiliza-o com seu destino dizendo-lhe que ao chegar em Iacutetaca daraacute

castigo a todos os pretendentes (XI 118) Tireacutesias avisa ao heroacutei que conseguiraacute evitar o

destino traacutegico apoacutes cumprir as empreitadas reveladas e realizar os rituais sagrados Tudo

isso para que apoacutes vivenciar tantos momentos traacutegicos Odisseu possa enfim viver com sua

famiacutelia tranquilamente ateacute que a doce morte venha pegaacute-lo (XI 134-137)

Contudo sabemos que antes de vir a alcanccedilarr o seu pretenso destino Odisseu teraacute

que enfrentar muitos desafios e muitos momentos traacutegicos Momentos estes que ele enfrentaraacute

ainda no Hades atraveacutes dos encontros que com sua matildee e com alguns companheiros de Troacuteia

Assim tendo Tireacutesias terminado as revelaccedilotildees sobre o destino do heroacutei este pergunta-o o

porquecirc da indiferenccedila de sua matildee que natildeo o fala (XI 140-144) Esse questionamento do

filho de Laertes demonstra-nos sua inconformidade de enfrentar aleacutem da visatildeo da matildee morta

sua indiferenccedila e renuacutencia de falar-lhe O adivinho diz para o heroacutei deixaacute-la aproximar-se do

sangue a fim de que lhe fale tambeacutem soacute a verdade Esse ritual deve ser realizado com toda e

qualquer sombra com a qual Odisseu deseje falar

Como sabemos as pessoas com as quais Odisseu comeccedilaraacute a falar jaacute estatildeo mortas

Por isso gostariacuteamos de elucidar a condiccedilatildeo em que se encontra a consciecircncia dessas pessoas

Para entendermos o niacutevel de coerecircncia e verossimilhanccedila desses diaacutelogos primeiro resaltamos

que como foi avisado por Tireacutesias toda a sombra que Odisseu deixasse aproximar-se do

118

sangue iria falar-lhe apenas a verdade enquanto as demais recuariam Ou seja podemos

compreender logo que toda a sombra que se aproximar de Odisseu falaraacute fatos verdeiros

sem ilusotildees ou inverdades Aleacutem disso eacute significativo sabermos que geralmente ―() no

Hades a psiqueacute o eiacutedolon eacute uma sombra uma imagem paacutelida e inconsistente abuacutelica

destituiacuteda de entendimento sem precircmio nem castigo (BRANDAtildeO 1998 p 146) No

entanto o eiAtildedwlon 108

essa sombra abuacutelica e paacutelida como diz-nos Junito Brandatildeo (1998)

pode recuperar por alguns instantes a razatildeo mediante um complexo ritual como o que foi

detalhadamente descrito no Canto XI da Odisseacuteia (v 20-50) Perante tais consideraccedilotildees

sabemos que aleacutem de falarem a verdade as sombras que dialogam com Odisseu tecircm

recuperadas as consciecircncias e portanto falam com racionalidade pois o filho de Laertes

cumpriu com todos os rituais necessaacuterios

Neste momento em que entendemos a condiccedilatildeo mental do eiAtildedwlon

prosseguimos a nossa anaacutelise Como vimos o esposo de Peneacutelope falara com Tireacutesias e sabia

como proceder para conquistar seu desejado retorno O vate parte e Odisseu interessado em

falar com a matildee deixa ela se aproximar do sangue para poder falar-lhe Anticleacuteia aproxima-

se reconhece o filho instantaneamente e pergunta o que ele faz no Hades e se jaacute havia

retornado a seu paiacutes O eiAtildedwlon de sua matildee natildeo entende o porquecirc de o filho estar ali local

sobre o qual ela afirma ser aos vivos tatildeo difiacutecil de contemplar (XI 156) Odisseu responde-

lhe e pergunta-lhe como estatildeo seu pai seu filho sua esposa seu palaacutecio enfim Sobre a

esposa ela diz que vive em prantos sem fim (XI 182-183) o filho sozinho administra o

palaacutecio e seu pai passou a dormir no inverno junto aos servos e no veratildeo dorme sobre as

folhas no chatildeo vivendo triste agrave espera do filho amado jaacute ela proacutepria veio a falecer de

saudades Vejamos com detalhes o discurso de Anticleacuteia sobre as dores sentidas por ela e

pelo marido

νὔη᾽ ἐκέ γ᾽ ἐλ κεγάξνηζηλ ἐύζθνπνο ἰνρέαηξα

νἷο ἀγαλνῖο βειέεζζηλ ἐπνηρνκέλε θαηέπεθλελ

νὔηε ηηο νὖλ κνη λνῦζνο ἐπήιπζελ ἥ ηε κάιηζηα

ηεθεδόλη ζηπγεξῇ κειέσλ ἐμείιεην ζπκόλ

ἀιιά κε ζόο ηε πόζνο ζά ηε κήδεα θαίδηκ᾽ δπζζεῦ

ζή η᾽ ἀγαλνθξνζύλε κειηεδέα ζπκὸλ ἀπεύξαlsquo109

(Odisseacuteia XI 198-203)

108

Essa palavra deriva do grego eiAtildedwlon que segundo Romizi (2007) significa o aspecto a imagem de um

morto Por isso relaciona-se agrave figura de um fantasma de uma imaginaccedilatildeo de uma sombra 109

Texto diponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D113Acard3

D180 retirado agraves 0718h em 05 de novembro de 2010

119

No uqarto natildeo me matou a arqueira perspicaz

com suas lanccedilas gentis vindo-me de encontro

nem foi doenccedila que me veio para o grande

definhamento abominaacutevel e que o acircnimo dos membros tirou-me

Mas por ti notaacutevel Odisseu a saudade de ti as preocupaccedilotildees contigo

a tua gentileza e doccedilura tudo isso arrebatou minha vida

O heroacutei apoacutes jaacute ter enfrentado tantos desafios e por longo tempo ter ficado errante

por mar e por terra suportando hostilidades de povos diversos depara-se com uma nova

empreitada realizada por poucos de ir ao Hades e voltar No territoacuterio dos mortos depara-se

ainda com uma amedrontadora imagem e barulho sendo rodeado por sombras diversas

paacutelidas sem rosto e sem razatildeo O deinoj apodera-se do heroacutei Mas muito ainda o aguardava e

ele que ao sair de Iacutetaca havia deixado sua matildee viva vem encontraacute-la morta Todavia isso natildeo

eacute suficiente para um heroacutei de tantas dores por isso Anticleacuteia revela-lhe que sua esposa

Peneacutelope vive em pranto infindo e que seu pai Laertes vive plenamente triste e

acabrunhado suportando a velhice E mais ainda ela revela que natildeo a matou a velhice ou a

deusa frecheira mas o proacuteprio filho Odisseu e a saudade que ele deixara O Laertida apesar

de heroacutei eacute um mortal como os demais homens e a estes como diz-nos Vernant (2006) em

Mito e religiatildeo na Greacutecia Antiga as dores e os sofrimentos satildeo comuns E eacute esse caraacuteter

humano que faz dos heroacuteis personagens propensos a do alto do seu heroiacutesmo caiacuterem como

os mortais comuns em tragicidade O traacutegico como vemos ao longo deste trabalho eacute fato

comum na trajetoacuteria de Odisseu apesar de natildeo o ser em seus destinos pois

A Odisseu favorece um destino (moicurrenra) epecial que de fato natildeo estaacute dirigido

para morte mas natildeo obstante o caraacuteter negativo da Moira denuncia-se aiacute

com muita clareza ele deve atravessar graves sofrimentos () Tambeacutem

neste caso o fado trava eacute retributivo ―ainda natildeo ateacute que ndash este eacute o

autecircntico tom da Moira110

()

( OTTO 2005 p 245)

Apesar de estarmos no iniacutecio da anaacutelise fica-nos claro que mesmo diante do

destino fechado de Odisseu a Moicurrenra persegue-o para que antes de gozar de seu prestiacutegio

em Iacutetaca venha passar por muitas dores e sofrimentos Sofrimentos como os que estamos

estudando sua matildee conta-lhe que por culpa so proacuteprio heroacutei Peneacutelope chora infinitamente

seu pai Laertes vive incondicionalmente triste e ela mesma desceu ao Hades por culpa dele

natildeo suportando as saudades Assim tragicamente Odisseu vecirc-se sem o merecer como

culpado pela morte da matildee amada e do sofrer de seu pai e de sua esposa Daiacute decorrer a

110

Os destaques satildeo nossos

120

inocecircncia traacutegica que Romilly diz ser encontrada nas trageacutedias pois ―() mesmo quando nos

satildeo apresentados como culpados mesmo quando suas accedilotildees os arrastam satildeo-no porque o erro

eacute o lote do homem ou porque correspondem a situaccedilotildees que satildeo igualmente o lote do

homem (ROMILLY 2008 p 175)

Assim mesmo sem uma accedilatildeo direta Odisseu eacute responsabilizado pelos

sofrimentos dos seus familiares e principalmente pela morte de sua matildee (Odisseacuteia XI 195-

203) Tal constataccedilatildeo faz-nos recordar de Aristoacuteteles ao afirmar que as cataacutestrofes satildeo mais

traacutegicas quando ocorrem entre familiares

Ὅταν δ᾽ ἐν ταῖς φιλίαις ἐγγένηται τὰ πάθη οἷον ἢ ἀδελφὸς

ἀδελφὸν ἢ υἱὸς πατέρα ἢ μήτηρ υἱὸν ἢ υἱὸς μητέρα ἀποκτείνηι ἢ

μέλληι ἤ τι ἄλλο τοιοῦτον δρᾶι ταῦτα ζητητέον111 (Ibidem XIV

1453b 20-23)

Quando estas cataacutestrofes realizam-se em amizades ou com um irmatildeo que

mata irmatildeo ou um filho que mata o pai ou a matildee que mata o filho ou o

filho que mata a matildee ou quando vecircm ocorrer alguma outra coisa desta

natureza estas coisas tecircm que ser buscadas

Naturalmente entendemos essa concepccedilatildeo aristoteacutelica de que um contexto de

tragicidade entre familiares eou entre personagens que cultivam amizade proporcia maior

comoccedilatildeo e sofrimento sendo portanto ainda mais efetivo para a manifestaccedilatildeo do sentimento

traacutegico Para entendermos tal posiccedilatildeo basta-nos lembrar de Aristoacuteteles dizendo que em meio

agrave dor sofrimentos e mortes aproximamo-nos da cataacutestrofe e portanto do traacutegico (Poeacutetica

1452b 12-14) E esse fato eacute reforccedilado pela fala do porqueiro antigo servo de Odisseu e do

seu pai que no Canto XV ao ser perguntado pelo mendigo (Odisseu) qual o destino de

Laertes e Anticleacuteia responde que Laertes apesar de vivo pede a morte e que Anticleacuteia morta

de saudades teve o pior dos fins

ἡ δ᾽ ἄρετ νὗ παηδὸο ἀπέθζηην θπδαιίκνην

ιεπγαιέῳ ζαλάηῳ ὡο κὴ ζάλνη112

ὅο ηηο ἐκνί γε

ἐλζάδε λαηεηάσλ θίινο εἴε θαὶ θίια ἔξδνη113

111

Texto disponiacutevel em httpwwwhs-

augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante04Aristotelesari_poi2html agraves 2035hs de 17 de julho de

2010 112

Nessa citaccedilatildeo temos trecircs verbos no modo optativo qanoi de qnhskw- morrer eiAtildeh de e)aw- permiter

deixar ocorrer e eAtilderdoi de eAtilderdw- fazer Essa observaccedilatildeo eacute importante pois essa forma lingiacutestica exprime de

modo coerente o contexto da passagem citado Isso porque o optativo exprime a possibilidade o voto o desejo

(MURACHO 2007) Assim o porqueiro exprime seu desejo de que seus conhecidos natildeo tenham a mesma morte

da matildee de Odisseu por isso traduzimos ―que ningueacutem morra ―quenatildeo ocorra ―que natildeo se faccedila

121

(Odisseacuteia XV 358-360)

Ela pereceu pela anguacutestia da morte miseraacutevel e sem gloacuteria

do filho Que ningueacutem meu morra assim que isso natildeo ocorra ao

habitante daqui amigo e que natildeo se faccedila ao que me eacute querido

Atraveacutes da fala de Eumeu o porqueiro percebemos que ele compreende que eacute

muito doloroso morrer indiretamente por culpa de um ente amado E assim diante dessa

morte estruturalmente dolorosa ele pede aos deuses para que ningueacutem em sua ilha ou com

quem ele tenha afeto venha padecer de tatildeo horrorosa morte Padecimento este em que um

filho leva a matildee agrave morte mesmo sem intenccedilatildeo e muito menos sem accedilatildeo direta Odisseu de

forma imerecida torna-se o culpado pelas dores da famiacutelia e pela morte da matildee que foi gerada

pela accedilatildeo da Moicurrenra e do daimacrmwn A riqueza dos detalhes dessa morte somada ao contexto

em que ela foi gerada faz com que esta morte na narrativa seja presentificada aumentando

sua tragicidade Por isso Odisseu natildeo se conteacutem e apoacutes ouvir o relato da matildee que soa para

ele como tortura ele exclama

―ὣο ἔθαη᾽ αὐηὰξ ἐγώ γ᾽ ἔζεινλ θξεζὶ κεξκεξίμαο

κεηξὸο ἐκῆο ςπρὴλ ἑιέεηλ θαηαηεζλεπίεο

ηξὶο κὲλ ἐθσξκήζελ ἑιέεηλ ηέ κε ζπκὸο ἀλώγεη

ηξὶο δέ κνη ἐθ ρεηξλ ζθηῇ εἴθεινλ ἢ θαὶ ὀλείξῳ

ἔπηαη᾽114

(Odisseacuteia XI 205-209)

Dizia eu desejava tecirc-la ao peito mas tendo-a apertado

o espiacuterito da minha matildee morta escapava-me

O acircnimo comandava-me e por trecircs vezes apertei-a

por trecircs vezes tambeacutem como se fosse sombra ou sonho

dos meus braccedilos ela se evolou

Natildeo bastasse todo o relato da matildee pondo-o como responsaacutevel por sua morte

Odisseu para atenuar a dor tenta abraccedilaacute-la por trecircs vezes em vatildeo O heroacutei natildeo compreende

que o corpo anterior de sua matildee agora eacute um eiAtildedwlon mais uma sombra entre tantas outras

vagantes no Hades E esse aspecto do morto intocaacutevel e natildeo palpaacutevel por natureza impede-o

de abraccedilar a matildee e aleacutem do mais isso o faz perceber que aquela eacute uma imagem de sua matildee

de outrora Mas resistindo ao reconhecimento (asup1nagnwiquestrisij) desse fato que sua matildee agora

113

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D153Acard3

D185 retirado agraves 1352h em 10 de novembro de 2010 114

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D113Acard3

D180 retirado agraves 1352h em 10 de novembro de 2010

122

eacute mais um eiAtildedwlon Odisseu tenta agarraacute-la por trecircs vezes Em todas as tentativas

naturalmente ele se frustra por isso questiona agrave matildee o porquecirc daquilo e desconfia se natildeo

seria mais um castigo dessa vez enviado por Perseacutefone enganando-o e iludindo-o atraveacutes de

um fantasma Ela poreacutem explica-lhe que com a morte a carne e os ossos deixam os tendotildees

Isto eacute apoacutes a morte natildeo haacute mais o corpo anterior firme e palpaacutevel o que resta eacute apenas uma

sombra do que foi sombra esta que eacute exatamente o eiAtildedwlon Depois disso Anticleacuteia antes

de partir avisa ao filho que guarde o que ouviu para poder contar em Iacutetaca

Odisseu narra tudo isso aos Feaacutecios que quietos a tudo ouvem E no instante em

que o filho de Laertes pausa seu canto a rainha dos Feaacutecios Arete promete dar-lhe presentes

e Alciacutenoo garante que daraacute o pretenso retorno ao heroacutei Este agradece O rei da Feaacutecia entatildeo

pede para que relate se viu algum dos guerreiros que junto a ele combateu em Troacuteia pois

todos suportariam o sono para ouvi-lo Odisseu diz que se estatildeo dispostos a ouvir ele

continuaraacute a narrativa e assim o faz Diz que narraraacute fatos ainda mais graves pois viu padecer

seus companheiros diletos vitoriosos em Troacuteia O primeiro deles a aproximar-se eacute

Agamecircmnon que bebe do sangue e realiza altos gemidos estendendo as matildeos para Odisseu

Este percebe que o Atrida natildeo tem mais o vigor de antes quando em Troacuteia comandava os

guerreiros e diante dessa imagem o filho de Laertes sente o peito apertar e potildee-se a chorar

(Odisseacuteia XI 391-395)

Na guerra de Troacuteia Agamecircmnon era o detentor do cetro o aAtildenac asup1ndrwIacuten o

senhor dos heroacuteis era o responsaacutevel por comandar todos os gregos Nessa passagem Odisseu

dapara-se com o rei de Micenas o supremo chefe dos aqueus elevando altos gemidos

estendendo as matildeos como em pedido de auxiacutelio tambeacutem sem vigor nos membros Diante da

cena Odisseu com o peito apertado vai agraves laacutegrimas A cena suscita a esup1leoj pois

aristotelicamente sente-se compaixatildeo ao ver-se em semelhante desventura Mas Odisseu

ainda natildeo sabe o porquecirc da morte do Atrida e pergunta se foi obra de Posiacutedon de inimigos na

disputa de mulheres ou na conquista de cidades Agamecircmnon nega essas opccedilotildees e responde

ἀιιά κνη Αἴγηζζνο ηεύμαο ζάλαηόλ ηε κόξνλ ηε

ἔθηα ζὺλ νὐινκέλῃ ἀιόρῳ νἶθόλδε θαιέζζαο

δεηπλίζζαο ὥο ηίο ηε θαηέθηαλε βνῦλ ἐπὶ θάηλῃ

ὣο ζάλνλ νἰθηίζηῳ ζαλάηῳ πεξὶ δ᾽ ἄιινη ἑηαῖξνη

λσιεκέσο θηείλνλην () ἤδε κὲλ πνιέσλ θόλῳ ἀλδξλ ἀληεβόιεζαο

κνπλὰμ θηεηλνκέλσλ θαὶ ἐλὶ θξαηεξῇ ὑζκίλῃ

ἀιιά θε θεῖλα κάιηζηα ἰδὼλ ὀινθύξαν ζπκῶ

123

ὡο ἀκθὶ θξεηῆξα ηξαπέδαο ηε πιεζνύζαο

θείκεζ᾽ ἐλὶ κεγάξῳ δάπεδνλ δ᾽ ἅπαλ αἵκαηη ζῦελ115

(Odisseacuteia XI 409-413416-420)

Mas a mim Egisto causou a morte e o destino desgraccedilado

pois junto com minha esposa maldita ao chamar-me em sua casa para um

banquete]

matou-me do modo como algueacutem mata um boi na manjedoira

Assim morri da morte mais lamentaacutevel ao meu redor os demais

companheiros]

eles mataram continuamente ()

Jaacute presenciaste a morte de muitos guerreiros

seja morrendo em combates individuais ou em batalha poderosa

Mas tendo visto aquilo sofrerias muitiacutessimo no coraccedilatildeo

pois ao redor de crateras e mesas que tinham estado haacute pouco cheias

estaacutevamos deitados no salatildeo com o chatildeo todo ensanguumlentado116

Agamecircmnon ainda completa que mais doloroso foi ouvir os gritos de Cassandra

descendente dos troianos trazida por ele para servir-lhe como escrava Diante da narraccedilatildeo

acima podemos perceber muitos elementos que nos indicam a presenccedila do traacutegico Tanto que

Eacutesquilo (2004) iraacute se inspirar nesse episoacutedio para a composiccedilatildeo de sua trilogia traacutegica a

Oresteacuteia Desse modo o aAtildenac asup1ndrwIacuten apoacutes aacuterdua batalha em Troacuteia aguarda ser recebido

por festas e consagraccedilotildees em sua terra Mas o que o aguarda eacute a morte funesta elaborada por

sua esposa Clitemnestra junto com o seu amante Egisto Por isso o Atrida

conscientemente afirma ―ὣς θάνον οἰκτίστωι θανάτωιrdquo117 isto eacute ―Assim morri com a

morte mais lamentaacutevel (Odisseacuteia Canto XI v 412)

Eacute atraveacutes de passagens como essa que Homero lega aos tragedioacutegrafos o espiacuterito

traacutegico e seu contexto em que os deuses natildeo mais satildeo o siacutembolo da proteccedilatildeo como eacute comum

vermos na eacutepica Eles agora implusionam o homem para o erro este que por sua vez levaraacute o

homem ao traacutegico Pois os deuses ―jaacute natildeo mais iluminam antes seduzem e transviam eacute o

caminho da queda (OTTO 2005 p 259) como seraacute tiacutepico da trageacutedia no seacuteculo V aC

Temos a accedilatildeo da Moicurrenra impelindo o heroacutei para o destino mais catastroacutefico a morte sem

gloacuteria sem nobreza Nos diaacutelogos entre Odisseu com os antigos companheiros em Troacuteia

como eacute o caso do citado com Agamecircmnon percebemos que esses heroacuteis antes tatildeo protegidos

115

Retirado de

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D113Acard3

D40 retirado agraves 1426h em 10 de novembro de 2010 116

Destaque nosso 117

Verso disponiacutevel em

httpwwwhsaugsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_od11html agraves 1533hs ded 12

de julho de 2010

124

pelas divindades como ocorre na Iliacuteada vecircem-se desolados nas matildeos do destino Este guarda

para eles a morte funesta como uacuteltimo grande legado pois ―() eacute o destino da vida natildeo

alcanccedilar tais e tais coisas falhar aqui e ali e finalmente decair () (Ibidem p 258)

Entre os versos 412-413 o Atrida abatido pela morte vergonhosa sugere-nos

mais um elemento traacutegico que Vernant trata em Mito e Trageacutedia na Greacutecia Antiga (2008

p2) o heroacutei deixou de ser soluccedilatildeo para figurar como problema natildeo apenas para si mas

tambeacutem para os outros Assim o aAtildenac asup1ndrwIacuten que antes no comando dos demais heroacuteis

saiu vencedor na guerra de Troacuteia torna-se presa na matildee da esposa e do seu amante

Ao desembarcar em Argos o rei traz a vitoacuteria para os seus e em contrapartida

recebe a morte por matildeos familiares Contudo a morte natildeo atinge apenas o rei que pelo

miasmoj118 de sua famiacutelia e por accedilotildees proacuteprias deveria ser punido mas tambeacutem seus

companheiros que satildeo vitimados sem culpa nenhuma mesmo sem descenderem dos Atridas

nem serem responsaacuteveis pela morte de Ifigecircnia119

Mesmo assim imerecidamente eles que

pensavam ser exaltados ao retornarem agrave paacutetria satildeo tragicamente mortos

O mesmo ocorre com Cassandra pois apesar de natildeo cometer aumlmartia ou

uAacutebrij tem tambeacutem uma morte traacutegica ligada ao aspecto irracional do imerecido Assim

aquele rei que antes solucionava os problemas do seu povo torna-se o culpado pela morte sua

dos seus companheiros e de Cassandra que ele havia trazido como geiquestraj precircmio de guerra

Este distingue o heroacutei dos demais aleacutem de assegurar-lhe a timh120 a honra E para desonra e

humilhaccedilatildeo completa de Agamecircmnon Clitemnestra e Egisto natildeo apenas o matam mas

tambeacutem aniquilam Cassandra Assim natildeo vive nem mais a lembranccedila do heroacutei eacutepico que foi

Agamecircmnon nem o seu geiquestraj simbolizava Ao contraacuterio com a morte de Cassandra e dos

demais fica-nos o siacutembolo do Atrida como o heroacutei traacutegico que acarretou problema para si e

para os demais

Tendo reconhecido sua figuraccedilatildeo traacutegica Agamecircmnon ainda completa que apesar

de Odisseu jaacute ter presenciado todo o tipo de morte ainda assim ―ἀιιά θε θεῖλα κάιηζηα ἰδὼλ

118

Este termo indica a ―contaminaccedilatildeo transcendental que neste caso pode ser exemplificada pela

contaminaccedilatildeo gerada pela famiacutelia Atrida atraveacutes de fatos como por exemplo o Banquete de Tiestes e por isso

seus descendentes contaminados teriam de pagar pelos erros do passado sendo aniquilados 119

Essa referecircncia deve-se ao fato de que Clitemnestra utiliza como justificativa para matar o esposo o fato de

ele ter lhe tirado a querida filha Isso pode ser melhor avaliado atraveacutes de Ifigecircnia em Aacuteulis de Euriacutepedes (2002) 120

Para entendermos a importacircncia da timh para um heroacutei grego conveacutem voltarmos ao iniacutecio do primeiro

capiacutetulo do nosso trabalho em que fazemos um comentaacuterio elucidador a este respeito relacionando-a com

Aquiles na Iliacuteada

125

ὀινθύξαν ζπκῶ ―() ante aquele espetaacuteculo terias sentido piedaderdquo121

(XI 418) Neste

verso encontramos dois fatos que reforccedilam nossa tese A primeira eacute que nesse Canto XI

Odisseu presencia uma espeacutecie de ―espetaacuteculo traacutegico o que pode ser observado atraveacutes dos

detalhes que satildeo dados das cenas em que ocorre a accedilatildeo aleacutem de todos os elementos traacutegicos

como a morte por matildeo parental imerecida inesperada acarretando a desonra do heroacutei enfim

Detalhes esses que apesar de Odisseu apenas estar ouvindo propiciam-lhe uma vivecircncia do

fato traacutegico como se eles estivessem se realizando sob os seus olhos proporcionando-o uma

imagem teatral O proacuteprio narrador neste caso Agamecircmnon ao fazer a descriccedilatildeo de sua

morte refere-se a ela como um ―espetaacuteculo122

Nos versos acima a exemplo de ―Quando nos

visses no meio dos copos e mesas repletas pelo salatildeo a fazer e no soalho a sangueira

escorrendo a riqueza dos detalhes nos proporciona visualizar o narrado como uma imagem

presentificada aos nossos olhos Assim Odisseu como espectador desse ―teatro traacutegico

apieda-se

No iniacutecio do paraacutegrafo anterior dissemos que no verso 418 do Canto XI haacute dois

fatos que reiteram nossa proposta de anaacutelise O primeiro sobre o qual jaacute comentamos refere-

se agrave ―encenaccedilatildeo traacutegica que no Canto XI desenrola-se por meio dos diaacutelogos aos olhos de

Odisseu O segundo diz respeito ao que defendemos desde o iniacutecio deste trabalho sobre o

despertar do sentimento de piedade que seraacute gerado principalmente a partir dos encontros

que o heroacutei tem no Hades O sentimento de esup1leoj como enfatizamos eacute fator importante para

que tenhamos a kaqarjij desde que esteja junto a um outro sentimento que eacute o fomacrboj

(Poeacutetica XIII 1453a 5-6)

Como sabemos a esup1leoj eacute suscitada quando nos deparamos com o imerecido

Relacionando essa assertiva com a anaacutelise do Canto XI da Odisseacuteia percebamos que

Agamecircmnon narra a forma de sua morte de seus companheiros e de Cassandra Mortes estas

que de modo geral relacionam-se ao imerecido123

Portanto entendamos que o Atrida pelo

121

Destaque nosso 122

Esse espetaacuteculo traacutegico ao qual nos referimos e que eacute presentificado neste Canto XI foi responsaacutevel por

influenciar os autores traacutegicos do seacuteculo V a exemplo de Eacutesquilo (2004) Este inspirado na cena traacutegica jaacute

iniciada por Homero produziu as suas na trageacutedia Vejamos tambeacutem a riqueza dos detalhes jaacute que a morte natildeo

era encenada e sim anunciada pelo coro

ὤκνη κνη θνίηαλ ηάλδ᾽ ἀλειεύζεξνλ

δνιίῳ κόξῳ δακεὶο

ἐθ ρεξὸο ἀκθηηόκῳ βειέκλῳ

(Agamecircmnon v 1513 -1520)

Oacutemoi oacutemoi Neste indigno repouso

Tendo sido dominado sob trapaceira sorte

Pela matildeo com arma cortante de ambos os lados

123

Para podermos compreender melhor o sentido traacutegico dessas mortes seria necessaacuterio um estudo mais

especiacutefico da trageacutedia Agamecircmnon (2004) que neste momento natildeo eacute o nosso objetivo

126

fato de carregar desde o seu nascimento uma maacutecula transcendental (miasmoj) de sua

famiacutelia estaacute fadado a cometer a aumlmartia124 que por sua vez iraacute levaacute-lo agrave morte imerecida

E Odisseu sente compaixatildeo ao ver o seu comandante em Troacuteia vigoroso rei em choro

incontido Jaacute em relaccedilatildeo agrave morte dos seus companheiros e de sua escrava Cassandra esse

imerecido eacute bem mais claro de entender jaacute que eles nada fizeram para merecer esse triste fim

pois ateacute mesmo a relaccedilatildeo que tinham com o rei era de subordinaccedilatildeo Por isso a descriccedilatildeo

dessas imerecidas mortes eacute traacutegica inspirando em Odisseu a esup1leoj

Deste modo para reiterar nossa defesa de que nos diaacutelogos do Canto XI Odisseu

iraacute experienciar a kaqarjij inspirado pelo fomacrboj e pela esup1leoj consideramos importante

recorrermos agrave Retoacuterica das Paixotildees de Aristoacuteteles (2003) Assim vejamos primeiramente o

que Aristoacuteteles (2003) define sobre a esup1leoj E discorrendo sobre a compaixatildeo o filoacutesofo

daacute-nos tambeacutem uma informaccedilatildeo de que para sentirmos a piedade temos que estar vulneraacuteveis

a pensar que o mal com o qual nos compadecemos tambeacutem pode ocorrer conosco ou com

quem amamos

ἔζησ δὴ ἔιενο ιύπε ηηο ἐπὶ θαηλνκέλῳ θαθῶ θζαξηηθῶ ἢ ιππεξῶ ηνῦ

ἀλαμίνπ ηπγράλεηλ ὃ θἂλ αὐηὸο πξνζδνθήζεηελ

ἂλ παζεῖλ ἢ ηλ αὑηνῦ ηηλα θαὶ ηνῦην ὅηαλ πιεζίνλ θαίλεηαη δῆινλ γὰξ ὅηη

ἀλάγθε ηὸλ κέιινληα ἐιεήζεηλ ὑπάξρεηλ ηνηνῦηνλ νἷνλ νἴεζζαη παζεῖλ ἄλ ηη

θαθὸλ ἢ αὐηὸλ ἢ ηλ αὑηνῦ ηηλα θαὶ ηνηνῦην θαθὸλ νἷνλ εἴξεηαη ἐλ ηῶ ὅξῳ

ἢ ὅκνηνλ ἢ παξαπιήζηνλ125

(Retoacuterica das Paixotildees II 8 13-18)

Seja entatildeo a compaixatildeo certo pesar por um mal que se mostra destrutivo ou

penoso e atinge quem natildeo o merece mal que poderia esperar sofrer a

proacutepria pessoa ou um de seus parentes e isso quando esse mal parece

iminente com efeito eacute evidentemente necessaacuterio que aquele que vai sentir

compaixatildeo esteja em tal situaccedilatildeo que creia poder sofrer algum mal ou ele

proacuteprio ou um de seus parentes ()126

(ARISTOacuteTELES 2003 p53)

Buscando ampliar nossa concepccedilatildeo de compaixatildeo resolvemos procurar em

Retoacuterica das Paixotildees informaccedilotildees complementares que viessem auxiliar-nos a entender os

124

Para compreendermos melhor a aumlmartia cometida por Agamecircmnon devemos recorrer a duas trageacutedias

Agamecircmnon o primeiro livro da Oresteacuteia (2004) e Ifigecircnia em Aacuteulis (2002) Atraveacutes dessas obras observamos

que o Atrida derramou sangue parental de sua proacutepria filha daiacute a aumlmartia Contudo sabemos que sua accedilatildeo

foi necessaacuteria pois como puniccedilatildeo de Aacutertemis por ele querer medir-se com ela no arco se ele natildeo sacrificasse a

filha natildeo haveria ventos para os gregos alcanccedilarem Troacuteia ficando presos numa ilha 125

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100593Abook3D23Achapter

3D83Asection3D2 retirado agraves 1503h em 25 de novembro de 2010 126

(FONSECA 2003 p 53)

127

pressupostos do traacutegico presentes na Poeacutetica nossa base de estudo E nesse percurso de

ampliaccedilatildeo do entendimento sobre a esup1leoj obtemos mais uma informaccedilatildeo relevante que vem

reiterar nosso trabalho Ou seja segundo Aristoacuteteles (2003) aleacutem do fato de sentirmos

compaixatildeo diante de um fato doloroso e imerecido temos tambeacutem de estar vulneraacuteveis a

passar pelo mesmo padecimento soacute assim efetivamente o sentimento de compaixatildeo pode ser

suscitado Odisseu entatildeo tanto se depara com um sofrer imerecido como tambeacutem estaacute

vulneraacutevel a passar por tudo o que o Atrida passou pois ele tambeacutem apoacutes longos anos

distante retornaraacute ao seu lar podendo sim vir a encontrar sua morte armada pela esposa

junto com um amante Tanto estaacute susceptiacutevel a passar pelo mesmo que o rei de Argos alerta-o

para ter cuidado com a esposa natildeo lhe contando seus planos pois apesar de acreditar que

Peneacutelope natildeo seria capaz de tal ato diz que natildeo se pode confiar nas mulheres (XI 441-456)

Essa vulnerabilidade de Odisseu a vir a ser traacutegico como Agamecircmnon fica bem claro quando

no Canto XIII ao chegar em Iacutetaca as primeiras palavras que diz eacute em relaccedilatildeo a seu destino

que seria semelhante ao de Agamecircmnon caso natildeo fosse a proteccedilatildeo de Atena Pois assim

como o Atrida ele tambeacutem poderia ter a morte aguardando-lhe em casa o primeiro por causa

da esposa e do amante e no caso de Odisseu por accedilatildeo planejada dos pretendentes

Outra informaccedilatildeo tambeacutem nos eacute importante a respeito do suscitar da piedade Eacute

que para Aristoacuteteles (2003) noacutes nos compadecemos dos conhecidos ou dos nossos

semelhantes seja em idade seja em haacutebito enfim E nessa condiccedilatildeo Odisseu tambeacutem estaacute

inserido pois sabemos que eles natildeo satildeo apenas conhecidos como tambeacutem havia certa

semelhanccedila entre eles Aleacutem do mais a experiecircncia traacutegica do filho de Anticleacuteia e seu

compadecimento justificam-se tambeacutem porque ―com Agamecircmnon seu comandante-em-chefe

Odisseu se comportava com infaliacutevel lealdade () respeitava a hierarquia e reconhecia em

Agamecircmnon o portador do cetro (BEYE 2006 p 66) Essa relaccedilatildeo de companheirismo

entre Agamecircmnon e Odisseu pode ser observada tambeacutem na Iliacuteada Tatildeo marcante foi essa

relaccedilatildeo que ciente disso Eacutesquilo faz tambeacutem uma referecircncia a esse companheirismo em

Agamecircmnon (2004) Por isso ao desembarcar em Argos o Atrida saudado pelo coro por sua

volta relembra os enfrentamentos em Troacuteia e dos falsos homens com exceccedilatildeo de Odisseu Eacute

o que vemos no livro I Agamecircmnon da Oresteacuteia (2004) entre os versos 832-843

παύξνηο γὰξ ἀλδξλ ἐζηη ζπγγελὲο ηόδε

θίινλ ηὸλ εὐηπρνῦλη᾽ ἄλεπ θζόλνπ ζέβεηλ

δύζθξσλ γὰξ ἰὸο θαξδίαλ πξνζήκελνο

ἄρζνο δηπινίδεη ηῶ πεπακέλῳ λόζνλ

ηνῖο η᾽ αὐηὸο αὑηνῦ πήκαζηλ βαξύλεηαη

θαὶ ηὸλ ζπξαῖνλ ὄιβνλ εἰζνξλ ζηέλεη

128

εἰδὼο ιέγνηκ᾽ ἄλ εὖ γὰξ ἐμεπίζηακαη

ὁκηιίαο θάηνπηξνλ εἴδσινλ ζθηᾶο

δνθνῦληαο εἶλαη θάξηα πξεπκελεῖο ἐκνί

κόλνο δ᾽ δπζζεύο ὅζπεξ νὐρ ἑθὼλ ἔπιεη

δεπρζεὶο ἕηνηκνο ἦλ ἐκνὶ ζεηξαθόξνο

εἴη᾽ νὖλ ζαλόληνο εἴηε θαὶ δληνο πέξη127

ιέγσ (Eacutesquilo Agamecircmnon 832-843)

Poucos entre os homens tecircm congecircnito

Respeito sem inveja por amigo fausto

Maleacutevolo veneno sentado no coraccedilatildeo

Duplica o mal de quem dela adoece

Eacute oprimido por seu proacuteprio sofrimento

E pranteia ao ver alheia prosperidade

Ciente eu diria pois bem conheccedilo

O espelho social imagem de sombra

Satildeo aparentes os beneacutevolos comigo

Soacute Odisseu que invito navegou

Foi sob o jugo o meu pronto parceiro

Fale eu dele morto ou ainda vivo128

Atraveacutes dessa passagem percebemos que toda a relaccedilatildeo construiacuteda entre Odisseu

e Agamecircmnon intensifica seu compadecimento para com o Atrida E isto foi aproveitado

tambeacutem por Eacutesquilo (2004) na elaboraccedilatildeo do primeiro livro da Oresteacuteia Assim verificamos

que Homero legou aos tragedioacutegrafos a essecircncia do traacutegico como procuramos demonstrar

nesta anaacutelise do Canto XI Sabemos de um modo geral que algumas cenas eacutepicas serviram

de inspiraccedilatildeo para as trageacutedias mas no caso do Canto XI temos duas em especiacutefico uma

relacionada aos momentos de diaacutelogo entre Odisseu e Agamecircmnon e a outra do Laertida com

Aacutejax como veremos mais agrave frente E a influecircncia que duas cenas deste canto tiveram para o

surgimento de duas peccedilas Agamecircmnon de Eacutesquilo (2004) e Aacutejax de Soacutefocles (2008)

mostrando o quanto satildeo significativas as imagens traacutegicas que analisamos nesse canto jaacute que

estas produzem o que para muitos eacute o objetivo maior da trageacutedia a kaqarjij Mas isso

veremos com mais acuidade mais a frente por hora continuemos a analisar o texto pela

linearidade da narrativa

Pego por esse destino Agamecircmnon lamenta e ainda inconformado chora pois

jamais pensara que em casa aguardava-o a morte Ao contraacuterio apoacutes os dez anos de Guerra

dos combates dos sofrimentos comuns no campo de batalha da vitoacuteria sobre os troianos

sendo ele o comandante o aAtildenac asup1ndrwIacuten deparou-se com o inesperado destino

127

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100033Acard3D810 retirado agraves

1816h em 15 de outubro de 2010 128

(TORRANO 2004 p161)

129

() ἦ ηνη ἔθελ γε

ἀζπάζηνο παίδεζζηλ ἰδὲ δκώεζζηλ ἐκνῖζηλ

νἴθαδ᾽ ἐιεύζεζζαη ()129

(Odisseia XI 430-432)

Na verdade ele dizia

bem-vindo eu esperava ser para os filhos e para os escravos

em minha volta para casa

Na passagem acima podemos perceber dois fatos importantes o primeiro eacute o

conflito entre o plano humano e o divino o segundo eacute o confronto entre o heroacutei eacutepico e o

traacutegico Entre os versos 430 e 432 observamos que Agamecircmnon diante do grande feito em

Troacuteia espera em casa ser glorificado exaltado pelo povo de Argos e saudado pelos filhos e

pela consorte Ou seja o Atrida conta com a gloacuteria mas o que o espera eacute a morte vergonhosa

Esse conflito decorre do fato de termos dois planos incongruentes um feito pelo homem e

outro pelos deuses Neste caso o homem eacute Agamecircmnon planejando ser exaltado no retorno

da guerra e a divindade eacute a Moicurrenra que planeja sua morte indigna para apagar o miasmoj

da famiacutelia Atrida e a sua aumlmartia ao ter matado mesmo por necessidade a proacutepria filha E

neste caso ―haacute uma consciecircncia traacutegica da responsabilidade quando os planos humano e

divino satildeo bastante distintos para se oporem sem que entretanto deixem de parecer

inseparaacuteveis (VERNANT 2008 p 4) Nessa situaccedilatildeo naturalmente o plano divino se opotildee

levando o homem agrave cataacutestrofe Odisseu a tudo ouve atentamente e percebe que nenhum

homem pode medir-se com o plano divino pois apesar da ideacuteia de que ―a presenccedila divina

ilumina o homem e lhe evita o tropeccedilo (OTTO 2005 p253) sabe-se tambeacutem que ―() tudo

procede das matildeos dos deuses inclusive o traacutegico da vida humana (ibidem p 255)

O outro fato importante citado no iniacutecio do paraacutegrafo anterior diz respeito ao

choque de sua proacutepria figura enquanto heroacutei eacutepico tornando-se heroacutei traacutegico Como sabemos

na Iliacuteada (2009) Agamecircmnon teraacute papel fundamental sendo o chefe dos guerreiros e

comandando as decisotildees tanto que o Canto XI da Iliacuteada eacute dedicado a contar seus grandes

feitos eacute a aristia do Atrida E eacute esse personagem que chega em Argos com todo o seu orgulho

e toda a sua gloacuteria mas ao desembarcar ele jaacute natildeo eacute mais o heroacutei eacutepico passando entatildeo

como vemos em Agamecircmon (2004) a representar o heroacutei traacutegico que encontra a morte nas

matildeos da esposa E nesse diaacutelogo com Odisseu Agamecircmnon deixa evidente o conflito que ele

129

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D113Acard3

D404 retirado agraves 1800h em 15 de outubro de 2010

130

proacuteprio sofreu esperando ser tratado como eacutepico Por isso diz que esperava ser bem-recebido

pelos familiares e pelos servos do palaacutecio (XI 430-434)

Contudo na conversa em que Odisseu tem com o Atrida este deixa-nos perceber

seu conflito pois o que ele pensara ser (heroacutei eacutepico) antepotildee-se com o que ele veio a ser um

heroacutei traacutegico no momento em que desembarca em Argos Isso porque apesar de estarmos

estudando uma eacutepica podemos perceber que a configuraccedilatildeo de Agamecircmnon jaacute na Odisseacuteia eacute

a de um heroacutei de destino traacutegico fato esse que posteriormente Eacutesquilo desenvolveu na

trageacutedia E esse conflito que o proacuteprio Atrida nos expotildee ao esperar em casa ser tratado com

as honrarias do heroacutei eacutepico acentua ainda mais a tragicidade desse personagem refletido na

Odisseacuteia Isso porque atraveacutes da conversa com o Laertida o Atrida mostra a transposiccedilatildeo de

como ele se reconhecia eacutepico e passou a ver-se como traacutegico chegando a exclamar ―ὣς

θάνον οἰκηίζηῳ θανάηῳrdquo130 isto eacute ―Assim morri com a morte mais lamentaacutevel (Odisseacuteia

Canto XI v 412)

Apoacutes ter ouvido como o senhor dos heroacuteis morreu pelas matildeos da esposa e do

amante Odisseu apieda-se e mostra perceber a accedilatildeo do daimacrmwn no destino de Agamecircmnon

por isso fala que Zeus natildeo destinou coisas boas para os Atridas pois Menelau tinha uma

esposa Helena culpada pela morte de muitos homens em Troacuteia e ele tinha Cliptemenstra

que veio ocasionar sua proacutepria morte (Odisseia XI 436-439)

Essa percepccedilatildeo que Odisseu tem da accedilatildeo dos superiores no destino de

Agamecircmnon eacute uma habilidade que em muitos momentos ele nos mostra Tanto que ao

decorrer do toacutepico anterior vimos que ele sempre percebia quando o daimacrmwn agia sobre ele e

seus companheiros Entatildeo assim tambeacutem ele faz com o Atrida exemplificando a accedilatildeo do

daimacrmwn atraveacutes dos feitos de Helena e Clitmenestra Observemos que essa accedilatildeo do divino

pode levar o homem ao traacutegico ou agrave ventura No caso de Agamecircmnon leva-o ao destino

traacutegico no caso de Odisseu como foi visto no toacutepico anterior leva-o agraves situaccedilotildees traacutegicas E

o seu destino soacute natildeo eacute traacutegico por causa da accedilatildeo divina especificamente pela proteccedilatildeo de

Atena E isso o heroacutei de Iacutetaca tambeacutem observa Assim ao desembarcar em sua cidade e ser

avisado pela deusa do perigo dos pretendentes ele diz que se natildeo fosse pelos avisos de

Atena ele teria em casa o destino funesto assim como Agamecircmnon (XIII 383-386)

Na continuidade do diaacutelogo entre Odisseu e Agamecircmnon este pergunta sobre

notiacutecias do filho O esposo de Peneacutelope diz natildeo saber E insistentemente o Atrida repete para

130

Texto disponiacutevel em httpwwwhs-

augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_od11html agraves 1533hs ded 12 de julho de

2010

131

que Odisseu natildeo confie na esposa e tenha cuidado ao retornar pois um grande mal pode estar

aguardando-o E ficam conversando e chorando um por seu destino traacutegico e o outro pelas

situaccedilotildees traacutegicas que ateacute entatildeo vinha sofrendo

A dor manifestada por ambos eacute fruto do enlace traacutegico em que se assemelham um

no destino o outro nas circunstacircncias da vida E assim percebemos a presenccedila do traacutegico na

vida desses personagens Contudo para Odisseu este contato reserva-lhe natildeo apenas o

protagonismo do traacutegico como analisamos no toacutepico anterior mas tambeacutem a experiecircncia do

traacutegico como espectador Pois apesar de o fato natildeo ocorrer aos seus olhos a descriccedilatildeo

detalhada dos fatos torna possiacutevel a visualizaccedilatildeo de todo o ocorrido Aleacutem do mais jaacute nos diz

Aristoacuteteles

ηλ δὲ ινηπλ ἡ κεινπνηία κέγηζηνλ ηλ ἡδπζκάησλ ἡ δὲ ὄςηο

ςπραγσγηθὸλ κέλ ἀηερλόηαηνλ δὲ θαὶ ἥθηζηα νἰθεῖνλ ηῆο πνηεηηθῆο ἡ γὰξ

ηῆο ηξαγῳδίαο δύλακηο θαὶ ἄλεπ ἀγλνο θαὶ ὑπνθξηηλ ἔζηηλ ()131

(Poeacutetica

VI 1450b 18-20)

Assim mesmo sem atores e sem encenaccedilatildeo a trageacutedia por si proacutepria eacute

convincente aleacutem do mais para a montagem mais importante satildeo os

inteacuterpretes do que os poetas

Assim como espectador do traacutegico cantado satildeo suscitados em Odisseu tanto a

esup1leoj como jaacute explicamos assim tambeacutem como o fomacrboj levando-o agrave kaqarsij Para

que compreendamos tal afirmaccedilatildeo assim como fizemos para entender a esup1leoj recorramos

tambeacutem agrave Retoacuterica das Paixotildees para entendermos o fomacrboj Em nosso estudo da Poeacutetica no

segundo capiacutetulo vimos que Aristoacuteteles afirma que o sentimento de temor eacute gerado para com

nosso semelhante (Poeacutetica XIII 1453a 5-6) Entatildeo para que esse sentimento seja melhor

compreendido buscamos na Retoacuterica das Paixotildees um maior esclarecimento sobre o fomacrboj

o que ele significa como ele eacute suscitado enfim Assim Aristoacuteteles (2003) define o fomacrboj

ἔζησ δὴ ὁ θόβνο ιύπε ηηο ἢ ηαξαρὴ ἐθ θαληαζίαο κέιινληνο θαθνῦ

θζαξηηθνῦ ἢ ιππεξνῦ νὐ γὰξ πάληα ηὰ θαθὰ θνβνῦληαη νἷνλ εἰ ἔζηαη

ἄδηθνο ἢ βξαδύο ἀιι᾽ ὅζα ιύπαο κεγάιαο ἢ θζνξὰο δύλαηαη θαὶ ηαῦηα ἐὰλ

κὴ πόξξσ ἀιιὰ ζύλεγγπο θαίλεηαη ὥζηε κέιιεηλ132

(Retoacuterica das Paixotildees II 5 21-25)

131

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100553Asection3D1450b

retirado agraves 0900h em 18 de outubro de 2010 132

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100593Abook3D23Achapter

3D53Asection3D1 retirado agraves 2012h em 15 de outubro de 2010

132

Seja entatildeo o temor certo desgosto ou preocupaccedilatildeo resultantes da suposiccedilatildeo

de um mal iminente ou danoso ou penoso pois natildeo se temem todos os

males por exemplo o de que algueacutem injusto ou de espiacuterito obtuso mas sim

aqueles males que podem provocar grandes desgostos ou danos e isso

quando natildeo se mostram distantes mas proacuteximos e iminentes133

(ARISTOacuteTELES 2003 p31)

Pela definiccedilatildeo observamos que o fomacrboj eacute suscitado por um mal que

injustamente acarreta danos graves a uma pessoa e aleacutem do mais aparece na iminecircncia de

ocorrer tambeacutem para outrem - assim este veraacute em si surgir o fomacrboj Aristoacuteteles (2003)

completa ainda que satildeo temiacuteveis os danos sem soluccedilatildeo gerados por forccedila superior e que soacute

tememos por aquilo que tambeacutem podemos vir a sofrer Aleacutem disso o temor surge quando o

ouvinte presencia o sofrimento de algueacutem mais forte superior ou semelhante a ele Explica-

nos Aristoacuteteles

ὥζηε δεῖ ηνηνύηνπο παξαζθεπάδεηλ ὅηαλ ᾖ βέιηηνλ ηὸ θνβεῖζζαη αὐηνύο ὅηη

ηνηνῦηνί εἰζηλ νἷνλ παζεῖλ (θαὶ γὰξ ἄιινη κείδνπο ἔπαζνλ) θαὶ ηνὺο

ηνηνύηνπο δεηθλύλαη πάζρνληαο ἢ πεπνλζόηαο θαὶ ὑπὸ ηνηνύησλ ὑθ᾽ ὧλ νὐθ

ᾤνλην θαὶ ηαῦηα ltἃgt θαὶ ηόηε ὅηε νὐθ ᾤνλην (Retoacuterica das Paixotildees II 5

8-12)

Assim quando eacute melhor que os ouvintes sintam temor eacute preciso pocirc-los nessa

disposiccedilatildeo de espiacuterito dizendo-lhes que podem sofrer algum mal pois

outros mais fortes que eles sofreram e mostrar-lhes que pessoas como eles

sofrem ou sofreram por parte de que natildeo imaginavam essas provaccedilotildees e em

circunstacircncias que natildeo esperavam (p 35)

Diante das definiccedilotildees e explicaccedilotildees acima podemos sugerir entatildeo que o fomacrboj eacute

suscitado em Odisseu atraveacutes do canto de Agamecircmnon tendo em vista que o Laertida eacute

colocado a defrontar-se com um grande mal imerecido injusto que ao mesmo tempo

aparece-lhe iminente jaacute que ele pode vir a passar pelo mesmo quando voltar a Iacutetaca Aleacutem

disso esse mal eacute sofrido por um superior que padeceu de um mal inesperado Assim

constatamos que Odisseu aleacutem de ser inspirado pela compaixatildeo (esup1leoj) tambeacutem o eacute pelo

temor (fomacrboj) podendo desta forma chegar agrave kaqarsij dos seus sofrimentos (Poeacutetica VI

1449b 24-28)

No Canto XI da Odisseacuteia por meio do diaacutelogo de Odisseu e Agamecircmnon no

Hades percebemos o traacutegico circundar a vida dos dois personagens O primeiro visualiza

como um espectador traacutegico a dolorosa e indigna morte do Atrida atraveacutes de sua narraccedilatildeo

133

(Trad FONSECA 2003 P31)

133

Essa visualizaccedilatildeo do traacutegico permite que em Odisseu sejam suscitados o fomacrboj e a esup1leoj

que o levam agrave kaqarsij ou seja a purificaccedilatildeopurgaccedilatildeo de todos seus padecimentos Jaacute em

relaccedilatildeo a Agamecircmnon percebemos atraveacutes da narraccedilatildeo que ele mesmo faz de sua morte que

ele natildeo eacute mais um heroacutei eacutepico como jaacute fora na Iliacuteada (2009) e sim bem mais proacuteximo do

heroacutei traacutegico atraveacutes do qual Eacutesquilo (2004) desenvolveu na trageacutedia Heroacutei esse envolto com

os elementos mais comuns de tragicidade o imerecido injusto aumlmartia a uAacutebrij a accedilatildeo

do daimacrmwn fazendo surgir a esup1leoj e o fomacrboj para desencadear na kaqarsij

No transcorrer da conversa lamuriosa entre Odisseu e o Atrida aparece o

eiAtildedwlon de Aquiles O Pelida questiona ao filho de Laertes o porquecirc dessa nova empreitada

e principalmente porque teve que ser logo no Hades local dos mortos sem consciecircncia em

que haacute apenas os simulacros dos homens que um dia viveram (XI 467-472) Jaacute podemos

perceber por essa fala de Aquiles a condiccedilatildeo miseraacutevel das sombras no Hades em que a

inconsciecircncia supera todas as gloacuterias que tiveram em vida O Laertida responde ao Pelida que

desde que saiu de Troacuteia natildeo retornou agrave paacutetria ao contraacuterio sofre a vagar pelas terras e que

sua visita ao Hades foi para consultar Tireacutesias para que este pudesse orientar-lhe sobre o

retorno para casa Odisseu depois de ter visto a lamentaacutevel situaccedilatildeo de Agamecircmnon espera

enfim ver que pelo menos o Pelida encontra-se glorificado apoacutes a morte por isso exclama

νὐ γάξ πσ ζρεδὸλ ἦιζνλ Ἀραηΐδνο νὐδέ πσ ἁκῆο

γῆο ἐπέβελ ἀιι᾽ αἰὲλ ἔρσ θαθά ζεῖν δ᾽ Ἀρηιιεῦ

νὔ ηηο ἀλὴξ πξνπάξνηζε καθάξηαηνο νὔη᾽ ἄξ᾽ ὀπίζζσ

πξὶλ κὲλ γάξ ζε δσὸλ ἐηίνκελ ἶζα ζενῖζηλ

Ἀξγεῖνη λῦλ αὖηε κέγα θξαηέεηο λεθύεζζηλ

ἐλζάδ᾽ ἐώλ ηῶ κή ηη ζαλὼλ ἀθαρίδεπ Ἀρηιιεῦlsquo134

(Odisseacuteia XI 481-486)

Pois ateacute esse momento nunca fui proacuteximo dos Acaios nem ainda

pus o peacute em nossa terra e sempre tenho enfrentado coisas maacutes

Contudo nenhum guerreiro Aquiles eacute mais abenccediloado do que tudo no

passado e no futuro]

Antes quando eras vivo eu e os Argivos honravamo-te tanto quanto aos

deuses]

agora aqui entre os mortos exerces grande poder

Assim sendo natildeo sofra por ter morrido Aquiles

Aquiles o maior e mais temido heroacutei grego na guerra de Troacuteia desceu ao Hades

com o destino que ele mesmo escolhera viver pouco mas ser honrado e glorificado em

134

Texto disponeacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D113Acard3

D440 retirado agraves 1828h em 15 de outubro de 2010

134

campo de batalha135

Eacute por isso que no Canto I da Iliacuteada (2009) ao ter perdido Briseida seu

precircmio de guerra (geraj) ele pede agrave matildee que cobre de Zeus a sua honra a timh pois jaacute que

morreraacute jovem ao menos que tenha uma curta existecircncia poreacutem gloriosa Vejamos o que ele

dissera a sua matildee cobrando a vida curta mas honrada

κῆηεξ ἐπεί κ᾽ ἔηεθέο γε κηλπλζάδηόλ πεξ ἐόληα

τιμήν πέξ κνη ὄθειιελ ιύκπηνο ἐγγπαιίμαη

Ζεὺο ὑςηβξεκέηεο λῦλ δ᾽ νὐδέ κε ηπηζὸλ ἔηηζελ (Iliacuteada I 353-355)

Matildee como me geraste de curta existecircncia

seria justo o Oliacutempio Zeus a minha honra fazer aumentar

aquele que ressoa do alto ceacuteu

O discurso de Odisseu ao encontrar o Pelida mostra que seu desejo foi cumprido

uma existecircncia curta poreacutem gloriosa tanto que o filho de Laertes reforccedila que enquanto

esteve vivo foi honrado como um deus (XI 483) Como vemos Aquiles teve todas as

honrarias em vida sendo inclusive comparado a uma figura divina Assim jaacute que Zeus

concedeu-lhe o destino cobrado (ver Canto I da Iliacuteada) entatildeo eacute de se imaginar que agora

morto Aquiles continua feliz ateacute mesmo porque realiza domiacutenio sobre os mortos Esta razatildeo

faz com que Odisseu entenda que de nada poderia o Pelida se queixar (XI 485-486) Odisseu

apoacutes tanto ter sofrido ao ouvir a desonrosa morte que teve o seu comandante Agamecircmnon

imagina que enfim veraacute um de seus heroacuteicos companheiros satisfeito com a vida e com o

poacutes-morte que teve Vimos que na conversa com o Atrida ele se encheu de esup1leoj e fomacrboj

mas agora com o Pelida pensa ser diferente atenuando todo o seu temor ao ver que um de

seus companheiros tivera a vida e o destino que almejara que eacute desejo de todo o heroacutei ter

gloacuteria e honra tanto em vida quanto em morte Contudo mais uma vez sua expectativa seraacute

desconstruiacuteda e Aquiles responde-lhe

―ὣο ἐθάκελ ὁ δέ κ᾽ αὐηίθ᾽ ἀκεηβόκελνο πξνζέεηπε

κὴ δή κνη ζάλαηόλ γε παξαύδα θαίδηκ᾽ δπζζεῦ

βνπινίκελ136

θ᾽ ἐπάξνπξνο ἐὼλ ζεηεπέκελ ἄιιῳ

135

No primeiro capiacutetulo do nosso trabalho fizemos uma explanaccedilatildeo sobre o destino de Aquiles e a sua escolha

fato que estaacute narrado no Canto I da Iliacuteada (2009) 136

Atraveacutes dos optativos bouloimhn deboulomai ndash desejar preferir e eiAtildeh- infinitivo optativo de eiAcircmi-ser

exprime-se o desejo de Aquiles pois ele bem sabe que natildeo pode ser mais realizado pois seu destino jaacute foi

selado

135

ἀλδξὶ παξ᾽ ἀθιήξῳ ᾧ κὴ βίνηνο πνιὺο εἴε

ἢ πᾶζηλ λεθύεζζη θαηαθζηκέλνηζηλ ἀλάζζεηλ137

(Odisseacuteia XI 487-491)

Desse modo dizia ele imediatamente mudando falou

Natildeo me convenccedila da morte ilustre Odisseu

Pois eu preferiria viver sendo trabalhador de campo para um

Homem ateacute mesmo sem recursos se bem vivo eu estivisse

a ser rei de todos estes cadaacuteveres dos que morreram

Aquiles como mostra a passagem acima mostra-se arrependido da escolha que

fizera em ter uma vida guerreira curta ao inveacutes de uma vida longa e comum Esse discurso

potildee em questatildeo o valor da vida guerreira e toda a sua nobreza por isso Platatildeo considera

perigosas passagens como essas elaboradas por Homero (Repuacuteblica III ndash 386c-d) O Pelida

ao levantar o arrependimento da vida guerreira que tivera potildee em questatildeo os maiores valores

para o mundo grego E essa tomada de decisatildeo que eleva o homem mais tarde ao

arrependimento aflige-no e torna-o um sujeito traacutegico viacutetima de sua proacutepria escolha Por

isso diz-nos Vernant (2008) em Mito e trageacutedia na Greacutecia Antiga que o fato traacutegico

relaciona-se a deliberar tomar decisatildeo vindo desta sua proacutepria escolha todo seu mal daiacute o

fato traacutegico Isso tambeacutem nos lembra a exposiccedilatildeo no capiacutetulo anterior de Romilly (2008) em

A trageacutedia Grega de que o traacutegico implica uma accedilatildeo e esta seja boa ou maacute iraacute sempre trazer

ao heroacutei graves consequecircncias Em decorrecircncia disso a autora acredita na existecircncia de uma

inocecircncia do personagem traacutegico assegurando mesmo apoacutes a cataacutestrofe o seu heroiacutesmo

Aflito por sua proacutepria escolha e viacutetima inocente de sua proacutepria accedilatildeo o Aquiles

com o qual Odisseu depara-se no Hades natildeo eacute mais o heroacutei eacutepico honrado e glorificado

como um deus ele eacute agora se assemelha a um heroacutei traacutegico Naquele instante o Laertida

enxerga em Aquiles o arrependimento comum aos heroacuteis traacutegicos ―βοσλοίμην κ᾽ ἐπάροσρος

ἐὼν θηηεσέμενrdquo (Odisseacuteia Canto XI 489) ou seja ―pois eu preferiria viver sendo

trabalhador do campo mas para o qual natildeo haacute mais soluccedilatildeo pois o destino jaacute foi selado

Sandra Luna (2005) afirma-nos que no Hades Aquiles ―potildee em questatildeo os

valores mais aclamados entre os gregos a honra a nobreza e a riqueza (LUNA 2005 p

182) Valores estes que naturalmente tambeacutem aclamados por Odisseu fazem-no conflitar-se

natildeo apenas em ver Aquiles infeliz mas por vecirc-lo desprezar os valores que distinguem a honra

do guerreiro pela qual ele tanto lutou em Troacuteia Diante do espetaacuteculo inesperado Odisseu vecirc

137

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D113Acard3

D486 retirado agraves 1924h em 16 de novembro de 2010

136

o maior heroacutei grego em Troacuteia preferindo ser um simples trabalhador do campo E esse destino

injusto e imerecido para um heroacutei tatildeo valoroso e distinto faz Odisseu apiedar-se para com seu

semelhante ao mesmo tempo em que tambeacutem sente temor de vir a ter a mesma trajetoacuteria

Todo esse cenaacuterio suscita-lhe o fomacrboj e a esup1leoj sentimentos responsaacuteveis por

proporcionar-lhe a kaqarsij

A respeito de todo esse ―espetaacuteculocenaacuterio traacutegico realizado perante os olhos de

Odisseu queremos esclarecer que estruturalmente haacute dois fatos que permitem-nos essa

interpretaccedilatildeo no Canto XI O primeiro deles eacute a riqueza de detalhes como ilustramos no caso

do diaacutelogo de Odisseu com Agamecircmnon Detalhes esses utilizados como recurso na epopeacuteia

homeacuterica que tambeacutem influenciaram as trageacutedias Ateacute porque sabemos que nas encenaccedilotildees

das trageacutedias gregas as mortes natildeo eram realizadas na frente do puacuteblico cabendo aos

espectadores saber da ocorrecircncia das mortes por outros meios a exemplo da fala do coro Daiacute

a necessidade de detalhes para proporcionar ao puacuteblico o entendimento da accedilatildeo traacutegica

Mas aleacutem dessa riqueza de detalhes para presentificaccedilatildeo da cena narrada temos

no Canto XI outro elemento fundamental para representaccedilatildeo dramaacutetica e que foi alicerce para

as trageacutedias gregas os diaacutelogos Podemos observar que a estrutura do Canto XI eacute baseada nos

diaacutelogos que Odisseu teraacute com as sombras de sua matildee Agamecircmnon Aquiles Aacutejax enfim

Sobre o diaacutelogo Anatol Rosenfeld (1985) em A teoria dos gecircneros diz-nos que eacute atraveacutes

dele que a accedilatildeo dramaacutetica eacute manifestada aleacutem de ser o responsaacutevel por levar a accedilatildeo dramaacutetica

ao conflito Este que por sua vez eacute base para o traacutegico pois o protagonista deve estar em

conflito com algo seja consigo mesmo com os outros ou com o seu destino A necessidade

do conflito para a accedilatildeo traacutegica pode ser ilustrada nos diaacutelogos acima pois como vimos

Agamecircmnon conflitua-se com o destino imposto pelos deuses a morte indigna pelas matildeos da

esposa e Aquiles estaacute em conflito com a decisatildeo de destino que ele proacuteprio fez morrer jovem

em campo de batalha mas que agora preferia viver como ―ἐπάροσρος θηηεσέμενrdquo (XI 489)

ou seja um trabalhador do campo E para aleacutem desses importantes elementos numa

construccedilatildeo dramaacutetica mesmo que esteja sendo analisada sua presenccedila numa eacutepica Aristoacuteteles

diz-nos que o fomacrboj e a esup1leoj podem ser suscitados natildeo soacute atraveacutes da encenaccedilatildeo teatral

Vejamos o porquecirc

δεῖ γὰξ θαὶ ἄλεπ ηνῦ ὁξᾶλ νὕησ ζπλεζηάλαη ηὸλ κῦζνλ ὥζηε ηὸλ [5]

ἀθνύνληα ηὰ πξάγκαηα γηλόκελα θαὶ θξίηηεηλ θαὶ ἐιεεῖλ ἐθ ηλ

137

ζπκβαηλόλησλ ἅπεξ ἂλ πάζνη ηηο ἀθνύσλ ηὸλ ηνῦ Οἰδίπνπ κῦζνλ138

(Poeacutetica XIV 1453b 4-7)

Pois eacute preciso que tendo o mito manifestado-se os ouvintes mesmo sem ver

os trabalhos venham a arrepiar-se e apiedar-se dos acontecimentos eacute o que

sofreria algueacutem ouvindo o mito de Eacutedipo

Assim Odisseu ao presenciar os fatos traacutegicos na vida de seus companheiros se

apieda como tambeacutem sente temor E apoacutes ter-lhe revelado ser infeliz mesmo reinando sobre

os mortos Aquiles diz ser melhor saber notiacutecias do filho e do pai a ficar falando desses

assuntos O Pelida pergunta se o filho Neoptoacutelemo nas batalhas fica agrave frente ou atraacutes e se o

pai Peleu vive ainda honrado junto aos Mirmidotildees Odisseu diz natildeo poder dar notiacutecias de

Peleu mas sobre Neoptoacutelemo diz que o conduziu e que nas assembleacuteias era o primeiro a

falar sempre de modo adequado No discurso soacute perdia para Nestor e Odisseu mas nas

batalhas a todos vencia saindo de Troacuteia sem nenhum ferimento Aquiles alegra-se contudo

o cenaacuterio traacutegico natildeo eacute atenuado apesar da alegria momentacircnea de Aquiles pois ao seu redor

o quadro eacute destoante

αἱ δ᾽ ἄιιαη ςπραὶ λεθύσλ θαηαηεζλεώησλ

ἕζηαζαλ ἀρλύκελαη εἴξνλην δὲ θήδε᾽ ἑθάζηε139

(Odisseacuteia XI 541-542)

Mas as outras sombras dos que foram pegos para baixar a morte

tristes mantiveram-se a narrarem sua infelicidade

Discutimos no segundo capiacutetulo agrave luz de Sandra Luna (2005) que Homero

dissolve as cenas traacutegicas presentes em suas epopeacuteias exemplificando inclusive os

momentos dessa diluiccedilatildeo do traacutegico Contudo atraveacutes do que estamos analisando no Canto XI

da Odisseacuteia percebemos que as cenas traacutegicas satildeo sobrepostas sem atenuante Assim o

Laertida dialoga com Agamecircmnon depois com Aquiles e em cada um desses diaacutelogos

depara-se com a manifestaccedilatildeo do sentimento traacutegico E no fim do diaacutelogo com o Pelida ao

vermos este ter um instante de alegria logo pensamos que haveria uma dissolviccedilatildeo do traacutegico

mas ao contraacuterio a alegria momentacircnea do Pelida contrasta com o quadro de dor e

sofrimento de muitas almas tristes narrando umas para as outras seus proacuteprios infortuacutenios

138

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100553Asection3D1453b

retirado agraves 2035h em 02 de dezembro de 2010 139

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D113Acard3

D538 retirado agraves 2052h em 02 de dezembro de 2010

138

Isso nos mostra a presenccedila marcante da tragicidade no canto XI da Odisseacuteia e que natildeo eacute

dissolvida por atenuantes como banquetes confraternizaccedilotildees soluccedilotildees para o conflito cortes

de cena enfim Recursos atenuantes estes que vimos serem comuns na eacutepica homeacuterica e

inclusive ao longo da proacutepria Odisseacuteia como analisamos no toacutepico primeiro deste capiacutetulo O

que observamos ao lonho dos diaacutelogo eacute o traacutegico mediado em que Odisseu eacute o espectador

Odisseu na continuidade da narrativa ao ter-se deparado com a cena das almas

tristes a lamentarem seu destino observa Aacutejax afastado das outras almas Este aparenta ainda

estar inconformado com a disputa pelas armas de Aquiles da qual foram juiacutezes os filhos dos

troianos e a deusa Palas Atena Contudo Aacutejax natildeo consegue ver que a accedilatildeo do daimacrmwn foi

responsaacutevel por esta decisatildeo por isso ainda alimenta raiva de Odisseu fazendo com que este

imerecidamente sinta-se culpado pelo seu mal Assim o filho de Laertes exclama que

desejaria nunca ter ganho a disputa pelas armas de Aquiles jaacute que essa decisatildeo fez com que

Aacutejax o mais valoroso dos gregos depois de Aquiles viesse a morrer tragicamente (Odisseacuteia

XI 548-551)

Contudo o ressentimento era tatildeo grande para com Odisseu que o Telemocircnio natildeo

percebia que a forccedila superior fizera-o padecer E segundo Walter Friedrich Otto em

Teofania o reconhecimento de que uma forccedila maior levou-o ao traacutegico acaba por enobrececirc-

lo pois ―Por mais que o homem perceba ter cometido um erro e por graves que sejam para si

as consequecircncias isso natildeo o rebaixa enquanto ele reconhece estar nas matildeos da divindade

(OTTO 2006 p 80) Mas Aacutejax natildeo percebe a accedilatildeo do daimacrmwn ao contraacuterio responsabiliza

Odisseu que injustamente sofre a culpa da morte de um antigo e valoroso companheiro Natildeo

bastasse ter sido posto como responsaacutevel pela morte da matildee e pelos sofrimentos de seus

familiares o Laertida tem que carregar o traacutegico fardo do suiciacutedio de Aacutejax

O peso dessa imerecida culpa faz Odisseu lamentar-se por ter ficado com as armas

de Aquiles Entendamos a gravidade do desejo de Odisseu de natildeo ter sido contemplado com

as armas pois a disputa das armas do heroacutei que morria mostrava a distinccedilatildeo do heroacutei que as

herdava daiacute a inconformidade de Aacutejax Imaginemos entatildeo o valor das armas de Aquiles

que naturalmente simbolizaria para o seu herdeiro todo o prestiacutegio do maior heroacutei grego que

combateu em Troacuteia Desse modo as armas de Aquiles muito significavam Por obra divina

elas ficaram com Odisseu aiacute este encontra a grande queixa de Aacutejax Pois como era

considerado o maior depois de Aquiles considerava que ele deveria ser o detentor das armas

do Pelida Mas natildeo eacute o que ocorre Diante do sofrer do companheiro no Hades Odisseu

139

amargura-se desejando inclusive nunca ter ficado com aquelas armas apesar de todo o valor

delas

Ao natildeo reconhecer o desejo divino voltando toda a sua raiva para Odisseu Aacutejax

acaba sendo rebaixado ainda mais por natildeo ter como diz-nos Otto (2006) o ―reconhecimento

do erro que eacute enobrecido pela consciecircncia do divino e isso lhe preserva a grandeza de alma

() (Ibidem) Sem a consciecircncia da accedilatildeo divina Aacutejax culpa Odisseu por todo o seu mal

Sabemos que a partir dessa cena Soacutefocles inspira-se para composiccedilatildeo da peccedila Aacutejax em que

se narra a morte deste Morte esta que ele mesmo efetuou na busca de preservar ainda alguma

gloacuteria depois de ter matado animais pensando que matara os guerreiros gregos como

Agamecircmnon Menelau Odisseu Essa loucura como vemos na peccedila foi-lhe imposta para sua

cataacutestrofe por Atena a fim de proteger os demais de todo o seu oacutedio Mas Aacutejax natildeo se

convence por isso a peccedila iraacute refletir tambeacutem como jaacute o vemos neste Canto XI essa

responsabilidade dada por Aacutejax a Odisseu acusando este como culpado do seu mal140

Assim

culpado imerecidamente o filho de Laertes observa-se como aquele heroacutei traacutegico explicitado

por Vernant (2008) em Mito e Trageacutedia na Greacutecia Antiga que traz o mal natildeo soacute para si

como tambeacutem para os outros

Surpreendido pelo fato de Aacutejax ter-lhe rancor mesmo ali no Hades entre os

mortos Odisseu continua a falar ao Telamocircnio que as armas pelos deuses tornaram-se

malditas por isso que por elas veio a padecer o baluarte dos Aqueus Diz ainda que assim

como sofreram pela morte do Pelida sentiram tambeacutem profundamente a sua morte E mais

uma vez Odisseu tenta fazer com que Aacutejax reconheccedila a accedilatildeo divina e enobrecido por esse

reconhecimento venha a abrandar o coraccedilatildeo Vejamos

αἴηηνο ἀιιὰ Ζεὺο Δαλαλ ζηξαηὸλ αἰρκεηάσλ

ἐθπάγισο ἤρζεξε ηεῒλ δ᾽ ἐπὶ κνῖξαλ ἔζεθελ

ἀιι᾽ ἄγε δεῦξν ἄλαμ ἵλ᾽ ἔπνο θαὶ κῦζνλ ἀθνύζῃο

ἡκέηεξνλ δάκαζνλ δὲ κέλνο θαὶ ἀγήλνξα ζπκόλlsquo

140

Na Odisseacuteia Aacutejax natildeo reconhece ter sofrido pela accedilatildeo divina tanto que Odisseu enfatizaraacute isso vaacuterias vezes

para que ele natildeo lhe tenha oacutedio jaacute que ambos seja para o bem seja para o mal foram viacutetimas do desejo divino

Contudo por termos a leitura da peccedila sabemos que Aacutejax iraacute responsabilizar tanto Odisseu acusando-o de ser o

mais canalha do exeacutercito como tambeacutem a deusa Vejamos o momento em que ele reconhecendo que caiacutera no

traacutegico percebe a accedilatildeo de Atena

ἀιιά κ᾽ ἁ Δηὸο ἀιθίκα ζεὸο ὀιέζξη᾽ αἰθίδεη

140

(Aacutejax 394-403)

Todavia a filha de Zeus

o poderoso deus

atormenta-me para destruiccedilatildeo

140

―ὣο ἐθάκελ ὁ δέ κ᾽ νὐδὲλ ἀκείβεην βῆ δὲ κεη᾽ ἄιιαο

ςπρὰο εἰο Ἔξεβνο λεθύσλ θαηαηεζλεώησλ141

(Odisseacuteia XI 559-564)

Todavia a culpa eacute de Zeus que terrivelmente odiou o exeacutercito

dos guerreiros Dacircnaos ele te colocou o destino funesto

Poreacutem conduzi-te para aqui heroacutei para que possas ouvir a

minha palavra e a minha histoacuteria domina a ira do teu valoroso coraccedilatildeo

Assim eu falava ele nada respondia e caminhou com as outras

almas que haviam morrido para o Eacuterebo

Como percebemos apesar de todas as tentativas de Odisseu de abrandar o rancor

de Aacutejax tudo eacute em vatildeo e este parte sem nada dizer-lhe desprezando o astuto guerreiro Para

entendermos essa reaccedilatildeo de desprezo de Aacutejax para com Odisseu recorremos a Aristoacuteteles

(2003) em Retoacuterica das Paixotildees Para o filoacutesofo o sentimento de desprezo ―() eacute a

atualizaccedilatildeo de uma opiniatildeo acerca do que natildeo parece digno de consideraccedilatildeo () e diz ainda

que ―trecircs satildeo as espeacutecies de desprezo o desdeacutem a difamaccedilatildeo e o ultraje (ARISTOacuteTELES

2003 p7) Assim Aacutejax mostra desprezar Odisseu negando-lhe inclusive a palavra

mostrando-se indiferente para com toda a tentativa de Odisseu de reaproximaccedilatildeo E se

―desprezamos o que natildeo tem valor algum (Ibidem p9) Aacutejax natildeo apenas culpa Odisseu por

todo seu mal como tambeacutem o desdenha e desmerece todo seu valor Desse modo vemos que

o Telemocircnio desconsidera os combates em que juntos trouxeram a gloacuteria para os gregos

como tambeacutem a accedilatildeo conjunta nas empreitadas a exemplo da que os dois fizeram ao lado de

Fenice para convencer Aquiles a voltar a lutar com os gregos (Iliacuteada IX 167-169)

Culpado pela humilhaccedilatildeo e pelo fim da vida de seu companheiro e aleacutem do mais

desprezado por ele mesmo no Hades em que o seu destino jaacute fora selado Odisseu aproxima-

se da representaccedilatildeo do heroacutei traacutegico sem a gloacuteria e sem a honra consagrada ao heroacutei eacutepico

Como todo heroacutei traacutegico o filho de Laertes carrega a culpa pelo seu mal e pelo mal dos

outros mesmo quando foram os deuses que assim determinaram mesmo quando a

necessidade impelia-o a agir mesmo quando tentava agir bem Traacutegico tambeacutem eacute para

Odisseu observar que nem no Hades Aacutejax pocircde ficar bem livrando-se do mal que cercara

sua morte Ao contraacuterio natildeo bastasse o destino traacutegico que os deuses lhe reservaram ele

levou consigo para o Hades todo o rancor e o oacutedio pelo mal que lhe fizeram natildeo podendo

assim ficar em paz e gozar dos gloriosos feitos que fizera em vida Como vemos no Hades

toda a gloacuteria eacute esquecida as conquistas no campo de batalha as honrarias comuns ao heroacutei

141

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httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D113Acard3

D538 retirado agraves 2214h em 02 de dezembro de 2010

141

eacutepico satildeo apagadas Em vez da honra Odisseu vecirc que para Aacutejax natildeo haacute gloacuteria nem

consagraccedilatildeo eacutepica mas apenas a amargura e o ressentimento do heroacutei traacutegico na escuridatildeo do

Hades

Apoacutes a saiacuteda de Aacutejax Odisseu deseja ver outros mortos Entatildeo vecirc primeiro

Minos o filho de Zeus a distribuir a justiccedila depois vecirc Oriatildeo cercado por feras Tiacutecio tendo

seu fiacutegado devorado por dois abutres Tacircntalo castigado com sede e com fome diante de lago

cheio de aacutegua que seca quando ele vai beber e quando quer comer as frutas satildeo levadas pelo

vento no momento em que ele vai pegaacute-las das aacutervores vecirc Siacutesifo que carrega uma enorme

pedra que cai quando ele alcanccedila o topo do penhasco depois Odisseu vecirc a sombra de

Heacuteracles

O filho de Zeus reconhece-o e fala-lhe entre gemidos dos grandes trabalhos que

enfrentou Chega a associar os seus trabalhos com a nova empreitada de Odisseu (XI 618-

619) pois Heacuteracles teve que natildeo apenas ir ao Hades mas pegar o catildeo e depois devolvecirc-lo

tarefa que fez com ajuda de Atena e Hermes Esse encontro eacute importante pois serve de

imagem alegoacuterica para Odisseu do destino no qual deve espelhar-se O contato que tivera com

seus companheiros em Troacuteia foi suficiente para ele observar que eles natildeo satildeo mais modelos de

vida como eram quando heroacuteis eacutepicos Figurados neste Canto XI como heroacuteis traacutegicos

Odisseu natildeo pode espelhar-se em seus destinos muito menos dos castigados (Tacircntalo Siacutesifo

etc) Deve entatildeo ter Heacuteracles como o protoacutetipo heroacuteico daquele que apesar dos muitos

trabalhos e das vivecircncias traacutegicas veio alcanccedilar no fim da vida a gloacuteria eterna e

recompensado pelos sofrimentos foi morar ao lado dos deuses no Olimpo Depois Heacuteracles

parte

Odisseu permanece ateacute que muitas almas aparecem em tumulto fazendo com que

ele se sinta tomado pelo medo (XI 633) amedrontado de que Perseacutefone enviasse-lhe a cabeccedila

de Goacutergona Impelido pelo fomacrboj no imediato instante Odisseu sobe agrave nau e exorta os

soacutecios a embarcarem para que pudessem logo partir E assim o fazem terminando o Canto

XI

Como pudemos ver ao longo de nossa anaacutelise do Canto XI da Odisseacuteia muitos

satildeo os seus momentos de tragicidade justificando a nossa escolha desse Canto para a anaacutelise

central deste trabalho dissertativo Assim pudemos analisar a configuraccedilatildeo traacutegica do heroacutei

observada a partir de Agamecircmnon Aquiles e Aacutejax E reforccedilando a forte presenccedila traacutegica

contida nesse Canto viemos ter alguns seacuteculos apoacutes a produccedilatildeo dessa epopeacuteia a peccedila

Agamecircmnon primeiro livro da Oresteacuteia de Eacutesquilo como tambeacutem Aacutejax de Soacutefocles A

142

primeira baseada na traacutegica morte do Atrida e em suas graves consequecircncias e a segunda

sobre o suiciacutedio de Aacutejax Ambos os fatos jaacute prenunciados e tragicamente desenvolvidos no

Canto XI da Odisseacuteia

Isso ocorre porque mesmo o heroacutei eacutepico estaacute facilmente propenso agrave uAacutebrij jaacute que

ele ―estaacute sempre numa situaccedilatildeo limite e a areteacute a excelecircncia leva-o facilmente a transgredir

os limites impostos pelo meacutetron suscitando-lhe o orgulho desmedido e a insolecircncia (hyacutebris)

(BRANDAtildeO 1998 p 67) Ou seja inerentemente agrave estrutura do heroacutei seja eacutepico ou traacutegico

encontramos certa disposiccedilatildeo que lhe permite cometer a desmedida esta que por sua vez iraacute

encaminhaacute-lo definitivamente para aumlmartia ndash tornando-o de protagonista eacutepico em um

heroacutei com relevantes semelhanccedilas de um protagonista traacutegico

A tarefa de ir ao Hades e voltar jaacute era para Odisseu considerada impossiacutevel daiacute

seu desespero no momento em que Circe anuncia seu novo trabalho (X 496-498) Contudo

ele natildeo esperava que para acentuar ainda mais essa empreitada ele iria encontrar-se com a

matildee que ele natildeo sabia que morrera e com seus antigos companheiros em estado traacutegico de

insatisfaccedilatildeo com o destino acionado pelos deuses como eacute o caso de Agamecircmnon ou com o

destino escolhido por ele proacuteprio como eacute exemplificado atraveacutes de Aquiles ou ainda como

ocorre com Aacutejax inconformado e rancoroso com Odissseu sobre quem ele descarrega toda a

culpa do seu mal Aqueles valorosos heroacuteis eacutepicos no Hades natildeo passam de sombras de

eiAtildedwlon a vagarem paacutelidas sem consciecircncia sem nome sem honra E no instante em que

tecircm a razatildeo por causa do ritual feito por Odisseu natildeo recordam nada da gloacuteria e das

conquistas que tiveram quando heroacuteis eacutepicos ao contraacuterio restam-lhes apenas a lembranccedila e a

dor dos heroacuteis traacutegicos que se tornaram no final da vida E nesses como vimos o Laertida

natildeo pode espelhar-se pois como diz-nos Sandra Luna (2005)

Natildeo eacute por acaso que no aproveitamento da literatura grega como instrumento de

educaccedilatildeo humanista o heroacutei traacutegico desenha uma trajetoacuteria a ser evitada enquanto

a do heroacutei das epopeacuteias por seus gloriosos feitos mas sobretudo porque consegue

vencer o traacutegico projeta uma imagem a ser emulada Por tudo isso eacute possiacutevel

enquadrar a trageacutedia grega como uma estrateacutegia poeacutetica de racionalizaccedilatildeo do

traacutegico (LUNA 2005 p 383)

Configurados no Canto XI da Odisseacuteia como heroacuteis traacutegicos Agamecircmnon

Aquiles e Aacutejax natildeo mais podem servir para Odisseu como exemplo ao contraacuterio como todo e

qualquer heroacutei traacutegico seus caminhos devem ser evitados Desse modo em Odisseu como

espectador de todo esse cenaacuterio traacutegico satildeo suscitados os sentimentos de fomacrboj e esup1leoj O

primeiro porque todos eles satildeo seus semelhantes e ele estaacute suscetiacutevel a vivenciar o mesmo

143

tendo que portanto procurar fugir142

desses destinos Consequentemente a inspiraccedilatildeo desses

sentimentos levaraacute Odisseu agrave kaqarsij a fim de que tenha a purificaccedilatildeopurgaccedilatildeo desses

males (Poeacutetica 1449b) E apoacutes toda a vivecircncia traacutegica que o leva agrave kaqarsij Odisseu

pode enfim prosseguir purificado em seu caminho de retorno ao lar e da busca da gloacuteria

domeacutestica Pois como ele bem viu no Hades natildeo haacute lembranccedila das eacutepicas vitoacuterias e gloacuterias

resta aos mortos apenas o lamuacuterio pelo destino ingrato e a recordaccedilatildeo da traacutegica morte

Desse modo considerando-se que a kaqarsij como resultado da accedilatildeo traacutegica

constatamos que no Canto XI da Odisseacuteia a kaqarsij realiza-se no momento em que

Odisseu presencia situaccedilotildees traacutegicas de sua matildee e dos seus companheiros assim como

tambeacutem as escuta Assim essa narrativa permeada por elementos traacutegicos como aatildeth Moiordfra

asup1namacrgkh daimacrmwn aumlmartia uAacutebrij fomacrboj esup1leoj e asup1nagnwiquestrisij propicia a Odisseu

ser um espectador do traacutegico atraveacutes do que vecirc e ouve levando-o a kaqarsij Ao longo

deste trabalho pode-se observar a experiecircncia traacutegica vivida por Odisseu como rito de

passagem instrumento para o heroacutei passar pela kaqarsij e assim estar preparado para

finalizar sua jornada em Iacutetaca Com a realizaccedilatildeo da kaqarsij arriscamos a afirmar que

especificamente no Canto XI da Odisseacuteia Homero lega-nos natildeo apenas os germes traacutegicos

(Lesky 2006) mas a primeira representaccedilatildeo de um espectador traacutegico que eacute levado a

kaqarsij Assim tendo vivido e presenciado experiecircncias traacutegicas e tambeacutem tendo

purificado e purgado os sentimentos que foram suscitados com a kaqarsij Odisseu pocircde

seguir seu caminho de retorno a paacutetria- seu objetivo maior desde que saiacutera de Troacuteia

142

Verificar a explicaccedilatildeo dada no segundo capiacutetulo sobre fomacrboj que etimologicamente indica o medo que faz

fugir

144

Consideraccedilotildees finais

Em nosso trabalho dissertativo ―Tragicidade no Canto XI da Odisseacuteia Anticleacuteia

Agamecircmnon Aquiles Aacutejax analisamos o teor traacutegico que percorre a eacutepica Odisseacuteia mais

especificamente no Canto XI em que Odisseu encontra-se com sua matildee e com alguns que

foram seus companheiros na Guerra de Troacuteia A partir dos diaacutelogos desenvolvidos entre o

filho de Laertes com os demais personagens pudemos identificar diversos elementos traacutegicos

que inclusive seratildeo responsaacuteveis por desencadear em Odisseu a kaqarsij como resultado

dos sentimentos de fomacrboj e esup1leoj que lhe foram inspirados

A fim de alcanccedilar o objetivo pretendido desenvolvemos em nosso trabalho trecircs

capiacutetulos No primeiro intitulado ―Contextualizaccedilatildeo miacutetica e religiosa da Odisseacuteia fizemos

uma explanaccedilatildeo a respeito das representaccedilotildees miacuteticas e seus significados para o mundo

homeacuterico como tambeacutem realizamos uma apresentaccedilatildeo da Odisseacuteia Ainda discorremos sobre

a estrutura do poema eacutepico a ser estudado e do perfil multifacetado do seu heroacutei Odisseu

Todas essas informaccedilotildees contribuiacuteram para entendermos em qual contexto o traacutegico pocircde

despontar em meio a esse contorno eacutepico

No segundo capiacutetulo ―Traacutegico aspectos teoacutericos e conceituais discorremos

sobre a accedilatildeo traacutegica sua origem formaccedilatildeo seus elementos constitutivos e seus meios de

efetivaccedilatildeo literaacuteria Para tanto expusemos a relaccedilatildeo do traacutegico com a trageacutedia gecircnero atraveacutes

do qual foi consagrado aleacutem de discutirmos tambeacutem a configuraccedilatildeo do traacutegico na Poeacutetica

atraveacutes de Aristoacuteteles como tambeacutem por meio de outros autores que se dedicaram ao estudo

da accedilatildeo traacutegica Jean Pierre Vernant Pierre Grimal Jacqueline de Romilly Anatol Rosenfeld

Junito Brandatildeo e Sandra Luna

No terceiro capiacutetulo ―Tragicidade no Canto XI da Odisseacuteia Anticleacuteia Aquiles

Agamecircmnon e Aacutejax fizemos uma anaacutelise da realizaccedilatildeo do traacutegico dentro do contexto eacutepico

especificamente no Canto XI da Odisseacuteia Contudo para entendermos que essa tragicidade

natildeo era um fato isolado dentro da obra primeiro realizamos a identificaccedilatildeo e anaacutelise da

tragicidade presente ao longo da Odisseacuteia no primeiro toacutepico nomeado ―Odisseacuteia momentos

de tragicidade No segundo toacutepico depois de compreender que o traacutegico permeia toda a

Odisseacuteia analisamos o Canto XI a partir dos encontros de Odisseu no Hades com sua matildee

que ele natildeo sabia que morrera e com os antigos companheiros Agamecircmnon Aquiles e Aacutejax

todos sofrendo pelo destino traacutegico que a vida lhes reservou Como espectador das cenas

145

traacutegicas no Hades Odisseu ao mesmo tempo em que se apieda tambeacutem fica amedrontado de

vir a ter o mesmo destino traacutegico de seus companheiros em Troacuteia E todos esses encontros

proporcionam ao heroacutei de Iacutetaca vivenciar fatos traacutegicos e atraveacutes deles ser inspirado pelo

fomacrboj e pela esup1leoj levando-o agrave kaqarsij

146

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MURACHO Henrique Liacutengua Grega visatildeo semacircntica loacutegica orgacircnica e funcional Vol 1

3 ed Satildeo Paulo Discurso editorial Editora Vozes 2007

_______ Liacutengua Grega visatildeo semacircntica loacutegica orgacircnica e funcional Vol 2 3 ed Satildeo

Paulo Discurso editorial Editora Vozes 2007

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Odysseus 2006

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_______ ―Livro IIIX In A Repuacuteblica Trad Carlos Alberto Nunes 2ed Beleacutem Graf e

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VERGIacuteLIO Eneida Trad Tassilo Orpheu 6 ed Satildeo Paulo Cultrix 2006

_______ Eneida Trad Carlos Alberto NunesSatildeo Paulo A Montanha Ediccedilotildees 1981

VERNANT Jean-Pierre Mito e pensamento entre os gregos 2 ed Rio de Janeiro Paz e

terra 1990

_______ O Universo os deuses os homens Satildeo Paulo Compahia das Letras 2000

_______ Mito e religiatildeo na Greacutecia antiga Trad Joana Angeacutelica Satildeo Paulo Martins

Fontes 2006

_______ VIDAL-NAQUET Pierre Mito e trageacutedia na Greacutecia antiga Satildeo Paulo

Perspectiva 2008

_______ VIDAL-NAQUET Pierre La Gregravece ancienne Du mythe agrave la raison Paris Seuil

1990

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Gallimard 1989

149

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Trad Alexandre Hasnaoui Paris Les Belles Lettrers 2001

150

Joatildeo Pessoa ____ ____ ______

_____________________________________

Michelle Bianca Santos Dantas

Page 4: MICHELLE BIANCA SANTOS DANTAS

4

MICHELLE BIANCA SANTOS DANTAS

TRAGICIDADE NO CANTO XI DA ODISSEacuteIA

ANTICLEacuteIA AGAMEacuteMNON AQUILES E AacuteJAX

Dissertaccedilatildeo apresentada agrave Univesidade Federal da

Paraiacuteba como requisito parcial para obtenccedilatildeo do

tiacutetulo de Mestre na aacuterea de Literatura e cultura e

Linha de Pesquisa Tradiccedilatildeo e Modernidade

Aprovado em __________________________

BANCA EXAMINADORA

Prof Dr Arturo Gouveia de Arauacutejo (Orientador)

Universidade Federal da Paraiacuteba - UFPB

Profordf Drordf Sandra Luna (Examinadora)

Universidade Federal da Paraiacuteba - UFPB

Prof Dr Alzir Oliveira (Examinador)

Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN

Profordf Drordf Marinalva Vilar de Lima (Suplente)

Universidade Federal de Campina Grande - UFCG

5

A todos que comigo compartilharam as dificuldades e alegrias desta jornada

dedico este meu trabalho de Dissertaccedilatildeo

6

AGRADECIMENTOS

A Deus primeiramente agradeccedilo pelo dom da vida pelo amor e por toda

proteccedilatildeo Sem a forccedila divina eu natildeo conseguiria ultrapassar os obstaacuteculos enfrentados ao

longo deste mestrado

Agrave minha matildee D Bernadete agradeccedilo por ter me dado a luz iluminando-me no

meu nascer e no meu desenvolver assim como fez tambeacutem com minha irmatilde Mileyde a quem

agradeccedilo pela torcida

Ao meu esposo amado e fiel amigo agradeccedilo cada dia e cada segundo de

companheirismo e amor Juntos suportamos os desafios e renuacutencias juntos brindamos as

conquistas Por isso a Faacutebio agradeccedilo o amor que palavras natildeo tenho para expressar

Aos amigos agradeccedilo pelo apoio prestado pois estando perto ou distante sempre

torcem pelo meu sucesso e que naturalmente se reconhecem neste agradecimento

Agradeccedilo aos professores que foram importantes desde os passos iniciais da

minha vida acadecircmica Graccedila Martins Camen Servilla Elisalva Madruga Arturo Gouveia

como tambeacutem aos professores Milton Marques e Juvino Alves especialmente pela iniciaccedilatildeo

aos estudos claacutessicos

Ao meu orientador Prof Dr Arturo Gouveia agradeccedilo as pertinentes

consideraccedilotildees todo o aprendizado e a orientaccedilatildeo imparcial e efetiva

Agradeccedilo ao Prof Dr Fabriacutecio Possebon por dispor-se a revisar algumas

traduccedilotildees Ao Prof Dr Alzir Oliveira por aceitar a avaliar meu trabalho assim como a Profordf

Drordf Marinalva Vilar e a Prof Drordf Sandra Luna que atraveacutes de sua obra e de suas aulas

muito me ensinou sobre o traacutegico claacutessico

Agradeccedilo a Profordf Drordf Ana Marinho coordenadora do Programa de Poacutes-

Graduaccedilatildeo em Letras (PPGL) pelo apoio nesta jornada

Agrave Capes agradeccedilo o investimento que viabilizou a realizaccedilatildeo desta pesquisa

7

ὢ πόποι οἷον δή νυ θεοὺς βροτοὶ αἰτιόωνται

ἐξ ἡμέων γάρ φασι κάκ᾽ ἔμμεναι οἱ δὲ καὶ αὐτοὶ

σφῆισιν ἀτασθαλίηισιν ὑπὲρ μόρον ἄλγε᾽ ἔχουσιν

Oh grandes deuses Agora os mortais culpam os deuses

Pois de noacutes dizem vir a causa de todos seus males

quando]

eles mesmos por suas loucas presunccedilotildees suportam dores

contra o destino]

(Odisseacuteia I 32-34

8

RESUMO

O presente trabalho Tragicidade no Canto XI da Odisseacuteia Anticleacuteia

Agameacutemnon Aquiles e Aacutejax visa analisar os aspectos traacutegicos observados no Canto XI da

Odisseacuteia e consequentemente sua relevacircncia na estrutura da referida eacutepica homeacuterica Esses

aspectos seratildeo estudados a partir dos encontros de Odisseu no Hades com a sua matildee

Anticleacuteia Agameacutemnon Aquiles e Aacutejax Para tanto utilizaremos entre outras obras A

Poeacutetica de Aristoacuteteles e suas consideraccedilotildees sobre o gecircnero eacutepico e o traacutegico Esta obra seraacute

fundamental para o desenvolvimento do nosso trabalho por ser um legado dos mais

importantes que temos sobre a definiccedilatildeo dos gecircneros e da estrutura da poicenthsij Aleacutem do

mais nela tambeacutem encontramos consideraccedilotildees sobre os elementos traacutegicos como aatildeth

Moiordfra asup1namacrgkh daimacrmwn aumlmartia uAacutebrij fomacrboj esup1leoj asup1nagnwiquestrisij e

principalmente sobre a katarsij Tais elementos como analisaremos tambeacutem podem ser

reconhecidos na eacutepica homeacuterica Assim constataremos em nossa pesquisa a assertiva de

Aristoacuteteles no seacuteculo V dC acerca da intergenaricidade Como vemos esse fato natildeo eacute

privilegio das literaturas modernas mas ao contraacuterio pode ser contemplado desde o Periacuteodo

Arcaico da Literatura Grega no seacuteculo VIII aC a partir de Homero e no caso especiacutefico do

nosso estudo no Canto XI da Odisseacuteia Neste observamos a manifestaccedilatildeo da tragicidade

que mais tarde no seacuteculo V aC seraacute o fundamento miacutetico das trageacutedias gregas Utilizaremos

tambeacutem para fundamentar-nos compreensatildeo do traacutegico autores como Vernant Pierre

Grimal Jacqueline de Romilly Sandra Luna Junito Brandatildeo entre outros A fim de que

possamos melhor abarcar o objetivo do nosso trabalho dividimo-lo em trecircs capiacutetulos o

primeiro intitulado ―Contextualizaccedilatildeo miacutetica e religiosa da Odisseacuteia o segundo ―Traacutegico

aspectos teoacutericos e conceituais e por fim o terceiro ―Tragicidade no Canto XI da Odisseacuteia

Anticleacuteia Agamecircmnon Aquiles Aacutejax em que analisaremos o aspecto traacutegico desses

encontros

Palavras-chave Literatura Claacutessica Homero Odisseacuteia Traacutegico

9

REacuteSUMEacute

Le preacutesent travail Tragiciteacute dans le Chant XI de lrsquoOdysseacutee Anticlea

Agamemnon Achilles et Ajax vise agrave analyser les aspects tragiques observeacutes dans le Chant XI

de llsquoOdysseacutee et en conseacutequence sa pertinance dans la structure de llsquoeacutepique homeacuterique

rapporteacutee Ces aspects seront eacutetudieacutes a partir des rencontres dlsquoOdysseus dans llsquoHadegraves avec

sa megravere Anticlea Agamemnon Achilles et Ajax De telle faccedilon nous utiliserons entre autres

oeuvres La Poeacutetique dlsquoAristote et ses consideacuterations sur le genre eacutepique et le tragique Cette

oeuvre sera fondamentale pour le deacuteveloppement de notre travail par ecirctre un heacuteritage des plus

importants que nous avons sur la deacutefinition des genres et de la structure de la poicenthsij En

outre dans cette oeuvre nous trouvons aussi consideacuterations sur les eacuteleacutements tragiques comme

aatildeth Moiordfra asup1namacrgkh daimacrmwn aumlmartia uAacutebrij fomacrboj esup1leoj asup1nagnwiquestrisij et

principalement sur la katarsij Tels eacuteleacutements comme nous analyserons peuvent aussi ecirctre

reconnus dans llsquoeacutepique homeacuterique Ainsi nous constaterons dans notre recherche llsquoassertive

dlsquoAristote au Ve siegravecle ap J-C concernant llsquointergeacuteneacutericiteacute Comme nous voyons ce fait

nlsquoest pas privilegravege des litteacuteratures modernes mais au contraire cela peut ecirctre envisageacute depuis

la Peacuteriode Archaiumlque de la Litteacuterature Grecque au VIIIe siegravecle avJ-C agrave partir dlsquoHomegravere et

dans le cas espeacutecifique de notre eacutetude dans le Chant XI de llsquoOdysseacutee Dans celui-ci nous

observons la manifestation de la tragiciteacute que plus tard au Ve siegravecle av J -C ce sera le

fondement mythique des trageacutedies grecques Nous utiliserons aussi pour se baser

compreacutehension du tragique auteurs comme Vernant Pierre Grimal Jacqueline de Romilly

Sandra Luna Junito Brandatildeo entre autres Afin que nous puissions mieux embrasser llsquoobjectif

de notre travail nous llsquoavons diviseacute en trois chapitres le premier intituleacute laquo Contextualisation

mythique et religieuse de llsquoOdysseacutee raquo le deuxiegraveme laquo Tragique aspects theacuteoriques et

conceptuels raquo et finalement le troisiegraveme laquo Tragiciteacute dans le Chant XI de llsquoOdysseacutee

Anticlea Agamemnon Achilles Ajax raquo ougrave nous analyserons llsquoaspect tragique de ces

rencontres

Mots-cleacute Litteacuterature Classique Homegravere Odysseacutee Tragique

10

SUMAacuteRIO

INTRODUCcedilAtildeO________________________________________________________11

1 CONTEXTUALIZACcedilAtildeO MIacuteTICA E RELIGIOSA DA ODISSEacuteIA___________17

11 Representaccedilotildees e significados do mundo homeacuterico___________________17

12 Apresentaccedilatildeo da Odisseacuteia_______________________________________23

121 A Estrutura do poema___________________________________ _28

122 Odisseu o heroacutei multifacetado _____________________________36

2 TRAacuteGICO ASPECTOS TEOacuteRICOS E CONCEITUAIS_____________________47

21 Uma breve consideraccedilatildeo sobre o nosso estudo do Traacutegico______________47

22 O traacutegico e a trageacutedia___________________________________________48

23 O Traacutegico na Poeacutetica___________________________________________60

24 A busca do traacutegico outras reflexotildees teoacutericas ________________________79

3 TRAGICIDADE NO CANTO XI DA ODISSEacuteIA ANTICLEacuteIA AGAMEcircMNON

AQUILES AacuteJAX________________________________________________________89

31 Odisseacuteia momentos de tragicidade_________________________________89

32 Tragicidade no Canto XI da Odisseacuteia Anticleacuteia Agamecircmnon Aquiles

Aacutejax___________________________________________________________________115

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS______________________________________________144

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS______________________________________146

11

INTRODUCcedilAtildeO

A Odisseacuteia (do grego Obrvbardusseia) cuja autoria eacute atribuiacuteda a Homero pertence

juntamente com a Iliacuteada ao chamado periacuteodo arcaico da literatura grega que compreende do

seacuteculo VIII aC ao seacuteculo V aC Ambas as epopeacuteias homeacutericas satildeo ―os mais antigos poemas

em grego que sobreviveram ateacute noacutes (HAUSER 1995 p55) e constituem verdadeiros

legados artiacutesticos Isso entre outros fatores explicaria o fato de em pleno seacuteculo XXI essas

epopeacuteias ainda nos trazerem a possibilidade de pesquisas e estudos demonstrando a

inesgotabilidade de leituras literaacuterias

Logo ao iniacutecio da narrativa percebemos que a Odisseacuteia canta o noacutestos o regresso

ao lar e a paacutetria Assim o argumento da Odisseacuteia eacute o regresso de Odisseu a Iacutetaca apoacutes vinte

anos em metade deste tempo o heroacutei ocupa-se nos combates travados na Guerra de Troacuteia e

nos outros dez anos passa errante por mar e terra Com base nessa narrativa homeacuterica

pretendemos realizar um estudo de aplicaccedilatildeo do traacutegico na Odisseacuteia especificamente no

Canto XI quando Odisseu em sua passagem pelo Hades encontra-se respectivamente com

Anticleacuteia sua matildee cuja morte ele ignorava Agamecircmnon que sofre pela traiccedilatildeo armada pela

sua esposa com o amante Egisto Aquiles inconformado preferindo ser um trabalhador

campestre a ter que reinar sobre os mortos e Aacutejax ressentido ainda com o ocorrido na

disputa das armas do filho de Peleu

Para que realizemos essa anaacutelise estudaremos diversos autores desde os claacutessicos

como Platatildeo ateacute os mais modernos como Jean-Pierre Vernant Junito Brandatildeo entre outros

Contudo ressaltamos que nossa fundamentaccedilatildeo teoacuterica seraacute a Poeacutetica de Aristoacuteteles

Na Repuacuteblica como sabemos Platatildeo nega o traacutegico e a poesia para a organizaccedilatildeo

estatal argumentando que a sociedade deveria vigiar ―() os que se aventuram a tratar desse

gecircnero de faacutebulas () pois natildeo apenas eacute falso tudo que contam como de tudo inuacutetil para os

futuros combatentes (PLATAtildeO 2000 p 117) Jaacute Aristoacuteteles em A Poeacutetica ao contraacuterio

refere-se agrave poesia natildeo apenas como instrumento de educaccedilatildeo mas como um ato de criaccedilatildeo

delineado por estruturas e caracteriacutesticas proacuteprias que deve ser antes de tudo verossiacutemil O

estudo aristoteacutelico da poihsij natildeo estaacute centralizado ao contraacuterio de Platatildeo nos valores que

ela veicula e sim na organicidade estrutural e interna Desta forma em A Poeacutetica Aristoacuteteles

define a epopeacuteia e a trageacutedia como ―imitaccedilatildeo de homens superiores (ARISTOacuteTELES 1988

p 109) No entanto ele tambeacutem nos informa que esses gecircneros diferem visto que a epopeacuteia

12

tem metro uacutenico forma narrativa e maior extensatildeo enquanto a trageacutedia por se realizar dentro

de um periacuteodo do sol eacute mais breve O pensador grego diz ainda que apesar de todas as partes

da epopeacuteia estarem na trageacutedia e a reciacuteproca natildeo ser verdadeira haacute alguns elementos da

trageacutedia que podem ser encontrados nas epopeacuteias E esse argumento seraacute fundamental para

nosso trabalho pois observaremos jaacute na epopeacuteia homeacuterica especificamente no Canto XI da

Odisseacuteia aspectos de tragicidade que seratildeo mais tarde no seacuteculo IV aC a essecircncia miacutetica

das trageacutedias sejam elas de Eacutesquilo Soacutefocles eou Euriacutepides

Deste modo nossa pesquisa justifica-se pela necessidade de sugerir uma leitura

criacutetica que promova uma atualizaccedilatildeo dessa obra claacutessica Isso porque esse poema homeacuterico

ultrapassa os limites geograacutefico-temporais da Greacutecia Antiga constituindo-se assim numa

obra universal Inclusive sabemos da importacircncia dos textos homeacutericos dentro da proacutepria

cultura grega sendo sempre citados pelos filoacutesofos como por exemplo Platatildeo em A

Repuacuteblica e em Iacuteon e Aristoacuteteles em A Poeacutetica Os textos homeacutericos influenciaram tambeacutem

a produccedilatildeo poeacutetica que os sucedeu a exemplo das contribuiccedilotildees dos tragedioacutegrafos Neste

caso especiacutefico podemos ver o Canto XI da Odisseacuteia como um prenuacutencio das peccedilas

Agamecircmnon de Eacutesquilo componente da Oresteacuteia e Aacutejax de Soacutefocles jaacute que estas

desenvolvem as circunstacircncias jaacute pronunciadas no canto eacutepico citado Agamecircmnon sofrendo

por uma armadilha montada pela proacutepria esposa e Aacutejax sentindo-se desonrado por ter sido

preterido na disputa das armas de Aquiles permanecendo-se indiferente a Odisseu Desta

maneira entendemos nosso trabalho como relevante para o aprofundamento das pesquisas na

aacuterea da Literatura Claacutessica especificamente no que diz respeito agrave eacutepica homeacuterica Odisseacuteia e

aos estudos do traacutegico Aleacutem do mais temos consciecircncia de que nossa pesquisa seraacute tambeacutem

importante aos estudiosos da literatura em geral os quais natildeo devem perder de vista o berccedilo

literaacuterio ocidental

Atraveacutes de nossa pesquisa ―Tragicidade no Canto XI da Odisseacuteia Anticleacuteia

Agameacutemnon Aquiles e Aacutejax analisaremos como jaacute foi dito aspectos traacutegicos na citada

epopeacuteia de Homero a partir da ida ao Hades de seu heroacutei Odisseu em busca do adivinho

Tireacutesias No Hades ele encontra natildeo soacute o adivinho que o auxiliaraacute no trajeto de retorno agrave

paacutetria como tambeacutem a sua matildee Anticleacuteia e os destacados heroacuteis que combateram ao seu

lado na Guerra de Troacuteia Agamecircmnon Aquiles e Aacutejax

Para fundamentarmos o nosso trabalho aleacutem de Aristoacuteteles utilizaremos outros

autores que vatildeo auxiliar-nos na compreensatildeo da estrutura da eacutepica e da manifestaccedilatildeo do

traacutegico O estudo destes temas sugere-nos a ocorrecircncia da interrelaccedilatildeo entre os gecircneros

literaacuterios fazendo-nos compreender que este procedimento natildeo eacute um qualificativo especiacutefico

13

das literaturas modernas jaacute que pode ser constatado desde a Antiguidade Claacutessica O proacuteprio

Aristoacuteteles (1449a) chega a afirmar que o cocircmico estaacute para a Iliacuteada assim como a trageacutedia

estaacute para Odisseacuteia

Deste modo versando sobre os aspectos dos gecircneros claacutessicos e de suas

caracteriacutesticas auxiliar-nos-atildeo outros autores como por exemplo Anatol Rosenfeld Em O

teatro eacutepico (1985) Rosenfeld conceitua as caracteriacutesticas substantivas ou adjetivas dos

gecircneros dizendo-nos que ―No fundo toda obra literaacuteria de certo gecircnero conteraacute aleacutem dos

traccedilos estiliacutesticos mais adequados ao gecircnero em questatildeo tambeacutem traccedilos estiliacutesticos mais

tiacutepicos dos outros gecircneros (ROSENFELD 1985 p 18) Albin Lesky em A trageacutedia grega

(2006) ao tratar sobre o problema do traacutegico ressalta que nas epopeacuteias homeacutericas ―jaacute se

encontram germes em que se prepara a primeira e ao mesmo tempo a mais perfeita

objetivaccedilatildeo da visatildeo traacutegica do mundo no drama do seacuteculo V (LESKY 1976 p 18) E

assim como Platatildeo no Livro X da Repuacuteblica destaca a referecircncia de Homero como o pai da

trageacutedia

Utilizaremos tambeacutem a obra Arqueologia da accedilatildeo traacutegica o legado grego (2005) de

Sandra Luna para dar-nos respaldo teoacuterico-criacutetico acerca das origens e conceitos do traacutegico

A autora considera ―ser possiacutevel identificar nos versos homeacutericos momentos de intensa

tragicidade (LUNA 2005 p 30) Satildeo estes momentos de tragicidade que analisaremos no

Canto XI da Odisseacuteia por percebermos que haacute neste canto especificamente uma maior

potencialidade traacutegica apesar de termos momentos de tragicidade por toda a obra A presenccedila

do traacutegico revela-se ateacute mesmo pela circunstacircncia por Odisseu na porta do Hades buscando

Tireacutesias para que possa indicar-lhe o caminho de volta para casa que jaacute tentava haacute anos

Todavia encontra imagens muito mais desoladoras ndash sua matildee morta por saudades suas e seus

amigos de combate Agamecircmnon Aquiles e Aacutejax O primeiro foi encontrar a morte ingloacuteria

em casa pela proacutepria esposa o segundo havia conquistado a bela morte em campo de batalha

mas preferia ser um trabalhador do campo e o terceiro mantinha-se ainda tomado pelo

sentimento de desonra por natildeo ter ficado com as armas de Aquiles Aleacutem do mais muito do

que Tireacutesias iraacute revelar eacute bastante traacutegico mesmo Odisseu sabendo que cumprindo todos os

desiacutegnios conseguiraacute voltar para casa Isso porque apesar de Odisseu ter a revelaccedilatildeo de que

teraacute o esperado retorno fica tambeacutem tendo o conhecimento de que deveraacute enfrentar ainda

muitos outros obstaacuteculos a exemplo do combate que travaraacute contra os pretendentes jaacute em

Iacutetaca

Sobre a origem da trageacutedia Junito Brandatildeo (2007) seguindo o jaacute afirmado por

Aristoacuteteles reafirma a ligaccedilatildeo de Dioniso com esse gecircnero dramaacutetico por isso diz ldquoA

14

trageacutedia nasceu do culto de Dioniso isto apesar de algumas tentativas ainda natildeo se

conseguiu negar Ningueacutem pocircde ateacute hoje explicar a gecircnese do traacutegico sem passar pelo

elemento satiacuterico (BRANDAtildeO 2007 p 9) Em ―Homero e seus poemas deuses mitos e

escatologia Junito Brandatildeo (1998) tambeacutem nos respalda ao dizer que a maior novidade

trazida pela Odisseacuteia ―estaacute no embriatildeo da ideacuteia de culpa e castigo em que a hyacutebris a

violecircncia a insolecircncia a ultrapassagem do meacutetron que seraacute a mola mestra da trageacutedia

comeccedilam a despontar (BRANDAtildeO 1998 p 134)

Com a realizaccedilatildeo da pesquisa supracitada pretendemos contribuir para a

ampliaccedilatildeo dos estudos sobre a Odisseacuteia de Homero enaltecendo a sua importacircncia literaacuteria

mas tambeacutem miacutetico-religiosa e sua inter-relaccedilatildeo traacutegica especificamente no Canto XI Para

tanto iremos expor as discussotildees acerca dos conceitos da epopeacuteia e do traacutegico realizadas

primeiramente por Aristoacuteteles que nos deu valiosas contribuiccedilotildees acerca dos gecircneros

claacutessicos e suas especificidades Tambeacutem realizaremos a traduccedilatildeo dos versos a serem citados

da Odisseacuteia para que entremos em contato com o texto original na perspectiva de nos

aproximarmos mais de sua estrutura morfossintaacutetica e semacircntica Seratildeo realizadas as

traduccedilotildees das citaccedilotildees da Poeacutetica por considerarmos este o texto teoacuterico base para a nossa

produccedilatildeo analiacutetica centralizada justamente na tragicidade do Canto XI da Odisseacuteia

Tracicidade esta que funciona como prenuacutencio das trageacutedias Aacutejax de Soacutefocles e Agamecircmnon

de Eacutesquilo

A fim de que melhor possamos abarcar o estudo do traacutegico no jaacute citado canto da

epopeacuteia homeacuterica dividimos o desenvolvimento do nosso trabalho em trecircs capiacutetulos que

seratildeo descriminados a seguir

No primeiro intitulado ―Contextualizaccedilatildeo miacutetica e religiosa da Odisseacuteia

realizaremos a apresentaccedilatildeo desta eacutepica destacando suas caracteriacutesticas e especificidade

temaacutetica e estrutural Assim discorreremos acerca das representaccedilotildees e significaccedilotildees comuns

ao mundo homeacuterico aleacutem de realizarmos uma apresentaccedilatildeo do poema a partir de sua

estrutura e de seu heroacutei Odisseu Deste analisaremos o caraacuteter multifacetado que eacute revelado

tanto em suas accedilotildees como preconiza Aristoacuteteles na Poeacutetica bem como atraveacutes dos seus

epiacutetetos polutropoj polumhtij entre outros Estes e outros epiacutetetos seratildeo aprofundados

estrutural e semanticamente no momento propiacutecio todavia os jaacute citados podem ser traduzidos

por o de muitas voltas e o muito astuto

O tiacutetulo do nosso segundo capiacutetulo eacute ―Traacutegico aspectos teoacutericos e conceituais

em que pretendemos discorrer acerca do traacutegico tanto pelo aspecto teoacuterico como tambeacutem

15

conceitual para que possamos entender melhor sua constituiccedilatildeo e manifestaccedilatildeo natildeo apenas

nas trageacutedias como tambeacutem na eacutepica homeacuterica principalmente no Canto XI da Odisseacuteia

Para tanto desenvolveremos primeiramente um subtoacutepico sobre o traacutegico e a trageacutedia

estabelecendo as relaccedilotildees existentes entre ambos Entatildeo partiremos para observar e discutir a

partir da Poeacutetica e posteriormente faremos a anaacutelise das perspectivas que outros teoacutericos tecircm

sobre o traacutegico e ateacute que ponto eles se aproximam distanciam ou auxiliam no entendimento

do traacutegico ressalta-se no entanto que o conceito de traacutegico para noacutes relevante eacute o claacutessico

especificamente o realizado no mundo grego

No terceiro capiacutetulo intitulado ―Tragicidade no Canto XI da Odisseacuteia Anticleacuteia

Aquiles Agamecircmnon e Aacutejax faremos a anaacutelise dos elementos motivadores de nossa

dissertaccedilatildeo Por isso consideramos conveniente logo no iniacutecio de nossa proposta dedicarmos

um subtoacutepico para ilustrar que ao decorrer de toda a obra podemos identificar momentos de

tragicidade Desta maneira veremos que o aspecto traacutegico natildeo se restringe ao Canto XI

objeto central de nossas ponderaccedilotildees tanto que poderemos encontraacute-lo em outros Cantos

Entretanto justificamos nossa escolha pelo Canto XI por enxergarmos como o que possui a

manifestaccedilatildeo mais traacutegica ao longo de toda a Odisseacuteia estes motivos e consideraccedilotildees seratildeo

discutidos no momento propiacutecio E no segundo toacutepico deste terceiro capiacutetulo ―Tragicidade

no Canto XI da Odisseacuteia Anticleacuteia Aquiles Agamecircmnon Aacutejax realizaremos a anaacutelise de

toda a nossa proposta inicial jaacute que ateacute laacute teremos maior possibilidade de apreendecirc-lo de uma

maneira mais consistente Ateacute mesmo porque nos capiacutetulos e toacutepicos anteriores discutiremos

com clareza necessaacuteria os elementos que nos ajudaratildeo a entender a proposta geral da

dissertaccedilatildeo e sua efetuaccedilatildeo analiacutetica

Partindo da perspectiva do traacutegico presente na Poeacutetica objetivamos realizar uma

aplicaccedilatildeo desse estudo no Canto XI da Odisseacuteia E assim tentarmos (fazer) compreender a

realizaccedilatildeo do traacutegico neste Canto homeacuterico Pois mesmo sabendo que o traacutegico soacute foi

desenvolvido efetivamente pelos tragedioacutegrafos gregos percebemos que sua realizaccedilatildeo eacute

comum jaacute nas epopeacuteias homeacutericas Desta maneira poderemos ver Homero como o poeta que

nos legou natildeo apenas as duas primeiras obras literaacuterias do Ocidente Iliacuteada e Odisseacuteia mas

tambeacutem as primeiras manifestaccedilotildees traacutegicas de nossa literatura

Ao longo de nossa pesquisa utilizamo-nos de diversas ediccedilotildees de uma mesma obra

tanto para realizaccedilatildeo das leituras como das traduccedilotildees (em que cotejamos as jaacute editadas

traduccedilotildees) Por isso indicaremos a seguir todas as ediccedilotildees usadas apesar de todas elas jaacute

constarem nas Referecircncias Bibliograacuteficas Acreditamos que tal procedimento facilitaraacute

16

metodologicamente a construccedilatildeo e a leitura do nosso trabalho Logo no decorrer do nosso

texto citaremos soacute o nome das obras e natildeo as datas de ediccedilotildees

Assim utilizamos para entendimento da Poeacutetica Repuacuteblica e Odisseacuteia aleacutem do

texto original as ediccedilotildees que listaremos a seguir Para Poeacutetica usamos Les Belles Lettres de

1979 com traduccedilatildeo de Hardy Cultrix de 1988 traduzida por Jaime Bruna Ars Poeacutetica de

1992 com traduccedilatildeo de Eudoro de Sousa Para Repuacuteblica fizemos uso das ediccedilotildees de I

mammut em Tutte le opere de 2009 e da Editora Universitaacuteria da UFPA de 2000 cuja

traduccedilatildeo foi feita por Carlos Alberto Nunes Para Odisseacuteia utilizamos Otoo Pierre Editores

de 1980 com traduccedilatildeo de Jaime Bruna a Livraria Saacute da Costa de 1980 traduzida por Dias

Palmeira e Alves Correia Les Belles Lettres 2002 por Victor Beacuterard e Ediouro de 2009

traduzida por Carlos Alberto Nunes

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1 CONTEXTUALIZACcedilAtildeO MIacuteTICA E RELIGIOSA DA ODISSEacuteIA

11 Representaccedilotildees e significados do mundo homeacuterico

Segundo a tradiccedilatildeo Homero eacute o autor das duas primeiras obras literaacuterias do Ocidente

que nos chegaram Iliacuteada e Odisseacuteia Tal afirmaccedilatildeo contudo natildeo nos soluciona

problemaacuteticas como por exemplo o de sua bibliografia que ateacute hoje eacute um grande desafio

Mas se a ciecircncia moderna natildeo consegue provas de sua existecircncia permitindo-nos afirmar

seguramente quem foi Homero como viveu quando e onde nasceu Para a tradiccedilatildeo claacutessica

sua existecircncia eacute inquestionaacutevel por isso autores como Platatildeo Aristoacuteteles e Hesiacuteodo referem-

se claramente agrave sua figura Vejamos o que diz Platatildeo

() ῥεηένλ ἦλ δ᾽ ἐγώ θαίηνη θηιία γέ ηίο κε θαὶ αἰδὼο ἐθ παηδὸο ἔρνπζα

πεξὶ κήξνπ ἀπνθσιύεη ιέγεηλ (PLATAtildeO X 595 b-c)

Preciso falar dizia eu contudo o afeto e o respeito certamente que tenho

sobre Homero desde a infacircncia impede-me de falar1

Isso tambeacutem o faz Aristoacuteteles (Poeacutetica Livro III 1448 a 22-26) porque

discutindo acerca da poesia e de seus objetos de imitaccedilatildeo tambeacutem se refere objetivamente a

Homero e a sua poesia comentando sua produccedilatildeo eacutepica e caracteriacutesticas Como podemos ver

parece indiscutiacutevel para os gregos claacutessicos a existecircncia de Homero

No entanto deixando as incertezas biograacuteficas de lado compreendamos que o

autor da Odisseacuteia nosso objeto de pesquisa existiu provavelmente no periacuteodo arcaico da

literatura grega que compreende o periacuteodo do seacuteculo VIII ateacute V aC Homero produziu suas

eacutepicas no dialeto jocircnio com alguns empreacutestimos do eoacutelico e apesar de terem surgido

oralmente por volta do seacuteculo VIII aC soacute em VI aC eacute que passam para escrita a mando do

tirano Pisiacutestratos que acreditava descender de Nestor de Pilos Neste mesmo seacuteculo como

nos informa Hauser (1995 p63) havia uma lei que estabelecia obrigatoriamente a recitaccedilatildeo

completa dos poemas de Homero no Festival de Panateneacuteias Como no seacuteculo VI aC as

eacutepicas homeacutericas passaram para a forma escrita aleacutem de terem seus recitais como

1 Ressaltamos que as traduccedilotildees utilizadas ao longo do trabalho satildeo nossas Contudo quando natildeo o forem

indicaremos seus respectivos autores Aleacutem disso a finalidade das traduccedilotildees feitas eacute operacional sem fins

esteacuteticos

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obrigatoacuterios crecirc-se que desde entatildeo os poemas homeacutericos natildeo sofreram tantas mudanccedilas em

relaccedilatildeo aos poemas orais iniciais

Para Albin Lesky em Historia da Literatura Grega (1995) Homero eacute iniacutecio e

resultado herdeiro e criador Ele eacute o iniacutecio e criador da poesia grega influente ao mesmo

tempo eacute o fim e o herdeiro de um longo resultado de desenvolvimento poeacutetico e miacutetico

Diante disso o que nos importa mesmo entender eacute que muito do que sabemos

hoje sobre o mundo grego arcaico veio-nos por meio das eacutepicas homeacutericas Iliacuteada e Odisseacuteia

que nos legaram as visotildees sobre os mitos os deuses os heroacuteis a organizaccedilatildeo social enfim O

que natildeo podemos esquecer eacute que natildeo haacute tatildeo facilmente uma uacutenica visatildeo de mundo sobretudo

quando contrapomos as duas eacutepicas pois aiacute as diferenccedilas comeccedilam a aumentar

Assim como vimos anteriormente existem ainda discussotildees acerca da

comprovaccedilatildeo histoacuterica de Homero suas nuances e complicaccedilotildees Isto faz com que natildeo

possamos afirmaacute-lo como autor da Iliacuteada e da Odisseacuteia e sim que estas obras tecircm sua

autoria atribuiacuteda a Homero No entanto uma nova incongruecircncia surge quando centralizamos

nosso estudo para a Odisseacuteia Resumindo entendamos entatildeo que se a autoria de Homero

para a Iliacuteada eacute incerta esta se amplia ainda mais em relaccedilatildeo agrave Odisseacuteia A causa desse fato

daacute-se porque analisando-se ambas as eacutepicas percebem-se diferenccedilas natildeo apenas temaacuteticas

mas estruturais e conceituais que nos fazem deduzir que aleacutem de a Odisseacuteia ter sido escrita

depois da Iliacuteada poderia inclusive natildeo ser homeacuterica Na verdade natildeo nos importa muito

saber se Homero foi o autor ou natildeo da Odisseacuteia ateacute porque nossa anaacutelise basear-se-aacute no texto

mas nos interessa sim perceber quais satildeo estas diferenccedilas entre a Iliacuteada e a Odisseacuteia

principalmente as de cunho estrutural e de concepccedilatildeo de mundo

Uma destas diferenccedilas por exemplo pode ser vista a partir da representaccedilatildeo da

a)reth Para W Jaeger (2001 p 27) Homero deu-nos o mais antigo testemunho da cultura

aristocraacutetica grega principalmente atraveacutes da a)reth 2 cent Seja ela manifestada pela excelecircncia

guerreira como ocorre na Iliacuteada seja pelas qualidades intelectuais como ocorre na Odisseacuteia

E ainda completa ―a Odisseacuteia exalta sobretudo no seu heroacutei principal acima da valentia que

passa a lugar secundaacuterio a prudecircncia e a astuacutecia (JAEGER 2001 p 27) Muitas outras

2 De acordo com Renato Romizi (2007) o tema deste nome abrvbarre eacute oriundo de abrvbarreskw piaccio ou seja

agradar seu radical abrvbarr indica superioridade daiacute abrvbarrethcent significa excelecircncia de bravura coragem no sentido

militar ou virtude meacuterito no sentido moral O Le grand Bailly daacute-nos a traduccedilatildeo meacuterite ou qualiteacute ou seja

meacuterito e qualidade num sentido de excelecircncia e tambeacutem nos aponta para abrvbarreiwn que se relaciona a coragem

valentia E o Liddell and Scottrsquos Greek-English Lexicon relaciona a abrvbarrethcent grega a uirtus latina e aponta

tambeacutem para uma diferenccedila de sentido em relaccedilatildeo ao valor guerreiro valour e o moral for virtue merit da

virtude ou do meacuterito Assim podemos entender abrvbarrethcent como a qualidade guerreira eou a distinccedilatildeo do meacuterito

da virtude de um homem nobre

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diferenccedilas podem ser observadas mas por hora nos deteremos neste exemplo jaacute que no

proacuteximo toacutepico ―Apresentaccedilatildeo da Odisseacuteia discutiremos mais sobre essas questotildees

De todo o modo apesar de especificidades diversas o que importa eacute percebermos que

os heroacuteis homeacutericos buscam a timh a honra como meio de assegurarem sua a)reth

qualidade do guerreirodo nobre Isso porque ―() o homem homeacuterico soacute adquire consciecircncia

do seu valor pelo reconhecimento da sociedade a que pertence () ele mede a Arete proacutepria

pelo prestiacutegio que disputa entre seus semelhantes (Ibidem p 31) Portanto se tudo o que

almeja o homem homeacuterico eacute a timh para atraveacutes dela alcanccedilar a a)reth que eacute perpeacutetua daiacute

a sua negaccedilatildeo ou ultraje torna-se um grave problema pois ―Para o homem homeacuterico e para o

mundo da nobreza desse tempo a negaccedilatildeo da honra era em contrapartida a maior trageacutedia

humana(JAEGER 2001 p 31)

Muitos satildeo os exemplos na literatura grega a respeito dessa honra ultrajada

inclusive como disse Jaeger (2001) resultando em trageacutedia Aliaacutes o grande tema das

trageacutedias gregas seraacute justamente a queda de um heroacutei Em Aacutejax de Soacutefocles por exemplo o

heroacutei ao vecirc-se desonrado por ter sido preterido na disputa das armas de Aquiles parte para

vingar-se dos chefes gregos mas iludido por Atena mata animais do rebanho Ao reconhecer

a falha cometida resolve entatildeo matar-se por vecirc-se totalmente desonrado

Bem provavelmente estaacute no Canto I da Iliacuteada um dos maiores exemplos de

desonra da literatura grega Neste Canto Aquiles retira-se da guerra quando tem seu geraj

ou seja seu precircmio de guerra3 tomado por Agamecircmmnon Este geraj distingue o heroacutei dos

demais e sem ele natildeo pode ter a sua timh logo sem esta natildeo poderaacute alcanccedilar a a)reth A

importacircncia da timh fica bem clara nas palavras reclamantes de Aquiles a matildee vejamos

μῆτερ ἐπεί μ᾽ ἔτεκές γε μινυνθάδιόν περ ἐόντα

τιμήν πέρ μοι ὄφελλεν Ὀλύμπιος ἐγγυαλίξαι

355 Ζεὺς ὑψιβρεμέτης νῦν δ᾽ οὐδέ με τυτθὸν ἔτισεν

ἦ γάρ μ᾽ ἈτρεἸδης εὐρὺ κρείων Ἀγαμέμνων

ἠτίμησεν ἑλὼν γὰρ ἔχει γέρας4 αὐτὸς ἀπούρας5

(Iliacuteada I 353-357)

Matildee como me geraste de curta existecircncia

3 O referido precircmio era Briseide escrava de Aquiles que eacute tomada por Agamecircmnon ao ter que ceder a sua

escrava Criseide a fim de aplacar a fuacuteria de Apolo 4 Os destaques satildeo nossos

5 Texto disponiacutevel em

httpwwwhsaugsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_il01html acessado em 22 de

abril agraves 1604 hs

20

seria justo o Oliacutempio Zeus a minha honra fazer aumentar aquele que

355 ressoa do alto ceacuteu Agora em verdade ele natildeo me honra nem um

[pouco

pois o Atrida Agamecircmnon o poderoso senhor desonrou-me

jaacute que capturando tem o meu precircmio de guerra tendo ele mesmo

[arrancado-me

Esta busca de Aquiles em ter seu geraj e consequentemente sua timh eacute

natural e justificaacutevel pois este mundo grego arcaico girava em torno desses elementos Nesta

cena em que reclama agrave matildee sua honra e questiona o compromisso de Zeus com sua causa natildeo

haacute arrogacircncia por parte de Aquiles ele busca a realizaccedilatildeo de aidwj e nemesij ou seja do

pudor e da justiccedila Pois natildeo eacute justo que ele aleacutem de morrer jovem tenha tambeacutem que morrer

desonrado E tanto aidwj quanto nemesij ―satildeo em Homero conceitos constitutivos do

ideal eacutetico da aristocracia (JAEGER 2001 p28) Devemos perceber a significaccedilatildeo que estes

conceitos tecircm para o mundo homeacuterico e como satildeo representados a fim de que entendamos

seus valores e significados A citaccedilatildeo abaixo eacute bastante esclarecedora deste fato

Os heroacuteis travavam-se mutuamente com respeito e honra constantes

Assentava nisso toda a sua ordem social A acircnsia de honra era neles

simplesmente insaciaacutevel sem que isto seja caracteriacutestica moral peculiar aos

indiviacuteduos como tais Era natural e indiscutiacutevel que os heroacuteis maiores e os

priacutencipes mais poderosos exigissem uma honra cada vez mais alta Ningueacutem

receia na Antiguidade reclamar a honra devida a um serviccedilo prestado

(JAEGER 2001 p 31)

Como vemos eacute natural dos heroacuteis buscarem sua timh a fim de alcanccedilarem a

a)reth e isso para os gregos natildeo se confunde com vaidade mas pelo contraacuterio relaciona-

se agrave aspiraccedilatildeo do valor pessoal Na Odisseacuteia como jaacute foi dito essa a)reth estaacute relacionada agrave

virtude intelectual e natildeo guerreira como ocorre na Iliacuteada Por isso Odisseu destaca-se como

o polumhtij o muito astuto que remete a um valor intelectual diferentemente do epiacuteteto de

Aquiles aOacuteristoj a)xaiwcurrenn o melhor dos aqueus que se refere a sua qualidade guerreira de

superioridade de batalha em relaccedilatildeo aos demais

Aleacutem de observarmos essa modificaccedilatildeo conceitual que existe na a)reth da Iliacuteada

para a Odisseacuteia vecirc-se tambeacutem nesta a busca da gloacuteria feita atraveacutes da sobrevivecircncia e natildeo da

morte como ocorre na Iliacuteada Aquiles por exemplo pretende para ser imortalizado morrer

em campo de batalha jaacute Odisseu busca natildeo soacute viver mas sobreviver a todos os obstaacuteculos

para que em sua casa e em sua paacutetria alcance a gloacuteria domiciliar Esses fatos satildeo importantes

21

para que enxerguemos a natildeo homogeneidade nas representaccedilotildees e significaccedilotildees homeacutericas e

devem ser compreendidos em sua completude e diversidade O mundo grego representado por

Homero natildeo eacute homogecircneo assim sendo tambeacutem natildeo pode ser homogecircneo o mundo homeacuterico

de que tantos falam

A respeito da religiosidade Walter Friedrich Otto em Os deuses da Greacutecia (2005)

diz haver em Homero uma clara e natural expressatildeo religiosa Neste mundo de Homero vecirc-se

tambeacutem a organizaccedilatildeo divina a partir da religiatildeo oliacutempica que era segundo Otto mais

paternalista diferente da primordial relacionada agrave Gaicurrena a Terra e portanto mais ao

feminino Otto diz-nos tambeacutem que no mundo homeacuterico o contato com o morto natildeo vai

significar contaminaccedilatildeo ao contraacuterio do que comeccedila a ocorrer nas trageacutedias gregas Ao fazer

uma comparaccedilatildeo entre Hesiacuteodo e Homero ou seja dois representantes do mundo grego

arcaico Otto observa que em Hesiacuteodo temos narrativas mais proacuteximas do fantaacutestico do que

em Homero Segundo o autor Hesiacuteodo aproximar-se-ia do fantaacutestico com suas narraccedilotildees

sobre o surgimento do universo dos deuses dos poetas enfim Jaacute Homero ao contraacuterio

poupar-nos-ia de descriccedilotildees mais proacuteximas do fantaacutestico Para exemplificar sua tese Otto cita

o fato de que Atena mesmo epitetada por o)brimopater ou seja a filha do pai poderoso

natildeo teraacute em nenhum momento descriccedilatildeo do seu nascimento Atena como sabemos eacute

concebida a partir da cabeccedila do proacuteprio pai Zeus inclusive jaacute nascendo adulta e armada

Homero pode ateacute natildeo descrever este episoacutedio mas Hesiacuteodo o faz na Teogonia Vejamos o

excerto abaixo

Ζεὺς δὲ θεῶν βασιλεὺς πρώτην ἄλοχον θέτο Μῆτιν

πλεῖστα θεῶν εἰδυῖαν ἰδὲ θνητῶν ἀνθρώπων

ἀλλ ὅτε δὴ ῥ ἤμελλε θεὰν γλαυκῶπιν Ἀθήνην

τέξεσθαι τότ ἔπειτα δόλωι φρένας ἐξαπατήσας

890 αἱμυλίοισι λόγοισιν ἑὴν ἐσκάτθετο νηδὺν

Γαίης φραδμοσύνηισι καὶ Οὐρανοῦ ἀστερόεντος ()

Αὐτὸς δ ἐκ κεφαλῆς γλαυκώπιδα γείνατ Ἀθήνην

925 δεινὴν ἐγρεκύδοιμον ἀγέστρατον ἀτρυτώνην

πότνιαν ἧι κέλαδοί τε ἅδον πόλεμοί τε μάχαι τε

Ἥρη δ Ἥφαιστον κλυτὸν οὐ φιλότητι μιγεῖσα

γείνατο καὶ ζαμένησε καὶ ἤρισε ὧι παρακοίτηι

ἐκ πάντων τέχνηισι κεκασμένον Οὐρανιώνων6

(Teogonia 886-891924-929)

6 Texto disponiacutevel em httpwwwhs-

augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Hesiodoshes_theohtml acessado em 22 de abril agraves 2048

hs

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Zeus rei dos Deuses primeiro desposou Astuacutecia

mais saacutebia que os deuses e os homens mortais

Mas quando ia parir a Deusa de olhos glaucos Atena

ele enganou sua entranhas com ardil

890 com palavras sedutoras e engoliu-a ventre abaixo

por conselhos de Terra e do Ceacuteu constelado

()

Ele proacuteprio da cabeccedila gerou a de olhos glaucos

925 Atena terriacutevel estrondante guerreira infatigaacutevel

soberana a quem apraz fragor combate e batalha

Hera por raiva e por desafio a seu esposo

natildeo unida em amor gerou Hefesto

nas artes brilho agrave parte de toda raccedila do Ceacuteu7

Ainda segundo Otto em Homero temos pela primeira vez uma ideacuteia clara a

respeito do destino humano Por isso no Canto XXII da Iliacuteada Atena ao impelir Heitor ao

combate com Aquiles natildeo o faz agir assim apenas por desafeto mas tambeacutem para ajudaacute-lo a

cumprir seu destino como bem explica Otto ―O divino se faz demoniacuteaco para quem foi

chamado pelo destino (2005 p 252)

Otto chama-nos a atenccedilatildeo para outro aspecto importante na representaccedilatildeo

homeacuterica a respeito da significaccedilatildeo das Moiras e as diferenccedilas de posicionamento em relaccedilatildeo

a elas por parte de Hesiacuteodo e Homero Desta maneira as Moiras referidas por Hesiacuteodo na

Teogonia fazem parte do mundo grego arcaico e cada uma cumpre uma funccedilatildeo especiacutefica

Cloto tece o fio da vida a Laacutequesis mede e a Aacutetropos corta

Na Teogonia elas satildeo sempre referidas no plural Moiras e satildeo representadas

como aquelas que nos datildeo bens e males ou seja datildeo a parte que nos cabe e esta pode ser boa

ou maacute Elas aparecem nomeadas tambeacutem por Queres Eriacutenias sempre no plural estatildeo sempre

pressentes em nascimentos mortes e casamentos e satildeo perseguidoras implacaacuteveis daqueles

que cometem crimes de sangue derramando sangue de parente Em Homero ao contraacuterio

essa representaccedilatildeo do destino eacute realizada no singular Moicurrenra e estaacute relacionada agraves

determinaccedilotildees negativas de morte quinhatildeo cataacutestrofe destino ndash esta observaccedilatildeo pode ser

feita principalmente na Iliacuteada Na Odisseacuteia contudo observamos uma exceccedilatildeo pois apesar

de serem unificadas daiacute a utilizaccedilatildeo do singular elas seratildeo responsaacuteveis pela determinaccedilatildeo do

destino de Odisseu e este estaacute destinado a alcanccedilar a meta traccedilada Mesmo assim apesar da

Moicurrenra ter-lhe destinado bens futuros Odisseu teraacute que passar por inuacutemeras dificuldades ateacute

7 Traduccedilatildeo de Jaa Torrano (2009)

23

que possa retornar ao lar Ateacute porque em Homero o caraacuteter da Moicurrenra eacute restritivo Assim

mesmo para Odisseu ela prescreve em muitos momentos que ele voltaraacute mas ainda natildeo ateacute

que venha a sofrer e cumprir todos os desiacutegnios

Na eacutepoca homeacuterica segundo Otto vemos tambeacutem a representaccedilatildeo de perda do

culto ao divino mais especificamente na Odisseacuteia Como exemplo maior desta situaccedilatildeo em

que o culto ao divino mostra-se enfraquecido constatamos em VIII v 267 a narraccedilatildeo por

Demoacutedoco do caso amoroso entre Ares e Afrodite servindo de contentamento para os

ouvintes assim o culto divino eacute transformado em diversatildeo Na Odisseacuteia Telecircmaco chega a

desconfiar se mesmo com a ajuda de Atena consiguiraacute vencer os pretendentes Esta

peculiaridade em Homero eacute importante pois influencia produccedilotildees poeacuteticas posteriores a

exemplo das trageacutedias em que o poder divino seraacute questionado

Sobre as variadas representaccedilotildees culturais que faz Homero do mundo grego

arcaico sabemos que ela natildeo eacute uniforme mesmo sendo a micecircnica a realidade central da

eacutepica homeacuterica Desse modo diz-nos Denys Page (1977) acerca da heterogeneidade

mimetizada por Homero que ―quando nos voltamos para o ambiente poliacutetico e social de

Homero a dificuldade estar em ele nos parecer um quadro composto com elementos de

civilizaccedilotildees diferentes (PAGE 1977 p 19) Assim temos nas obras homeacutericas todo um

arcabouccedilo de representaccedilotildees e evoluccedilotildees do mundo grego sejam estas religiosas culturais

linguumliacutesticas dos versos dos mitos heroacuteicos sejam divinas entre outras

12 Apresentaccedilatildeo da Odisseacuteia

A respeito da literatura grega podemos identificar no geral trecircs momentos

baacutesicos de produccedilatildeo literaacuteria ocorridos antes de Cristo satildeo eles o Periacuteodo Arcaico que se

inicia no seacuteculo VIII aC e termina em V aC o Periacuteodo Claacutessico de V aC ao seacuteculo IV aC

e o denominado Periacuteodo Alexandrino iniciado em IV aC e estendendo-se ateacute III aC

O Periacuteodo Arcaico (VIII ndash V a C) eacute o iniciador da literatura ocidental marcado

notadamente por forte influecircncia da oralidade dos rapsodos e aedos Nesse periacuteodo satildeo

compostas as obras iniciadoras de toda a literatura ocidental Iliacuteada e Odisseacuteia de Homero e

Teogonia e Os Trabalhos e os Dias de Hesiacuteodo A visatildeo de mundo dessa eacutepoca eacute regida pelas

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leis da qemij para os deuses e dimacrkh para os homens o muordfqoj8 explica o mundo e sua

organizaccedilatildeo os heroacuteis defendem a paacutetria a famiacutelia e sua timh a honra para consagrarem-se

com a a)reth (a virtude guerreira intelectual da nobreza)

No Periacuteodo Claacutessico (seacuteculo V ndash IV a C) representa-se o mundo da poacutelis Nesse

periacuteodo natildeo haacute a centralizaccedilatildeo na lei divina dos deuses qemij nem na lei divina direcionada

aos homens dikh como ocorre no mundo arcaico Agora haacute o nomoj a lei escrita que deve

nortear os cidadatildeos da poacutelis Assim o loacutegoj atraveacutes do discurso e do raciociacutenio loacutegico eacute

quem explica o mundo sob a reflexatildeo filosoacutefica A literatura dessa fase representa por meio

das trageacutedias o conflito e a fragilidade humana diante desse mundo Dessa maneira observar-

se-aacute o conflito entre o muordfqoj e o loacutegoj ou seja os heroacuteis do mundo arcaico estaratildeo em

conflito com o novo mundo e suas novas leis Representam essa fase os tragedioacutegrafos

Eacutesquilo Soacutefocles e Euriacutepedes

No Periacuteodo Alexandrino (seacuteculo IV ndash III a C) temos a expansatildeo do mundo

grego atraveacutes de Alexandre o Grande (335-323 a C) e aproximadamente no seacuteculo III

aC a construccedilatildeo da Biblioteca de Alexandria que como sabemos reuacutene uma infinidade de

obras de extrema importacircncia sendo das maiores bibliotecas que o mundo antigo registra

Nesse periacuteodo Apolocircnio de Rhodes produz Argonaacuteuticas por volta de 295 aC Mas logo

apoacutes o povo romano que comeccedila a expandir suas conquistas e domiacutenios pelo mundo toma a

Greacutecia e a partir dessa influecircncia forma a sua proacutepria literatura

A Odisseacuteia entatildeo composta no seacuteculo VIII aC pertence ao chamado Periacuteodo

Arcaico (VIII ndash V a C) da literatura grega Sua autoria eacute atribuiacuteda a Homero e sabe-se que

foi produzida posteriormente agrave Iliacuteada apesar de natildeo podermos determinar com certeza qual o

periacuteodo de produccedilatildeo de ambas Contudo de acordo com Jaeger observamos que ―do ponto de

vista histoacuterico a Iliacuteada eacute um poema muito mais antigo A Odisseacuteia reflete um quadro muito

posterior da histoacuteria da cultura (JAEGER 2001 p 37) Na Iliacuteada temos como eixo central

da narraccedilatildeo a ira funesta de Aquiles sua retirada e retorno aos combates na Guerra de Troacuteia

Jaacute na Odisseacuteia o eixo estaacute no retorno de Odisseu agrave sua paacutetria e os combates que iraacute travar

com os pretendentes que apoacutes sua saiacuteda para a Guerra de Troacuteia invadem a sua casa

banqueteam-se diariamente pretendendo casar com a sua esposa e apossar-se de seus bens

8 Conforme nos esclarece Vernant em La gregravece ancienne du mythe agrave la raison (1990 p 9-11) em grego

arcaico mucurrenqoj significa palavra discurso mas a partir das discussotildees filosoacuteficas do seacuteculo V aC passa a

figurar em oposiccedilatildeo a logoj designando entatildeo a palavra pronunciada sem reflexatildeo racional contrariamente a

logoj que passa a ser o discurso racional diferenccedilas estas que natildeo existiam no mundo grego arcaico

25

Odisseu enfrenta muitos obstaacuteculos a fim de que possa retornar ao lar apoacutes vinte anos

afastado E ao voltar vecirc que desde entatildeo muitas coisas aconteceram seu filho que quando

ele saiacutera era apenas uma crianccedila cresceu sua matildee faleceu de saudades seu pai preferiu a

reclusatildeo sua esposa para ludibriar os pretendentes de dia tece uma mortalha para Laertes e

agrave noite desfaz-a Em suma o seu palaacutecio encontra-se invadido por pretendentes que natildeo

respeitaram os dons da hospitalidade e por isso seratildeo punidos

Realizando uma anaacutelise comparada entre a Iliacuteada e a Odisseacuteia podemos observar

algumas siginificativas diferenccedilas Entre elas podemos destacar a relaccedilatildeo entre o homem e o

divino Na Odisseacuteia por exemplo os homens possuem maior consciecircncia dos atos e

independecircncia em relaccedilatildeo aos deuses tanto que haacute pouca interferecircncia divina Natildeo

pretendemos dizer natildeo haver presenccedila divina na Odisseacuteia tanto que ilustramos algumas

dessas apariccedilotildees a trama inicia com uma assembleacuteia divina Palas Atena sempre acompanha

Odisseu eou Telecircmaco em suas jornadas e Possidon aparece para vingr-se para vingar-se de

quem feriu seu filho Polifemo Contudo percebe-se que haacute uma interferecircncia divina menor

se compararmos com a Iliacuteada Para este fato eacute bem ilustrativa a fala de Zeus abrindo a

Assembleacuteia dos Deuses no Canto I da Odisseacuteia sob o argumento de que os homens erram e

culpam os deuses por suas falhas Vejamos

ὢ πόποι οἷον δή νυ θεοὺς βροτοὶ αἰτιόωνται

ἐξ ἡμέων γάρ φασι κάκ᾽ ἔμμεναι οἱ δὲ καὶ αὐτοὶ

σφῆισιν ἀτασθαλίηισιν ὑπὲρ μόρον ἄλγε᾽ ἔχουσιν

35 ὡς καὶ νῦν Αἴγισθος ὑπὲρ μόρον ἈτρεἸδαο

γῆμ᾽ ἄλοχον μνηστήν τὸν δ᾽ ἔκτανε νοστήσαντα9 (Odisseacuteia I 32-36)

Oh grandes deuses Agora os mortais culpam os deuses

Pois de noacutes dizem vir a causa de todos seus males quando

eles mesmos por suas loucas presunccedilotildees suportam dores contra o destino

35 assim tambeacutem Egisto contra a decisatildeo do destino do Atrida

desposou a mulher legiacutetima e o matou depois do seu retorno

Na Iliacuteada ao contraacuterio temos a apariccedilatildeo e interferecircncia de diversos deuses em

diversos momentos da narrativa a fim de favorecerem seus aliados Apolo Atena Hera

Posiacutedon Ares Afrodite Apoacutes eles terem lutado a favor dos seus protegidos Zeus no Canto

VIII poriacutebe que eles atuem no campo de batalha vindo a liberaacute-los no Canto XX

9 Texto retirado de httpwwwhs-augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_od01html

agraves 1100hs de 15 de julho

26

Como vimos na Iliacuteada os deuses estatildeo o tempo todo a intervir a favor dos seus

Uma outra caracteriacutestica desta obra e que difere em relaccedilatildeo agrave Odisseacuteia estaacute no relato e

representaccedilatildeo social Isto ocorre porque na primeira haacute uma maior restriccedilatildeo em relaccedilatildeo aos

grupos sociais representados na obra em especial a aristocracia Jaacute a segunda possui um

quadro social mais amplo aparecendo a representaccedilatildeo natildeo soacute da aristocracia como tambeacutem

de pessoas de outra classe como porqueiros mendigo criadas enfim A representaccedilatildeo de

embates eacute mais acentuada na Iliacuteada que na Odisseacuteia por isso

O mais antigo dos poemas mostra-nos o predomiacutenio absoluto do estado de

guerra tal como devia ser no tempo das grandes migraccedilotildees das tribos gregas

A Iliacuteada fala-nos de um mundo situado num tempo em que domina

exclusivamente o espiacuterito heroacuteico da areteacute () A Odisseacuteia ao contraacuterio tem

poucas ocasiotildees para descrever o comportamento dos heroacuteis na luta

(BRANDAtildeO 1998 p 40)

A caracterizaccedilatildeo dos heroacuteis principais Aquiles da Iliacuteada e Odisseu da Odisseacuteia

tambeacutem forma outro ponto de divergecircncia entre os poemas Como sabemos o primeiro heroacutei

distingue-se por sua habilidade guerreira enquanto o segundo por sua habilidade com o

pensamento inteligecircncia Albin Lesky comparando os dois personagens resume de forma

esclarecedora a diferenccedila entre eles dizendo-nos que haacute ―uma prudente reflexatildeo frente a uma

nobre imoderaccedilatildeo um haacutebil espiacuterito de conciliaccedilatildeo face a uma brusca aspereza um prudente

caacutelculo do procedimento mais oportuno face agrave corrida precipitada pelo caminho mais curto

(LESKY 1995 p 60)

Em relaccedilatildeo agrave estrutura da Odisseacuteia comparando-a com a da Iliacuteada diz-nos

Aristoacuteteles no capiacutetulo 24 verso 1458b da Poeacutetica que aquela eacute bem mais complexa ateacute

mesmo por ter cenas de asup1nagnwiquestrisij Este como sabemos eacute um elemento estrutural

importante por atribuir mais complexidade ao enredo e na Odisseacuteia temos mais de uma

ocasiatildeo em que aparece asup1nagnwiquestrisij Por exemplo no Canto XVII versos 290-327 o

cachorro Argos reconhece Odisseu apoacutes vinte anos e jaacute cansado e velho aleacutem de toda a

emoccedilatildeo pela qual eacute tomado vem a falecer Observemos a cena como ocorre

300 ἔνθα κύων κεῖτ᾽ Ἄργος ἐνίπλειος κυνοραιστέων δὴ τότε γ᾽ ὡς ἐνόησεν10 Ὀδυσσέα ἐγγὺς ἐόντα

10

Este verbo ecopynoiquesthsen eacute o aoristo de noew que significa conhecer perceber Neste caso eacute importante

entendermos que o aoristo natildeo eacute tempo verbal nem modo e sim aspecto indicando a accedilatildeo pontual Essa

27

οὐρῆι μέν ῥ᾽ ὅ γ᾽ ἔσηνε καὶ οὔατα κάββαλεν ἄμφω ἆσσον δ᾽ οὐκέτ᾽ ἔπειτα δυνήσατο οἷο ἄνακτος ἐλθέμεν αὐτὰρ ὁ νόσφιν ἰδὼν ἀπομόρξατο δάκρυ ()

326 Ἄργον δ᾽ αὖ κατὰ μοῖρ᾽ ἔλαβεν μέλανος θανάτοιο αὐτίκ᾽ ἰδόντ᾽ Ὀδυσῆα ἐεικοστῶι ἐνιαυτῶι11 (Odisseacuteia XVII 290-327)

Ali jazia o cachorro Argos cheio de carrapatos

Por um lado como percebeu Odisseu passando proacuteximo

por outro abanou a cauda e baixou ambas orelhas

depois natildeo pocircde de ir para perto do seu senhor

Este tendo visto isso ao longe enxugou uma laacutegrima

Por sua vez o destino de negra morte levou Argos para baixo

Logo depois de ver Odisseu apoacutes vinte anos

Outros encontros de reconhecimento tambeacutem ocorrem ao longo da Odisseacuteia

como o de Telecircmaco que reconhece o pai quando este por orientaccedilatildeo de Atena aparece para

o filho em sua forma original (Canto XVI versos 180-219) o da ama Euricleacuteia que

reconhece Odisseu por meio de uma cicatriz (Canto XIX versos 467-500) Peneacutelope tambeacutem

reconhece o esposo quando este revela ter construiacutedo o proacuteprio leito ao casarem (Canto

XXIII versos 181-206) e Laertes pai de Odisseu reconhece o filho quando este lhe indica

todas as plantas que haacute na propriedade (Canto XXIV versos 320-346)

Como pudemos ver a Odisseacuteia possui suas peculiaridades em relaccedilatildeo agrave Iliacuteada

inclusive nas representaccedilotildees sociais e todas essas convergem para a afirmativa de que ela foi

escrita posteriormente A modificaccedilatildeo do sentido da abrvbarrethcent a ampliaccedilatildeo nas representaccedilotildees

sociais a relaccedilatildeo com os deuses a caracterizaccedilatildeo dos heroacuteis principais a complexidade

estrutural e o ponto de vista histoacuterico satildeo alguns exemplos de diferenccedilas existentes entre as

duas eacutepicas homeacutericas Por isso natildeo podemos referir-nos agraves eacutepicas homeacutericas englobando-as

num todo homogecircneo ateacute porque numa anaacutelise mais especiacutefica observamos diferenccedilas

relevantes apesar de possuiacuterem ligaccedilotildees claras uma com a outra

peculiaridade do verbo grego explica-se atraveacutes do verbo indo-europeu cujas formas indicavam apenas a noccedilatildeo

de aspecto E eram trecircs as noccedilotildees de aspecto o imperfectivo o perfectivo e o pontual (FARIA 1958) O

primeiro designava a accedilatildeo era inacabada o segundo a accedilatildeo acabada e o terceiro a accedilatildeo pontual por isso eacute

bastante usado em narrativas Na citaccedilatildeo acima Homero utilizou-se da forma do aoristo ecopynoiquesthsen que

traduzimos por ―percebeu ou seja indicando um fato pontual (aoristo) do momento em que o cachorro

reconhece Odisseu numa accedilatildeo que nem estaacute acabada (perfectivo) nem inacabado (imperfectivo) 11

Texto disponiacutevel em

httpwwwhsaugsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_od17html

28

A explanaccedilatildeo que fizemos tem como objetivo contextualizar situar e caracterizar o

nosso objeto de pesquisa o Canto XI da Odisseacuteia Tais referecircncias satildeo relevantes para que

compreendamos o seu todo e assim mais facilmente seja compreendida a nossa anaacutelise

especiacutefica que eacute analisar o traacutegico na Odisseacuteia mais especificamente no Canto XI

121 A Estrutura do poema

Como jaacute dissemos A Odisseacuteia enquadra-se no Periacuteodo Arcaico (VIII ndash V a C)

da literatura Grega e portanto possui marcas da oralidade como a repeticcedilatildeo e o uso de

epiacutetetos aleacutem de ter a partir do muordfqoj as explicaccedilotildees dos fatos Essa sociedade retratada

tem na a)reth a distinccedilatildeo de excelecircncia do nobre principalmente por meio do seu heroacutei

principal Odisseu soacute que mais especificamente relacionada agrave virtude intelectual de

inteligecircncia de astuacutecia e de prudecircncia

De estrutura complexa e narrada in medias res a Odisseacuteia naturalmente condiz

com os aspectos estruturais da epopeacuteia e que satildeo descritos por Aristoacuteteles no momento em

que a compara com a estrutura da trageacutedia Mas para que possamos entender a estrutura da

epopeacuteia faz-se necessaacuterio que entendamos primeiramente o que ela significa Esta

denominaccedilatildeo eacute oriunda do termo grego iexclepopoiia e serve para designar genericamente a

poesia eacutepica Esta palavra como indica Romizi (2007) eacute formada por eAtildepoj que significa

palavra o que eacute dito esta por sua vez relaciona-se ao verbo eagravepw dizer cantar nomear e a

poiew verbo temaacutetico que significa criar produzir Estes nomes possuem o mesmo radical

das palavras poihsij e poihthj a primeira refere-se agrave criaccedilatildeo poeacutetica e o segundo ao

criador da poesia A partir desse referencial etimoloacutegico podemos entender iexclepopoiia natildeo

simplesmente como poesia eacutepica como genericamente definem muitos dicionaacuterios mas como

o canto (eagravepw) daquilo que fora criado (poihsij) pelo poeta (poihthj) daiacute a formaccedilatildeo de

epopeacuteia (ecopypopoiia)

Assim entendido agora o que designamos como epopeacuteia podemos compreender

melhor a sua estrutura delineada primeiramente por Aristoacuteteles Na Poeacutetica o filoacutesofo define

a trageacutedia e para tanto realiza um estudo comparativo com a comeacutedia e com a epopeacuteia A

partir dessa comparaccedilatildeo podemos extrair o entendimento sobre a estrutura e as caracteriacutesticas

29

da epopeacuteia jaacute que em alguns momentos ela se assemelha e em outros diferencia-se da

trageacutedia objeto central da anaacutelise aristoteacutelica

Segundo Aristoacuteteles a trageacutedia e a epopeacuteia possuem uma semelhanccedila em relaccedilatildeo

aos objetos da imitaccedilatildeo isto porque em ambas imitam-se seres superiores os heroacuteis a

aristocracia enquanto que na comeacutedia satildeo imitados os chamados seres inferiores e todas as

suas caracteriacutesticas risiacuteveis Homero assim como os tragedioacutegrafos teria cantado com

unidade de accedilatildeo Assim explica Aristoacuteteles no capiacutetulo VII da Poeacutetica que Homero em suas

epopeacuteias delinea um argumento uacutenico agrupando-o com episoacutedios que convergem para o seu

eixo por isso natildeo canta toda a Guerra de Troacuteia nem muito menos todos os acontecimentos

da vida de Odisseu Apesar de que para Lesky (1995) haacute na Odisseacuteia algumas discussotildees

sobre a sua unidade principalmente em relaccedilatildeo agrave Telemaquia que vai do Canto I ao IV e que

alguns pensam ter sido uma parte ou um acreacutescimo Todavia mesmo diante dessas

controveacutersias Lesky diz-nos que nos importa saber que ela ―daacute voz a uma forccedila de

composiccedilatildeo e uma mestria de narraccedilatildeo que soacute se encontram nas grandes obras de arte Nesse

sentido tambeacutem ela constitui uma unidade (LESKY 1995 p 71)

Continuando a definiccedilatildeo sobre os gecircneros no capiacutetulo XXIV Aristoacuteteles diz que

a epopeacuteia difere da trageacutedia em relaccedilatildeo ao emprego e dimensatildeo do metro como tambeacutem pela

extensatildeo jaacute que a trageacutedia deve limitar seus fatos a um periacuteodo do sol enquanto a epopeacuteia

natildeo tem duraccedilatildeo limitada em contrapartida assemelham-se por tratarem de assuntos seacuterios

Como vemos a partir das comparaccedilotildees realizadas por Aristoacuteteles na tentativa de

elucidar as caracteriacutesticas da trageacutedia acabamos por compreender tambeacutem a estruturaccedilatildeo da

epopeacuteia Dessa maneira como epopeacuteia a Odisseacuteia nosso objeto de estudo realiza imitaccedilatildeo

de homens superiores possui argumento uacutenico e episoacutedios que o desenvolvem neste caso o

retorno de Odisseu Aleacutem de natildeo ter limitaccedilatildeo de duraccedilatildeo jaacute que durante toda a epopeacuteia

narram-se fatos ocorridos ao longo de vinte anos

Somado aos elementos estruturais da eacutepica apresentados por Aristoacuteteles e jaacute

exemplificados por noacutes anteriormente destacaremos agora a partir da Odisseacuteia o proecircmio a

narraccedilatildeo e o epiacutelogo que satildeo trecircs importantes elementos constitutivos do um texto eacutepico

O proecircmio eacute composto pela invocaccedilatildeo e pela proposiccedilatildeo Na Odisseacuteia ele se

encontra nos dez primeiros versos Atraveacutes da Teogonia (2007) entendemos o porquecirc da

invocaccedilatildeo processo no qual o poeta chama as Musas Vejamos o trecho abaixo

25 Μοῦσαι Ὀλυμπιάδες κοῦραι Διὸς αἰγιόχοιο

ποιμένες ἄγραυλοι κάκ ἐλέγχεα γαστέρες οἶον

30

ἴδμεν ψεύδεα πολλὰ λέγειν ἐτύμοισιν ὁμοῖα

ἴδμεν δ εὖτ ἐθέλωμεν ἀληθέα γηρύσασθαι

ὣς ἔφασαν κοῦραι μεγάλου Διὸς ἀρτιέπειαι

30 καί μοι σκῆπτρον ἔδον δάφνης ἐριθηλέος ὄζον

δρέψασαι θηητόν ἐνέπνευσαν δέ μοι αὐδὴν

θέσπιν ἵνα κλείοιμι τά τ ἐσσόμενα πρό τ ἐόντα

καί μ ἐκέλονθ ὑμνεῖν μακάρων γένος αἰὲν ἐόντων

σφᾶς δ αὐτὰς πρῶτόν τε καὶ ὕστατον αἰὲν ἀείδειν

35 ἀλλὰ τίη μοι ταῦτα περὶ δρῦν ἢ περὶ πέτρην12 (Teogonia 22-35)

Musas olimpiacuteades virgens de Zeus porta-eacutegide

―Pastores agrestes vis infacircmias e ventres soacute

sabemos muitas mentiras dizer siacutemeis aos fatos

e sabemos se queremos dar a ouvir revelaccedilotildees

Assim falaram as virgens do grande Zeus veriacutedicas

por cetro deram-me um ramo a um loureiro viccediloso

colhendo-o admiraacutevel e inspiraram-me um canto

divino para que eu glorie o futuro e o passado

impeliram-me a hinear o ser dos venturosos sempre vivos

e a elas primeiro e por uacuteltimo sempre cantar13

Assim como foi indicado na citaccedilatildeo acima na Odisseacuteia o poeta invocaraacute as

Musas a fim de que o ajudem a cantar o polumhtij ou seja o muito astucioso Odisseu No

proecircmio da Odisseacuteia como jaacute foi dito entre o primeiro e o deacutecimo verso do Canto I

encontramos tambeacutem a proposiccedilatildeo do poema e naturalmente o seu argumento que eacute cantar as

muitas aventuras e desventuras vividas por Odisseu e seus companheiros durante dez anos

desde que saiacuteram da Guerra de Troacuteia ateacute o retorno a Iacutetaca Vejamos

Ἄνδρα μοι ἔννεπε μοῦσα πολύτροπον ὃς μάλα πολλὰ

πλάγχθη14 ἐπεὶ Τροίης ἱερὸν πτολίεθρον ἔπερσεν

πολλῶν δ᾽ ἀνθρώπων ἴδεν ἄστεα καὶ νόον ἔγνω

πολλὰ δ᾽ ὅ γ᾽ ἐν πόντωι πάθεν ἄλγεα ὃν κατὰ θυμόν

5 ἀρνύμενος ἥν τε ψυχὴν καὶ νόστον ἑταίρων

ἀλλ᾽ οὐδ᾽ ὣς ἑτάρους ἐρρύσατο ἱέμενός περ

αὐτῶν γὰρ σφετέρηισιν ἀτασθαλίηισιν ὄλοντο

νήπιοι οἳ κατὰ βοῦς Ὑπερίονος Ἠελίοιο

12

Texto diponiacutevel em httpwwwhsaugsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Hesiodoshes_theohtml

retirado agraves 1633hs do dia 27 de abril de 2010 13

Traduccedilatildeo de Torrano (2009) 14

Neste proecircmio da Odisseacuteia verificamos que praticamente todas as formas verbais estatildeo no aoristo satildeo elas

plaiquestgxqh eOacutepersen iOacuteden eOacutegnw paiquestqen ecopyrruiquestsato oOacutelonto e acopyfeiiquestleto Essa constataccedilatildeo linguumliacutestica eacute

bem coerente com o teor literaacuterio desta citaccedilatildeo ateacute porque por tratar-se de um proecircmio em que os fatos satildeo

aunciados e resumido ao iniacutecio da narrativa entendemos natiralmente que natildeo deve haver noccedilatildeo verbal de

aspecto acabado (perfectivo) ou inacabado (imperfectivo) jaacute que as accedilotildees estatildeo sendo apenas pontualmente

assinaladas daiacute a pertinecircncia do uso do aoristo

31

ἤσθιον αὐτὰρ ὁ τοῖσιν ἀφείλετο νόστιμον ἦμαρ

10 τῶν ἁμόθεν γε θεά θύγατερ Διός εἰπὲ καὶ ἡμῖν15 (Odisseacuteia I 1-10)

Musa conta-me sobre o varatildeo de muitas voltas que muito

vagou depois que saqueou a sagrada cidade de Troacuteia

Viu as cidades de muitos homens e conheceu sua mente

no mar padeceu muitos sofrimentos de encontro ao seu acircnimo

esforccedilando-se por sua alma e pelo regresso dos companheiros

Poreacutem natildeo salvou os companheiros mesmo lanccedilando-se para isso

Pois pereceram por causa das accedilotildees insensatas deles mesmos

Tolos que devoravam os bois do Hiperiocircnio Sol

Por outro lado este os tirou o dia do retorno

Deusa filha de Zeus conta para noacutes a partir de qualquer ponto

Jaacute atraveacutes da narraccedilatildeo que eacute o desenvolvimento do argumento satildeo cantadas ao

longo dos vinte e quatro cantos e de seus quase treze mil versos todas as viagens e encontros

de Odisseu sua estada em Ogiacutegia a visita agrave Feaacutecia onde narra sua visita aos Lotoacutefagos aos

Ciclopes Eacuteolo os Lestrigotildees Circe a realizaccedilatildeo da evocaccedilatildeo aos mortos o encontro com as

Sereias Cila Cariacutebdes os Bois do Sol ateacute a sua volta para Iacutetaca onde efetua a chacina dos

pretendentes

No epiacutelogo por sua vez ocorre o fechamento da narrativa com uma nova

invocaccedilatildeo e com a abertura de perspectiva para um novo canto Na Odisseacuteia natildeo haacute uma

manifesta invocaccedilatildeo agraves Musas no fim da narraccedilatildeo como temos no iniacutecio mas deixa-se

abertura para um novo canto que neste caso seria o da instalaccedilatildeo da paz e da harmonia em

Iacutetaca Mas a paz para Odisseu e seu povo mesmo depois de vinte anos de aacuterduos e de intensos

trabalhos soacute iria se concretizar caso Odisseu seguindo as orientaccedilotildees de Tireacutesias dadas no

Canto XI fizesse uma nova viagem e cumprisse com os desiacutegnios divinos

Para que melhor possamos entender os episoacutedios ocorridos ao longo da Odisseacuteia e

o contexto em que se realiza o Canto XI - nosso objeto de anaacutelise - abaixo realizamos uma

siacutentese de cada Canto

Canto I - Ocorre a Assembleacuteia dos Deuses Os divinos reuacutenem-se com exceccedilatildeo de Posiacutedon a

fim de decidir o regresso de Odisseu a Iacutetaca visto que o heroacutei permanece na ilha de Calipso

haacute muito tempo sem perspectiva de regresso Fica decidido que ele deve voltar para sua paacutetria

e Atena disfarccedilada em Mentes rei dos Taacutefios vai ateacute Telecircmaco filho de Odisseu com

15

Texto disponiacutevel em

httpwwwhsaugsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_od01html retirado agraves 2107hs

de 27 de abril de 2010

32

Peneacutelope para aconselhaacute-lo e orientaacute-lo na busca do pai Neste iacutenterim ocorre a Festa dos

Pretendentes no palaacutecio de Odisseu

Canto II - Telecircmaco exortado por Atena convoca uma assembleacuteia com os itacenses para

solicitar um navio que o levasse a Pilo cidade de Nestor e a Esparta paacutetria do atrida

Menelau para que pudesse buscar informaccedilotildees sobre o pai Ele entatildeo parte escondido de sua

matildee logo apoacutes receber um navio de Noeacutemone e de revelar soacute a Euricleacuteia sobre sua partida

Canto III - O jovem priacutencipe chega a Pilo acompanhado por Atena disfarccedilada de Mentor e

encontram os Piacutelios no teacutermino da realizaccedilatildeo de sacrifiacutecios ao deus Posiacutedon Telecircmaco dirige-

se a Nestor perguntando por seu pai As suas respostas natildeo satildeo muito animadoras apenas faz

relatos sobre Troacuteia seu retorno com Menelau e o fim traacutegico de Agamecircmmnon Todavia

Nestor auxilia Telecircmaco em sua jornada enviando-lhe para Lacocircnia com Pisiacutestrato seu filho

Canto IV - Em Esparta Menelau recebe Telecircmaco com Pisiacutestrato O Atrida lhes conta sobre

o seu retorno dificultoso a destruiccedilatildeo de Troacuteia a profecia de Proteu a tristeza pela morte do

irmatildeo Agamecircmnon e a estadia de Odisseu na ilha de Calipso Telecircmaco natildeo tendo obtido as

notiacutecias que esperava prepara-se para retonar Em Iacutetaca ocorre uma assembleacuteia entre os

pretendentes a fim de tramarem uma emboscada para raptar Telecircmaco

Canto V ndash Na segunda Assembleacuteia dos Deuses fica decidido pelo imediato retorno de

Odisseu Atena solicita a Zeus para que Hermes vaacute a Ogiacutegia onde Odisseu estaacute retido e

liberte-o O cronida cumpre Entatildeo o heroacutei parte em uma jangada que construiu Jaacute no deacutecimo

oitavo dia em que navegava Odisseu eacute visto por Posiacutedon que levanta uma tempestade

destruindo a sua jangada Odisseu eacute salvo pelo veacuteu de Ino e chega agrave ilha dos Feaacutecios

Canto VI - Jaacute na terra dos Feaacutecios Odisseu eacute ajudado por Nausiacutecaa filha do rei dos Feaacutecios

A moccedila ao dormir sonha com Atena a pedir-lhe que fosse lavar roupas no rio Nausiacutecaa

obedece agraves instruccedilotildees de Atena e segue com algumas companheiras Apoacutes lavar as roupas

comeccedilam a brincar Odisseu que dormia desperta com o barulho e recorre ao auxiacutelio de

Nausiacutecaa Esta lhe concede oferece-lhe roupas e alimentos Eles partem para cidade

Canto VII - Seguindo as orientaccedilotildees de Nausiacutecaa ao chegar ao palaacutecio Odisseu ajoelha-se

aos peacutes da rainha Arete para que ela o envie para casa Alciacutenoo o rei dos Feaacutecios concede

33

sua solicitaccedilatildeo coloca-o ao seu lado e oferece-lhe comida Odisseu sem revelar-se conta

sobre o que lhe ocorreu desde que partira da ilha de Calipso ateacute o auxiacutelio de Nausiacutecaa

Canto VIII - Uma assembleacuteia eacute realizada pelos Feaacutecios para decidirem os meios de

devolverem o estrangeiro agrave sua terra Decidem pocircr a disposiccedilatildeo um navio para o seu retorno

Depois banqueteiam-se na casa do rei Alciacutenoo e jogam do disco Demoacutedoco o aedo dos

Feaacutecios comeccedila a cantar a amor de Ares e Afrodite e o cavalo de madeira que penetrou as

muralhas troianas Odisseu derrama laacutegrimas initerruptamente Alciacutenoo natildeo compreende

desconfia do heroacutei e pergunta o porquecirc do choro de onde ele vem e quem ele eacute

Canto IX - Odisseu revela sua identidade e filiaccedilatildeo iniciando a narraccedilatildeo de tudo o que

passou desde a sua saiacuteda da guerra de Troacuteia no paiacutes dos Ciacuteconos na Maleacuteia onde um vento

forte fez-lhes desviar-se do caminho indo para a terra dos Lotoacutefagos Depois param no paiacutes

dos Ciclopes onde o Polifemo devorou seis dos seus guerreiros O heroacutei astutamente

consegue escapar

Canto X - Odisseu vai buscar ajuda com Eacuteolo guardiatildeo dos ventos e recebe dele uma sacola

com todos os ventos O heroacutei dorme Seus companheiros pensando haver ouro na sacola

abrem-na entatildeo os ventos satildeo disparados aleatoriamente Odisseu acorda e volta para Eacuteolo

Este agora recusa a ajuda e expulsa-os A narraccedilatildeo aos Feaacutecios continua sobre a passagem

pela terra dos Lestrigotildees antropoacutefagos e de Circe feiticeira em Eacuteeia Nesta terra Odisseu jaacute

acomodado eacute exortado pelos companheiros para retornar Circe como prometera auxilia-o

no retorno e diz para ele ir ao Hades para falar com o adivinho Tireacutesias

Canto XI - Odisseu narra aos Feaacutecios como chegou agrave borda do Hades para consultar

Tireacutesias e sua evocaccedilatildeo aos mortos Pergunta a Tireacutesias se voltaria para casa e como deveria

proceder Tireacutesias daacute-lhe todas as informaccedilotildees diz-lhe inclusive que ele conseguiraacute o retorno

agrave paacutetria mas que enfrentaraacute muitas dificuldades Depois muitos mortos vatildeo se aproximando

de Odisseu como sua matildee Anticleacuteia e os companheiros de Troacuteia Aquiles Agamecircmnon e

Aacutejax

Canto XII - Relata sobre seu retorno desde o Hades ateacute Eacuteeia na ilha de Circe Esta o

adverte sobre os desafios que encontraraacute e como deve proceder Entatildeo Odisseu lanccedila-se ao

mar Primeiro resiste ao belo canto das Sereias depois passa por Cila e Cariacutebdes ateacute chegar agrave

34

ilha de Heacutelio Nesta seus companheiros natildeo resistem agrave fome e alimentam-se com as vacas do

deus Heacutelio desrespeitado o deus eacute vingado por Zeus que fulmina a nau de Odisseu e dos

demais Odisseu narra tambeacutem como sozinho chegou agrave ilha de Calipso apenas em uma balsa

Canto XIII - Termina a narraccedilatildeo aos Feaacutecios Impressionados Alciacutenoo e os demais

oferecem-lhe presentes em sinal de honra Como havia sido combinado os Feaacutecios levam

Odisseu a Iacutetaca e o deixam em solo paacutetrio Por castigo de Posiacutedon o navio que o leva eacute

petrificado ao retornar Atena auxilia Odisseu aconselha-o sobre a vinganccedila dos pretendentes

e desfigura-o em mendigo para natildeo ser reconhecido

Canto XIV - O agora aparente mendigo Odisseu chega agrave casa de um fiel serviccedilal o porqueiro

Eumeu Apesar de natildeo reconhecer seu rei concede-lhe toda a hospitalidade e o informa sobre

o que sofre com os desmandos do palaacutecio como as coisas estatildeo ocorrendo na cidade e diz que

acredita no retorno de Odisseu

Canto XV - Neste canto ocorre o retorno de Telecircmaco O priacutencipe permanecia ainda no reino

de Menelau mas em sonho Atena exorta-o retornar para Iacutetaca indicando-lhe o que fazer

para evitar a emboscada armada pelos pretendentes Presenteado por Menelau Telecircmaco

parte Em Iacutetaca vai direto para a casa de Eumeu

Canto XVI ndash Na casa de Eumeu Telecircmaco orienta o porqueiro para que avise a sua matildee do

seu retorno Odisseu e Tlecircmaco por obra de Atena se reconhecem e tramam a vinganccedila dos

pretendentes Eumeu retorna do palaacutecio apoacutes dar a notiacutecia a Peneacutelope do retorno do seu filho

Canto XVII - Odisseu vai com Eumeu para o seu palaacutecio enquanto Telecircmaco conta agrave matildee o

que ocorreu em sua viagem No paacutetio do palaacutecio Argos o velho catildeo de Odisseu reconhece-o

apoacutes os vinte anos decorridos e morre O rei disfarccedilado em mendigo eacute insultado por

Antiacutenoo um dos pretendentes

Canto XVIII - A fim de satisfazer os pretendentes Odisseu luta com Ino um mendigo no

palaacutecio Peneacutelope recrimina o tratamento dado ao estrangeiro questiona a Telecircmaco a falta de

firmeza diante daquela injusticcedila Odisseu como hoacutespede por decisatildeo de Peneacutelope fica esta

noite na sala da casa Todos vatildeo dormir depois de beberem e comerem

35

Canto XIX - Odisseu diz a Peneacutelope ser de Creta e garante que seu esposo iraacute voltar

Peneacutelope muito astuta natildeo acredita na histoacuteria criada e questiona Ele responde corretamente

mas ela natildeo acredita que o Rei regressaraacute Manda que as criadas sirvam bem o hoacutespede A

ama Euricleacuteia lava seus peacutes e o reconhece por uma antiga cicatriz Diante das evidecircncias o

heroacutei confirma a descoberta mas diz para que ela natildeo o revele

Canto XX - Os pretendentes novamente reuacutenem-se em banquete Odisseu pede a Zeus que

de sua casa surja algueacutem para ajudar-lhe na vinganccedila como um sinal de que sairia vitorioso

Zeus faz trovejar e aparece uma criada que lhe conta o pressaacutegio Pede ainda que Zeus

sinalize se aquele eacute o uacuteltimo dia de gozo dos pretendentes em seu palaacutecio Mais uma vez

Zeus faz trovejar Odisseu alegra-se e vai conversar com Eumeu e Fileacutecio Os pretendentes

banqueteiam-se

Canto XXI - Atena instiga no coraccedilatildeo de Peneacutelope uma atitude para pocircr fim agravequela indecisatildeo

e agraves regalias dos pretendentes os quais vinham a sua casa banquetear-se desrespeitando os

dons da hospitalidade Entatildeo ela corre pega o arco de Odisseu e diz que casaraacute com aquele

que o envergar retesar a corda e remessar a seta pelos doze orifiacutecios Os pretendentes vatildeo

tentando inutilmente Eacute a vez de Odisseu ainda como mendigo Todos desacreditam mas eis

que ele cumpre o indicado e triunfa sobre todos

Canto XXII ndash Odisseu revela-se como o senhor de Iacutetaca e inicia a chacina dos pretendentes

Atena estaacute presente em seu auxiacutelio Melacircntio aparece com armas e escudos Odisseu abalado

diz a Telecircmaco que algueacutem os traiu O priacutencipe revela ser o culpado em deixar a porta aberta

e manda fechar a porta Telecircmaco e os fieacuteis serventes Eumeu e Fileacutecio partem para vingar-se

dos serviccedilais e de Melacircntio O aedo e o arauto satildeo poupados da chacina

Canto XXIII ndash Euricleacuteia apoacutes a chacina avisa a Peneacutelope que seu esposo chegara e havia se

vingado dos pretendentes Desconfiada diz que a ama enlouqueceu Mas quis ver a chacina e

quem a realizou De frente para Odisseu permaneceu descrente Telecircmaco acusa a matildee de

frieza mas Odisseu o conteacutem Ela soacute acredita no retorno do esposo quando ele diz como foi

quem construiu o leito do casal Ela entatildeo abraccedila-o saudando seu regresso

Canto XXIV - As almas dos pretendentes satildeo guiadas por Hermes ateacute o Hades Odisseu vai

ateacute seu pai Laertes que demora a acreditar em seu retorno e pede um sinal Odisseu mostra a

36

cicatriz nomeia e quantifica cada fruteira do pomar O pai convencido fraqueja os joelhos e

vai em laacutegrimas abraccedilar o filho Nem tudo estaacute apaziguado pois as famiacutelias dos

pretendentes mortos realizam uma revolta Atena interveacutem para que a ordem seja instaurada

Objetivando comentar acerca da estrutura da Odisseacuteia vimos primeiramente os

periacuteodos da literatura grega com sua duraccedilatildeo e especificidade Depois a fim que pudeacutessemos

melhor explicar a significaccedilatildeo da epopeacuteia claacutessica remetemos nosso estudo para a etimologia

de epopeacuteia do grego epopoiia e sua significaccedilatildeo Passamos entatildeo para as ponderaccedilotildees de

Aristoacuteteles sobre a estrutura da epopeacuteia seu objeto de imitaccedilatildeo duraccedilatildeo suas semelhanccedilas e

diferenccedilas em relaccedilatildeo agrave trageacutedia a fim de compreendermos agrave luz da Poeacutetica as

peculiaridades do gecircnero eacutepico A invocaccedilatildeo a proposiccedilatildeo e a narraccedilatildeo as trecircs partes

estruturais da eacutepica tambeacutem foram referidas por noacutes neste toacutepico e que foram

exemplificados na Odisseacuteia Apoacutes identificar os cantos e versos em que cada parte se realiza

fizemos uma siacutentese de cada Canto Este uacuteltimo processo foi importante para que pudeacutessemos

destacar os episoacutedios narrados ao longo dessa epopeacuteia como tambeacutem para situar o nosso

objeto de pesquisa o Canto XI da Odisseacuteia dentro da obra e do processo sequencial dos

acontecimentos que nele se inserem Por meio dessas etapas constitutivas e construtivas do

presente trabalho acreditamos ter realizado uma apresentaccedilatildeo geral sobre a obra na qual se

insere o nosso corpus

122 Odisseu o heroacutei multifacetado

Antes de inciarmos nossa discussatildeo sobre o multifacetado Odisseu pretendemos

expor brevemente sobre heroacutei e sua significaccedilatildeo no mundo claacutessico Buscando as definiccedilotildees

do Le Grand Bailly (2000) deparamo-nos com a seguinte traduccedilatildeo para hAgraverwj maicirctre chef

noble e completa ―de tout homme noble par la naissance le courage ou le talent (BAILLY

2000 p 909) ou seja o senhor o chefe o nobre e ―todo homem de descendecircncia nobre de

coragem ou de talento Liddell amp Scottlsquos em A Greek-English lexicon (1996) datildeo-nos a

traduccedilatildeo primaacuteria hero (heroacutei) e exemplificam que ―in Homer not restricted to warriors but

applied to all free men of that age as to minstrel the herald (LIDDEL amp SCOTT 1996 p

309) Quer dizer ―em Homero natildeo se restringe apenas aos guerreiros mas se aplica a todo

37

homem livre daquela eacutepoca o menestrel o arauto (Ibidem) Vale ressaltar que essas

definiccedilotildees dos dicionaacuterios baseiam-se na vasta literatura do mundo claacutessico grego a fim de

tentar defini-lo

Para compreendermos melhor a significaccedilatildeo do heroacutei claacutessico veremos tambeacutem

os posicionamentos de Hesiacuteodo e Aristoacuteteles No mito das cinco raccedilas presente em Os

trabalhos e os dias Hesiacuteodo enumera a existecircncia de cinco raccedilas humanas A Raccedila de Ouro a

Raccedila de Prata a Raccedila de Bronze a Raccedila dos Heroacuteis e a Raccedila de Ferro Como vemos as raccedilas

satildeo nomeadas a partir do valor dos metais ouro prata bronze mas entre a de bronze e a de

ferro temos a dos heroacuteis Esta se encontra especificamente dos versos 156 ao 172 Hesiacuteodo a

define como a os hcedilmiqeoi (V 160) os semi-deuses dos oAtildelbioi hAgraverwej (V 172) os heroacuteis

venturosos Uma raccedila criada por Zeus mais justa mais corajosa e de descendecircncia divina dos

que atuaram em Tebas levando muitos agrave morte e outros em Troacuteia por causa de Helena

Diante disso ao morrerem os heroacuteis satildeo levados por ZeuUumlj Kronidhj (V 168) o Zeus

Cronida para a Ilha dos Bem-Aventurados

Aristoacuteteles na Poeacutetica em 1453a define os heroacuteis como seres de situaccedilatildeo

intermediaacuteria pelo fato de que nem satildeo virtuosos nem justos em demasia como tambeacutem natildeo

satildeo tatildeo maldosos aleacutem de pertencerem ao grupo dos que gozam de prestiacutegio e poder e que

satildeo superiores aos homens Por isso seriam os personagens ideais da trageacutedia mesmo porque

as falhas que cometem satildeo muito mais por consequecircncia de um erro do que por falha de

caraacuteter Assim o erro dos heroacuteis conforme preconiza Aristoacuteteles eacute proveniente da accedilatildeo e

natildeo do caraacuteter do personagem Aleacutem do mais o fato de ter prestiacutegio perante a sociedade

tambeacutem facilita a realizaccedilatildeo da empatia do puacuteblico para com o personagem traacutegico e

consequentemente a efetivaccedilatildeo da katarsij16

Odisseu como heroacutei possui os elementos descritos anteriormente Assim como eacute

mostrado no Le Grand Bailly (2000) eacute de descendecircncia nobre um homem de coragem jaacute

segundo Liddlel amp Scott (1996) ele eacute tanto o guerreiro como tambeacutem o aedo basta-nos

lembrar dos Cantos VIII IX X XI e XII da Odisseacuteia quando o heroacutei relata todos os

acontecimentos pelos quais passou ateacute o presente momento Como pressupotildee Hesiacuteodo ele eacute

da raccedila dos heroacuteis que atuou em Troacuteia portanto eacute justo e corajoso de descendecircncia divina

Vale lembrar que Odisseu filho de Laertes eacute descendente da raccedila de Deucaliatildeo e este por

sua vez do titatilde Prometeu Vejamos abaixo a genealogia de Odisseu

16

Esse termo aristoteacutelico seraacute melhor discutido por noacutes no segundo e terceiro capiacutetulos quando detivermos a

nossa anaacutelise para a conceituaccedilatildeo e anaacutelise do traacutegico

38

Prometeu ~ Cliacutemene

darr

Deucaliatildeo ~ Pirra

darr

Deacuteion ~ Diomedes

darr

Ceacutefalo Hermes ~ Quiacuteone

darr darr

Arciacutesio ~ Calcomedusa Autoacutelico ~ Antiacutefea

Laertes ~ Anticleacuteia

darr

Odisseu ~ Peneacutelope

darr

Telecircmaco

Aleacutem disso como pressupotildee Aristoacuteteles Odisseu possui como todo e qualquer

heroacutei prestiacutegio e poder e seu caraacuteter nem eacute tatildeo virtuoso nem tatildeo maleacutefico Deste modo apoacutes

esta breve elucidaccedilatildeo a respeito do heroacutei grego entendemos que natildeo eacute aleatoacuterio o fato de

Odisseu ser o personagem principal e por isso mesmo seu nome daacute o tiacutetulo de uma das mais

importantes obras do ocidente a Odisseacuteia Esta como jaacute dissemos propotildee cantar os seus

feitos desde que partiu de Troacuteia ateacute seu tatildeo pretendido retorno ao lar Por tudo isso Odisseu

eacute um dos maiores e mais completos siacutembolos do heroiacutesmo claacutessico ndash eacute piedoso astuto viril

Aleacutem de assumir as funccedilotildees do heroacutei indo-europeu sacerdotal empreendedor e guerreiro

prescritas por Dumeacutezil em Mythe et Epopee (1995) Natildeo iremos nos alongar nestas

ponderaccedilotildees mas a seguir comentaremos brevemente acerca das identificaccedilotildees de Odisseu

com essas funccedilotildees

A primeira funccedilatildeo a sacerdotal realiza-se a partir do caraacuteter piedoso e temente

aos deuses de Odisseu Para exemplificar eacute soacute nos remetermos ao Canto XII ao contraacuterio dos

seus companheiros Odisseu natildeo se alimenta dos bois do Sol Por saber que tal ato ofende uma

divindade ele evita a imprudecircncia da desonra jaacute seus companheiros cometem a cediluagravebrij e por

isso todos eles seratildeo punidos por Zeus

A segunda a de empreendedor daacute-se atraveacutes de seu empreendedorismo de

fundador e solidificador de cidades fato que pode ser observado ateacute mesmo pela busca da

gloacuteria domeacutestica e natildeo em campo de batalha Lembremos inclusive que Odisseu prefere a

39

mortalidade agrave imortalidade bem como renega a eterna juventude oferecida por Calipso para

regressar a Iacutetaca

A terceira funccedilatildeo do indo-europeu a de guerreiro pode ser vista mais

explicitamente no Canto XXII entre os versos 401 a 406 quando Odisseu realiza a chacina

dos pretendentes e eacute comparado a um leatildeo ensanguentado em meio a suas viacutetimas Estas

compotildeem um nuacutemero de cento e dezesseis jaacute contando com os pretendentes e os servos

Vejamos a referida passagem

εὗρεν ἔπειτ᾽ Ὀδυσῆα μετὰ κταμένοισι νέκυσσιν

αἵματι καὶ λύθρωι πεπαλαγμένον ὥστε λέοντα

ὅς ῥά τε βεβρωκὼς βοὸς ἔρχεται ἀγραύλοιο

πᾶν δ᾽ ἄρα οἱ στῆθός τε παρήϊά τ᾽ ἀμφοτέρωθεν

405 αἱματόεντα πέλει δεινὸς δ᾽ εἰς ὦπα ἰδέσθαι

ὣς Ὀδυσεὺς πεπάλακτο πόδας καὶ χεῖρας ὕπερθεν17

(Odisseacuteia XXII 401- 406)

Entatildeo encontrou Odisseu junto aos cadaacuteveres que havia matado

manchado de sangue e impureza Do mesmo modo que um leatildeo

apoacutes devorar um boi do campo vai embora

Todo o seu peito e as mandiacutebulas de ambos os lados tinha ensanguumlentados

Assim terriacutevel nas faces era de se ver

Deste modo Odisseu em cima tinha manchados as matildeos e os peacutes

Como jaacute antecipamos em toacutepico anterior a Iliacuteada e Odisseacuteia diferem em alguns

aspectos e um deles eacute a caracterizaccedilatildeo do heroacutei Uma diferenccedila baacutesica eacute que a gloacuteria de

Odisseu natildeo se relaciona agrave morte no campo de batalha Jaacute para Aquiles a kaloj qanatoj

a bela morte deve ser imprescindivelmente conquistada em campo de batalha pois de outra

maneira o heroacutei natildeo alcanccedilaria a gloacuteria eterna Deste modo para conseguir a pretendida

gloacuteria Aquiles natildeo pode voltar a seu lar jaacute Odisseu tem de voltar por isso Vernant diz que

ele eacute ―o homem da relembranccedila disposto a aceitar todas as provas e todos os sofrimentos para

cumprir seu destino () voltar e encontrar-se consigo mesmo (VERNANT 2000 p 36)

Assim eacute o ―heroacutei do retorno (Ibidem)

Na Iliacuteada por exemplo por mais que saibamos que o heroacutei principal cantado seja

Aquiles este em muitos momentos divide seu posto com outros heroacuteis os quais inclusive

tecircm um momento especiacutefico soacute para serem cantados Deste modo no Canto V temos a aristia

de Diomedes no VII o combate singular entre Heitor e Aacutejax no XI a aristia de Agamecircmnon

17

Texto retirado em 30 de abril de 2010 agraves 1024hs de httpwwwhs-

augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_od22html

40

no Canto XVI os feitos gloriosos de Paacutetroclo e no XVII a aristia de Menelau entre outros

Como se pode ver cantos seratildeo dedicados agrave exaltaccedilatildeo de outros heroacuteis e dos seus feitos

proporcionando uma descentralizaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave figura do heroacutei maior Aquiles

Na Odisseacuteia ao contraacuterio temos uma centralizaccedilatildeo do siacutembolo heroacuteico a partir de

Odisseu Este conduz o percurso de quase todos os cantos como eixo de glorificaccedilotildees salvo

em alguns momentos em que se daacute espaccedilo para Telecircmaco a chamada Telemaquia (nos

Cantos I ao IV) mas esta natildeo proporciona uma descentralizaccedilatildeo e sim uma acentuaccedilatildeo da

centralizaccedilatildeo visto que eacute a saga do filho de Odisseu assim constitui o siacutembolo da

descendecircncia heroacuteica18

Siacutembolo de piedade de prudecircncia e de respeito ao pudor (aidwj) Odisseu

sempre honra as divindades e esse eacute o argumento utilizado por Atena para Zeus ao pedir que

Odisseu possa regressar ao lar No Canto XXII entre os versos 401 a 416 apoacutes ter matado os

pretendentes e encontrar-se ensanguentado em meio a todos eles Odisseu encontra a ama

Euricleacuteia e esta regozijando-se de alegria eacute contida pelo heroacutei Observemos a accedilatildeo do

prudente Odisseu

εὗρεν ἔπειτ᾽ Ὀδυσῆα μετὰ κταμένοισι νέκυσσιν

αἵματι καὶ λύθρωι πεπαλαγμένον ὥστε λέοντα

ὅς ῥά τε βεβρωκὼς βοὸς ἔρχεται ἀγραύλοιο

πᾶν δ᾽ ἄρα οἱ στῆθός τε παρήϊά τ᾽ ἀμφοτέρωθεν

405 αἱματόεντα πέλει δεινὸς δ᾽ εἰς ὦπα ἰδέσθαι

ὣς Ὀδυσεὺς πεπάλακτο πόδας καὶ χεῖρας ὕπερθεν

ἡ δ᾽ ὡς οὖν νέκυάς τε καὶ ἄσπετον εἴσιδεν αἷμα

ἴθυσέν ῥ᾽ ὀλολύξαι ἐπεὶ μέγα εἴσιδεν ἔργον

ἀλλ᾽ Ὀδυσεὺς κατέρυκε καὶ ἔσχεθεν ἱεμένην περ

410 καί μιν φωνήσας ἔπεα πτερόεντα προσηύδα

ἐν θυμῶι γρηῦ χαῖρε καὶ ἴσχεο μηδ᾽ ὀλόλυζε

οὐχ ὁσίη κταμένοισιν ἐπ᾽ ἀνδράσιν εὐχετάασθαι

τούσδε δὲ μοῖρ᾽ ἐδάμασσε θεῶν καὶ σχέτλια ἔργα

οὔ τινα γὰρ τίεσκον ἐπιχθονίων ἀνθρώπων

415 οὐ κακὸν οὐδὲ μὲν ἐσθλόν ὅτις σφέας εἰσαφίκοιτο

τῶι καὶ ἀτασθαλίηισιν ἀεικέα πότμον ἐπέσπον19 (Odisseacuteia XXII 401- 416)

18

Ver quadro genealoacutegico na paacutegina 40 19

Texto disponiacutevel em httpwwwhs-

augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_od22html agraves 1500hs de 15 de julho de

2010

41

Entatildeo encontrou Odisseu junto aos cadaacuteveres que havia matado

Tendo sido manchado com sangue e impureza Do mesmo modo

que um leatildeo apoacutes devorar um boi do campo que em consequumlecircncia

possui todo o peito e as mandiacutebulas ensanguumlentadas dos dois lados

assim ele se encontra e faz-se ver em direccedilatildeo ao terror

Deste modo as matildeos e os peacutes de Odisseu estavam em cima manchados

Entatildeo a ama Euricleacuteia viu os cadaacuteveres e o imenso sangue

e eacute verdade que atacou a gritar quando viu o grande trabalho

Mas Odisseu a deteve e decerto segurou sua agitaccedilatildeo

Tambeacutem ele mesmo tendo falado alto dirigia-lhe essas palavras aladas

Na alma velha alegra-te mas natildeo grita reprime pois para si

Natildeo eacute da lei divina manifestar-se assim sobre os homens que perecem

Estes o destino dos deuses submeteu como tambeacutem a seus trabalhos

[funestos

Eles natildeo respeitavam nenhum dos homens viventes da terra

nem o mau nem certamente o bom que a eles se apresentou

E por essas accedilotildees insanas perseguiu-lhes o destino indigno

Junito Brandatildeo em Introduccedilatildeo ao mito dos heroacuteis (1998) relata sobre a origem

do termo grego hAgraverwj que teria sido oriunda da forma do indo-europeu serva relacionada

tambeacutem ao termo latino seruuare daiacute o fato de a palavra heroacutei significar aquele que nasceu

para servir Odisseu cumpre bem esta tarefa de servidor de uma naccedilatildeo haja vista seu

importante papel na Guerra de Troacuteia participando da embaixada a Aquiles idealizando o

Cavalo de Troacuteia e em seu retorno a Iacutetaca estabelecendo a paz e a ordem junto com Atena

em sua paacutetria

Ainda segundo Junito o heroacutei tem que enfrentar dificuldades em sua trajetoacuteria

como tambeacutem em seu nascimento ser filho de mortal com imortal ter educaccedilatildeo diferenciada

dos demais e passar pelos ritos de formaccedilatildeo iniciaacutetica e de passagem No primeiro rito o

heroacutei ausenta-se do pai eou da paacutetria como faz Telecircmaco no Canto I da Odisseacuteia que em

busca do seu pai teve que sair de Iacutetaca sua paacutetria no segundo o heroacutei realiza seu momento

de transiccedilatildeo com algum grande feito como descer ao Hades desvendar a saiacuteda de um

labirinto entre tantos outros Na Odisseacuteia por exemplo o rito de passagem do Laertida eacute

realizado no Canto XI apoacutes realizar a nemacrkuia20 e vecirc-se devidamente pronto e experimentado

para saber como fazer e como deve agir para retornar a seu tatildeo pretendido lar

No geral como explica-nos Brandatildeo o heroacutei eacute representado belo mas sempre tecircm

algumas deficiecircncias fiacutesicas como o gigantismo em excesso a exemplo de Heacuteracles ou

estatura baixa demais como eacute o caso de Odisseu Sobre este fato Charles Beye comenta ―a

20

Em grego nemacrkuia indica o ritual de sacrifiacutecio feito aos mortos

42

definiccedilatildeo tradicional de heroacutei pressupotildee em geral beleza fiacutesica e forccedila O Odisseu pode ter

sido forte mas parece que natildeo foi nenhum modelo de beleza (BEYE 2006 p 58)

Ateacute o momento discutimos caracteriacutesticas gerais a respeito dos heroacuteis gregos

sejam atraveacutes das definiccedilotildees baacutesicas como a dos dicionaacuterios didaacuteticas como as de Hesiacuteodo

filosoacuteficas e literaacuterias como as de Aristoacuteteles sejam as analiacuteticas e teoacutericas como as de

Junito Neste percurso tentamos relacionar as caracteriacutesticas citadas de heroiacutesmo ao

personagem maior da Odisseacuteia

Neste instante partiremos para uma anaacutelise mais especiacutefica do perfil de Odisseu

representado na Odisseacuteia Para tanto escolhemos os cinco primeiros versos do seu proecircmio21

e dois dos epiacutetetos de Odisseu polutropoj e polumhtij Esta delimitaccedilatildeo faz-se

relevante para que possamos abarcar da melhor maneira possiacutevel o objeto em questatildeo

Como sabemos os epiacutetetos satildeo recursos comuns na literatura grega em geral

principalmente na arcaica por sua ligaccedilatildeo com a oralidade Deste caraacuteter oral proveacutem a

importacircncia da utilizaccedilatildeo de alguns recursos como por exemplo o dos epiacutetetos as repeticcedilotildees

num processo mnemocircnico Diante deste fato Junito Brandatildeo (1998) informa-nos a partir dos

dados colhidos por Lloyd-Jones que na eacutepica homeacuterica haacute ao todo vinte e oito mil versos e

vinte e cinco mil frases pequenas ou longas repetidas Os epiacutetetos tambeacutem fazem parte destes

recursos mnemocircnicos por isso Junito cita a pesquisa realizada por Joseacute Marques Leite a qual

atesta a existecircncia de quatro mil quinhentos e sessenta epiacutetetos utilizados nos seus dois

poemas

Desta maneira importante natildeo apenas como recurso literaacuterio como tambeacutem

mnemocircnico Homero utiliza-se aleacutem da representaccedilatildeo pela accedilatildeo dos epiacutetetos para simbolizar

os atributos heroacuteicos de Odisseu ilustrando as caracteriacutesticas especiacuteficas do heroacutei

Selecionamos o proecircmio e os dois epiacutetetos jaacute citados para que a partir deles possamos

revelar os elementos qualitativos que constituem a formaccedilatildeo do Odisseu Ateacute porque assim

como passa vinte anos distante de sua paacutetria seu nome natildeo consta nos vinte primeiros versos

sendo entatildeo sua referecircncia realizada pela citaccedilatildeo de seus feitos e pelo epiacuteteto polutropoj

Observemos os cinco primeiros versos do proecircmio da Odisseacuteia

21 Haacute um estudo interessante sobre o proecircmio da Odisseacuteia e que nos auxiliou na construccedilatildeo deste trabalho Este

eacute intitulado ―Polluacute Pollaacute Pollocircn Multiplicidade no proecircmio da Odisseacuteia de Andreacute Malta (USP) e estaacute

disponiacutevel em httpwwwscieloorgarscielophpscript=sci_arttextamppid=S0328-12052007000100004

43

Ἄλδξα κνη ἔλλεπε κνῦζα πολύτροπον ὃο κάια πολλὰ

πιάγρζε ἐπεὶ Τξνίεο ἱεξὸλ πηνιίεζξνλ ἔπεξζελ

πολλῶν δ᾽ ἀλζξώπσλ ἴδελ ἄζηεα θαὶ λόνλ ἔγλσ

πολλὰ δ᾽ ὅ γ᾽ ἐλ πόληση πάζελ ἄιγεα ὃλ θαηὰ ζπκόλ

5 ἀξλύκελνο ἥλ ηε ςπρὴλ θαὶ λόζηνλ ἑηαίξσλ22

Musa conta-me sobre o heroacutei de muitas voltas que muito

errou depois que saqueou a sagrada cidade de Troacuteia

Viu as cidades de muitos homens e conheceu sua mente

no mar padeceu muitos sofrimentos de encontro ao seu acircnimo

esforccedilando-se por sua alma e pelo regresso dos companheiros

Como vemos o primeiro epiacuteteto utilizado para Odisseu eacute o de polutropoj para

o qual Bailly daacute a traduccedilatildeo ―qui se tourne en beaucoup de sens (BAILLY 2000 p 1601) ou

seja o que se volta em muitos sentidos ou versatile astuto versaacutetil astuto como traduz

Romizi (2007) Mas estudando a formaccedilatildeo deste epiacuteteto polutropoj observamos que ele eacute

feito pela junccedilatildeo de polu expressatildeo adjetiva de quantidade intensificadora que significa

muito mais o substantivo masculino tropoj que significa modo maneira atitude direccedilatildeo

Este substantivo por sua vez eacute originado do verbo trepw voltar tornar dirigir Esta

retomada ao verbo que origina o epiacuteteto muito nos esclarece visto que Odisseu anda por

muitos lugares e volta para os mesmos Por exemplo Oisseu sai da Ilha de Circe no Canto X

e volta no Canto XI depois de ter estado na entrada do Hades

Ao mesmo tempo aleacutem do sentido fiacutesico este epiacuteteto tambeacutem nos revela o poder

de arguiccedilatildeo de habilidade com o pensamento Este epiacuteteto talvez seja o mais representativo

de Odisseu que como sabemos eacute o heroacutei do regresso da volta agrave paacutetria sem falar que seus

discursos tambeacutem satildeo cheios de contornos No Canto IX com Polifemo ele diz chamar-se

oucurrentij Ningueacutem no verso 366 mas jaacute no verso 455 diz chamar-se Odisseu revelando seu

verdadeiro nome assim ele vai e volta em seu discurso Seria entatildeo polutropoj o de

muitas voltas de muitos contornos de muitas maneiras intensificando o caraacuteter maleaacutevel e

multiforme de Odisseu de adaptar-se agraves circunstacircncias para no final sair vencedor Assim

ele se esconde como o rebanho de Polifemo eacute o amante de Circe o amante de Calipso o

mendigo de Iacutetaca o navegante o hoacutespede isto eacute muitas figuras para o mesmo heroacutei que com

todas elas tem a vitoacuteria como uacutenico objetivo A exposiccedilatildeo semacircntica do termo polutropoj

nem sempre fica clara nas traduccedilotildees o que afeta o sentido tatildeo necessaacuterio para uma

compreensatildeo do heroacutei e da obra como um todo vejamos algumas exemplificaccedilotildees

22

Os destaques satildeo nossos Texto retirado agraves 2107hs de 27 de abril de 2010 do site

httpwwwhsaugsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_od01html

44

Musa reconta-me os feitos do heroacutei astucioso que muito

peregrinou decircs que esfez as muralhas sagradas de Troacuteia

muitas cidades dos homens viajou conheceu seus costumes

como no mar padeceu sofrimentos inuacutemeros na alma

para que a vida salvasse e de seus companheiros a volta

(NUNES 2009 p 28)

Oacute Musa fala-me do solerte varatildeo que depois de ter destruiacutedo a cidade

sagrada de Troacuteia andou errante por muitas terras viu as cidades de

numerosas gentes e conheceu-lhes os costumes e por sobre o mar sofreu

no seu coraccedilatildeo afliccedilotildees sem conta no intento de salvar a sua vida e de

conseguir o regresso dos companheiros

(PALMEIRA amp CORREIA 1980 p 1)

Clsquoest llsquoHomme aux mille tours Muse qulsquoil faut me

dire Celui tant erra quand de Troade il eut pilleacute la

ville sainte Celui qui visita les citeacutes de tant dlsquohommes

et connut leur esprit Celui qui sur ler mers passa par

tant dlsquoangoisses en luttant pour survivre et ramener ses gens23

(BEacuteRARD 2009 p1)

Como vemos as traduccedilotildees do termo polutropoj natildeo datildeo conta do seu potencial

semacircntico principalmente porque os autores deixam de traduzir o seu qualificador e

acentuador polu A exceccedilatildeo fica para a traduccedilatildeo de Beacuterard que usa a expressatildeo ―mille

tours ou seja ―mil voltas Ainda assim o numeral ―mil natildeo exatamente reflete a expressatildeo

grega jaacute que esta natildeo eacute quantificada pois se traduz como ―muitos ―indeterminadamente

Esquecer ou ignorar a traduccedilatildeo de polu natildeo eacute adequado mesmo porque se o quisesse

Homero poderia deixaacute-lo impliacutecito ou natildeo o ter utilizado mas se o fez eacute porque considera

importante ser dada a ecircnfase ao substantivo tropoj

Ao longo dos cinco primeiros versos deste proecircmio vemos a repeticcedilatildeo dos

intensificadores pollaUuml pollwordfn pollaUuml fora o polu de polutropoj que jaacute foi

estudado por noacutes O primeiro termo um adveacuterbio pollaUuml refere-se agrave plagxqh indicando

aquele que muito vagou errou O segundo pollwordfn relaciona-se a a)nqrwpwn para

expressar que ele andou por cidades de muitos homens E o terceiro pollaUuml direciona-se

23

Traduccedilatildeo

Eacute o homem de mil voltas Musa que eacute preciso me dizer

Este que tanto vagou errante quando da Trocircade tinha saqueado

a cidade santa este que visitou as cidades de tantos homens

e conheceu seu espiacuterito Este que sobre os mares passou por

tantas anguacutestias lutando para sobreviver e o seu povo fazer retornar

45

para especificar aAtildelgea ou seja as muitas dores sofrimentos pelos quais passou no mar

buscando os seus retornos e o dos seus companheiros Essa sequecircncia de intensificadores

logo ao iniacutecio do proecircmio apesar de breve eacute uma boa representaccedilatildeo da multiplicidade

representada ao longo da Odisseacuteia epopeacuteia em que tudo eacute grandioso excessivo sejam os

feitos do heroacutei os locais pelos quais ele passa sejam tambeacutem suas dores Sem falar no seu

poder ilustrado pelo primeiro epiacuteteto polutropoj que exprime sua capacidade de muitas

voltas o multiforme ou pelo sentido concreto ou abstrato

Outro epiacuteteto bastante relevante eacute o de polumhtij pois aleacutem de configurar a

persona de Odisseu acentua essa qualificaccedilatildeo jaacute que eacute caracteriacutestico de outros personagens e

evoca nomes importantes como os de Zeus e Atena Deste modo Hesiacuteodo no verso 457 de

Teogonia (2009) define o pai dos deuses e dos homens como o Zhordfna te mhtioenta ou

seja Zeus astuto saacutebio sagaz Ainda na Teogonia (2009) Hesiacuteodo conta-nos dos versos 881

ateacute o 900 que Zeus aconselhado por Terra engole Meacutetis sua primeira esposa ainda graacutevida

de Atena para que seus filhos natildeo o destronassem Desta forma com a prudecircncia dentro de si

Zeus torna-se ainda mais poderoso Atena sendo filha de Meacutetis tambeacutem tem a caracteriacutestica

da prudecircncia aleacutem de que o proacuteprio Hesiacuteodo (2009) sempre a compara a seu pai tanto em

poder quanto em prudecircncia24

Segundo Otto (2005) no hino homeacuterico agrave Atena Meacutetis a

chama de polumhtij Sem falar que no Canto XIII verso 297 da Odisseacuteia a proacutepria Atena

compara-se a Odisseu Isto ocorre quando ela se revela para o heroacutei e diz que ele eacute um exiacutemio

astucioso muito sagaz que consegue tudo o que almeja Na formaccedilatildeo desse epiacuteteto temos o

intensificador polu muito e o substantivo mhordftij que significa prudecircncia sagacidade

Assim o epiacuteteto polumhtij que evoca e relaciona Odisseu a Zeus e a Atena significa o de

muita prudecircncia muita sagacidade E sabemos que ambos os deuses protegem Odisseu em

sua erracircncia ateacute retornar agrave paacutetria

Esse epiacuteteto eacute importante pois aleacutem de relacionar Odisseu agraves caracteriacutesticas de

Zeus relaciona-o tambeacutem ao de sua proacutepria deusa-guia Atena Esta eacute a deusa que acompanha

Odisseu como tambeacutem seu filho Telecircmaco em toda a sua jornada Telecircmaco Atena auxilia

no rito de iniciaccedilatildeo heroacuteica e Odisseu em sua longa jornada em busca da gloacuteria domeacutestica25

Na proacutepria Iliacuteada (2009) ela jaacute acompanha Odisseu em sua empreitada noturna com

24

Versos 892 e 898 da Teogonia 25

A gloacuteria que Odisseu busca eacute a domiciliar ateacute porque a kleoj aOacutefqiton gloacuteria impereciacutevel ele jaacute havia

conquistado ainda em vida Uma prova disso eacute que no Canto VIII da Odisseacuteia entre os versos 499-531

Demoacutedoco canta a construccedilatildeo do cavalo de madeira idealizado por Odisseu E o Laertida vai agraves laacutegrimas tendo

percebido que se tornara mito ainda em vida

46

Diomedes no Canto X ajudando-os a matar os inimigos e a voltar com seguranccedila para o

acampamento Sob essa proteccedilatildeo divina Odisseu cumpre sua jornada retorna ao seu lar apoacutes

vinte anos realiza a chacina dos pretendentes e instaura a paz em Iacutetaca

Por tudo isso que foi explicitado acerca deste multiforme heroacutei eacute que ―()

Odisseu era o modelo supremo para o homem do mundo antigo (BEYE 2006 p 206) aleacutem

de ser apontado como ―o heroacutei mais ceacutelebre de toda a antiguidade (GRIMAL 2005 p 458)

A fim de mostrar a importacircncia deste heroacutei trabalhamos neste toacutepico com dois aspectos

centrais no primeiro fizemos elucidaccedilotildees a respeito da definiccedilatildeo e caracterizaccedilatildeo do heroacutei

sua funccedilatildeo no mundo grego a partir dos estudos de Hesiacuteodo em Teogonia (2009) e Os

trabalhos e os dias (2008) Aristoacuteteles na Poeacutetica Dumegravezil (1995) Junito Brandatildeo (1995)

No segundo fizemos um breve estudo dos cinco primeiros versos do proecircmio da Odisseacuteia e

de dois importantes e ilustrativos epiacutetetos de Odisseu o polumhtij e o polutropoj Tudo

isso para poder mostrar a relevacircncia heroacuteica que este personagem tem natildeo soacute na epopeacuteia que

o retrata mas em toda a representatividade da literatura claacutessica

47

2 O TRAacuteGICO - ASPECTOS TEOacuteRICOS E CONCEITUAIS

21 Uma breve consideraccedilatildeo sobre o nosso estudo do Traacutegico

Antes de iniciarmos nossas ponderaccedilotildees teoacutericas e conceituais a respeito do

traacutegico consideramos importante elucidar que iremos fundamentar nossas discussotildees a partir

dos preceitos aristoteacutelicos do traacutegico presentes na Poeacutetica Contudo reconhecemos que este

autor assim como diz-nos Albin Lesky (1996) natildeo nos deixou tatildeo claro esses aspectos

Vejamos

Haacute algo sem duacutevida que podemos afirmar com inteira seguranccedila os gregos

criaram a grande arte traacutegica e com isso realizaram uma das maiores

faccedilanhas do campo do espiacuterito mas natildeo desenvolveram nenhuma teoria do

traacutegico que tentasse ir aleacutem da plasmaccedilatildeo deste no drama e chegasse a

envolver a concepccedilatildeo do mundo como um todo (LESKY 1996 p 21)

Lesky coloca-nos a exposiccedilatildeo de maneira clara foram os gregos que nos legaram

o traacutegico legado esse importantiacutessimo todavia natildeo deixaram para posteridade o

desenvolvimento e a interpretaccedilatildeo desse traacutegico ou seja nenhuma ―teoria do traacutegico Apesar

de que ele proacuteprio ao longo de A trageacutedia Grega (1996) percorre os elementos traacutegicos

presentes na Poeacutetica E para esclarecer esses aspectos que natildeo estatildeo desenvolvidos em

profundidade por Aristoacuteteles outros autores aleacutem do jaacute citado Albin Lesky tambeacutem se

dedicam ao desvendamento da significaccedilatildeo do traacutegico a citar Jean Pierre Vernant Pierre

Grimal Jacqueline de Romilly Anatol Rosenfeld Junito Brandatildeo e Sandra Luna A seleccedilatildeo

destes autores realiza-se atraveacutes de criteacuterios que levam em consideraccedilatildeo a adequaccedilatildeo ao nosso

trabalho

Acreditamos ser importante fazer esta ressalva pois como se sabe muitos

trabalhos foram realizados sobre o traacutegico principalmente pelos filoacutesofos alematildees legando-

nos uma ―filosofia do traacutegico Esta foi realizada por autores como Schelling Houmllderlin

Hegel Solger Goethe Schopenhauuer Vischer Kierkegaard Hebbel Nietzscche Simmel e

Schiler Todos eles detiveram parte de seus estudos para entenderem a manifestaccedilatildeo do

traacutegico Reconhecemos as contribuiccedilotildees dadas por cada um mas no presente trabalho

delimitamos alguns autores por considerarmos mais adequados ao nosso objetivo central que

48

eacute analisar o traacutegico jaacute existente na eacutepica especificamente no Canto XI da Odisseacuteia a partir

dos encontros que Odisseu tem no Hades

Ao longo deste capiacutetulo desenvolveremos trecircs eixos do traacutegico que seratildeo

importantes para a compreensatildeo e embasamento de nossa anaacutelise ―O traacutegico e a trageacutedia ―O

traacutegico na Poeacuteticardquo e ―A busca do traacutegico - outras acepccedilotildees teoacutericas No primeiro

discorreremos sobre as diferenccedilas e especificidades da trageacutedia e do traacutegico no segundo

sobre os conceitos do traacutegico jaacute referidos por Aristoacuteteles na Poeacutetica interpretando-os a partir

da traduccedilatildeo de excertos extraiacutedos do original no terceiro iremos expor e discutir os estudos

de outros autores sobre o traacutegico claacutessico sempre observando sua aplicabilidade agrave nossa

anaacutelise central que seraacute desenvolvida especificamente no capiacutetulo subsequente

22 O traacutegico e a trageacutedia

No momento em que comeccedilamos a discutir sobre as questotildees da trageacutedia e do

traacutegico desde o iniacutecio nos eacute imposto mesmo que indiretamente o dilema da anterioridade de

um ou de outro Assim perguntamo-nos quem teria vindo primeiro A trageacutedia ou o traacutegico

Aparentemente eles satildeo indissociaacuteveis tornando difiacutecil definir quem veio primeiro e a

delimitaccedilatildeo onde um inicia e o outro termina Ateacute que ponto ser-nos-ia possiacutevel contemplar

traacutegico sem trageacutedia ou ainda mais trageacutedia claacutessica sem o traacutegico Diante destas

interrogativas jaacute adiantamos que a realizaccedilatildeo daquele (traacutegico sem trageacutedia) eacute viaacutevel ao

contraacuterio deste (trageacutedia claacutessica sem traacutegico) em que sua estrutura prescinde do elemento

traacutegico como jaacute bem nos disse Aristoacuteteles na Poeacutetica inclusive para a efetivaccedilatildeo da

kaqamacrrsij26

Para que possamos entender essa dita viabilidade de traacutegico sem trageacutedia e a

inviabilidade da trageacutedia claacutessica sem o traacutegico iremos discorrer sobre a origem a

conceituaccedilatildeo e a significaccedilatildeo que eles possuem dentro do contexto da literatura claacutessica

grega

A palavra tragikoj tem como sentido geral aquilo que concerne agrave trageacutedia ou

ateacute mesmo ao ator ou ao poeta traacutegico algo de natureza grave majestosa poeacutetica assim nos

26

Sabe-se que a respeito deste termo grego existem algumas discussotildees as quais seratildeo expostas no decorrer do

trabalho Por hora basta-nos compreender que este termo oriundo do verbo kaqairw tem como sentido

primaacuterio o significado meacutedico de purgaccedilatildeo aleacutem de ter uma acepccedilatildeo religiosa de purificaccedilatildeo

49

define A Bailly (2000) e Liddlel e Scott (1996) Mas a partir de uma perspectiva

etimoloacutegica indicada por Renato Romizi (2001) tragikoj com o radical de tragoj

(bode) e o sufixo adjetivo ikoj significa primordialmente o que eacute proacuteprio do bode ou

semelhante ao bode Contudo considerando as utilizaccedilotildees deste nome no cenaacuterio da literatura

grega claacutessica com o surgimento das trageacutedias tragikoj passa a significar tambeacutem o

traacutegico elemento proacuteprio da trageacutedia vista aqui como gecircnero literaacuterio e natildeo como

manifestaccedilatildeo de ritual religioso que inclusive deu origem a sua nomeaccedilatildeo Todavia

veremos estes aspectos mais agrave frente quando formos tratar especificamente da trageacutedia

Como vimos o aspecto etimoloacutegico natildeo nos esclarece por completo os enigmas

do traacutegico todavia jaacute nos daacute pistas de sua significaccedilatildeo e origem Podemos entender que o

tragikoj estaacute ligado ao siacutembolo do bode este que por sua vez passa a ser relacionado ao

gecircnero literaacuterio da trageacutedia (do grego tragwlaquodimacra ou seja canto do bode) E sendo o bode

siacutembolo do sacrifiacutecio realizado a Dioniso dentro de um ritual religioso importante

socialmente podemos entender porque ambos tanto o traacutegico quanto a trageacutedia estatildeo

envoltos em uma accedilatildeo grandiosa

Em nossa pesquisa bibliograacutefica os estudos sobre o traacutegico que encontramos estatildeo

dentro dos estudos da trageacutedia numa intriacutenseca relaccedilatildeo que tanto pode ser beneacutefica como

pode tambeacutem natildeo nos beneficiar por acreditarmos nem sempre ter sido assim O traacutegico

como desenvolveremos a seguir jaacute se manifestava socialmente entre os gregos e em suas artes

desde muito cedo ao contraacuterio da trageacutedia que soacute viria a existir a partir do seacuteculo V aC

Diante dos estudos a respeito do traacutegico claacutessico a que jaacute nos referimos

destacamos o trabalho realizado por Sandra Luna em Arqueologia da accedilatildeo traacutegica (2005)

Neste temos algumas consideraccedilotildees sobre a existecircncia do traacutegico antes da trageacutedia o que

pode ser comprovado por estudos antropoloacutegicos verificando-se que ―natildeo surpreende o

adentramento precoce do traacutegico na tessitura das artes verbais (LUNA 2005 p 29) Um

exemplo bastante claro dessa preacute-existecircncia do traacutegico natildeo soacute na perspectiva social mas na

produccedilatildeo literaacuteria satildeo as epopeacuteias homeacutericas pois eacute fato que

() Homero convida-nos a ponderar gravemente sobre o traacutegico fim da

existecircncia humana Contudo a despeito do tratamento refinado de elementos

traacutegicos na eacutepica grega natildeo parece ser exatamente ―traacutegico o efeito

pretendido pelo poeta (Ibidem)

Assim apesar de o traacutegico como diz a autora natildeo ser objetivo de Homero eacute

inegaacutevel que nas duas primeiras obras de nossa literatura ocidental precursoras de tantas

50

categorias literaacuterias inaugura-se tambeacutem o traacutegico mesmo que ―a estrutura da accedilatildeo na

narrativa eacutepica dispersa o efeito traacutegico em favor de outros efeitos (LUNA 2005 p 30)

Compartilhamos com esse pensamento de que Homero realiza a dispersatildeo do traacutegico e isso

ele faz utilizando-se de recursos como a modificaccedilatildeo de uma cena traacutegica para outra sem

tragicidade diluindo a tragicidade da cena anterior Entre tantos exemplos desse fato

podemos citar o Canto XXIV no qual Priacuteamo natildeo soacute pede o resgate do corpo do seu filho

Heitor como tambeacutem beija a matildeo do assassino de seu filho Aquiles (v 506) Este concede o

pedido feito pelo rei dos troianos e convida-o para um banquete Vejamos

ἦ ῥα θαὶ ἐο θιηζίελ πάιηλ ἤτε δῖνο Ἀρηιιεύο

ἕδεην δ᾽ ἐλ θιηζκη πνιπδαηδάιση ἔλζελ ἀλέζηε

ηνίρνπ ηνῦ ἑηέξνπ πνηὶ δὲ Πξίακνλ θάην κῦζνλ

πἱὸο κὲλ δή ηνη ιέιπηαη γέξνλ ὡο ἐθέιεπεο

600 θεῖηαη δ᾽ ἐλ ιερέεζζ᾽ ἅκα δ᾽ ἠνῖ θαηλνκέλεθηλ

ὄςεαη αὐηὸο ἄγσλ λῦλ δὲ κλεζώκεζα δόξπνπ27

(Iliada XXIV 596-601)

Dizia e em seguida o divino Aquiles volta para o seu acampamento

sentou-se em seu alto trono e entatildeo fez-se ficar do

outro lado do muro diante de Priacuteamo a quem declarou o discurso

Velho como incitavas o seu filho foi libertado para ti

estaacute colocado em um atauacutede Que tu o revejas raiando a manhatilde

ao mesmo tempo conduzindo-o Mas nesse instante pensemos no banquete

Nesta cena e nas outras que a antecedem temos a realizaccedilatildeo do pedido de Priacuteamo

pelo resgate do filho morto e ultrajado Nesta passagem o aspecto comovente poderia

desencadear no traacutegico mas Homero natildeo a intensifica e sim atenuando a manifestaccedilatildeo do

sentimento traacutegico dirige a cena para uma celebraccedilatildeo simbolizada pelo banquete Segundo

informa-nos Jean Chevalier e Alain Gheerbrant (2009) o banquete eacute um siacutembolo universal

que representa a alianccedila um rito comunial de participaccedilatildeo social envolta e direcionada a um

mesmo projeto geralmente festivo Reconhecemos tambeacutem que nem sempre o banquete

ocorre numa situaccedilatildeo comemorativa apesar de geralmente ser assim e a citaccedilatildeo acima eacute bem

ilustrativa disso Ainda que sejam inimigos Priacuteamo e Aquiles celebram um pacto de respeito

e natildeo uma festividade Mas de todo o modo tal conciliaccedilatildeo representada pelo siacutembolo do

banquete ameniza o conflito este que por sua vez atenua o traacutegico

Deste modo concordamos que o autor da Odisseacuteia ―natildeo alimenta o traacutegico

(Ibidem p 31) ateacute mesmo porque ―() mal comeccedilamos a experimentar a dor somos

27

Texto disponiacutevel em httpwwwhs-

augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_il24html agraves 1018hs de 12 de julho de 2010

51

convidados a mais um dos banquetes de Homero () (LUNA 2005 p 34) Contudo aleacutem

de ser natural eacute bastante coerente da parte do Homero natildeo se aprofundar no efeito traacutegico

natildeo o objetivando pois ao inveacutes de ter produzido o gecircnero eacutepico ele teria legado-nos uma

incipiente trageacutedia Isso ocorre porque como sabemos o objetivo da eacutepica relaciona-se agrave

exaltaccedilatildeo dos grandes homens e de seus magnos feitos logo natildeo seria coerente Homero

direcionar-se unicamente ao traacutegico Tal fato seria uma relevante incongruecircncia estrutural

com o gecircnero eacutepico com o qual produziu duas notificadas obras que exaltaram as accedilotildees de

Aquiles e Odisseu respectivamente a partir da Iliacuteada e da Odisseacuteia

Todavia jaacute encontramos nas eacutepicas de Homero uma forte e inegaacutevel evidecircncia

traacutegica esta que se natildeo eacute objetivo deste poeta eacutepico seraacute das trageacutedias gregas produzidas

entre os seacuteculos V e IV aC Por isso os tragedioacutegrafos que iratildeo produziacute-las seratildeo bastante

influenciados pela produccedilatildeo homeacuterica inclusive aproveitam-se de certas passagens de teor

traacutegico natildeo desenvolvidas para construiacuterem suas peccedilas Eacute o que provavelmente ocorreu com

Aacutejax de Soacutefocles e com Agamecircmnon de Eacutesquilo que tecircm como prenuacutencios o Canto XI da

Odisseacuteia canto esse permeado de tragicidade Desta forma concordamos com o seguinte

posicionamento de Jacqueline de Romilly

Como quer que seja os autores das trageacutedias foram buscar o assunto das

suas obras agrave epopeacuteia E natildeo eacute duvidoso que ao mesmo tempo tenham ido

buscar a arte de construir personagens e cenas capazes de comover

Apresentar o sentimento da vida inspirar terror e piedade obrigar a partilhar

um sofrimento ou uma ansiedade ndash a epopeacuteia fizera-o sempre e ensinou os

tragedioacutegrafos a fazecirc-lo Poderiacuteamos ainda dizer que se a festa criou o

gecircnero traacutegico foi a influecircncia da epopeacuteia que fez dele um gecircnero literaacuterio

(ROMILLY 2008 p 22)

Assim tendo jaacute nos inspirado o traacutegico Homero seraacute fundamental para os

tragedioacutegrafos pois ele consegue apresentar-nos a tragicidade em suas eacutepicas mesmo em

meio a tantos banquetes celebraccedilotildees e grandes feitos visto que ―A transfiguraccedilatildeo do traacutegico

contudo natildeo rasura completamente os momentos de intensa dramaticidade presente nas

epopeacuteias (Luna 2005 p 34) Diante dessa constataccedilatildeo do traacutegico em Homero reiteramos

que o traacutegico veio antes da trageacutedia natildeo soacute pela sua manifestaccedilatildeo social na vida humana mas

atraveacutes da proacutepria representaccedilatildeo literaacuteria como nos fica claro a partir das epopeacuteias

homeacutericas

Um elemento que nos propicia essa relaccedilatildeo do traacutegico nas eacutepicas vindo a

influenciar a produccedilatildeo das trageacutedias eacute a figura do heroacutei eacutepico pois muitos deles estatildeo fadados

52

a um final traacutegico e inclusive jaacute prenunciados por Homero Sobre este fato elucida-nos

Sandra Luna

() sobre o heroacutei eacutepico tambeacutem paira o terriacutevel horizonte da uacutenica certeza

humana ou seja ao final de sua trajetoacuteria para aleacutem de todas as honras das

quais venha a desfrutar a tragicidade estaraacute sempre suspensa sobre sua

cabeccedila ndash a proacutepria construccedilatildeo eacutepica se encarregou de evidenciar que o

desfecho da vida eacute irrevogavelmente traacutegico Apesar de sua caracteriacutestica

sobre-humana sabe-se que o heroacutei haveraacute um dia de ser igualado aos seus

os mortais Com isso queremos dizer que das alturas do heroacutei eacutepico seraacute

sempre possiacutevel vislumbrar momentos de tragicidade (LUNA 2005 p 31)

Como vemos na proacutepria estrutura eacutepica de eixo celebrativo haacute um elemento

favorecedor para o surgimento do traacutegico o heroacutei Sobre este fato tambeacutem complementa

Vernant ―No novo quadro do jogo traacutegico portanto o heroacutei deixou de ser um modelo

tornou-se para si mesmo e para os outros um problema (VERNANT 2008 p 2) Esta

problemaacutetica em relaccedilatildeo agrave representatividade do heroacutei que seraacute distinta no gecircnero eacutepico do

traacutegico pode ser bem ilustrada nos encontros que Odisseu tem no Hades narrado por Homero

no Canto XI da Odisseacuteia com Anticleacuteia Aquiles Agamecircmnon e Aacutejax Tanto que no caso de

Agamecircmnon e Aacutejax temos duas trageacutedias para contar-nos o fim traacutegico desses heroacuteis A saga

de Agamecircmnon eacute contada por Eacutesquilo no primeiro livro da Oresteacuteia e Soacutefocles lega-nos a

peccedila que relata o descontrole e suiciacutedio de Aacutejax Estes dois destinos traacutegicos dos heroacuteis

gregos que antes brilharam nas eacutepicas como modelos principalmente em seus feitos narrados

na Iliacuteada jaacute satildeo prenunciados no Canto XI da Odisseacuteia como veremos detalhadamente no

proacuteximo capiacutetulo

Aleacutem dessa figura eacutepica que posteriormente figuraraacute nas trageacutedias haacute outros

elementos propiacutecios ao traacutegico jaacute presentes na epopeacuteia como nos alerta Aristoacuteteles e reforccedila-

nos Jacqueline de Romilly (2008) como por exemplo a accedilatildeo uacutenica28

os personagens nobres

e a base miacutetica do conteuacutedo desenvolvido No caso do mito destaca-nos Lesky (1995) que a

sua presenccedila evidencia-se natildeo apenas na eacutepica e na trageacutedia mas tambeacutem na liacuterica A

diferenccedila eacute que na primeira e na terceira o mito representa a simboacutelica origem e organizaccedilatildeo

do mundo diante de sua grandiosidade jaacute na trageacutedia o mito passa a ser traacutegico

Diante dos aspectos discutidos percebemos a anterioridade do traacutegico

principalmente no que concerne agraves epopeacuteias homeacutericas visto que nestas o traacutegico jaacute se efetiva

28

O proacuteprio Aristoacuteteles na Poeacutetica (1555b) diz-nos que a accedilatildeo das epopeacuteias transcorre a partir de um eixo

centralizador os demais satildeo episoacutedios Assim desenvolvidas em vinte e quatro cantos cada uma a Iliacuteada e a

Odisseacuteia possuem um argumento uacutenico a primeira a ira funesta de Aquiles a segunda o regresso de Odisseu a

Iacutetaca

53

como manifestaccedilatildeo literaacuteria Assim aleacutem de tantos outros elementos literaacuterios as epopeacuteias de

Homero legaram-nos o traacutegico

Observada a presenccedila do traacutegico jaacute nas epopeacuteias de Homero discutiremos sobre a

trageacutedia sua estrutura e relaccedilatildeo com as epopeacuteias e com o traacutegico A partir deste percurso

acreditamos que entendendo melhor a trageacutedia elucidaremos melhor o traacutegico jaacute que este se

realiza atraveacutes daquela inegavelmente pois ―eacute fato que na trageacutedia os traccedilos do traacutegico se

tornaratildeo mais evidentes e seus efeitos mais perceptiacuteveis (LUNA 2005 p 34) Daiacute urge a

necessidade de voltarmos atenccedilatildeo ao entendimento da trageacutedia a fim de adquirirmos suporte

suficiente para compreender o traacutegico e assim no capiacutetulo subsequente aplicarmos esta

exposiccedilatildeo teoacuterica na anaacutelise do Canto XI da Odisseacuteia

Do mesmo modo que ocorre com o traacutegico falar sobre a trageacutedia ainda nos impotildee

certas incertezas principalmente no que se trata de sua origem mesmo que sobre ela haja um

nuacutemero bem maior de livros e artigos Ao que nos parece ―o nuacutemero dos ensaios explica-se

precisamente pela ausecircncia de certezas De fato uma grande sombra paira sobre essas

origens (ROMILLY 2008 p 13) Outro autor que compartilha e explicita essa ideacuteia das

dificuldades no estudo da trageacutedia eacute Albin Lesky em Histoacuteria da Literatura Grega (1995)

Segundo o autor natildeo podemos conhecer precisamente o trabalho dos tragedioacutegrafos por falta

de dados satisfatoacuterios ―assim a questatildeo referente agraves origens do drama traacutegico eacute desde a

eacutepoca da ciecircncia alexandrina um dos problemas mais difiacuteceis e discutidos (LESKY 1995

p 253) Finley refletindo sobre a formaccedilatildeo do gecircnero traacutegico sobretudo em comparaccedilatildeo com

outros como a eacutepica e a liacuterica afirma ―Sus oriacutegenes son oscuras (FINLEY 1970 p 101) 29

ressaltando o caraacuteter nebuloso da origem deste gecircnero literaacuterio

De todas estas discussotildees o que podemos concluir eacute que o ditirambo as festas

dionisiacuteacas os saacutetiros os festivais o estado satildeo referecircncias certas de qualquer estudo que

almeja explicar a origem da trageacutedia Adiante poderemos avaliar melhor essa assertiva

Segundo Aristoacuteteles a origem da trageacutedia estaacute relacionada ao ditirambo

Vejamos

Γελνκέλε30

δ᾽ νὖλ ἀπ᾽ ἀξρῆο αὐην[10]ζρεδηαζηηθῆο (θαὶ αὐηὴ θαὶ ἡ

θσκσηδία θαὶ ἡ κὲλ ἀπὸ ηλ ἐμαξρόλησλ ηὸλ δηζύξακβνλ ἡ δὲ ἀπὸ ηλ ηὰ

θαιιηθά ἃ ἔηη θαὶ λῦλ ἐλ πνιιαῖο ηλ πόιεσλ διαμένει νομιζόμενα )

κατὰ μικρὸν ηὐξήθη προαγόντων ὅσον ἐγίγνετο φανερὸν αὐτῆς

29

Traduccedilatildeo nossa Suas origens satildeo obscuras 30

A utillizaccedilatildeo deste particiacutepio aoristo gενομένη indica a anterioridade da accedilatildeo (MURACHO 2007) diferente

do uso do particiacutepio presente que indica a simultaneidade dos fatos Por isso a traduccedilatildeo ―tendo surgido que nos

reflete a noccedilatildeo de anterioridade jaacute que a trageacutedia tem sua existecircncia anterior ao que estaacute sendo descrito

54

θαὶ πνιιὰο κεηαβνιὰο κεηαβαινῦζα ἡ [15] ηξαγσηδία ἐπαύζαην ἐπεὶ ἔζρε

ηὴλ αὑηῆο θύζηλ31 ((Poeacutetica IV 1449a 9-15)

Portanto tendo surgido de um princiacutepio de improvisaccedilatildeo natildeo soacute ela mesma

(a trageacutedia) quanto a comeacutedia aquela pelos iniciantes do ditirambo e esta

pelos iniciantes dos cantos faacutelicos que ainda permanece estimada em muitas

cidades Estas coisas fazem-me crer que pouco a pouco a trageacutedia cresceu

desenvolvendo-se o que se tornava proacuteprio dela E tendo se transformado

apoacutes muitas mudanccedilas a trageacutedia estabilizou-se quando alcanccedilou sua

natureza proacutepria

Percebe-se que a origem da trageacutedia estaria intrinsecamente relacionada ao

ditirambo diquramboj ateacute que ela comeccedila a desenvolver-se adquirindo especificidades

proacuteprias Sendo o ditirambo um canto de louvor ao deus Dioniso entendemos o porquecirc de a

trageacutedia ser relacionada a esta divindade e ao seu culto religioso Algumas vezes essa

conexatildeo traz-nos certas complicaccedilotildees para o entendimento do gecircnero traacutegico que mesmo

tendo origem ligada ao culto do deus posteriormente veio a se distanciar como jaacute nos indica

Aristoacuteteles na passagem que citamos Daiacute entendemos porque em alguns momentos natildeo nos

eacute tatildeo clara a relaccedilatildeo entre a trageacutedia claacutessica e o culto ao deus Tal fato justifica-se por essa

relaccedilatildeo remontar agraves suas origens e natildeo ao seu desenvolvimento pois a trageacutedia transformou-

se e estabeleceu-se com caracteriacutesticas proacuteprias

Ulrich Von Moellendorff-Wilamowitz em Qursquo est-ce qursquo une trageacutedie

attique(2001) sobre as definiccedilotildees aristoteacutelicas referidas acima considera que ―Aristote

nlsquoavait pas pour but de deacutefinir historiquement la trageacutedie attique il voulait parvenir agrave une

deacutefinition conceptuelle de la trageacutedie32

(WILAMOWITZ 2001 p 118) Entatildeo seguindo as

consideraccedilotildees iniciadas por Aristoacuteteles o autor desenvolve o preceito da origem da trageacutedia

relacionada ao ditirambo e reforccedila a contribuiccedilatildeo dada pelos tragedioacutegrafos Eacutesquilo e

Soacutefocles Diz-nos

La trageacutedie a pour origine les chanteurs de dithyrambe elle a tout dlsquo abord

eacuteteacute un jeu satyrique composeacute dans des rythmes vifs et dans une langue

amusante il fallut attendre Eschyle pour que soit introduit le deuxiegraveme

acteur et pour qulsquo on retire du choeur as place de protagoniste le trosiegraveme

acteur fut introduit pour la premieacutere fois par Sophocle33

(Ibidem p 19)

31

Texto retirado de httpwwwhs-augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante04Aristotelesari_poi1html

agraves 1152hs em 12 de julho de 2010 32

Traduccedilatildeo nossa Aristoacuteteles natildeo tinha por objetivo definir historicamente a trageacutedia aacutetica ele queria chegar a

uma definiccedilatildeo conceitual da trageacutedia 33

Traduccedilatildeo nossa A trageacutedia tem a origem nos cantores de ditirambo ela foi inicialmente um jogo composto

em ritmos vivos e de uma linguagem divertida foi necessaacuterio esperar Eacutesquilo para que fosse introduzido o

segundo ator e que se retirasse do coro sua posiccedilatildeo de protagonista o terceiro ator foi introduzido pela primeira

vez por Soacutefocles

55

Wilamowitz contribui ainda com outras informaccedilotildees contextuais sobre a trageacutedia

informando-nos que em 534 aC ocorre a primeira representaccedilatildeo de uma trageacutedia durante o

festival das Grandes Dionisiacuteacas por Teacutespis34

de Lesbos Este se consagra como o primeiro

ganhador do precircmio quando o festival foi reorganizado por Pisiacutestrato Apoacutes estas

informaccedilotildees gerais o autor diante de seus estudos cria situaccedilatildeo adequada para expor uma

definiccedilatildeo de trageacutedia afirmando

Une trageacutedie attique est un eacutepisode tireacute de la leacutegende heacuteroiumlque

ayant son uniteacute propecirc traiteacute de faccedilon poeacutetique dans un style noble et destine

agrave ecirctre representeacute par um choeur de citoyens attique e deux voire trois

acteurs dans le sanctuaire de Dionysos comme partie integrante de la

ceacuteleacutebration publique du culte du dieu35

(WILAMOWITZ 2001 p 117)

Percebe-se que esta definiccedilatildeo eacute respaldada pela concepccedilatildeo que Aristoacuteteles nos

legou a partir da Poeacutetica vindo esta a ser reiterada por Wilamowitz (2001) Sabemos que

muitos estudos posteriores ao do filoacutesofo grego tentaram abarcar suas ideacuteias explicando-as

exemplificando-as de modo a atualizaacute-las para o entendimento da modernidade de uma

temaacutetica de discussotildees inesgotaacuteveis Esse eacute o caso dos autores que discutiremos a seguir

Para Romilly em A trageacutedia Grega (2008) o fator religioso eacute inegaacutevel no

surgimento e formaccedilatildeo da trageacutedia Ele reconhece tambeacutem a influecircncia poliacutetica da tirania

Ressalta que as representaccedilotildees das trageacutedias dependem do culto a Dioniso mesmo porque soacute

nas festas dedicadas ao filho de Secircmele eacute que havia a encenaccedilatildeo das peccedilas Informa-nos

ainda

A grande ocasiatildeo era na eacutepoca claacutesssica as festas das Dionisiacuteacas

urbanas que se celebrava na Primavera mas tambeacutem havia concursos de

trageacutedias na festa das Leneias que tinha lugar pelo final de Dezembro A

proacutepria representaccedilatildeo inseria-se assim num conjunto eminentemente

religioso era acompanhada de procissotildees e sacrifiacutecios (ROMILLY 2008 p

14)

Jacqueline de Romilly completa que no centro do teatro havia um assento de

pedra destinado ao deus como tambeacutem um altar onde ocorria a evoluccedilatildeo do coro Diante

34

Grimal (2002) registra atraveacutes de Soacutelon e Heroacutedoto a existecircncia de Aacuterion que em Siacutecion (Peloponeso) seria

reconhecido como o autor da primeira trageacutedia por volta de VII aC 35

Traduccedilatildeo nossa Uma trageacutedia aacutetica eacute um episoacutedio tirado de uma lenda heroacuteica tendo unidade proacutepria tratada

de modo poeacutetico em um estilo nobre e destinado a ser representado por um coro de cidadatildeos aacuteticos com dois e

ateacute mesmo trecircs atores no santuaacuterio de Dioniso como parte integrante da celebraccedilatildeo puacuteblica do culto ao deus

56

dessa constataccedilatildeo e embasada pela teorizaccedilatildeo de Aristoacuteteles (Poeacutetica 1449 a) ela afirma que

a trageacutedia tendo vindo do ditirambo seria uma amplificaccedilatildeo do rito religioso assim como a

comeacutedia

Pierre Grimal em O Teatro Antigo (2002) afirma natildeo poder dar uma explicaccedilatildeo

clara sobre o termo ―trageacutedia Isto porque haacute certa dificuldade em encaixar os dois elementos

distintos que compotildeem a formaccedilatildeo do vocaacutebulo tragwlaquodimacra ou seja tragomacrj bode e wlaquocopydimacra

(de Acircdhmacr) canto Para Grimal natildeo haacute uma relaccedilatildeo direta entre os termos tragomacrj e wlaquocopydimacra por

isso levanta diversos questionamentos o coro vestia-se com a pele do bode ou o bode seria o

precircmio para o poeta vencedor ou o bode era a viacutetima sacrifical do que era cantado Enfim

sem poder chegar a uma definiccedilatildeo mais objetiva ele conclui que essa palavra natildeo pode ser

primitiva e sim contemporacircnea ao surgimento da trageacutedia relacionada ao ritual de Dioniso

O autor ainda nos alerta citando Romilly que natildeo podemos esquecer que os

rituais religiosos passam das improvisaccedilotildees para formas literaacuterias ateacute mesmo por causa da

reorganizaccedilatildeo poliacutetica e social e daiacute surge o advento dos concursos Diante disso Grimal

aponta duas causas para o surgimento da trageacutedia a literaacuteria que teria sido iniciada por

Teacutespis e a poliacutetica relacionada ao desejo da tirania de forjar ao povo atraveacutes das festas a

centralizaccedilatildeo do poder

Como jaacute foi dito Pierre Grimal refere-se a uma importante influecircncia das

transformaccedilotildees soacutecio-poliacuteticas para as modificaccedilotildees da trageacutedia Tais influecircncias justificariam

o porquecirc de antigas manifestaccedilotildees ritualiacutesticas ligadas a Dioniso como os ditirambos e os

cantos faacutelicos viessem a originar gecircneros literaacuterios como a trageacutedia e a comeacutedia Para melhor

entendermos a importacircncia desses elementos sociais e poliacuteticos na formaccedilatildeo de um gecircnero

literaacuterio como a trageacutedia vejamos o que nos diz Arnould Hauser

A trageacutedia eacute a criaccedilatildeo artiacutestica mais caracteriacutestica da democracia

ateniense em nenhuma outra forma de arte satildeo apreciados tatildeo direta e

claramente quanto nela os conflitos internos da estrutura social de Atenas

Os aspectos externos de sua apresentaccedilatildeo agraves massas eram democraacuteticos mas

o conteuacutedo as sagas heroacuteicas com sua perspectiva traacutegico-heroacuteica da vida

eram aristocraacuteticos (HAUSER 1995 p 84)

Esta relaccedilatildeo social em que a arte traacutegica estaacute firmada natildeo pode ser dissociada

facilmente ateacute porque ―Fue Atenas la democraacutetica ciudad-estado por excelecircncia la que

produjo y patrocinoacute estrictamente hablando ndash la trageacutedia ()36

(FINLEY 1970 p 101)

36

Traduccedilatildeo nossa Foi Atenas a democraacutetica cidade-estado por excelecircncia que produziu e patrocinou -

estritamente falando ndash a trageacutedia ()

57

Ainda sobre esse momento histoacuterico da trageacutedia suas condiccedilotildees sociais e ateacute mesmo

psicoloacutegicas Jean-Pierre Vernant em Mito e Trageacutedia na Greacutecia Antiga (2008) informa-nos

que muitas discussotildees nos uacuteltimos cinquenta anos ocorreram sobre trageacutedia e mais

precisamente sobre suas origens E diante de todas as interrogaccedilotildees dos helenistas e

proposiccedilotildees de respostas natildeo foram suficientes para resolver o problema da trageacutedia A este

problema exposto por Vernant incluiacutemos o que consideramos como intriacutenseco agrave trageacutedia a

manifestaccedilatildeo traacutegica Isto porque esta foi iniciada na literatura a partir das eacutepicas homeacutericas e

estabilizada a partir das trageacutedias gregas Diante deste quadro complexo que gerou tanto a

comeacutedia quanto a trageacutedia Vernant concebe esta da seguinte maneira

A trageacutedia natildeo eacute apenas uma forma de arte eacute uma instituiccedilatildeo

social que pela fundaccedilatildeo dos concursos traacutegicos a cidade coloca ao lado dos

seus oacutergatildeos puacuteblicos e judiciaacuterios () um espetaacuteculo aberto a todos os

cidadatildeos dirigido desempenhado julgado por representantes qualificados

das diversas tribos a cidade se faz teatro ela se toma de certo modo como

objeto de representaccedilatildeo e desempenha a si proacutepria diante do puacuteblico

(Ibidem p 10)

Irredutivelmente traacutegica em sua essecircncia a trageacutedia reflete a realidade em que ela

se originou e se estabeleceu por isso diz-nos Vernant que ―a proacutepria consciecircncia traacutegica

nasce e desenvolve-se com a trageacutedia (2008 p 9) Mas para aleacutem da representaccedilatildeo a

trageacutedia questiona a sociedade em que se instaurou E o seu constituinte traacutegico eacute elemento

importante nesse fato visto que potildee em cena o conflito da condiccedilatildeo humana diante de sua

fragilidade e limitaccedilatildeo

E esse elemento traacutegico estaacute relacionado ao deus que assiste do centro do teatro agrave

representaccedilatildeo da tragicidade humana Referimo-nos a Dioniso o deus que representa

contraditoriamente (ou natildeo) tanto a trageacutedia quanto a comeacutedia gecircneros que chegam a ser

completamente opostos a depender da perspectiva em que sejam analisados Um deus tatildeo

associado agrave celebraccedilatildeo ao vinho ao canto faacutelico ao ecircxtase causa-nos certa estranheza em

estar na representaccedilatildeo do gecircnero traacutegico

Mas essa ligaccedilatildeo entre o deus e o traacutegico pode ser bem entendida pelo fato de

que assim como a trageacutedia questiona a proacutepria realidade que representa tambeacutem ―Dioniso

questiona essa ordem Ele a faz despedaccedilar-se ao revelar por sua presenccedila outro aspecto do

sagrado jaacute natildeo regular estaacutevel e definido mas estranho inapreensiacutevel e desconcertante

(VERNANT 2006 p 77) Como vemos assim como o traacutegico o deus que o representa

possui os mesmos atributos daiacute a adequaccedilatildeo entre ambos E toda essa complexidade

58

representativa ocorre porque Dioniso ―nos ensina ou nos obriga a tornar-nos o contraacuterio

daquilo que somos comumente (VERNANT 2006 p 80) Toda essa transmutaccedilatildeo pela qual

passa o personagem traacutegico que segundo Vernant eacute obrigada ou ensinada por Dioniso

reitera a proacutepria situaccedilatildeo traacutegica prescrita por Aristoacuteteles que se baseia numa passagem da

fortuna ao infortuacutenio ou vice-versa (Poeacutetica 1451a) Apesar de que a passagem da fortuna ao

infortuacutenio segundo Aristoacuteteles (1453a) eacute considerada mais traacutegica tal aspecto pode ser

observado no corpus do nosso trabalho jaacute que no Canto XI Agamecircmnon Aacutejax Aquiles e

Anticleacuteia mostram-se infelizes lamuriantes com o destino que tiveram e esse fim desditoso eacute

o mais traacutegico

Permeada pela tragicidade em sua essecircncia a trageacutedia possui uma estrutura formal

geralmente bem delimitada Para Aristoacuteteles um fato decisivo na qualificaccedilatildeo da estrutura de

uma trageacutedia eacute a sua caracterizaccedilatildeo como complexa Na Poeacutetica (1452a) o filoacutesofo diz-nos

que haacute trageacutedias de estrutura simples e complexa Nesta a mudanccedila da fortuna ocorre com

reconhecimento37

do grego a)nagnwiquestrisij eou peripeacutecia38

do grego peripemacrteia

diferentemente da simples em que a mudanccedila da fortuna ocorre sem nenhum desses

elementos Segundo o filoacutesofo as faacutebulas mais belas satildeo as complexas desde que toda a accedilatildeo

esteja conexa com a necessidade e a verossimilhanccedila

Aleacutem desse aspecto baacutesico da estrutura da trageacutedia Aristoacuteteles indica-nos os seus

elementos constitutivos presentes em todas as peccedilas a saber proacutelogo episoacutedio ecircxodo canto

coral com este se distinguindo entre paacuterodo e estaacutesimo39

O primeiro constitui a parte da

trageacutedia que precede a entrada do coro o episoacutedio eacute uma parte da peccedila que fica situada entre

dois cantos completos do coro apoacutes o ecircxodo natildeo haacute canto do coro o canto do coro possui

dois momentos distintos um eacute o paacuterodo que eacute o primeiro pronunciar do coro e o outro eacute o

estaacutesimo que eacute o canto realizado no final de um episoacutedio em anapestos e troqueus

Completando essa determinaccedilatildeo aristoteacutelica sobre a estrutura da trageacutedia citamos

a divisatildeo estrutural da trageacutedia de Jacqueline de Romilly (2008) A autora apesar de basear-se

e em muitos momentos apenas transcrever a definiccedilatildeo de Aristoacuteteles determina dois

37

Do grego a)nagnwiquestrisij proveniente do verbo a)nagnwricentzw formado pelo prefixo a)na de novo

mais o radical gnwrizw que indica fazer conhecer saber Deste modo a)nagnwiquestrisij significa fazer

conhecer novamente ou seja reconhecer de novo fazer saber revelar 38

Do grego peripemacrteia esta palavra eacute composta pela preposiccedilatildeo periindicando o entorno a sobre de

mais o radical pemacrt do verbo piiquestptw que significa queda atirar-se em indicando a mudanccedila a

imprevisibilidade o inesperado Assim peripemacrteia indica o que estaacute envolta do imprevisto acerca do

inesperado aquilo estaacute estaacute relacionado a queda 39

Haacute tambeacutem o canto dos atores e o koacutesmos que era o canto de lamento do coro estes dois natildeo satildeo comuns em

todas as trageacutedias por isso natildeo nos iremos ater neste momento em suas ponderaccedilotildees

59

elementos centrais na estrutura da trageacutedia que a distingue dos demais gecircneros satildeo eles o

coro e os personagens O primeiro desde a origem da trageacutedia relacionada ao ditirambo

figura como importante elemento da peccedila O segundo passa por transformaccedilotildees no nuacutemero de

atores que o representam ao longo do desenvolvimento da trageacutedia Assim com Teacutespis havia

apenas um ator com Eacutesquilo esse nuacutemero foi elevado para dois e com Soacutefocles para trecircs

Assim como faz Aristoacuteteles Romilly (2008 p 43-51) afirma ainda ser a accedilatildeo um elemento

primordial na estrutura da trageacutedia poreacutem natildeo eacute especiacutefico jaacute que na epopeacuteia tanto quanto

na trageacutedia a accedilatildeo deve ser una Ou seja a epopeacuteia pode tambeacutem ter sua accedilatildeo envolta de

peripeacutecias e reconhecimentos e no fim essa accedilatildeo pode levar o personagem agrave cataacutestrofe

Diante desses aspectos estruturais da trageacutedia que ora a distingue ora a identifica

com outros gecircneros entendemos porque Jaeger considera que ―a trageacutedia tanto pelo seu

material miacutetico como pelo seu espiacuterito eacute a herdeira integral da epopeacuteia (JAEGER 2003 p

70) Tal constataccedilatildeo reforccedila nossa tese sobre a tragicidade presente na epopeacuteia Por essa

relaccedilatildeo entre os gecircneros gregos sejam eles arcaicos ou claacutessicos Jaeger afirma

A trageacutedia devolve agrave poesia grega a capacidade de abarcar a

unidade de todo humano Nesse sentido soacute a epopeacuteia homeacuterica se pode

comparar a ela Apesar da grande fecundidade da literatura nos seacuteculos

intermediaacuterios soacute a epopeacuteia a iguala quanto agrave riqueza do conteuacutedo agrave forccedila

estruturadora e amplitude do seu espiacuterito criador Eacute como se o renascimento

do gecircnio poeacutetico da Greacutecia se tivesse mudado da Jocircnia para Atenas A

epopeacuteia e a trageacutedia satildeo como duas grandes formaccedilotildees montanhosas ligadas

por uma seacuterie ininterrupta de serras menores (Ibidem p 287)

A partir da reflexatildeo acima e das consideraccedilotildees realizadas ao longo deste toacutepico

acerca do traacutegico e da trageacutedia percebemos que satildeo elementos num certo ponto

indissociaacuteveis mas que podem ser visto agrave luz de uma anaacutelise que os distingue e que nos faz

perceber a anterioridade do traacutegico em relaccedilatildeo agrave trageacutedia Tal constataccedilatildeo pode ser verificada

tanto na sociedade grega levando em consideraccedilatildeo o traacutegico como elemento soacutecio-cultural

verificado nos estudos antropoloacutegicos como na literatura grega arcaica Assim se quisermos

ver o surgir do traacutegico na literatura ocidental devemos recorrer agraves epopeacuteias homeacutericas pois laacute

encontramos os germes da manifestaccedilatildeo traacutegica estabilizada no periacuteodo claacutessico da literatura

grega atraveacutes das trageacutedias

No decorrer deste capiacutetulo aleacutem de discorrermos sobre o traacutegico sua

manifestaccedilatildeo e origem permeamos nosso estudo tambeacutem com ponderaccedilotildees sobre a trageacutedia

sua formaccedilatildeo e estrutura porque consideramos que essas relaccedilotildees satildeo fundamentais para o

objetivo geral de nosso trabalho que eacute analisar a presenccedila do traacutegico num texto eacutepico a partir

60

do Canto XI da Odisseacuteia Essa realizaccedilatildeo do traacutegico na eacutepica mesmo natildeo sendo seu objetivo

eacute para a literatura ocidental a primeira apariccedilatildeo traacutegica que fundamentaraacute as trageacutedias gregas

no seacuteculo IV aC

23 O traacutegico na Poeacutetica

Antes de iniciarmos nossas discussotildees sobre a perspectiva do traacutegico presente na

Poeacutetica iremos expor brevemente as consideraccedilotildees realizadas por Platatildeo na Repuacuteblica

sobre a arte literaacuteria e mais especificamente sobre a arte traacutegica Esta introduccedilatildeo faz-se

importante para que percebamos e possamos avaliar ateacute que ponto Aristoacuteteles foi

influenciado por seu mestre ou ao contraacuterio construiu teorizaccedilatildeo oposta mais centrada na

estrutura e verossimilhanccedila textual do que no valor moral e educativo que a arte poderia

veicular aos jovens do estado

Faz-se necessaacuterio retomar a teorizaccedilatildeo platocircnica visto que esta eacute de algum modo

relevante na produccedilatildeo de Aristoacuteteles pois no miacutenimo fez parte de sua formaccedilatildeo intelectual

Aleacutem do mais foi Platatildeo o primeiro a iniciar uma discussatildeo sobre a arte literaacuteria e noacutes diante

desse pioneirismo devemos entender o que foi preconizado

Para tanto selecionamos os Livros III e X da Repuacuteblica a fim de avaliarmos os

posicionamentos de Platatildeo e as diferenccedilas que seu disciacutepulo Aristoacuteteles teraacute diante da

perspectiva da anaacutelise do texto literaacuterio Esses dois livros foram selecionados por

considerarmos que neles encontramos reflexotildees importantes de Platatildeo a respeito da arte

literaacuteria

Platatildeo como dissemos iniciou as discussotildees sobre a literatura contudo avaliou-a

a partir do ponto de vista da utilidade se ela poderia servir ao estado ou ao contraacuterio se

prejudicaria na formaccedilatildeo dos jovens A seguir podemos avaliar melhor essa assertiva atraveacutes

da anaacutelise do proacuteprio texto platocircnico

No Livro III praticamente todas as exposiccedilotildees de Platatildeo convergem para um

mesmo foco no estado ideal deve-se estar vigilante a fim de eliminar a arte literaacuteria que natildeo

contribui positivamente na formaccedilatildeo dos jovens isto eacute aquela que os incita agrave impiedade Mas

o que a arte poderia veicular que natildeo favorecesse a formaccedilatildeo do jovens Platatildeo deixa bem

claro quais seriam as faacutebulas inadequadas pois quase como em um manual ele descreve o

que natildeo deve fazer parte da narraccedilatildeo pura e moderada Entre tantas inadequaccedilotildees literaacuterias a

61

que ele se refere podemos citar falsificaccedilatildeo das situaccedilotildees ocorridas no inferno descriccedilatildeo de

heroacuteis em lamentaccedilatildeo pela morte ou pela perda material chorosos homens nobres em

situaccedilatildeo de arrependimento e fraqueza dados ao riso excessivo entre tantas outras indicaccedilotildees

feitas pelo filoacutesofo Diante dessas prerrogativas Platatildeo chega inclusive ao ponto de

considerar que a beleza poeacutetica natildeo caminha ao lado do valor moral tanto que diz

[387β] ηαῦηα θαὶ ηὰ ηνηαῦηα πάληα παξαηηεζόκεζα Ὅκεξόλ ηε θαὶ ηνὺο

ἄιινπο πνηεηὰο κὴ ραιεπαίλεηλ ἂλ δηαγξάθσκελ νὐρ ὡο νὐ πνηεηηθὰ θαὶ ἡδέα ηνῖο πνιινῖο ἀθνύεηλ ἀιι᾽ ὅζῳ πνηεηηθώηεξα ηνζνύηῳ ἧηηνλ

ἀθνπζηένλ παηζὶ θαὶ ἀλδξάζηλ νὓο δεῖ ἐιεπζέξνπο εἶλαη δνπιείαλ ζαλάηνπ

κᾶιινλ πεθνβεκέλνπο40

(Repuacuteblica III 387b)

Pediremos a Homero e aos outros poetas para excluir estas espeacutecies (de

narrativas) assim como natildeo as invalidariacuteamos por falta de poeacutetica e agrado

aos muitos que as ouvir Pelo contraacuterio quanto mais poeacuteticas tanto menos

audiacutevel seratildeo para crianccedilas e homens os quais devem ser livres tendo

receado mais a escravidatildeo do que a morte

Platatildeo natildeo apenas se refere agraves circunstacircncias que devem ser evitadas como cita as

passagens literaacuterias muitas delas de Homero as quais ele natildeo considera beneacuteficas para

compor a estruturaccedilatildeo do estado ideal Uma dessas referecircncias remete-nos ao Canto XI da

Odisseacuteia constataccedilatildeo esta que fazemos mesmo sem o filoacutesofo referir-se diretamente ao seu

objeto de criacutetica Vejamos

[386c] ἐμαιείςνκελ ἄξα ἦλ δ᾽ ἐγώ ἀπὸ ηνῦδε ηνῦ ἔπνπο ἀξμάκελνη πάληα

ηὰ ηνηαῦηαmdash―βνπινίκελ θ᾽ ἐπάξνπξνο ἐὼλ ζεηεπέκελ ἄιιῳ

ἀλδξὶ παξ᾽ ἀθιήξῳ ᾧ κὴ βίνηνο πνιὺο εἴε

ἢ πᾶζηλ λεθύεζζη θαηαθζηκέλνηζηλ ἀλάζζεηλ41

(Repuacuteblica III 386c)

Dizia eu neste discurso portanto anulemos de iniacutecio todas as coisas desta

natureza que assim tenham iniciado ndash ―pois eu preferiria viver sendo um

trabalhador do campo para um outro homem ateacute mesmo sem nobreza e

que eventualmente sua vida natildeo fosse de posses do que reinar sobre

cadaacuteveres que tiveram sido destruiacutedos

Como nos fica evidente temos na citaccedilatildeo acima uma criacutetica agrave produccedilatildeo literaacuteria

homeacuterica especificamente ao Canto XI da Odisseacuteia em que Odisseu encontra-se no Hades

com alguns companheiros da Guerra de Troacuteia Nesse encontro os guerreiros de alta estirpe

40

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101673Abook3D33Asection

3D387b agraves 1523hs de 12 de julho de 2010 41

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101673Abook3D33Asection

3D386c agraves 1530hs de 12 de julho de 2010

62

como Agamecircmnon Aquiles e Aacutejax mostram-se numa situaccedilatildeo natildeo gloriosa A morte para

eles representa um infortuacutenio

Na conversa que Odisseu tem com Agamecircmnon percebe-se que o Atrida vecirc-se

desolado pela traiccedilatildeo da esposa que o levou a uma morte traacutegica inclusive chama atenccedilatildeo

para que Odisseu tenha cuidado no retorno ao lar precavendo-se de uma armadilha que assim

como Cliteminestra Peneacutelope poderia ter preparado para o Laertida Agamecircmnon conta em

detalhes a sua morte de seus companheiros e de Cassandra todos pegos pela artimanha

realizada por sua esposa Cliteminestra junto com seu amante Egisto E depois da narraccedilatildeo o

Atrida no verso 412 conclui ―wAgravej qanon oi)ktistwi qanatwi rdquo42 isto eacute ―Assim morri

com a morte mais lamentaacutevel (Odisseacuteia Canto XI v 412)

O diaacutelogo entre Odisseu e Aquiles natildeo seraacute diferente tanto que Platatildeo chega a falar

(III ndash 386c-d) que narraccedilotildees desse tipo devem ser anuladas O teor desse diaacutelogo sugere para

Platatildeo certa inutilidade para composiccedilatildeo do estado ideal por significar uma ameccedila ao estado

beacutelico E como sabemos nessa passagem Aquiles revela-se insatisfeito em ser rei dos

mortos preferindo ser um ―bouloimhn krsquo e)parouroj e)wUumln qhteuemenrdquo43 (Odisseacuteia

Canto XI v 489) ou seja ―pois eu preferiria viver sendo trabalhador do campo desde que

ainda estivesse vivo Uma narraccedilatildeo como essa segundo Platatildeo abalaria a propensatildeo guerreira

dos heroacuteis que natildeo devem temer a morte pois se um heroacutei como Aquiles mostra-se

arrependido os jovens ver-se-atildeo influenciados negativamente Por isso Platatildeo

definitivamente indica que tais faacutebulas devem ser eliminadas do estado jaacute que natildeo satildeo

beneacuteficas na formaccedilatildeo dos homens dos jovens enfim da sociedade em geral

Aacutejax conhecido como o maior guerreiro grego depois de Aquiles tambeacutem natildeo se

encontra em estado de graccedila e glorificado no Hades Pelo contraacuterio aparece ainda ressentido e

negando-se a falar com Odisseu magoado pela destinaccedilatildeo das armas de Aquiles Estas ao

inveacutes de ficarem com ele satildeo destinadas a Odisseu justificando-se entatildeo a sua atitude de

desdeacutem Esta passagem tambeacutem natildeo eacute adequada aos jovens pois natildeo os enobrece e sim

mostra a desobrigaccedilatildeo para com a filiiquesta ou seja com aqueles que compotildeem o grupo de

amizade

42

Texto disponiacutevel em httpwwwhs-

augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_od11html agraves 1533hs ded 12 de julho de

2010 43

Texto disponiacutevel em httpwwwhs-

augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_od11html agraves 1540hs de 12 de julho de

2010

63

Seja atraveacutes de Agamecircmnon Aquiles eou Aacutejax o que queremos mostrar com a

explanaccedilatildeo acima eacute o posicionamento e os criteacuteios utilizados por Platatildeo diante da avaliaccedilatildeo

do texto literaacuterio que como se vecirc eacute baseada em criteacuteios morais de utilidade Platatildeo avalia a

arte atraveacutes de sua utilidade ou inutilidade buscando um fundamento de serventia para a

sociedade e para os homens que a compotildee Assim perguntado sobre quais gecircneros poderiam

permanecer no estado apoacutes ter apontado tantas ―faacutebulas inuacuteteis a exemplo das de Homero

responde

[397δ] ηί νὖλ πνηήζνκελ ἦλ δ᾽ ἐγώ πόηεξνλ εἰο ηὴλ πόιηλ πάληαο ηνύηνπο

παξαδεμόκεζα ἢ ηῶλ ἀθξάησλ ηὸλ ἕηεξνλ ἢ ηὸλ θεθξακέλνλ44

(Repuacuteblica

III 397d)

Entatildeo como realizaremos Dizia eu Seraacute por acaso que aceitaremos para

cidade todos (gecircneros) desta espeacutecie ou outro puro ou o que mistura

O Canto XI nosso objeto central de anaacutelise no proacuteximo capiacutetulo eacute avaliado por

Platatildeo a partir de um criteacuterio utilitaacuterio daiacute a sua opccedilatildeo em eliminar tal arte do estado Jaacute

Aristoacuteteles diferentemente natildeo analisa o texto literaacuterio pelo pressuposto da utilidade mas da

estrutura e verossimilhanccedila interna do texto independentemente da accedilatildeo narrada vir a ser

positiva ou negativa para a formaccedilatildeo do cidadatildeo Por haver essas distinccedilotildees teoacutericas

consideramos explanar mesmo que resumidamente acerca dos paracircmetros de avaliaccedilatildeo que

Platatildeo faz da arte literaacuteria ainda que a nossa pesquisa fundamente-se nos escritos

aristoteacutelicos

Ainda no Livro III (393d) Platatildeo diz preferir a exposiccedilatildeo a narraccedilatildeo pois

considera que no momento em que o poeta se oculta dando voz aos personagens transfigura-

se em outros seres Essa transfiguraccedilatildeo ocorre bem nitidamente nas trageacutedias e comeacutedias

mas no preceito platocircnico ao realizar tal imitaccedilatildeo o poeta afasta-se trecircs vezes da realidade

No Livro X esta distacircncia da arte imitativa em relaccedilatildeo agrave realidade seraacute ainda mais

desenvolvida por Platatildeo chegando afirmar que a arte poeacutetica estaacute muito afastada da realidade

por isso ele afirma que todos os poetas desde Homero ―thordfj deUuml a)lhqeiaj ousup1x

aAgraveptesqairdquo45 (Ibidem 601a) ou seja ―da verdade natildeo consegue se unir Mais proacutexima da

irracionalidade e distante da realidade a arte segundo Platatildeo pode causar danos aos homens

44

Textop retirado de

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101673Abook3D33Dsection

3D3976d agraves 1530hs de 15 de julho de 2010 45

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A199901016710Abook3D33Asection

10A601ac agraves 1530hs de 15 de julho de 2010

64

E uma cidade sob sua influecircncia acaba sendo governada pela dor pela emoccedilatildeo e natildeo pelo

nomoj46

Uma outra exposiccedilatildeo de Platatildeo no Livro X tambeacutem nos interessa Eacute que o autor

da Repuacuteblica apesar das criacuteticas feitas a Homero admite haver uma certa dificuldade eou

estranheza em ter que falar o que pensa a respeito da arte homeacuterica tendo em vista que haacute de

sua parte uma dedicaccedilatildeo e respeito fruto de sua infacircncia Segue abaixo esse discurso aleacutem de

outro que mostra a importacircncia de Homero para a sociedade grega natildeo soacute a arcaica como

tambeacutem a claacutessica Por isso Platatildeo realiza as seguintes afirmaccedilotildees sobre o autor da Odisseacuteia

θαίηνη θηιία γέ ηίο κε θαὶ αἰδὼο ἐθ παηδὸο ἔρνπζα πεξὶ Ὁκήξνπ ἀπνθσιύεη

ιέγεηλ47

(Repuacuteblica X 595b)

E de fato haacute alguma amizade e respeito que possuo desde a infacircncia a

respeito de Homero que impede-me de falar

() γὰξ ηῶλ θαιῶλ ἁπάλησλ ηνύησλ ηῶλ ηξαγηθῶλ πξῶηνο δηδάζθαιόο ηε

θαὶ ἡγεκὼλ γελέζζαη48

(Ibidem 595c)

Na verdade vem a ser ele o primeiro mestre e guia de todos esses belos

autores traacutegicos

Essa afirmaccedilatildeo de Platatildeo mais uma vez confirma-nos a influecircncia que Homero

realizou sobre os autores traacutegicos Influecircncia essa que pode ser observada natildeo apenas na base

mitoloacutegica como tambeacutem nas cenas homeacutericas aproveitadas e desenvolvidas pelos autores

traacutegicos Ainda mais essa influecircncia pode ser observada nisso acreditamos na proacutepria

elaboraccedilatildeo do traacutegico Este seraacute afixado na literatura grega por meio dos tragedioacutegrafos mas

como podemos notar jaacute se manifesta nas eacutepicas homeacutericas em especial Essa influecircncia

exercida por Homero nos autores traacutegicos como Eacutesquilo Soacutefocles e Euriacutepedes justifica sua

intitulaccedilatildeo como o primeiro mestre dos traacutegicos ldquoprwordftoj didaskaloj twordfn tragikwordfnrdquo

como bem nos caracterizou Platatildeo

46

Em grego nocentmoj de necentmw verbo que significa distribuir partilhar dividir Tem como sentido

primordial o que eacute estabelecido pelo uso o costume justamente por ser uma accedilatildeo de partilha entre os integrantes

da comunidade daiacute o radical derivar de necentmw Como segundo sentido indicado por Romizi (2006) ) nocentmoj indica o que ocorre segundo o termo da lei da norma distribuiacuteda pelo estado 47

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A199901016710Abook3D33Asection

10cD595b agraves 1530hs de 15 de julho de 2010 48

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A199901016710Abook3D33Asection

10cD595c agraves 1530hs de 15 de julho de 2010

65

Diante da exposiccedilatildeo acima jaacute podemos inferir que Aristoacuteteles ao contraacuterio do seu

mestre analisa a arte literaacuteria em sua estrutura e construccedilatildeo poeacutetica como criaccedilatildeo bem no

sentido etimoloacutegico do termo poihsije natildeo como fez Platatildeo pela perspectiva da

funcionalidade social da arte dos valores e da moral propagada Vejamos pois em siacutentese as

concepccedilotildees aristoteacutelicas da arte literaacuteria presentes na Poeacutetica

Na PeriUuml PoihtikhUumlj49 de Aristoacuteteles que conhecemos geralmente como

Poeacutetica ou Arte Poeacutetica temos comentaacuterios acerca da poeacutetica como indica sua proacutepria

etimologia ou seja da criaccedilatildeocomposiccedilatildeo artiacutestica A poeacutetica central para qual se dirigem os

comentaacuterios do autor eacute a trageacutedia Esta ele considera como mais elevada do que os demais

gecircneros ao ponto de no capiacutetulo XXVI apoacutes suscitar um grau de comparaccedilatildeo entre a

trageacutedia e a epopeacuteia (1461b) demonstrando os atributos de uma e de outra Aristoacuteteles afirma

Eicopy ouAcircn toumacrtoij te diafemacrrei pacurrensi kaiUuml eaumlti twcurrenlaquo thcurrenj temacrxnhj eaumlrgw ()

fanerocentn oagraveti kreittwn aatilden eiOacuteh maIacutellon toucurren Iacutetelouj tugxaiquestnousa

thIacutej epopoiiaj50 (Poeacutetica 26 1462b 11-14)

Entatildeo se ela se distingue por todas essas coisas e ainda pelo trabalho

artiacutestico () eacute claro que a trageacutedia eacute superior agrave epopeacuteia obtendo melhor sua

finalidade

Antes de iniciarmos as nossas consideraccedilotildees sobre o traacutegico a partir da Poeacutetica

ressaltamos que natildeo haacute objetivamente um esclarecimento de Aristoacuteteles do que seria o

traacutegico ao contraacuterio do que ocorre com a trageacutedia cuja estrutura ele conceitua e define

Portanto o que faremos eacute por meio de uma leitura arguta tentar depreender quais elementos

constituem uma accedilatildeo traacutegica e para tanto nos serviremos das exposiccedilotildees que Aristoacuteteles faz

da trageacutedia Ateacute porque como dissemos anteriormente eacute nesta poeacutetica que encontramos de

fato a efetuaccedilatildeo do traacutegico apesar de este jaacute se manifestar nas eacutepicas homeacutericas

Logo ao iniacutecio de sua exposiccedilatildeo no capiacutetulo I Aristoacuteteles afirma-nos que a

epopeacuteia a trageacutedia enfim a criaccedilatildeo poeacutetica de modo geral eacute uma mimhsij51 (1447a) ou

49

Em grego PeriUuml eacute uma preposiccedilatildeo que significa o que estaacute em torno de algo envolta de acerca de eou sobre

algo PoihtikhUumlj eacute formada pelo radical Poihoriundo do verbo temaacutetico poieiquestw que indica o fazer o

compor o criar jaacute o sufixo tikhj conforme nos informa Romizi (2007) indica a atitude a relaccedilatildeo com alguma

coisa o que pertence a algo daiacute PoihtikhUumlj vir a significar o que eacute relativo a criaccedilatildeo a poeacutetica Logo

poderiacuteamos sugerir como traduccedilatildeo para PeriUuml PoihtikhUumljliteralmente ―sobre o que pertencerelativo a

poeacutetica 50

ARISTOacuteTELES 1979 p 75 51

Etimologicamente a palavra mimhsij eacute formada pelo radical mimhiquest do verbo meacutedio mimemacromai que

significa imitar representar reproduzir por meio da imitaccedilatildeo Este verbo por ser meacutedio jaacute nos daacute outra

informaccedilatildeo eacute a de que esta accedilatildeo para que se realize necessita da participaccedilatildeo do envolvimento subjetivo de

66

seja eacute o produto de uma representaccedilatildeo Portanto a concepccedilatildeo aristoteacutelica da arte literaacuteria jaacute eacute

bem demonstrada neste iniacutecio em que estabelecendo a poeacutetica como mimhsij afasta dela

os criteacuterios de avaliaccedilatildeo eacutetica e moral visto que ela natildeo eacute a realidade e sim uma

representaccedilatildeo criativa baseada na necessidade do contexto e na verossimilhanccedila

A anaacutelise literaacuteria seguindo os ditames aristoteacutelicos deve centrar-se na estrutura do

texto e na sua coerecircncia interna e natildeo nos preceitos morais que ela veicula aos jovens como

doutrina Platatildeo baseado na funcionalidade social da poesia Aleacutem da anaacutelise natildeo dever

pautar-se nos valores transmitidos tambeacutem natildeo deve ser feita atraveacutes do aspecto meramente

formal por exemplo preso agrave meacutetrica Essa consideraccedilatildeo de Aristoacuteteles pode ser esclarecida

quando ele distingue a composiccedilatildeo de Empeacutedocles com a de Homero (1447b) tanto que

mesmo ambos utilizando-se da meacutetrica Homero seraacute identificado como poihthmacrj52 e aquele

como o fusioloiquestgoj53

No capiacutetulo II da Poeacutetica o autor explicita-nos que o objeto da imitaccedilatildeo tanto da

trageacutedia quanto da epopeacuteia satildeo os homens superiores (1448a) o que bem nos demonstra a

poeacutetica de Soacutefocles e Homero Tais personagens diferem dos da comeacutedia pois esta imita os

homens natildeo elevados O pressuposto levantado jaacute nos daacute um indiacutecio a respeito do sujeito

traacutegico que eacute pertencer necessariamente a essa dita classe dos superiores honrados e

gloriosos porque estes satildeo os objetos de imitaccedilatildeo da trageacutedia gecircnero em que o traacutegico

realiza-se

Este conhecimento tambeacutem nos ilumina sobre outro aspecto do traacutegico que eacute a

sua relaccedilatildeo com a epopeacuteia pois como observamos eles tecircm em comum o mesmo perfil

Assim as personagens da eacutepica e da arte traacutegica tatildeo diferentes em alguns pontos identificam-

se essencialmente por serem pertencentes a uma mesma classe de homens e mulheres

nobres a citar Agamecircmnon Aacutejax Eacutedipo Antiacutegona Medeacuteia Ifigecircnia enfim Os nomes

citados satildeo de personagens que compotildee a trageacutedia e a epopeacuteia e ainda mais nos casos de

Agamecircmnon e Aacutejax temos personagens de trajetoacuteria eacutepica como tambeacutem traacutegica eles

quem age jaacute que a voz meacutedia inclui o sujeito na accedilatildeo verbal Portanto o imitar parte de um interesse do sujeito

natildeo eacute uma accedilatildeo pragmaacutetica A palavra em estudo possui tambeacutem o sufixo sij Este indica a accedilatildeo e o efeito da

accedilatildeo logo mimhsij traduz-se como a accedilatildeoefeito do imitar do representar 52

Este vocaacutebulo refere-se ao criador da composiccedilatildeo literaacuteria jaacute que poihthmacrj eacute formado pelo radical poihdo

verbo poieiquestw criar mais o sufixo thmacrjindicador da pessoa que realiza a accedilatildeo Assim poihthmacrj representa a

pessoa que cria que compotildee logo o que podemos chamar de poeta artiacutefice 53

O termo referido fusioloiquestgoj eacute formado pela composiccedilatildeo de fusija natureza mais loiquestgoj

genericamente tido como razatildeo proveniente de lemacrgw o dizer atraveacutes da racionalidade da reflexatildeo intelectual

Aleacutem do mais o sufixo oj como diz-nos Romizi (2007) reflete a pessoa que age Logo fusioloiquestgoj vem a

significar aquele que estuda a nureza que se traduz como o fisioacutelogo

67

protagonizam cenas na Iliacuteada e na Odisseacuteia bem como em peccedilas de Eacutesquilo e de Soacutefocles

Ressaltamos poreacutem que na Odisseacuteia jaacute percebemos o caraacuteter traacutegico desses heroacuteis mesmo

estando presentes numa narrativa eacutepica

No capiacutetulo IV dissertando sobre a origem da poesia Aristoacuteteles informa-nos que

Homero foi o responsaacutevel por traccedilar as diretrizes para outros gecircneros literaacuterios Ou seja o

autor da Odisseacuteia natildeo soacute instaurou a literatura no mundo Ocidental como nos legou os

direcionamentos para as demais produccedilotildees literaacuterias vejamos

Ὥζπεξ δὲ θαὶ ηὰ ζπνπδαῖα κάιηζηα πνηεηὴο Ὅκεξνο [35] ἦλ (κόλνο γὰξ νὐρ

ὅηη εὖ ἀιιὰ θαὶ κηκήζεηο δξακαηηθὰο ἐπνίεζελ) νὕησο θαὶ ηὸ ηῆο

θσκσηδίαο ζρῆκα πξηνο ὑπέδεημελ νὐ ςόγνλ ἀιιὰ ηὸ γεινῖνλ

δξακαηνπνηήζαο ὁ γὰξ Μαξγίηεο ἀλάινγνλ ἔρεη ὥζπεξ Ἰιηὰο [1449a] θαὶ ἡ

δύζζεηα πξὸο ηὰο ηξαγσηδίαο νὕησ θαὶ νὗηνο πξὸο ηὰο θσκσηδίαο54

(Poeacutetica IV144b-1449a 34-39)

Assim como Homero era sobretudo poeta com relaccedilatildeo aos (gecircneros)

nobres pois sozinho criou bem representaccedilotildees de accedilotildees desse modo

tambeacutem primeiro mostrou a forma da comeacutedia natildeo o censurado mas a

poesia dramaacutetica que provoca o riso Na verdade o Margites tem sua

analogia pois assim como a Iliacuteada e a Odisseacuteia estatildeo relacionadas as

trageacutedias desse modo aquele (Margites) estaacute para as comeacutedias

Como pode ser visto a importacircncia de Homero daacute-se natildeo apenas pela produccedilatildeo

dos gecircneros que produziu como a epopeacuteia mas para os que natildeo chegou a compor como

comeacutedia e trageacutedia Isto porque a partir de suas obras legou-nos a dramaticidade e outros

elementos que constituem as linhas baacutesicas para a trageacutedia e comeacutedia Desse modo tendo

traccedilado as linhas da trageacutedia e da comeacutedia como Aristoacuteteles afirma-nos acreditamos tambeacutem

que Homero traccedilou as linhas do traacutegico legando-nos o que veio a ser elemento essencial da

trageacutedia

Apoacutes no capiacutetulo V comentar a respeito da comeacutedia sua estrutura e

caracteriacutestica distinguindo-a e comparando-a com a trageacutedia e a epopeacuteia Aristoacuteteles no

capiacutetulo VI propotildee uma definiccedilatildeo para a trageacutedia e descreve suas partes essenciais Logo ao

iniacutecio ele expotildee uma definiccedilatildeo esclarecedora e sinteacutetica sobre a trageacutedia

Ἔζηηλ νὖλ ηξαγσηδία κίκεζηο πξάμεσο ζπνπδαίαο [25] θαὶ ηειείαο κέγεζνο

ἐρνύζεο ἡδπζκέλση ιόγση ρσξὶο ἑθάζηση ηλ εἰδλ ἐλ ηνῖο κνξίνηο

54

Texto disponiacutevel em httpwwwhs-

augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante04Aristotelesari_poi1html agraves 1800hs em 16 de julho de

2010

68

δξώλησλ θαὶ νὐ δη᾽ ἀπαγγειίαο δη᾽ ἐιένπ θαὶ θόβνπ πεξαίλνπζα55

ηὴλ ηλ

ηνηνύησλ παζεκάησλ θάζαξζηλ56 (Poeacutetica VI 1449b 24-28)

Portanto a trageacutedia eacute representaccedilatildeo de uma accedilatildeo grave e acabada que possui

certa extensatildeo com uma linguagem ornada cada uma das partes aparece em

seccedilatildeo em que se age e natildeo atraveacutes de narraccedilatildeo levando a atingir por meio

da piedade e do temor a catarse de tais sofrimentos

Pela passagem acima selecionada depreendemos a partir de quatro caracteriacutesticas

baacutesicas o que Aristoacuteteles entende por trageacutedia Primeiro a trageacutedia representa uma accedilatildeo que

deve ser completa e ter certa extensatildeo segundo a linguagem dever ser ornada o que mais agrave

frente o proacuteprio autor explica como uma linguagem que possui ―rucedilqmoUumln kaiUuml acedilrmonimacran

kaiUuml memacrloj ou seja ―ritmo harmonia e melodia terceiro na trageacutedia natildeo deve haver

narraccedilatildeo isto porque os atores eacute quem agem sem a necessidade da intervenccedilatildeo de um

narrador para esclarecer o que ocorre pois a accedilatildeo transcorre aos nossos olhos quarto e muito

importante a trageacutedia mediante toda a estrutura citada deve suscitar ―esup1leou kaiUuml

fomacrbou57 (Ibidem) isto eacute ―compaixatildeo e medo

Desse modo a trageacutedia mediante as accedilotildees encenadas faz surgir o temor e a

piedade sentimentos contraacuterios mas que se completam pois um a esup1leoj aproxima os

espectadores propicia a identificaccedilatildeo para que possam apiedar-se do sujeitosituaccedilatildeo traacutegico

enquanto o outro o fomacrboj faz com que haja um certo afastamento do espectador em

relaccedilatildeo ao traacutegico posto em cena Assim nessa posiccedilatildeo intermediaacuteria envolta pelo sentimento

55

A utilizaccedilatildeo de perainousa uma forma de particiacutepio presente de perainw que siginifa atingir alcanccedilar

levar denota a simultaneidade da accedilatildeo verbal Por isso ele eacute construiacutedo a partir do tema do infectum que indica

a accedilatildeo inacabada (MURACHO 2007) No caso da citaccedilatildeo o uso de perainousa sugere-nos que

simultaneamente ao processo de narraccedilatildeo traacutegica somos levados a atingir a catarse 56

Texto disponiacutevel em httpwwwhs-

augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante04Aristotelesari_poi1html agraves 1805hs em 16 de julho de

2010 57

Fomacrboj eacute segundo Romizi (2007) a forma nominal do verbo femacrbomai indicando a fuga apavorada em

temor que tambeacutem se relaciona ao verbo fobemacrw que tem o sentido primeiro de fazer pavor aterrorizar fazer

fugir meter em fuga pelo temor Como vemos haacute uma semacircntica ligada ao aterrorizante do que potildee medo ao

ponto de fazer algoalgueacutem lanccedilar-se em fuga Por isso haacute algumas complicaccedilotildees na traduccedilatildeo que fazem deste

termo Uns optam por terror como Eudoro de Sousa (1992) e outros por temor como Jaime Bruna (1995) J

Hardy (1979) traduz-se como crainte ou seja receio num campo semacircntico mais proacuteximo de temor do que

terror Com base nessas discussotildees Lessing e John citados por Sandra Luna (2005) preferem traduzir Fomacrboj

apenas como temor jaacute que terror indicaria um sentimento mais desmedido Diante dessas controveacutersias e da

referecircncia etimoloacutegica consideramos a traduccedilatildeo por temor mais adequada jaacute que ela em si traz ainda o sentido

daquilo que de tatildeo apavorante faria fugir todavia natildeo o faz pelo sentimento de esup1leoj da compaixatildeo piedade

que eacute suscitado junto com ele estabelecendo assim um certo equiliacutebrio Se traduziacutessemos Fomacrboj por terror

acabariacuteamos por indicar um sentimento desmedido que de tatildeo aterrorizante paralisa proacuteximo ao mostruoso

bem contraacuterio ao sentido etimoloacutegico que vimos de fobemacrw Por tudo isso a traduccedilatildeo por terror natildeo eacute

apropriada para as trageacutedias gregas

69

de piedade e de temor a trageacutedia que promove o surgimento dessas emoccedilotildees ―perainousa

thUumln twordfn toioutwn paqhmatwn kaqarsinrdquo (Poeacutetica 1449b) isto eacute ―levando a atingir a

catarse de tais sofrimentos

Sobre a kaqarsij muitas satildeo as discussotildees sobre o sentido real e o uso desse

termo verificado nas trageacutedias tanto que Alfredo Carvalho citado por Sandra Luna (2005)

sugere que se mantenha transcrito nas traduccedilotildees a palavra catarse natildeo delimitando seu

sentido como purgaccedilatildeo eou purificaccedilatildeo fato que ocorre em muitas ediccedilotildees O motivo para

tal indicaccedilatildeo estaacute justamente no fato de essa palavra remeter-nos a uma plurisignificaccedilatildeo

para qual natildeo temos em nossa liacutengua uma palavra que possa vir a cobrir sua semacircntica

A palavra catarse do grego kamacrqarsij tem seu radical kamacrqarproveniente do

verbo kaqaimacrrw que genericamente traduz-se como purificar a exemplo de Bailly (2000)

Romizi (2007) e Liddell amp Scottlsquos (1996) Por isso kaqaromacrj de mesmo radical significa

puro Formada pelo radical kamacrqar- mais o sufixo -sijque indica a accedilatildeo eou efeito da

accedilatildeo kamacrqarsij entatildeo etimologicamente significaria purificaccedilatildeo Todavia atentamos que

esta palavra pode ter uma semacircntica diversa a depender do contexto em que eacute utilizada seja

este meacutedico seja religioso

Assim na utilizaccedilatildeo meacutedica o uso deste verbo kamacrqarsij indica purgaccedilatildeo

limpeza esvaziamento do que for de maleacutefico para a sauacutede orgacircnica do inviacuteduo Na utilizaccedilatildeo

religiosa kamacrqarsij significa purificaccedilatildeo que simboliza a limpeza do espiacuterito impuro que

desagrada ao divino Segundo Jean Chevalier e Alain Gheerbrant (2009) a purificaccedilatildeo eacute um

rito presente em todas as religiotildees

Na verdade mesmo diante dessas aparentes distacircncias entre os termos

acreditamos que purgaccedilatildeo e purificaccedilatildeo encontram-se num mesmo campo semacircntico apesar

de utilizadas em contextos diferentes pois ambas indicam a eliminaccedilatildeo de impurezas e

malefiacutecios sejam eles fiacutesicos (purgaccedilatildeo) ou espirituais (purificaccedilatildeo) De todo o modo para

que possamos explicitar essa duplicidade semacircntica presente no termo em questatildeo

utilizaremos ao longo do nosso trabalho como indica Carvalho o vocaacutebulo catarse Assim

natildeo pomos fim a essa vaacutelida discussatildeo linguiacutestica e literaacuteria aleacutem de sua duplicidade

semacircntica

Entendida a explanaccedilatildeo sobre a carga semacircntica presente em

kamacrqarsijrelacionaremos esse conceito e sua importacircncia inseridos no entendimento da

trageacutedia e do traacutegico Para Lesky (1995) a catarse pode ser um instrumento para

70

entendermos melhor o traacutegico e seu efeito jaacute que seria o resultado da accedilatildeo traacutegica Se para

Aristoacuteteles a trageacutedia propicia o despertar de sentimentos como o temor e a piedade e aleacutem

disso vem a operar a catarse dessas emoccedilotildees que ela mesma fez surgir entendemos que isso

natildeo ocorre apenas pela linguagem condimentada pelo ritmo ou melodia Entatildeo o componente

da trageacutedia essencial para inspirar esses sentimentos eacute justamente o traacutegico

Toda essa explanaccedilatildeo sobre a kamacrqarsij nos eacute importante por acreditarmos que

o Canto XI da Odisseacuteia passa por um processo kartaacutetico Ao ver os grandes heroacuteis em

infortuacutenio Odisseu apieda-se perante o sofrer de seus semelhantes ao mesmo tempo em que

tambeacutem sente temor de que pudesse vir a ter um destino desventuroso o que natildeo seria difiacutecil

por haacute tanto vir enfrentando sofrimentos diversos na busca de retornar ao lar Tendo passado

pelo processo de kamacrqarsij Odisseu purificado livre das enfermidades espirituais do

excesso e da desmedida pode finalmente alcanccedilar seu objetivo buscado jaacute por longos anos

chegar a Iacutetaca

Aliado aos demais elementos da trageacutedia o traacutegico eacute o responsaacutevel para que se

suscitem as emoccedilotildees de piedade e temor as quais segundo Aristoacuteteles satildeo fruto das accedilotildees

representadas na peccedila e natildeo narraccedilotildees Pois mais do que as outras partes da trageacutedia como

ritmo melodia e linguagem condimentada eacute o traacutegico que essencialmente tem a capacidade

de provocar e inspirar a esup1leojpiedade e o fomacrbojo temor

Deste modo uma representaccedilatildeo traacutegica como a de Agamecircmnon que apoacutes dez

anos volta agrave sua terra glorificado pela vitoacuteria mas que logo eacute pego por uma armadilha da

esposa e de seu amante matando-o indignamente faz surgir dois sentimentos

esup1leojpiedade e o fomacrbojo temor O primeiro porque diante de um sofrer que parece

indigno injusto imerecido acaba-se por sentir compaixatildeo Lembremos de que Agamecircmnon

um homem de grandes feitos aAtildenac asup1ndrwIacuten58 o senhor dos heroacuteis retorna trazendo a gloacuteria

para o lar e como recepccedilatildeo encontra a morte preparada pela esposa numa banheira Tudo

isso nos inspira a esup1lemacroj Ao mesmo tempo toda essa situaccedilatildeo traacutegica se veio atingir um

grande rei como Agamecircmnon por este ter cometido uma accedilatildeo errocircnea poderia vir atingir

tambeacutem os demais menos ilustres Logo desponta-se entatildeo o receio de que o traacutegico possa

tambeacutem nos atingir E essa circunstacircncia inspira o fomacrboj Por isso o coro diz em

Agamecircmnon

58

Este eacute um epiacuteteto bastante utilizado para Agamecircmnon na Iliacuteada e que o distingue dos demais indicando que

ele eacute o que comanda os demais heroacuteis e reis como Aquiles Aacutejax Odisseu enfim

71

ἰὼ ἰὼ βαζηιεῦ βαζηιεῦ

πο ζε δαθξύζσ

θξελὸο ἐθ θηιίαο ηί πνη᾽ εἴπσ

θεῖζαη δ᾽ ἀξάρλεο ἐλ ὑθάζκαηη ηῶδ᾽

ἀζεβεῖ ζαλάηῳ βίνλ ἐθπλέσλ

ὤκνη κνη θνίηαλ ηάλδ᾽ ἀλειεύζεξνλ

δνιίῳ κόξῳ δακεὶο

ἐθ ρεξὸο ἀκθηηόκῳ βειέκλῳ

(Agamecircmnon v 1513 -1520)

Ioacute ioacute Rei rei

Como chorar-te-ei

O que falar a partir do coraccedilatildeo amigo

Eacutes posto nessa teia de aranha expirando

a vida por uma impiedosa morte

Oacutemoi oacutemoi Neste indigno repouso

Tendo sido dominado sob trapaceira sorte

Pela matildeo com arma cortante de ambos os lados

A trageacutedia por meio do traacutegico tendo feito surgir os sentimentos de temor e

piedade realiza a catarse desses sentimentos assim os sentimentos que ela mesma inspirou

formam um processo cartaacutetico Processo possiacutevel pela existecircncia do traacutegico na composiccedilatildeo

estrutural da trageacutedia pois como vimos o traacutegico eacute o elemento responsaacutevel por inspirar o

temor e a piedade Desta maneira proporcionando meios de ser efetuado o que eacute

provavelmente o maior objetivo da trageacutedia a kaqarsij

Apesar de Aristoacuteteles natildeo nos definir exatamente o que eacute o traacutegico podemos

percorrer suas ponderaccedilotildees na Poeacutetica sobre os elementos da trageacutedia Com isso se natildeo

chegamos ao traacutegico aristoteacutelico pelo menos nos aproximamos de sua significaccedilatildeo Assim a

partir do raciociacutenio de que o traacutegico tem a capacidade de fazer surgir os sentimentos de temor

e piedade e depois realizar a catarse deles podemos chegar a mais uma conclusatildeo sobre o

traacutegico Porque se o inspirar do temor e da piedade como nos diz Aristoacuteteles ocorre atraveacutes

da accedilatildeo dos atores e natildeo da narraccedilatildeo chegamos a mais uma caracteriacutestica sobre o traacutegico ele

decorre da accedilatildeo dos personagens

E essa accedilatildeo traacutegica segundo Aristoacuteteles eacute o elemento mais importante da trageacutedia

grega porque nela encontramos a origem para a fortuna humana seja ela boa ou maacute (1450a)

e eacute tambeacutem atraveacutes da accedilatildeo que o caraacuteter se revela jaacute que a qualidade dos personagens estaacute

exposta em suas accedilotildees Desta maneira elencando o mito o caraacuteter a elocuccedilatildeo o pensamento

o espetaacuteculo e a melopeacuteia como as seis partes componentes da trageacutedia ele afirma

72

Μέγηζηνλ δὲ ηνύησλ ἐζηὶλ ἡ ηλ πξαγκάησλ ζύζηαζηο ἡ γὰξ ηξαγσηδία

κίκεζίο ἐζηηλ νὐθ ἀλζξώπσλ ἀιιὰ πξάμεσλ θαὶ βίνπ θαὶ εὐδαηκνλία θαὶ

θαθνδαηκνλία ἐλ πξάμεη ἐζηίλ θαὶ ηὸ ηέινο πξᾶμίο ηηο ἐζηίλ νὐ πνηόηεο59

(Poeacutetica VI 1450a 15-19)

O mais importante (elemento) eacute a composiccedilatildeo dos fatos pois a trageacutedia eacute

representaccedilatildeo natildeo de seres humanos mas de accedilotildees e da vida Tambeacutem a

fortuna e o infortuacutenio estatildeo na accedilatildeo e a finalidade eacute alguma accedilatildeo natildeo uma

qualidade

Apoacutes ter identificado a accedilatildeo como a parte mais importante da trageacutedia Aristoacuteteles diz

que sem accedilatildeo natildeo haacute trageacutedia Tal definiccedilatildeo como vemos faz parte de um argumento bem

loacutegico pois se antes ele havia dito que a accedilatildeo eacute o elemento mais importante da trageacutedia logo

supomos que sem ela natildeo haacute trageacutedia e eacute isso que ele nos confirma ―brvbarbrvbarEti aAtildeneu meUumln

pracewj ousup1k aAtilden genoito tragdia aAtildeneu deUuml hsup1qwordfn ge noitrsquo aAtilden60 (Ibidem 23-25)

ou seja ―Ainda assim a trageacutedia natildeo poderia vir a ser sem accedilatildeo mas sim sem os caracteres

Mesmo porque a accedilatildeo ―sup1ArxhUuml meUumln ouaringn kaiUuml oiaringon yuxhUuml ocedil muordfqoj thordfj tragdiaj61

(Poeacutetica VI 1450a 39-40) ― Portanto o mito eacute como que o princiacutepio e a alma da trageacutedia

Seguindo tambeacutem o raciociacutenio loacutegico de Aristoacuteteles poderiacuteamos dizer o traacutegico eacute

proveniente da accedilatildeo dos personagens sem accedilatildeo natildeo haacute trageacutedia logo concluiacutemos que sem

traacutegico natildeo haacute trageacutedia Chegamos entatildeo temos mais um pressuposto para legitimar nossa

tese do traacutegico como essecircncia da trageacutedia grega seja esse refletido no destino ou apenas em

uma situaccedilatildeo de vida

Esta accedilatildeo traacutegica deve tambeacutem estar ligada a dois meios que realizam a comoccedilatildeo

dos acircnimos satildeo eles asup1nagnwiquestrisij e peripemacrteia ou seja reconhecimento e peripeacutecia

Anteriormente jaacute explicamos a etimologia e o significado de cada um agora nos eacute importante

compreender a importacircncia deles na estrutura da trageacutedia percebamos

Πξὸο δὲ ηνύηνηο ηὰ κέγηζηα νἷο ςπραγσγεῖ ἡ ηξαγσηδία ηνῦ κύζνπ κέξε

ἐζηίλ αἵ ηε πεξηπέηεηαη θαὶ ἀλαγλσξίζεηο62 (Poeacutetica VI 1450a 33-35)

59

Texto disponiacutevel em httpwwwhs-

augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante04Aristotelesari_poi2html agraves 1905hs de 16 de julho de

2010 60

Texto disponiacutevel em httpwwwhs-

augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante04Aristotelesari_poi2html agraves 1910hs de 16 de julho de

2010 61

Ibidem 62

Texto disponiacutevel em httpwwwhs-

augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante04Aristotelesari_poi2html agraves 1910hs de 16 de julho de

2010

73

Para junto disso a trageacutedia extasia-os com seus importantes elementos que

satildeo parte do mito as peripeacutecias e os reconhecimentos

Entatildeo se asup1nagnwiquestrisij e peripemacrteia satildeo meios fundamentais atraveacutes dos

quais a trageacutedia alcanccedila a comoccedilatildeo do espiacuterito portanto satildeo tambeacutem fundamentais para

intensificaccedilatildeo do traacutegico jaacute que este corresponde ao elemento miacutetico na estrutura da trageacutedia

Ressaltamos que esses dois elementos para que o traacutegico seja desenvolvido devem estar

aliado a outros elementos pois sozinho natildeo realizam o traacutegico Ateacute porque como sabemos

asup1nagnwiquestrisij e peripemacrteia satildeo elementos comuns tambeacutem da comeacutedia Mas como partes

do mito reconhecimento e peripeacutecia aleacutem de fazerem a estrutura literaacuteria ser como define

Aristoacuteteles mais complexa tambeacutem corroboram para a intensificaccedilatildeo do efeito traacutegico Por

isso classificando os tipos de reconhecimento no capiacutetulo XVI da Poeacutetica o filoacutesofo

informa-nos que apesar de existirem vaacuterias realizaccedilotildees do reconhecimento a melhor delas eacute a

que deriva do conflito (1455a v 17-22) da accedilatildeo Como a de Ifigecircnia em Aacuteulis (2002) e a de

Eacutedipo Rei (2001) e natildeo as que se realizam por meios artificiais a exemplo de sinais da

memoacuteria e do silogismo

Isto porque quando sofre uma peripeacutecia o sujeito traacutegico vecirc-se num conflito

Basta lembrarmos de Eacutedipo Rei em que o rei procura o assassino de Laio quando ele mesmo

vem a ser a proacutepria causa de tantos malefiacutecios Do mesmo modo com o reconhecimento pois

quando o indiviacuteduo vecirc-se tomado pela indesejada circunstacircncia ou destino traacutegicos ele se

reconhece como sujeito traacutegico proacuteximo de sua cataacutetrofe Para tanto eacute soacute nos lembrarmos

por exemplo de Eacutedipo Aacutejax Ifigecircnia e Hipoacutelito quando se reconhecem como figuras

traacutegicas O primeiro ao perceber que era ele mesmo a causa do mal que procurava o

segundo ao entender que havia matado animais e natildeo os guerreiros gregos a terceira ao ver

que sua vida seraacute aniquilada pelo proacuteprio pai e o quarto enxergando-se como vitimado por

um crime que natildeo cometera Observemos

ἰνὺ ἰνύ ηὰ πάλη᾽ ἂλ ἐμήθνη ζαθῆ

ὦ θο ηειεπηαῖόλ ζε πξνζβιέςαηκη λῦλ

ὅζηηο πέθαζκαη θύο η᾽ ἀθ᾽ ὧλ νὐ ρξῆλ63

(Eacutedipo Rei 1182-1184)

Ioacuteu ioacuteu Atingiste-me e todas as coisas estatildeo claras

Oacute luz nesse instante eu poderia olhar-te o fim

eu fiz aparecer o filho de que natildeo havia necessidade

63

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101913Acard3D1196 agraves

1940hs de 17 de julho de 2010

74

ἰὼ

ζθόηνο ἐκὸλ θάνο

ἔξεβνο ὦ θαελλόηαηνλ ὡο ἐκνί

ἕιεζζ᾽ ἕιεζζέ κ᾽ νἰθήηνξα

ἕιεζζέ κ᾽ νὔηε γὰξ ζελ γέλνο νὔζ᾽ ἁκεξίσλ

ἔη᾽ ἄμηνο βιέπεηλ ηηλ᾽ εἰο ὄλαζηλ ἀλζξώπσλ

ἀιιά κ᾽ ἁ Δηὸο ἀιθίκα ζεὸο ὀιέζξη᾽ αἰθίδεη

64

(Aacutejax 394-403)

Ioacute Treva toda minha luz

Oacute Eacuterebo como eacutes brilhantiacutessimo para mim

Leva-me leva-me para tua morada

leva-me Pois nem mereccedilo olhar nem por um dia

para a raccedila dos deuses nem igualmente para a dos homens

Todavia a filha de Zeus

o poderoso deus

atormenta-me para destruiccedilatildeo

νἲ γώ κᾶηεξ ηαὐηὸλ ηόδε γὰξ

κέινο εἰο ἄκθσ πέπησθε ηύρεο

θνὐθέηη κνη θο

νὐδ᾽ ἀειίνπ ηόδε θέγγνο

ἰὼ ἰώ65

(Ifigecircnia em Aacuteulis 1279-1283)

Ai de mim matildee Pois este mesmo

canto do acaso caiu para ambas

Para mim natildeo (haveraacute) mais luz

e nem a claridade do sol

Ioacute ioacute

αἰαῖ αἰαῖ

δύζηελνο ἐγώ παηξὸο ὡο ἀδίθνπ

ρξεζκνῖο ἀδίθνηο δηειπκάλζελ

ἀπόισια ηάιαο νἴκνη κνη

()

αἰαῖ αἰαῖ

θαὶ λῦλ ὀδύλα κ᾽ ὀδύλα βαίλεη

κέζεηέ κε ηάιαλεο

θαί κνη ζάλαηνο Παηὰλ ἔιζνη

πξνζαπόιιπη᾽ ἀπόιιπηε66

(Hipoacutelito 1348-501370-74)

64

Tento disponiacutevel em

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de 17 de julho de 2010 65

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17 de julho de 2010 66

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httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101053Acard3D1370 agraves

2030hs de 17 de juho de 2010

75

Aiacuteaiacute aiacuteaiacute

Eu sou miseraacutevel por causa de um pai injusto

de profecias injustas desfeitas vergonhosamente

fui destruiacutedo estou desgraccedilado ai de mim

Aiacuteaiacute aiacuteaiacute

E agora vai causa-me dor causa-me dor

deixais-me ir desgraccedilado

e que o Curador da morte venha para mim

destroacutei-me destroacutei-me

As passagens citadas ilustram bem que a tragicidade da peccedila eacute aumentada quando

os personagens passam do estado da ignoracircncia para o conhecimento e consciecircncia dos fatos

Para entendermos mais claramente eacute soacute imaginarmos um homem que mata o pai e casa com a

matildee mas sem saber ou seja sem a asup1nagnwiquestrisij Isso nos causaria piedade eou temor

Acreditamos que natildeo e o proacuteprio Eacutedipo retifica-nos pois antes de saber que ele era o

responsaacutevel pelo mal que assolava Tebas ele natildeo se lamentava apenas buscava o culpado

enfim ele natildeo se reconhecia como um personagem traacutegico Do mesmo modo a falta de

reconhecimento com Aacutejax Ifigecircnia Hipoacutelito pode diminuir ou ateacute mesmo vir a extinguir

toda a tragicidade

Como percebemos peripemacrteia e asup1nagnwiquestrisij surgidas da estrutura interna

do mito satildeo importantes natildeo apenas para a trageacutedia e seus aspectos formais mas para o

desdobramento intensificado do traacutegico Aristoacuteteles diz-nos ainda que ocorrendo juntas a

peripeacutecia e o reconhecimento compotildeem uma estrutura complexa Podemos depreender pela

explanaccedilatildeo e exemplificaccedilatildeo que fizemos acima que juntas a peripeacutecia e o reconhecimento

reforccedilam a dramaticidade da peccedila Tal ideacuteia talvez nos permita afirmar que uma trageacutedia

aristotelicamente complexa possui mais teor traacutegico do que as de estrutura simples sem

reconhecimento e peripeacutecia

Para Aristoacuteteles a estrutura do mito traacutegico bem realizado deve ser uniforme e

como um todo deve ter iniacutecio meio e fim Por isso ele explica que um ser muito grande ou

muito pequeno natildeo se aproximaria do que eacute belo (1451a) Esse comentaacuterio ajuda-nos a

compreender entre outros fatores o porquecirc da unidade de accedilatildeo ser tatildeo relevante para a

teorizaccedilatildeo aristoteacutelica devendo estar presente tanto numa trageacutedia quanto numa epopeacuteia

Tanto que Aristoacuteteles aponta as epopeacuteias homeacutericas como exemplos dessa unidade de accedilatildeo jaacute

que apesar de extensas os episoacutedios convergem para accedilatildeo central compondo o todo Aleacutem

do mais tambeacutem podemos perceber o porquecirc de a extensatildeo da trageacutedia ser baseada no tempo

76

suficiente em que se possa transcorrer a mudanccedila da fortuna do personagem Vejamos o que

ele diz

ὡο δὲ ἁπιο δηνξίζαληαο εἰπεῖλ ἐλ ὅζση κεγέζεη θαηὰ ηὸ εἰθὸο ἢ ηὸ

ἀλαγθαῖνλ ἐθεμῆο γηγλνκέλσλ ζπκβαίλεη εἰο εὐηπρίαλ ἐθ δπζηπρίαο ἢ ἐμ

εὐηπρίαο εἰο δπζηπρίαλ κεηαβάιιεηλ ἱθαλὸο [15] ὅξνο ἐζηὶλ ηνῦ κεγέζνπο67

(Poeacutetica VII 1451a 11-15)

Em certa extensatildeo simplesmente devem realizar o narrar um apoacutes outro

segundo a verossimilhanccedila e a necessidade e que ocorra com o traspassar

para a fortuna a partir do infortuacutenio e da fortuna para o infortuacutenio este eacute o

limite conveniente de sua extensatildeo

A unidade de accedilatildeo segundo os preceitos aristoteacutelicos eacute fundamental para a

estruturaccedilatildeo de uma faacutebula Assim mesmo numa epopeacuteia os episoacutedios devem convergir para

a accedilatildeo central tornando-a una e coesa E essa limitaccedilatildeo temporal da trageacutedia que deve

desenvolver-se numa temporalidade suficiente para que possamos ter a mudanccedila de fortuna

tambeacutem nos colabora para outra compreensatildeo do traacutegico Pois este para ser melhor realizado

tambeacutem deve ter unidade pois faltaria totalidade a um mito que depois de ocorrer a accedilatildeo

traacutegica passasse a desenvolver outros temas dispersando e diluindo o traacutegico Isso nos faz

compreender o porquecirc das criacuteticas agrave peccedila de Soacutefocles Aacutejax Nesta peccedila apoacutes concretizada a

mudanccedila da fortuna do heroacutei com o seu suiciacutedio vemos o desenvolver da defesa de seu corpo

por Teucro seu meio-irmatildeo Muitos criacuteticos entendem que essa continuidade da peccedila

prejudicaria sua qualidade Natildeo entraremos nessa discussatildeo contudo podemos compreender

que a accedilatildeo traacutegica deve ser condensada deve ter unidade a fim de que natildeo se dilua por

completo nem se disperse Assim sendo conforme as indicaccedilotildees de Aristoacuteteles o tempo da

accedilatildeo traacutegica deve limitar-se agrave mudanccedila de fortuna

No capiacutetulo XIII Aristoacuteteles expotildee-nos mais diretamente a respeito do traacutegico

comentando o que viria a ser uma situaccedilatildeo traacutegica por excelecircncia para que possa inspirar o

temor e a piedade e depois a catarse desses sentimentos Para termos essa ―plausiacutevel

situaccedilatildeo traacutegica ela natildeo deve ter homens muito bons passando para o infortuacutenio - o que

causaria excesso de piedade - nem muito maus o que levaria a um distanciamento Mesmo

porque essas circuntacircncias natildeo fazem surgir o temor fomacrboj nem a piedade esup1lemacroj estes

sentimentos que devem vir da accedilatildeo dos personagens e que satildeo inspirados em determinadas

situaccedilotildees

67

Texto disponiacutevel em httpwwwhs-

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2010

77

ἔιενο κὲλ πεξὶ ηὸλ ἀλάμηνλ θόβνο δὲ πεξὶ ηὸλ ὅκνηνλ68

(Poeacutetica XIII 1453a 5-6)

() a piedade sobre o imerecido o temor sobre o semelhante

Diante disso resta ao heroacutei uma situaccedilatildeo intermediaacuteria (1453a) pois nem tatildeo

virtuoso nem tatildeo maldoso Sua tragicidade viraacute natildeo pelo caraacuteter mas por uma accedilatildeo errocircnea

Este erro a aumlmartian seria o responsaacutevel por fazer algueacutem passar da fortuna ao infortuacutenio

ou vice-versa Muitas discussotildees haacute sobre essa hamartia aristoteacutelica e qual seria seu

significado essencial mas por hora vejamos o que nos diz o filoacutesofo referindo-se ao heroacutei

que natildeo cai no erro por falha de caraacuteter mas por causa de

ἁμαρτίαν τινά ηλ ἐλ κεγάιῃ δόμῃ ὄλησλ θαὶ εὐηπρίᾳ νἷνλ Οἰδίπνπο θαὶ

Θπέζηεο θαὶ νἱ ἐθ ηλ ηνηνύησλ γελλ ἐπηθαλεῖο ἄλδξεο () ἐμ εὐηπρίαο εἰο

δπζηπρίαλ κὴ δηὰ κνρζεξίαλ ἀιιὰ δη᾽ ἁμαρτίαν μεγάλην ἢ νἵνπ εἴξεηαη ἢ

βειηίνλνο κᾶιινλ ἢ ρείξνλνο69 (Poeacutetica XIII 1453 a 10-1215-17)

() algum erro daqueles de grande gloacuteria e boa fortuna como o de Eacutedipo e

Tiestes tambeacutem por homens ilustres de famiacutelias tais () a partir da fortuna

para o infortuacutenio natildeo por maldade mas atraveacutes de um grande erro ou como

o que foi dito ou de um (erro) melhor ou ainda pior

A primeira referecircncia de hamartia presente no texto de Aristoacuteteles diz ἁμαρηίαν

ηινά Liddell e Sccottlsquos (1996) informam-nos que aumlmartia significa filure error ou seja

falha erro Este substantivo eacute originado pelo verbo aumlmartanw definido como to miss miss

the mark quer dizer falharerrar eou errar o alvo Seu qualificador tina sendo pronome

indefinido expressa a indefiniccedilatildeo por meio de ―um algum Podemos entatildeo chegar agrave

traduccedilatildeo para aumlmartian tina como ―errar um alvo Este sentido indefinido dificulta-nos

para sabermos a que erro Aristoacuteteles se refere contudo essa indefiniccedilatildeo daacute-nos um indiacutecio

importante esse erro pode ser de origens diversas

Em aumlmartian megalhn poderemos entender melhor o que seria o erro traacutegico

indicado por Aristoacuteteles O termo megalhn equivale a megaj que significa aquilo que eacute

largo grande importante Logo aumlmartian megalhn pode ser traduzido por ―grande erro

68

Ibidem 69

Os destaques satildeo nossos Texto disponiacutevel em httpwwwhs-

augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante04Aristotelesari_poi2html agraves 2035hs de 17 de julho de

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78

Percebemos entatildeo que este erro fundamental para o decorrer da accedilatildeo traacutegica eacute grandioso

grave muito importante para todo o contexto em que se estabelece

Baseada nas discussotildees acima sobre a hamartia aristoteacutelica podemos chegar agrave

conclusatildeo de que a hamartia natildeo estaacute relacionada como poder-se-ia pensar a um erro moral

originado em decorrecircncia de uma falha de caraacuteter Na verdade apesar de ser um grande eou

grave erro ele eacute sem intencionalidade Todavia esta falta de intenccedilatildeo natildeo o exime do traacutegico

Este natildeo deve ser confundido como um castigo e sim como uma mudanccedila de fortuna que

geralmente ocasiona para o agente um infeliz resultado

Esse grandioso erro tambeacutem eacute indefinido por isso o aumlmartian tina que nos

sugere uma falha natildeo especiacutefica impedindo-nos de definir o que seria um erro traacutegico ou natildeo

mas que eacute um aumlmartian megalhn um grande erro Todavia ressaltamos que haacute falhas

traacutegicas por excelecircncia como por exemplo as cometidas contra os deuses aleacutem das

realizadas como diz-nos o proacuteprio Aristoacuteteles (19791995) no capiacutetulo XIV contra pessoas

da famiacutelia

Ὅταν δ᾽ ἐν ταῖς φιλίαις ἐγγένηται τὰ πάθη οἷον ἢ ἀδελφὸς

ἀδελφὸν ἢ υἱὸς πατέρα ἢ μήτηρ υἱὸν ἢ υἱὸς μητέρα ἀποκτείνηι ἢ

μέλληι ἤ τι ἄλλο τοιοῦτον δρᾶι ταῦτα ζητητέον70 (Ibidem XIV

1453b 20-23)

Quando estas cataacutestrofes realizam-se em amizades ou com um irmatildeo que

mata irmatildeo ou um filho que mata o pai ou a matildee que mata o filho ou o

filho que mata a matildee ou quando venha ocorrer alguma outra coisa desta

natureza estas coisas tecircm que ser buscadas

O fato de existirem essas situaccedilotildees traacutegicas por natureza faz com que entendamos

o impacto traacutegico das trageacutedias Medeacuteia Oresteacuteia e Eacutedipo Rei ateacute hoje pelos assassinatos

entre familiares Por isso temos a existecircncia de famiacutelias em que se delineiam o traacutegico

mesmo com o passar das geraccedilotildees a exemplo da dos Labdaacutecidas e dos Atridas E eacute esse

aspecto do conflito familiar somado aos finais infortunados que segundo Aristoacuteteles acaba

por fazer Euriacutepedes ser o mais tragikomacrj dos poetas

Atraveacutes das consideraccedilotildees acima realizadas tentamos compreender definiccedilotildees e

aspectos relativos ao traacutegico a partir da Poeacutetica Esta obra legou-nos as primeiras reflexotildees

teoacutericas sobre a literatura mais especificamente sobre a trageacutedia e a epopeacuteia Tentamos

70

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2010

79

depreender atraveacutes dela a estrutura e significaccedilatildeo do traacutegico para as trageacutedias gregas como

tambeacutem para as epopeacuteias homeacutericas jaacute que nelas podemos encontrar consideraacutevel

manifestaccedilatildeo de tragicidade presente por exemplo no Canto XI da Odisseacuteia

24 A busca do traacutegico outras reflexotildees teoacutericas

Na tentativa de compreender melhor a categoria do traacutegico claacutessico

continuaremos em busca de seu entendimento mas desta vez percorrendo os conceitos e as

discussotildees realizadas por outros autores Este processo assim como os demais que

desenvolvemos ateacute entatildeo tem o propoacutesico de subsidiar-nos para a compreensatildeo do nosso

objetivo geral que eacute o de analisar a tragicidade no Canto XI da Odisseacuteia Em auxiacutelio agrave nossa

proposta contribuem os seguintes autores Jean-Pierre Vernant Grimal Jacqueline de

Romilly Anatol Rosenfeld Junito Brandatildeo Albin Lesky e Sandra Luna

Em Mito e trageacutedia na Greacutecia Antiga (2008) Jean-Pierre Vernant discorre que na

trageacutedia o homem (heroacutei) eacute posto para realizar uma escolha definitiva diante de um mundo

ambiacuteguo e instaacutevel Para o autor isso seria a ―mateacuteria-prima da trageacutedia o primeiro aspecto

do conflito Diante disso a trageacutedia possui tambeacutem algumas marcas que seriam tensatildeo entre

mito e pensamento citadino conflitos humanos de valores do mundo e do universo divino

caracteriacutestica ambiacutegua e equiacutevoco linguumliacutestico Estas marcas da trageacutedia satildeo fundamentais

tambeacutem para a realizaccedilatildeo do traacutegico principalmente no que diz respeito agrave tensatildeo e ao conflito

do homem para com os demais O homem como ―mateacuteria-prima do traacutegico vecirc-se desafiado

por decisotildees e suscetiacutevel perante sua fragilidade pois ―neste jogo do qual natildeo eacute senhor o

homem sempre corre o risco de cair na armadilha de suas proacuteprias decisotildees (VERNANT

2008 p 21)

Estas decisotildees afligem muitas vezes a jornada do homem que acaba por se tornar

uma sujeito traacutegico E assim aquele homem na eacutepica que exalta seu vigor e alcanccedila a gloacuteria

depara-se com sua fragilidade e finitude diante da vida e de suas circunstacircncias Por isso

Vernant (2008) considera que no traacutegico a accedilatildeo e o agir humano dividem-se em dois poacutelos o

primeiro eacute o de deliberar pesar eou prevecirc a melhor opccedilatildeo de escolha e o segundo eacute

considerar a presenccedila do incompreensiacutevel do desconhecido e de forccedilas sobrenaturais que

possam vir preparar seu sucesso ou sua derrota Assim o traacutegico estaacute indissoluvelmente

aliado a uma accedilatildeo que pressupotildee uma escolha

80

O autor afirma que a culpa traacutegica pode ser realizada de duas formas uma eacute

atraveacutes da hamartia que ele define como uma concepccedilatildeo religiosa do erro uma ―doenccedila do

espiacuterito em que o sujeito coagido por elementos superiores chega a cometer o delito a

outra eacute por meio do adikon71

em que o sujeito sem nenhuma coaccedilatildeo decide cometer o erro

Assim entendemos que o indiviacuteduo poder torna-se traacutegico ou por um erro sem

voluntariedade hamartia sob forccedilas superiores ou por deliberaccedilatildeo proacutepria por isso eacute

chamado de adikon injusto

Um aspecto bastante discutido sobre o traacutegico refere-se agrave existecircncia ou natildeo da

vontade e da responsabilidade humana Natildeo pretendemos aprofundar-nos nessa questatildeo

contudo ela nos serve para entender as circuntacircncias que levam ao traacutegico Assim Vernant

(2008) afirma que no Periacuteodo Arcaico da literatura grega natildeo haacute vocaacutebulo para designar a

vontade o querer direcionado ao homem mas sabemos que ela havia em relaccedilatildeo aos deuses

como se vecirc por exemplo na Iliacuteada (v5) No Periacuteodo Claacutessico mesmo ainda sem a existecircncia

dessa palavra para os homens jaacute comeccedilamos a ter o levantamento desses questionamentos

Mesmo porque o autor defende que para haver uma decisatildeo tem que existir alguma vontade

Desde que o indiviacuteduo se empenha numa decisatildeo que se decide

qualquer que seja o plano em que se situe sua resoluccedilatildeo ele se constitui a si

proacuteprio como agente isto eacute como sujeito responsaacutevel e autocircnomo que se

manifesta em atos e por atos que lhe satildeo imputaacuteveis (Ibidem 2008 p 26)

A necessidade (asup1namacrgkh) imposta pelos deuses eou pela ocasiatildeo impulsiona o

homem a tomar decisotildees Estas possuem de alguma maneira expressotildees de seus desejos

apesar de que muitas vezes soacute haacute uma escolha Por isso diz Vernant que se haacute uma vontade

ela natildeo eacute autocircnoma e sim ―amarrada pelo temor que o divino inspira se natildeo constragida por

potecircncias sagradas que assediam o homem no seu proacuteprio iacutentimo (VERNANT 2008 p 28)

Entatildeo concluimos que a partir da necessidade emana a accedilatildeo do homem pois segundo

Vernant ainda natildeo podemos falar em vontade na trageacutedia grega Na verdade ela ―marca uma

etapa e como que uma virada na histoacuteria dos avanccedilos do homem grego antigo na direccedilatildeo da

vontade (Ibidem p 42)

A partir de sua exposiccedilatildeo Vernant (2008) define o traacutegico como a interrogaccedilatildeo do

homem sobre seus atos chegando ao ponto de fazer daquele heroacutei eacutepico exemplar o

responsaacutevel por sua accedilatildeo errocircnea Tal accedilatildeo volta-se contra ele mesmo ocasionando o

71

Esta palavra em grego aatildedikoj eacute formada pelo a privativo mais o radical dik de dikhmacr justiccedila Logo

aatildedikoj significa injusto

81

contraacuterio do que ele pretendia Percebemos por isso que o traacutegico faz-nos interrogar sobre a

condiccedilatildeo humana e suas fronteiras estas que satildeo colocadas a cada um sejam aos grandes

heroacuteis como Aquiles ou aos deuses como vemos em Prometeu Cadeeiro (2009) Por

exemplo o Pelida no encontro com Odisseu no Hades mostra-se arrependido da escolha que

fez de morrer em campo de batalha Como se vecirc a decisatildeo de Aquiles voltou-se contra ele

mesmo Entretanto tal situaccedilatildeo analisaremos melhor no capiacutetulo a seguir

Pierre Grimal em O Teatro Antigo (2002) diz que a trageacutedia grega desenvolve-se

num periacuteodo histoacuterico de bastante relevacircncia jaacute que nesse momento foi realizada uma

elevada criaccedilatildeo filosofia Diante desse contexto as trageacutedias em forma de accedilatildeo de drama

representavam acontecimentos oriundos das lendas heroacuteicas tatildeo cantadas pelos autores

eacutepicos todavia Grimal faz-nos a seguinte ressalva se para noacutes os acontecimentos encenados

possuem caraacuteter lendaacuterio para os gregos havia um significado histoacuterico E mais ainda na

trageacutedia aquele heroacutei que para os gregos fazia parte da histoacuteria vecirc sua fragilidade diante de

um impasse porque

A trageacutedia mais do que esclarescer o significado metafiacutesico do mito

(como o faraacute Heacutercules no Etna de Secircneca) traz agrave luz do dia a infeliz

condiccedilatildeo dos mortais incapazes de compreenderem as consequumlecircncias de

suas accedilotildees quando cedem natildeo soacute ao irresistiacutevel poder do Amor como agraves

outras paixotildees que os deuses lhes enviam (GRIMAL 2002 p 45)

Se no Periacuteodo Arcaico as eacutepicas ilustram as grandes guerras e os magistrais

combates dos heroacuteis no Periacuteodo Claacutessico tanto poetas quanto filoacutesofos conforme indica

Grimal (2002) centralizam suas discussotildees no ser humano Este seraacute o protagonista do

traacutegico pois deparando-se com o conflito as armas e o vigor fiacutesico natildeo mais podem fazecirc-lo

vencedor como ocorria nas eacutepicas Ao contraacuterio toda a sua accedilatildeo reverte-se para si mesmo e

levando-o ao traacutegico Isso veremos bem no proacuteximo capiacutetulo atraveacutes do relato de

Agamecircmnon no Canto XI da Odisseia em que se percebe que toda a sua nobreza e heroiacutesmo

relatados na Iliacuteada natildeo o impediu de ter uma morte traacutegica e indigna

Em A trageacutedia Grega (2008) Jacqueline de Romilly considera que o mito se

introduz na trageacutedia proporcionando-lhe sentido Assim podemos concluir que o traacutegico alia-

se ao mito e natildeo agrave estrutura formal da trageacutedia e ainda mais que o traacutegico eacute que daacute sentido a

trageacutedia grega Vejamos como ela considera a importacircncia do traacutegico dentro do panorama da

trageacutedia claacutessica

82

No conjunto a trageacutedia grega adquire assim mais uma ressonacircncia

particular por ter conservado um contato constante com as realidades

colectivas da vida poliacutetica tal como adquire uma forccedila mais rude por ter

conservado o contacto com os mitos originais mas nem num caso nem no

outro se confunde com a mateacuteria que lhe eacute fornecida assim O seu

verdadeiro alcance vem da interpretaccedilatildeo humana que daacute dos males evocados

E soacute esta interpretaccedilatildeo define verdadeiramente o traacutegico (ROMILLY 2008

p 168)

Por isso eacute que o traacutegico aleacutem de natildeo se relacionar tambeacutem natildeo deve ser

confundido com o melodrama moderno Mas para que essa proximidade natildeo ocorra e que

crimes como os de Medeacuteia Clitemnestra e Eacutedipo por exemplo natildeo sejam melodramas deve

haver o que Romilly (2008) chama de ―luz traacutegica Esta fundamentada na asup1namacrgkh

(necessidade) ou seja nas ―causas que ultrapassem o caso individual e que os tornem

necessaacuterios em nome das circuntacircncias que se impotildee aos homens Tanto que essas situaccedilotildees

traacutegicas poreacutem necessaacuterias ―ao mesmo tempo em que inspiram piedade pelas viacutetimas

inspiram tambeacutem piedade por eles piedade pelo homem (Ibidem p 168-169) E a accedilatildeo

dessas forccedilas sobrehumanas que impulsionam o homem pela necessidade satildeo indicadas pelo

proacuteprio coro segundo Romilly (2008)

Este sentimento de piedade Odisseu sentiraacute ao deparar-se com seus distintos

companheiros no Hades e ouvir o lamuacuterio pelo final traacutegico que a vida lhes reservou Isto

ocorre ateacute no caso de Aacutejax que mesmo sem falar ignorando a presenccedila de Odisseu

demonstra seu rancor por aquele que julga culpado de seu mal No caso de Agamecircmnon

segundo Romilly (2008) eacute a accedilatildeo do daacuteimon daimacrmwn 72 enquanto para Aacutejax eacute a accedilatildeo do

destino Teriacuteamos em suma duas causalidades uma que eacute regida pela forccedila superior e outra

pela vontade humana e que segundo a autora ―jaacute presente em Homero esta dupla

causalidade existe para sempre na trageacutedia (Ibidem p 172) ateacute porque no mundo grego em

geral elas coexistiam sem haver contradiccedilotildees

A autora por mais que natildeo acredite haver vontade nas trageacutedias considera que haacute

algum comprometimento humano Pois certo eacute que tudo ocorre pela vontade divina mas

tambeacutem o homem toma para si a responsabilidade no momento em que adere a accedilatildeo Natildeo haacute

renuacutencia entatildeo o sujeito traacutegico compromete-se Isto faz Romilly (2008) afirmar que ―o

divino e o humano combinam-se sobrepotildee-se A trageacutedia implica necessariamente a accedilatildeo e

seu autor sempre tenta agir bem ou mal Mas esta accedilatildeo traz-lhe graves consequecircncias Por

72

O daimacrmwn representa o divino sua vontade a sorte dividida pelo deus por isso o radical dai de daimacromai que eacute dividir partilhar

83

isso Romilly defende que haacute sempre uma espeacutecia de inocecircncia esta funcionando como

sinocircnimo de heroiacutesmo Vejamos

Que sofram uma sorte querida pelos deuses que paguem pelos erros

dos antepassados ou que paguem por sua proacutepria imprudecircncia haacute sempre

neles uma parte de inocecircncia E mesmo quando nos satildeo apresentados como

culpados mesmo quando suas accedilotildees os arrastam satildeo-no porque o erro eacute o

lote do homem ou porque correspondem a situaccedilotildees que satildeo igualmente o

lote do homem (ROMILLY 2008 p 175)

Esse heroiacutesmo imanente e ao mesmo tempo indissociaacutevel do heroacutei traacutegico faz

com que seja conservada a sua grandeza tendo triunfo mesmo na queda Isto eacute o personagem

traacutegico mesmo vendo mudar a sua figura de heroacutei eacutepico para a de heroacutei traacutegico ainda

manteacutem certa expressatildeo de inocecircncia de heroiacutesmo que provoca a simpatia e justifica o surgir

da piedade Como poderemos ver no momento de nossa anaacutelise Odisseu sente piedade pelos

seus companheiros ao reencontraacute-los no Hades por constatar o destino lamuriado de cada um

E mesmo apoacutes ouvir os relatos traacutegicos dos guerreiros manteacutem ainda o sentimento de

respeito natildeo se esquecendo da distinccedilatildeo proacutepria que ele mesmo testemenhou um dia

Anatol Rosenfeld em A teoria dos Gecircneros (1985) observa que a definiccedilatildeo e

classificaccedilatildeo dos gecircneros eacute artificial pois ―natildeo existe pureza de gecircneros em sentido absoluto

(ROSENFELD 1985 p 16) Contudo o autor avalia como importante esta sistematizaccedilatildeo

dos gecircneros por definir as diversas categorias literaacuterias E esta artificialidade eacute comprovada

com o fato de natildeo haver gecircnero puro O que haacute para o autor eacute o significado substantivo e

adjetivo dos gecircneros Naquele encontramos a essecircncia estiliacutestica de cada gecircnero eacute o que nos

possibilita definir o gecircnero de um texto pois eacute especiacutefico Por significado adjetivo

entendemos o traccedilo estiliacutestico aquilo que pode ser encontrado em todos os outros gecircneros

Por exemplo o corpus de nossa pesquisa Canto XI da Odisseacuteia tem como significado

substantivo o gecircnero eacutepico e como adjetivo o traccedilo do traacutegico Tal exemplificaccedilatildeo pode ser

feita com muitas outras obras porque ―no fundo poreacutem toda obra literaacuteria de certo gecircnero

conteraacute aleacutem dos traccedilos estiliacutesticos mais adequados ao gecircnero em questatildeo tambeacutem traccedilos

estiliacutesticos mais tiacutepicos dos outros gecircneros (Ibidem p 19)

Todas essas ponderaccedilotildees de Rosenfeld (1985) a respeito da teoria dos gecircneros e

de seus significados adjetivo e substantivo contribuem para o nosso trabalho em alguns

pontos Elas creditam nossa pesquisa em analisar a presenccedila do traacutegico numa epopeacuteia

homeacuterica Tais consideraccedilotildees aleacutem de reforccedilar que natildeo haacute gecircnero puro (e que talvez nunca

tenha existido) permite-nos demonstrar que essa pureza nem mesmo na Antiguidade Claacutessica

84

existiu apesar de muitos verem esse periacuteodo como sinocircnimo de uma produccedilatildeo literaacuteria

regrada de estrutura fechada A anaacutelise do nosso trabalho abre perspectivas para entendermos

que as inovaccedilotildees estiliacutesticas as influecircncias e a interpenetraccedilatildeo de gecircneros satildeo procedimentos

realizados desde a Antiguidade e natildeo como uma singularidade moderna No final das

avaliaccedilotildees como diz o proacuteprio Rosenfeld (1985) ser puro ou natildeo natildeo define a qualidade de

um trabalho

Apoacutes discorrer sobre o nascimento da trageacutedia Junito Brandatildeo em Teatro Grego

(2009) fala-nos a respeito de outro elemento importante para a compreensatildeo do traacutegico

uAgravebrij73 e aatildeth74

A primeira ocorre quando o heroacutei ultrapassa o meacutetron a medida

cometendo entatildeo a uAgravebrij A segunda eacute o resultado da hyacutebris pois diante desta soacute resta ao

heroacutei ser punido pelos deuses que lhe lanccedilam a ateacute Tomado pela uAgravebrij e aatildeth todo e

qualquer ato que o heroacutei realizar se voltaraacute contra ele Para o autor o traacutegico se enquadra com

os seguintes envolvimentos apoacutes a ultrapassagem do meacutetron hyacutebrisrarr neacutemesis (nemacrmesij-

ciuacuteme divino)rarr ateacuterarr Moira (Moiordfra- destino cego puniccedilatildeo divina) Por esse processo ele

afirma que no sentido religioso a trageacutedia grega suplica contra a desmedida

No Canto XI da Odisseacuteia avaliaremos a presenccedila desses elementos da trageacutedia

(uAgravebrij aatildeth nemacrmesij Moiordfra) Observaremos atraveacutes do destino dos heroacuteis mais

precisamente de Agamecircmnon e de Aacutejax a influecircncia destas forccedilas sobre-humanas

Junito Brandatildeo faz uma distinccedilatildeo importante entre conflito traacutegico fechado e uma

situaccedilatildeo traacutegica A primeira implica um final desditoso eacute a accedilatildeo do destino traacutegico como

vemos em Eacutedipo Rei e em Antiacutegona Jaacute no segundo o final natildeo eacute desditoso Parte-se do

infortuacutenio para a fortuna pois o que eacute traacutegica eacute a situaccedilatildeo vivida natildeo o seu fim como o

exemplo lido em Alceste Porque ―() o traacutegico pode natildeo estar no fecho mas no corpo da

trageacutedia Chamamos por isso mesmo trageacutedia a peccedila cujo conteuacutedo eacute traacutegico e natildeo

necessariaamente o fecho (Ibidem p 15) Esta diferenccedila eacute importante para a nossa anaacutelise

porque observaremos uma situaccedilatildeo traacutegica jaacute que na Odisseacuteia natildeo haacute espaccedilo para se falar

em destino traacutegico No Canto XI podemos observar tanto uma ―situaccedilatildeo traacutegica como por

exemplo a vivida por Odisseu como tambeacutem um ―conflito traacutegico fechado o que pode ser

73

Em grego uAgravebrij indica a accedilatildeo de insolecircncia violecircncia soberba excesso ou seja uma accedilatildeo fruto de uma

desmedida 74

Em grego aatildeth significa um infortuacutenio segundo o Bailly (2000) eacute um flagelo enviado pelos deuses como a

puniccedilatildeo por algum fato conhecida tambeacutem como uma cegueira enviada pelos deuses

85

visto por exemplo atraveacutes do relato de Agamecircmnon e da visualizaccedilatildeo de Aacutejax e seu eterno

sentimento de desonra

Albin Lesky em A trageacutedia Grega (2006) alerta-nos logo ao iniacutecio de que natildeo

tentaraacute encontrar uma foacutermula para o traacutegico Entre outras coisas sua obra ajuda-nos a tentar

compreender se o traacutegico estaacute unicamente relacionado agrave trageacutedia ou se como acreditamos a

outros meios literaacuterios Tendo em vista que ―() jaacute se encontram os germes em que se prepara

a primeira e ao mesmo tempo a mais perfeita objetivaccedilatildeo da visatildeo do mundo no drama do

seacuteculo V (LESKY 2006 p 23) Inclusive a partir dos novos estudos feitos da Iliacuteada e da

Odisseacuteia o autor informa-nos que ―suscita-se com crescente vivacidade a questatildeo relativa aos

germes do traacutegico nas duas epopeacuteias (Ibidem) Eacute por isso que Karl Jaspers citado por Lesky

(2006) refere-se a Homero como a mais antiga manifestaccedilatildeo do traacutegico Tal posicionamento

respalda nossa pesquisa

Na comprovaccedilatildeo dessa existecircncia do traacutegico jaacute nas epopeacuteias homeacutericas Lesky

(2006) aponta-nos alguns fatores para esse entendimento Assim em Homero jaacute vemos que

os heroacuteis apesar de na maioria das vezes serem exaltados podem ter um destino venturoso

ou desventuroso a depender dos desiacutegnios divinos Como exemplo ele cita o Canto I da

Iliacuteada mas noacutes exemplificaremos pelo Canto XI da Odisseacuteia pois neste vemos a desventura

narrada por exemplo por Aquiles dizendo preferir ser um trabalhador do campo a reinar

sobre os mortos Eacute narrada tambeacutem a desventura de Agamecircmnon que pelo histoacuterico da

famiacutelia Atrida e por ter sacrificado sua filha seraacute penalizado pelo proacuteprio cocircnjuge Como

destino venturoso podemos citar o do proacuteprio Odisseu que cumpre uma das suas mais

difiacuteceis missotildees que eacute descer ateacute a entrada do Hades e depois voltar tendo o direito de poder

continuar em sua jornada

Aleacutem dessa mobilidade humana entre a ventura e a desventura Lesky (2006) cita

tambeacutem que vemos em Homero o encadeamento das accedilotildees e de tudo o que as envolvem Haacute

tambeacutem a centralidade do tempo e da accedilatildeo ocorrendo em alguns momentos a

presentificaccedilatildeo de algumas narraccedilotildees como se elas ocorressem naquele instante mesmo com

narraccedilotildees em flah-back Para noacutes vale destacar que estes elementos tambeacutem podem ser

verificados na Odisseacuteia em que as accedilotildees assim como na Iliacuteada satildeo encadeadas havendo

para cada uma delas um resultado que leva o personagem ao seu objetivo No Canto XI por

exemplo o cumprimento do ritual (nemacrkuia) por Odisseu o leva para casa Vecirc-se tambeacutem

neste canto uma narraccedilatildeo bastante centralizada no tempo em que os fatos ocorrem e de tudo

86

que estaacute em volta De modo que ateacute as narraccedilotildees feitas por Odisseu aos Feaacutecios de tudo que

passara aparentam estar ocorrendo naquele mesmo instante

Assim segundo o autor como natildeo eacute faacutecil descrever o processo de evoluccedilatildeo do

traacutegico tambeacutem natildeo eacute de entendecirc-lo no contexto claacutessico por natildeo ter sido legada uma teoria

pelos gregos Mesmo diante da complexidade expressa ele faz alguns comentaacuterios sobre o

traacutegico conforme Aristoacuteteles Para este o traacutegico possui o sentido de algo solene desmedido

mas depois passou a indicar o terriacutevel estarrecedor o bombaacutestico perdendo completamente o

sentido da induccedilatildeo e da necessidade Lesky (2006) considera ainda que para haver o

sentimento traacutegico ―o caso deve interessar-nos afetar-nos comover-nos Quando nos

sentimos atingidos nas profundas camadas de nosso ser eacute que experimentamos o traacutegico

(Ibidem p 33) Aleacutem disso o imerecimento tambeacutem eacute fundamental para que alcancemos a

sensaccedilatildeo traacutegica pois o imerecido faz-nos sentir compaixatildeo Jaacute o sujeito para se identificar

como traacutegico deve ter consciecircncia conhecimento do seu padecer No Canto XI da Odisseacuteia

poderemos verificar alguns desses elementos como a desmedida o despertar da comoccedilatildeo a

compaixatildeo o imerecido e toda uma vivecircncia do traacutegico mesmo que incipiente

Questionando se o traacutegico natildeo teria seu significado estabelecido na Poeacutetica Lesky

diz acreditar que na catarse estaria a essecircncia do traacutegico Por tudo o que foi referido

consideramos que Homero deu os passos iniciais das trageacutedias que estavam por vir e com

isso tambeacutem entendemos o porquecirc de ele jaacute ter sido considerado o pai da trageacutedia Natildeo

entraremos nessa discussatildeo mas concordamos com Lesky de que Homero eacute ―um preluacutedio agrave

objetivaccedilatildeo do traacutegico na obra de arte (LESKY 2006 p 25)

Sandra Luna em Arqueologia da Accedilatildeo Traacutegica (2005) realiza importantes

explicaccedilotildees sobre o traacutegico que seratildeo relevantes para a nossa pesquisa Depois de expor os

indiacutecios antropoloacutegicos e literaacuterios sobre a existecircncia do traacutegico antes da trageacutedia a autora

afirma que Homero pelas epopeacuteias jaacute nos apresentava o traacutegico apesar de este natildeo ser seu

objetivo Explica ainda que essa veiculaccedilatildeo do traacutegico com Homero deve ser feita por haver

algumas discussotildees a esse respeito Aleacutem do mais diz ser inegaacutevel a presenccedila dos momentos

de tragicidade verificadas ao longo de suas epopeacuteias Para tanto ela cita o Canto IX da

Odisseacuteia e ressalta que a morte dos companheiros de Odisseu alerta-nos sobre o destino e

sobre a fragilidade humana Pois ―() a vida gloriosa do heroacutei eacutepico projeta-se

necessariamente sobre o fundo sombrio das desventuras () (LUNA 2005 p 30)

Ao longo de nossa anaacutelise verificaremos essa tragicidade homeacuterica reforccedilada

pelos desiacutegnios divinos pela accedilatildeo do destino e da fragilidade humana pois o heroacutei um dia iraacute

deparar-se com sua condiccedilatildeo humana portanto com a fraqueza e a instabilidade Destino esse

87

que tanto conduz Odisseu agrave ventura em seu retorno ao lar como tambeacutem fez sua matildee

Anticleacuteia padecer de saudades do filho de quem ela natildeo mais tinha notiacutecias Esse destino

infortunado tambeacutem natildeo permitiu que Agamecircmnon morresse na guerra Desta forma tendo jaacute

retornado pensa estar protegido em seu palaacutecio mas eacute surpreendido pela morte traiccediloeira Por

isso Luna afirma-nos

Vale a pena refletir mais pausadamente sobre a recorrecircncia dos

elementos traacutegicos nas epopeacuteias gregas atentando para os episoacutedios que

reiteradamente fazem ecoar a condiccedilatildeo de instabilidade da vida humana Satildeo

inuacutemeras as incidecircncias aleacutem daquelas implicadas nas duas centenas de

mortes referenciadas na Iliacuteada (Ibidem p 31)

Sandra Luna natildeo considera Homero como pai da trageacutedia com isso podemos

tambeacutem concordar todavia consideramos que ele foi o responsaacutevel pela fundamentaccedilatildeo

literaacuteria do traacutegico A autora afirma tambeacutem que Homero natildeo alimenta o traacutegico dispersando-

o por meio de banquetes e mudanccedilas de cena ele apenas o deixa entrever Tal constataccedilatildeo eacute

verdadeira assim como eacute verossiacutemil que Homero natildeo o alimente senatildeo teria feito uma eacutepica

sem coerecircncia o que natildeo ocorre pois a presenccedila do traacutegico natildeo desnorteia o teor eacutepico ao

contraacuterio sua presenccedila o enriquece Mas tambeacutem natildeo podemos negar que as mortes narradas

por Homero satildeo carregadas de envolvimentos externos que aumentam a tragicidade ele natildeo

nos poupa dos detalhes traacutegicos Basta-nos lembrar das narraccedilotildees que Odisseu ouve de como

ocorreram as mortes de sua matildee de Aquiles e de Agamecircmnon e ao final de cada relato

todos se derramavam em laacutegrimas

Luna (2005) informa-nos ainda que o conflito entre mito e razatildeo seraacute

―determinante para o surgimento do que estamos chamando de espiacuterito traacutegicolsquo na trageacutedia

manifestando-se esse espiacuterito na consciecircncia da morte natildeo como parte da vida mas como fim

da vida portanto como fenocircmeno aterrorizante e lutuoso (LUNA 2005 p 169) No

proacuteximo capiacutetulo analisaremos a presenccedila desse ―espiacuterito traacutegico no Canto XI da Odisseacuteia

em que o heroacutei protagonista deparando-se com a morte de amigos e familiares vive a

assustadora finitude da vida aleacutem de sua circunstacircncia imerecida Outro fator reitera a nossa

fundamentaccedilatildeo em estudar o traacutegico na Odisseacuteia pois a autora indica-nos a existecircncia de

estudos sobre o conflito entre muordfqoj e lomacrgoj (mito e razatildeo) na Odisseacuteia

Ao falar sobre sua tese de racionalizaccedilatildeo do traacutegico Luna aponta-nos a presenccedila

de alguma responsabilidade humana nem que seja por suas fraquezas que ―() contribuem

para acionar a maacutequina traacutegica (Ibidem p 171) Pois natildeo soacute os deuses os encaminham para

o traacutegico como eles mesmos podem dirigir-se a ele Talvez seja por essa possibilidade de

88

escolha que Agamecircmon no Hades alerta Odisseu para natildeo confiar em sua esposa Peneacutelope

pois isso poderia levaacute-lo a uma indigna morte assim como havia ocorrido com ele proacuteprio

E apoacutes considerar que a catarse eacute o objetivo maior da trageacutedia a autora diz-nos

que o caminho do heroacutei eacutepico deve servir de modelo Ele eacute um exemplo de honra e vigor a ser

seguido Ao contraacuterio do heroacutei traacutegico que muitas vezes sendo ateacute o mesmo que jaacute figurou

distinto nas eacutepicas deve ter sua trajetoacuteria como modelo do que natildeo deve ser seguido e sim

do que devemos evitar Tal afirmaccedilatildeo eacute bastante vaacutelida para nossa anaacutelise do Canto XI pois

neste temos claramente perfis apresentados de heroacuteis eacutepicos e traacutegicos Deste modo

Odisseu passando pela catarse vive um processo forte de aprendizagem do que natildeo deve

seguir atraveacutes do traacutegico relato de Aquiles e Agamecircmnon e do fim de Aacutejax que pode

contemplar Assim enquanto Odisseu nos representa o que devemos seguir como modelo os

relatos do Pelida e do Atrida somada agrave lamentaacutevel condiccedilatildeo de Aacutejax ilustra-nos a condiccedilatildeo

de um heroacutei traacutegico cujo exemplo devemos evitar

Ao longo desse capiacutetulo desenvolvemos trecircs toacutepicos que consideramos

importantes para uma melhor apreensatildeo do traacutegico No primeiro discorremos sobre as

relaccedilotildees e especificidades do traacutegico e da trageacutedia As diferenccedilas estabelecidas permitem-nos

compreender a pertinecircncia em estudar uma configuraccedilatildeo do traacutegico em uma epopeacuteia No

segundo toacutepico destacamos as teorizaccedilotildees de Aristoacuteteles sobre as trageacutedias gregas e a partir

delas tentamos entender o que o filoacutesofo comprende do traacutegico e dos elementos que

circundam em sua realizaccedilatildeo No terceiro foram expostas algumas explanaccedilotildees teoacutericas do

traacutegico feitas por autores diversos De modo geral toda a abordagem realizada contribuiu

para a compreensatildeo de alguns pontos que seratildeo importantes para o nosso proacuteximo capiacutetulo no

qual nos aprofundaremos na anaacutelise da tragicidade verificada no Canto XI da Odisseacuteia

89

3 TRAGICIDADE NO CANTO XI DA ODISSEacuteIA ANTICLEacuteIA AQUILES

AGAMEcircMNON AacuteJAX

31 Odisseacuteia momentos de tragicidade

Neste terceiro capiacutetulo propomos realizar a anaacutelise da tragicidade identificada ao

longo do deacutecimo primeiro livro da Odisseacuteia Para tanto dedicamos este primeiro subtoacutepico agrave

ilustraccedilatildeo de que a tragicidade a ser analisada no Canto XI natildeo eacute uma exceccedilatildeo dentro da obra

tanto que em outros cantos podem ser vistas tambeacutem situaccedilotildees com teor traacutegico E apoacutes o

desenvolvimento dos aspectos citados dedicaremos um segundo toacutepico ―Tragicidade no

Canto XI da Odisseacuteia Anticleacuteia Aquiles Agamecircmnon Aacutejax para a anaacutelise especiacutefica do

traacutegico no Canto XI principalmente a partir das circunstacircncias em que Odisseu encontra-se

com a sua matildee Anticleacuteia e seus antigos companheiros em Troacuteia Agamecircmnon Aquiles e

Aacutejax Como pode ser percebido adiantamos que o fator de parentesco e os viacutenculos de

amizade satildeo intensificadores da accedilatildeo traacutegica ocasiatildeo que seraacute analisada no proacuteximo toacutepico

Como abordamos nos dois capiacutetulos anteriores Homero aleacutem de ter nos deixado

as duas grandes epopeacuteias do Ocidente Iliacuteada e Odisseacuteia legou-nos tambeacutem as primeiras

representaccedilotildees literaacuterias do traacutegico Representaccedilotildees estas que por volta do seacuteculo V e IV aC

seratildeo o cerne das trageacutedias elaboradas por tragedioacutegrafos como Eacutesquilo Soacutefocles e Euriacutepedes

Estes satildeo bastante influenciados pelas obras homeacutericas ao ponto de desenvolverem em suas

obras situaccedilotildees jaacute prenunciadas em Homero a exemplo da Oresteacuteia de Eacutesquio e Aacutejax de

Soacutefocles

Considerado por alguns como o ―pai da trageacutedia Homero natildeo nos poupou

representaccedilotildees traacutegicas Por isso apesar de elegermos o Canto XI da Odisseacuteia como o livro

em que haacute maior intensidade nessas representaccedilotildees destacamos tambeacutem que no transcorrer

da obra outros momentos de grande teor traacutegico podem ser contemplados Com isso

objetivamos respaldar ainda mais a nossa pesquisa mostrando que a tragicidade pode ser

encontrada na Odisseacuteia em momentos distintos natildeo estando restrita a um uacutenico canto

Lesky (2006) ressalta-nos que Homero legou-nos germes do traacutegico em suas

epopeacuteias Em congruecircncia com esta afirmaccedilatildeo Sandra Luna (2005) diz ser possiacutevel a

identificaccedilatildeo de momentos traacutegicos na literatura homeacuterica Tais assertivas jaacute discutidas no

segundo capiacutetulo acabam sendo motivadoras deste nosso percurso ao longo dos versos da

90

Odisseacuteia em busca de momentos traacutegicos ou ao menos de episoacutedios que nos vislumbrem

tragicidade Sabemos que para a ocorrecircncia de uma vivecircncia do traacutegico satildeo importantes

elementos como o imerecido a ideacuteia de culpa75

pela ultrapassagem do meacutetron a compaixatildeo o

temor pois todas essas circunstacircncias propiciam o despertar da comoccedilatildeo Assim logo ao

iniacutecio da epopeacuteia no Canto I deparamo-nos com a representaccedilatildeo de um sofrimento que nos eacute

apresentado como imerecido Tal situaccedilatildeo ocorre quando Telecircmaco entre os versos 214-220

responde agrave deusa Atena transfigurada como Mentes sobre sua ascendecircncia jaacute que esta havia

perguntado se ele seria filho de Odisseu e ele responde

215 κήηεξ κέλ ηέ κέ θεζη ηνῦ ἔκκελαη αὐηὰξ ἐγώ γε

νὐθ νἶδ᾽ νὐ γάξ πώ ηηο ἑὸλ γόλνλ αὐηὸο ἀλέγλσ

ὡο δὴ ἐγώ γ᾽ ὄθεινλ κάθαξόο λύ ηεπ ἔκκελαη πἱὸο

ἀλέξνο ὃλ θηεάηεζζηλ ἑνῖο ἔπη γῆξαο ἔηεηκε

λῦλ δ᾽ ὃο ἀπνηκόηαηνο γέλεην ζλεηλ ἀλζξώπσλ

220 ηνῦ κ᾽ ἔθ θαζη γελέζζαη ἐπεὶ ζύ κε ηνῦη᾽ ἐξεείλεηο76

((Odisseacuteia I 215-220)

Minha matildee diz que fui gerado por ele mas

pelo menos eu natildeo o sei na verdade natildeo

existe algueacutem que saiba de sua sproacutepria origem

Como eu desejei ser filho de algueacutem abenccediloado

de um varatildeo que vegasse agrave velhice com suas riquezas

Agora do mais infeliz dos homens mortais

eu descendo digo-te jaacute que tu perguntas

Como podemos perceber Telecircmaco sente anguacutestia e sofre pelo desaparecimento

do pai de quem ele natildeo se lembra da fisionomia tendo em vista que era muito pequeno

quando haacute vinte anos Odisseu partira para Troacuteia A passagem citada provoca-nos o

sentimento de piedade o que nos incita a sensaccedilatildeo do traacutegico Ou seja natildeo queremos dizer

que Telecircmaco seja um personagem traacutegico e sim que possui um estado permeado por

elementos importantes para a efetivaccedilatildeo do traacutegico como o imerecimento e o suscitar da

75

O termo referido natildeo se relaciona a ideacuteia de culpa cristatilde ligada ao pecado do indiviacuteduo a algo noscivo do qual

os cristatildeos devem distanciar-se para que natildeo sejam punidos Ao utilizarmos a palavra ―culpa remetemo-nos ao

sentimento de responsabilizaccedilatildeo projetada no homem que foi resultado de accedilotildees do divino do destino de sua

desmedida ou seja resultado de uma construccedilatildeo coletiva E essa responsabilizaccedilatildeo a que nos referimos natildeo pode

ser compreendida pelo o que concebemos de ―culpa cristatilde jaacute que esta estaacute envolta com a noccedilatildeo de indiviacuteduo

culpado e que portanto deve ser punido pelos seus proacuteprios atos No processo de realizaccedilatildeo do traacutegico podemos

encontrar a culpa a responsabilizaccedilatildeo do homem por seus atos fazendo-os chegarem ao destino ou a momentos

traacutegicos Contudo sabemos que na eacutepica e nas trageacutedias gregas a accedilatildeo divina e todo um construto coletivo

impulsionam-os ao erro daiacute o distanciamento com o sentimento de culpa apregoada pelo cristianismo 76

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D13Acard3

D178 retirado agraves 2035h em 20 de dezembro de 2010

91

piedade Mesmo porque diz-nos Lesky (2006) que o sentimento traacutegico ocorre quando algo

nos afeta nos comove fazendo com que nos sintamos atingidos ―nas profundas camadas de

nosso ser77

(LESKY 2006 p33) Contudo sentimo-nos ainda mais aflitos ao sabermos que

Telecircmaco natildeo sofre apenas por natildeo se recordar do pai e saber de seu estado se vivo ou morto

mas tambeacutem por ver toda a sua heranccedila ser consumida dia a dia pelos pretendentes que

cortejam sua matildee e destroem seus bens Vejamos o que ele diz a Atena sobre sua afliccedilatildeo

uacutenica heranccedila que ele considera que o pai deixou

νὐδέ ηη θεῖλνλ ὀδπξόκελνο78

ζηελαρίδσ

νἶνλ ἐπεί λύ κνη ἄιια ζενὶ θαθὰ θήδε᾽ ἔηεπμαλ

()

ηξύρνπζη δὲ νἶθνλ

ἡ δ᾽ νὔη᾽ ἀξλεῖηαη ζηπγεξὸλ γάκνλ νὔηε ηειεπηὴλ

250 πνηῆζαη δύλαηαη ηνὶ δὲ θζηλύζνπζηλ ἔδνληεο

νἶθνλ ἐκόλ ηάρα δή κε δηαξξαίζνπζη θαὶ αὐηόλ79

(Odisseacuteia I 243-244 248-251)

Natildeo eacute soacute por este algueacutem que eu lamento mas

nesse instante sofro por mim com os males que os deuses ocasionam-me

()

A matildeo e o palaacutecio eles me consomem e

ela nem recusa o casamento abominaacutevel nem aceitar

eacute capaz de fazer assim eles acabam consumindo

meu palaacutecio e rapidamente destruiratildeo a mim mesmo

Diante de tais lamuacuterios como sabemos a narrativa prossegue e Atena aconselha-o

a partir em busca de notiacutecias do pai Nessa citaccedilatildeo percebemos que Telecircmaco natildeo se sente

apenas angustiado por sofrer pelo pai o sentimento que o toma eacute ainda mais traacutegico a dor

imerecida A partida do pai mesmo a contragosto para a Guerra de Troacuteia provoca em

Telecircmaco a anguacutestia espera do pai que ele natildeo conheceu efetivamente A guerra se encerra

mas Odisseu natildeo retorna e nenhuma notiacutecia eacute trazida sobre o paradeiro do rei de Iacutetaca soacute

77

Apesar de servir para nossa anaacutelise destacamos que a afirmaccedilatildeo de Lesky (2006) pode ser relativizada tendo

em vista que ele define o sentimento traacutegico a partir de seu caraacuteter metafiacutesico relacionado agrave recepccedilatildeo dos

espectadoresleitores 78

A utilizaccedilatildeo do particiacutepio presente ὀδσρόμενος eacute apropiada ao contexto por indicar a simultaneidade da accedilatildeo

expressa pelo verbo Assim ὀδσρόμενος indica-nos que a lamentaccedilatildeo de Telecircmaco natildeo estaacute acabada

(perfectum) nem eacute pontual (aoristo) e sim inacabada por isso Homero coerentemente utilizou um tema do

infectum 79

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D13Acard3

D230 retirado agraves 2041h em 20 de dezembro de 2010

92

comentaacuterios incertos Sua matildee Peneacutelope comeccedila entatildeo a ser cortejada por muitos homens

de Iacutetaca antigos conterracircneos de Odisseu ou de cidades vizinhas Para adiar o enlace com um

dos pretendentes ela tece pela manhatilde uma mortalha para Laertes e agrave noite quando todos

dormem destece num trabalho infindo Nesse transcorrer de tempo os servos e os bens

deixados pelo pai satildeo consumidos pelos pretendentes jaacute que estes vatildeo ao palaacutecio todos os

dias para banquetes e festejos enquanto esperam a decisatildeo da rainha Desse modo como se jaacute

natildeo bastasse natildeo ter vivido com o pai e a incerteza se ele se encontrava vivo ou morto

Telecircmaco sofre pelos bens que via sendo diluiacutedos a cada dia que se passava Desde crianccedila

sem ter cometido erro algum imerecidamente sofria males sem razatildeo E eacute esse sentimento

diante de uma dor imerecida que nos faz sentir esup1lemacroj a piedade ao mesmo tempo em que

nos faz temer passar por tal sofrimento o fomacrboj Assim sentindo compaixatildeo e temor

aproximamo-nos de um processo cataacutertico e entatildeo experimentamos o traacutegico Lembremos do

que nos diz Aristoacuteteles sobre o sentimento provocado pela imagem traacutegica

ἔλεος μὲν περὶ τὸν ἀνάξιον φόβος δὲ περὶ τὸν ὅμοιον80

(Poeacutetica XIII 1453a 5-6)

() a piedade sobre o imerecido o temor sobre o semelhante

O imerecido sentimento que acentua nossa vivecircncia do traacutegico como jaacute vimos eacute

tambeacutem representado na vida de Odisseu o polutropoj81 que em suas muitas voltas e

maneiras protagoniza no decorrer dos cantos da Odisseacuteia cenas em que sofre com seus

muitos trabalhos Natildeo eacute pois sem propoacutesito que Atena logo no Canto I reclama a Zeus os

tantos sofrimentos de Odisseu por considerar que satildeo imerecidos diferentemente dos de

Egisto que satildeo bem cabidos agraves suas accedilotildees Por isso reclama a deusa

ἱέκελνο θαὶ θαπλὸλ ἀπνζξῴζθνληα λνῆζαη

ἧο γαίεο ζαλέεηλ ἱκείξεηαη νὐδέ λπ ζνί πεξ

80

Texto disponiacutevel em httpwwwhs-

augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante04Aristotelesari_poi2html retirado agraves 2025hs de 17 de julho

de 2010 81

Esse epiacuteteto foi explicado por noacutes anteriormente no primeiro capiacutetulo desse trabalho

93

60 ἐληξέπεηαη θίινλ ἦηνξ ιύκπηε νὔ λύ η᾽ δπζζεὺο

Ἀξγείσλ παξὰ λεπζὶ ραξίδεην ἱεξὰ ῥέδσλ

Τξνίῃ ἐλ εὐξείῃ ηί λύ νἱ ηόζνλ ὠδύζαν Ζεῦ82

(Odisseacuteia I 58-62)

Contudo Odisseu fica colocando-se a pensar sobre a fumaccedila

que se solta da sua terra que anseia ou ateacute mesmo agora morrer

Oliacutempico teu coraccedilatildeo natildeo se move Odisseu natildeo era querido

Quando ao lado das naves dos Argivos agradava-te fazendo sacrifiacutecios

Na ampla Troacuteia Agora o odeias tanto por que Zeus

A deusa questiona natildeo o sofrer de um homem mas o incompreensiacutevel fato de ver

um valoroso guerreiro um heroacutei que sempre respeitou e sacrificou pelos deuses sofrer

imerecidamente Neste caso o incompreensiacutevel soma-se ao imerecido para intensificar o

traacutegico pois aquele que cumpre com seus deveres natildeo pode sofrer sem causa o que nos

sugere a sensaccedilatildeo de injusticcedila de um destino indevido Questionado Zeus responde natildeo ter

ressentimento para com Odisseu ateacute mesmo porque ele sempre foi distinguido entre os

demais e sempre ofertou aos eternos Todavia uma uAacutebrij cometida para com Polifemo o

filho de Posiacutedon fez este desejar-lhe todo mal explica Zeus

ἀιιὰ Πνζεηδάσλ γαηήνρνο ἀζθειὲο αἰεὶ

Κύθισπνο θερόισηαη83

ὃλ ὀθζαικνῦ ἀιάσζελ

70 ἀληίζενλ Πνιύθεκνλ ὅνπ θξάηνο ἐζηὶ κέγηζηνλ84

(Odisseacuteia I 68-70)

Entretanto Posiacutedon que a terra estremece cultiva para sempre

o oacutedio enfurecido por ele ter tornado cego do olho o Ciclope

O dado agora acrescentado do desagrado cometido por Odisseu a Polifemo e

consequentemente ao seu pai Posiacutedon mostra tambeacutem que os atos iacutempios satildeo

inevitavelmente punidos A desmedida a uAacutebrij cometida eacute traacutegica porque eacute necessaacuteria

sendo portanto inevitaacutevel Um exemplo dessa uAacutebrij inevitaacutevel necessaacuteria encontramos

82

Texto disponiacuteevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D13Acard3

D44 retirado agraves 2039h em 20 de novembro de 2010 83

O uso do perfectum kexolwtai de xolow ndash enfurecer sugere-nos que a accedilatildeo verbal neste caso a raiva de

Posiacutedon eacute perfeita acabada ou seja natildeo indica o processo e sim o resultado de uma accedilatildeo (MURACHO 2007)

Por isso na citaccedilatildeo acima a utilizaccedilatildeo de kexolwtai representa o ―enfurecido deus como resultado da accedilatildeo

de Odisseu ao ter furado o olho do seu filho 84

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D13Acard3

D44 retirado agraves 2040h em 20 de novembro de 2010

94

no Canto IX em que se narra a perda de Odisseu dos seus doze dos mais fortes companheiros

que satildeo comidos pelo Ciclope Polifemo Tal situaccedilatildeo faraacute com que o Laertida e os soacutecios

sobreviventes presenciem cenas horrendas e dolorosas daiacute todos se vecircem impelidos pela

necessidade de agirem contra o Ciclope Para entendermos melhor a explanaccedilatildeo vejamos

uma dessas cenas em que o Polifemo devora seus companheiros

ζὺλ δὲ δύσ κάξςαο ὥο ηε ζθύιαθαο πνηὶ γαίῃ

290 θόπη᾽ ἐθ δ᾽ ἐγθέθαινο ρακάδηο ῥέε δεῦε δὲ γαῖαλ

ηνὺο δὲ δηὰ κειετζηὶ ηακὼλ ὡπιίζζαην δόξπνλ

ἤζζηε δ᾽ ὥο ηε ιέσλ ὀξεζίηξνθνο νὐδ᾽ ἀπέιεηπελ

ἔγθαηά ηε ζάξθαο ηε θαὶ ὀζηέα κπειόεληα

ἡκεῖο δὲ θιαίνληεο ἀλεζρέζνκελ Δηὶ ρεῖξαο

295 ζρέηιηα ἔξγ᾽ ὁξόσληεο ἀκεραλίε δ᾽ ἔρε ζπκόλ85

(Odisseacuteia IX 289-295)

Tendo apreendido dois como a cachorros sobre a terra

os lanccedilou o ceacuterebro de cada um correu ao chatildeo e molhou o solo

O jantar preparou com eles tendo partido seus membros

comia como um leatildeo montanhecircs natildeo deixava sair nada

entranhas carnes e ossos com tutanos

Chorando noacutes erguemos as matildeos para Zeus

enquanto assistiacuteamos aquelas terriacuteveis obras

a impotecircncia possuiacutea nosso acircnimo

Diante do espetaacuteculo horrendo Odisseu e os demais companheiros apavoram-se

pois sabem que seratildeo as proacuteximas viacutetimas Para escapar do fim aparentemente inevitaacutevel

Odisseu com toda a sua astuacutecia o polumhtij86 resolve entatildeo ludibriar o monstro

Primeiro oferece-lhe vinho O monstro aceita e bebe ainda mais por trecircs vezes O Ciclope

pergunta o nome do heroacutei Este percebendo que o vinho jaacute havia alterado a razatildeo do

Polifemo responde Oucurrentij (IX 366) ou seja Ningueacutem O monstro avisa a Odisseu que ele

seraacute o uacuteltimo a ser comido e depois acaba dormindo O heroacutei presencia outro espetaacuteculo

horriacutevel que soacute o impulsiona mais a encontrar uma saiacuteda A asup1namacrgkh a necessidade e o

daimwn um democircnio uma forccedila divina impelem-nos a agir desmedidamente observemos

() θάξπγνο δ᾽ ἐμέζζπην νἶλνο

ςσκνί η᾽ ἀλδξόκενη ὁ δ᾽ ἐξεύγεην νἰλνβαξείσλ

85

Texto disponeacutevel em

dehttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D93Acard

3D281 retirado agraves 2045h em 20 de outubro de 2010 86

O epiacuteteto polumhtij como explicamos no capiacutetulo primeiro evoca e relaciona Odisseu aos deuses Zeus e

Atena e indica o de muita prudecircncia e sagacidade

95

375 θαὶ ηόη᾽ ἐγὼ ηὸλ κνριὸλ ὑπὸ ζπνδνῦ ἤιαζα πνιιῆο

ἧνο ζεξκαίλνηην ()

380 θαὶ ηόη᾽ ἐγὼλ ἆζζνλ θέξνλ ἐθ ππξόο ἀκθὶ δ᾽ ἑηαῖξνη

ἵζηαλη᾽ αὐηὰξ ζάξζνο ἐλέπλεπζελ κέγα δαίκσλ

νἱ κὲλ κνριὸλ ἑιόληεο ἐιάηλνλ ὀμὺλ ἐπ᾽ ἄθξῳ

ὀθζαικῶ ἐλέξεηζαλ ἐγὼ δ᾽ ἐθύπεξζελ ἐξεηζζεὶο

δίλενλ87

(Odisseacuteia IX 373-376 380-384)

() para fora da garganta colocava vinho e

pedaccedilos crus de carne dos humens arrotou embriagado

alguns E eu coloquei a vara embaixo da numerosa cinza

ateacute que queimasse ()

eu o transportava de dentro do fogo os companheiros ficaram

em ambos os lados mas um grande democircnio dotou-nos de coragem

Eles levantaram a vara afiada de madeira de oliveira

e sua ponta empurraram no olho (do Ciclope) eu tendo-me

apoiado por cima fazia (a vara) girar

A asup1namacrgkh e o daimwn impulsionam Odisseu e seus companheiros a decidirem

pela tomada de accedilatildeo independente dos resultados que ela traria pois naquele momento

tinham que fugir do monstro Constrangidos pela necessidade e pelo divino tomados pelo

temor de que aquilo viesse ocorrer com eles assim enfiam o pau de oliveira no olho do

monstro Polifemo cegando o filho de Posiacutedon Como diz-nos Vernant (2008) a accedilatildeo do

homem mesmo natildeo voluntariosa emana da necessidade Eacute o que Romilly (2008) como foi

visto no segundo capiacutetulo nomeia de ―luz traacutegica jaacute que a situaccedilatildeo ocorre ―em nome das

circunstacircncias que se impotildeem aos homens (ROMILLY 2008 p 168) Ainda segundo a

autora isso nos faz sentir piedade natildeo apenas pelas viacutetimas neste caso o Polifemo mas

tambeacutem pelos agentes Odisseu e seus companheiros pois o que sentimos na verdade eacute a

―piedade pelo homem (Ibidem p169) E esse sentimento de piedade somado ao temor que

temos de vivenciar tais fatos propiciam-nos a experiecircncia do traacutegico que pelo que vimos ateacute

entatildeo pode ser conferida em muitos momentos da Odisseacuteia

No Canto IX ainda sabemos que o Ciclope pede ajuda mas quando perguntado

sobre quem teria lhe feito mal ele responde Oucurrentij (IX 366) Ningueacutem Traiacutedo e enganado

pela astuacutecia do heroacutei polumhtij Polifemo natildeo consegue ajuda Odisseu e os demais natildeo

podem sair da caverna trancada por uma imensa pedra que soacute o monstro consegue tirar Mais

87

Texto disponiacutevem em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D93Acard3

D360 Texto retirado agraves 2010h em 15 de novembro de 2010

96

uma vez sua aliada astuacutecia lhe serve e ele resolve que todos devem amarrar-se aos carneiros

pois ao raiar o filho de Posiacutedon retiraraacute a pedra da entrada da caverna para que os carneiros

possam pastar e eles presos aos animais possam escapar Assim eles fazem Ao terem

fugido Odisseu com palavras de jactacircncia ataca o Ciclope Os companheiros amedrontados

com tudo o que viram tentam deter o heroacutei Mas nada o que fazem adianta pois Odisseu

continua desmedidamente a atacar o Ciclope apesar de jaacute estar a salvo

Κύθισς αἴ θέλ ηίο ζε θαηαζλεηλ ἀλζξώπσλ

ὀθζαικνῦ εἴξεηαη88

ἀεηθειίελ ἀιασηύλ

θάζζαη δπζζῆα πηνιηπόξζηνλ ἐμαιαζαη

505 πἱὸλ Λαέξηεσ Ἰζάθῃ ἔλη νἰθί᾽ ἔρνληα89

(Odisseacuteia IX 502- 505)

Ciclope se algum dos homens mortais vier e

perguntar a causaa de tua vergonhosa cegueira do olho

podes dizer que completamente cegou-te Odisseu o saqueador de

cidades]

o filho de Laertes que em Iacutetaca tem morada

Diante do descomedimento do heroacutei e das palavras injuriosas de vaidade e

orgulho o Polifemo implora ao seu pai vinganccedila Pede que Odisseu natildeo mais retorne ao lar

mas se o seu destino natildeo o permitir que ao menos venha a ter dificuldades perdendo os

soacutecios e atraveacutes de navio estrangeiro chegue ao seu lar e laacute venha encontrar tambeacutem muitas

afliccedilotildees

Esse breve relato que fizemos da histoacuteria eacute importante para que possamos entender

como viraacute o castigo de Odisseu por sua atitude desmedida Antes do seu encontro com o

Ciclope eacute verdade ele jaacute havia andado errante mas nada em comparaccedilatildeo com o que ele iraacute

passar tendo agora como seu perseguidor Posiacutedon Depois que Odisseu e os seus soacutecios

partiram de Troacuteia haviam passado apenas pela terra dos Ciacuteconos e Lotoacutefagos Na primeira

cidade satildeo perseguidos por terem-na saqueado Depois partindo para Iacutetaca fortes ventos e

uma corrente os fazem passar nove dias errantes ateacute que chegam ao paiacutes dos Lotoacutefagos Nesta

cidade trecircs companheiros comem as flores de loto e esquecem de querer retornar Odisseu

diante do risco traz de volta os amigos Daiacute aportam no paiacutes dos Ciclopes onde ocorre tudo

88

Omodo subjuntivo exprime a ideacuteia de uma accedilatildeo possiacutevel eventual que pode vir ocorrer no futuro

(MURACHO 2007) por isso Odisseu utilizou-se desse modo em eiAtilderhtai de eAtilderomai- perguntar questionar

Assim ele exprime o fato possiacutevel de algueacutem perguntar por isso traduzimos ―se perguntar na tentativa de

transmitir essa ideacuteia do provaacutevel 89

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D93Acard3

D500 retirado agraves1520h em 2 de novembro de 2010

97

o que anteriormente narramos o Polifemo come doze dos seus companheiros mais fortes

Odisseu e os demais cegam o monstro e partem antes poreacutem o heroacutei exclama palavras

injuriosas A partir de entatildeo eacute que Odisseu amaldiccediloado por Polifemo e perseguido por

Posiacutedon iraacute sofrer errante vagando de paiacutes em paiacutes ateacute chegar a Iacutetaca

Essa contextualizaccedilatildeo faz-se importante para que possamos compreender as

circunstacircncias traacutegicas na vida de Odisseu em contraposiccedilatildeo agraves situaccedilotildees traacutegicas e

principalmente ao destino traacutegico de seus companheiros Tais diferenccedilas entre o destino de

Odisseu e dos seus soacutecios como orienta Aristoacuteteles seratildeo determinadas pelas accedilotildees dos

personagens e natildeo pelos seus caracteres Daiacute a personagem ideal da trageacutedia ser o heroacutei que

tem o caraacuteter intermediaacuterio nem valoroso demais nem maldoso em excesso Nas passagens

acima referidas sobre Odisseu e seus companheiros na terra dos Ciclopes pudemos ver que a

tragicidade atingiu a todos Mas um fator determinante faraacute com que o destino de seus

companheiros seja desventuroso fato este que estaacute relacionado ao que eles faratildeo com as vacas

do Sol no Canto XII Contudo antes que cheguemos laacute sigamos linearmente e do Canto IX

partamos para o X

No Canto X da Odisseacuteia Odisseu e seus companheiros chegam agrave ilha de Eacuteolo

onde satildeo bem recebidos e laacute permanecem por um mecircs ateacute que o heroacutei resolve partir Para

ajudaacute-los Eacuteolo daacute ao Laertida uma sacola de couro com os ventos Deste modo eles partem

Mais uma vez o daimwn a forccedila superior age prejudicando a todos Odisseu dorme e

curiosos os companheiros abrem a sacola espalhando ventos por todos os lados De volta agrave

ilha Eacuteolo recusa-se a um novo auxiacutelio por perceber que um daimwn natildeo desejava vecirc-los

bem indicando que algo de mal eles teriam feito Assim Eacuteolo potildee todos para fora de sua

cidade jaacute que natildeo satildeo homens querido pelos deuses pelo contraacuterio satildeo odiados pelos divinos

(Odisseacuteia X 72-75)

Eacuteolo percebe logo que uma vontade divina ou seja uma accedilatildeo superior ocasionou

o mal agravequeles viajantes fazendo Odisseu adormecer e os seus companheiros serem tomados

pela curiosidade Ferozmente punidos estes personagens despertam nossa comoccedilatildeo por

percebermos que uma vontade superior empurra-os ao erro Como percebemos a situaccedilatildeo

descrita tem os elementos importantes que constituem uma vivecircncia traacutegica o imerecido

injusto o erro (aumlmartia) a accedilatildeo divina (daimwn) enfim Diante desses componentes

traacutegicos fazemos lembrar Rosenfeld ao afirmar que todo gecircnero literaacuterio de alguma forma

conteacutem os ―traccedilos estiliacutesticos mais tiacutepicos dos outros gecircneros (ROSENFELD 1985 p19)

Assim apesar de estarmos analisando uma obra de gecircnero eacutepico percebemos fortes marcas

98

que satildeo mais especificamente caracteriacutesticas da trageacutedia Pela linha de Rosenfeld (1985) a

obra em sua substacircncia possui categorias baacutesicas do gecircnero eacutepico ao passo que tambeacutem traz

o traacutegico como elemento adjetivo visto ser este uma categoria mais especiacutefica do gecircnero

dramaacutetico

Ainda no Canto X temos a narraccedilatildeo de que tendo saiacutedo da ilha de Eacuteolo Odisseu

e seus companheiros vagam por seis dias ateacute chegarem agrave terra dos Lestrigotildees em Lamo

Ancoram o barco e alguns homens que satildeo enviados para conhecerem a cidade deparam-se

com a filha do rei Esta os leva ao palaacutecio local onde um deles eacute logo feito de almoccedilo

deixando os demais apavorados Em fuga alguns ainda satildeo arrebatados e levados para serem

devorados E Odisseu resolve partir imediatamente Atraveacutes dessa narrativa percebemos a

perseguiccedilatildeo incansaacutevel que eles estatildeo sofrendo sem nem se darem conta do que fizeram para

merecerem tamanha hostilidade Nesse percurso de volta para casa a accedilatildeo desmedida que eles

cometeram principalmente contra Polifemo faz com que eles sejam punidos mesmo que

tenham sido impulsionados pela asup1namacrgkh e pelo daimwn mesmo que a accedilatildeo tenha sido

involuntaacuteria e natildeo por falha de caraacuteter Nesses casos em anaacutelise aristotelicamente a accedilatildeo eacute

que os encaminha para a cataacutestrofe como veremos especificamente com os companheiros de

Odisseu no Canto XII

Guiando a nau Odisseu e seus companheiros partem de Lamo e aportam na ilha de

Eeacuteia morada de Circe Odisseu percebe a accedilatildeo do daimwn pois esse natildeo era o destino

imaginado contudo naturalmente alcanccedilam a ilha O Laertida conclui que um dos deuses

havia servido como guia Apoacutes dois dias na embarcaccedilatildeo partem para a cidade e aproximam-

se da casa de Circe onde se viam leotildees e lobos possuiacutedos por feiticcedilo Circe canta e ao vecirc-los

chama-os para entrar oferecendo-lhes bebida e comida Todos aceitam com exceccedilatildeo de

Euriacutecolo Mais uma vez por accedilatildeo inconsequente deles proacuteprios inconscientemente satildeo

levados para o seu fim Vejamos

αὐηὰξ ἐπεὶ δθέλ ηε θαὶ ἔθπηνλ αὐηίθ᾽ ἔπεηηα

ῥάβδῳ πεπιεγπῖα θαηὰ ζπθενῖζηλ ἐέξγλπ

νἱ δὲ ζπλ κὲλ ἔρνλ θεθαιὰο θσλήλ ηε ηξίραο ηε

θαὶ δέκαο αὐηὰξ νοῦς90

ἦλ ἔκπεδνο ὡο ηὸ πάξνο πεξ91

(Odisseacuteia X 237-240)

90

Do grego nooj que significa inteligecircncia consciecircncia dicernimento Os destaques satildeo nossos 91

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D103Acard3

D208 retirado em 20 de outubro de 2010

99

(Circe) deu-lhes e eles tudo beberam entatildeo imediatamente

tendo sido tocados com a varinha ela ia confinando-os nos chiqueiros

Eles tinham de porcos as cabeccedilas o grunhir as cerdas e

tambeacutem o corpo Contudo a consciecircncia anterior estava conservada

Transformados de homem em porcos nesta citaccedilatildeo podemos identificar

humanos numa representaccedilatildeo traacutegica deparando-se com a sua proacutepria finitude e fragilidade

Por uma accedilatildeo de feiticcedilo os antes vigorosos combatentes de guerra e viajantes passam a

figurar como porcos tragicamente ainda mantendo a consciecircncia de homens - fato que

intensifica o sofrer de todos por terem consciecircncia de sua fraacutegil condiccedilatildeo Essa transmutaccedilatildeo

faz-nos visualizar as maneiras pelas quais Homero nos insere num contexto traacutegico mesmo

que este natildeo seja seu objetivo final Contudo eacute inegaacutevel que ele ―convida-nos a ponderar

gravemente sobre o traacutegico fim da existecircncia humana (LUNA 2005 p 29) Eacute-nos

importante ressaltar que essa traacutegica finitude humana natildeo deve ser visualizada apenas com a

passagem da vida para a morte pois acreditamos que essa significaccedilatildeo pode ser mais ampla

No momento em que os homens passam a figurar como porcos temos tambeacutem uma marcante

representaccedilatildeo da diluiccedilatildeo da vida humana neste caso de humanos a bichos Assim seguindo

a afirmaccedilatildeo de Sandra Luna (2005) deparamo-nos tambeacutem com a diluiccedilatildeo da vida e a traacutegica

finitude da existecircncia dos mortais

Esta figuraccedilatildeo em porcos tem um siacutembolo importante jaacute que este animal

representa de um modo geral as ―tendecircncias obscuras sob todas as suas formas da

ignoracircncia da gula da luxuacuteria e do egoiacutesmo (Chevalier Gheerbrant 2009 p 734) De

maneira mais particular no caso em que Circe transforma os companheiros de Odisseu em

porcos Jean Chevalier e Alain Gheerbrant (2009) citando Grid dizem que a deusa feiticeira

transformava os homens em animais que representavam a essecircncia e o caraacuteter dos homens

aprisionados Podemos observar entatildeo que tal mutaccedilatildeo de homens para porcos revela-nos a

essecircncia desses viajantes que por sua proacutepria ignoracircncia (daiacute o siacutembolo dos porcos) padecem

na tragicidade

No capiacutetulo anterior desenvolvemos a ideacuteia de que uma accedilatildeo traacutegica eacute ainda mais

efetiva quando o seu sujeito reconhece-se como traacutegico identificando-se e tendo plena

consciecircncia de sua condiccedilatildeo Eacute a asup1nagnwiquestrisij que intensifica a vivecircncia traacutegica natildeo

apenas para os espectadoresleitores mas principalmente por seu proacuteprio sujeito que se vecirc

natildeo mais como um homem de coragem valoroso e respeitado mas como vemos neste caso

como simples porcos Assim ao dizer-nos Vernant que ―a consciecircncia traacutegica nasce e

desenvolve-se com a trageacutedia (2008 p 9) vemo-nos impulsionados a levantar uma

100

problematizaccedilatildeo pois como nos mostram os versos em discussatildeo esses personagens

homeacutericos possuem consciecircncia de sua tragicidade Diante do grave conflito da condiccedilatildeo

humana sua fragilidade e limitaccedilatildeo Homero explicita-nos sobre os companheiros de Odisseu

apoacutes a transformaccedilatildeo de homens viris em porcos mas que ainda mantecircm sua consciecircncia de

homens (X 240) Por isso consideramos importante confrontarmos essa afirmaccedilatildeo de

Vernant (2008) com a passagem em anaacutelise jaacute que esta e as outras que estamos destacando

mostram-nos que em Homero certamente natildeo se desenvolveu a dita ―consciecircncia traacutegica

mas bem provavelmente foi com o autor da Odisseacuteia que ela nasceu mesmo que

incipientemente Esse fato vem a respaldar nossa pesquisa que propotildee identificar e analisar

na epopeacuteia homeacuterica o despontar dos elementos traacutegicos que mais tarde seriam

desenvolvidos nas trageacutedias gregas Por tudo isso concordamos com Platatildeo ao considerar

Homero como o ―prwordftoj didaskaloj twordfn tragikwordfn (Repuacuteblica X 595b) ou seja o

mestre primeiro dos traacutegicos

Na continuidade da narrativa do Canto X Euriacuteloco que desconfiado natildeo vai ateacute a

deusa presencia tudo e corre apavorado para contar a Odisseu o que sucedera Este decide ir

sozinho ajudar os demais No caminho encontra com Hermes transfigurado em um rapaz

que lhe oferece a erva de Molu para imunizaacute-lo ao feiticcedilo de Circe Aleacutem disso indica como o

heroacutei deve proceder ateacute deitar-se ao seu leito da deusa para que consiga salvar seus

companheiros Assim Odisseu o faz Deste modo consegue salvar os companheiros que antes

transformados em porcos voltam a seus corpos humanos Esse desfazer do feiticcedilo remete-nos

agrave defesa de Sandra Luna (2005) de que Homero natildeo alimenta o traacutegico pois atraveacutes de outros

elementos como por exemplo a ocorrecircncia de banquetes ele dispersa o efeito traacutegico Neste

caso vemos que a cena traacutegica eacute dissolvida pelo desfazer do feiticcedilo jaacute que certamente natildeo eacute

―traacutegico o efeito pretendido pelo poeta (LUNA 2005 p 29) Contudo esta constataccedilatildeo natildeo

invalida ou atenua o meacuterito de nossa pesquisa mesmo porque como deixamos evidente no

segundo capiacutetulo Homero foi coerente com seu propoacutesito literaacuterio de composiccedilatildeo de uma

epopeacuteia e natildeo de uma trageacutedia apesar de ter deixado para esta valoroso legado

Circe diz a Odisseu para que ele vaacute ateacute a nau para pegar seus tesouros armas e

homens Ele assim o faz A deusa diz tambeacutem para que ele esqueccedila de todas as suas dores

Odisseu segue seu conselho e permanece na ilha de Eeacuteia por um ano em festejos ateacute que seus

companheiros exortam-no a retornar ao solo paacutetrio O Laertida resolve entatildeo falar com Circe

e esta aceita sua partida inclusive adianta-lhe que antes de chegar a Iacutetaca teraacute que ir ao

Hades falar com Tireacutesias Sabendo desta revelaccedilatildeo ele se desespera

101

ὣο ἔθαη᾽ αὐηὰξ ἐκνί γε θαηεθιάζζε θίινλ ἦηνξ

θιαῖνλ δ᾽ ἐλ ιερέεζζη θαζήκελνο92

νὐδέ λύ κνη θῆξ

ἤζει᾽ ἔηη δώεηλ θαὶ ὁξᾶλ θάνο ἠειίνην93

(Odisseacuteia X 496-498)

Assim ele dizia e rompeu-me o querido coraccedilatildeo

sentou no leito agora chorava pelo meu destino

natildeo desejava viver nem ainda ver a luz do sol

Diante da revelaccedilatildeo feita por Circe o ―heroacutei mais ceacutelebre de toda a antiguidade

(GRIMAL 2005 p 458) angustia-se por saber que para cumprir seus objetivos ndash de retorno

ao lar - ainda teraacute que passar por obstaacuteculos maiores Ir ateacute o Hades e depois voltar era uma

tarefa que poucos cumpriram Heacuteracles Orfeu Teseu e Piriacutetoo O tamanho desse desafio

desespera o heroacutei Desse modo Homero acaba por nos ―Apresentar o sentimento da vida

inspirar terror e piedade obrigar a partilhar um sofrimento ou uma ansiedade ndash a epopeacuteia

fizera-o sempre e ensinou os tragedioacutegrafos a fazecirc-lo (ROMILLY 2008 p 22) Assim

Odisseu espera o amanhecer do novo dia para contar a nova empreitada aos companheiros

Estes ficam ainda mais desesperados pensam natildeo suportar mais tantos trabalhos por isso

com o coraccedilatildeo partido eles sentam gemem aos prantos chegando a arrancar os cabelos da

frente (Odisseacuteia X 566-567)

Apoacutes toda a anguacutestia ao terem conhecimento da missatildeo de ir ao Hades Odisseu e

os demais partem para a empreitada Eles foram sabendo que apoacutes retornarem do Hades

deveriam retornar a ilha de Circe para que ela pudesse informa-lhes dos proacuteximos

acontecimentos dando-lhe as novas coordenadas Essa circunstacircncia lembra-nos o capiacutetulo

anterior em que discutimos a caracterizaccedilatildeo do heroacutei seja na epopeacuteia eou na trageacutedia e

observamos que uma relevante diferenccedila eacute a de que ―No novo quadro do jogo traacutegico

portanto o heroacutei deixou de ser um modelo tornou-se para si mesmo e para os outros um

problema (VERNANT 2008 p 2) Observemos que apesar de natildeo estarmos falando de

uma trageacutedia grega especificamente a cena citada possibilita-nos enxergar a alusatildeo de um

heroacutei no caso Odisseu figurado como um problema natildeo apenas para si mas tambeacutem para os

outros Seus companheiros embarcam nas suas mesmas empreitadas e acabam sofrendo por

uma perseguiccedilatildeo que Posiacutedon realiza especificamente contra o heroacutei de Iacutetaca Vejamos que

92

O uso do particiacutepio perfeito kaqhmenoj de kaqhmai ndash sentar indica a noccedilatildeo do aspecto acabado

concluiacutedo (MURACHO 2007) por isso a traduccedilatildeo ―sentou exprimindo o ato perfeito terminado 93

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D103Acard3

D475 retirado agraves 1630h em 18 de outubro de 2010

102

apesar de ter ocorrido uma accedilatildeo conjunta contra o Polifemo o grande mentor foi Odisseu

Aleacutem do mais este ao ter fugido ainda lanccedilou palavras injuriosas levando o Ciclope a

implorar a Posiacutedon que o pai de Telecircmaco fosse impedido de voltar agrave paacutetria ou no miacutenimo

ter seu retorno dificultado Como sabemos o deus concede ao filho o pedido e a partir daiacute

dificulta ainda mais o caminho de volta de Odisseu fato este que logo torna-se um

problema tambeacutem para os seus companheiros

No Canto XI Odisseu realiza o grande feito de ir agraves proximidades do Hades e

retornar para a terra Como jaacute adiantamos ao longo deste trabalho muitos satildeo os elementos

traacutegicos a serem analisados contudo por este ser o objetivo central do nosso trabalho

escolhido para anaacutelise deixaremos seu desenvolver para o toacutepico subsequente Partamos

entatildeo para o estudo do proacuteximo canto

Tendo retornado do Hades Odisseu e os demais vatildeo ateacute Circe Esta reforccedila os

apontamentos jaacute feitos por Tireacutesias e indica ao seu heroacutei predileto os outros tantos desafios

que teraacute de enfrentar e como deveraacute proceder para conseguir escapar Ela fala das Sereias de

Cila Cariacutebdes e da fome na ilha do Sol que enfrentaratildeo mas que deveratildeo resistir natildeo

alimentando-se de suas belas vacas para que natildeo venham padecer Odisseu minuciosamente

conta tudo aos companheiros antes de partirem e logo iniciam a jornada

Passando pelas Sereias Odisseu seguindo as orientaccedilotildees de Circe potildee cera nos

ouvidos dos viajantes enquanto estes o amarram Continuando a remar todos se apavoram ao

enxergarem uma grande neacutevoa e teriam deixado os remos se natildeo fosse Odisseu enchecirc-los de

acircnimo e confianccedila Deparam-se entatildeo com uma cena horripilante Cariacutebdes ao lado de Cila

chupava a aacutegua do mar terrivelmente e depois expelia com grande barulho metendo medo em

todos Mas Odisseu e os seus ainda vatildeo deparar-se com uma cena mais forte descrita pelo

heroacutei como a mais terriacutevel de todas que jaacute viu Nela Cila arranca da nave seis dos

companheiros engolindo-os Vejamos

αὐηνῦ δ᾽ εἰλὶ ζύξῃζη θαηήζζηε94

θεθιεγηαο

ρεῖξαο ἐκνὶ ὀξέγνληαο ἐλ αἰλῇ δεηνηῆηη

νἴθηηζηνλ δὴ θεῖλν ἐκνῖο ἴδνλ ὀθζαικνῖζη

πάλησλ ὅζζ᾽ ἐκόγεζα πόξνπο ἁιὸο ἐμεξεείλσλ95

(Odisseacuteia XII 256-259)

94

Tratando-se de uma forma verbal do imperfeito kathsqie de kathsqiw ndash devorar comer exprime a accedilatildeo

inacabada natildeo concluiacuteda (MURACHO 2007) Essa forma linguumliacutestica acentua ainda mais a tragicidade da cena

citada jaacute que Odisseu e seus companheiros acompanham a accedilatildeo em processo de Cila comer alguns de seus

soacutecios 95

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D123Acard3

D234 retirado agraves 2014h em 18 de outubro de 2010

103

Na proacutepria entrada (da caverna) ela os comia eles gritaram

estendendo aos matildeos para mim numa terriacutevel batalha

Aquilo foi a cena mais lamentaacutevel para meus olhos que eu vi

De todas as outras grandes que sofri explorando as passagens do mar

A fragilidade e a efemeridade humana potildeem-se diante dos olhos daqueles homens

que muitas coisas terriacuteveis jaacute haviam presenciado O traacutegico observado nessa passagem estaacute

representado atraveacutes da aterrorizante fraqueza e finitude inerente agrave condiccedilatildeo humana visto

que fortes guerreiros todos vencedores na grande guerra de Troacuteia num segundo enxergam-se

como pequenas presas na boca de um feroz predador Assim verificamos a respeito do heroacutei

eacutepico que para ―aleacutem de todas as honras das quais venha a desfrutar a tragicidade estaraacute

sempre suspensa sobre sua cabeccedila (LUNA 2005 p 31) pois ―Apesar de sua caracteriacutestica

sobre-humana sabe-se que o heroacutei haveraacute um dia de ser igualado aos seus os mortais

(Ibidem) Assim o heroacutei traacutegico96

deparando-se com sua fragilidade e efemeridade comum a

todos os mortais luta contra a accedilatildeo das divindades e contra as leis da natureza E satildeo essas

forccedilas sobre-humanas contra as quais sua condiccedilatildeo humana natildeo o permite combater que o

levam ao traacutegico

Aleacutem disso a cena traacutegica realizada perante os olhos dos sobreviventes faz o fomacrboj

(o medo que faz fugir) apoderar-se de todos tementes de que viessem tambeacutem a figurar nessa

grande encenaccedilatildeo dramaacutetica como presas Mas tambeacutem a esup1leoj (a compaixatildeo) acarreta a

todos ao verem aqueles seis companheiros que haacute tanto tempo juntos lutavam pela

sobrevivecircncia e pelo retorno falecerem drasticamente e sem honra alguma A uniatildeo dos

sentimentos proporcionados pelo fomacrboj e pela esup1leoj proporciona aos viajantes passarem

pelo processo cartaacutetico de purificaccedilatildeo pois como nos elucida Aristoacuteteles (Poeacutetica VI

1449b) a kaqarsij soacute pode ser atingida quando fomacrboj e esup1leoj satildeo suscitados

No transcorrer da narrativa Odisseu e os seus soacutecios saem da tenebrosa passagem

entre Cila e Cariacutebde e aportam na ilha do Sol A fim de evitar o grande mal prenunciado

Odisseu sugere afastarem-se da ilha pois bem lembra dos avisos de Tireacutesias e Circe a respeito

dos sofrimentos que passariam e da necessidade que tinham para o proacuteprio bem de deixarem

ilesas as vacas do sol Os demais retrucam e Euriacutecolo como porta-voz acusa Odisseu de

crueldade jaacute que apoacutes tantos enfrentamentos estavam todos muito cansados Sem o apoio

96

Nesse aspecto podemos destacar uma antonomia do heroacutei claacutessico com o heroacutei moderno pois enquanto o

primeiro luta contra forccedilas sobre-humanas deuses e natureza o heroacutei moderno tem seu conflito realizado no

embate contra as forccedilas sociais

104

dos soacutecios restou a Odisseu ficar Todavia o polumhtij percebe que a forccedila superior tenta

arruinaacute-los (XII 295-296) Odisseu jaacute havia avisado a todos em Eeacuteia do perigo que poderiam

enfrentar e ainda faz o mesmo ao chegarem agrave ilha do Sol Mas os companheiros

demonstravam natildeo ter ideacuteia do mal que estava por vir por isso o heroacutei impotildee a todos um

juramento O Laertida faz todos jurarem que por nada viriam a comer vacas ou ovelhas

divinas pois deveriam saciar-se apenas com as iguarias dadas por Circe Assim realizam o

juramento por isso diz Odisseu ―ὣο ἐθάκελ νἱ δ᾽ αὐηίθ᾽ ἀπώκλπνλ ὡο ἐθέιεπνλ97

ou seja

―Como eu dizia imediatamente eles juraram como eu recomendava(Odisseacuteia XII 303)

Assim conforme o filho de Laertes propocircs o juramento todos fizeram E logo

apoacutes terem selado o acordo com o juramento todos observam a tempestade que surge

mandada por Zeus Astuto Odisseu compreende o sinal enviado pela divindade e avisa mais

uma vez para que poupem as vacas do Sol para que nenhuma desgraccedila venha ocorrer a eles

Como podemos perceber atraveacutes do juramento e dos avisos o esposo de Peneacutelope teme que

um mal ainda pior venha acontecer pois naturalmente se algum mal vier acarretar seus

companheiros acarretaraacute tambeacutem em males para o proacuteprio heroacutei Por meio das ressalvas e do

juramento Odisseu tenta evitar que seus soacutecios cometam a uAgravebrij e que esta venha como um

miasmoj contaminar a todos os integrantes da nau ou no miacutenimo fazer com que sejam

perdido mais companheiros Ateacute porque a cada soacutecio perdido a jornada de Odisseu torna-se

ainda mais dolorosa tendo que tudo enfrentar sozinho - e esta eacute a justificativa para o seu

temor

Amedrontado pela uAgravebrij que seus soacutecios podem cometer Odisseu avia-os por trecircs

vezes aleacutem do juramento que orienta-os a fazer satildeo eles ainda na Ilha de Circe em Eeacuteia

depois logo ao chegarem na ilha do Sol avisa e pede-lhes o juramento e por uacuteltimo recorda-

os novamente do perigo apoacutes a tempestade lanccedilada por Zeus Apesar de todos os avisos e do

juramento estabelecido os companheiros de Odisseu natildeo suportam e jaacute tendo passado-se um

mecircs da estada na ilha do Sol falta-lhes comida Como vemos a asup1namacrgkh a necessidade

impele-os e entatildeo decidem ir procurar alimento Odisseu percebe o perigo aproximar-se e

ora mas natildeo adianta pois o daimwn age pondo-lhe em sono profundo Euriacutecolo aproveita a

ausecircncia do Laertida e discursa aos demais que morrer de fome eacute pior que morrer navegando

e sugere que faccedilam os sacrifiacutecios e devorem as vacas Diante desse discurso de Euriacuteloco

97

Texto disponiacutevel em

dehttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D13Acard

3D1 retirado agraves 0803h em 20 de outubro de 2010

105

todos manifestam estar de acordo e devoram as vacas ou seja cometem a uAgravebrij a

desmedida para com um ser divino o Hiperiocircnio Apoacutes a accedilatildeo consumada que os levaraacute ao

traacutegico Odisseu acorda e desespera-se ao perceber que havia dormido e que portanto natildeo

tinha podido controlar seus companheiros a natildeo comerem as vacas O heroacutei queixa-se com

Zeus e com os demais deuses considerando que foi para o seu mal que eles mandaram-lhe o

sono proporcionando que em sua ausacircncia os soacutecios pudessem ter cometido um terriacutevel

crime contra os deuses (Odisseacuteia XII 370-372) Essa conclusatildeo que chega Odisseu ao

acordar demonstra sua percepccedilatildeo da accedilatildeo superior do daimwn como responsaacutevel por todo o

mal que decorreria daquela accedilatildeo para o heroacutei e para os seus companheiros

A percepccedilatildeo do filho de Anticleacuteia estaacute correta ele percebe que o traacutegico aproxima-se

como resultado de uma uAgravebrij feita pelos seus soacutecios mas que foi impulsionada pelas forccedilas

superiores da asup1namacrgkh e do daimwn daiacute decorre o teor traacutegico dessa situaccedilatildeo Na

continuaccedilatildeo da narrativa o Sol recebe a notiacutecia do fim de suas vacas e implora a Zeus e aos

demais poderosos que todos os companheiros do filho de Laertes sejam punidos e ameaccedila de

que se seu desejo natildeo for atendido iraacute ao Hades para conduzir a luz aos mortos Defrontado

com o pedido divino e com a ameaccedila de acabar com a ordem do universo Zeus sinaliza

atender o pedido do Hiperiocircnio A fim de evitar o fim traacutegico que havia previsto o Laertida

tenta inultilmente recompor as vacas mas as carnes mortas gemem e movem-se Nesta cena

em que Odisseu luta contra a accedilatildeo traacutegica tentanto recompor o mal jaacute feito percebemos que a

inutilidade de sua accedilatildeo nos propicia um outro entendimento do traacutegico que eacute a

impossibilidade humana de desfazer o mal de voltar atraacutes Isso porque a accedilatildeo traacutegica eacute

fechada e natildeo se pode alterar sua jornada ou seja uma vez definida pelos deuses o traacutegico

natildeo mais pode ser evitado pelos mortais que natildeo possuem forccedilas para defrontar-se com a

determinaccedilatildeo divina Eacute por isso que apoacutes comerem as vacas por seis dias no seacutetimo com o

bom vento Odisseu e os demais partem e Zeus lanccedila um raio que lanccedila todos os soacutecios da

nau O traacutegico apanha os companheiros de Odisseu mas tambeacutem o contamina (miasmoj)

por isso ele fica sozinho a navegar

Podemos ver que apesar de todos os avisos os companheiros deixam-se levar

pela fragilidade humana ao contraacuterio de Odisseu que com sua coragem e astuacutecia heroacuteica

aleacutem da proteccedilatildeo divina consegue suportar a fome e tantos outros trabalhos que lhe foram

reservados a fim de que possa conseguir a gloacuteria domeacutestica Nesse momento da narrativa

fica-nos clara a diferenccedila do destino de Odisseu em relaccedilatildeo ao dos seus companheiros

Aristotelicamente falando o destino desventuroso destes foi ocasionado pelas suas proacuteprias

106

accedilotildees e natildeo pelos seus caracteres E isso estaacute anunciado desde os primeiros versos da

Odisseacuteia quando o cantor diz que Odisseu natildeo conseguiu salvar seus soacutecios natildeo por sua

culpa jaacute que seus soacutecios vieram a padecer pelas proacuteprias accedilotildees insensatas (Odisseacuteia I 7) A

partir dessa anaacutelise compreendemos bem a aumlmartia aristoteacutelica teorizada no nosso

segundo capiacutetulo que enfatiza o erro como fruto de uma accedilatildeo natildeo da falta de caraacuteter e eacute esse

erro que os leva agrave cataacutestrofe Vejamos o que diz Aristoacuteteles sobre a aumlmartia

ἁμαρτίαν τινά ηῶλ ἐλ κεγάιῃ δόμῃ ὄλησλ θαὶ εὐηπρίᾳ νἷνλ Οἰδίπνπο

θαὶ Θπέζηεο θαὶ νἱ ἐθ ηῶλ ηνηνύησλ γελῶλ ἐπηθαλεῖο ἄλδξεο () ἐμ

εὐηπρίαο εἰο δπζηπρίαλ κὴ δηὰ κνρζεξίαλ ἀιιὰ δη᾽ ἁμαρτίαν μεγάλην ἢ

νἵνπ εἴξεηαη ἢ βειηίνλνο κᾶιινλ ἢ ρείξνλνο98 (Poeacutetica XIII 1453 a 10-

1215-17)

() algum erro daqueles de grande gloacuteria e boa fortuna como o de Eacutedipo e

Tiestes tambeacutem por homens ilustres de famiacutelias tais () a partir da fortuna

para o infortuacutenio natildeo por maldade mas atraveacutes de um grande erro ou como

o que foi dito ou de um (erro) melhor ou ainda pior

Assim como acreditamos ter ficado bem explicitado um dos argumentos que

justificam a diferenccedila entre o destino de Odisseu e dos seus soacutecios levando estes para

cataacutetrofe estaacute na aumlmartia e no descomedimento (uAacutebrij) cometido por eles no momento em

que desrespeitando todos os avisos e ateacute mesmo os proacuteprios juramentos comem as vacas da

divindade Ressaltemos que essa aumlmartia a accedilatildeo errocircnea eacute cometida natildeo por maldade

eou falta de caraacuteter mas pela forccedila da necessidade (asup1namacrgkh) e pelo impulso superior do

daimacrmwn Lembremos que eles jaacute estavam na ilha haacute um mecircs e a comida tinha acabado por

completo (asup1namacrgkh) e que Odisseu desde que chega na ilha constatou a accedilatildeo do daimacrmwn

duas vezes A primeira foi logo quando ele chegou e seus companheiros quiseram descansar

na ilha (XII 296) e a outra ao acordar e perceber que havia sido tomado por um sono

profundo natildeo podendo impedir os companheiros de cometerem a aumlmartia (XII 370-372)

No traacutegico o personagem de sua accedilatildeo muitas vezes natildeo eacute apresentado como

responsaacutevel ou inocente logo esse ―protagonista traacutegico funde a mimesis dupla de ―culpado

e inocente pois eacute o proacuteprio responsaacutevel por seus males ao mesmo tempo em que eacute tambeacutem

sua maior viacutetima Lembremos ―que sofram uma sorte querida pelos deuses que paguem pelos

98

Os destaques satildeo nossos Texto disponiacutevel em httpwwwhs-

augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante04Aristotelesari_poi2html agraves 2035hs de 17 de julho de

2010

107

erros dos antepassados ou que paguem por sua proacutepria imprudecircncia haacute sempre neles uma

parte de inocecircncia (ROMILLY 2008 p 175) Isso eacute bem ilustrado com a situaccedilatildeo dos

companheiros de Odisseu jaacute que ao comeram as vacas do Sol fazem-nos perceber certa

inocecircncia pois foram levados pela sua fragilidade humana neste caso bem simbolizada pela

fome E esse choque de papeacuteis leva-nos a sentir piedade e temor como tambeacutem de termos

empatia para com eles Por isso para Romilly (2008) a accedilatildeo do heroacutei mesmo numa tentativa

boa ou maacute volta-se contra ele mesmo daiacute decorre sua defesa de haver sempre uma inocecircncia

no personagem traacutegico alimentando mesmo na queda o seu heroiacutesmo

Para entendermos ainda mais essa accedilatildeo traacutegica que inclusive diferencia os

destinos acima referidos recordemos que no capiacutetulo anterior expusemos a chamada ―dupla

causalidade traacutegica defendida por Romilly (2008) Dupla causalidade esta que apesar de

alicerccedilar as trageacutedias jaacute estava ―presente em Homero (Romilly 2008 p 172) Nessa ―dupla

causalidade o traacutegico decorre pelas accedilotildees dos proacuteprios personagens ou pela accedilatildeo do daacuteimon

daimacrmwn ou ainda mais elas podem coexistir sem se anularem e sem nenhuma contradiccedilatildeo

Essa accedilatildeo da ―dupla causalidade adequa-se perfeitamente agrave circunstacircncia das Vacas do Sol

pois nela observamos tanto a accedilatildeo superior do daimacrmwn como tambeacutem o traacutegico decorrendo

da proacutepria accedilatildeo humana a aumlmartia A primeira pode ser exemplificada quando Odisseu

logo percebe sua accedilatildeo convencendo-se de que um daimacrmwn tentava arruinaacute-los (XII 296) Jaacute a

segunda a aumlmartia exemplificamos a partir da descomedida atitude que os soacutecios de

Odisseu fizeram ao comer as vacas do Sol apesar dos avisos de Tireacutesias e Circe repassados

por Odisseu e do juramento realizado

Assim levados pela ―dupla causalidade traacutegica todos os companheiros padecem e

Odisseu navega sozinho durante nove dias ateacute que no deacutecimo chega agrave Ogiacutegia na ilha de

Calipso Como sabemos todas essas erracircncias de Odisseu estatildeo sendo narradas aos Feaacutecios

que tudo ouvem atentamente E pelo fato de a narrativa natildeo ser linear essa estada do heroacutei

em Ogiacutegia remete-nos ao Canto I e dura ateacute o V quando ele numa balsa feita a proacuteprio

punho parte de laacute para a Feaacutecia Contudo eacute mais precisamente no Canto V que temos a

narraccedilatildeo das lamuacuterias de Odisseu durante essa estadia com Calipso jaacute que seu anseio eacute o

mesmo de sempre retornar ao lar Intercedendo por seu protegido Atena jaacute havia desde o

Canto I cobrado de Zeus permitir que a vontade do heroacutei fosse atendida

Eacute por isso que no Canto V Hermes enviado por Zeus vai falar com Calipso para

que ela permita ao pai de Telecircmaco partir O mensageiro comparando-o com os demais

heroacuteis que combateram em Troacuteia define-o como o heroacutei mais sofrido (V 105) Hermes

108

reforccedila ainda que apesar de todo o sofrimento pelo qual Odisseu passou o seu destino exige

seu retorno por isso mesmo indignada Calipso permite o retorno do esposo de Peneacutelope

ajudando-o ainda com bons conselhos Hermes entatildeo parte e a deusa vai ao heroacutei contar-lhe

o ocorrido poreacutem encontra-o na praia aos prantos Leiamos

ηὸλ δ᾽ ἄξ᾽ ἐπ᾽ ἀθηῆο εὗξε θαζήκελνλ νὐδέ πνη᾽ ὄζζε

δαθξπόθηλ ηέξζνλην θαηείβεην δὲ γιπθὺο αἰὼλ

λόζηνλ ὀδπξνκέλῳ ἐπεὶ νὐθέηη ἥλδαλε λύκθε

() πόληνλ ἐπ᾽ ἀηξύγεηνλ δεξθέζθεην δάθξπα ιείβσλ

99

(OdisseacuteiaV 151-153 158)

Ela o encontrou sentado na margem em um

rumor de laacutegrimas ele derramava a doce vida

lamentando o retorno jaacute que a ninfa natildeo mais o agradava

()

Olhava fixo para o alto mar infecundo derramando laacutegrimas

Atraveacutes da citaccedilatildeo percebemos os sofrimentos que Odisseu sente apesar de poder

desfrutar do leito de uma deusa todos os dias bem como da eternidade Descontente o heroacutei

ansiava apenas o seu retorno Assim perante tantas dores a deusa avisa-lhe para partir jaacute que

eacute o seu desejo e orienta-o a construir uma jangada para sozinho atravessar o oceano

Odisseu desconfia e estremecido pelo medo pergunta se natildeo eacute nenhuma armadilha ela dizer-

lhe para atravessar o infindo oceano numa jangada Ele sabe que ―o homem sempre corre o

risco de cair na armadilha de suas proacuteprias decisotildees (VERNANT 2008 p 21) Por isso

Odisseu faz a deusa jurar que tem boa intenccedilatildeo e ela o faz pela Terra pelo Ceacuteu e pelo Estige

este que eacute o grande juramento o Mega oAgraverkoj100

Apoacutes ter a deusa realizado o grande juramento Odisseu parte de Ogiacutegia e navega

na pequena jangada por dezessete dias ateacute o momento em que Posiacutedon voltando do paiacutes dos

Etiacuteopes enxerga-o e fica indignado Como vemos o deus natildeo esquece a uAacutebrij cometida por

Odisseu contra seu filho o Ciclope Polifemo por isso uma nova situaccedilatildeo traacutegica seraacute

vivenciada pelo heroacutei Pois ao ver que Odisseu seguia rumo a concretizaccedilatildeo do retorno a

Iacutetaca o deus suscita uma tempestade faz surgir os ventos as nuvens cinzentas a Noite entatildeo

99

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D53Acard3

D262 retirado agraves 1730h em 20 de outubro de 2010 100

Era atraveacutes do Estige que o juramento sagrado dos deuses era realizado Esse Mega oAgraverkoj pode ser melhor

compreendido por meio da Teogonia (2009) entre os versos 386 e 401

109

Euro e Noto chocam-se Zeacutefiro e Boacutereas agem Odisseu estremece e lastima-se mais uma

experiecircncia traacutegica

ὤ κνη ἐγὼ δεηιόο ηί λύ κνη κήθηζηα γέλεηαη

()

ηξὶο κάθαξεο Δαλανὶ θαὶ ηεηξάθηο νἳ ηόη᾽ ὄινλην

Τξνίῃ ἐλ εὐξείῃ ράξηλ Ἀηξεΐδῃζη θέξνληεο

ὡο δὴ ἐγώ γ᾽ ὄθεινλ ζαλέεηλ θαὶ πόηκνλ ἐπηζπεῖλ

() ηῶ θ᾽ ἔιαρνλ θηεξέσλ θαί κεπ θιένο ἦγνλ Ἀραηνί

λῦλ δέ ιεπγαιέῳ ζαλάηῳ εἵκαξην ἁιλαη101

(Odisseacuteia V 299 306-308311-312)

Como eu sou fraco Agora o que me viraacute de pior

()

Trecircs e quatro vezes abenccediloados os Dacircnaos que morreram

na ampla Troacuteia suportando por causa dos Atridas

De qualquer forma eu preferiria seguir o destino e ali morrer

()

Eu obteria honras fuacutenebres e os Acaios divulgariam a minha gloacuteria

Agora sou capturado pelo destino para a morte miseraacutevel

Como vimos no paraacutegrafo anterior Odisseu havia desconfiado da permissatildeo de

Circe de que ele iria ao seu lar retornar Contudo nessa citaccedilatildeo vemos que o heroacutei entra em

conflito com a decisatildeo que ele mesmo havia tomado de sozinho numa jangada atravessar o

oceano Esse conflito gerado por uma escolha imposta ao heroacutei faz-nos recordar Jean-Pierre

Vernant em Mito e trageacutedia na Greacutecia Antiga (2008) de que na trageacutedia o heroacutei vecirc-se

obrigado a tomar uma decisatildeo mesmo diante de um entorno natildeo propiacutecio num mundo

ambiacuteguo e instaacutevel Exemplificando essa consideraccedilatildeo observemos que Odisseu vecirc-se

obrigado a aceitar a proposta de Calipso mesmo porque tudo o que ele fez e sofreu foi para

poder voltar para casa Mas por outro lado essa decisatildeo eacute conflituosa pois seu entorno natildeo eacute

dos melhores pelo contraacuterio teve que aceitar a proposta quase impossiacutevel de numa jangada

partir para atravessar o oceano infinito Para Vernant (2008) eacute esta tomada de decisatildeo muitas

vezes traiccediloeira que aflige o heroacutei tornando-o susceptiacutevel a sua transformaccedilatildeo em sujeito

traacutegico Isso seria a base da trageacutedia pois aquele heroacutei que normalmente na eacutepica tem seu

vigor exaltado e glorificado vecirc-se na trageacutedia como um fraacutegil homem viacutetima de suas

decisotildees cheio de limitaccedilotildees e assombrado pela finitude da vida

101

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D53Acard3

D262 retirado agraves 2032h em 25 de outubro de 2011

110

Entre os versos 299-303 306-312 do Canto V deparamo-nos com essa situaccedilatildeo

tiacutepica da trageacutedia uma vez que Odisseu arrepende-se de sua decisatildeo dizendo inclusive

preferir ter morrido em batalha a vir a padecer em alto mar sem nenhuma honraria nenhuma

fama102

Assombrado pela morte que jaacute vislumbrava a sua frente desespera-se ao ver que iria

perecer miseraacutevel e na escuridatildeo (V 312) Podemos dizer entatildeo que nos versos referidos

temos os dois poacutelos nos quais segundo Vernant (2008) a accedilatildeo traacutegica divide-se a

deliberaccedilatildeo e a consideraccedilatildeo do incompreensiacutevel de forccedilas superiores que prepararam a sorte

seja de sucesso seja de derrota Portanto encontramos na eacutepica homeacuterica um aspecto traacutegico

comum nas trageacutedias o que para Vernant (2008) relaciona-se agrave accedilatildeo que pressupotildee uma

escolha conflituosa

Haviacuteamos dito que por causa da falta de lineariade da narrativa iriacuteamos retomar o

canto V em que melhor eacute descrita a passagem de Odisseu na caverna de Calipso e como se

deu sua jornada ateacute chegar aos Feaacutecios Esta chegada ocorre no Canto VI quando ele seraacute

auxiliado por intermeacutedio de Atena por Nausiacutecaa a filha do rei dos Feaacutecios Alciacutenoo No

Canto VII o heroacutei chega ao palaacutecio e lanccedila-se sobre os peacutes da rainha Arete pedindo-lhe para

enviaacute-lo para casa e o Alciacutenoo concorda Odisseu entatildeo conta-lhes como ali chegou desde a

ilha de Calipso seu naufraacutegio e a ajuda de Nausiacutecaa na Feaacutecia concedendo-lhe roupas No

Canto VIII Odisseu eacute recepcionado pelos Feaacutecios numa assembleacuteia em que decidem a

preparaccedilatildeo do retorno do estrangeiro Depois realizam disputas nos jogos ateacute que Demoacutedoco

comeccedila a cantar sobre o adulteacuterio de Ares e Afrodite e depois sobre o Cavalo de madeira

idealizado por Odisseu para adentrarem na cidade troiana O filho de Laertes natildeo se conteacutem e

chora levando o rei Alciacutenoo a perguntar-lhe o porquecirc do choro incontido e qual a sua origem

A partir daiacute no Canto IX comeccedilam as narrativas de Odisseu sobre todas as suas erracircncias103

102

Essa fala de Odisseu remete-nos a visatildeo de bela morte tatildeo estimada pelos gregos antigos e desenvolvida por

Vernant (1989) em Lrsquoindividu la mort lrsquoamour Nesta obra Vernant exemplifica atraveacutes do Canto XXII da

Iliacuteada o significado da bela morte para os gregos sua importacircncia e o desejo que os heroacuteis tinham de padecer

belamente em campo de batalha Para os valorosos heroacuteis essa morte conservaria-lhes a honra a nobreza a

distinccedilatildeo guerreira por isso era tatildeo almejada A bela morte buscada por Heitor no Canto XXII da Iliacuteada apesar

deste saber que sua morte estaacute proacutexima demonstra-nos que soacute a bela morte pode dar-lhe a gloacuteria impereciacutevel

conservando para sempre seu brilho guerreiro Assim na referida passagem da Odisseacuteia o filho de Laertes diz

preferir ter tido a bela morte combatendo em Troacuteia a padecer em alto mar Isso porque a bela morte conservaria

sua honra sua gloacuteria e seu nome para toda eternidade jaacute a morte no imenso mar ao contraacuterio faria com que ele

morresse esquecido sem honra sem fama E eacute desse morte fatalmente traacutegica que Odisseu luta para escapar

103

Assim Odisseu fala no Canto IX de suas erracircncias na terra dos Ciacuteconos dos Lotoacutefagos ateacute encontrar a dos

Ciclopes Depois no X fala de Eacuteolo Lestrigotildees e Circe No XI sobre a consulta com Tireacuterias no Hades No XII

sobre as Sereias Cila Caribde e os bois do Sol Essa siacutentese eacute importante para que natildeo nos percamos na

narrativa nem muito menos no nosso percurso de anaacutelise que naturalmente acaba tendo como necessaacuterias as

indas e voltas ao longo da Odisseacuteia por sua estrutura natildeo linear

111

Retomemos a anaacutelise do Canto XII quando Odisseu narra aos Feaacutecios a estada

com Calipso e sua partida Partida esta na qual por obra de Posiacutedon tornou-se um naacuteufrago e

foi ajudado por Leucoteacuteia que lhe entrega o seu veacuteu imortal Este veacuteu como ela o orientou

foi amarrado ao peito para que a Morte natildeo viesse pegaacute-lo ateacute que chegasse a terra firme

neste caso a dos Feaacutecios Ainda no Canto XII o cantor Odisseu termina sua narraccedilatildeo e

iniciam-se os preparativos para seu retorno Os cantos subsequentes ao XII mostram o

desenrolar do destino de Odisseu rumo a sua gloacuteria domeacutestica Eacute assim que no Canto XIII

finalmente o nosso heroacutei polutropoj apoacutes tantas voltas retorna a Iacutetaca Como os

proacuteximos cantos mostram o desenrolar e os preparativos para a vinganccedila dos pretendentes

saltaremos nossa anaacutelise para o Canto XXII Neste o filho de Laertes apoacutes ter planejado sua

vinganccedila apresenta-se para os pretendentes (XXII 35-41) fato marcante que levaraacute agrave chacina

dos mesmos sendo punidos por todo empreendimento que fizeram contra o heroacutei e sua

famiacutelia O Laertida diz a eles que ao arruinarem seus bens violentarem suas servas e

pretenderem sua esposa eles natildeo tiveram medo dos deuses nem da vinganccedila dos homens E

logo apoacutes sua apresentaccedilatildeo Odisseu inicia a matanccedila com a ajuda do seu filho e de alguns

servos

Na ocasiatildeo da chacina dos pretendentes temos marcadamente a ideacuteia de castigo

natildeo sendo nenhum deles poupado de suas accedilotildees apesar da estirpe e de suas nobres famiacutelias

Por isso viratildeo todos os pretendentes sobrerbos padecer pelas matildeos de Odisseu No Canto II

Atena transfigurada em Mentor aconselha Telecircmaco a ir buscar notiacutecias do pai e diz para

que ele natildeo se preocupe com os pretendentes anunciando o fim que restava a todos eles

Vejamos

η λῦλ κλεζηήξσλ κὲλ ἔα βνπιήλ ηε λόνλ ηε

ἀθξαδέσλ ἐπεὶ νὔ ηη λνήκνλεο νὐδὲ δίθαηνη

νὐδέ ηη ἴζαζηλ ζάλαηνλ θαὶ θῆξα κέιαηλαλ

ὃο δή ζθη ζρεδόλ ἐζηηλ ἐπ᾽ ἤκαηη πάληαο ὀιέζζαη104

(Odisseacuteia II 281-284)

Agora despreza os pretendentes como tambeacutem teu plano e teu

dicernimento]

eles insensatos nem satildeo justos nem satildeo disscretos105

natildeo sabem eles que a morte e o negro destino

estatildeo proacuteximos para eles a fim de que todos um dia venham perecer

104

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D23Acard3

D267 retirado agraves 1010h em 25 de outubro de 2010 105

Os destaques satildeo nossos

112

Essa citaccedilatildeo eacute bem interessante para nossa discussatildeo do traacutegico na Odisseacuteia pois

bem podemos fazer a diferenccedila entre o destino dos pretendentes de Odisseu e dos seus soacutecios

O Laertida sofre como vimos passando por situaccedilotildees traacutegicas tanto pela accedilatildeo do daimacrmwn

quanto por sua proacutepria accedilatildeo errocircnea - aumlmartia Mas isso natildeo faraacute que ele tenha um destino

traacutegico e sim algumas vivecircncias Por sua vez seus companheiros passam natildeo soacute por

vivecircncias traacutegicas como tambeacutem possuem o destino traacutegico fruto da ―dupla causalidade

Ou seja suas vivecircncias e destino traacutegicos provecircm tanto pela accedilatildeo do daimacrmwn como tambeacutem

de suas proacuteprias accedilotildees

Assim seja atraveacutes de Odisseu ou dos seus companheiros Homero nos daacute uma

formulaccedilatildeo traacutegica mostrando-nos como heroacuteis experienciam o traacutegico em circunstacircncias

(Odisseu) ou definitivamente em seus proacuteprios destinos (os seus soacutecios) Nestes dois casos

podemos ver vaacuterios dos elementos que compotildee uma accedilatildeo traacutegica a aumlmartia o daimacrmwn a

asup1namacrgkh a uAacutebrij a kaqarsij o fomacrboj a esup1leoj a asup1nagnwiquestrisij Elementos estes

que nos mostram o heroacutei em conflito tendo que necessariamente deliberar e deparar-se com

sua finitude e fragilidade comum a todos os mortais Como vimos ao longo deste toacutepico

somados estes elementos levam o heroacutei a vivenciar o traacutegico (Odisseu) ou a concretizaacute-lo em

seu destino (os seus companheiros) Ressalta-se que aristotelicamente natildeo falta caraacuteter a

esses personagens mas uma accedilatildeo eacute que os encaminha para cataacutestrofe

Poderiacuteamos entatildeo pensar que na chacina ocorrida com os pretendentes temos

aspectos traacutegicos por termos o sofrer destes e muitas mortes em torno de cento e dezesseis

contando com as servas que tambeacutem satildeo punidas por terem traiacutedo seu senhor ajudando os

pretendentes Inclusive ao longo da Odisseacuteia natildeo haacute nem de perto uma quantidade tatildeo

grande de representaccedilotildees de mortes Contudo Homero aleacutem de ter-nos deixado o despontar

de representaccedilotildees traacutegicas legou-nos tambeacutem as natildeo traacutegicas mesmo que superficialmente

pudessem assim ser entendidas Deste modo atraveacutes da chacina dos pretendentes Homero

demonstra-nos que o traacutegico natildeo estaacute necessariamente relacionado agrave morte pois se assim

fosse a corte dos cortejantes agrave matildeo de Peneacutelope seria a cena mais traacutegica na Odisseacuteia

Aristoacuteteles nos ensina (Poeacutetica XIII 1453a 5-6) e Homero representa-nos que

para ocorrer o traacutegico natildeo basta encenar sangue dor e mortes haacute de se ter muitos outros

elementos a exemplo do imerecido para suscitar-nos piedade e a empatia para suscitar-nos

o temor Assim a chacina dos pretendentes nem eacute imerecida porque muito fizeram para

merecer tal castigo nem nos proporciona o temor jaacute que natildeo haacute construccedilatildeo de empatia para

com esses personagens Eacute por isso que Aristoacuteteles diz-nos (Poeacutetica 1453a 7-11) que os

113

heroacuteis com seus caracteres intermediaacuterios satildeo os protagonistas ideais do traacutegico ao contraacuterio

dos muito bons que incitam excesso de piedade e dos muito maus que incitam a satisfaccedilatildeo

humana de ver os maus em decadecircncia Por isso as cento e dezesseis mortes narradas no

Canto XXII representam a puniccedilatildeo de todos os males cometidos pelos pretendentes Males

estes resultantes natildeo apenas de uma accedilatildeo errocircnea mas tambeacutem pela falta de caraacuteter por isso

Atena diz que eles satildeo insensatos injustos e portanto agem sem bom-senso (II 281-284)

A situaccedilatildeo da chacina dos pretendentes natildeo nos incita o traacutegico pois pela falta do

imerecido e da empatia natildeo nos provoca o fomacrboj nem a esup1leoj Ao contraacuterio a nossa

tendecircncia em geral eacute de nos satisfazermos com a representaccedilatildeo dessas muitas mortes porque

consideramos que eles tiveram o fim merecido Basta-nos para entendermos melhor essa

afirmaccedilatildeo lembrar da reaccedilatildeo da ama Euricleacuteia ao ver Odisseu em meio aos corpos todo

ensanguentado Ela natildeo consegue conter a alegria sendo necessaacuteria a intervenccedilatildeo do heroacutei

para que ela se contenha (XXII 411-416) visto que natildeo eacute adequado regozijar perante os

mortos E sobre isso jaacute nos orientava Aristoacuteteles (Poeacutetica 1453a) porque um homem muito

malvado passando da felicidade para infelicidade naturalmente natildeo nos suscita nem temor

nem piedade ao contraacuterio satisfazemo-nos por considerarmos que a justiccedila foi feita e que os

pretendentes e as amas pagaram por seus erros Eacute isso que comemora Euricleacuteia e Odisseu

mostrando sua dignidade e saber reprime-a por natildeo ser divino alegrar-se diante dos que jaacute

foram castigados por seus males Lembremos

ἡ δ᾽ ὡς οὖν νέκυάς τε καὶ ἄσπετον εἴσιδεν αἷμα

ἴθυσέν ῥ᾽ ὀλολύξαι ἐπεὶ μέγα εἴσιδεν ἔργον

ἀλλ᾽ Ὀδυσεὺς κατέρυκε καὶ ἔσχεθεν ἱεμένην περ

καί μιν φωνήσας ἔπεα πτερόεντα προσηύδα

ἐν θυμῶι γρηῦ χαῖρε καὶ ἴσχεο μηδ᾽ ὀλόλυζε

οὐχ ὁσίη κταμένοισιν ἐπ᾽ ἀνδράσιν εὐχετάασθαι

τούσδε δὲ μοῖρ᾽ ἐδάμασσε θεῶν καὶ σχέτλια ἔργα

οὔ τινα γὰρ τίεσκον ἐπιχθονίων ἀνθρώπων

οὐ κακὸν οὐδὲ μὲν ἐσθλόν ὅτις σφέας εἰσαφίκοιτο

τῶι καὶ ἀτασθαλίηισιν ἀεικέα πότμον ἐπέσπον106 (Odisseacuteia XXII 407- 416)

Entatildeo a ama Euricleacuteia viu os cadaacuteveres e o imenso sangue

e eacute verdade que atacou a gritar quando viu o grande trabalho

Mas Odisseu a deteve e decerto segurou sua agitaccedilatildeo

106

Texto disponiacutevel em httpwwwhs-

augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_od22html retirado agraves 1500hs de 15 de julho

de 2010

114

Tambeacutem ele mesmo tendo falado alto dirigia-lhe essas palavras aladas

Na alma velha alegra-te mas natildeo grita reprime pois para si

Natildeo eacute da lei divina manifestar-se assim sobre os homens que perecem

Estes o destino dos deuses submeteu como tambeacutem a seus trabalhos

[funestos

Eles natildeo respeitavam nenhum dos homens viventes da terra

nem o mau nem certamente o bom que a eles se apresentou

E por essas accedilotildees insanas perseguiu-lhes o destino indigno

Essa discussatildeo tambeacutem nos faz recordar da explanaccedilatildeo de Junito Brandatildeo em

Homero e seus poemas deuses mitos e escatologia (1998) a respeito de que a Odisseacuteia

instaura na literatura ocidental representaccedilotildees novas Essas satildeo sobre a ideacuteia de culpa

castigo ―em que a hyacutebris a violecircncia a insolecircncia a ultrapassagem do meacutetron () comeccedilam

a despontar (BRANDAtildeO 1998 p 134) Junito Brandatildeo diz ainda que a culpa traacutegica

como jaacute foi dito no capiacutetulo anterior pode ser realizada de duas formas da hamartia em que

forccedilas superiores impulsionam o homem ao erro (a exemplo dos soacutecios de Odisseu no caso

das vacas do Sol) ou atraveacutes do adikon quando o sujeito deliberadamente sem coaccedilatildeo

comete o erro A esta uacuteltima culpa relacionamos os pretendentes pois por deliberaccedilatildeo

proacutepria intentaram contra Odisseu e sua famiacutelia consumindo seu palaacutecio seus bens

pretendendo sua esposa violentando suas servas aleacutem de terem chegado inclusive a planejar

a morte de seu filho Telecircmaco que soacute natildeo ocorreu por causa da proteccedilatildeo de Atena Assim

Odisseu mata-os para que eles e suas accedilotildees funestas sejam definitivamente reparadas e

abolidas

Atraveacutes de todo o percurso de anaacutelise que fizemos neste toacutepico Odisseacuteia

momentos de tragicidade pudemos perceber as valorosas contribuiccedilotildees que Homero legou-

nos tanto para literatura ocidental como mais especificamente para a trageacutedia grega Esta

desenvolveu os elementos traacutegicos jaacute bem traccedilados por Homero Nesses uacuteltimos paraacutegrafos

constatamos tambeacutem duas contribuiccedilotildees baacutesicas que nos lega Homero a representaccedilatildeo de

como os homens satildeo levados a sofrer vivecircncias traacutegicas (Odisseu) ou destinos traacutegicos (os

soacutecios do heroacutei) como tambeacutem uma amostra de como os personagens mesmo

impiedosamente mortos podem natildeo provocar nenhum sentimento de empatia nenhuma

comoccedilatildeo diante de seu sofrer Deste modo fica-nos evidente o que eacute necessaacuterio para termos

um personagem traacutegico pois natildeo basta o sofrimento ele tem tambeacutem que ter dignidade ser

levado pela asup1namacrgkh e pelo daimacrmwn a cometer a aumlmartia e a uAacutebrij e assim suscitando

o fomacrboj e a esup1leoj levar-nos agrave kaqarsij E essa tragicidade como vimos pode ser

acentuda por outros elementos a exemplo da asup1nagnwiquestrisij em que o personagem traacutegico

115

experiencia tudo com plena consciecircncia Essa accedilatildeo traacutegica apresenta-se para noacutes como

incompreensiacutevel proporcionando-nos uma vivecircncia do espiacuterito traacutegico ao observarmos o

homem defrontando-se com a sua fragilidade e limitaccedilatildeo comum aos mortais

32 TRAGICIDADE NO CANTO XI DA ODISSEacuteIA ANTICLEacuteIA AQUILES

AGAMEcircMNON AacuteJAX

Neste toacutepico realizaremos uma aplicaccedilatildeo teoacuterico-analiacutetica do traacutegico a partir do

Canto XI da Odisseacuteia em especial naqueles momentos em que Odisseu encontra-se no Hades

com a sua matildee Anticleacuteia e seus companheiros em Troacuteia Agamecircmnon Aquiles e Aacutejax Como

veremos o Laertida iraacute ao deparar-se com sua matildee tomar conhecimento de sua morte aleacutem

de constatar que seus antigos companheiros em Troacuteia amarguravam um destino funesto

Agamecircmnon sofre pela desonra de sua morte fruto da traiccedilatildeo da esposa com o amante Egisto

Aquiles inconformado diz-se infeliz em reinar sobre mortos preferindo vivo ser um

trabalhador do campo e Aacutejax mesmo apoacutes a morte encontra-se ainda ressentido pelo fato de

ter perdido as armas de Aquiles para Odisseu Consideramos a anaacutelise que segue o cerne do

nosso trabalho tendo em vista as suas relevantes cenas que nos sugerem o espiacuterito do traacutegico

A afirmaccedilatildeo acima natildeo invalida ou diminui o valor dos capiacutetulos e toacutepicos

anteriores ao contraacuterio eles satildeo os responsaacuteveis pela fundamentaccedilatildeo da nossa anaacutelise

proporcionando-nos uma maior percepccedilatildeo do traacutegico e uma mais clara justificativa do porquecirc

da escolha do Canto XI Neste podemos ver Odisseu apoacutes ter sido orientado por Tireacutesias

passar por um processo cartaacutetico atraveacutes da vivecircncia traacutegica que passa junto a Anticleacuteia

Agamecircmnon Aquiles e Aacutejax E assim por meio de sua catarse estaraacute pronto para prosseguir

seu objetivo alcanccedilar um destino glorioso de retorno e consagraccedilatildeo domeacutestica

Odisseu comunicado por Circe que deveria ir ao Hades desespera-se (X 496-

498) por saber que pouquiacutessimos homens tiveram esse privileacutegio Aflito e angustiado o heroacutei

teme natildeo ser capaz de tatildeo grande empreitada Contudo o que o aguarda no Hades eacute ainda

pior deparar-se com a matildee que havia deixado a vida como eiAtildedwlon morta e ouvir todas as

desventuras dos companheiros que antes alcanccedilaram a gloacuteria em Troacuteia

Entendamos como ocorre a chegada de Odisseu ao Hades e como seratildeo seus

encontros traacutegicos O Canto XI da Odisseacuteia inicia-se com Circe agrave beira mar enviando ventos

116

propiacutecios para Odisseu e seus companheiros Nesse momento percebamos que os mortos

comeccedilam a aproximar-se do heroacutei e quem o faz primeiro eacute Elpenor antigo soacutecio e que veio a

padecer Com a visatildeo o heroacutei sente o coraccedilatildeo apertar e vertendo laacutegrimas pergunta como ele

morreu O seu antigo soacutecio apoacutes responder suas perguntas pede para que seja sepultado

erguendo um monumento na beira do mar e fincando o remo que usara Como percebemos

Elpenor sente falta de ter seus ritos fuacutenebres realizados ateacute porque ele que combateu em

Troacuteia e que vagou com Odisseu por terras e mares morreu sem ao menos ter uma laacutepide

para lembrar sua morte Assim para evitar esse imerecido esquecimento de um companheiro

Odisseu logo se compromete a realizar seu desejo

Entatildeo apoacutes Elpenor distanciar-se a matildee do Laertida aparece Essa eacute a primeira

experiecircncia traacutegica que Odisseu tem no Hades ateacute mesmo porque ele natildeo sabia ainda da

morte da matildee jaacute que ao partir para Troacuteia havia deixado-a com vida em Iacutetaca Perante tal

visatildeo o heroacutei potildee-se a chorar pois ao ter aceitado o desafio de ir ao Hades natildeo havia

imaginado que em meio a dolorosa visatildeo das sombras encontraria sua matildee como mais uma

alma dos mortos (XI 87) Mas como ele tinha que primeiro falar com Tireacutesias o Laertida natildeo

deixa a matildee aproximar-se do sangue Para entendermos todo o cenaacuterio com o qual Odisseu

depara-se no Hades logo no iniacutecio do Canto XI em que o deinoj107 apodera-se do heroacutei

apoacutes ele ter feito todos os rituais vejamos o que nos explica Vernant (2000)

Entatildeo percebe que estaacute vindo em sua direccedilatildeo a multidatildeo formada pelos que

natildeo satildeo ningueacutem ouacutetis como ele pretendeu ser Satildeo os sem-nome os

noacutemymnoi os que natildeo tem mais rosto que natildeo satildeo mais visiacuteveis que natildeo

satildeo mais nada Formam uma massa indistinta de seres que outrora foram

indiviacuteduos mas dos quais natildeo se sabe mais nada Dessa massa que desfila a

sua frente sobe um rumor apavorante e indistinto Eles natildeo tem nome natildeo

falam eacute um barulho caoacutetico Ulisses eacute envadido por um medo terriacutevel diante

desse espetaacuteculo que representa a seus olhos e ouvidos a ameaccedila de uma

dissoluccedilatildeo completa num magma disforme sendo sua palavra tatildeo haacutebil

afogada num rumor inaudiacutevel sua gloacuteria sua fama e sua celebridade caindo

no esquecimento (VERNANT 2000 112-113)

Diante desta cena observamos que Odisseu fica rodeado por uma massa de

sombras sem nome sem rosto sem gloacuteria o que logo ao iniacutecio do Canto XI faz com ele ele

seja apoderado pelo sentimentos de foboj E este sentimento de temor inspirado o foboj

que eacute o medo que faz fugir que propicia ao heroacutei o desejo de querer afastar-se da morte

107

Em Retoacuterica das Paixotildees Aristoacuteteles diz que ao depararmo-nos com um parente proacuteximo em situaccedilatildeo

dolorosa o que sentimos natildeo eacute compaixatildeo e sim o deinoj Ou seja experienciamos o terriacutevel o apavorante por

tal fato narrado estaacute muito proacuteximo de noacutes

117

buscando retornar a Iacutetaca para que natildeo venha ser mais uma dessas sombras esquecidas

disformes e indistintas como as que ele se depara no Hades Pois toda a busca que Odisseu

faz desde que saiu de Troacuteia para retornar a Iacutetaca natildeo simboliza apenas o desejo de voltar

para casa e para os seus familiares mas tambeacutem o de fugir impelido pelo foboj da morte

desonrosa que o levaria ao esquecimento e tornaria-o mais um deinoj entre tantos que sem

gloacuteria vagueiam no Hades

E no decorrer da narrativa apoacutes a visatildeo amedrontadora das sombrasTireacutesias entatildeo

aparece e pede-lhe para recolher a espada para que possa provar do sangue e dizer-lhe toda a

verdade Observemos atraveacutes desta fala do adivinho que tudo o que ele vier a contar seraacute

verdade pois tendo Odisseu feito o ritual conforme Circe indicara todas as sombras soacute

poderatildeo falar a verdade para o heroacutei Assim o tebano prenuncia tudo o que o heroacutei teraacute que

enfrentar desde a sua saiacuteda do Hades ateacute o procedimento que deve ter ao chegar em Iacutetaca

Revela-lhe a perseguiccedilatildeo de um deus que atrapalharaacute o seu retorno mas natildeo o impediraacute caso

consiga refrear a sua cobiccedila e dos seus soacutecios diz-lhe ainda que ao chegar em Iacutetaca

enfrentaraacute muitos trabalhos pois homens soberbos destroem seus bens e pretendem sua

esposa Mas Tireacutesias tranquiliza-o com seu destino dizendo-lhe que ao chegar em Iacutetaca daraacute

castigo a todos os pretendentes (XI 118) Tireacutesias avisa ao heroacutei que conseguiraacute evitar o

destino traacutegico apoacutes cumprir as empreitadas reveladas e realizar os rituais sagrados Tudo

isso para que apoacutes vivenciar tantos momentos traacutegicos Odisseu possa enfim viver com sua

famiacutelia tranquilamente ateacute que a doce morte venha pegaacute-lo (XI 134-137)

Contudo sabemos que antes de vir a alcanccedilarr o seu pretenso destino Odisseu teraacute

que enfrentar muitos desafios e muitos momentos traacutegicos Momentos estes que ele enfrentaraacute

ainda no Hades atraveacutes dos encontros que com sua matildee e com alguns companheiros de Troacuteia

Assim tendo Tireacutesias terminado as revelaccedilotildees sobre o destino do heroacutei este pergunta-o o

porquecirc da indiferenccedila de sua matildee que natildeo o fala (XI 140-144) Esse questionamento do

filho de Laertes demonstra-nos sua inconformidade de enfrentar aleacutem da visatildeo da matildee morta

sua indiferenccedila e renuacutencia de falar-lhe O adivinho diz para o heroacutei deixaacute-la aproximar-se do

sangue a fim de que lhe fale tambeacutem soacute a verdade Esse ritual deve ser realizado com toda e

qualquer sombra com a qual Odisseu deseje falar

Como sabemos as pessoas com as quais Odisseu comeccedilaraacute a falar jaacute estatildeo mortas

Por isso gostariacuteamos de elucidar a condiccedilatildeo em que se encontra a consciecircncia dessas pessoas

Para entendermos o niacutevel de coerecircncia e verossimilhanccedila desses diaacutelogos primeiro resaltamos

que como foi avisado por Tireacutesias toda a sombra que Odisseu deixasse aproximar-se do

118

sangue iria falar-lhe apenas a verdade enquanto as demais recuariam Ou seja podemos

compreender logo que toda a sombra que se aproximar de Odisseu falaraacute fatos verdeiros

sem ilusotildees ou inverdades Aleacutem disso eacute significativo sabermos que geralmente ―() no

Hades a psiqueacute o eiacutedolon eacute uma sombra uma imagem paacutelida e inconsistente abuacutelica

destituiacuteda de entendimento sem precircmio nem castigo (BRANDAtildeO 1998 p 146) No

entanto o eiAtildedwlon 108

essa sombra abuacutelica e paacutelida como diz-nos Junito Brandatildeo (1998)

pode recuperar por alguns instantes a razatildeo mediante um complexo ritual como o que foi

detalhadamente descrito no Canto XI da Odisseacuteia (v 20-50) Perante tais consideraccedilotildees

sabemos que aleacutem de falarem a verdade as sombras que dialogam com Odisseu tecircm

recuperadas as consciecircncias e portanto falam com racionalidade pois o filho de Laertes

cumpriu com todos os rituais necessaacuterios

Neste momento em que entendemos a condiccedilatildeo mental do eiAtildedwlon

prosseguimos a nossa anaacutelise Como vimos o esposo de Peneacutelope falara com Tireacutesias e sabia

como proceder para conquistar seu desejado retorno O vate parte e Odisseu interessado em

falar com a matildee deixa ela se aproximar do sangue para poder falar-lhe Anticleacuteia aproxima-

se reconhece o filho instantaneamente e pergunta o que ele faz no Hades e se jaacute havia

retornado a seu paiacutes O eiAtildedwlon de sua matildee natildeo entende o porquecirc de o filho estar ali local

sobre o qual ela afirma ser aos vivos tatildeo difiacutecil de contemplar (XI 156) Odisseu responde-

lhe e pergunta-lhe como estatildeo seu pai seu filho sua esposa seu palaacutecio enfim Sobre a

esposa ela diz que vive em prantos sem fim (XI 182-183) o filho sozinho administra o

palaacutecio e seu pai passou a dormir no inverno junto aos servos e no veratildeo dorme sobre as

folhas no chatildeo vivendo triste agrave espera do filho amado jaacute ela proacutepria veio a falecer de

saudades Vejamos com detalhes o discurso de Anticleacuteia sobre as dores sentidas por ela e

pelo marido

νὔη᾽ ἐκέ γ᾽ ἐλ κεγάξνηζηλ ἐύζθνπνο ἰνρέαηξα

νἷο ἀγαλνῖο βειέεζζηλ ἐπνηρνκέλε θαηέπεθλελ

νὔηε ηηο νὖλ κνη λνῦζνο ἐπήιπζελ ἥ ηε κάιηζηα

ηεθεδόλη ζηπγεξῇ κειέσλ ἐμείιεην ζπκόλ

ἀιιά κε ζόο ηε πόζνο ζά ηε κήδεα θαίδηκ᾽ δπζζεῦ

ζή η᾽ ἀγαλνθξνζύλε κειηεδέα ζπκὸλ ἀπεύξαlsquo109

(Odisseacuteia XI 198-203)

108

Essa palavra deriva do grego eiAtildedwlon que segundo Romizi (2007) significa o aspecto a imagem de um

morto Por isso relaciona-se agrave figura de um fantasma de uma imaginaccedilatildeo de uma sombra 109

Texto diponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D113Acard3

D180 retirado agraves 0718h em 05 de novembro de 2010

119

No uqarto natildeo me matou a arqueira perspicaz

com suas lanccedilas gentis vindo-me de encontro

nem foi doenccedila que me veio para o grande

definhamento abominaacutevel e que o acircnimo dos membros tirou-me

Mas por ti notaacutevel Odisseu a saudade de ti as preocupaccedilotildees contigo

a tua gentileza e doccedilura tudo isso arrebatou minha vida

O heroacutei apoacutes jaacute ter enfrentado tantos desafios e por longo tempo ter ficado errante

por mar e por terra suportando hostilidades de povos diversos depara-se com uma nova

empreitada realizada por poucos de ir ao Hades e voltar No territoacuterio dos mortos depara-se

ainda com uma amedrontadora imagem e barulho sendo rodeado por sombras diversas

paacutelidas sem rosto e sem razatildeo O deinoj apodera-se do heroacutei Mas muito ainda o aguardava e

ele que ao sair de Iacutetaca havia deixado sua matildee viva vem encontraacute-la morta Todavia isso natildeo

eacute suficiente para um heroacutei de tantas dores por isso Anticleacuteia revela-lhe que sua esposa

Peneacutelope vive em pranto infindo e que seu pai Laertes vive plenamente triste e

acabrunhado suportando a velhice E mais ainda ela revela que natildeo a matou a velhice ou a

deusa frecheira mas o proacuteprio filho Odisseu e a saudade que ele deixara O Laertida apesar

de heroacutei eacute um mortal como os demais homens e a estes como diz-nos Vernant (2006) em

Mito e religiatildeo na Greacutecia Antiga as dores e os sofrimentos satildeo comuns E eacute esse caraacuteter

humano que faz dos heroacuteis personagens propensos a do alto do seu heroiacutesmo caiacuterem como

os mortais comuns em tragicidade O traacutegico como vemos ao longo deste trabalho eacute fato

comum na trajetoacuteria de Odisseu apesar de natildeo o ser em seus destinos pois

A Odisseu favorece um destino (moicurrenra) epecial que de fato natildeo estaacute dirigido

para morte mas natildeo obstante o caraacuteter negativo da Moira denuncia-se aiacute

com muita clareza ele deve atravessar graves sofrimentos () Tambeacutem

neste caso o fado trava eacute retributivo ―ainda natildeo ateacute que ndash este eacute o

autecircntico tom da Moira110

()

( OTTO 2005 p 245)

Apesar de estarmos no iniacutecio da anaacutelise fica-nos claro que mesmo diante do

destino fechado de Odisseu a Moicurrenra persegue-o para que antes de gozar de seu prestiacutegio

em Iacutetaca venha passar por muitas dores e sofrimentos Sofrimentos como os que estamos

estudando sua matildee conta-lhe que por culpa so proacuteprio heroacutei Peneacutelope chora infinitamente

seu pai Laertes vive incondicionalmente triste e ela mesma desceu ao Hades por culpa dele

natildeo suportando as saudades Assim tragicamente Odisseu vecirc-se sem o merecer como

culpado pela morte da matildee amada e do sofrer de seu pai e de sua esposa Daiacute decorrer a

110

Os destaques satildeo nossos

120

inocecircncia traacutegica que Romilly diz ser encontrada nas trageacutedias pois ―() mesmo quando nos

satildeo apresentados como culpados mesmo quando suas accedilotildees os arrastam satildeo-no porque o erro

eacute o lote do homem ou porque correspondem a situaccedilotildees que satildeo igualmente o lote do

homem (ROMILLY 2008 p 175)

Assim mesmo sem uma accedilatildeo direta Odisseu eacute responsabilizado pelos

sofrimentos dos seus familiares e principalmente pela morte de sua matildee (Odisseacuteia XI 195-

203) Tal constataccedilatildeo faz-nos recordar de Aristoacuteteles ao afirmar que as cataacutestrofes satildeo mais

traacutegicas quando ocorrem entre familiares

Ὅταν δ᾽ ἐν ταῖς φιλίαις ἐγγένηται τὰ πάθη οἷον ἢ ἀδελφὸς

ἀδελφὸν ἢ υἱὸς πατέρα ἢ μήτηρ υἱὸν ἢ υἱὸς μητέρα ἀποκτείνηι ἢ

μέλληι ἤ τι ἄλλο τοιοῦτον δρᾶι ταῦτα ζητητέον111 (Ibidem XIV

1453b 20-23)

Quando estas cataacutestrofes realizam-se em amizades ou com um irmatildeo que

mata irmatildeo ou um filho que mata o pai ou a matildee que mata o filho ou o

filho que mata a matildee ou quando vecircm ocorrer alguma outra coisa desta

natureza estas coisas tecircm que ser buscadas

Naturalmente entendemos essa concepccedilatildeo aristoteacutelica de que um contexto de

tragicidade entre familiares eou entre personagens que cultivam amizade proporcia maior

comoccedilatildeo e sofrimento sendo portanto ainda mais efetivo para a manifestaccedilatildeo do sentimento

traacutegico Para entendermos tal posiccedilatildeo basta-nos lembrar de Aristoacuteteles dizendo que em meio

agrave dor sofrimentos e mortes aproximamo-nos da cataacutestrofe e portanto do traacutegico (Poeacutetica

1452b 12-14) E esse fato eacute reforccedilado pela fala do porqueiro antigo servo de Odisseu e do

seu pai que no Canto XV ao ser perguntado pelo mendigo (Odisseu) qual o destino de

Laertes e Anticleacuteia responde que Laertes apesar de vivo pede a morte e que Anticleacuteia morta

de saudades teve o pior dos fins

ἡ δ᾽ ἄρετ νὗ παηδὸο ἀπέθζηην θπδαιίκνην

ιεπγαιέῳ ζαλάηῳ ὡο κὴ ζάλνη112

ὅο ηηο ἐκνί γε

ἐλζάδε λαηεηάσλ θίινο εἴε θαὶ θίια ἔξδνη113

111

Texto disponiacutevel em httpwwwhs-

augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante04Aristotelesari_poi2html agraves 2035hs de 17 de julho de

2010 112

Nessa citaccedilatildeo temos trecircs verbos no modo optativo qanoi de qnhskw- morrer eiAtildeh de e)aw- permiter

deixar ocorrer e eAtilderdoi de eAtilderdw- fazer Essa observaccedilatildeo eacute importante pois essa forma lingiacutestica exprime de

modo coerente o contexto da passagem citado Isso porque o optativo exprime a possibilidade o voto o desejo

(MURACHO 2007) Assim o porqueiro exprime seu desejo de que seus conhecidos natildeo tenham a mesma morte

da matildee de Odisseu por isso traduzimos ―que ningueacutem morra ―quenatildeo ocorra ―que natildeo se faccedila

121

(Odisseacuteia XV 358-360)

Ela pereceu pela anguacutestia da morte miseraacutevel e sem gloacuteria

do filho Que ningueacutem meu morra assim que isso natildeo ocorra ao

habitante daqui amigo e que natildeo se faccedila ao que me eacute querido

Atraveacutes da fala de Eumeu o porqueiro percebemos que ele compreende que eacute

muito doloroso morrer indiretamente por culpa de um ente amado E assim diante dessa

morte estruturalmente dolorosa ele pede aos deuses para que ningueacutem em sua ilha ou com

quem ele tenha afeto venha padecer de tatildeo horrorosa morte Padecimento este em que um

filho leva a matildee agrave morte mesmo sem intenccedilatildeo e muito menos sem accedilatildeo direta Odisseu de

forma imerecida torna-se o culpado pelas dores da famiacutelia e pela morte da matildee que foi gerada

pela accedilatildeo da Moicurrenra e do daimacrmwn A riqueza dos detalhes dessa morte somada ao contexto

em que ela foi gerada faz com que esta morte na narrativa seja presentificada aumentando

sua tragicidade Por isso Odisseu natildeo se conteacutem e apoacutes ouvir o relato da matildee que soa para

ele como tortura ele exclama

―ὣο ἔθαη᾽ αὐηὰξ ἐγώ γ᾽ ἔζεινλ θξεζὶ κεξκεξίμαο

κεηξὸο ἐκῆο ςπρὴλ ἑιέεηλ θαηαηεζλεπίεο

ηξὶο κὲλ ἐθσξκήζελ ἑιέεηλ ηέ κε ζπκὸο ἀλώγεη

ηξὶο δέ κνη ἐθ ρεηξλ ζθηῇ εἴθεινλ ἢ θαὶ ὀλείξῳ

ἔπηαη᾽114

(Odisseacuteia XI 205-209)

Dizia eu desejava tecirc-la ao peito mas tendo-a apertado

o espiacuterito da minha matildee morta escapava-me

O acircnimo comandava-me e por trecircs vezes apertei-a

por trecircs vezes tambeacutem como se fosse sombra ou sonho

dos meus braccedilos ela se evolou

Natildeo bastasse todo o relato da matildee pondo-o como responsaacutevel por sua morte

Odisseu para atenuar a dor tenta abraccedilaacute-la por trecircs vezes em vatildeo O heroacutei natildeo compreende

que o corpo anterior de sua matildee agora eacute um eiAtildedwlon mais uma sombra entre tantas outras

vagantes no Hades E esse aspecto do morto intocaacutevel e natildeo palpaacutevel por natureza impede-o

de abraccedilar a matildee e aleacutem do mais isso o faz perceber que aquela eacute uma imagem de sua matildee

de outrora Mas resistindo ao reconhecimento (asup1nagnwiquestrisij) desse fato que sua matildee agora

113

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D153Acard3

D185 retirado agraves 1352h em 10 de novembro de 2010 114

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D113Acard3

D180 retirado agraves 1352h em 10 de novembro de 2010

122

eacute mais um eiAtildedwlon Odisseu tenta agarraacute-la por trecircs vezes Em todas as tentativas

naturalmente ele se frustra por isso questiona agrave matildee o porquecirc daquilo e desconfia se natildeo

seria mais um castigo dessa vez enviado por Perseacutefone enganando-o e iludindo-o atraveacutes de

um fantasma Ela poreacutem explica-lhe que com a morte a carne e os ossos deixam os tendotildees

Isto eacute apoacutes a morte natildeo haacute mais o corpo anterior firme e palpaacutevel o que resta eacute apenas uma

sombra do que foi sombra esta que eacute exatamente o eiAtildedwlon Depois disso Anticleacuteia antes

de partir avisa ao filho que guarde o que ouviu para poder contar em Iacutetaca

Odisseu narra tudo isso aos Feaacutecios que quietos a tudo ouvem E no instante em

que o filho de Laertes pausa seu canto a rainha dos Feaacutecios Arete promete dar-lhe presentes

e Alciacutenoo garante que daraacute o pretenso retorno ao heroacutei Este agradece O rei da Feaacutecia entatildeo

pede para que relate se viu algum dos guerreiros que junto a ele combateu em Troacuteia pois

todos suportariam o sono para ouvi-lo Odisseu diz que se estatildeo dispostos a ouvir ele

continuaraacute a narrativa e assim o faz Diz que narraraacute fatos ainda mais graves pois viu padecer

seus companheiros diletos vitoriosos em Troacuteia O primeiro deles a aproximar-se eacute

Agamecircmnon que bebe do sangue e realiza altos gemidos estendendo as matildeos para Odisseu

Este percebe que o Atrida natildeo tem mais o vigor de antes quando em Troacuteia comandava os

guerreiros e diante dessa imagem o filho de Laertes sente o peito apertar e potildee-se a chorar

(Odisseacuteia XI 391-395)

Na guerra de Troacuteia Agamecircmnon era o detentor do cetro o aAtildenac asup1ndrwIacuten o

senhor dos heroacuteis era o responsaacutevel por comandar todos os gregos Nessa passagem Odisseu

dapara-se com o rei de Micenas o supremo chefe dos aqueus elevando altos gemidos

estendendo as matildeos como em pedido de auxiacutelio tambeacutem sem vigor nos membros Diante da

cena Odisseu com o peito apertado vai agraves laacutegrimas A cena suscita a esup1leoj pois

aristotelicamente sente-se compaixatildeo ao ver-se em semelhante desventura Mas Odisseu

ainda natildeo sabe o porquecirc da morte do Atrida e pergunta se foi obra de Posiacutedon de inimigos na

disputa de mulheres ou na conquista de cidades Agamecircmnon nega essas opccedilotildees e responde

ἀιιά κνη Αἴγηζζνο ηεύμαο ζάλαηόλ ηε κόξνλ ηε

ἔθηα ζὺλ νὐινκέλῃ ἀιόρῳ νἶθόλδε θαιέζζαο

δεηπλίζζαο ὥο ηίο ηε θαηέθηαλε βνῦλ ἐπὶ θάηλῃ

ὣο ζάλνλ νἰθηίζηῳ ζαλάηῳ πεξὶ δ᾽ ἄιινη ἑηαῖξνη

λσιεκέσο θηείλνλην () ἤδε κὲλ πνιέσλ θόλῳ ἀλδξλ ἀληεβόιεζαο

κνπλὰμ θηεηλνκέλσλ θαὶ ἐλὶ θξαηεξῇ ὑζκίλῃ

ἀιιά θε θεῖλα κάιηζηα ἰδὼλ ὀινθύξαν ζπκῶ

123

ὡο ἀκθὶ θξεηῆξα ηξαπέδαο ηε πιεζνύζαο

θείκεζ᾽ ἐλὶ κεγάξῳ δάπεδνλ δ᾽ ἅπαλ αἵκαηη ζῦελ115

(Odisseacuteia XI 409-413416-420)

Mas a mim Egisto causou a morte e o destino desgraccedilado

pois junto com minha esposa maldita ao chamar-me em sua casa para um

banquete]

matou-me do modo como algueacutem mata um boi na manjedoira

Assim morri da morte mais lamentaacutevel ao meu redor os demais

companheiros]

eles mataram continuamente ()

Jaacute presenciaste a morte de muitos guerreiros

seja morrendo em combates individuais ou em batalha poderosa

Mas tendo visto aquilo sofrerias muitiacutessimo no coraccedilatildeo

pois ao redor de crateras e mesas que tinham estado haacute pouco cheias

estaacutevamos deitados no salatildeo com o chatildeo todo ensanguumlentado116

Agamecircmnon ainda completa que mais doloroso foi ouvir os gritos de Cassandra

descendente dos troianos trazida por ele para servir-lhe como escrava Diante da narraccedilatildeo

acima podemos perceber muitos elementos que nos indicam a presenccedila do traacutegico Tanto que

Eacutesquilo (2004) iraacute se inspirar nesse episoacutedio para a composiccedilatildeo de sua trilogia traacutegica a

Oresteacuteia Desse modo o aAtildenac asup1ndrwIacuten apoacutes aacuterdua batalha em Troacuteia aguarda ser recebido

por festas e consagraccedilotildees em sua terra Mas o que o aguarda eacute a morte funesta elaborada por

sua esposa Clitemnestra junto com o seu amante Egisto Por isso o Atrida

conscientemente afirma ―ὣς θάνον οἰκτίστωι θανάτωιrdquo117 isto eacute ―Assim morri com a

morte mais lamentaacutevel (Odisseacuteia Canto XI v 412)

Eacute atraveacutes de passagens como essa que Homero lega aos tragedioacutegrafos o espiacuterito

traacutegico e seu contexto em que os deuses natildeo mais satildeo o siacutembolo da proteccedilatildeo como eacute comum

vermos na eacutepica Eles agora implusionam o homem para o erro este que por sua vez levaraacute o

homem ao traacutegico Pois os deuses ―jaacute natildeo mais iluminam antes seduzem e transviam eacute o

caminho da queda (OTTO 2005 p 259) como seraacute tiacutepico da trageacutedia no seacuteculo V aC

Temos a accedilatildeo da Moicurrenra impelindo o heroacutei para o destino mais catastroacutefico a morte sem

gloacuteria sem nobreza Nos diaacutelogos entre Odisseu com os antigos companheiros em Troacuteia

como eacute o caso do citado com Agamecircmnon percebemos que esses heroacuteis antes tatildeo protegidos

115

Retirado de

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D113Acard3

D40 retirado agraves 1426h em 10 de novembro de 2010 116

Destaque nosso 117

Verso disponiacutevel em

httpwwwhsaugsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_od11html agraves 1533hs ded 12

de julho de 2010

124

pelas divindades como ocorre na Iliacuteada vecircem-se desolados nas matildeos do destino Este guarda

para eles a morte funesta como uacuteltimo grande legado pois ―() eacute o destino da vida natildeo

alcanccedilar tais e tais coisas falhar aqui e ali e finalmente decair () (Ibidem p 258)

Entre os versos 412-413 o Atrida abatido pela morte vergonhosa sugere-nos

mais um elemento traacutegico que Vernant trata em Mito e Trageacutedia na Greacutecia Antiga (2008

p2) o heroacutei deixou de ser soluccedilatildeo para figurar como problema natildeo apenas para si mas

tambeacutem para os outros Assim o aAtildenac asup1ndrwIacuten que antes no comando dos demais heroacuteis

saiu vencedor na guerra de Troacuteia torna-se presa na matildee da esposa e do seu amante

Ao desembarcar em Argos o rei traz a vitoacuteria para os seus e em contrapartida

recebe a morte por matildeos familiares Contudo a morte natildeo atinge apenas o rei que pelo

miasmoj118 de sua famiacutelia e por accedilotildees proacuteprias deveria ser punido mas tambeacutem seus

companheiros que satildeo vitimados sem culpa nenhuma mesmo sem descenderem dos Atridas

nem serem responsaacuteveis pela morte de Ifigecircnia119

Mesmo assim imerecidamente eles que

pensavam ser exaltados ao retornarem agrave paacutetria satildeo tragicamente mortos

O mesmo ocorre com Cassandra pois apesar de natildeo cometer aumlmartia ou

uAacutebrij tem tambeacutem uma morte traacutegica ligada ao aspecto irracional do imerecido Assim

aquele rei que antes solucionava os problemas do seu povo torna-se o culpado pela morte sua

dos seus companheiros e de Cassandra que ele havia trazido como geiquestraj precircmio de guerra

Este distingue o heroacutei dos demais aleacutem de assegurar-lhe a timh120 a honra E para desonra e

humilhaccedilatildeo completa de Agamecircmnon Clitemnestra e Egisto natildeo apenas o matam mas

tambeacutem aniquilam Cassandra Assim natildeo vive nem mais a lembranccedila do heroacutei eacutepico que foi

Agamecircmnon nem o seu geiquestraj simbolizava Ao contraacuterio com a morte de Cassandra e dos

demais fica-nos o siacutembolo do Atrida como o heroacutei traacutegico que acarretou problema para si e

para os demais

Tendo reconhecido sua figuraccedilatildeo traacutegica Agamecircmnon ainda completa que apesar

de Odisseu jaacute ter presenciado todo o tipo de morte ainda assim ―ἀιιά θε θεῖλα κάιηζηα ἰδὼλ

118

Este termo indica a ―contaminaccedilatildeo transcendental que neste caso pode ser exemplificada pela

contaminaccedilatildeo gerada pela famiacutelia Atrida atraveacutes de fatos como por exemplo o Banquete de Tiestes e por isso

seus descendentes contaminados teriam de pagar pelos erros do passado sendo aniquilados 119

Essa referecircncia deve-se ao fato de que Clitemnestra utiliza como justificativa para matar o esposo o fato de

ele ter lhe tirado a querida filha Isso pode ser melhor avaliado atraveacutes de Ifigecircnia em Aacuteulis de Euriacutepedes (2002) 120

Para entendermos a importacircncia da timh para um heroacutei grego conveacutem voltarmos ao iniacutecio do primeiro

capiacutetulo do nosso trabalho em que fazemos um comentaacuterio elucidador a este respeito relacionando-a com

Aquiles na Iliacuteada

125

ὀινθύξαν ζπκῶ ―() ante aquele espetaacuteculo terias sentido piedaderdquo121

(XI 418) Neste

verso encontramos dois fatos que reforccedilam nossa tese A primeira eacute que nesse Canto XI

Odisseu presencia uma espeacutecie de ―espetaacuteculo traacutegico o que pode ser observado atraveacutes dos

detalhes que satildeo dados das cenas em que ocorre a accedilatildeo aleacutem de todos os elementos traacutegicos

como a morte por matildeo parental imerecida inesperada acarretando a desonra do heroacutei enfim

Detalhes esses que apesar de Odisseu apenas estar ouvindo propiciam-lhe uma vivecircncia do

fato traacutegico como se eles estivessem se realizando sob os seus olhos proporcionando-o uma

imagem teatral O proacuteprio narrador neste caso Agamecircmnon ao fazer a descriccedilatildeo de sua

morte refere-se a ela como um ―espetaacuteculo122

Nos versos acima a exemplo de ―Quando nos

visses no meio dos copos e mesas repletas pelo salatildeo a fazer e no soalho a sangueira

escorrendo a riqueza dos detalhes nos proporciona visualizar o narrado como uma imagem

presentificada aos nossos olhos Assim Odisseu como espectador desse ―teatro traacutegico

apieda-se

No iniacutecio do paraacutegrafo anterior dissemos que no verso 418 do Canto XI haacute dois

fatos que reiteram nossa proposta de anaacutelise O primeiro sobre o qual jaacute comentamos refere-

se agrave ―encenaccedilatildeo traacutegica que no Canto XI desenrola-se por meio dos diaacutelogos aos olhos de

Odisseu O segundo diz respeito ao que defendemos desde o iniacutecio deste trabalho sobre o

despertar do sentimento de piedade que seraacute gerado principalmente a partir dos encontros

que o heroacutei tem no Hades O sentimento de esup1leoj como enfatizamos eacute fator importante para

que tenhamos a kaqarjij desde que esteja junto a um outro sentimento que eacute o fomacrboj

(Poeacutetica XIII 1453a 5-6)

Como sabemos a esup1leoj eacute suscitada quando nos deparamos com o imerecido

Relacionando essa assertiva com a anaacutelise do Canto XI da Odisseacuteia percebamos que

Agamecircmnon narra a forma de sua morte de seus companheiros e de Cassandra Mortes estas

que de modo geral relacionam-se ao imerecido123

Portanto entendamos que o Atrida pelo

121

Destaque nosso 122

Esse espetaacuteculo traacutegico ao qual nos referimos e que eacute presentificado neste Canto XI foi responsaacutevel por

influenciar os autores traacutegicos do seacuteculo V a exemplo de Eacutesquilo (2004) Este inspirado na cena traacutegica jaacute

iniciada por Homero produziu as suas na trageacutedia Vejamos tambeacutem a riqueza dos detalhes jaacute que a morte natildeo

era encenada e sim anunciada pelo coro

ὤκνη κνη θνίηαλ ηάλδ᾽ ἀλειεύζεξνλ

δνιίῳ κόξῳ δακεὶο

ἐθ ρεξὸο ἀκθηηόκῳ βειέκλῳ

(Agamecircmnon v 1513 -1520)

Oacutemoi oacutemoi Neste indigno repouso

Tendo sido dominado sob trapaceira sorte

Pela matildeo com arma cortante de ambos os lados

123

Para podermos compreender melhor o sentido traacutegico dessas mortes seria necessaacuterio um estudo mais

especiacutefico da trageacutedia Agamecircmnon (2004) que neste momento natildeo eacute o nosso objetivo

126

fato de carregar desde o seu nascimento uma maacutecula transcendental (miasmoj) de sua

famiacutelia estaacute fadado a cometer a aumlmartia124 que por sua vez iraacute levaacute-lo agrave morte imerecida

E Odisseu sente compaixatildeo ao ver o seu comandante em Troacuteia vigoroso rei em choro

incontido Jaacute em relaccedilatildeo agrave morte dos seus companheiros e de sua escrava Cassandra esse

imerecido eacute bem mais claro de entender jaacute que eles nada fizeram para merecer esse triste fim

pois ateacute mesmo a relaccedilatildeo que tinham com o rei era de subordinaccedilatildeo Por isso a descriccedilatildeo

dessas imerecidas mortes eacute traacutegica inspirando em Odisseu a esup1leoj

Deste modo para reiterar nossa defesa de que nos diaacutelogos do Canto XI Odisseu

iraacute experienciar a kaqarjij inspirado pelo fomacrboj e pela esup1leoj consideramos importante

recorrermos agrave Retoacuterica das Paixotildees de Aristoacuteteles (2003) Assim vejamos primeiramente o

que Aristoacuteteles (2003) define sobre a esup1leoj E discorrendo sobre a compaixatildeo o filoacutesofo

daacute-nos tambeacutem uma informaccedilatildeo de que para sentirmos a piedade temos que estar vulneraacuteveis

a pensar que o mal com o qual nos compadecemos tambeacutem pode ocorrer conosco ou com

quem amamos

ἔζησ δὴ ἔιενο ιύπε ηηο ἐπὶ θαηλνκέλῳ θαθῶ θζαξηηθῶ ἢ ιππεξῶ ηνῦ

ἀλαμίνπ ηπγράλεηλ ὃ θἂλ αὐηὸο πξνζδνθήζεηελ

ἂλ παζεῖλ ἢ ηλ αὑηνῦ ηηλα θαὶ ηνῦην ὅηαλ πιεζίνλ θαίλεηαη δῆινλ γὰξ ὅηη

ἀλάγθε ηὸλ κέιινληα ἐιεήζεηλ ὑπάξρεηλ ηνηνῦηνλ νἷνλ νἴεζζαη παζεῖλ ἄλ ηη

θαθὸλ ἢ αὐηὸλ ἢ ηλ αὑηνῦ ηηλα θαὶ ηνηνῦην θαθὸλ νἷνλ εἴξεηαη ἐλ ηῶ ὅξῳ

ἢ ὅκνηνλ ἢ παξαπιήζηνλ125

(Retoacuterica das Paixotildees II 8 13-18)

Seja entatildeo a compaixatildeo certo pesar por um mal que se mostra destrutivo ou

penoso e atinge quem natildeo o merece mal que poderia esperar sofrer a

proacutepria pessoa ou um de seus parentes e isso quando esse mal parece

iminente com efeito eacute evidentemente necessaacuterio que aquele que vai sentir

compaixatildeo esteja em tal situaccedilatildeo que creia poder sofrer algum mal ou ele

proacuteprio ou um de seus parentes ()126

(ARISTOacuteTELES 2003 p53)

Buscando ampliar nossa concepccedilatildeo de compaixatildeo resolvemos procurar em

Retoacuterica das Paixotildees informaccedilotildees complementares que viessem auxiliar-nos a entender os

124

Para compreendermos melhor a aumlmartia cometida por Agamecircmnon devemos recorrer a duas trageacutedias

Agamecircmnon o primeiro livro da Oresteacuteia (2004) e Ifigecircnia em Aacuteulis (2002) Atraveacutes dessas obras observamos

que o Atrida derramou sangue parental de sua proacutepria filha daiacute a aumlmartia Contudo sabemos que sua accedilatildeo

foi necessaacuteria pois como puniccedilatildeo de Aacutertemis por ele querer medir-se com ela no arco se ele natildeo sacrificasse a

filha natildeo haveria ventos para os gregos alcanccedilarem Troacuteia ficando presos numa ilha 125

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100593Abook3D23Achapter

3D83Asection3D2 retirado agraves 1503h em 25 de novembro de 2010 126

(FONSECA 2003 p 53)

127

pressupostos do traacutegico presentes na Poeacutetica nossa base de estudo E nesse percurso de

ampliaccedilatildeo do entendimento sobre a esup1leoj obtemos mais uma informaccedilatildeo relevante que vem

reiterar nosso trabalho Ou seja segundo Aristoacuteteles (2003) aleacutem do fato de sentirmos

compaixatildeo diante de um fato doloroso e imerecido temos tambeacutem de estar vulneraacuteveis a

passar pelo mesmo padecimento soacute assim efetivamente o sentimento de compaixatildeo pode ser

suscitado Odisseu entatildeo tanto se depara com um sofrer imerecido como tambeacutem estaacute

vulneraacutevel a passar por tudo o que o Atrida passou pois ele tambeacutem apoacutes longos anos

distante retornaraacute ao seu lar podendo sim vir a encontrar sua morte armada pela esposa

junto com um amante Tanto estaacute susceptiacutevel a passar pelo mesmo que o rei de Argos alerta-o

para ter cuidado com a esposa natildeo lhe contando seus planos pois apesar de acreditar que

Peneacutelope natildeo seria capaz de tal ato diz que natildeo se pode confiar nas mulheres (XI 441-456)

Essa vulnerabilidade de Odisseu a vir a ser traacutegico como Agamecircmnon fica bem claro quando

no Canto XIII ao chegar em Iacutetaca as primeiras palavras que diz eacute em relaccedilatildeo a seu destino

que seria semelhante ao de Agamecircmnon caso natildeo fosse a proteccedilatildeo de Atena Pois assim

como o Atrida ele tambeacutem poderia ter a morte aguardando-lhe em casa o primeiro por causa

da esposa e do amante e no caso de Odisseu por accedilatildeo planejada dos pretendentes

Outra informaccedilatildeo tambeacutem nos eacute importante a respeito do suscitar da piedade Eacute

que para Aristoacuteteles (2003) noacutes nos compadecemos dos conhecidos ou dos nossos

semelhantes seja em idade seja em haacutebito enfim E nessa condiccedilatildeo Odisseu tambeacutem estaacute

inserido pois sabemos que eles natildeo satildeo apenas conhecidos como tambeacutem havia certa

semelhanccedila entre eles Aleacutem do mais a experiecircncia traacutegica do filho de Anticleacuteia e seu

compadecimento justificam-se tambeacutem porque ―com Agamecircmnon seu comandante-em-chefe

Odisseu se comportava com infaliacutevel lealdade () respeitava a hierarquia e reconhecia em

Agamecircmnon o portador do cetro (BEYE 2006 p 66) Essa relaccedilatildeo de companheirismo

entre Agamecircmnon e Odisseu pode ser observada tambeacutem na Iliacuteada Tatildeo marcante foi essa

relaccedilatildeo que ciente disso Eacutesquilo faz tambeacutem uma referecircncia a esse companheirismo em

Agamecircmnon (2004) Por isso ao desembarcar em Argos o Atrida saudado pelo coro por sua

volta relembra os enfrentamentos em Troacuteia e dos falsos homens com exceccedilatildeo de Odisseu Eacute

o que vemos no livro I Agamecircmnon da Oresteacuteia (2004) entre os versos 832-843

παύξνηο γὰξ ἀλδξλ ἐζηη ζπγγελὲο ηόδε

θίινλ ηὸλ εὐηπρνῦλη᾽ ἄλεπ θζόλνπ ζέβεηλ

δύζθξσλ γὰξ ἰὸο θαξδίαλ πξνζήκελνο

ἄρζνο δηπινίδεη ηῶ πεπακέλῳ λόζνλ

ηνῖο η᾽ αὐηὸο αὑηνῦ πήκαζηλ βαξύλεηαη

θαὶ ηὸλ ζπξαῖνλ ὄιβνλ εἰζνξλ ζηέλεη

128

εἰδὼο ιέγνηκ᾽ ἄλ εὖ γὰξ ἐμεπίζηακαη

ὁκηιίαο θάηνπηξνλ εἴδσινλ ζθηᾶο

δνθνῦληαο εἶλαη θάξηα πξεπκελεῖο ἐκνί

κόλνο δ᾽ δπζζεύο ὅζπεξ νὐρ ἑθὼλ ἔπιεη

δεπρζεὶο ἕηνηκνο ἦλ ἐκνὶ ζεηξαθόξνο

εἴη᾽ νὖλ ζαλόληνο εἴηε θαὶ δληνο πέξη127

ιέγσ (Eacutesquilo Agamecircmnon 832-843)

Poucos entre os homens tecircm congecircnito

Respeito sem inveja por amigo fausto

Maleacutevolo veneno sentado no coraccedilatildeo

Duplica o mal de quem dela adoece

Eacute oprimido por seu proacuteprio sofrimento

E pranteia ao ver alheia prosperidade

Ciente eu diria pois bem conheccedilo

O espelho social imagem de sombra

Satildeo aparentes os beneacutevolos comigo

Soacute Odisseu que invito navegou

Foi sob o jugo o meu pronto parceiro

Fale eu dele morto ou ainda vivo128

Atraveacutes dessa passagem percebemos que toda a relaccedilatildeo construiacuteda entre Odisseu

e Agamecircmnon intensifica seu compadecimento para com o Atrida E isto foi aproveitado

tambeacutem por Eacutesquilo (2004) na elaboraccedilatildeo do primeiro livro da Oresteacuteia Assim verificamos

que Homero legou aos tragedioacutegrafos a essecircncia do traacutegico como procuramos demonstrar

nesta anaacutelise do Canto XI Sabemos de um modo geral que algumas cenas eacutepicas serviram

de inspiraccedilatildeo para as trageacutedias mas no caso do Canto XI temos duas em especiacutefico uma

relacionada aos momentos de diaacutelogo entre Odisseu e Agamecircmnon e a outra do Laertida com

Aacutejax como veremos mais agrave frente E a influecircncia que duas cenas deste canto tiveram para o

surgimento de duas peccedilas Agamecircmnon de Eacutesquilo (2004) e Aacutejax de Soacutefocles (2008)

mostrando o quanto satildeo significativas as imagens traacutegicas que analisamos nesse canto jaacute que

estas produzem o que para muitos eacute o objetivo maior da trageacutedia a kaqarjij Mas isso

veremos com mais acuidade mais a frente por hora continuemos a analisar o texto pela

linearidade da narrativa

Pego por esse destino Agamecircmnon lamenta e ainda inconformado chora pois

jamais pensara que em casa aguardava-o a morte Ao contraacuterio apoacutes os dez anos de Guerra

dos combates dos sofrimentos comuns no campo de batalha da vitoacuteria sobre os troianos

sendo ele o comandante o aAtildenac asup1ndrwIacuten deparou-se com o inesperado destino

127

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100033Acard3D810 retirado agraves

1816h em 15 de outubro de 2010 128

(TORRANO 2004 p161)

129

() ἦ ηνη ἔθελ γε

ἀζπάζηνο παίδεζζηλ ἰδὲ δκώεζζηλ ἐκνῖζηλ

νἴθαδ᾽ ἐιεύζεζζαη ()129

(Odisseia XI 430-432)

Na verdade ele dizia

bem-vindo eu esperava ser para os filhos e para os escravos

em minha volta para casa

Na passagem acima podemos perceber dois fatos importantes o primeiro eacute o

conflito entre o plano humano e o divino o segundo eacute o confronto entre o heroacutei eacutepico e o

traacutegico Entre os versos 430 e 432 observamos que Agamecircmnon diante do grande feito em

Troacuteia espera em casa ser glorificado exaltado pelo povo de Argos e saudado pelos filhos e

pela consorte Ou seja o Atrida conta com a gloacuteria mas o que o espera eacute a morte vergonhosa

Esse conflito decorre do fato de termos dois planos incongruentes um feito pelo homem e

outro pelos deuses Neste caso o homem eacute Agamecircmnon planejando ser exaltado no retorno

da guerra e a divindade eacute a Moicurrenra que planeja sua morte indigna para apagar o miasmoj

da famiacutelia Atrida e a sua aumlmartia ao ter matado mesmo por necessidade a proacutepria filha E

neste caso ―haacute uma consciecircncia traacutegica da responsabilidade quando os planos humano e

divino satildeo bastante distintos para se oporem sem que entretanto deixem de parecer

inseparaacuteveis (VERNANT 2008 p 4) Nessa situaccedilatildeo naturalmente o plano divino se opotildee

levando o homem agrave cataacutestrofe Odisseu a tudo ouve atentamente e percebe que nenhum

homem pode medir-se com o plano divino pois apesar da ideacuteia de que ―a presenccedila divina

ilumina o homem e lhe evita o tropeccedilo (OTTO 2005 p253) sabe-se tambeacutem que ―() tudo

procede das matildeos dos deuses inclusive o traacutegico da vida humana (ibidem p 255)

O outro fato importante citado no iniacutecio do paraacutegrafo anterior diz respeito ao

choque de sua proacutepria figura enquanto heroacutei eacutepico tornando-se heroacutei traacutegico Como sabemos

na Iliacuteada (2009) Agamecircmnon teraacute papel fundamental sendo o chefe dos guerreiros e

comandando as decisotildees tanto que o Canto XI da Iliacuteada eacute dedicado a contar seus grandes

feitos eacute a aristia do Atrida E eacute esse personagem que chega em Argos com todo o seu orgulho

e toda a sua gloacuteria mas ao desembarcar ele jaacute natildeo eacute mais o heroacutei eacutepico passando entatildeo

como vemos em Agamecircmon (2004) a representar o heroacutei traacutegico que encontra a morte nas

matildeos da esposa E nesse diaacutelogo com Odisseu Agamecircmnon deixa evidente o conflito que ele

129

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D113Acard3

D404 retirado agraves 1800h em 15 de outubro de 2010

130

proacuteprio sofreu esperando ser tratado como eacutepico Por isso diz que esperava ser bem-recebido

pelos familiares e pelos servos do palaacutecio (XI 430-434)

Contudo na conversa em que Odisseu tem com o Atrida este deixa-nos perceber

seu conflito pois o que ele pensara ser (heroacutei eacutepico) antepotildee-se com o que ele veio a ser um

heroacutei traacutegico no momento em que desembarca em Argos Isso porque apesar de estarmos

estudando uma eacutepica podemos perceber que a configuraccedilatildeo de Agamecircmnon jaacute na Odisseacuteia eacute

a de um heroacutei de destino traacutegico fato esse que posteriormente Eacutesquilo desenvolveu na

trageacutedia E esse conflito que o proacuteprio Atrida nos expotildee ao esperar em casa ser tratado com

as honrarias do heroacutei eacutepico acentua ainda mais a tragicidade desse personagem refletido na

Odisseacuteia Isso porque atraveacutes da conversa com o Laertida o Atrida mostra a transposiccedilatildeo de

como ele se reconhecia eacutepico e passou a ver-se como traacutegico chegando a exclamar ―ὣς

θάνον οἰκηίζηῳ θανάηῳrdquo130 isto eacute ―Assim morri com a morte mais lamentaacutevel (Odisseacuteia

Canto XI v 412)

Apoacutes ter ouvido como o senhor dos heroacuteis morreu pelas matildeos da esposa e do

amante Odisseu apieda-se e mostra perceber a accedilatildeo do daimacrmwn no destino de Agamecircmnon

por isso fala que Zeus natildeo destinou coisas boas para os Atridas pois Menelau tinha uma

esposa Helena culpada pela morte de muitos homens em Troacuteia e ele tinha Cliptemenstra

que veio ocasionar sua proacutepria morte (Odisseia XI 436-439)

Essa percepccedilatildeo que Odisseu tem da accedilatildeo dos superiores no destino de

Agamecircmnon eacute uma habilidade que em muitos momentos ele nos mostra Tanto que ao

decorrer do toacutepico anterior vimos que ele sempre percebia quando o daimacrmwn agia sobre ele e

seus companheiros Entatildeo assim tambeacutem ele faz com o Atrida exemplificando a accedilatildeo do

daimacrmwn atraveacutes dos feitos de Helena e Clitmenestra Observemos que essa accedilatildeo do divino

pode levar o homem ao traacutegico ou agrave ventura No caso de Agamecircmnon leva-o ao destino

traacutegico no caso de Odisseu como foi visto no toacutepico anterior leva-o agraves situaccedilotildees traacutegicas E

o seu destino soacute natildeo eacute traacutegico por causa da accedilatildeo divina especificamente pela proteccedilatildeo de

Atena E isso o heroacutei de Iacutetaca tambeacutem observa Assim ao desembarcar em sua cidade e ser

avisado pela deusa do perigo dos pretendentes ele diz que se natildeo fosse pelos avisos de

Atena ele teria em casa o destino funesto assim como Agamecircmnon (XIII 383-386)

Na continuidade do diaacutelogo entre Odisseu e Agamecircmnon este pergunta sobre

notiacutecias do filho O esposo de Peneacutelope diz natildeo saber E insistentemente o Atrida repete para

130

Texto disponiacutevel em httpwwwhs-

augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_od11html agraves 1533hs ded 12 de julho de

2010

131

que Odisseu natildeo confie na esposa e tenha cuidado ao retornar pois um grande mal pode estar

aguardando-o E ficam conversando e chorando um por seu destino traacutegico e o outro pelas

situaccedilotildees traacutegicas que ateacute entatildeo vinha sofrendo

A dor manifestada por ambos eacute fruto do enlace traacutegico em que se assemelham um

no destino o outro nas circunstacircncias da vida E assim percebemos a presenccedila do traacutegico na

vida desses personagens Contudo para Odisseu este contato reserva-lhe natildeo apenas o

protagonismo do traacutegico como analisamos no toacutepico anterior mas tambeacutem a experiecircncia do

traacutegico como espectador Pois apesar de o fato natildeo ocorrer aos seus olhos a descriccedilatildeo

detalhada dos fatos torna possiacutevel a visualizaccedilatildeo de todo o ocorrido Aleacutem do mais jaacute nos diz

Aristoacuteteles

ηλ δὲ ινηπλ ἡ κεινπνηία κέγηζηνλ ηλ ἡδπζκάησλ ἡ δὲ ὄςηο

ςπραγσγηθὸλ κέλ ἀηερλόηαηνλ δὲ θαὶ ἥθηζηα νἰθεῖνλ ηῆο πνηεηηθῆο ἡ γὰξ

ηῆο ηξαγῳδίαο δύλακηο θαὶ ἄλεπ ἀγλνο θαὶ ὑπνθξηηλ ἔζηηλ ()131

(Poeacutetica

VI 1450b 18-20)

Assim mesmo sem atores e sem encenaccedilatildeo a trageacutedia por si proacutepria eacute

convincente aleacutem do mais para a montagem mais importante satildeo os

inteacuterpretes do que os poetas

Assim como espectador do traacutegico cantado satildeo suscitados em Odisseu tanto a

esup1leoj como jaacute explicamos assim tambeacutem como o fomacrboj levando-o agrave kaqarsij Para

que compreendamos tal afirmaccedilatildeo assim como fizemos para entender a esup1leoj recorramos

tambeacutem agrave Retoacuterica das Paixotildees para entendermos o fomacrboj Em nosso estudo da Poeacutetica no

segundo capiacutetulo vimos que Aristoacuteteles afirma que o sentimento de temor eacute gerado para com

nosso semelhante (Poeacutetica XIII 1453a 5-6) Entatildeo para que esse sentimento seja melhor

compreendido buscamos na Retoacuterica das Paixotildees um maior esclarecimento sobre o fomacrboj

o que ele significa como ele eacute suscitado enfim Assim Aristoacuteteles (2003) define o fomacrboj

ἔζησ δὴ ὁ θόβνο ιύπε ηηο ἢ ηαξαρὴ ἐθ θαληαζίαο κέιινληνο θαθνῦ

θζαξηηθνῦ ἢ ιππεξνῦ νὐ γὰξ πάληα ηὰ θαθὰ θνβνῦληαη νἷνλ εἰ ἔζηαη

ἄδηθνο ἢ βξαδύο ἀιι᾽ ὅζα ιύπαο κεγάιαο ἢ θζνξὰο δύλαηαη θαὶ ηαῦηα ἐὰλ

κὴ πόξξσ ἀιιὰ ζύλεγγπο θαίλεηαη ὥζηε κέιιεηλ132

(Retoacuterica das Paixotildees II 5 21-25)

131

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100553Asection3D1450b

retirado agraves 0900h em 18 de outubro de 2010 132

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100593Abook3D23Achapter

3D53Asection3D1 retirado agraves 2012h em 15 de outubro de 2010

132

Seja entatildeo o temor certo desgosto ou preocupaccedilatildeo resultantes da suposiccedilatildeo

de um mal iminente ou danoso ou penoso pois natildeo se temem todos os

males por exemplo o de que algueacutem injusto ou de espiacuterito obtuso mas sim

aqueles males que podem provocar grandes desgostos ou danos e isso

quando natildeo se mostram distantes mas proacuteximos e iminentes133

(ARISTOacuteTELES 2003 p31)

Pela definiccedilatildeo observamos que o fomacrboj eacute suscitado por um mal que

injustamente acarreta danos graves a uma pessoa e aleacutem do mais aparece na iminecircncia de

ocorrer tambeacutem para outrem - assim este veraacute em si surgir o fomacrboj Aristoacuteteles (2003)

completa ainda que satildeo temiacuteveis os danos sem soluccedilatildeo gerados por forccedila superior e que soacute

tememos por aquilo que tambeacutem podemos vir a sofrer Aleacutem disso o temor surge quando o

ouvinte presencia o sofrimento de algueacutem mais forte superior ou semelhante a ele Explica-

nos Aristoacuteteles

ὥζηε δεῖ ηνηνύηνπο παξαζθεπάδεηλ ὅηαλ ᾖ βέιηηνλ ηὸ θνβεῖζζαη αὐηνύο ὅηη

ηνηνῦηνί εἰζηλ νἷνλ παζεῖλ (θαὶ γὰξ ἄιινη κείδνπο ἔπαζνλ) θαὶ ηνὺο

ηνηνύηνπο δεηθλύλαη πάζρνληαο ἢ πεπνλζόηαο θαὶ ὑπὸ ηνηνύησλ ὑθ᾽ ὧλ νὐθ

ᾤνλην θαὶ ηαῦηα ltἃgt θαὶ ηόηε ὅηε νὐθ ᾤνλην (Retoacuterica das Paixotildees II 5

8-12)

Assim quando eacute melhor que os ouvintes sintam temor eacute preciso pocirc-los nessa

disposiccedilatildeo de espiacuterito dizendo-lhes que podem sofrer algum mal pois

outros mais fortes que eles sofreram e mostrar-lhes que pessoas como eles

sofrem ou sofreram por parte de que natildeo imaginavam essas provaccedilotildees e em

circunstacircncias que natildeo esperavam (p 35)

Diante das definiccedilotildees e explicaccedilotildees acima podemos sugerir entatildeo que o fomacrboj eacute

suscitado em Odisseu atraveacutes do canto de Agamecircmnon tendo em vista que o Laertida eacute

colocado a defrontar-se com um grande mal imerecido injusto que ao mesmo tempo

aparece-lhe iminente jaacute que ele pode vir a passar pelo mesmo quando voltar a Iacutetaca Aleacutem

disso esse mal eacute sofrido por um superior que padeceu de um mal inesperado Assim

constatamos que Odisseu aleacutem de ser inspirado pela compaixatildeo (esup1leoj) tambeacutem o eacute pelo

temor (fomacrboj) podendo desta forma chegar agrave kaqarsij dos seus sofrimentos (Poeacutetica VI

1449b 24-28)

No Canto XI da Odisseacuteia por meio do diaacutelogo de Odisseu e Agamecircmnon no

Hades percebemos o traacutegico circundar a vida dos dois personagens O primeiro visualiza

como um espectador traacutegico a dolorosa e indigna morte do Atrida atraveacutes de sua narraccedilatildeo

133

(Trad FONSECA 2003 P31)

133

Essa visualizaccedilatildeo do traacutegico permite que em Odisseu sejam suscitados o fomacrboj e a esup1leoj

que o levam agrave kaqarsij ou seja a purificaccedilatildeopurgaccedilatildeo de todos seus padecimentos Jaacute em

relaccedilatildeo a Agamecircmnon percebemos atraveacutes da narraccedilatildeo que ele mesmo faz de sua morte que

ele natildeo eacute mais um heroacutei eacutepico como jaacute fora na Iliacuteada (2009) e sim bem mais proacuteximo do

heroacutei traacutegico atraveacutes do qual Eacutesquilo (2004) desenvolveu na trageacutedia Heroacutei esse envolto com

os elementos mais comuns de tragicidade o imerecido injusto aumlmartia a uAacutebrij a accedilatildeo

do daimacrmwn fazendo surgir a esup1leoj e o fomacrboj para desencadear na kaqarsij

No transcorrer da conversa lamuriosa entre Odisseu e o Atrida aparece o

eiAtildedwlon de Aquiles O Pelida questiona ao filho de Laertes o porquecirc dessa nova empreitada

e principalmente porque teve que ser logo no Hades local dos mortos sem consciecircncia em

que haacute apenas os simulacros dos homens que um dia viveram (XI 467-472) Jaacute podemos

perceber por essa fala de Aquiles a condiccedilatildeo miseraacutevel das sombras no Hades em que a

inconsciecircncia supera todas as gloacuterias que tiveram em vida O Laertida responde ao Pelida que

desde que saiu de Troacuteia natildeo retornou agrave paacutetria ao contraacuterio sofre a vagar pelas terras e que

sua visita ao Hades foi para consultar Tireacutesias para que este pudesse orientar-lhe sobre o

retorno para casa Odisseu depois de ter visto a lamentaacutevel situaccedilatildeo de Agamecircmnon espera

enfim ver que pelo menos o Pelida encontra-se glorificado apoacutes a morte por isso exclama

νὐ γάξ πσ ζρεδὸλ ἦιζνλ Ἀραηΐδνο νὐδέ πσ ἁκῆο

γῆο ἐπέβελ ἀιι᾽ αἰὲλ ἔρσ θαθά ζεῖν δ᾽ Ἀρηιιεῦ

νὔ ηηο ἀλὴξ πξνπάξνηζε καθάξηαηνο νὔη᾽ ἄξ᾽ ὀπίζζσ

πξὶλ κὲλ γάξ ζε δσὸλ ἐηίνκελ ἶζα ζενῖζηλ

Ἀξγεῖνη λῦλ αὖηε κέγα θξαηέεηο λεθύεζζηλ

ἐλζάδ᾽ ἐώλ ηῶ κή ηη ζαλὼλ ἀθαρίδεπ Ἀρηιιεῦlsquo134

(Odisseacuteia XI 481-486)

Pois ateacute esse momento nunca fui proacuteximo dos Acaios nem ainda

pus o peacute em nossa terra e sempre tenho enfrentado coisas maacutes

Contudo nenhum guerreiro Aquiles eacute mais abenccediloado do que tudo no

passado e no futuro]

Antes quando eras vivo eu e os Argivos honravamo-te tanto quanto aos

deuses]

agora aqui entre os mortos exerces grande poder

Assim sendo natildeo sofra por ter morrido Aquiles

Aquiles o maior e mais temido heroacutei grego na guerra de Troacuteia desceu ao Hades

com o destino que ele mesmo escolhera viver pouco mas ser honrado e glorificado em

134

Texto disponeacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D113Acard3

D440 retirado agraves 1828h em 15 de outubro de 2010

134

campo de batalha135

Eacute por isso que no Canto I da Iliacuteada (2009) ao ter perdido Briseida seu

precircmio de guerra (geraj) ele pede agrave matildee que cobre de Zeus a sua honra a timh pois jaacute que

morreraacute jovem ao menos que tenha uma curta existecircncia poreacutem gloriosa Vejamos o que ele

dissera a sua matildee cobrando a vida curta mas honrada

κῆηεξ ἐπεί κ᾽ ἔηεθέο γε κηλπλζάδηόλ πεξ ἐόληα

τιμήν πέξ κνη ὄθειιελ ιύκπηνο ἐγγπαιίμαη

Ζεὺο ὑςηβξεκέηεο λῦλ δ᾽ νὐδέ κε ηπηζὸλ ἔηηζελ (Iliacuteada I 353-355)

Matildee como me geraste de curta existecircncia

seria justo o Oliacutempio Zeus a minha honra fazer aumentar

aquele que ressoa do alto ceacuteu

O discurso de Odisseu ao encontrar o Pelida mostra que seu desejo foi cumprido

uma existecircncia curta poreacutem gloriosa tanto que o filho de Laertes reforccedila que enquanto

esteve vivo foi honrado como um deus (XI 483) Como vemos Aquiles teve todas as

honrarias em vida sendo inclusive comparado a uma figura divina Assim jaacute que Zeus

concedeu-lhe o destino cobrado (ver Canto I da Iliacuteada) entatildeo eacute de se imaginar que agora

morto Aquiles continua feliz ateacute mesmo porque realiza domiacutenio sobre os mortos Esta razatildeo

faz com que Odisseu entenda que de nada poderia o Pelida se queixar (XI 485-486) Odisseu

apoacutes tanto ter sofrido ao ouvir a desonrosa morte que teve o seu comandante Agamecircmnon

imagina que enfim veraacute um de seus heroacuteicos companheiros satisfeito com a vida e com o

poacutes-morte que teve Vimos que na conversa com o Atrida ele se encheu de esup1leoj e fomacrboj

mas agora com o Pelida pensa ser diferente atenuando todo o seu temor ao ver que um de

seus companheiros tivera a vida e o destino que almejara que eacute desejo de todo o heroacutei ter

gloacuteria e honra tanto em vida quanto em morte Contudo mais uma vez sua expectativa seraacute

desconstruiacuteda e Aquiles responde-lhe

―ὣο ἐθάκελ ὁ δέ κ᾽ αὐηίθ᾽ ἀκεηβόκελνο πξνζέεηπε

κὴ δή κνη ζάλαηόλ γε παξαύδα θαίδηκ᾽ δπζζεῦ

βνπινίκελ136

θ᾽ ἐπάξνπξνο ἐὼλ ζεηεπέκελ ἄιιῳ

135

No primeiro capiacutetulo do nosso trabalho fizemos uma explanaccedilatildeo sobre o destino de Aquiles e a sua escolha

fato que estaacute narrado no Canto I da Iliacuteada (2009) 136

Atraveacutes dos optativos bouloimhn deboulomai ndash desejar preferir e eiAtildeh- infinitivo optativo de eiAcircmi-ser

exprime-se o desejo de Aquiles pois ele bem sabe que natildeo pode ser mais realizado pois seu destino jaacute foi

selado

135

ἀλδξὶ παξ᾽ ἀθιήξῳ ᾧ κὴ βίνηνο πνιὺο εἴε

ἢ πᾶζηλ λεθύεζζη θαηαθζηκέλνηζηλ ἀλάζζεηλ137

(Odisseacuteia XI 487-491)

Desse modo dizia ele imediatamente mudando falou

Natildeo me convenccedila da morte ilustre Odisseu

Pois eu preferiria viver sendo trabalhador de campo para um

Homem ateacute mesmo sem recursos se bem vivo eu estivisse

a ser rei de todos estes cadaacuteveres dos que morreram

Aquiles como mostra a passagem acima mostra-se arrependido da escolha que

fizera em ter uma vida guerreira curta ao inveacutes de uma vida longa e comum Esse discurso

potildee em questatildeo o valor da vida guerreira e toda a sua nobreza por isso Platatildeo considera

perigosas passagens como essas elaboradas por Homero (Repuacuteblica III ndash 386c-d) O Pelida

ao levantar o arrependimento da vida guerreira que tivera potildee em questatildeo os maiores valores

para o mundo grego E essa tomada de decisatildeo que eleva o homem mais tarde ao

arrependimento aflige-no e torna-o um sujeito traacutegico viacutetima de sua proacutepria escolha Por

isso diz-nos Vernant (2008) em Mito e trageacutedia na Greacutecia Antiga que o fato traacutegico

relaciona-se a deliberar tomar decisatildeo vindo desta sua proacutepria escolha todo seu mal daiacute o

fato traacutegico Isso tambeacutem nos lembra a exposiccedilatildeo no capiacutetulo anterior de Romilly (2008) em

A trageacutedia Grega de que o traacutegico implica uma accedilatildeo e esta seja boa ou maacute iraacute sempre trazer

ao heroacutei graves consequecircncias Em decorrecircncia disso a autora acredita na existecircncia de uma

inocecircncia do personagem traacutegico assegurando mesmo apoacutes a cataacutestrofe o seu heroiacutesmo

Aflito por sua proacutepria escolha e viacutetima inocente de sua proacutepria accedilatildeo o Aquiles

com o qual Odisseu depara-se no Hades natildeo eacute mais o heroacutei eacutepico honrado e glorificado

como um deus ele eacute agora se assemelha a um heroacutei traacutegico Naquele instante o Laertida

enxerga em Aquiles o arrependimento comum aos heroacuteis traacutegicos ―βοσλοίμην κ᾽ ἐπάροσρος

ἐὼν θηηεσέμενrdquo (Odisseacuteia Canto XI 489) ou seja ―pois eu preferiria viver sendo

trabalhador do campo mas para o qual natildeo haacute mais soluccedilatildeo pois o destino jaacute foi selado

Sandra Luna (2005) afirma-nos que no Hades Aquiles ―potildee em questatildeo os

valores mais aclamados entre os gregos a honra a nobreza e a riqueza (LUNA 2005 p

182) Valores estes que naturalmente tambeacutem aclamados por Odisseu fazem-no conflitar-se

natildeo apenas em ver Aquiles infeliz mas por vecirc-lo desprezar os valores que distinguem a honra

do guerreiro pela qual ele tanto lutou em Troacuteia Diante do espetaacuteculo inesperado Odisseu vecirc

137

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D113Acard3

D486 retirado agraves 1924h em 16 de novembro de 2010

136

o maior heroacutei grego em Troacuteia preferindo ser um simples trabalhador do campo E esse destino

injusto e imerecido para um heroacutei tatildeo valoroso e distinto faz Odisseu apiedar-se para com seu

semelhante ao mesmo tempo em que tambeacutem sente temor de vir a ter a mesma trajetoacuteria

Todo esse cenaacuterio suscita-lhe o fomacrboj e a esup1leoj sentimentos responsaacuteveis por

proporcionar-lhe a kaqarsij

A respeito de todo esse ―espetaacuteculocenaacuterio traacutegico realizado perante os olhos de

Odisseu queremos esclarecer que estruturalmente haacute dois fatos que permitem-nos essa

interpretaccedilatildeo no Canto XI O primeiro deles eacute a riqueza de detalhes como ilustramos no caso

do diaacutelogo de Odisseu com Agamecircmnon Detalhes esses utilizados como recurso na epopeacuteia

homeacuterica que tambeacutem influenciaram as trageacutedias Ateacute porque sabemos que nas encenaccedilotildees

das trageacutedias gregas as mortes natildeo eram realizadas na frente do puacuteblico cabendo aos

espectadores saber da ocorrecircncia das mortes por outros meios a exemplo da fala do coro Daiacute

a necessidade de detalhes para proporcionar ao puacuteblico o entendimento da accedilatildeo traacutegica

Mas aleacutem dessa riqueza de detalhes para presentificaccedilatildeo da cena narrada temos

no Canto XI outro elemento fundamental para representaccedilatildeo dramaacutetica e que foi alicerce para

as trageacutedias gregas os diaacutelogos Podemos observar que a estrutura do Canto XI eacute baseada nos

diaacutelogos que Odisseu teraacute com as sombras de sua matildee Agamecircmnon Aquiles Aacutejax enfim

Sobre o diaacutelogo Anatol Rosenfeld (1985) em A teoria dos gecircneros diz-nos que eacute atraveacutes

dele que a accedilatildeo dramaacutetica eacute manifestada aleacutem de ser o responsaacutevel por levar a accedilatildeo dramaacutetica

ao conflito Este que por sua vez eacute base para o traacutegico pois o protagonista deve estar em

conflito com algo seja consigo mesmo com os outros ou com o seu destino A necessidade

do conflito para a accedilatildeo traacutegica pode ser ilustrada nos diaacutelogos acima pois como vimos

Agamecircmnon conflitua-se com o destino imposto pelos deuses a morte indigna pelas matildeos da

esposa e Aquiles estaacute em conflito com a decisatildeo de destino que ele proacuteprio fez morrer jovem

em campo de batalha mas que agora preferia viver como ―ἐπάροσρος θηηεσέμενrdquo (XI 489)

ou seja um trabalhador do campo E para aleacutem desses importantes elementos numa

construccedilatildeo dramaacutetica mesmo que esteja sendo analisada sua presenccedila numa eacutepica Aristoacuteteles

diz-nos que o fomacrboj e a esup1leoj podem ser suscitados natildeo soacute atraveacutes da encenaccedilatildeo teatral

Vejamos o porquecirc

δεῖ γὰξ θαὶ ἄλεπ ηνῦ ὁξᾶλ νὕησ ζπλεζηάλαη ηὸλ κῦζνλ ὥζηε ηὸλ [5]

ἀθνύνληα ηὰ πξάγκαηα γηλόκελα θαὶ θξίηηεηλ θαὶ ἐιεεῖλ ἐθ ηλ

137

ζπκβαηλόλησλ ἅπεξ ἂλ πάζνη ηηο ἀθνύσλ ηὸλ ηνῦ Οἰδίπνπ κῦζνλ138

(Poeacutetica XIV 1453b 4-7)

Pois eacute preciso que tendo o mito manifestado-se os ouvintes mesmo sem ver

os trabalhos venham a arrepiar-se e apiedar-se dos acontecimentos eacute o que

sofreria algueacutem ouvindo o mito de Eacutedipo

Assim Odisseu ao presenciar os fatos traacutegicos na vida de seus companheiros se

apieda como tambeacutem sente temor E apoacutes ter-lhe revelado ser infeliz mesmo reinando sobre

os mortos Aquiles diz ser melhor saber notiacutecias do filho e do pai a ficar falando desses

assuntos O Pelida pergunta se o filho Neoptoacutelemo nas batalhas fica agrave frente ou atraacutes e se o

pai Peleu vive ainda honrado junto aos Mirmidotildees Odisseu diz natildeo poder dar notiacutecias de

Peleu mas sobre Neoptoacutelemo diz que o conduziu e que nas assembleacuteias era o primeiro a

falar sempre de modo adequado No discurso soacute perdia para Nestor e Odisseu mas nas

batalhas a todos vencia saindo de Troacuteia sem nenhum ferimento Aquiles alegra-se contudo

o cenaacuterio traacutegico natildeo eacute atenuado apesar da alegria momentacircnea de Aquiles pois ao seu redor

o quadro eacute destoante

αἱ δ᾽ ἄιιαη ςπραὶ λεθύσλ θαηαηεζλεώησλ

ἕζηαζαλ ἀρλύκελαη εἴξνλην δὲ θήδε᾽ ἑθάζηε139

(Odisseacuteia XI 541-542)

Mas as outras sombras dos que foram pegos para baixar a morte

tristes mantiveram-se a narrarem sua infelicidade

Discutimos no segundo capiacutetulo agrave luz de Sandra Luna (2005) que Homero

dissolve as cenas traacutegicas presentes em suas epopeacuteias exemplificando inclusive os

momentos dessa diluiccedilatildeo do traacutegico Contudo atraveacutes do que estamos analisando no Canto XI

da Odisseacuteia percebemos que as cenas traacutegicas satildeo sobrepostas sem atenuante Assim o

Laertida dialoga com Agamecircmnon depois com Aquiles e em cada um desses diaacutelogos

depara-se com a manifestaccedilatildeo do sentimento traacutegico E no fim do diaacutelogo com o Pelida ao

vermos este ter um instante de alegria logo pensamos que haveria uma dissolviccedilatildeo do traacutegico

mas ao contraacuterio a alegria momentacircnea do Pelida contrasta com o quadro de dor e

sofrimento de muitas almas tristes narrando umas para as outras seus proacuteprios infortuacutenios

138

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100553Asection3D1453b

retirado agraves 2035h em 02 de dezembro de 2010 139

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D113Acard3

D538 retirado agraves 2052h em 02 de dezembro de 2010

138

Isso nos mostra a presenccedila marcante da tragicidade no canto XI da Odisseacuteia e que natildeo eacute

dissolvida por atenuantes como banquetes confraternizaccedilotildees soluccedilotildees para o conflito cortes

de cena enfim Recursos atenuantes estes que vimos serem comuns na eacutepica homeacuterica e

inclusive ao longo da proacutepria Odisseacuteia como analisamos no toacutepico primeiro deste capiacutetulo O

que observamos ao lonho dos diaacutelogo eacute o traacutegico mediado em que Odisseu eacute o espectador

Odisseu na continuidade da narrativa ao ter-se deparado com a cena das almas

tristes a lamentarem seu destino observa Aacutejax afastado das outras almas Este aparenta ainda

estar inconformado com a disputa pelas armas de Aquiles da qual foram juiacutezes os filhos dos

troianos e a deusa Palas Atena Contudo Aacutejax natildeo consegue ver que a accedilatildeo do daimacrmwn foi

responsaacutevel por esta decisatildeo por isso ainda alimenta raiva de Odisseu fazendo com que este

imerecidamente sinta-se culpado pelo seu mal Assim o filho de Laertes exclama que

desejaria nunca ter ganho a disputa pelas armas de Aquiles jaacute que essa decisatildeo fez com que

Aacutejax o mais valoroso dos gregos depois de Aquiles viesse a morrer tragicamente (Odisseacuteia

XI 548-551)

Contudo o ressentimento era tatildeo grande para com Odisseu que o Telemocircnio natildeo

percebia que a forccedila superior fizera-o padecer E segundo Walter Friedrich Otto em

Teofania o reconhecimento de que uma forccedila maior levou-o ao traacutegico acaba por enobrececirc-

lo pois ―Por mais que o homem perceba ter cometido um erro e por graves que sejam para si

as consequecircncias isso natildeo o rebaixa enquanto ele reconhece estar nas matildeos da divindade

(OTTO 2006 p 80) Mas Aacutejax natildeo percebe a accedilatildeo do daimacrmwn ao contraacuterio responsabiliza

Odisseu que injustamente sofre a culpa da morte de um antigo e valoroso companheiro Natildeo

bastasse ter sido posto como responsaacutevel pela morte da matildee e pelos sofrimentos de seus

familiares o Laertida tem que carregar o traacutegico fardo do suiciacutedio de Aacutejax

O peso dessa imerecida culpa faz Odisseu lamentar-se por ter ficado com as armas

de Aquiles Entendamos a gravidade do desejo de Odisseu de natildeo ter sido contemplado com

as armas pois a disputa das armas do heroacutei que morria mostrava a distinccedilatildeo do heroacutei que as

herdava daiacute a inconformidade de Aacutejax Imaginemos entatildeo o valor das armas de Aquiles

que naturalmente simbolizaria para o seu herdeiro todo o prestiacutegio do maior heroacutei grego que

combateu em Troacuteia Desse modo as armas de Aquiles muito significavam Por obra divina

elas ficaram com Odisseu aiacute este encontra a grande queixa de Aacutejax Pois como era

considerado o maior depois de Aquiles considerava que ele deveria ser o detentor das armas

do Pelida Mas natildeo eacute o que ocorre Diante do sofrer do companheiro no Hades Odisseu

139

amargura-se desejando inclusive nunca ter ficado com aquelas armas apesar de todo o valor

delas

Ao natildeo reconhecer o desejo divino voltando toda a sua raiva para Odisseu Aacutejax

acaba sendo rebaixado ainda mais por natildeo ter como diz-nos Otto (2006) o ―reconhecimento

do erro que eacute enobrecido pela consciecircncia do divino e isso lhe preserva a grandeza de alma

() (Ibidem) Sem a consciecircncia da accedilatildeo divina Aacutejax culpa Odisseu por todo o seu mal

Sabemos que a partir dessa cena Soacutefocles inspira-se para composiccedilatildeo da peccedila Aacutejax em que

se narra a morte deste Morte esta que ele mesmo efetuou na busca de preservar ainda alguma

gloacuteria depois de ter matado animais pensando que matara os guerreiros gregos como

Agamecircmnon Menelau Odisseu Essa loucura como vemos na peccedila foi-lhe imposta para sua

cataacutestrofe por Atena a fim de proteger os demais de todo o seu oacutedio Mas Aacutejax natildeo se

convence por isso a peccedila iraacute refletir tambeacutem como jaacute o vemos neste Canto XI essa

responsabilidade dada por Aacutejax a Odisseu acusando este como culpado do seu mal140

Assim

culpado imerecidamente o filho de Laertes observa-se como aquele heroacutei traacutegico explicitado

por Vernant (2008) em Mito e Trageacutedia na Greacutecia Antiga que traz o mal natildeo soacute para si

como tambeacutem para os outros

Surpreendido pelo fato de Aacutejax ter-lhe rancor mesmo ali no Hades entre os

mortos Odisseu continua a falar ao Telamocircnio que as armas pelos deuses tornaram-se

malditas por isso que por elas veio a padecer o baluarte dos Aqueus Diz ainda que assim

como sofreram pela morte do Pelida sentiram tambeacutem profundamente a sua morte E mais

uma vez Odisseu tenta fazer com que Aacutejax reconheccedila a accedilatildeo divina e enobrecido por esse

reconhecimento venha a abrandar o coraccedilatildeo Vejamos

αἴηηνο ἀιιὰ Ζεὺο Δαλαλ ζηξαηὸλ αἰρκεηάσλ

ἐθπάγισο ἤρζεξε ηεῒλ δ᾽ ἐπὶ κνῖξαλ ἔζεθελ

ἀιι᾽ ἄγε δεῦξν ἄλαμ ἵλ᾽ ἔπνο θαὶ κῦζνλ ἀθνύζῃο

ἡκέηεξνλ δάκαζνλ δὲ κέλνο θαὶ ἀγήλνξα ζπκόλlsquo

140

Na Odisseacuteia Aacutejax natildeo reconhece ter sofrido pela accedilatildeo divina tanto que Odisseu enfatizaraacute isso vaacuterias vezes

para que ele natildeo lhe tenha oacutedio jaacute que ambos seja para o bem seja para o mal foram viacutetimas do desejo divino

Contudo por termos a leitura da peccedila sabemos que Aacutejax iraacute responsabilizar tanto Odisseu acusando-o de ser o

mais canalha do exeacutercito como tambeacutem a deusa Vejamos o momento em que ele reconhecendo que caiacutera no

traacutegico percebe a accedilatildeo de Atena

ἀιιά κ᾽ ἁ Δηὸο ἀιθίκα ζεὸο ὀιέζξη᾽ αἰθίδεη

140

(Aacutejax 394-403)

Todavia a filha de Zeus

o poderoso deus

atormenta-me para destruiccedilatildeo

140

―ὣο ἐθάκελ ὁ δέ κ᾽ νὐδὲλ ἀκείβεην βῆ δὲ κεη᾽ ἄιιαο

ςπρὰο εἰο Ἔξεβνο λεθύσλ θαηαηεζλεώησλ141

(Odisseacuteia XI 559-564)

Todavia a culpa eacute de Zeus que terrivelmente odiou o exeacutercito

dos guerreiros Dacircnaos ele te colocou o destino funesto

Poreacutem conduzi-te para aqui heroacutei para que possas ouvir a

minha palavra e a minha histoacuteria domina a ira do teu valoroso coraccedilatildeo

Assim eu falava ele nada respondia e caminhou com as outras

almas que haviam morrido para o Eacuterebo

Como percebemos apesar de todas as tentativas de Odisseu de abrandar o rancor

de Aacutejax tudo eacute em vatildeo e este parte sem nada dizer-lhe desprezando o astuto guerreiro Para

entendermos essa reaccedilatildeo de desprezo de Aacutejax para com Odisseu recorremos a Aristoacuteteles

(2003) em Retoacuterica das Paixotildees Para o filoacutesofo o sentimento de desprezo ―() eacute a

atualizaccedilatildeo de uma opiniatildeo acerca do que natildeo parece digno de consideraccedilatildeo () e diz ainda

que ―trecircs satildeo as espeacutecies de desprezo o desdeacutem a difamaccedilatildeo e o ultraje (ARISTOacuteTELES

2003 p7) Assim Aacutejax mostra desprezar Odisseu negando-lhe inclusive a palavra

mostrando-se indiferente para com toda a tentativa de Odisseu de reaproximaccedilatildeo E se

―desprezamos o que natildeo tem valor algum (Ibidem p9) Aacutejax natildeo apenas culpa Odisseu por

todo seu mal como tambeacutem o desdenha e desmerece todo seu valor Desse modo vemos que

o Telemocircnio desconsidera os combates em que juntos trouxeram a gloacuteria para os gregos

como tambeacutem a accedilatildeo conjunta nas empreitadas a exemplo da que os dois fizeram ao lado de

Fenice para convencer Aquiles a voltar a lutar com os gregos (Iliacuteada IX 167-169)

Culpado pela humilhaccedilatildeo e pelo fim da vida de seu companheiro e aleacutem do mais

desprezado por ele mesmo no Hades em que o seu destino jaacute fora selado Odisseu aproxima-

se da representaccedilatildeo do heroacutei traacutegico sem a gloacuteria e sem a honra consagrada ao heroacutei eacutepico

Como todo heroacutei traacutegico o filho de Laertes carrega a culpa pelo seu mal e pelo mal dos

outros mesmo quando foram os deuses que assim determinaram mesmo quando a

necessidade impelia-o a agir mesmo quando tentava agir bem Traacutegico tambeacutem eacute para

Odisseu observar que nem no Hades Aacutejax pocircde ficar bem livrando-se do mal que cercara

sua morte Ao contraacuterio natildeo bastasse o destino traacutegico que os deuses lhe reservaram ele

levou consigo para o Hades todo o rancor e o oacutedio pelo mal que lhe fizeram natildeo podendo

assim ficar em paz e gozar dos gloriosos feitos que fizera em vida Como vemos no Hades

toda a gloacuteria eacute esquecida as conquistas no campo de batalha as honrarias comuns ao heroacutei

141

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D113Acard3

D538 retirado agraves 2214h em 02 de dezembro de 2010

141

eacutepico satildeo apagadas Em vez da honra Odisseu vecirc que para Aacutejax natildeo haacute gloacuteria nem

consagraccedilatildeo eacutepica mas apenas a amargura e o ressentimento do heroacutei traacutegico na escuridatildeo do

Hades

Apoacutes a saiacuteda de Aacutejax Odisseu deseja ver outros mortos Entatildeo vecirc primeiro

Minos o filho de Zeus a distribuir a justiccedila depois vecirc Oriatildeo cercado por feras Tiacutecio tendo

seu fiacutegado devorado por dois abutres Tacircntalo castigado com sede e com fome diante de lago

cheio de aacutegua que seca quando ele vai beber e quando quer comer as frutas satildeo levadas pelo

vento no momento em que ele vai pegaacute-las das aacutervores vecirc Siacutesifo que carrega uma enorme

pedra que cai quando ele alcanccedila o topo do penhasco depois Odisseu vecirc a sombra de

Heacuteracles

O filho de Zeus reconhece-o e fala-lhe entre gemidos dos grandes trabalhos que

enfrentou Chega a associar os seus trabalhos com a nova empreitada de Odisseu (XI 618-

619) pois Heacuteracles teve que natildeo apenas ir ao Hades mas pegar o catildeo e depois devolvecirc-lo

tarefa que fez com ajuda de Atena e Hermes Esse encontro eacute importante pois serve de

imagem alegoacuterica para Odisseu do destino no qual deve espelhar-se O contato que tivera com

seus companheiros em Troacuteia foi suficiente para ele observar que eles natildeo satildeo mais modelos de

vida como eram quando heroacuteis eacutepicos Figurados neste Canto XI como heroacuteis traacutegicos

Odisseu natildeo pode espelhar-se em seus destinos muito menos dos castigados (Tacircntalo Siacutesifo

etc) Deve entatildeo ter Heacuteracles como o protoacutetipo heroacuteico daquele que apesar dos muitos

trabalhos e das vivecircncias traacutegicas veio alcanccedilar no fim da vida a gloacuteria eterna e

recompensado pelos sofrimentos foi morar ao lado dos deuses no Olimpo Depois Heacuteracles

parte

Odisseu permanece ateacute que muitas almas aparecem em tumulto fazendo com que

ele se sinta tomado pelo medo (XI 633) amedrontado de que Perseacutefone enviasse-lhe a cabeccedila

de Goacutergona Impelido pelo fomacrboj no imediato instante Odisseu sobe agrave nau e exorta os

soacutecios a embarcarem para que pudessem logo partir E assim o fazem terminando o Canto

XI

Como pudemos ver ao longo de nossa anaacutelise do Canto XI da Odisseacuteia muitos

satildeo os seus momentos de tragicidade justificando a nossa escolha desse Canto para a anaacutelise

central deste trabalho dissertativo Assim pudemos analisar a configuraccedilatildeo traacutegica do heroacutei

observada a partir de Agamecircmnon Aquiles e Aacutejax E reforccedilando a forte presenccedila traacutegica

contida nesse Canto viemos ter alguns seacuteculos apoacutes a produccedilatildeo dessa epopeacuteia a peccedila

Agamecircmnon primeiro livro da Oresteacuteia de Eacutesquilo como tambeacutem Aacutejax de Soacutefocles A

142

primeira baseada na traacutegica morte do Atrida e em suas graves consequecircncias e a segunda

sobre o suiciacutedio de Aacutejax Ambos os fatos jaacute prenunciados e tragicamente desenvolvidos no

Canto XI da Odisseacuteia

Isso ocorre porque mesmo o heroacutei eacutepico estaacute facilmente propenso agrave uAacutebrij jaacute que

ele ―estaacute sempre numa situaccedilatildeo limite e a areteacute a excelecircncia leva-o facilmente a transgredir

os limites impostos pelo meacutetron suscitando-lhe o orgulho desmedido e a insolecircncia (hyacutebris)

(BRANDAtildeO 1998 p 67) Ou seja inerentemente agrave estrutura do heroacutei seja eacutepico ou traacutegico

encontramos certa disposiccedilatildeo que lhe permite cometer a desmedida esta que por sua vez iraacute

encaminhaacute-lo definitivamente para aumlmartia ndash tornando-o de protagonista eacutepico em um

heroacutei com relevantes semelhanccedilas de um protagonista traacutegico

A tarefa de ir ao Hades e voltar jaacute era para Odisseu considerada impossiacutevel daiacute

seu desespero no momento em que Circe anuncia seu novo trabalho (X 496-498) Contudo

ele natildeo esperava que para acentuar ainda mais essa empreitada ele iria encontrar-se com a

matildee que ele natildeo sabia que morrera e com seus antigos companheiros em estado traacutegico de

insatisfaccedilatildeo com o destino acionado pelos deuses como eacute o caso de Agamecircmnon ou com o

destino escolhido por ele proacuteprio como eacute exemplificado atraveacutes de Aquiles ou ainda como

ocorre com Aacutejax inconformado e rancoroso com Odissseu sobre quem ele descarrega toda a

culpa do seu mal Aqueles valorosos heroacuteis eacutepicos no Hades natildeo passam de sombras de

eiAtildedwlon a vagarem paacutelidas sem consciecircncia sem nome sem honra E no instante em que

tecircm a razatildeo por causa do ritual feito por Odisseu natildeo recordam nada da gloacuteria e das

conquistas que tiveram quando heroacuteis eacutepicos ao contraacuterio restam-lhes apenas a lembranccedila e a

dor dos heroacuteis traacutegicos que se tornaram no final da vida E nesses como vimos o Laertida

natildeo pode espelhar-se pois como diz-nos Sandra Luna (2005)

Natildeo eacute por acaso que no aproveitamento da literatura grega como instrumento de

educaccedilatildeo humanista o heroacutei traacutegico desenha uma trajetoacuteria a ser evitada enquanto

a do heroacutei das epopeacuteias por seus gloriosos feitos mas sobretudo porque consegue

vencer o traacutegico projeta uma imagem a ser emulada Por tudo isso eacute possiacutevel

enquadrar a trageacutedia grega como uma estrateacutegia poeacutetica de racionalizaccedilatildeo do

traacutegico (LUNA 2005 p 383)

Configurados no Canto XI da Odisseacuteia como heroacuteis traacutegicos Agamecircmnon

Aquiles e Aacutejax natildeo mais podem servir para Odisseu como exemplo ao contraacuterio como todo e

qualquer heroacutei traacutegico seus caminhos devem ser evitados Desse modo em Odisseu como

espectador de todo esse cenaacuterio traacutegico satildeo suscitados os sentimentos de fomacrboj e esup1leoj O

primeiro porque todos eles satildeo seus semelhantes e ele estaacute suscetiacutevel a vivenciar o mesmo

143

tendo que portanto procurar fugir142

desses destinos Consequentemente a inspiraccedilatildeo desses

sentimentos levaraacute Odisseu agrave kaqarsij a fim de que tenha a purificaccedilatildeopurgaccedilatildeo desses

males (Poeacutetica 1449b) E apoacutes toda a vivecircncia traacutegica que o leva agrave kaqarsij Odisseu

pode enfim prosseguir purificado em seu caminho de retorno ao lar e da busca da gloacuteria

domeacutestica Pois como ele bem viu no Hades natildeo haacute lembranccedila das eacutepicas vitoacuterias e gloacuterias

resta aos mortos apenas o lamuacuterio pelo destino ingrato e a recordaccedilatildeo da traacutegica morte

Desse modo considerando-se que a kaqarsij como resultado da accedilatildeo traacutegica

constatamos que no Canto XI da Odisseacuteia a kaqarsij realiza-se no momento em que

Odisseu presencia situaccedilotildees traacutegicas de sua matildee e dos seus companheiros assim como

tambeacutem as escuta Assim essa narrativa permeada por elementos traacutegicos como aatildeth Moiordfra

asup1namacrgkh daimacrmwn aumlmartia uAacutebrij fomacrboj esup1leoj e asup1nagnwiquestrisij propicia a Odisseu

ser um espectador do traacutegico atraveacutes do que vecirc e ouve levando-o a kaqarsij Ao longo

deste trabalho pode-se observar a experiecircncia traacutegica vivida por Odisseu como rito de

passagem instrumento para o heroacutei passar pela kaqarsij e assim estar preparado para

finalizar sua jornada em Iacutetaca Com a realizaccedilatildeo da kaqarsij arriscamos a afirmar que

especificamente no Canto XI da Odisseacuteia Homero lega-nos natildeo apenas os germes traacutegicos

(Lesky 2006) mas a primeira representaccedilatildeo de um espectador traacutegico que eacute levado a

kaqarsij Assim tendo vivido e presenciado experiecircncias traacutegicas e tambeacutem tendo

purificado e purgado os sentimentos que foram suscitados com a kaqarsij Odisseu pocircde

seguir seu caminho de retorno a paacutetria- seu objetivo maior desde que saiacutera de Troacuteia

142

Verificar a explicaccedilatildeo dada no segundo capiacutetulo sobre fomacrboj que etimologicamente indica o medo que faz

fugir

144

Consideraccedilotildees finais

Em nosso trabalho dissertativo ―Tragicidade no Canto XI da Odisseacuteia Anticleacuteia

Agamecircmnon Aquiles Aacutejax analisamos o teor traacutegico que percorre a eacutepica Odisseacuteia mais

especificamente no Canto XI em que Odisseu encontra-se com sua matildee e com alguns que

foram seus companheiros na Guerra de Troacuteia A partir dos diaacutelogos desenvolvidos entre o

filho de Laertes com os demais personagens pudemos identificar diversos elementos traacutegicos

que inclusive seratildeo responsaacuteveis por desencadear em Odisseu a kaqarsij como resultado

dos sentimentos de fomacrboj e esup1leoj que lhe foram inspirados

A fim de alcanccedilar o objetivo pretendido desenvolvemos em nosso trabalho trecircs

capiacutetulos No primeiro intitulado ―Contextualizaccedilatildeo miacutetica e religiosa da Odisseacuteia fizemos

uma explanaccedilatildeo a respeito das representaccedilotildees miacuteticas e seus significados para o mundo

homeacuterico como tambeacutem realizamos uma apresentaccedilatildeo da Odisseacuteia Ainda discorremos sobre

a estrutura do poema eacutepico a ser estudado e do perfil multifacetado do seu heroacutei Odisseu

Todas essas informaccedilotildees contribuiacuteram para entendermos em qual contexto o traacutegico pocircde

despontar em meio a esse contorno eacutepico

No segundo capiacutetulo ―Traacutegico aspectos teoacutericos e conceituais discorremos

sobre a accedilatildeo traacutegica sua origem formaccedilatildeo seus elementos constitutivos e seus meios de

efetivaccedilatildeo literaacuteria Para tanto expusemos a relaccedilatildeo do traacutegico com a trageacutedia gecircnero atraveacutes

do qual foi consagrado aleacutem de discutirmos tambeacutem a configuraccedilatildeo do traacutegico na Poeacutetica

atraveacutes de Aristoacuteteles como tambeacutem por meio de outros autores que se dedicaram ao estudo

da accedilatildeo traacutegica Jean Pierre Vernant Pierre Grimal Jacqueline de Romilly Anatol Rosenfeld

Junito Brandatildeo e Sandra Luna

No terceiro capiacutetulo ―Tragicidade no Canto XI da Odisseacuteia Anticleacuteia Aquiles

Agamecircmnon e Aacutejax fizemos uma anaacutelise da realizaccedilatildeo do traacutegico dentro do contexto eacutepico

especificamente no Canto XI da Odisseacuteia Contudo para entendermos que essa tragicidade

natildeo era um fato isolado dentro da obra primeiro realizamos a identificaccedilatildeo e anaacutelise da

tragicidade presente ao longo da Odisseacuteia no primeiro toacutepico nomeado ―Odisseacuteia momentos

de tragicidade No segundo toacutepico depois de compreender que o traacutegico permeia toda a

Odisseacuteia analisamos o Canto XI a partir dos encontros de Odisseu no Hades com sua matildee

que ele natildeo sabia que morrera e com os antigos companheiros Agamecircmnon Aquiles e Aacutejax

todos sofrendo pelo destino traacutegico que a vida lhes reservou Como espectador das cenas

145

traacutegicas no Hades Odisseu ao mesmo tempo em que se apieda tambeacutem fica amedrontado de

vir a ter o mesmo destino traacutegico de seus companheiros em Troacuteia E todos esses encontros

proporcionam ao heroacutei de Iacutetaca vivenciar fatos traacutegicos e atraveacutes deles ser inspirado pelo

fomacrboj e pela esup1leoj levando-o agrave kaqarsij

146

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149

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Trad Alexandre Hasnaoui Paris Les Belles Lettrers 2001

150

Joatildeo Pessoa ____ ____ ______

_____________________________________

Michelle Bianca Santos Dantas

Page 5: MICHELLE BIANCA SANTOS DANTAS

5

A todos que comigo compartilharam as dificuldades e alegrias desta jornada

dedico este meu trabalho de Dissertaccedilatildeo

6

AGRADECIMENTOS

A Deus primeiramente agradeccedilo pelo dom da vida pelo amor e por toda

proteccedilatildeo Sem a forccedila divina eu natildeo conseguiria ultrapassar os obstaacuteculos enfrentados ao

longo deste mestrado

Agrave minha matildee D Bernadete agradeccedilo por ter me dado a luz iluminando-me no

meu nascer e no meu desenvolver assim como fez tambeacutem com minha irmatilde Mileyde a quem

agradeccedilo pela torcida

Ao meu esposo amado e fiel amigo agradeccedilo cada dia e cada segundo de

companheirismo e amor Juntos suportamos os desafios e renuacutencias juntos brindamos as

conquistas Por isso a Faacutebio agradeccedilo o amor que palavras natildeo tenho para expressar

Aos amigos agradeccedilo pelo apoio prestado pois estando perto ou distante sempre

torcem pelo meu sucesso e que naturalmente se reconhecem neste agradecimento

Agradeccedilo aos professores que foram importantes desde os passos iniciais da

minha vida acadecircmica Graccedila Martins Camen Servilla Elisalva Madruga Arturo Gouveia

como tambeacutem aos professores Milton Marques e Juvino Alves especialmente pela iniciaccedilatildeo

aos estudos claacutessicos

Ao meu orientador Prof Dr Arturo Gouveia agradeccedilo as pertinentes

consideraccedilotildees todo o aprendizado e a orientaccedilatildeo imparcial e efetiva

Agradeccedilo ao Prof Dr Fabriacutecio Possebon por dispor-se a revisar algumas

traduccedilotildees Ao Prof Dr Alzir Oliveira por aceitar a avaliar meu trabalho assim como a Profordf

Drordf Marinalva Vilar e a Prof Drordf Sandra Luna que atraveacutes de sua obra e de suas aulas

muito me ensinou sobre o traacutegico claacutessico

Agradeccedilo a Profordf Drordf Ana Marinho coordenadora do Programa de Poacutes-

Graduaccedilatildeo em Letras (PPGL) pelo apoio nesta jornada

Agrave Capes agradeccedilo o investimento que viabilizou a realizaccedilatildeo desta pesquisa

7

ὢ πόποι οἷον δή νυ θεοὺς βροτοὶ αἰτιόωνται

ἐξ ἡμέων γάρ φασι κάκ᾽ ἔμμεναι οἱ δὲ καὶ αὐτοὶ

σφῆισιν ἀτασθαλίηισιν ὑπὲρ μόρον ἄλγε᾽ ἔχουσιν

Oh grandes deuses Agora os mortais culpam os deuses

Pois de noacutes dizem vir a causa de todos seus males

quando]

eles mesmos por suas loucas presunccedilotildees suportam dores

contra o destino]

(Odisseacuteia I 32-34

8

RESUMO

O presente trabalho Tragicidade no Canto XI da Odisseacuteia Anticleacuteia

Agameacutemnon Aquiles e Aacutejax visa analisar os aspectos traacutegicos observados no Canto XI da

Odisseacuteia e consequentemente sua relevacircncia na estrutura da referida eacutepica homeacuterica Esses

aspectos seratildeo estudados a partir dos encontros de Odisseu no Hades com a sua matildee

Anticleacuteia Agameacutemnon Aquiles e Aacutejax Para tanto utilizaremos entre outras obras A

Poeacutetica de Aristoacuteteles e suas consideraccedilotildees sobre o gecircnero eacutepico e o traacutegico Esta obra seraacute

fundamental para o desenvolvimento do nosso trabalho por ser um legado dos mais

importantes que temos sobre a definiccedilatildeo dos gecircneros e da estrutura da poicenthsij Aleacutem do

mais nela tambeacutem encontramos consideraccedilotildees sobre os elementos traacutegicos como aatildeth

Moiordfra asup1namacrgkh daimacrmwn aumlmartia uAacutebrij fomacrboj esup1leoj asup1nagnwiquestrisij e

principalmente sobre a katarsij Tais elementos como analisaremos tambeacutem podem ser

reconhecidos na eacutepica homeacuterica Assim constataremos em nossa pesquisa a assertiva de

Aristoacuteteles no seacuteculo V dC acerca da intergenaricidade Como vemos esse fato natildeo eacute

privilegio das literaturas modernas mas ao contraacuterio pode ser contemplado desde o Periacuteodo

Arcaico da Literatura Grega no seacuteculo VIII aC a partir de Homero e no caso especiacutefico do

nosso estudo no Canto XI da Odisseacuteia Neste observamos a manifestaccedilatildeo da tragicidade

que mais tarde no seacuteculo V aC seraacute o fundamento miacutetico das trageacutedias gregas Utilizaremos

tambeacutem para fundamentar-nos compreensatildeo do traacutegico autores como Vernant Pierre

Grimal Jacqueline de Romilly Sandra Luna Junito Brandatildeo entre outros A fim de que

possamos melhor abarcar o objetivo do nosso trabalho dividimo-lo em trecircs capiacutetulos o

primeiro intitulado ―Contextualizaccedilatildeo miacutetica e religiosa da Odisseacuteia o segundo ―Traacutegico

aspectos teoacutericos e conceituais e por fim o terceiro ―Tragicidade no Canto XI da Odisseacuteia

Anticleacuteia Agamecircmnon Aquiles Aacutejax em que analisaremos o aspecto traacutegico desses

encontros

Palavras-chave Literatura Claacutessica Homero Odisseacuteia Traacutegico

9

REacuteSUMEacute

Le preacutesent travail Tragiciteacute dans le Chant XI de lrsquoOdysseacutee Anticlea

Agamemnon Achilles et Ajax vise agrave analyser les aspects tragiques observeacutes dans le Chant XI

de llsquoOdysseacutee et en conseacutequence sa pertinance dans la structure de llsquoeacutepique homeacuterique

rapporteacutee Ces aspects seront eacutetudieacutes a partir des rencontres dlsquoOdysseus dans llsquoHadegraves avec

sa megravere Anticlea Agamemnon Achilles et Ajax De telle faccedilon nous utiliserons entre autres

oeuvres La Poeacutetique dlsquoAristote et ses consideacuterations sur le genre eacutepique et le tragique Cette

oeuvre sera fondamentale pour le deacuteveloppement de notre travail par ecirctre un heacuteritage des plus

importants que nous avons sur la deacutefinition des genres et de la structure de la poicenthsij En

outre dans cette oeuvre nous trouvons aussi consideacuterations sur les eacuteleacutements tragiques comme

aatildeth Moiordfra asup1namacrgkh daimacrmwn aumlmartia uAacutebrij fomacrboj esup1leoj asup1nagnwiquestrisij et

principalement sur la katarsij Tels eacuteleacutements comme nous analyserons peuvent aussi ecirctre

reconnus dans llsquoeacutepique homeacuterique Ainsi nous constaterons dans notre recherche llsquoassertive

dlsquoAristote au Ve siegravecle ap J-C concernant llsquointergeacuteneacutericiteacute Comme nous voyons ce fait

nlsquoest pas privilegravege des litteacuteratures modernes mais au contraire cela peut ecirctre envisageacute depuis

la Peacuteriode Archaiumlque de la Litteacuterature Grecque au VIIIe siegravecle avJ-C agrave partir dlsquoHomegravere et

dans le cas espeacutecifique de notre eacutetude dans le Chant XI de llsquoOdysseacutee Dans celui-ci nous

observons la manifestation de la tragiciteacute que plus tard au Ve siegravecle av J -C ce sera le

fondement mythique des trageacutedies grecques Nous utiliserons aussi pour se baser

compreacutehension du tragique auteurs comme Vernant Pierre Grimal Jacqueline de Romilly

Sandra Luna Junito Brandatildeo entre autres Afin que nous puissions mieux embrasser llsquoobjectif

de notre travail nous llsquoavons diviseacute en trois chapitres le premier intituleacute laquo Contextualisation

mythique et religieuse de llsquoOdysseacutee raquo le deuxiegraveme laquo Tragique aspects theacuteoriques et

conceptuels raquo et finalement le troisiegraveme laquo Tragiciteacute dans le Chant XI de llsquoOdysseacutee

Anticlea Agamemnon Achilles Ajax raquo ougrave nous analyserons llsquoaspect tragique de ces

rencontres

Mots-cleacute Litteacuterature Classique Homegravere Odysseacutee Tragique

10

SUMAacuteRIO

INTRODUCcedilAtildeO________________________________________________________11

1 CONTEXTUALIZACcedilAtildeO MIacuteTICA E RELIGIOSA DA ODISSEacuteIA___________17

11 Representaccedilotildees e significados do mundo homeacuterico___________________17

12 Apresentaccedilatildeo da Odisseacuteia_______________________________________23

121 A Estrutura do poema___________________________________ _28

122 Odisseu o heroacutei multifacetado _____________________________36

2 TRAacuteGICO ASPECTOS TEOacuteRICOS E CONCEITUAIS_____________________47

21 Uma breve consideraccedilatildeo sobre o nosso estudo do Traacutegico______________47

22 O traacutegico e a trageacutedia___________________________________________48

23 O Traacutegico na Poeacutetica___________________________________________60

24 A busca do traacutegico outras reflexotildees teoacutericas ________________________79

3 TRAGICIDADE NO CANTO XI DA ODISSEacuteIA ANTICLEacuteIA AGAMEcircMNON

AQUILES AacuteJAX________________________________________________________89

31 Odisseacuteia momentos de tragicidade_________________________________89

32 Tragicidade no Canto XI da Odisseacuteia Anticleacuteia Agamecircmnon Aquiles

Aacutejax___________________________________________________________________115

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS______________________________________________144

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS______________________________________146

11

INTRODUCcedilAtildeO

A Odisseacuteia (do grego Obrvbardusseia) cuja autoria eacute atribuiacuteda a Homero pertence

juntamente com a Iliacuteada ao chamado periacuteodo arcaico da literatura grega que compreende do

seacuteculo VIII aC ao seacuteculo V aC Ambas as epopeacuteias homeacutericas satildeo ―os mais antigos poemas

em grego que sobreviveram ateacute noacutes (HAUSER 1995 p55) e constituem verdadeiros

legados artiacutesticos Isso entre outros fatores explicaria o fato de em pleno seacuteculo XXI essas

epopeacuteias ainda nos trazerem a possibilidade de pesquisas e estudos demonstrando a

inesgotabilidade de leituras literaacuterias

Logo ao iniacutecio da narrativa percebemos que a Odisseacuteia canta o noacutestos o regresso

ao lar e a paacutetria Assim o argumento da Odisseacuteia eacute o regresso de Odisseu a Iacutetaca apoacutes vinte

anos em metade deste tempo o heroacutei ocupa-se nos combates travados na Guerra de Troacuteia e

nos outros dez anos passa errante por mar e terra Com base nessa narrativa homeacuterica

pretendemos realizar um estudo de aplicaccedilatildeo do traacutegico na Odisseacuteia especificamente no

Canto XI quando Odisseu em sua passagem pelo Hades encontra-se respectivamente com

Anticleacuteia sua matildee cuja morte ele ignorava Agamecircmnon que sofre pela traiccedilatildeo armada pela

sua esposa com o amante Egisto Aquiles inconformado preferindo ser um trabalhador

campestre a ter que reinar sobre os mortos e Aacutejax ressentido ainda com o ocorrido na

disputa das armas do filho de Peleu

Para que realizemos essa anaacutelise estudaremos diversos autores desde os claacutessicos

como Platatildeo ateacute os mais modernos como Jean-Pierre Vernant Junito Brandatildeo entre outros

Contudo ressaltamos que nossa fundamentaccedilatildeo teoacuterica seraacute a Poeacutetica de Aristoacuteteles

Na Repuacuteblica como sabemos Platatildeo nega o traacutegico e a poesia para a organizaccedilatildeo

estatal argumentando que a sociedade deveria vigiar ―() os que se aventuram a tratar desse

gecircnero de faacutebulas () pois natildeo apenas eacute falso tudo que contam como de tudo inuacutetil para os

futuros combatentes (PLATAtildeO 2000 p 117) Jaacute Aristoacuteteles em A Poeacutetica ao contraacuterio

refere-se agrave poesia natildeo apenas como instrumento de educaccedilatildeo mas como um ato de criaccedilatildeo

delineado por estruturas e caracteriacutesticas proacuteprias que deve ser antes de tudo verossiacutemil O

estudo aristoteacutelico da poihsij natildeo estaacute centralizado ao contraacuterio de Platatildeo nos valores que

ela veicula e sim na organicidade estrutural e interna Desta forma em A Poeacutetica Aristoacuteteles

define a epopeacuteia e a trageacutedia como ―imitaccedilatildeo de homens superiores (ARISTOacuteTELES 1988

p 109) No entanto ele tambeacutem nos informa que esses gecircneros diferem visto que a epopeacuteia

12

tem metro uacutenico forma narrativa e maior extensatildeo enquanto a trageacutedia por se realizar dentro

de um periacuteodo do sol eacute mais breve O pensador grego diz ainda que apesar de todas as partes

da epopeacuteia estarem na trageacutedia e a reciacuteproca natildeo ser verdadeira haacute alguns elementos da

trageacutedia que podem ser encontrados nas epopeacuteias E esse argumento seraacute fundamental para

nosso trabalho pois observaremos jaacute na epopeacuteia homeacuterica especificamente no Canto XI da

Odisseacuteia aspectos de tragicidade que seratildeo mais tarde no seacuteculo IV aC a essecircncia miacutetica

das trageacutedias sejam elas de Eacutesquilo Soacutefocles eou Euriacutepides

Deste modo nossa pesquisa justifica-se pela necessidade de sugerir uma leitura

criacutetica que promova uma atualizaccedilatildeo dessa obra claacutessica Isso porque esse poema homeacuterico

ultrapassa os limites geograacutefico-temporais da Greacutecia Antiga constituindo-se assim numa

obra universal Inclusive sabemos da importacircncia dos textos homeacutericos dentro da proacutepria

cultura grega sendo sempre citados pelos filoacutesofos como por exemplo Platatildeo em A

Repuacuteblica e em Iacuteon e Aristoacuteteles em A Poeacutetica Os textos homeacutericos influenciaram tambeacutem

a produccedilatildeo poeacutetica que os sucedeu a exemplo das contribuiccedilotildees dos tragedioacutegrafos Neste

caso especiacutefico podemos ver o Canto XI da Odisseacuteia como um prenuacutencio das peccedilas

Agamecircmnon de Eacutesquilo componente da Oresteacuteia e Aacutejax de Soacutefocles jaacute que estas

desenvolvem as circunstacircncias jaacute pronunciadas no canto eacutepico citado Agamecircmnon sofrendo

por uma armadilha montada pela proacutepria esposa e Aacutejax sentindo-se desonrado por ter sido

preterido na disputa das armas de Aquiles permanecendo-se indiferente a Odisseu Desta

maneira entendemos nosso trabalho como relevante para o aprofundamento das pesquisas na

aacuterea da Literatura Claacutessica especificamente no que diz respeito agrave eacutepica homeacuterica Odisseacuteia e

aos estudos do traacutegico Aleacutem do mais temos consciecircncia de que nossa pesquisa seraacute tambeacutem

importante aos estudiosos da literatura em geral os quais natildeo devem perder de vista o berccedilo

literaacuterio ocidental

Atraveacutes de nossa pesquisa ―Tragicidade no Canto XI da Odisseacuteia Anticleacuteia

Agameacutemnon Aquiles e Aacutejax analisaremos como jaacute foi dito aspectos traacutegicos na citada

epopeacuteia de Homero a partir da ida ao Hades de seu heroacutei Odisseu em busca do adivinho

Tireacutesias No Hades ele encontra natildeo soacute o adivinho que o auxiliaraacute no trajeto de retorno agrave

paacutetria como tambeacutem a sua matildee Anticleacuteia e os destacados heroacuteis que combateram ao seu

lado na Guerra de Troacuteia Agamecircmnon Aquiles e Aacutejax

Para fundamentarmos o nosso trabalho aleacutem de Aristoacuteteles utilizaremos outros

autores que vatildeo auxiliar-nos na compreensatildeo da estrutura da eacutepica e da manifestaccedilatildeo do

traacutegico O estudo destes temas sugere-nos a ocorrecircncia da interrelaccedilatildeo entre os gecircneros

literaacuterios fazendo-nos compreender que este procedimento natildeo eacute um qualificativo especiacutefico

13

das literaturas modernas jaacute que pode ser constatado desde a Antiguidade Claacutessica O proacuteprio

Aristoacuteteles (1449a) chega a afirmar que o cocircmico estaacute para a Iliacuteada assim como a trageacutedia

estaacute para Odisseacuteia

Deste modo versando sobre os aspectos dos gecircneros claacutessicos e de suas

caracteriacutesticas auxiliar-nos-atildeo outros autores como por exemplo Anatol Rosenfeld Em O

teatro eacutepico (1985) Rosenfeld conceitua as caracteriacutesticas substantivas ou adjetivas dos

gecircneros dizendo-nos que ―No fundo toda obra literaacuteria de certo gecircnero conteraacute aleacutem dos

traccedilos estiliacutesticos mais adequados ao gecircnero em questatildeo tambeacutem traccedilos estiliacutesticos mais

tiacutepicos dos outros gecircneros (ROSENFELD 1985 p 18) Albin Lesky em A trageacutedia grega

(2006) ao tratar sobre o problema do traacutegico ressalta que nas epopeacuteias homeacutericas ―jaacute se

encontram germes em que se prepara a primeira e ao mesmo tempo a mais perfeita

objetivaccedilatildeo da visatildeo traacutegica do mundo no drama do seacuteculo V (LESKY 1976 p 18) E

assim como Platatildeo no Livro X da Repuacuteblica destaca a referecircncia de Homero como o pai da

trageacutedia

Utilizaremos tambeacutem a obra Arqueologia da accedilatildeo traacutegica o legado grego (2005) de

Sandra Luna para dar-nos respaldo teoacuterico-criacutetico acerca das origens e conceitos do traacutegico

A autora considera ―ser possiacutevel identificar nos versos homeacutericos momentos de intensa

tragicidade (LUNA 2005 p 30) Satildeo estes momentos de tragicidade que analisaremos no

Canto XI da Odisseacuteia por percebermos que haacute neste canto especificamente uma maior

potencialidade traacutegica apesar de termos momentos de tragicidade por toda a obra A presenccedila

do traacutegico revela-se ateacute mesmo pela circunstacircncia por Odisseu na porta do Hades buscando

Tireacutesias para que possa indicar-lhe o caminho de volta para casa que jaacute tentava haacute anos

Todavia encontra imagens muito mais desoladoras ndash sua matildee morta por saudades suas e seus

amigos de combate Agamecircmnon Aquiles e Aacutejax O primeiro foi encontrar a morte ingloacuteria

em casa pela proacutepria esposa o segundo havia conquistado a bela morte em campo de batalha

mas preferia ser um trabalhador do campo e o terceiro mantinha-se ainda tomado pelo

sentimento de desonra por natildeo ter ficado com as armas de Aquiles Aleacutem do mais muito do

que Tireacutesias iraacute revelar eacute bastante traacutegico mesmo Odisseu sabendo que cumprindo todos os

desiacutegnios conseguiraacute voltar para casa Isso porque apesar de Odisseu ter a revelaccedilatildeo de que

teraacute o esperado retorno fica tambeacutem tendo o conhecimento de que deveraacute enfrentar ainda

muitos outros obstaacuteculos a exemplo do combate que travaraacute contra os pretendentes jaacute em

Iacutetaca

Sobre a origem da trageacutedia Junito Brandatildeo (2007) seguindo o jaacute afirmado por

Aristoacuteteles reafirma a ligaccedilatildeo de Dioniso com esse gecircnero dramaacutetico por isso diz ldquoA

14

trageacutedia nasceu do culto de Dioniso isto apesar de algumas tentativas ainda natildeo se

conseguiu negar Ningueacutem pocircde ateacute hoje explicar a gecircnese do traacutegico sem passar pelo

elemento satiacuterico (BRANDAtildeO 2007 p 9) Em ―Homero e seus poemas deuses mitos e

escatologia Junito Brandatildeo (1998) tambeacutem nos respalda ao dizer que a maior novidade

trazida pela Odisseacuteia ―estaacute no embriatildeo da ideacuteia de culpa e castigo em que a hyacutebris a

violecircncia a insolecircncia a ultrapassagem do meacutetron que seraacute a mola mestra da trageacutedia

comeccedilam a despontar (BRANDAtildeO 1998 p 134)

Com a realizaccedilatildeo da pesquisa supracitada pretendemos contribuir para a

ampliaccedilatildeo dos estudos sobre a Odisseacuteia de Homero enaltecendo a sua importacircncia literaacuteria

mas tambeacutem miacutetico-religiosa e sua inter-relaccedilatildeo traacutegica especificamente no Canto XI Para

tanto iremos expor as discussotildees acerca dos conceitos da epopeacuteia e do traacutegico realizadas

primeiramente por Aristoacuteteles que nos deu valiosas contribuiccedilotildees acerca dos gecircneros

claacutessicos e suas especificidades Tambeacutem realizaremos a traduccedilatildeo dos versos a serem citados

da Odisseacuteia para que entremos em contato com o texto original na perspectiva de nos

aproximarmos mais de sua estrutura morfossintaacutetica e semacircntica Seratildeo realizadas as

traduccedilotildees das citaccedilotildees da Poeacutetica por considerarmos este o texto teoacuterico base para a nossa

produccedilatildeo analiacutetica centralizada justamente na tragicidade do Canto XI da Odisseacuteia

Tracicidade esta que funciona como prenuacutencio das trageacutedias Aacutejax de Soacutefocles e Agamecircmnon

de Eacutesquilo

A fim de que melhor possamos abarcar o estudo do traacutegico no jaacute citado canto da

epopeacuteia homeacuterica dividimos o desenvolvimento do nosso trabalho em trecircs capiacutetulos que

seratildeo descriminados a seguir

No primeiro intitulado ―Contextualizaccedilatildeo miacutetica e religiosa da Odisseacuteia

realizaremos a apresentaccedilatildeo desta eacutepica destacando suas caracteriacutesticas e especificidade

temaacutetica e estrutural Assim discorreremos acerca das representaccedilotildees e significaccedilotildees comuns

ao mundo homeacuterico aleacutem de realizarmos uma apresentaccedilatildeo do poema a partir de sua

estrutura e de seu heroacutei Odisseu Deste analisaremos o caraacuteter multifacetado que eacute revelado

tanto em suas accedilotildees como preconiza Aristoacuteteles na Poeacutetica bem como atraveacutes dos seus

epiacutetetos polutropoj polumhtij entre outros Estes e outros epiacutetetos seratildeo aprofundados

estrutural e semanticamente no momento propiacutecio todavia os jaacute citados podem ser traduzidos

por o de muitas voltas e o muito astuto

O tiacutetulo do nosso segundo capiacutetulo eacute ―Traacutegico aspectos teoacutericos e conceituais

em que pretendemos discorrer acerca do traacutegico tanto pelo aspecto teoacuterico como tambeacutem

15

conceitual para que possamos entender melhor sua constituiccedilatildeo e manifestaccedilatildeo natildeo apenas

nas trageacutedias como tambeacutem na eacutepica homeacuterica principalmente no Canto XI da Odisseacuteia

Para tanto desenvolveremos primeiramente um subtoacutepico sobre o traacutegico e a trageacutedia

estabelecendo as relaccedilotildees existentes entre ambos Entatildeo partiremos para observar e discutir a

partir da Poeacutetica e posteriormente faremos a anaacutelise das perspectivas que outros teoacutericos tecircm

sobre o traacutegico e ateacute que ponto eles se aproximam distanciam ou auxiliam no entendimento

do traacutegico ressalta-se no entanto que o conceito de traacutegico para noacutes relevante eacute o claacutessico

especificamente o realizado no mundo grego

No terceiro capiacutetulo intitulado ―Tragicidade no Canto XI da Odisseacuteia Anticleacuteia

Aquiles Agamecircmnon e Aacutejax faremos a anaacutelise dos elementos motivadores de nossa

dissertaccedilatildeo Por isso consideramos conveniente logo no iniacutecio de nossa proposta dedicarmos

um subtoacutepico para ilustrar que ao decorrer de toda a obra podemos identificar momentos de

tragicidade Desta maneira veremos que o aspecto traacutegico natildeo se restringe ao Canto XI

objeto central de nossas ponderaccedilotildees tanto que poderemos encontraacute-lo em outros Cantos

Entretanto justificamos nossa escolha pelo Canto XI por enxergarmos como o que possui a

manifestaccedilatildeo mais traacutegica ao longo de toda a Odisseacuteia estes motivos e consideraccedilotildees seratildeo

discutidos no momento propiacutecio E no segundo toacutepico deste terceiro capiacutetulo ―Tragicidade

no Canto XI da Odisseacuteia Anticleacuteia Aquiles Agamecircmnon Aacutejax realizaremos a anaacutelise de

toda a nossa proposta inicial jaacute que ateacute laacute teremos maior possibilidade de apreendecirc-lo de uma

maneira mais consistente Ateacute mesmo porque nos capiacutetulos e toacutepicos anteriores discutiremos

com clareza necessaacuteria os elementos que nos ajudaratildeo a entender a proposta geral da

dissertaccedilatildeo e sua efetuaccedilatildeo analiacutetica

Partindo da perspectiva do traacutegico presente na Poeacutetica objetivamos realizar uma

aplicaccedilatildeo desse estudo no Canto XI da Odisseacuteia E assim tentarmos (fazer) compreender a

realizaccedilatildeo do traacutegico neste Canto homeacuterico Pois mesmo sabendo que o traacutegico soacute foi

desenvolvido efetivamente pelos tragedioacutegrafos gregos percebemos que sua realizaccedilatildeo eacute

comum jaacute nas epopeacuteias homeacutericas Desta maneira poderemos ver Homero como o poeta que

nos legou natildeo apenas as duas primeiras obras literaacuterias do Ocidente Iliacuteada e Odisseacuteia mas

tambeacutem as primeiras manifestaccedilotildees traacutegicas de nossa literatura

Ao longo de nossa pesquisa utilizamo-nos de diversas ediccedilotildees de uma mesma obra

tanto para realizaccedilatildeo das leituras como das traduccedilotildees (em que cotejamos as jaacute editadas

traduccedilotildees) Por isso indicaremos a seguir todas as ediccedilotildees usadas apesar de todas elas jaacute

constarem nas Referecircncias Bibliograacuteficas Acreditamos que tal procedimento facilitaraacute

16

metodologicamente a construccedilatildeo e a leitura do nosso trabalho Logo no decorrer do nosso

texto citaremos soacute o nome das obras e natildeo as datas de ediccedilotildees

Assim utilizamos para entendimento da Poeacutetica Repuacuteblica e Odisseacuteia aleacutem do

texto original as ediccedilotildees que listaremos a seguir Para Poeacutetica usamos Les Belles Lettres de

1979 com traduccedilatildeo de Hardy Cultrix de 1988 traduzida por Jaime Bruna Ars Poeacutetica de

1992 com traduccedilatildeo de Eudoro de Sousa Para Repuacuteblica fizemos uso das ediccedilotildees de I

mammut em Tutte le opere de 2009 e da Editora Universitaacuteria da UFPA de 2000 cuja

traduccedilatildeo foi feita por Carlos Alberto Nunes Para Odisseacuteia utilizamos Otoo Pierre Editores

de 1980 com traduccedilatildeo de Jaime Bruna a Livraria Saacute da Costa de 1980 traduzida por Dias

Palmeira e Alves Correia Les Belles Lettres 2002 por Victor Beacuterard e Ediouro de 2009

traduzida por Carlos Alberto Nunes

17

1 CONTEXTUALIZACcedilAtildeO MIacuteTICA E RELIGIOSA DA ODISSEacuteIA

11 Representaccedilotildees e significados do mundo homeacuterico

Segundo a tradiccedilatildeo Homero eacute o autor das duas primeiras obras literaacuterias do Ocidente

que nos chegaram Iliacuteada e Odisseacuteia Tal afirmaccedilatildeo contudo natildeo nos soluciona

problemaacuteticas como por exemplo o de sua bibliografia que ateacute hoje eacute um grande desafio

Mas se a ciecircncia moderna natildeo consegue provas de sua existecircncia permitindo-nos afirmar

seguramente quem foi Homero como viveu quando e onde nasceu Para a tradiccedilatildeo claacutessica

sua existecircncia eacute inquestionaacutevel por isso autores como Platatildeo Aristoacuteteles e Hesiacuteodo referem-

se claramente agrave sua figura Vejamos o que diz Platatildeo

() ῥεηένλ ἦλ δ᾽ ἐγώ θαίηνη θηιία γέ ηίο κε θαὶ αἰδὼο ἐθ παηδὸο ἔρνπζα

πεξὶ κήξνπ ἀπνθσιύεη ιέγεηλ (PLATAtildeO X 595 b-c)

Preciso falar dizia eu contudo o afeto e o respeito certamente que tenho

sobre Homero desde a infacircncia impede-me de falar1

Isso tambeacutem o faz Aristoacuteteles (Poeacutetica Livro III 1448 a 22-26) porque

discutindo acerca da poesia e de seus objetos de imitaccedilatildeo tambeacutem se refere objetivamente a

Homero e a sua poesia comentando sua produccedilatildeo eacutepica e caracteriacutesticas Como podemos ver

parece indiscutiacutevel para os gregos claacutessicos a existecircncia de Homero

No entanto deixando as incertezas biograacuteficas de lado compreendamos que o

autor da Odisseacuteia nosso objeto de pesquisa existiu provavelmente no periacuteodo arcaico da

literatura grega que compreende o periacuteodo do seacuteculo VIII ateacute V aC Homero produziu suas

eacutepicas no dialeto jocircnio com alguns empreacutestimos do eoacutelico e apesar de terem surgido

oralmente por volta do seacuteculo VIII aC soacute em VI aC eacute que passam para escrita a mando do

tirano Pisiacutestratos que acreditava descender de Nestor de Pilos Neste mesmo seacuteculo como

nos informa Hauser (1995 p63) havia uma lei que estabelecia obrigatoriamente a recitaccedilatildeo

completa dos poemas de Homero no Festival de Panateneacuteias Como no seacuteculo VI aC as

eacutepicas homeacutericas passaram para a forma escrita aleacutem de terem seus recitais como

1 Ressaltamos que as traduccedilotildees utilizadas ao longo do trabalho satildeo nossas Contudo quando natildeo o forem

indicaremos seus respectivos autores Aleacutem disso a finalidade das traduccedilotildees feitas eacute operacional sem fins

esteacuteticos

18

obrigatoacuterios crecirc-se que desde entatildeo os poemas homeacutericos natildeo sofreram tantas mudanccedilas em

relaccedilatildeo aos poemas orais iniciais

Para Albin Lesky em Historia da Literatura Grega (1995) Homero eacute iniacutecio e

resultado herdeiro e criador Ele eacute o iniacutecio e criador da poesia grega influente ao mesmo

tempo eacute o fim e o herdeiro de um longo resultado de desenvolvimento poeacutetico e miacutetico

Diante disso o que nos importa mesmo entender eacute que muito do que sabemos

hoje sobre o mundo grego arcaico veio-nos por meio das eacutepicas homeacutericas Iliacuteada e Odisseacuteia

que nos legaram as visotildees sobre os mitos os deuses os heroacuteis a organizaccedilatildeo social enfim O

que natildeo podemos esquecer eacute que natildeo haacute tatildeo facilmente uma uacutenica visatildeo de mundo sobretudo

quando contrapomos as duas eacutepicas pois aiacute as diferenccedilas comeccedilam a aumentar

Assim como vimos anteriormente existem ainda discussotildees acerca da

comprovaccedilatildeo histoacuterica de Homero suas nuances e complicaccedilotildees Isto faz com que natildeo

possamos afirmaacute-lo como autor da Iliacuteada e da Odisseacuteia e sim que estas obras tecircm sua

autoria atribuiacuteda a Homero No entanto uma nova incongruecircncia surge quando centralizamos

nosso estudo para a Odisseacuteia Resumindo entendamos entatildeo que se a autoria de Homero

para a Iliacuteada eacute incerta esta se amplia ainda mais em relaccedilatildeo agrave Odisseacuteia A causa desse fato

daacute-se porque analisando-se ambas as eacutepicas percebem-se diferenccedilas natildeo apenas temaacuteticas

mas estruturais e conceituais que nos fazem deduzir que aleacutem de a Odisseacuteia ter sido escrita

depois da Iliacuteada poderia inclusive natildeo ser homeacuterica Na verdade natildeo nos importa muito

saber se Homero foi o autor ou natildeo da Odisseacuteia ateacute porque nossa anaacutelise basear-se-aacute no texto

mas nos interessa sim perceber quais satildeo estas diferenccedilas entre a Iliacuteada e a Odisseacuteia

principalmente as de cunho estrutural e de concepccedilatildeo de mundo

Uma destas diferenccedilas por exemplo pode ser vista a partir da representaccedilatildeo da

a)reth Para W Jaeger (2001 p 27) Homero deu-nos o mais antigo testemunho da cultura

aristocraacutetica grega principalmente atraveacutes da a)reth 2 cent Seja ela manifestada pela excelecircncia

guerreira como ocorre na Iliacuteada seja pelas qualidades intelectuais como ocorre na Odisseacuteia

E ainda completa ―a Odisseacuteia exalta sobretudo no seu heroacutei principal acima da valentia que

passa a lugar secundaacuterio a prudecircncia e a astuacutecia (JAEGER 2001 p 27) Muitas outras

2 De acordo com Renato Romizi (2007) o tema deste nome abrvbarre eacute oriundo de abrvbarreskw piaccio ou seja

agradar seu radical abrvbarr indica superioridade daiacute abrvbarrethcent significa excelecircncia de bravura coragem no sentido

militar ou virtude meacuterito no sentido moral O Le grand Bailly daacute-nos a traduccedilatildeo meacuterite ou qualiteacute ou seja

meacuterito e qualidade num sentido de excelecircncia e tambeacutem nos aponta para abrvbarreiwn que se relaciona a coragem

valentia E o Liddell and Scottrsquos Greek-English Lexicon relaciona a abrvbarrethcent grega a uirtus latina e aponta

tambeacutem para uma diferenccedila de sentido em relaccedilatildeo ao valor guerreiro valour e o moral for virtue merit da

virtude ou do meacuterito Assim podemos entender abrvbarrethcent como a qualidade guerreira eou a distinccedilatildeo do meacuterito

da virtude de um homem nobre

19

diferenccedilas podem ser observadas mas por hora nos deteremos neste exemplo jaacute que no

proacuteximo toacutepico ―Apresentaccedilatildeo da Odisseacuteia discutiremos mais sobre essas questotildees

De todo o modo apesar de especificidades diversas o que importa eacute percebermos que

os heroacuteis homeacutericos buscam a timh a honra como meio de assegurarem sua a)reth

qualidade do guerreirodo nobre Isso porque ―() o homem homeacuterico soacute adquire consciecircncia

do seu valor pelo reconhecimento da sociedade a que pertence () ele mede a Arete proacutepria

pelo prestiacutegio que disputa entre seus semelhantes (Ibidem p 31) Portanto se tudo o que

almeja o homem homeacuterico eacute a timh para atraveacutes dela alcanccedilar a a)reth que eacute perpeacutetua daiacute

a sua negaccedilatildeo ou ultraje torna-se um grave problema pois ―Para o homem homeacuterico e para o

mundo da nobreza desse tempo a negaccedilatildeo da honra era em contrapartida a maior trageacutedia

humana(JAEGER 2001 p 31)

Muitos satildeo os exemplos na literatura grega a respeito dessa honra ultrajada

inclusive como disse Jaeger (2001) resultando em trageacutedia Aliaacutes o grande tema das

trageacutedias gregas seraacute justamente a queda de um heroacutei Em Aacutejax de Soacutefocles por exemplo o

heroacutei ao vecirc-se desonrado por ter sido preterido na disputa das armas de Aquiles parte para

vingar-se dos chefes gregos mas iludido por Atena mata animais do rebanho Ao reconhecer

a falha cometida resolve entatildeo matar-se por vecirc-se totalmente desonrado

Bem provavelmente estaacute no Canto I da Iliacuteada um dos maiores exemplos de

desonra da literatura grega Neste Canto Aquiles retira-se da guerra quando tem seu geraj

ou seja seu precircmio de guerra3 tomado por Agamecircmmnon Este geraj distingue o heroacutei dos

demais e sem ele natildeo pode ter a sua timh logo sem esta natildeo poderaacute alcanccedilar a a)reth A

importacircncia da timh fica bem clara nas palavras reclamantes de Aquiles a matildee vejamos

μῆτερ ἐπεί μ᾽ ἔτεκές γε μινυνθάδιόν περ ἐόντα

τιμήν πέρ μοι ὄφελλεν Ὀλύμπιος ἐγγυαλίξαι

355 Ζεὺς ὑψιβρεμέτης νῦν δ᾽ οὐδέ με τυτθὸν ἔτισεν

ἦ γάρ μ᾽ ἈτρεἸδης εὐρὺ κρείων Ἀγαμέμνων

ἠτίμησεν ἑλὼν γὰρ ἔχει γέρας4 αὐτὸς ἀπούρας5

(Iliacuteada I 353-357)

Matildee como me geraste de curta existecircncia

3 O referido precircmio era Briseide escrava de Aquiles que eacute tomada por Agamecircmnon ao ter que ceder a sua

escrava Criseide a fim de aplacar a fuacuteria de Apolo 4 Os destaques satildeo nossos

5 Texto disponiacutevel em

httpwwwhsaugsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_il01html acessado em 22 de

abril agraves 1604 hs

20

seria justo o Oliacutempio Zeus a minha honra fazer aumentar aquele que

355 ressoa do alto ceacuteu Agora em verdade ele natildeo me honra nem um

[pouco

pois o Atrida Agamecircmnon o poderoso senhor desonrou-me

jaacute que capturando tem o meu precircmio de guerra tendo ele mesmo

[arrancado-me

Esta busca de Aquiles em ter seu geraj e consequentemente sua timh eacute

natural e justificaacutevel pois este mundo grego arcaico girava em torno desses elementos Nesta

cena em que reclama agrave matildee sua honra e questiona o compromisso de Zeus com sua causa natildeo

haacute arrogacircncia por parte de Aquiles ele busca a realizaccedilatildeo de aidwj e nemesij ou seja do

pudor e da justiccedila Pois natildeo eacute justo que ele aleacutem de morrer jovem tenha tambeacutem que morrer

desonrado E tanto aidwj quanto nemesij ―satildeo em Homero conceitos constitutivos do

ideal eacutetico da aristocracia (JAEGER 2001 p28) Devemos perceber a significaccedilatildeo que estes

conceitos tecircm para o mundo homeacuterico e como satildeo representados a fim de que entendamos

seus valores e significados A citaccedilatildeo abaixo eacute bastante esclarecedora deste fato

Os heroacuteis travavam-se mutuamente com respeito e honra constantes

Assentava nisso toda a sua ordem social A acircnsia de honra era neles

simplesmente insaciaacutevel sem que isto seja caracteriacutestica moral peculiar aos

indiviacuteduos como tais Era natural e indiscutiacutevel que os heroacuteis maiores e os

priacutencipes mais poderosos exigissem uma honra cada vez mais alta Ningueacutem

receia na Antiguidade reclamar a honra devida a um serviccedilo prestado

(JAEGER 2001 p 31)

Como vemos eacute natural dos heroacuteis buscarem sua timh a fim de alcanccedilarem a

a)reth e isso para os gregos natildeo se confunde com vaidade mas pelo contraacuterio relaciona-

se agrave aspiraccedilatildeo do valor pessoal Na Odisseacuteia como jaacute foi dito essa a)reth estaacute relacionada agrave

virtude intelectual e natildeo guerreira como ocorre na Iliacuteada Por isso Odisseu destaca-se como

o polumhtij o muito astuto que remete a um valor intelectual diferentemente do epiacuteteto de

Aquiles aOacuteristoj a)xaiwcurrenn o melhor dos aqueus que se refere a sua qualidade guerreira de

superioridade de batalha em relaccedilatildeo aos demais

Aleacutem de observarmos essa modificaccedilatildeo conceitual que existe na a)reth da Iliacuteada

para a Odisseacuteia vecirc-se tambeacutem nesta a busca da gloacuteria feita atraveacutes da sobrevivecircncia e natildeo da

morte como ocorre na Iliacuteada Aquiles por exemplo pretende para ser imortalizado morrer

em campo de batalha jaacute Odisseu busca natildeo soacute viver mas sobreviver a todos os obstaacuteculos

para que em sua casa e em sua paacutetria alcance a gloacuteria domiciliar Esses fatos satildeo importantes

21

para que enxerguemos a natildeo homogeneidade nas representaccedilotildees e significaccedilotildees homeacutericas e

devem ser compreendidos em sua completude e diversidade O mundo grego representado por

Homero natildeo eacute homogecircneo assim sendo tambeacutem natildeo pode ser homogecircneo o mundo homeacuterico

de que tantos falam

A respeito da religiosidade Walter Friedrich Otto em Os deuses da Greacutecia (2005)

diz haver em Homero uma clara e natural expressatildeo religiosa Neste mundo de Homero vecirc-se

tambeacutem a organizaccedilatildeo divina a partir da religiatildeo oliacutempica que era segundo Otto mais

paternalista diferente da primordial relacionada agrave Gaicurrena a Terra e portanto mais ao

feminino Otto diz-nos tambeacutem que no mundo homeacuterico o contato com o morto natildeo vai

significar contaminaccedilatildeo ao contraacuterio do que comeccedila a ocorrer nas trageacutedias gregas Ao fazer

uma comparaccedilatildeo entre Hesiacuteodo e Homero ou seja dois representantes do mundo grego

arcaico Otto observa que em Hesiacuteodo temos narrativas mais proacuteximas do fantaacutestico do que

em Homero Segundo o autor Hesiacuteodo aproximar-se-ia do fantaacutestico com suas narraccedilotildees

sobre o surgimento do universo dos deuses dos poetas enfim Jaacute Homero ao contraacuterio

poupar-nos-ia de descriccedilotildees mais proacuteximas do fantaacutestico Para exemplificar sua tese Otto cita

o fato de que Atena mesmo epitetada por o)brimopater ou seja a filha do pai poderoso

natildeo teraacute em nenhum momento descriccedilatildeo do seu nascimento Atena como sabemos eacute

concebida a partir da cabeccedila do proacuteprio pai Zeus inclusive jaacute nascendo adulta e armada

Homero pode ateacute natildeo descrever este episoacutedio mas Hesiacuteodo o faz na Teogonia Vejamos o

excerto abaixo

Ζεὺς δὲ θεῶν βασιλεὺς πρώτην ἄλοχον θέτο Μῆτιν

πλεῖστα θεῶν εἰδυῖαν ἰδὲ θνητῶν ἀνθρώπων

ἀλλ ὅτε δὴ ῥ ἤμελλε θεὰν γλαυκῶπιν Ἀθήνην

τέξεσθαι τότ ἔπειτα δόλωι φρένας ἐξαπατήσας

890 αἱμυλίοισι λόγοισιν ἑὴν ἐσκάτθετο νηδὺν

Γαίης φραδμοσύνηισι καὶ Οὐρανοῦ ἀστερόεντος ()

Αὐτὸς δ ἐκ κεφαλῆς γλαυκώπιδα γείνατ Ἀθήνην

925 δεινὴν ἐγρεκύδοιμον ἀγέστρατον ἀτρυτώνην

πότνιαν ἧι κέλαδοί τε ἅδον πόλεμοί τε μάχαι τε

Ἥρη δ Ἥφαιστον κλυτὸν οὐ φιλότητι μιγεῖσα

γείνατο καὶ ζαμένησε καὶ ἤρισε ὧι παρακοίτηι

ἐκ πάντων τέχνηισι κεκασμένον Οὐρανιώνων6

(Teogonia 886-891924-929)

6 Texto disponiacutevel em httpwwwhs-

augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Hesiodoshes_theohtml acessado em 22 de abril agraves 2048

hs

22

Zeus rei dos Deuses primeiro desposou Astuacutecia

mais saacutebia que os deuses e os homens mortais

Mas quando ia parir a Deusa de olhos glaucos Atena

ele enganou sua entranhas com ardil

890 com palavras sedutoras e engoliu-a ventre abaixo

por conselhos de Terra e do Ceacuteu constelado

()

Ele proacuteprio da cabeccedila gerou a de olhos glaucos

925 Atena terriacutevel estrondante guerreira infatigaacutevel

soberana a quem apraz fragor combate e batalha

Hera por raiva e por desafio a seu esposo

natildeo unida em amor gerou Hefesto

nas artes brilho agrave parte de toda raccedila do Ceacuteu7

Ainda segundo Otto em Homero temos pela primeira vez uma ideacuteia clara a

respeito do destino humano Por isso no Canto XXII da Iliacuteada Atena ao impelir Heitor ao

combate com Aquiles natildeo o faz agir assim apenas por desafeto mas tambeacutem para ajudaacute-lo a

cumprir seu destino como bem explica Otto ―O divino se faz demoniacuteaco para quem foi

chamado pelo destino (2005 p 252)

Otto chama-nos a atenccedilatildeo para outro aspecto importante na representaccedilatildeo

homeacuterica a respeito da significaccedilatildeo das Moiras e as diferenccedilas de posicionamento em relaccedilatildeo

a elas por parte de Hesiacuteodo e Homero Desta maneira as Moiras referidas por Hesiacuteodo na

Teogonia fazem parte do mundo grego arcaico e cada uma cumpre uma funccedilatildeo especiacutefica

Cloto tece o fio da vida a Laacutequesis mede e a Aacutetropos corta

Na Teogonia elas satildeo sempre referidas no plural Moiras e satildeo representadas

como aquelas que nos datildeo bens e males ou seja datildeo a parte que nos cabe e esta pode ser boa

ou maacute Elas aparecem nomeadas tambeacutem por Queres Eriacutenias sempre no plural estatildeo sempre

pressentes em nascimentos mortes e casamentos e satildeo perseguidoras implacaacuteveis daqueles

que cometem crimes de sangue derramando sangue de parente Em Homero ao contraacuterio

essa representaccedilatildeo do destino eacute realizada no singular Moicurrenra e estaacute relacionada agraves

determinaccedilotildees negativas de morte quinhatildeo cataacutestrofe destino ndash esta observaccedilatildeo pode ser

feita principalmente na Iliacuteada Na Odisseacuteia contudo observamos uma exceccedilatildeo pois apesar

de serem unificadas daiacute a utilizaccedilatildeo do singular elas seratildeo responsaacuteveis pela determinaccedilatildeo do

destino de Odisseu e este estaacute destinado a alcanccedilar a meta traccedilada Mesmo assim apesar da

Moicurrenra ter-lhe destinado bens futuros Odisseu teraacute que passar por inuacutemeras dificuldades ateacute

7 Traduccedilatildeo de Jaa Torrano (2009)

23

que possa retornar ao lar Ateacute porque em Homero o caraacuteter da Moicurrenra eacute restritivo Assim

mesmo para Odisseu ela prescreve em muitos momentos que ele voltaraacute mas ainda natildeo ateacute

que venha a sofrer e cumprir todos os desiacutegnios

Na eacutepoca homeacuterica segundo Otto vemos tambeacutem a representaccedilatildeo de perda do

culto ao divino mais especificamente na Odisseacuteia Como exemplo maior desta situaccedilatildeo em

que o culto ao divino mostra-se enfraquecido constatamos em VIII v 267 a narraccedilatildeo por

Demoacutedoco do caso amoroso entre Ares e Afrodite servindo de contentamento para os

ouvintes assim o culto divino eacute transformado em diversatildeo Na Odisseacuteia Telecircmaco chega a

desconfiar se mesmo com a ajuda de Atena consiguiraacute vencer os pretendentes Esta

peculiaridade em Homero eacute importante pois influencia produccedilotildees poeacuteticas posteriores a

exemplo das trageacutedias em que o poder divino seraacute questionado

Sobre as variadas representaccedilotildees culturais que faz Homero do mundo grego

arcaico sabemos que ela natildeo eacute uniforme mesmo sendo a micecircnica a realidade central da

eacutepica homeacuterica Desse modo diz-nos Denys Page (1977) acerca da heterogeneidade

mimetizada por Homero que ―quando nos voltamos para o ambiente poliacutetico e social de

Homero a dificuldade estar em ele nos parecer um quadro composto com elementos de

civilizaccedilotildees diferentes (PAGE 1977 p 19) Assim temos nas obras homeacutericas todo um

arcabouccedilo de representaccedilotildees e evoluccedilotildees do mundo grego sejam estas religiosas culturais

linguumliacutesticas dos versos dos mitos heroacuteicos sejam divinas entre outras

12 Apresentaccedilatildeo da Odisseacuteia

A respeito da literatura grega podemos identificar no geral trecircs momentos

baacutesicos de produccedilatildeo literaacuteria ocorridos antes de Cristo satildeo eles o Periacuteodo Arcaico que se

inicia no seacuteculo VIII aC e termina em V aC o Periacuteodo Claacutessico de V aC ao seacuteculo IV aC

e o denominado Periacuteodo Alexandrino iniciado em IV aC e estendendo-se ateacute III aC

O Periacuteodo Arcaico (VIII ndash V a C) eacute o iniciador da literatura ocidental marcado

notadamente por forte influecircncia da oralidade dos rapsodos e aedos Nesse periacuteodo satildeo

compostas as obras iniciadoras de toda a literatura ocidental Iliacuteada e Odisseacuteia de Homero e

Teogonia e Os Trabalhos e os Dias de Hesiacuteodo A visatildeo de mundo dessa eacutepoca eacute regida pelas

24

leis da qemij para os deuses e dimacrkh para os homens o muordfqoj8 explica o mundo e sua

organizaccedilatildeo os heroacuteis defendem a paacutetria a famiacutelia e sua timh a honra para consagrarem-se

com a a)reth (a virtude guerreira intelectual da nobreza)

No Periacuteodo Claacutessico (seacuteculo V ndash IV a C) representa-se o mundo da poacutelis Nesse

periacuteodo natildeo haacute a centralizaccedilatildeo na lei divina dos deuses qemij nem na lei divina direcionada

aos homens dikh como ocorre no mundo arcaico Agora haacute o nomoj a lei escrita que deve

nortear os cidadatildeos da poacutelis Assim o loacutegoj atraveacutes do discurso e do raciociacutenio loacutegico eacute

quem explica o mundo sob a reflexatildeo filosoacutefica A literatura dessa fase representa por meio

das trageacutedias o conflito e a fragilidade humana diante desse mundo Dessa maneira observar-

se-aacute o conflito entre o muordfqoj e o loacutegoj ou seja os heroacuteis do mundo arcaico estaratildeo em

conflito com o novo mundo e suas novas leis Representam essa fase os tragedioacutegrafos

Eacutesquilo Soacutefocles e Euriacutepedes

No Periacuteodo Alexandrino (seacuteculo IV ndash III a C) temos a expansatildeo do mundo

grego atraveacutes de Alexandre o Grande (335-323 a C) e aproximadamente no seacuteculo III

aC a construccedilatildeo da Biblioteca de Alexandria que como sabemos reuacutene uma infinidade de

obras de extrema importacircncia sendo das maiores bibliotecas que o mundo antigo registra

Nesse periacuteodo Apolocircnio de Rhodes produz Argonaacuteuticas por volta de 295 aC Mas logo

apoacutes o povo romano que comeccedila a expandir suas conquistas e domiacutenios pelo mundo toma a

Greacutecia e a partir dessa influecircncia forma a sua proacutepria literatura

A Odisseacuteia entatildeo composta no seacuteculo VIII aC pertence ao chamado Periacuteodo

Arcaico (VIII ndash V a C) da literatura grega Sua autoria eacute atribuiacuteda a Homero e sabe-se que

foi produzida posteriormente agrave Iliacuteada apesar de natildeo podermos determinar com certeza qual o

periacuteodo de produccedilatildeo de ambas Contudo de acordo com Jaeger observamos que ―do ponto de

vista histoacuterico a Iliacuteada eacute um poema muito mais antigo A Odisseacuteia reflete um quadro muito

posterior da histoacuteria da cultura (JAEGER 2001 p 37) Na Iliacuteada temos como eixo central

da narraccedilatildeo a ira funesta de Aquiles sua retirada e retorno aos combates na Guerra de Troacuteia

Jaacute na Odisseacuteia o eixo estaacute no retorno de Odisseu agrave sua paacutetria e os combates que iraacute travar

com os pretendentes que apoacutes sua saiacuteda para a Guerra de Troacuteia invadem a sua casa

banqueteam-se diariamente pretendendo casar com a sua esposa e apossar-se de seus bens

8 Conforme nos esclarece Vernant em La gregravece ancienne du mythe agrave la raison (1990 p 9-11) em grego

arcaico mucurrenqoj significa palavra discurso mas a partir das discussotildees filosoacuteficas do seacuteculo V aC passa a

figurar em oposiccedilatildeo a logoj designando entatildeo a palavra pronunciada sem reflexatildeo racional contrariamente a

logoj que passa a ser o discurso racional diferenccedilas estas que natildeo existiam no mundo grego arcaico

25

Odisseu enfrenta muitos obstaacuteculos a fim de que possa retornar ao lar apoacutes vinte anos

afastado E ao voltar vecirc que desde entatildeo muitas coisas aconteceram seu filho que quando

ele saiacutera era apenas uma crianccedila cresceu sua matildee faleceu de saudades seu pai preferiu a

reclusatildeo sua esposa para ludibriar os pretendentes de dia tece uma mortalha para Laertes e

agrave noite desfaz-a Em suma o seu palaacutecio encontra-se invadido por pretendentes que natildeo

respeitaram os dons da hospitalidade e por isso seratildeo punidos

Realizando uma anaacutelise comparada entre a Iliacuteada e a Odisseacuteia podemos observar

algumas siginificativas diferenccedilas Entre elas podemos destacar a relaccedilatildeo entre o homem e o

divino Na Odisseacuteia por exemplo os homens possuem maior consciecircncia dos atos e

independecircncia em relaccedilatildeo aos deuses tanto que haacute pouca interferecircncia divina Natildeo

pretendemos dizer natildeo haver presenccedila divina na Odisseacuteia tanto que ilustramos algumas

dessas apariccedilotildees a trama inicia com uma assembleacuteia divina Palas Atena sempre acompanha

Odisseu eou Telecircmaco em suas jornadas e Possidon aparece para vingr-se para vingar-se de

quem feriu seu filho Polifemo Contudo percebe-se que haacute uma interferecircncia divina menor

se compararmos com a Iliacuteada Para este fato eacute bem ilustrativa a fala de Zeus abrindo a

Assembleacuteia dos Deuses no Canto I da Odisseacuteia sob o argumento de que os homens erram e

culpam os deuses por suas falhas Vejamos

ὢ πόποι οἷον δή νυ θεοὺς βροτοὶ αἰτιόωνται

ἐξ ἡμέων γάρ φασι κάκ᾽ ἔμμεναι οἱ δὲ καὶ αὐτοὶ

σφῆισιν ἀτασθαλίηισιν ὑπὲρ μόρον ἄλγε᾽ ἔχουσιν

35 ὡς καὶ νῦν Αἴγισθος ὑπὲρ μόρον ἈτρεἸδαο

γῆμ᾽ ἄλοχον μνηστήν τὸν δ᾽ ἔκτανε νοστήσαντα9 (Odisseacuteia I 32-36)

Oh grandes deuses Agora os mortais culpam os deuses

Pois de noacutes dizem vir a causa de todos seus males quando

eles mesmos por suas loucas presunccedilotildees suportam dores contra o destino

35 assim tambeacutem Egisto contra a decisatildeo do destino do Atrida

desposou a mulher legiacutetima e o matou depois do seu retorno

Na Iliacuteada ao contraacuterio temos a apariccedilatildeo e interferecircncia de diversos deuses em

diversos momentos da narrativa a fim de favorecerem seus aliados Apolo Atena Hera

Posiacutedon Ares Afrodite Apoacutes eles terem lutado a favor dos seus protegidos Zeus no Canto

VIII poriacutebe que eles atuem no campo de batalha vindo a liberaacute-los no Canto XX

9 Texto retirado de httpwwwhs-augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_od01html

agraves 1100hs de 15 de julho

26

Como vimos na Iliacuteada os deuses estatildeo o tempo todo a intervir a favor dos seus

Uma outra caracteriacutestica desta obra e que difere em relaccedilatildeo agrave Odisseacuteia estaacute no relato e

representaccedilatildeo social Isto ocorre porque na primeira haacute uma maior restriccedilatildeo em relaccedilatildeo aos

grupos sociais representados na obra em especial a aristocracia Jaacute a segunda possui um

quadro social mais amplo aparecendo a representaccedilatildeo natildeo soacute da aristocracia como tambeacutem

de pessoas de outra classe como porqueiros mendigo criadas enfim A representaccedilatildeo de

embates eacute mais acentuada na Iliacuteada que na Odisseacuteia por isso

O mais antigo dos poemas mostra-nos o predomiacutenio absoluto do estado de

guerra tal como devia ser no tempo das grandes migraccedilotildees das tribos gregas

A Iliacuteada fala-nos de um mundo situado num tempo em que domina

exclusivamente o espiacuterito heroacuteico da areteacute () A Odisseacuteia ao contraacuterio tem

poucas ocasiotildees para descrever o comportamento dos heroacuteis na luta

(BRANDAtildeO 1998 p 40)

A caracterizaccedilatildeo dos heroacuteis principais Aquiles da Iliacuteada e Odisseu da Odisseacuteia

tambeacutem forma outro ponto de divergecircncia entre os poemas Como sabemos o primeiro heroacutei

distingue-se por sua habilidade guerreira enquanto o segundo por sua habilidade com o

pensamento inteligecircncia Albin Lesky comparando os dois personagens resume de forma

esclarecedora a diferenccedila entre eles dizendo-nos que haacute ―uma prudente reflexatildeo frente a uma

nobre imoderaccedilatildeo um haacutebil espiacuterito de conciliaccedilatildeo face a uma brusca aspereza um prudente

caacutelculo do procedimento mais oportuno face agrave corrida precipitada pelo caminho mais curto

(LESKY 1995 p 60)

Em relaccedilatildeo agrave estrutura da Odisseacuteia comparando-a com a da Iliacuteada diz-nos

Aristoacuteteles no capiacutetulo 24 verso 1458b da Poeacutetica que aquela eacute bem mais complexa ateacute

mesmo por ter cenas de asup1nagnwiquestrisij Este como sabemos eacute um elemento estrutural

importante por atribuir mais complexidade ao enredo e na Odisseacuteia temos mais de uma

ocasiatildeo em que aparece asup1nagnwiquestrisij Por exemplo no Canto XVII versos 290-327 o

cachorro Argos reconhece Odisseu apoacutes vinte anos e jaacute cansado e velho aleacutem de toda a

emoccedilatildeo pela qual eacute tomado vem a falecer Observemos a cena como ocorre

300 ἔνθα κύων κεῖτ᾽ Ἄργος ἐνίπλειος κυνοραιστέων δὴ τότε γ᾽ ὡς ἐνόησεν10 Ὀδυσσέα ἐγγὺς ἐόντα

10

Este verbo ecopynoiquesthsen eacute o aoristo de noew que significa conhecer perceber Neste caso eacute importante

entendermos que o aoristo natildeo eacute tempo verbal nem modo e sim aspecto indicando a accedilatildeo pontual Essa

27

οὐρῆι μέν ῥ᾽ ὅ γ᾽ ἔσηνε καὶ οὔατα κάββαλεν ἄμφω ἆσσον δ᾽ οὐκέτ᾽ ἔπειτα δυνήσατο οἷο ἄνακτος ἐλθέμεν αὐτὰρ ὁ νόσφιν ἰδὼν ἀπομόρξατο δάκρυ ()

326 Ἄργον δ᾽ αὖ κατὰ μοῖρ᾽ ἔλαβεν μέλανος θανάτοιο αὐτίκ᾽ ἰδόντ᾽ Ὀδυσῆα ἐεικοστῶι ἐνιαυτῶι11 (Odisseacuteia XVII 290-327)

Ali jazia o cachorro Argos cheio de carrapatos

Por um lado como percebeu Odisseu passando proacuteximo

por outro abanou a cauda e baixou ambas orelhas

depois natildeo pocircde de ir para perto do seu senhor

Este tendo visto isso ao longe enxugou uma laacutegrima

Por sua vez o destino de negra morte levou Argos para baixo

Logo depois de ver Odisseu apoacutes vinte anos

Outros encontros de reconhecimento tambeacutem ocorrem ao longo da Odisseacuteia

como o de Telecircmaco que reconhece o pai quando este por orientaccedilatildeo de Atena aparece para

o filho em sua forma original (Canto XVI versos 180-219) o da ama Euricleacuteia que

reconhece Odisseu por meio de uma cicatriz (Canto XIX versos 467-500) Peneacutelope tambeacutem

reconhece o esposo quando este revela ter construiacutedo o proacuteprio leito ao casarem (Canto

XXIII versos 181-206) e Laertes pai de Odisseu reconhece o filho quando este lhe indica

todas as plantas que haacute na propriedade (Canto XXIV versos 320-346)

Como pudemos ver a Odisseacuteia possui suas peculiaridades em relaccedilatildeo agrave Iliacuteada

inclusive nas representaccedilotildees sociais e todas essas convergem para a afirmativa de que ela foi

escrita posteriormente A modificaccedilatildeo do sentido da abrvbarrethcent a ampliaccedilatildeo nas representaccedilotildees

sociais a relaccedilatildeo com os deuses a caracterizaccedilatildeo dos heroacuteis principais a complexidade

estrutural e o ponto de vista histoacuterico satildeo alguns exemplos de diferenccedilas existentes entre as

duas eacutepicas homeacutericas Por isso natildeo podemos referir-nos agraves eacutepicas homeacutericas englobando-as

num todo homogecircneo ateacute porque numa anaacutelise mais especiacutefica observamos diferenccedilas

relevantes apesar de possuiacuterem ligaccedilotildees claras uma com a outra

peculiaridade do verbo grego explica-se atraveacutes do verbo indo-europeu cujas formas indicavam apenas a noccedilatildeo

de aspecto E eram trecircs as noccedilotildees de aspecto o imperfectivo o perfectivo e o pontual (FARIA 1958) O

primeiro designava a accedilatildeo era inacabada o segundo a accedilatildeo acabada e o terceiro a accedilatildeo pontual por isso eacute

bastante usado em narrativas Na citaccedilatildeo acima Homero utilizou-se da forma do aoristo ecopynoiquesthsen que

traduzimos por ―percebeu ou seja indicando um fato pontual (aoristo) do momento em que o cachorro

reconhece Odisseu numa accedilatildeo que nem estaacute acabada (perfectivo) nem inacabado (imperfectivo) 11

Texto disponiacutevel em

httpwwwhsaugsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_od17html

28

A explanaccedilatildeo que fizemos tem como objetivo contextualizar situar e caracterizar o

nosso objeto de pesquisa o Canto XI da Odisseacuteia Tais referecircncias satildeo relevantes para que

compreendamos o seu todo e assim mais facilmente seja compreendida a nossa anaacutelise

especiacutefica que eacute analisar o traacutegico na Odisseacuteia mais especificamente no Canto XI

121 A Estrutura do poema

Como jaacute dissemos A Odisseacuteia enquadra-se no Periacuteodo Arcaico (VIII ndash V a C)

da literatura Grega e portanto possui marcas da oralidade como a repeticcedilatildeo e o uso de

epiacutetetos aleacutem de ter a partir do muordfqoj as explicaccedilotildees dos fatos Essa sociedade retratada

tem na a)reth a distinccedilatildeo de excelecircncia do nobre principalmente por meio do seu heroacutei

principal Odisseu soacute que mais especificamente relacionada agrave virtude intelectual de

inteligecircncia de astuacutecia e de prudecircncia

De estrutura complexa e narrada in medias res a Odisseacuteia naturalmente condiz

com os aspectos estruturais da epopeacuteia e que satildeo descritos por Aristoacuteteles no momento em

que a compara com a estrutura da trageacutedia Mas para que possamos entender a estrutura da

epopeacuteia faz-se necessaacuterio que entendamos primeiramente o que ela significa Esta

denominaccedilatildeo eacute oriunda do termo grego iexclepopoiia e serve para designar genericamente a

poesia eacutepica Esta palavra como indica Romizi (2007) eacute formada por eAtildepoj que significa

palavra o que eacute dito esta por sua vez relaciona-se ao verbo eagravepw dizer cantar nomear e a

poiew verbo temaacutetico que significa criar produzir Estes nomes possuem o mesmo radical

das palavras poihsij e poihthj a primeira refere-se agrave criaccedilatildeo poeacutetica e o segundo ao

criador da poesia A partir desse referencial etimoloacutegico podemos entender iexclepopoiia natildeo

simplesmente como poesia eacutepica como genericamente definem muitos dicionaacuterios mas como

o canto (eagravepw) daquilo que fora criado (poihsij) pelo poeta (poihthj) daiacute a formaccedilatildeo de

epopeacuteia (ecopypopoiia)

Assim entendido agora o que designamos como epopeacuteia podemos compreender

melhor a sua estrutura delineada primeiramente por Aristoacuteteles Na Poeacutetica o filoacutesofo define

a trageacutedia e para tanto realiza um estudo comparativo com a comeacutedia e com a epopeacuteia A

partir dessa comparaccedilatildeo podemos extrair o entendimento sobre a estrutura e as caracteriacutesticas

29

da epopeacuteia jaacute que em alguns momentos ela se assemelha e em outros diferencia-se da

trageacutedia objeto central da anaacutelise aristoteacutelica

Segundo Aristoacuteteles a trageacutedia e a epopeacuteia possuem uma semelhanccedila em relaccedilatildeo

aos objetos da imitaccedilatildeo isto porque em ambas imitam-se seres superiores os heroacuteis a

aristocracia enquanto que na comeacutedia satildeo imitados os chamados seres inferiores e todas as

suas caracteriacutesticas risiacuteveis Homero assim como os tragedioacutegrafos teria cantado com

unidade de accedilatildeo Assim explica Aristoacuteteles no capiacutetulo VII da Poeacutetica que Homero em suas

epopeacuteias delinea um argumento uacutenico agrupando-o com episoacutedios que convergem para o seu

eixo por isso natildeo canta toda a Guerra de Troacuteia nem muito menos todos os acontecimentos

da vida de Odisseu Apesar de que para Lesky (1995) haacute na Odisseacuteia algumas discussotildees

sobre a sua unidade principalmente em relaccedilatildeo agrave Telemaquia que vai do Canto I ao IV e que

alguns pensam ter sido uma parte ou um acreacutescimo Todavia mesmo diante dessas

controveacutersias Lesky diz-nos que nos importa saber que ela ―daacute voz a uma forccedila de

composiccedilatildeo e uma mestria de narraccedilatildeo que soacute se encontram nas grandes obras de arte Nesse

sentido tambeacutem ela constitui uma unidade (LESKY 1995 p 71)

Continuando a definiccedilatildeo sobre os gecircneros no capiacutetulo XXIV Aristoacuteteles diz que

a epopeacuteia difere da trageacutedia em relaccedilatildeo ao emprego e dimensatildeo do metro como tambeacutem pela

extensatildeo jaacute que a trageacutedia deve limitar seus fatos a um periacuteodo do sol enquanto a epopeacuteia

natildeo tem duraccedilatildeo limitada em contrapartida assemelham-se por tratarem de assuntos seacuterios

Como vemos a partir das comparaccedilotildees realizadas por Aristoacuteteles na tentativa de

elucidar as caracteriacutesticas da trageacutedia acabamos por compreender tambeacutem a estruturaccedilatildeo da

epopeacuteia Dessa maneira como epopeacuteia a Odisseacuteia nosso objeto de estudo realiza imitaccedilatildeo

de homens superiores possui argumento uacutenico e episoacutedios que o desenvolvem neste caso o

retorno de Odisseu Aleacutem de natildeo ter limitaccedilatildeo de duraccedilatildeo jaacute que durante toda a epopeacuteia

narram-se fatos ocorridos ao longo de vinte anos

Somado aos elementos estruturais da eacutepica apresentados por Aristoacuteteles e jaacute

exemplificados por noacutes anteriormente destacaremos agora a partir da Odisseacuteia o proecircmio a

narraccedilatildeo e o epiacutelogo que satildeo trecircs importantes elementos constitutivos do um texto eacutepico

O proecircmio eacute composto pela invocaccedilatildeo e pela proposiccedilatildeo Na Odisseacuteia ele se

encontra nos dez primeiros versos Atraveacutes da Teogonia (2007) entendemos o porquecirc da

invocaccedilatildeo processo no qual o poeta chama as Musas Vejamos o trecho abaixo

25 Μοῦσαι Ὀλυμπιάδες κοῦραι Διὸς αἰγιόχοιο

ποιμένες ἄγραυλοι κάκ ἐλέγχεα γαστέρες οἶον

30

ἴδμεν ψεύδεα πολλὰ λέγειν ἐτύμοισιν ὁμοῖα

ἴδμεν δ εὖτ ἐθέλωμεν ἀληθέα γηρύσασθαι

ὣς ἔφασαν κοῦραι μεγάλου Διὸς ἀρτιέπειαι

30 καί μοι σκῆπτρον ἔδον δάφνης ἐριθηλέος ὄζον

δρέψασαι θηητόν ἐνέπνευσαν δέ μοι αὐδὴν

θέσπιν ἵνα κλείοιμι τά τ ἐσσόμενα πρό τ ἐόντα

καί μ ἐκέλονθ ὑμνεῖν μακάρων γένος αἰὲν ἐόντων

σφᾶς δ αὐτὰς πρῶτόν τε καὶ ὕστατον αἰὲν ἀείδειν

35 ἀλλὰ τίη μοι ταῦτα περὶ δρῦν ἢ περὶ πέτρην12 (Teogonia 22-35)

Musas olimpiacuteades virgens de Zeus porta-eacutegide

―Pastores agrestes vis infacircmias e ventres soacute

sabemos muitas mentiras dizer siacutemeis aos fatos

e sabemos se queremos dar a ouvir revelaccedilotildees

Assim falaram as virgens do grande Zeus veriacutedicas

por cetro deram-me um ramo a um loureiro viccediloso

colhendo-o admiraacutevel e inspiraram-me um canto

divino para que eu glorie o futuro e o passado

impeliram-me a hinear o ser dos venturosos sempre vivos

e a elas primeiro e por uacuteltimo sempre cantar13

Assim como foi indicado na citaccedilatildeo acima na Odisseacuteia o poeta invocaraacute as

Musas a fim de que o ajudem a cantar o polumhtij ou seja o muito astucioso Odisseu No

proecircmio da Odisseacuteia como jaacute foi dito entre o primeiro e o deacutecimo verso do Canto I

encontramos tambeacutem a proposiccedilatildeo do poema e naturalmente o seu argumento que eacute cantar as

muitas aventuras e desventuras vividas por Odisseu e seus companheiros durante dez anos

desde que saiacuteram da Guerra de Troacuteia ateacute o retorno a Iacutetaca Vejamos

Ἄνδρα μοι ἔννεπε μοῦσα πολύτροπον ὃς μάλα πολλὰ

πλάγχθη14 ἐπεὶ Τροίης ἱερὸν πτολίεθρον ἔπερσεν

πολλῶν δ᾽ ἀνθρώπων ἴδεν ἄστεα καὶ νόον ἔγνω

πολλὰ δ᾽ ὅ γ᾽ ἐν πόντωι πάθεν ἄλγεα ὃν κατὰ θυμόν

5 ἀρνύμενος ἥν τε ψυχὴν καὶ νόστον ἑταίρων

ἀλλ᾽ οὐδ᾽ ὣς ἑτάρους ἐρρύσατο ἱέμενός περ

αὐτῶν γὰρ σφετέρηισιν ἀτασθαλίηισιν ὄλοντο

νήπιοι οἳ κατὰ βοῦς Ὑπερίονος Ἠελίοιο

12

Texto diponiacutevel em httpwwwhsaugsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Hesiodoshes_theohtml

retirado agraves 1633hs do dia 27 de abril de 2010 13

Traduccedilatildeo de Torrano (2009) 14

Neste proecircmio da Odisseacuteia verificamos que praticamente todas as formas verbais estatildeo no aoristo satildeo elas

plaiquestgxqh eOacutepersen iOacuteden eOacutegnw paiquestqen ecopyrruiquestsato oOacutelonto e acopyfeiiquestleto Essa constataccedilatildeo linguumliacutestica eacute

bem coerente com o teor literaacuterio desta citaccedilatildeo ateacute porque por tratar-se de um proecircmio em que os fatos satildeo

aunciados e resumido ao iniacutecio da narrativa entendemos natiralmente que natildeo deve haver noccedilatildeo verbal de

aspecto acabado (perfectivo) ou inacabado (imperfectivo) jaacute que as accedilotildees estatildeo sendo apenas pontualmente

assinaladas daiacute a pertinecircncia do uso do aoristo

31

ἤσθιον αὐτὰρ ὁ τοῖσιν ἀφείλετο νόστιμον ἦμαρ

10 τῶν ἁμόθεν γε θεά θύγατερ Διός εἰπὲ καὶ ἡμῖν15 (Odisseacuteia I 1-10)

Musa conta-me sobre o varatildeo de muitas voltas que muito

vagou depois que saqueou a sagrada cidade de Troacuteia

Viu as cidades de muitos homens e conheceu sua mente

no mar padeceu muitos sofrimentos de encontro ao seu acircnimo

esforccedilando-se por sua alma e pelo regresso dos companheiros

Poreacutem natildeo salvou os companheiros mesmo lanccedilando-se para isso

Pois pereceram por causa das accedilotildees insensatas deles mesmos

Tolos que devoravam os bois do Hiperiocircnio Sol

Por outro lado este os tirou o dia do retorno

Deusa filha de Zeus conta para noacutes a partir de qualquer ponto

Jaacute atraveacutes da narraccedilatildeo que eacute o desenvolvimento do argumento satildeo cantadas ao

longo dos vinte e quatro cantos e de seus quase treze mil versos todas as viagens e encontros

de Odisseu sua estada em Ogiacutegia a visita agrave Feaacutecia onde narra sua visita aos Lotoacutefagos aos

Ciclopes Eacuteolo os Lestrigotildees Circe a realizaccedilatildeo da evocaccedilatildeo aos mortos o encontro com as

Sereias Cila Cariacutebdes os Bois do Sol ateacute a sua volta para Iacutetaca onde efetua a chacina dos

pretendentes

No epiacutelogo por sua vez ocorre o fechamento da narrativa com uma nova

invocaccedilatildeo e com a abertura de perspectiva para um novo canto Na Odisseacuteia natildeo haacute uma

manifesta invocaccedilatildeo agraves Musas no fim da narraccedilatildeo como temos no iniacutecio mas deixa-se

abertura para um novo canto que neste caso seria o da instalaccedilatildeo da paz e da harmonia em

Iacutetaca Mas a paz para Odisseu e seu povo mesmo depois de vinte anos de aacuterduos e de intensos

trabalhos soacute iria se concretizar caso Odisseu seguindo as orientaccedilotildees de Tireacutesias dadas no

Canto XI fizesse uma nova viagem e cumprisse com os desiacutegnios divinos

Para que melhor possamos entender os episoacutedios ocorridos ao longo da Odisseacuteia e

o contexto em que se realiza o Canto XI - nosso objeto de anaacutelise - abaixo realizamos uma

siacutentese de cada Canto

Canto I - Ocorre a Assembleacuteia dos Deuses Os divinos reuacutenem-se com exceccedilatildeo de Posiacutedon a

fim de decidir o regresso de Odisseu a Iacutetaca visto que o heroacutei permanece na ilha de Calipso

haacute muito tempo sem perspectiva de regresso Fica decidido que ele deve voltar para sua paacutetria

e Atena disfarccedilada em Mentes rei dos Taacutefios vai ateacute Telecircmaco filho de Odisseu com

15

Texto disponiacutevel em

httpwwwhsaugsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_od01html retirado agraves 2107hs

de 27 de abril de 2010

32

Peneacutelope para aconselhaacute-lo e orientaacute-lo na busca do pai Neste iacutenterim ocorre a Festa dos

Pretendentes no palaacutecio de Odisseu

Canto II - Telecircmaco exortado por Atena convoca uma assembleacuteia com os itacenses para

solicitar um navio que o levasse a Pilo cidade de Nestor e a Esparta paacutetria do atrida

Menelau para que pudesse buscar informaccedilotildees sobre o pai Ele entatildeo parte escondido de sua

matildee logo apoacutes receber um navio de Noeacutemone e de revelar soacute a Euricleacuteia sobre sua partida

Canto III - O jovem priacutencipe chega a Pilo acompanhado por Atena disfarccedilada de Mentor e

encontram os Piacutelios no teacutermino da realizaccedilatildeo de sacrifiacutecios ao deus Posiacutedon Telecircmaco dirige-

se a Nestor perguntando por seu pai As suas respostas natildeo satildeo muito animadoras apenas faz

relatos sobre Troacuteia seu retorno com Menelau e o fim traacutegico de Agamecircmmnon Todavia

Nestor auxilia Telecircmaco em sua jornada enviando-lhe para Lacocircnia com Pisiacutestrato seu filho

Canto IV - Em Esparta Menelau recebe Telecircmaco com Pisiacutestrato O Atrida lhes conta sobre

o seu retorno dificultoso a destruiccedilatildeo de Troacuteia a profecia de Proteu a tristeza pela morte do

irmatildeo Agamecircmnon e a estadia de Odisseu na ilha de Calipso Telecircmaco natildeo tendo obtido as

notiacutecias que esperava prepara-se para retonar Em Iacutetaca ocorre uma assembleacuteia entre os

pretendentes a fim de tramarem uma emboscada para raptar Telecircmaco

Canto V ndash Na segunda Assembleacuteia dos Deuses fica decidido pelo imediato retorno de

Odisseu Atena solicita a Zeus para que Hermes vaacute a Ogiacutegia onde Odisseu estaacute retido e

liberte-o O cronida cumpre Entatildeo o heroacutei parte em uma jangada que construiu Jaacute no deacutecimo

oitavo dia em que navegava Odisseu eacute visto por Posiacutedon que levanta uma tempestade

destruindo a sua jangada Odisseu eacute salvo pelo veacuteu de Ino e chega agrave ilha dos Feaacutecios

Canto VI - Jaacute na terra dos Feaacutecios Odisseu eacute ajudado por Nausiacutecaa filha do rei dos Feaacutecios

A moccedila ao dormir sonha com Atena a pedir-lhe que fosse lavar roupas no rio Nausiacutecaa

obedece agraves instruccedilotildees de Atena e segue com algumas companheiras Apoacutes lavar as roupas

comeccedilam a brincar Odisseu que dormia desperta com o barulho e recorre ao auxiacutelio de

Nausiacutecaa Esta lhe concede oferece-lhe roupas e alimentos Eles partem para cidade

Canto VII - Seguindo as orientaccedilotildees de Nausiacutecaa ao chegar ao palaacutecio Odisseu ajoelha-se

aos peacutes da rainha Arete para que ela o envie para casa Alciacutenoo o rei dos Feaacutecios concede

33

sua solicitaccedilatildeo coloca-o ao seu lado e oferece-lhe comida Odisseu sem revelar-se conta

sobre o que lhe ocorreu desde que partira da ilha de Calipso ateacute o auxiacutelio de Nausiacutecaa

Canto VIII - Uma assembleacuteia eacute realizada pelos Feaacutecios para decidirem os meios de

devolverem o estrangeiro agrave sua terra Decidem pocircr a disposiccedilatildeo um navio para o seu retorno

Depois banqueteiam-se na casa do rei Alciacutenoo e jogam do disco Demoacutedoco o aedo dos

Feaacutecios comeccedila a cantar a amor de Ares e Afrodite e o cavalo de madeira que penetrou as

muralhas troianas Odisseu derrama laacutegrimas initerruptamente Alciacutenoo natildeo compreende

desconfia do heroacutei e pergunta o porquecirc do choro de onde ele vem e quem ele eacute

Canto IX - Odisseu revela sua identidade e filiaccedilatildeo iniciando a narraccedilatildeo de tudo o que

passou desde a sua saiacuteda da guerra de Troacuteia no paiacutes dos Ciacuteconos na Maleacuteia onde um vento

forte fez-lhes desviar-se do caminho indo para a terra dos Lotoacutefagos Depois param no paiacutes

dos Ciclopes onde o Polifemo devorou seis dos seus guerreiros O heroacutei astutamente

consegue escapar

Canto X - Odisseu vai buscar ajuda com Eacuteolo guardiatildeo dos ventos e recebe dele uma sacola

com todos os ventos O heroacutei dorme Seus companheiros pensando haver ouro na sacola

abrem-na entatildeo os ventos satildeo disparados aleatoriamente Odisseu acorda e volta para Eacuteolo

Este agora recusa a ajuda e expulsa-os A narraccedilatildeo aos Feaacutecios continua sobre a passagem

pela terra dos Lestrigotildees antropoacutefagos e de Circe feiticeira em Eacuteeia Nesta terra Odisseu jaacute

acomodado eacute exortado pelos companheiros para retornar Circe como prometera auxilia-o

no retorno e diz para ele ir ao Hades para falar com o adivinho Tireacutesias

Canto XI - Odisseu narra aos Feaacutecios como chegou agrave borda do Hades para consultar

Tireacutesias e sua evocaccedilatildeo aos mortos Pergunta a Tireacutesias se voltaria para casa e como deveria

proceder Tireacutesias daacute-lhe todas as informaccedilotildees diz-lhe inclusive que ele conseguiraacute o retorno

agrave paacutetria mas que enfrentaraacute muitas dificuldades Depois muitos mortos vatildeo se aproximando

de Odisseu como sua matildee Anticleacuteia e os companheiros de Troacuteia Aquiles Agamecircmnon e

Aacutejax

Canto XII - Relata sobre seu retorno desde o Hades ateacute Eacuteeia na ilha de Circe Esta o

adverte sobre os desafios que encontraraacute e como deve proceder Entatildeo Odisseu lanccedila-se ao

mar Primeiro resiste ao belo canto das Sereias depois passa por Cila e Cariacutebdes ateacute chegar agrave

34

ilha de Heacutelio Nesta seus companheiros natildeo resistem agrave fome e alimentam-se com as vacas do

deus Heacutelio desrespeitado o deus eacute vingado por Zeus que fulmina a nau de Odisseu e dos

demais Odisseu narra tambeacutem como sozinho chegou agrave ilha de Calipso apenas em uma balsa

Canto XIII - Termina a narraccedilatildeo aos Feaacutecios Impressionados Alciacutenoo e os demais

oferecem-lhe presentes em sinal de honra Como havia sido combinado os Feaacutecios levam

Odisseu a Iacutetaca e o deixam em solo paacutetrio Por castigo de Posiacutedon o navio que o leva eacute

petrificado ao retornar Atena auxilia Odisseu aconselha-o sobre a vinganccedila dos pretendentes

e desfigura-o em mendigo para natildeo ser reconhecido

Canto XIV - O agora aparente mendigo Odisseu chega agrave casa de um fiel serviccedilal o porqueiro

Eumeu Apesar de natildeo reconhecer seu rei concede-lhe toda a hospitalidade e o informa sobre

o que sofre com os desmandos do palaacutecio como as coisas estatildeo ocorrendo na cidade e diz que

acredita no retorno de Odisseu

Canto XV - Neste canto ocorre o retorno de Telecircmaco O priacutencipe permanecia ainda no reino

de Menelau mas em sonho Atena exorta-o retornar para Iacutetaca indicando-lhe o que fazer

para evitar a emboscada armada pelos pretendentes Presenteado por Menelau Telecircmaco

parte Em Iacutetaca vai direto para a casa de Eumeu

Canto XVI ndash Na casa de Eumeu Telecircmaco orienta o porqueiro para que avise a sua matildee do

seu retorno Odisseu e Tlecircmaco por obra de Atena se reconhecem e tramam a vinganccedila dos

pretendentes Eumeu retorna do palaacutecio apoacutes dar a notiacutecia a Peneacutelope do retorno do seu filho

Canto XVII - Odisseu vai com Eumeu para o seu palaacutecio enquanto Telecircmaco conta agrave matildee o

que ocorreu em sua viagem No paacutetio do palaacutecio Argos o velho catildeo de Odisseu reconhece-o

apoacutes os vinte anos decorridos e morre O rei disfarccedilado em mendigo eacute insultado por

Antiacutenoo um dos pretendentes

Canto XVIII - A fim de satisfazer os pretendentes Odisseu luta com Ino um mendigo no

palaacutecio Peneacutelope recrimina o tratamento dado ao estrangeiro questiona a Telecircmaco a falta de

firmeza diante daquela injusticcedila Odisseu como hoacutespede por decisatildeo de Peneacutelope fica esta

noite na sala da casa Todos vatildeo dormir depois de beberem e comerem

35

Canto XIX - Odisseu diz a Peneacutelope ser de Creta e garante que seu esposo iraacute voltar

Peneacutelope muito astuta natildeo acredita na histoacuteria criada e questiona Ele responde corretamente

mas ela natildeo acredita que o Rei regressaraacute Manda que as criadas sirvam bem o hoacutespede A

ama Euricleacuteia lava seus peacutes e o reconhece por uma antiga cicatriz Diante das evidecircncias o

heroacutei confirma a descoberta mas diz para que ela natildeo o revele

Canto XX - Os pretendentes novamente reuacutenem-se em banquete Odisseu pede a Zeus que

de sua casa surja algueacutem para ajudar-lhe na vinganccedila como um sinal de que sairia vitorioso

Zeus faz trovejar e aparece uma criada que lhe conta o pressaacutegio Pede ainda que Zeus

sinalize se aquele eacute o uacuteltimo dia de gozo dos pretendentes em seu palaacutecio Mais uma vez

Zeus faz trovejar Odisseu alegra-se e vai conversar com Eumeu e Fileacutecio Os pretendentes

banqueteiam-se

Canto XXI - Atena instiga no coraccedilatildeo de Peneacutelope uma atitude para pocircr fim agravequela indecisatildeo

e agraves regalias dos pretendentes os quais vinham a sua casa banquetear-se desrespeitando os

dons da hospitalidade Entatildeo ela corre pega o arco de Odisseu e diz que casaraacute com aquele

que o envergar retesar a corda e remessar a seta pelos doze orifiacutecios Os pretendentes vatildeo

tentando inutilmente Eacute a vez de Odisseu ainda como mendigo Todos desacreditam mas eis

que ele cumpre o indicado e triunfa sobre todos

Canto XXII ndash Odisseu revela-se como o senhor de Iacutetaca e inicia a chacina dos pretendentes

Atena estaacute presente em seu auxiacutelio Melacircntio aparece com armas e escudos Odisseu abalado

diz a Telecircmaco que algueacutem os traiu O priacutencipe revela ser o culpado em deixar a porta aberta

e manda fechar a porta Telecircmaco e os fieacuteis serventes Eumeu e Fileacutecio partem para vingar-se

dos serviccedilais e de Melacircntio O aedo e o arauto satildeo poupados da chacina

Canto XXIII ndash Euricleacuteia apoacutes a chacina avisa a Peneacutelope que seu esposo chegara e havia se

vingado dos pretendentes Desconfiada diz que a ama enlouqueceu Mas quis ver a chacina e

quem a realizou De frente para Odisseu permaneceu descrente Telecircmaco acusa a matildee de

frieza mas Odisseu o conteacutem Ela soacute acredita no retorno do esposo quando ele diz como foi

quem construiu o leito do casal Ela entatildeo abraccedila-o saudando seu regresso

Canto XXIV - As almas dos pretendentes satildeo guiadas por Hermes ateacute o Hades Odisseu vai

ateacute seu pai Laertes que demora a acreditar em seu retorno e pede um sinal Odisseu mostra a

36

cicatriz nomeia e quantifica cada fruteira do pomar O pai convencido fraqueja os joelhos e

vai em laacutegrimas abraccedilar o filho Nem tudo estaacute apaziguado pois as famiacutelias dos

pretendentes mortos realizam uma revolta Atena interveacutem para que a ordem seja instaurada

Objetivando comentar acerca da estrutura da Odisseacuteia vimos primeiramente os

periacuteodos da literatura grega com sua duraccedilatildeo e especificidade Depois a fim que pudeacutessemos

melhor explicar a significaccedilatildeo da epopeacuteia claacutessica remetemos nosso estudo para a etimologia

de epopeacuteia do grego epopoiia e sua significaccedilatildeo Passamos entatildeo para as ponderaccedilotildees de

Aristoacuteteles sobre a estrutura da epopeacuteia seu objeto de imitaccedilatildeo duraccedilatildeo suas semelhanccedilas e

diferenccedilas em relaccedilatildeo agrave trageacutedia a fim de compreendermos agrave luz da Poeacutetica as

peculiaridades do gecircnero eacutepico A invocaccedilatildeo a proposiccedilatildeo e a narraccedilatildeo as trecircs partes

estruturais da eacutepica tambeacutem foram referidas por noacutes neste toacutepico e que foram

exemplificados na Odisseacuteia Apoacutes identificar os cantos e versos em que cada parte se realiza

fizemos uma siacutentese de cada Canto Este uacuteltimo processo foi importante para que pudeacutessemos

destacar os episoacutedios narrados ao longo dessa epopeacuteia como tambeacutem para situar o nosso

objeto de pesquisa o Canto XI da Odisseacuteia dentro da obra e do processo sequencial dos

acontecimentos que nele se inserem Por meio dessas etapas constitutivas e construtivas do

presente trabalho acreditamos ter realizado uma apresentaccedilatildeo geral sobre a obra na qual se

insere o nosso corpus

122 Odisseu o heroacutei multifacetado

Antes de inciarmos nossa discussatildeo sobre o multifacetado Odisseu pretendemos

expor brevemente sobre heroacutei e sua significaccedilatildeo no mundo claacutessico Buscando as definiccedilotildees

do Le Grand Bailly (2000) deparamo-nos com a seguinte traduccedilatildeo para hAgraverwj maicirctre chef

noble e completa ―de tout homme noble par la naissance le courage ou le talent (BAILLY

2000 p 909) ou seja o senhor o chefe o nobre e ―todo homem de descendecircncia nobre de

coragem ou de talento Liddell amp Scottlsquos em A Greek-English lexicon (1996) datildeo-nos a

traduccedilatildeo primaacuteria hero (heroacutei) e exemplificam que ―in Homer not restricted to warriors but

applied to all free men of that age as to minstrel the herald (LIDDEL amp SCOTT 1996 p

309) Quer dizer ―em Homero natildeo se restringe apenas aos guerreiros mas se aplica a todo

37

homem livre daquela eacutepoca o menestrel o arauto (Ibidem) Vale ressaltar que essas

definiccedilotildees dos dicionaacuterios baseiam-se na vasta literatura do mundo claacutessico grego a fim de

tentar defini-lo

Para compreendermos melhor a significaccedilatildeo do heroacutei claacutessico veremos tambeacutem

os posicionamentos de Hesiacuteodo e Aristoacuteteles No mito das cinco raccedilas presente em Os

trabalhos e os dias Hesiacuteodo enumera a existecircncia de cinco raccedilas humanas A Raccedila de Ouro a

Raccedila de Prata a Raccedila de Bronze a Raccedila dos Heroacuteis e a Raccedila de Ferro Como vemos as raccedilas

satildeo nomeadas a partir do valor dos metais ouro prata bronze mas entre a de bronze e a de

ferro temos a dos heroacuteis Esta se encontra especificamente dos versos 156 ao 172 Hesiacuteodo a

define como a os hcedilmiqeoi (V 160) os semi-deuses dos oAtildelbioi hAgraverwej (V 172) os heroacuteis

venturosos Uma raccedila criada por Zeus mais justa mais corajosa e de descendecircncia divina dos

que atuaram em Tebas levando muitos agrave morte e outros em Troacuteia por causa de Helena

Diante disso ao morrerem os heroacuteis satildeo levados por ZeuUumlj Kronidhj (V 168) o Zeus

Cronida para a Ilha dos Bem-Aventurados

Aristoacuteteles na Poeacutetica em 1453a define os heroacuteis como seres de situaccedilatildeo

intermediaacuteria pelo fato de que nem satildeo virtuosos nem justos em demasia como tambeacutem natildeo

satildeo tatildeo maldosos aleacutem de pertencerem ao grupo dos que gozam de prestiacutegio e poder e que

satildeo superiores aos homens Por isso seriam os personagens ideais da trageacutedia mesmo porque

as falhas que cometem satildeo muito mais por consequecircncia de um erro do que por falha de

caraacuteter Assim o erro dos heroacuteis conforme preconiza Aristoacuteteles eacute proveniente da accedilatildeo e

natildeo do caraacuteter do personagem Aleacutem do mais o fato de ter prestiacutegio perante a sociedade

tambeacutem facilita a realizaccedilatildeo da empatia do puacuteblico para com o personagem traacutegico e

consequentemente a efetivaccedilatildeo da katarsij16

Odisseu como heroacutei possui os elementos descritos anteriormente Assim como eacute

mostrado no Le Grand Bailly (2000) eacute de descendecircncia nobre um homem de coragem jaacute

segundo Liddlel amp Scott (1996) ele eacute tanto o guerreiro como tambeacutem o aedo basta-nos

lembrar dos Cantos VIII IX X XI e XII da Odisseacuteia quando o heroacutei relata todos os

acontecimentos pelos quais passou ateacute o presente momento Como pressupotildee Hesiacuteodo ele eacute

da raccedila dos heroacuteis que atuou em Troacuteia portanto eacute justo e corajoso de descendecircncia divina

Vale lembrar que Odisseu filho de Laertes eacute descendente da raccedila de Deucaliatildeo e este por

sua vez do titatilde Prometeu Vejamos abaixo a genealogia de Odisseu

16

Esse termo aristoteacutelico seraacute melhor discutido por noacutes no segundo e terceiro capiacutetulos quando detivermos a

nossa anaacutelise para a conceituaccedilatildeo e anaacutelise do traacutegico

38

Prometeu ~ Cliacutemene

darr

Deucaliatildeo ~ Pirra

darr

Deacuteion ~ Diomedes

darr

Ceacutefalo Hermes ~ Quiacuteone

darr darr

Arciacutesio ~ Calcomedusa Autoacutelico ~ Antiacutefea

Laertes ~ Anticleacuteia

darr

Odisseu ~ Peneacutelope

darr

Telecircmaco

Aleacutem disso como pressupotildee Aristoacuteteles Odisseu possui como todo e qualquer

heroacutei prestiacutegio e poder e seu caraacuteter nem eacute tatildeo virtuoso nem tatildeo maleacutefico Deste modo apoacutes

esta breve elucidaccedilatildeo a respeito do heroacutei grego entendemos que natildeo eacute aleatoacuterio o fato de

Odisseu ser o personagem principal e por isso mesmo seu nome daacute o tiacutetulo de uma das mais

importantes obras do ocidente a Odisseacuteia Esta como jaacute dissemos propotildee cantar os seus

feitos desde que partiu de Troacuteia ateacute seu tatildeo pretendido retorno ao lar Por tudo isso Odisseu

eacute um dos maiores e mais completos siacutembolos do heroiacutesmo claacutessico ndash eacute piedoso astuto viril

Aleacutem de assumir as funccedilotildees do heroacutei indo-europeu sacerdotal empreendedor e guerreiro

prescritas por Dumeacutezil em Mythe et Epopee (1995) Natildeo iremos nos alongar nestas

ponderaccedilotildees mas a seguir comentaremos brevemente acerca das identificaccedilotildees de Odisseu

com essas funccedilotildees

A primeira funccedilatildeo a sacerdotal realiza-se a partir do caraacuteter piedoso e temente

aos deuses de Odisseu Para exemplificar eacute soacute nos remetermos ao Canto XII ao contraacuterio dos

seus companheiros Odisseu natildeo se alimenta dos bois do Sol Por saber que tal ato ofende uma

divindade ele evita a imprudecircncia da desonra jaacute seus companheiros cometem a cediluagravebrij e por

isso todos eles seratildeo punidos por Zeus

A segunda a de empreendedor daacute-se atraveacutes de seu empreendedorismo de

fundador e solidificador de cidades fato que pode ser observado ateacute mesmo pela busca da

gloacuteria domeacutestica e natildeo em campo de batalha Lembremos inclusive que Odisseu prefere a

39

mortalidade agrave imortalidade bem como renega a eterna juventude oferecida por Calipso para

regressar a Iacutetaca

A terceira funccedilatildeo do indo-europeu a de guerreiro pode ser vista mais

explicitamente no Canto XXII entre os versos 401 a 406 quando Odisseu realiza a chacina

dos pretendentes e eacute comparado a um leatildeo ensanguentado em meio a suas viacutetimas Estas

compotildeem um nuacutemero de cento e dezesseis jaacute contando com os pretendentes e os servos

Vejamos a referida passagem

εὗρεν ἔπειτ᾽ Ὀδυσῆα μετὰ κταμένοισι νέκυσσιν

αἵματι καὶ λύθρωι πεπαλαγμένον ὥστε λέοντα

ὅς ῥά τε βεβρωκὼς βοὸς ἔρχεται ἀγραύλοιο

πᾶν δ᾽ ἄρα οἱ στῆθός τε παρήϊά τ᾽ ἀμφοτέρωθεν

405 αἱματόεντα πέλει δεινὸς δ᾽ εἰς ὦπα ἰδέσθαι

ὣς Ὀδυσεὺς πεπάλακτο πόδας καὶ χεῖρας ὕπερθεν17

(Odisseacuteia XXII 401- 406)

Entatildeo encontrou Odisseu junto aos cadaacuteveres que havia matado

manchado de sangue e impureza Do mesmo modo que um leatildeo

apoacutes devorar um boi do campo vai embora

Todo o seu peito e as mandiacutebulas de ambos os lados tinha ensanguumlentados

Assim terriacutevel nas faces era de se ver

Deste modo Odisseu em cima tinha manchados as matildeos e os peacutes

Como jaacute antecipamos em toacutepico anterior a Iliacuteada e Odisseacuteia diferem em alguns

aspectos e um deles eacute a caracterizaccedilatildeo do heroacutei Uma diferenccedila baacutesica eacute que a gloacuteria de

Odisseu natildeo se relaciona agrave morte no campo de batalha Jaacute para Aquiles a kaloj qanatoj

a bela morte deve ser imprescindivelmente conquistada em campo de batalha pois de outra

maneira o heroacutei natildeo alcanccedilaria a gloacuteria eterna Deste modo para conseguir a pretendida

gloacuteria Aquiles natildeo pode voltar a seu lar jaacute Odisseu tem de voltar por isso Vernant diz que

ele eacute ―o homem da relembranccedila disposto a aceitar todas as provas e todos os sofrimentos para

cumprir seu destino () voltar e encontrar-se consigo mesmo (VERNANT 2000 p 36)

Assim eacute o ―heroacutei do retorno (Ibidem)

Na Iliacuteada por exemplo por mais que saibamos que o heroacutei principal cantado seja

Aquiles este em muitos momentos divide seu posto com outros heroacuteis os quais inclusive

tecircm um momento especiacutefico soacute para serem cantados Deste modo no Canto V temos a aristia

de Diomedes no VII o combate singular entre Heitor e Aacutejax no XI a aristia de Agamecircmnon

17

Texto retirado em 30 de abril de 2010 agraves 1024hs de httpwwwhs-

augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_od22html

40

no Canto XVI os feitos gloriosos de Paacutetroclo e no XVII a aristia de Menelau entre outros

Como se pode ver cantos seratildeo dedicados agrave exaltaccedilatildeo de outros heroacuteis e dos seus feitos

proporcionando uma descentralizaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave figura do heroacutei maior Aquiles

Na Odisseacuteia ao contraacuterio temos uma centralizaccedilatildeo do siacutembolo heroacuteico a partir de

Odisseu Este conduz o percurso de quase todos os cantos como eixo de glorificaccedilotildees salvo

em alguns momentos em que se daacute espaccedilo para Telecircmaco a chamada Telemaquia (nos

Cantos I ao IV) mas esta natildeo proporciona uma descentralizaccedilatildeo e sim uma acentuaccedilatildeo da

centralizaccedilatildeo visto que eacute a saga do filho de Odisseu assim constitui o siacutembolo da

descendecircncia heroacuteica18

Siacutembolo de piedade de prudecircncia e de respeito ao pudor (aidwj) Odisseu

sempre honra as divindades e esse eacute o argumento utilizado por Atena para Zeus ao pedir que

Odisseu possa regressar ao lar No Canto XXII entre os versos 401 a 416 apoacutes ter matado os

pretendentes e encontrar-se ensanguentado em meio a todos eles Odisseu encontra a ama

Euricleacuteia e esta regozijando-se de alegria eacute contida pelo heroacutei Observemos a accedilatildeo do

prudente Odisseu

εὗρεν ἔπειτ᾽ Ὀδυσῆα μετὰ κταμένοισι νέκυσσιν

αἵματι καὶ λύθρωι πεπαλαγμένον ὥστε λέοντα

ὅς ῥά τε βεβρωκὼς βοὸς ἔρχεται ἀγραύλοιο

πᾶν δ᾽ ἄρα οἱ στῆθός τε παρήϊά τ᾽ ἀμφοτέρωθεν

405 αἱματόεντα πέλει δεινὸς δ᾽ εἰς ὦπα ἰδέσθαι

ὣς Ὀδυσεὺς πεπάλακτο πόδας καὶ χεῖρας ὕπερθεν

ἡ δ᾽ ὡς οὖν νέκυάς τε καὶ ἄσπετον εἴσιδεν αἷμα

ἴθυσέν ῥ᾽ ὀλολύξαι ἐπεὶ μέγα εἴσιδεν ἔργον

ἀλλ᾽ Ὀδυσεὺς κατέρυκε καὶ ἔσχεθεν ἱεμένην περ

410 καί μιν φωνήσας ἔπεα πτερόεντα προσηύδα

ἐν θυμῶι γρηῦ χαῖρε καὶ ἴσχεο μηδ᾽ ὀλόλυζε

οὐχ ὁσίη κταμένοισιν ἐπ᾽ ἀνδράσιν εὐχετάασθαι

τούσδε δὲ μοῖρ᾽ ἐδάμασσε θεῶν καὶ σχέτλια ἔργα

οὔ τινα γὰρ τίεσκον ἐπιχθονίων ἀνθρώπων

415 οὐ κακὸν οὐδὲ μὲν ἐσθλόν ὅτις σφέας εἰσαφίκοιτο

τῶι καὶ ἀτασθαλίηισιν ἀεικέα πότμον ἐπέσπον19 (Odisseacuteia XXII 401- 416)

18

Ver quadro genealoacutegico na paacutegina 40 19

Texto disponiacutevel em httpwwwhs-

augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_od22html agraves 1500hs de 15 de julho de

2010

41

Entatildeo encontrou Odisseu junto aos cadaacuteveres que havia matado

Tendo sido manchado com sangue e impureza Do mesmo modo

que um leatildeo apoacutes devorar um boi do campo que em consequumlecircncia

possui todo o peito e as mandiacutebulas ensanguumlentadas dos dois lados

assim ele se encontra e faz-se ver em direccedilatildeo ao terror

Deste modo as matildeos e os peacutes de Odisseu estavam em cima manchados

Entatildeo a ama Euricleacuteia viu os cadaacuteveres e o imenso sangue

e eacute verdade que atacou a gritar quando viu o grande trabalho

Mas Odisseu a deteve e decerto segurou sua agitaccedilatildeo

Tambeacutem ele mesmo tendo falado alto dirigia-lhe essas palavras aladas

Na alma velha alegra-te mas natildeo grita reprime pois para si

Natildeo eacute da lei divina manifestar-se assim sobre os homens que perecem

Estes o destino dos deuses submeteu como tambeacutem a seus trabalhos

[funestos

Eles natildeo respeitavam nenhum dos homens viventes da terra

nem o mau nem certamente o bom que a eles se apresentou

E por essas accedilotildees insanas perseguiu-lhes o destino indigno

Junito Brandatildeo em Introduccedilatildeo ao mito dos heroacuteis (1998) relata sobre a origem

do termo grego hAgraverwj que teria sido oriunda da forma do indo-europeu serva relacionada

tambeacutem ao termo latino seruuare daiacute o fato de a palavra heroacutei significar aquele que nasceu

para servir Odisseu cumpre bem esta tarefa de servidor de uma naccedilatildeo haja vista seu

importante papel na Guerra de Troacuteia participando da embaixada a Aquiles idealizando o

Cavalo de Troacuteia e em seu retorno a Iacutetaca estabelecendo a paz e a ordem junto com Atena

em sua paacutetria

Ainda segundo Junito o heroacutei tem que enfrentar dificuldades em sua trajetoacuteria

como tambeacutem em seu nascimento ser filho de mortal com imortal ter educaccedilatildeo diferenciada

dos demais e passar pelos ritos de formaccedilatildeo iniciaacutetica e de passagem No primeiro rito o

heroacutei ausenta-se do pai eou da paacutetria como faz Telecircmaco no Canto I da Odisseacuteia que em

busca do seu pai teve que sair de Iacutetaca sua paacutetria no segundo o heroacutei realiza seu momento

de transiccedilatildeo com algum grande feito como descer ao Hades desvendar a saiacuteda de um

labirinto entre tantos outros Na Odisseacuteia por exemplo o rito de passagem do Laertida eacute

realizado no Canto XI apoacutes realizar a nemacrkuia20 e vecirc-se devidamente pronto e experimentado

para saber como fazer e como deve agir para retornar a seu tatildeo pretendido lar

No geral como explica-nos Brandatildeo o heroacutei eacute representado belo mas sempre tecircm

algumas deficiecircncias fiacutesicas como o gigantismo em excesso a exemplo de Heacuteracles ou

estatura baixa demais como eacute o caso de Odisseu Sobre este fato Charles Beye comenta ―a

20

Em grego nemacrkuia indica o ritual de sacrifiacutecio feito aos mortos

42

definiccedilatildeo tradicional de heroacutei pressupotildee em geral beleza fiacutesica e forccedila O Odisseu pode ter

sido forte mas parece que natildeo foi nenhum modelo de beleza (BEYE 2006 p 58)

Ateacute o momento discutimos caracteriacutesticas gerais a respeito dos heroacuteis gregos

sejam atraveacutes das definiccedilotildees baacutesicas como a dos dicionaacuterios didaacuteticas como as de Hesiacuteodo

filosoacuteficas e literaacuterias como as de Aristoacuteteles sejam as analiacuteticas e teoacutericas como as de

Junito Neste percurso tentamos relacionar as caracteriacutesticas citadas de heroiacutesmo ao

personagem maior da Odisseacuteia

Neste instante partiremos para uma anaacutelise mais especiacutefica do perfil de Odisseu

representado na Odisseacuteia Para tanto escolhemos os cinco primeiros versos do seu proecircmio21

e dois dos epiacutetetos de Odisseu polutropoj e polumhtij Esta delimitaccedilatildeo faz-se

relevante para que possamos abarcar da melhor maneira possiacutevel o objeto em questatildeo

Como sabemos os epiacutetetos satildeo recursos comuns na literatura grega em geral

principalmente na arcaica por sua ligaccedilatildeo com a oralidade Deste caraacuteter oral proveacutem a

importacircncia da utilizaccedilatildeo de alguns recursos como por exemplo o dos epiacutetetos as repeticcedilotildees

num processo mnemocircnico Diante deste fato Junito Brandatildeo (1998) informa-nos a partir dos

dados colhidos por Lloyd-Jones que na eacutepica homeacuterica haacute ao todo vinte e oito mil versos e

vinte e cinco mil frases pequenas ou longas repetidas Os epiacutetetos tambeacutem fazem parte destes

recursos mnemocircnicos por isso Junito cita a pesquisa realizada por Joseacute Marques Leite a qual

atesta a existecircncia de quatro mil quinhentos e sessenta epiacutetetos utilizados nos seus dois

poemas

Desta maneira importante natildeo apenas como recurso literaacuterio como tambeacutem

mnemocircnico Homero utiliza-se aleacutem da representaccedilatildeo pela accedilatildeo dos epiacutetetos para simbolizar

os atributos heroacuteicos de Odisseu ilustrando as caracteriacutesticas especiacuteficas do heroacutei

Selecionamos o proecircmio e os dois epiacutetetos jaacute citados para que a partir deles possamos

revelar os elementos qualitativos que constituem a formaccedilatildeo do Odisseu Ateacute porque assim

como passa vinte anos distante de sua paacutetria seu nome natildeo consta nos vinte primeiros versos

sendo entatildeo sua referecircncia realizada pela citaccedilatildeo de seus feitos e pelo epiacuteteto polutropoj

Observemos os cinco primeiros versos do proecircmio da Odisseacuteia

21 Haacute um estudo interessante sobre o proecircmio da Odisseacuteia e que nos auxiliou na construccedilatildeo deste trabalho Este

eacute intitulado ―Polluacute Pollaacute Pollocircn Multiplicidade no proecircmio da Odisseacuteia de Andreacute Malta (USP) e estaacute

disponiacutevel em httpwwwscieloorgarscielophpscript=sci_arttextamppid=S0328-12052007000100004

43

Ἄλδξα κνη ἔλλεπε κνῦζα πολύτροπον ὃο κάια πολλὰ

πιάγρζε ἐπεὶ Τξνίεο ἱεξὸλ πηνιίεζξνλ ἔπεξζελ

πολλῶν δ᾽ ἀλζξώπσλ ἴδελ ἄζηεα θαὶ λόνλ ἔγλσ

πολλὰ δ᾽ ὅ γ᾽ ἐλ πόληση πάζελ ἄιγεα ὃλ θαηὰ ζπκόλ

5 ἀξλύκελνο ἥλ ηε ςπρὴλ θαὶ λόζηνλ ἑηαίξσλ22

Musa conta-me sobre o heroacutei de muitas voltas que muito

errou depois que saqueou a sagrada cidade de Troacuteia

Viu as cidades de muitos homens e conheceu sua mente

no mar padeceu muitos sofrimentos de encontro ao seu acircnimo

esforccedilando-se por sua alma e pelo regresso dos companheiros

Como vemos o primeiro epiacuteteto utilizado para Odisseu eacute o de polutropoj para

o qual Bailly daacute a traduccedilatildeo ―qui se tourne en beaucoup de sens (BAILLY 2000 p 1601) ou

seja o que se volta em muitos sentidos ou versatile astuto versaacutetil astuto como traduz

Romizi (2007) Mas estudando a formaccedilatildeo deste epiacuteteto polutropoj observamos que ele eacute

feito pela junccedilatildeo de polu expressatildeo adjetiva de quantidade intensificadora que significa

muito mais o substantivo masculino tropoj que significa modo maneira atitude direccedilatildeo

Este substantivo por sua vez eacute originado do verbo trepw voltar tornar dirigir Esta

retomada ao verbo que origina o epiacuteteto muito nos esclarece visto que Odisseu anda por

muitos lugares e volta para os mesmos Por exemplo Oisseu sai da Ilha de Circe no Canto X

e volta no Canto XI depois de ter estado na entrada do Hades

Ao mesmo tempo aleacutem do sentido fiacutesico este epiacuteteto tambeacutem nos revela o poder

de arguiccedilatildeo de habilidade com o pensamento Este epiacuteteto talvez seja o mais representativo

de Odisseu que como sabemos eacute o heroacutei do regresso da volta agrave paacutetria sem falar que seus

discursos tambeacutem satildeo cheios de contornos No Canto IX com Polifemo ele diz chamar-se

oucurrentij Ningueacutem no verso 366 mas jaacute no verso 455 diz chamar-se Odisseu revelando seu

verdadeiro nome assim ele vai e volta em seu discurso Seria entatildeo polutropoj o de

muitas voltas de muitos contornos de muitas maneiras intensificando o caraacuteter maleaacutevel e

multiforme de Odisseu de adaptar-se agraves circunstacircncias para no final sair vencedor Assim

ele se esconde como o rebanho de Polifemo eacute o amante de Circe o amante de Calipso o

mendigo de Iacutetaca o navegante o hoacutespede isto eacute muitas figuras para o mesmo heroacutei que com

todas elas tem a vitoacuteria como uacutenico objetivo A exposiccedilatildeo semacircntica do termo polutropoj

nem sempre fica clara nas traduccedilotildees o que afeta o sentido tatildeo necessaacuterio para uma

compreensatildeo do heroacutei e da obra como um todo vejamos algumas exemplificaccedilotildees

22

Os destaques satildeo nossos Texto retirado agraves 2107hs de 27 de abril de 2010 do site

httpwwwhsaugsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_od01html

44

Musa reconta-me os feitos do heroacutei astucioso que muito

peregrinou decircs que esfez as muralhas sagradas de Troacuteia

muitas cidades dos homens viajou conheceu seus costumes

como no mar padeceu sofrimentos inuacutemeros na alma

para que a vida salvasse e de seus companheiros a volta

(NUNES 2009 p 28)

Oacute Musa fala-me do solerte varatildeo que depois de ter destruiacutedo a cidade

sagrada de Troacuteia andou errante por muitas terras viu as cidades de

numerosas gentes e conheceu-lhes os costumes e por sobre o mar sofreu

no seu coraccedilatildeo afliccedilotildees sem conta no intento de salvar a sua vida e de

conseguir o regresso dos companheiros

(PALMEIRA amp CORREIA 1980 p 1)

Clsquoest llsquoHomme aux mille tours Muse qulsquoil faut me

dire Celui tant erra quand de Troade il eut pilleacute la

ville sainte Celui qui visita les citeacutes de tant dlsquohommes

et connut leur esprit Celui qui sur ler mers passa par

tant dlsquoangoisses en luttant pour survivre et ramener ses gens23

(BEacuteRARD 2009 p1)

Como vemos as traduccedilotildees do termo polutropoj natildeo datildeo conta do seu potencial

semacircntico principalmente porque os autores deixam de traduzir o seu qualificador e

acentuador polu A exceccedilatildeo fica para a traduccedilatildeo de Beacuterard que usa a expressatildeo ―mille

tours ou seja ―mil voltas Ainda assim o numeral ―mil natildeo exatamente reflete a expressatildeo

grega jaacute que esta natildeo eacute quantificada pois se traduz como ―muitos ―indeterminadamente

Esquecer ou ignorar a traduccedilatildeo de polu natildeo eacute adequado mesmo porque se o quisesse

Homero poderia deixaacute-lo impliacutecito ou natildeo o ter utilizado mas se o fez eacute porque considera

importante ser dada a ecircnfase ao substantivo tropoj

Ao longo dos cinco primeiros versos deste proecircmio vemos a repeticcedilatildeo dos

intensificadores pollaUuml pollwordfn pollaUuml fora o polu de polutropoj que jaacute foi

estudado por noacutes O primeiro termo um adveacuterbio pollaUuml refere-se agrave plagxqh indicando

aquele que muito vagou errou O segundo pollwordfn relaciona-se a a)nqrwpwn para

expressar que ele andou por cidades de muitos homens E o terceiro pollaUuml direciona-se

23

Traduccedilatildeo

Eacute o homem de mil voltas Musa que eacute preciso me dizer

Este que tanto vagou errante quando da Trocircade tinha saqueado

a cidade santa este que visitou as cidades de tantos homens

e conheceu seu espiacuterito Este que sobre os mares passou por

tantas anguacutestias lutando para sobreviver e o seu povo fazer retornar

45

para especificar aAtildelgea ou seja as muitas dores sofrimentos pelos quais passou no mar

buscando os seus retornos e o dos seus companheiros Essa sequecircncia de intensificadores

logo ao iniacutecio do proecircmio apesar de breve eacute uma boa representaccedilatildeo da multiplicidade

representada ao longo da Odisseacuteia epopeacuteia em que tudo eacute grandioso excessivo sejam os

feitos do heroacutei os locais pelos quais ele passa sejam tambeacutem suas dores Sem falar no seu

poder ilustrado pelo primeiro epiacuteteto polutropoj que exprime sua capacidade de muitas

voltas o multiforme ou pelo sentido concreto ou abstrato

Outro epiacuteteto bastante relevante eacute o de polumhtij pois aleacutem de configurar a

persona de Odisseu acentua essa qualificaccedilatildeo jaacute que eacute caracteriacutestico de outros personagens e

evoca nomes importantes como os de Zeus e Atena Deste modo Hesiacuteodo no verso 457 de

Teogonia (2009) define o pai dos deuses e dos homens como o Zhordfna te mhtioenta ou

seja Zeus astuto saacutebio sagaz Ainda na Teogonia (2009) Hesiacuteodo conta-nos dos versos 881

ateacute o 900 que Zeus aconselhado por Terra engole Meacutetis sua primeira esposa ainda graacutevida

de Atena para que seus filhos natildeo o destronassem Desta forma com a prudecircncia dentro de si

Zeus torna-se ainda mais poderoso Atena sendo filha de Meacutetis tambeacutem tem a caracteriacutestica

da prudecircncia aleacutem de que o proacuteprio Hesiacuteodo (2009) sempre a compara a seu pai tanto em

poder quanto em prudecircncia24

Segundo Otto (2005) no hino homeacuterico agrave Atena Meacutetis a

chama de polumhtij Sem falar que no Canto XIII verso 297 da Odisseacuteia a proacutepria Atena

compara-se a Odisseu Isto ocorre quando ela se revela para o heroacutei e diz que ele eacute um exiacutemio

astucioso muito sagaz que consegue tudo o que almeja Na formaccedilatildeo desse epiacuteteto temos o

intensificador polu muito e o substantivo mhordftij que significa prudecircncia sagacidade

Assim o epiacuteteto polumhtij que evoca e relaciona Odisseu a Zeus e a Atena significa o de

muita prudecircncia muita sagacidade E sabemos que ambos os deuses protegem Odisseu em

sua erracircncia ateacute retornar agrave paacutetria

Esse epiacuteteto eacute importante pois aleacutem de relacionar Odisseu agraves caracteriacutesticas de

Zeus relaciona-o tambeacutem ao de sua proacutepria deusa-guia Atena Esta eacute a deusa que acompanha

Odisseu como tambeacutem seu filho Telecircmaco em toda a sua jornada Telecircmaco Atena auxilia

no rito de iniciaccedilatildeo heroacuteica e Odisseu em sua longa jornada em busca da gloacuteria domeacutestica25

Na proacutepria Iliacuteada (2009) ela jaacute acompanha Odisseu em sua empreitada noturna com

24

Versos 892 e 898 da Teogonia 25

A gloacuteria que Odisseu busca eacute a domiciliar ateacute porque a kleoj aOacutefqiton gloacuteria impereciacutevel ele jaacute havia

conquistado ainda em vida Uma prova disso eacute que no Canto VIII da Odisseacuteia entre os versos 499-531

Demoacutedoco canta a construccedilatildeo do cavalo de madeira idealizado por Odisseu E o Laertida vai agraves laacutegrimas tendo

percebido que se tornara mito ainda em vida

46

Diomedes no Canto X ajudando-os a matar os inimigos e a voltar com seguranccedila para o

acampamento Sob essa proteccedilatildeo divina Odisseu cumpre sua jornada retorna ao seu lar apoacutes

vinte anos realiza a chacina dos pretendentes e instaura a paz em Iacutetaca

Por tudo isso que foi explicitado acerca deste multiforme heroacutei eacute que ―()

Odisseu era o modelo supremo para o homem do mundo antigo (BEYE 2006 p 206) aleacutem

de ser apontado como ―o heroacutei mais ceacutelebre de toda a antiguidade (GRIMAL 2005 p 458)

A fim de mostrar a importacircncia deste heroacutei trabalhamos neste toacutepico com dois aspectos

centrais no primeiro fizemos elucidaccedilotildees a respeito da definiccedilatildeo e caracterizaccedilatildeo do heroacutei

sua funccedilatildeo no mundo grego a partir dos estudos de Hesiacuteodo em Teogonia (2009) e Os

trabalhos e os dias (2008) Aristoacuteteles na Poeacutetica Dumegravezil (1995) Junito Brandatildeo (1995)

No segundo fizemos um breve estudo dos cinco primeiros versos do proecircmio da Odisseacuteia e

de dois importantes e ilustrativos epiacutetetos de Odisseu o polumhtij e o polutropoj Tudo

isso para poder mostrar a relevacircncia heroacuteica que este personagem tem natildeo soacute na epopeacuteia que

o retrata mas em toda a representatividade da literatura claacutessica

47

2 O TRAacuteGICO - ASPECTOS TEOacuteRICOS E CONCEITUAIS

21 Uma breve consideraccedilatildeo sobre o nosso estudo do Traacutegico

Antes de iniciarmos nossas ponderaccedilotildees teoacutericas e conceituais a respeito do

traacutegico consideramos importante elucidar que iremos fundamentar nossas discussotildees a partir

dos preceitos aristoteacutelicos do traacutegico presentes na Poeacutetica Contudo reconhecemos que este

autor assim como diz-nos Albin Lesky (1996) natildeo nos deixou tatildeo claro esses aspectos

Vejamos

Haacute algo sem duacutevida que podemos afirmar com inteira seguranccedila os gregos

criaram a grande arte traacutegica e com isso realizaram uma das maiores

faccedilanhas do campo do espiacuterito mas natildeo desenvolveram nenhuma teoria do

traacutegico que tentasse ir aleacutem da plasmaccedilatildeo deste no drama e chegasse a

envolver a concepccedilatildeo do mundo como um todo (LESKY 1996 p 21)

Lesky coloca-nos a exposiccedilatildeo de maneira clara foram os gregos que nos legaram

o traacutegico legado esse importantiacutessimo todavia natildeo deixaram para posteridade o

desenvolvimento e a interpretaccedilatildeo desse traacutegico ou seja nenhuma ―teoria do traacutegico Apesar

de que ele proacuteprio ao longo de A trageacutedia Grega (1996) percorre os elementos traacutegicos

presentes na Poeacutetica E para esclarecer esses aspectos que natildeo estatildeo desenvolvidos em

profundidade por Aristoacuteteles outros autores aleacutem do jaacute citado Albin Lesky tambeacutem se

dedicam ao desvendamento da significaccedilatildeo do traacutegico a citar Jean Pierre Vernant Pierre

Grimal Jacqueline de Romilly Anatol Rosenfeld Junito Brandatildeo e Sandra Luna A seleccedilatildeo

destes autores realiza-se atraveacutes de criteacuterios que levam em consideraccedilatildeo a adequaccedilatildeo ao nosso

trabalho

Acreditamos ser importante fazer esta ressalva pois como se sabe muitos

trabalhos foram realizados sobre o traacutegico principalmente pelos filoacutesofos alematildees legando-

nos uma ―filosofia do traacutegico Esta foi realizada por autores como Schelling Houmllderlin

Hegel Solger Goethe Schopenhauuer Vischer Kierkegaard Hebbel Nietzscche Simmel e

Schiler Todos eles detiveram parte de seus estudos para entenderem a manifestaccedilatildeo do

traacutegico Reconhecemos as contribuiccedilotildees dadas por cada um mas no presente trabalho

delimitamos alguns autores por considerarmos mais adequados ao nosso objetivo central que

48

eacute analisar o traacutegico jaacute existente na eacutepica especificamente no Canto XI da Odisseacuteia a partir

dos encontros que Odisseu tem no Hades

Ao longo deste capiacutetulo desenvolveremos trecircs eixos do traacutegico que seratildeo

importantes para a compreensatildeo e embasamento de nossa anaacutelise ―O traacutegico e a trageacutedia ―O

traacutegico na Poeacuteticardquo e ―A busca do traacutegico - outras acepccedilotildees teoacutericas No primeiro

discorreremos sobre as diferenccedilas e especificidades da trageacutedia e do traacutegico no segundo

sobre os conceitos do traacutegico jaacute referidos por Aristoacuteteles na Poeacutetica interpretando-os a partir

da traduccedilatildeo de excertos extraiacutedos do original no terceiro iremos expor e discutir os estudos

de outros autores sobre o traacutegico claacutessico sempre observando sua aplicabilidade agrave nossa

anaacutelise central que seraacute desenvolvida especificamente no capiacutetulo subsequente

22 O traacutegico e a trageacutedia

No momento em que comeccedilamos a discutir sobre as questotildees da trageacutedia e do

traacutegico desde o iniacutecio nos eacute imposto mesmo que indiretamente o dilema da anterioridade de

um ou de outro Assim perguntamo-nos quem teria vindo primeiro A trageacutedia ou o traacutegico

Aparentemente eles satildeo indissociaacuteveis tornando difiacutecil definir quem veio primeiro e a

delimitaccedilatildeo onde um inicia e o outro termina Ateacute que ponto ser-nos-ia possiacutevel contemplar

traacutegico sem trageacutedia ou ainda mais trageacutedia claacutessica sem o traacutegico Diante destas

interrogativas jaacute adiantamos que a realizaccedilatildeo daquele (traacutegico sem trageacutedia) eacute viaacutevel ao

contraacuterio deste (trageacutedia claacutessica sem traacutegico) em que sua estrutura prescinde do elemento

traacutegico como jaacute bem nos disse Aristoacuteteles na Poeacutetica inclusive para a efetivaccedilatildeo da

kaqamacrrsij26

Para que possamos entender essa dita viabilidade de traacutegico sem trageacutedia e a

inviabilidade da trageacutedia claacutessica sem o traacutegico iremos discorrer sobre a origem a

conceituaccedilatildeo e a significaccedilatildeo que eles possuem dentro do contexto da literatura claacutessica

grega

A palavra tragikoj tem como sentido geral aquilo que concerne agrave trageacutedia ou

ateacute mesmo ao ator ou ao poeta traacutegico algo de natureza grave majestosa poeacutetica assim nos

26

Sabe-se que a respeito deste termo grego existem algumas discussotildees as quais seratildeo expostas no decorrer do

trabalho Por hora basta-nos compreender que este termo oriundo do verbo kaqairw tem como sentido

primaacuterio o significado meacutedico de purgaccedilatildeo aleacutem de ter uma acepccedilatildeo religiosa de purificaccedilatildeo

49

define A Bailly (2000) e Liddlel e Scott (1996) Mas a partir de uma perspectiva

etimoloacutegica indicada por Renato Romizi (2001) tragikoj com o radical de tragoj

(bode) e o sufixo adjetivo ikoj significa primordialmente o que eacute proacuteprio do bode ou

semelhante ao bode Contudo considerando as utilizaccedilotildees deste nome no cenaacuterio da literatura

grega claacutessica com o surgimento das trageacutedias tragikoj passa a significar tambeacutem o

traacutegico elemento proacuteprio da trageacutedia vista aqui como gecircnero literaacuterio e natildeo como

manifestaccedilatildeo de ritual religioso que inclusive deu origem a sua nomeaccedilatildeo Todavia

veremos estes aspectos mais agrave frente quando formos tratar especificamente da trageacutedia

Como vimos o aspecto etimoloacutegico natildeo nos esclarece por completo os enigmas

do traacutegico todavia jaacute nos daacute pistas de sua significaccedilatildeo e origem Podemos entender que o

tragikoj estaacute ligado ao siacutembolo do bode este que por sua vez passa a ser relacionado ao

gecircnero literaacuterio da trageacutedia (do grego tragwlaquodimacra ou seja canto do bode) E sendo o bode

siacutembolo do sacrifiacutecio realizado a Dioniso dentro de um ritual religioso importante

socialmente podemos entender porque ambos tanto o traacutegico quanto a trageacutedia estatildeo

envoltos em uma accedilatildeo grandiosa

Em nossa pesquisa bibliograacutefica os estudos sobre o traacutegico que encontramos estatildeo

dentro dos estudos da trageacutedia numa intriacutenseca relaccedilatildeo que tanto pode ser beneacutefica como

pode tambeacutem natildeo nos beneficiar por acreditarmos nem sempre ter sido assim O traacutegico

como desenvolveremos a seguir jaacute se manifestava socialmente entre os gregos e em suas artes

desde muito cedo ao contraacuterio da trageacutedia que soacute viria a existir a partir do seacuteculo V aC

Diante dos estudos a respeito do traacutegico claacutessico a que jaacute nos referimos

destacamos o trabalho realizado por Sandra Luna em Arqueologia da accedilatildeo traacutegica (2005)

Neste temos algumas consideraccedilotildees sobre a existecircncia do traacutegico antes da trageacutedia o que

pode ser comprovado por estudos antropoloacutegicos verificando-se que ―natildeo surpreende o

adentramento precoce do traacutegico na tessitura das artes verbais (LUNA 2005 p 29) Um

exemplo bastante claro dessa preacute-existecircncia do traacutegico natildeo soacute na perspectiva social mas na

produccedilatildeo literaacuteria satildeo as epopeacuteias homeacutericas pois eacute fato que

() Homero convida-nos a ponderar gravemente sobre o traacutegico fim da

existecircncia humana Contudo a despeito do tratamento refinado de elementos

traacutegicos na eacutepica grega natildeo parece ser exatamente ―traacutegico o efeito

pretendido pelo poeta (Ibidem)

Assim apesar de o traacutegico como diz a autora natildeo ser objetivo de Homero eacute

inegaacutevel que nas duas primeiras obras de nossa literatura ocidental precursoras de tantas

50

categorias literaacuterias inaugura-se tambeacutem o traacutegico mesmo que ―a estrutura da accedilatildeo na

narrativa eacutepica dispersa o efeito traacutegico em favor de outros efeitos (LUNA 2005 p 30)

Compartilhamos com esse pensamento de que Homero realiza a dispersatildeo do traacutegico e isso

ele faz utilizando-se de recursos como a modificaccedilatildeo de uma cena traacutegica para outra sem

tragicidade diluindo a tragicidade da cena anterior Entre tantos exemplos desse fato

podemos citar o Canto XXIV no qual Priacuteamo natildeo soacute pede o resgate do corpo do seu filho

Heitor como tambeacutem beija a matildeo do assassino de seu filho Aquiles (v 506) Este concede o

pedido feito pelo rei dos troianos e convida-o para um banquete Vejamos

ἦ ῥα θαὶ ἐο θιηζίελ πάιηλ ἤτε δῖνο Ἀρηιιεύο

ἕδεην δ᾽ ἐλ θιηζκη πνιπδαηδάιση ἔλζελ ἀλέζηε

ηνίρνπ ηνῦ ἑηέξνπ πνηὶ δὲ Πξίακνλ θάην κῦζνλ

πἱὸο κὲλ δή ηνη ιέιπηαη γέξνλ ὡο ἐθέιεπεο

600 θεῖηαη δ᾽ ἐλ ιερέεζζ᾽ ἅκα δ᾽ ἠνῖ θαηλνκέλεθηλ

ὄςεαη αὐηὸο ἄγσλ λῦλ δὲ κλεζώκεζα δόξπνπ27

(Iliada XXIV 596-601)

Dizia e em seguida o divino Aquiles volta para o seu acampamento

sentou-se em seu alto trono e entatildeo fez-se ficar do

outro lado do muro diante de Priacuteamo a quem declarou o discurso

Velho como incitavas o seu filho foi libertado para ti

estaacute colocado em um atauacutede Que tu o revejas raiando a manhatilde

ao mesmo tempo conduzindo-o Mas nesse instante pensemos no banquete

Nesta cena e nas outras que a antecedem temos a realizaccedilatildeo do pedido de Priacuteamo

pelo resgate do filho morto e ultrajado Nesta passagem o aspecto comovente poderia

desencadear no traacutegico mas Homero natildeo a intensifica e sim atenuando a manifestaccedilatildeo do

sentimento traacutegico dirige a cena para uma celebraccedilatildeo simbolizada pelo banquete Segundo

informa-nos Jean Chevalier e Alain Gheerbrant (2009) o banquete eacute um siacutembolo universal

que representa a alianccedila um rito comunial de participaccedilatildeo social envolta e direcionada a um

mesmo projeto geralmente festivo Reconhecemos tambeacutem que nem sempre o banquete

ocorre numa situaccedilatildeo comemorativa apesar de geralmente ser assim e a citaccedilatildeo acima eacute bem

ilustrativa disso Ainda que sejam inimigos Priacuteamo e Aquiles celebram um pacto de respeito

e natildeo uma festividade Mas de todo o modo tal conciliaccedilatildeo representada pelo siacutembolo do

banquete ameniza o conflito este que por sua vez atenua o traacutegico

Deste modo concordamos que o autor da Odisseacuteia ―natildeo alimenta o traacutegico

(Ibidem p 31) ateacute mesmo porque ―() mal comeccedilamos a experimentar a dor somos

27

Texto disponiacutevel em httpwwwhs-

augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_il24html agraves 1018hs de 12 de julho de 2010

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convidados a mais um dos banquetes de Homero () (LUNA 2005 p 34) Contudo aleacutem

de ser natural eacute bastante coerente da parte do Homero natildeo se aprofundar no efeito traacutegico

natildeo o objetivando pois ao inveacutes de ter produzido o gecircnero eacutepico ele teria legado-nos uma

incipiente trageacutedia Isso ocorre porque como sabemos o objetivo da eacutepica relaciona-se agrave

exaltaccedilatildeo dos grandes homens e de seus magnos feitos logo natildeo seria coerente Homero

direcionar-se unicamente ao traacutegico Tal fato seria uma relevante incongruecircncia estrutural

com o gecircnero eacutepico com o qual produziu duas notificadas obras que exaltaram as accedilotildees de

Aquiles e Odisseu respectivamente a partir da Iliacuteada e da Odisseacuteia

Todavia jaacute encontramos nas eacutepicas de Homero uma forte e inegaacutevel evidecircncia

traacutegica esta que se natildeo eacute objetivo deste poeta eacutepico seraacute das trageacutedias gregas produzidas

entre os seacuteculos V e IV aC Por isso os tragedioacutegrafos que iratildeo produziacute-las seratildeo bastante

influenciados pela produccedilatildeo homeacuterica inclusive aproveitam-se de certas passagens de teor

traacutegico natildeo desenvolvidas para construiacuterem suas peccedilas Eacute o que provavelmente ocorreu com

Aacutejax de Soacutefocles e com Agamecircmnon de Eacutesquilo que tecircm como prenuacutencios o Canto XI da

Odisseacuteia canto esse permeado de tragicidade Desta forma concordamos com o seguinte

posicionamento de Jacqueline de Romilly

Como quer que seja os autores das trageacutedias foram buscar o assunto das

suas obras agrave epopeacuteia E natildeo eacute duvidoso que ao mesmo tempo tenham ido

buscar a arte de construir personagens e cenas capazes de comover

Apresentar o sentimento da vida inspirar terror e piedade obrigar a partilhar

um sofrimento ou uma ansiedade ndash a epopeacuteia fizera-o sempre e ensinou os

tragedioacutegrafos a fazecirc-lo Poderiacuteamos ainda dizer que se a festa criou o

gecircnero traacutegico foi a influecircncia da epopeacuteia que fez dele um gecircnero literaacuterio

(ROMILLY 2008 p 22)

Assim tendo jaacute nos inspirado o traacutegico Homero seraacute fundamental para os

tragedioacutegrafos pois ele consegue apresentar-nos a tragicidade em suas eacutepicas mesmo em

meio a tantos banquetes celebraccedilotildees e grandes feitos visto que ―A transfiguraccedilatildeo do traacutegico

contudo natildeo rasura completamente os momentos de intensa dramaticidade presente nas

epopeacuteias (Luna 2005 p 34) Diante dessa constataccedilatildeo do traacutegico em Homero reiteramos

que o traacutegico veio antes da trageacutedia natildeo soacute pela sua manifestaccedilatildeo social na vida humana mas

atraveacutes da proacutepria representaccedilatildeo literaacuteria como nos fica claro a partir das epopeacuteias

homeacutericas

Um elemento que nos propicia essa relaccedilatildeo do traacutegico nas eacutepicas vindo a

influenciar a produccedilatildeo das trageacutedias eacute a figura do heroacutei eacutepico pois muitos deles estatildeo fadados

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a um final traacutegico e inclusive jaacute prenunciados por Homero Sobre este fato elucida-nos

Sandra Luna

() sobre o heroacutei eacutepico tambeacutem paira o terriacutevel horizonte da uacutenica certeza

humana ou seja ao final de sua trajetoacuteria para aleacutem de todas as honras das

quais venha a desfrutar a tragicidade estaraacute sempre suspensa sobre sua

cabeccedila ndash a proacutepria construccedilatildeo eacutepica se encarregou de evidenciar que o

desfecho da vida eacute irrevogavelmente traacutegico Apesar de sua caracteriacutestica

sobre-humana sabe-se que o heroacutei haveraacute um dia de ser igualado aos seus

os mortais Com isso queremos dizer que das alturas do heroacutei eacutepico seraacute

sempre possiacutevel vislumbrar momentos de tragicidade (LUNA 2005 p 31)

Como vemos na proacutepria estrutura eacutepica de eixo celebrativo haacute um elemento

favorecedor para o surgimento do traacutegico o heroacutei Sobre este fato tambeacutem complementa

Vernant ―No novo quadro do jogo traacutegico portanto o heroacutei deixou de ser um modelo

tornou-se para si mesmo e para os outros um problema (VERNANT 2008 p 2) Esta

problemaacutetica em relaccedilatildeo agrave representatividade do heroacutei que seraacute distinta no gecircnero eacutepico do

traacutegico pode ser bem ilustrada nos encontros que Odisseu tem no Hades narrado por Homero

no Canto XI da Odisseacuteia com Anticleacuteia Aquiles Agamecircmnon e Aacutejax Tanto que no caso de

Agamecircmnon e Aacutejax temos duas trageacutedias para contar-nos o fim traacutegico desses heroacuteis A saga

de Agamecircmnon eacute contada por Eacutesquilo no primeiro livro da Oresteacuteia e Soacutefocles lega-nos a

peccedila que relata o descontrole e suiciacutedio de Aacutejax Estes dois destinos traacutegicos dos heroacuteis

gregos que antes brilharam nas eacutepicas como modelos principalmente em seus feitos narrados

na Iliacuteada jaacute satildeo prenunciados no Canto XI da Odisseacuteia como veremos detalhadamente no

proacuteximo capiacutetulo

Aleacutem dessa figura eacutepica que posteriormente figuraraacute nas trageacutedias haacute outros

elementos propiacutecios ao traacutegico jaacute presentes na epopeacuteia como nos alerta Aristoacuteteles e reforccedila-

nos Jacqueline de Romilly (2008) como por exemplo a accedilatildeo uacutenica28

os personagens nobres

e a base miacutetica do conteuacutedo desenvolvido No caso do mito destaca-nos Lesky (1995) que a

sua presenccedila evidencia-se natildeo apenas na eacutepica e na trageacutedia mas tambeacutem na liacuterica A

diferenccedila eacute que na primeira e na terceira o mito representa a simboacutelica origem e organizaccedilatildeo

do mundo diante de sua grandiosidade jaacute na trageacutedia o mito passa a ser traacutegico

Diante dos aspectos discutidos percebemos a anterioridade do traacutegico

principalmente no que concerne agraves epopeacuteias homeacutericas visto que nestas o traacutegico jaacute se efetiva

28

O proacuteprio Aristoacuteteles na Poeacutetica (1555b) diz-nos que a accedilatildeo das epopeacuteias transcorre a partir de um eixo

centralizador os demais satildeo episoacutedios Assim desenvolvidas em vinte e quatro cantos cada uma a Iliacuteada e a

Odisseacuteia possuem um argumento uacutenico a primeira a ira funesta de Aquiles a segunda o regresso de Odisseu a

Iacutetaca

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como manifestaccedilatildeo literaacuteria Assim aleacutem de tantos outros elementos literaacuterios as epopeacuteias de

Homero legaram-nos o traacutegico

Observada a presenccedila do traacutegico jaacute nas epopeacuteias de Homero discutiremos sobre a

trageacutedia sua estrutura e relaccedilatildeo com as epopeacuteias e com o traacutegico A partir deste percurso

acreditamos que entendendo melhor a trageacutedia elucidaremos melhor o traacutegico jaacute que este se

realiza atraveacutes daquela inegavelmente pois ―eacute fato que na trageacutedia os traccedilos do traacutegico se

tornaratildeo mais evidentes e seus efeitos mais perceptiacuteveis (LUNA 2005 p 34) Daiacute urge a

necessidade de voltarmos atenccedilatildeo ao entendimento da trageacutedia a fim de adquirirmos suporte

suficiente para compreender o traacutegico e assim no capiacutetulo subsequente aplicarmos esta

exposiccedilatildeo teoacuterica na anaacutelise do Canto XI da Odisseacuteia

Do mesmo modo que ocorre com o traacutegico falar sobre a trageacutedia ainda nos impotildee

certas incertezas principalmente no que se trata de sua origem mesmo que sobre ela haja um

nuacutemero bem maior de livros e artigos Ao que nos parece ―o nuacutemero dos ensaios explica-se

precisamente pela ausecircncia de certezas De fato uma grande sombra paira sobre essas

origens (ROMILLY 2008 p 13) Outro autor que compartilha e explicita essa ideacuteia das

dificuldades no estudo da trageacutedia eacute Albin Lesky em Histoacuteria da Literatura Grega (1995)

Segundo o autor natildeo podemos conhecer precisamente o trabalho dos tragedioacutegrafos por falta

de dados satisfatoacuterios ―assim a questatildeo referente agraves origens do drama traacutegico eacute desde a

eacutepoca da ciecircncia alexandrina um dos problemas mais difiacuteceis e discutidos (LESKY 1995

p 253) Finley refletindo sobre a formaccedilatildeo do gecircnero traacutegico sobretudo em comparaccedilatildeo com

outros como a eacutepica e a liacuterica afirma ―Sus oriacutegenes son oscuras (FINLEY 1970 p 101) 29

ressaltando o caraacuteter nebuloso da origem deste gecircnero literaacuterio

De todas estas discussotildees o que podemos concluir eacute que o ditirambo as festas

dionisiacuteacas os saacutetiros os festivais o estado satildeo referecircncias certas de qualquer estudo que

almeja explicar a origem da trageacutedia Adiante poderemos avaliar melhor essa assertiva

Segundo Aristoacuteteles a origem da trageacutedia estaacute relacionada ao ditirambo

Vejamos

Γελνκέλε30

δ᾽ νὖλ ἀπ᾽ ἀξρῆο αὐην[10]ζρεδηαζηηθῆο (θαὶ αὐηὴ θαὶ ἡ

θσκσηδία θαὶ ἡ κὲλ ἀπὸ ηλ ἐμαξρόλησλ ηὸλ δηζύξακβνλ ἡ δὲ ἀπὸ ηλ ηὰ

θαιιηθά ἃ ἔηη θαὶ λῦλ ἐλ πνιιαῖο ηλ πόιεσλ διαμένει νομιζόμενα )

κατὰ μικρὸν ηὐξήθη προαγόντων ὅσον ἐγίγνετο φανερὸν αὐτῆς

29

Traduccedilatildeo nossa Suas origens satildeo obscuras 30

A utillizaccedilatildeo deste particiacutepio aoristo gενομένη indica a anterioridade da accedilatildeo (MURACHO 2007) diferente

do uso do particiacutepio presente que indica a simultaneidade dos fatos Por isso a traduccedilatildeo ―tendo surgido que nos

reflete a noccedilatildeo de anterioridade jaacute que a trageacutedia tem sua existecircncia anterior ao que estaacute sendo descrito

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θαὶ πνιιὰο κεηαβνιὰο κεηαβαινῦζα ἡ [15] ηξαγσηδία ἐπαύζαην ἐπεὶ ἔζρε

ηὴλ αὑηῆο θύζηλ31 ((Poeacutetica IV 1449a 9-15)

Portanto tendo surgido de um princiacutepio de improvisaccedilatildeo natildeo soacute ela mesma

(a trageacutedia) quanto a comeacutedia aquela pelos iniciantes do ditirambo e esta

pelos iniciantes dos cantos faacutelicos que ainda permanece estimada em muitas

cidades Estas coisas fazem-me crer que pouco a pouco a trageacutedia cresceu

desenvolvendo-se o que se tornava proacuteprio dela E tendo se transformado

apoacutes muitas mudanccedilas a trageacutedia estabilizou-se quando alcanccedilou sua

natureza proacutepria

Percebe-se que a origem da trageacutedia estaria intrinsecamente relacionada ao

ditirambo diquramboj ateacute que ela comeccedila a desenvolver-se adquirindo especificidades

proacuteprias Sendo o ditirambo um canto de louvor ao deus Dioniso entendemos o porquecirc de a

trageacutedia ser relacionada a esta divindade e ao seu culto religioso Algumas vezes essa

conexatildeo traz-nos certas complicaccedilotildees para o entendimento do gecircnero traacutegico que mesmo

tendo origem ligada ao culto do deus posteriormente veio a se distanciar como jaacute nos indica

Aristoacuteteles na passagem que citamos Daiacute entendemos porque em alguns momentos natildeo nos

eacute tatildeo clara a relaccedilatildeo entre a trageacutedia claacutessica e o culto ao deus Tal fato justifica-se por essa

relaccedilatildeo remontar agraves suas origens e natildeo ao seu desenvolvimento pois a trageacutedia transformou-

se e estabeleceu-se com caracteriacutesticas proacuteprias

Ulrich Von Moellendorff-Wilamowitz em Qursquo est-ce qursquo une trageacutedie

attique(2001) sobre as definiccedilotildees aristoteacutelicas referidas acima considera que ―Aristote

nlsquoavait pas pour but de deacutefinir historiquement la trageacutedie attique il voulait parvenir agrave une

deacutefinition conceptuelle de la trageacutedie32

(WILAMOWITZ 2001 p 118) Entatildeo seguindo as

consideraccedilotildees iniciadas por Aristoacuteteles o autor desenvolve o preceito da origem da trageacutedia

relacionada ao ditirambo e reforccedila a contribuiccedilatildeo dada pelos tragedioacutegrafos Eacutesquilo e

Soacutefocles Diz-nos

La trageacutedie a pour origine les chanteurs de dithyrambe elle a tout dlsquo abord

eacuteteacute un jeu satyrique composeacute dans des rythmes vifs et dans une langue

amusante il fallut attendre Eschyle pour que soit introduit le deuxiegraveme

acteur et pour qulsquo on retire du choeur as place de protagoniste le trosiegraveme

acteur fut introduit pour la premieacutere fois par Sophocle33

(Ibidem p 19)

31

Texto retirado de httpwwwhs-augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante04Aristotelesari_poi1html

agraves 1152hs em 12 de julho de 2010 32

Traduccedilatildeo nossa Aristoacuteteles natildeo tinha por objetivo definir historicamente a trageacutedia aacutetica ele queria chegar a

uma definiccedilatildeo conceitual da trageacutedia 33

Traduccedilatildeo nossa A trageacutedia tem a origem nos cantores de ditirambo ela foi inicialmente um jogo composto

em ritmos vivos e de uma linguagem divertida foi necessaacuterio esperar Eacutesquilo para que fosse introduzido o

segundo ator e que se retirasse do coro sua posiccedilatildeo de protagonista o terceiro ator foi introduzido pela primeira

vez por Soacutefocles

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Wilamowitz contribui ainda com outras informaccedilotildees contextuais sobre a trageacutedia

informando-nos que em 534 aC ocorre a primeira representaccedilatildeo de uma trageacutedia durante o

festival das Grandes Dionisiacuteacas por Teacutespis34

de Lesbos Este se consagra como o primeiro

ganhador do precircmio quando o festival foi reorganizado por Pisiacutestrato Apoacutes estas

informaccedilotildees gerais o autor diante de seus estudos cria situaccedilatildeo adequada para expor uma

definiccedilatildeo de trageacutedia afirmando

Une trageacutedie attique est un eacutepisode tireacute de la leacutegende heacuteroiumlque

ayant son uniteacute propecirc traiteacute de faccedilon poeacutetique dans un style noble et destine

agrave ecirctre representeacute par um choeur de citoyens attique e deux voire trois

acteurs dans le sanctuaire de Dionysos comme partie integrante de la

ceacuteleacutebration publique du culte du dieu35

(WILAMOWITZ 2001 p 117)

Percebe-se que esta definiccedilatildeo eacute respaldada pela concepccedilatildeo que Aristoacuteteles nos

legou a partir da Poeacutetica vindo esta a ser reiterada por Wilamowitz (2001) Sabemos que

muitos estudos posteriores ao do filoacutesofo grego tentaram abarcar suas ideacuteias explicando-as

exemplificando-as de modo a atualizaacute-las para o entendimento da modernidade de uma

temaacutetica de discussotildees inesgotaacuteveis Esse eacute o caso dos autores que discutiremos a seguir

Para Romilly em A trageacutedia Grega (2008) o fator religioso eacute inegaacutevel no

surgimento e formaccedilatildeo da trageacutedia Ele reconhece tambeacutem a influecircncia poliacutetica da tirania

Ressalta que as representaccedilotildees das trageacutedias dependem do culto a Dioniso mesmo porque soacute

nas festas dedicadas ao filho de Secircmele eacute que havia a encenaccedilatildeo das peccedilas Informa-nos

ainda

A grande ocasiatildeo era na eacutepoca claacutesssica as festas das Dionisiacuteacas

urbanas que se celebrava na Primavera mas tambeacutem havia concursos de

trageacutedias na festa das Leneias que tinha lugar pelo final de Dezembro A

proacutepria representaccedilatildeo inseria-se assim num conjunto eminentemente

religioso era acompanhada de procissotildees e sacrifiacutecios (ROMILLY 2008 p

14)

Jacqueline de Romilly completa que no centro do teatro havia um assento de

pedra destinado ao deus como tambeacutem um altar onde ocorria a evoluccedilatildeo do coro Diante

34

Grimal (2002) registra atraveacutes de Soacutelon e Heroacutedoto a existecircncia de Aacuterion que em Siacutecion (Peloponeso) seria

reconhecido como o autor da primeira trageacutedia por volta de VII aC 35

Traduccedilatildeo nossa Uma trageacutedia aacutetica eacute um episoacutedio tirado de uma lenda heroacuteica tendo unidade proacutepria tratada

de modo poeacutetico em um estilo nobre e destinado a ser representado por um coro de cidadatildeos aacuteticos com dois e

ateacute mesmo trecircs atores no santuaacuterio de Dioniso como parte integrante da celebraccedilatildeo puacuteblica do culto ao deus

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dessa constataccedilatildeo e embasada pela teorizaccedilatildeo de Aristoacuteteles (Poeacutetica 1449 a) ela afirma que

a trageacutedia tendo vindo do ditirambo seria uma amplificaccedilatildeo do rito religioso assim como a

comeacutedia

Pierre Grimal em O Teatro Antigo (2002) afirma natildeo poder dar uma explicaccedilatildeo

clara sobre o termo ―trageacutedia Isto porque haacute certa dificuldade em encaixar os dois elementos

distintos que compotildeem a formaccedilatildeo do vocaacutebulo tragwlaquodimacra ou seja tragomacrj bode e wlaquocopydimacra

(de Acircdhmacr) canto Para Grimal natildeo haacute uma relaccedilatildeo direta entre os termos tragomacrj e wlaquocopydimacra por

isso levanta diversos questionamentos o coro vestia-se com a pele do bode ou o bode seria o

precircmio para o poeta vencedor ou o bode era a viacutetima sacrifical do que era cantado Enfim

sem poder chegar a uma definiccedilatildeo mais objetiva ele conclui que essa palavra natildeo pode ser

primitiva e sim contemporacircnea ao surgimento da trageacutedia relacionada ao ritual de Dioniso

O autor ainda nos alerta citando Romilly que natildeo podemos esquecer que os

rituais religiosos passam das improvisaccedilotildees para formas literaacuterias ateacute mesmo por causa da

reorganizaccedilatildeo poliacutetica e social e daiacute surge o advento dos concursos Diante disso Grimal

aponta duas causas para o surgimento da trageacutedia a literaacuteria que teria sido iniciada por

Teacutespis e a poliacutetica relacionada ao desejo da tirania de forjar ao povo atraveacutes das festas a

centralizaccedilatildeo do poder

Como jaacute foi dito Pierre Grimal refere-se a uma importante influecircncia das

transformaccedilotildees soacutecio-poliacuteticas para as modificaccedilotildees da trageacutedia Tais influecircncias justificariam

o porquecirc de antigas manifestaccedilotildees ritualiacutesticas ligadas a Dioniso como os ditirambos e os

cantos faacutelicos viessem a originar gecircneros literaacuterios como a trageacutedia e a comeacutedia Para melhor

entendermos a importacircncia desses elementos sociais e poliacuteticos na formaccedilatildeo de um gecircnero

literaacuterio como a trageacutedia vejamos o que nos diz Arnould Hauser

A trageacutedia eacute a criaccedilatildeo artiacutestica mais caracteriacutestica da democracia

ateniense em nenhuma outra forma de arte satildeo apreciados tatildeo direta e

claramente quanto nela os conflitos internos da estrutura social de Atenas

Os aspectos externos de sua apresentaccedilatildeo agraves massas eram democraacuteticos mas

o conteuacutedo as sagas heroacuteicas com sua perspectiva traacutegico-heroacuteica da vida

eram aristocraacuteticos (HAUSER 1995 p 84)

Esta relaccedilatildeo social em que a arte traacutegica estaacute firmada natildeo pode ser dissociada

facilmente ateacute porque ―Fue Atenas la democraacutetica ciudad-estado por excelecircncia la que

produjo y patrocinoacute estrictamente hablando ndash la trageacutedia ()36

(FINLEY 1970 p 101)

36

Traduccedilatildeo nossa Foi Atenas a democraacutetica cidade-estado por excelecircncia que produziu e patrocinou -

estritamente falando ndash a trageacutedia ()

57

Ainda sobre esse momento histoacuterico da trageacutedia suas condiccedilotildees sociais e ateacute mesmo

psicoloacutegicas Jean-Pierre Vernant em Mito e Trageacutedia na Greacutecia Antiga (2008) informa-nos

que muitas discussotildees nos uacuteltimos cinquenta anos ocorreram sobre trageacutedia e mais

precisamente sobre suas origens E diante de todas as interrogaccedilotildees dos helenistas e

proposiccedilotildees de respostas natildeo foram suficientes para resolver o problema da trageacutedia A este

problema exposto por Vernant incluiacutemos o que consideramos como intriacutenseco agrave trageacutedia a

manifestaccedilatildeo traacutegica Isto porque esta foi iniciada na literatura a partir das eacutepicas homeacutericas e

estabilizada a partir das trageacutedias gregas Diante deste quadro complexo que gerou tanto a

comeacutedia quanto a trageacutedia Vernant concebe esta da seguinte maneira

A trageacutedia natildeo eacute apenas uma forma de arte eacute uma instituiccedilatildeo

social que pela fundaccedilatildeo dos concursos traacutegicos a cidade coloca ao lado dos

seus oacutergatildeos puacuteblicos e judiciaacuterios () um espetaacuteculo aberto a todos os

cidadatildeos dirigido desempenhado julgado por representantes qualificados

das diversas tribos a cidade se faz teatro ela se toma de certo modo como

objeto de representaccedilatildeo e desempenha a si proacutepria diante do puacuteblico

(Ibidem p 10)

Irredutivelmente traacutegica em sua essecircncia a trageacutedia reflete a realidade em que ela

se originou e se estabeleceu por isso diz-nos Vernant que ―a proacutepria consciecircncia traacutegica

nasce e desenvolve-se com a trageacutedia (2008 p 9) Mas para aleacutem da representaccedilatildeo a

trageacutedia questiona a sociedade em que se instaurou E o seu constituinte traacutegico eacute elemento

importante nesse fato visto que potildee em cena o conflito da condiccedilatildeo humana diante de sua

fragilidade e limitaccedilatildeo

E esse elemento traacutegico estaacute relacionado ao deus que assiste do centro do teatro agrave

representaccedilatildeo da tragicidade humana Referimo-nos a Dioniso o deus que representa

contraditoriamente (ou natildeo) tanto a trageacutedia quanto a comeacutedia gecircneros que chegam a ser

completamente opostos a depender da perspectiva em que sejam analisados Um deus tatildeo

associado agrave celebraccedilatildeo ao vinho ao canto faacutelico ao ecircxtase causa-nos certa estranheza em

estar na representaccedilatildeo do gecircnero traacutegico

Mas essa ligaccedilatildeo entre o deus e o traacutegico pode ser bem entendida pelo fato de

que assim como a trageacutedia questiona a proacutepria realidade que representa tambeacutem ―Dioniso

questiona essa ordem Ele a faz despedaccedilar-se ao revelar por sua presenccedila outro aspecto do

sagrado jaacute natildeo regular estaacutevel e definido mas estranho inapreensiacutevel e desconcertante

(VERNANT 2006 p 77) Como vemos assim como o traacutegico o deus que o representa

possui os mesmos atributos daiacute a adequaccedilatildeo entre ambos E toda essa complexidade

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representativa ocorre porque Dioniso ―nos ensina ou nos obriga a tornar-nos o contraacuterio

daquilo que somos comumente (VERNANT 2006 p 80) Toda essa transmutaccedilatildeo pela qual

passa o personagem traacutegico que segundo Vernant eacute obrigada ou ensinada por Dioniso

reitera a proacutepria situaccedilatildeo traacutegica prescrita por Aristoacuteteles que se baseia numa passagem da

fortuna ao infortuacutenio ou vice-versa (Poeacutetica 1451a) Apesar de que a passagem da fortuna ao

infortuacutenio segundo Aristoacuteteles (1453a) eacute considerada mais traacutegica tal aspecto pode ser

observado no corpus do nosso trabalho jaacute que no Canto XI Agamecircmnon Aacutejax Aquiles e

Anticleacuteia mostram-se infelizes lamuriantes com o destino que tiveram e esse fim desditoso eacute

o mais traacutegico

Permeada pela tragicidade em sua essecircncia a trageacutedia possui uma estrutura formal

geralmente bem delimitada Para Aristoacuteteles um fato decisivo na qualificaccedilatildeo da estrutura de

uma trageacutedia eacute a sua caracterizaccedilatildeo como complexa Na Poeacutetica (1452a) o filoacutesofo diz-nos

que haacute trageacutedias de estrutura simples e complexa Nesta a mudanccedila da fortuna ocorre com

reconhecimento37

do grego a)nagnwiquestrisij eou peripeacutecia38

do grego peripemacrteia

diferentemente da simples em que a mudanccedila da fortuna ocorre sem nenhum desses

elementos Segundo o filoacutesofo as faacutebulas mais belas satildeo as complexas desde que toda a accedilatildeo

esteja conexa com a necessidade e a verossimilhanccedila

Aleacutem desse aspecto baacutesico da estrutura da trageacutedia Aristoacuteteles indica-nos os seus

elementos constitutivos presentes em todas as peccedilas a saber proacutelogo episoacutedio ecircxodo canto

coral com este se distinguindo entre paacuterodo e estaacutesimo39

O primeiro constitui a parte da

trageacutedia que precede a entrada do coro o episoacutedio eacute uma parte da peccedila que fica situada entre

dois cantos completos do coro apoacutes o ecircxodo natildeo haacute canto do coro o canto do coro possui

dois momentos distintos um eacute o paacuterodo que eacute o primeiro pronunciar do coro e o outro eacute o

estaacutesimo que eacute o canto realizado no final de um episoacutedio em anapestos e troqueus

Completando essa determinaccedilatildeo aristoteacutelica sobre a estrutura da trageacutedia citamos

a divisatildeo estrutural da trageacutedia de Jacqueline de Romilly (2008) A autora apesar de basear-se

e em muitos momentos apenas transcrever a definiccedilatildeo de Aristoacuteteles determina dois

37

Do grego a)nagnwiquestrisij proveniente do verbo a)nagnwricentzw formado pelo prefixo a)na de novo

mais o radical gnwrizw que indica fazer conhecer saber Deste modo a)nagnwiquestrisij significa fazer

conhecer novamente ou seja reconhecer de novo fazer saber revelar 38

Do grego peripemacrteia esta palavra eacute composta pela preposiccedilatildeo periindicando o entorno a sobre de

mais o radical pemacrt do verbo piiquestptw que significa queda atirar-se em indicando a mudanccedila a

imprevisibilidade o inesperado Assim peripemacrteia indica o que estaacute envolta do imprevisto acerca do

inesperado aquilo estaacute estaacute relacionado a queda 39

Haacute tambeacutem o canto dos atores e o koacutesmos que era o canto de lamento do coro estes dois natildeo satildeo comuns em

todas as trageacutedias por isso natildeo nos iremos ater neste momento em suas ponderaccedilotildees

59

elementos centrais na estrutura da trageacutedia que a distingue dos demais gecircneros satildeo eles o

coro e os personagens O primeiro desde a origem da trageacutedia relacionada ao ditirambo

figura como importante elemento da peccedila O segundo passa por transformaccedilotildees no nuacutemero de

atores que o representam ao longo do desenvolvimento da trageacutedia Assim com Teacutespis havia

apenas um ator com Eacutesquilo esse nuacutemero foi elevado para dois e com Soacutefocles para trecircs

Assim como faz Aristoacuteteles Romilly (2008 p 43-51) afirma ainda ser a accedilatildeo um elemento

primordial na estrutura da trageacutedia poreacutem natildeo eacute especiacutefico jaacute que na epopeacuteia tanto quanto

na trageacutedia a accedilatildeo deve ser una Ou seja a epopeacuteia pode tambeacutem ter sua accedilatildeo envolta de

peripeacutecias e reconhecimentos e no fim essa accedilatildeo pode levar o personagem agrave cataacutestrofe

Diante desses aspectos estruturais da trageacutedia que ora a distingue ora a identifica

com outros gecircneros entendemos porque Jaeger considera que ―a trageacutedia tanto pelo seu

material miacutetico como pelo seu espiacuterito eacute a herdeira integral da epopeacuteia (JAEGER 2003 p

70) Tal constataccedilatildeo reforccedila nossa tese sobre a tragicidade presente na epopeacuteia Por essa

relaccedilatildeo entre os gecircneros gregos sejam eles arcaicos ou claacutessicos Jaeger afirma

A trageacutedia devolve agrave poesia grega a capacidade de abarcar a

unidade de todo humano Nesse sentido soacute a epopeacuteia homeacuterica se pode

comparar a ela Apesar da grande fecundidade da literatura nos seacuteculos

intermediaacuterios soacute a epopeacuteia a iguala quanto agrave riqueza do conteuacutedo agrave forccedila

estruturadora e amplitude do seu espiacuterito criador Eacute como se o renascimento

do gecircnio poeacutetico da Greacutecia se tivesse mudado da Jocircnia para Atenas A

epopeacuteia e a trageacutedia satildeo como duas grandes formaccedilotildees montanhosas ligadas

por uma seacuterie ininterrupta de serras menores (Ibidem p 287)

A partir da reflexatildeo acima e das consideraccedilotildees realizadas ao longo deste toacutepico

acerca do traacutegico e da trageacutedia percebemos que satildeo elementos num certo ponto

indissociaacuteveis mas que podem ser visto agrave luz de uma anaacutelise que os distingue e que nos faz

perceber a anterioridade do traacutegico em relaccedilatildeo agrave trageacutedia Tal constataccedilatildeo pode ser verificada

tanto na sociedade grega levando em consideraccedilatildeo o traacutegico como elemento soacutecio-cultural

verificado nos estudos antropoloacutegicos como na literatura grega arcaica Assim se quisermos

ver o surgir do traacutegico na literatura ocidental devemos recorrer agraves epopeacuteias homeacutericas pois laacute

encontramos os germes da manifestaccedilatildeo traacutegica estabilizada no periacuteodo claacutessico da literatura

grega atraveacutes das trageacutedias

No decorrer deste capiacutetulo aleacutem de discorrermos sobre o traacutegico sua

manifestaccedilatildeo e origem permeamos nosso estudo tambeacutem com ponderaccedilotildees sobre a trageacutedia

sua formaccedilatildeo e estrutura porque consideramos que essas relaccedilotildees satildeo fundamentais para o

objetivo geral de nosso trabalho que eacute analisar a presenccedila do traacutegico num texto eacutepico a partir

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do Canto XI da Odisseacuteia Essa realizaccedilatildeo do traacutegico na eacutepica mesmo natildeo sendo seu objetivo

eacute para a literatura ocidental a primeira apariccedilatildeo traacutegica que fundamentaraacute as trageacutedias gregas

no seacuteculo IV aC

23 O traacutegico na Poeacutetica

Antes de iniciarmos nossas discussotildees sobre a perspectiva do traacutegico presente na

Poeacutetica iremos expor brevemente as consideraccedilotildees realizadas por Platatildeo na Repuacuteblica

sobre a arte literaacuteria e mais especificamente sobre a arte traacutegica Esta introduccedilatildeo faz-se

importante para que percebamos e possamos avaliar ateacute que ponto Aristoacuteteles foi

influenciado por seu mestre ou ao contraacuterio construiu teorizaccedilatildeo oposta mais centrada na

estrutura e verossimilhanccedila textual do que no valor moral e educativo que a arte poderia

veicular aos jovens do estado

Faz-se necessaacuterio retomar a teorizaccedilatildeo platocircnica visto que esta eacute de algum modo

relevante na produccedilatildeo de Aristoacuteteles pois no miacutenimo fez parte de sua formaccedilatildeo intelectual

Aleacutem do mais foi Platatildeo o primeiro a iniciar uma discussatildeo sobre a arte literaacuteria e noacutes diante

desse pioneirismo devemos entender o que foi preconizado

Para tanto selecionamos os Livros III e X da Repuacuteblica a fim de avaliarmos os

posicionamentos de Platatildeo e as diferenccedilas que seu disciacutepulo Aristoacuteteles teraacute diante da

perspectiva da anaacutelise do texto literaacuterio Esses dois livros foram selecionados por

considerarmos que neles encontramos reflexotildees importantes de Platatildeo a respeito da arte

literaacuteria

Platatildeo como dissemos iniciou as discussotildees sobre a literatura contudo avaliou-a

a partir do ponto de vista da utilidade se ela poderia servir ao estado ou ao contraacuterio se

prejudicaria na formaccedilatildeo dos jovens A seguir podemos avaliar melhor essa assertiva atraveacutes

da anaacutelise do proacuteprio texto platocircnico

No Livro III praticamente todas as exposiccedilotildees de Platatildeo convergem para um

mesmo foco no estado ideal deve-se estar vigilante a fim de eliminar a arte literaacuteria que natildeo

contribui positivamente na formaccedilatildeo dos jovens isto eacute aquela que os incita agrave impiedade Mas

o que a arte poderia veicular que natildeo favorecesse a formaccedilatildeo do jovens Platatildeo deixa bem

claro quais seriam as faacutebulas inadequadas pois quase como em um manual ele descreve o

que natildeo deve fazer parte da narraccedilatildeo pura e moderada Entre tantas inadequaccedilotildees literaacuterias a

61

que ele se refere podemos citar falsificaccedilatildeo das situaccedilotildees ocorridas no inferno descriccedilatildeo de

heroacuteis em lamentaccedilatildeo pela morte ou pela perda material chorosos homens nobres em

situaccedilatildeo de arrependimento e fraqueza dados ao riso excessivo entre tantas outras indicaccedilotildees

feitas pelo filoacutesofo Diante dessas prerrogativas Platatildeo chega inclusive ao ponto de

considerar que a beleza poeacutetica natildeo caminha ao lado do valor moral tanto que diz

[387β] ηαῦηα θαὶ ηὰ ηνηαῦηα πάληα παξαηηεζόκεζα Ὅκεξόλ ηε θαὶ ηνὺο

ἄιινπο πνηεηὰο κὴ ραιεπαίλεηλ ἂλ δηαγξάθσκελ νὐρ ὡο νὐ πνηεηηθὰ θαὶ ἡδέα ηνῖο πνιινῖο ἀθνύεηλ ἀιι᾽ ὅζῳ πνηεηηθώηεξα ηνζνύηῳ ἧηηνλ

ἀθνπζηένλ παηζὶ θαὶ ἀλδξάζηλ νὓο δεῖ ἐιεπζέξνπο εἶλαη δνπιείαλ ζαλάηνπ

κᾶιινλ πεθνβεκέλνπο40

(Repuacuteblica III 387b)

Pediremos a Homero e aos outros poetas para excluir estas espeacutecies (de

narrativas) assim como natildeo as invalidariacuteamos por falta de poeacutetica e agrado

aos muitos que as ouvir Pelo contraacuterio quanto mais poeacuteticas tanto menos

audiacutevel seratildeo para crianccedilas e homens os quais devem ser livres tendo

receado mais a escravidatildeo do que a morte

Platatildeo natildeo apenas se refere agraves circunstacircncias que devem ser evitadas como cita as

passagens literaacuterias muitas delas de Homero as quais ele natildeo considera beneacuteficas para

compor a estruturaccedilatildeo do estado ideal Uma dessas referecircncias remete-nos ao Canto XI da

Odisseacuteia constataccedilatildeo esta que fazemos mesmo sem o filoacutesofo referir-se diretamente ao seu

objeto de criacutetica Vejamos

[386c] ἐμαιείςνκελ ἄξα ἦλ δ᾽ ἐγώ ἀπὸ ηνῦδε ηνῦ ἔπνπο ἀξμάκελνη πάληα

ηὰ ηνηαῦηαmdash―βνπινίκελ θ᾽ ἐπάξνπξνο ἐὼλ ζεηεπέκελ ἄιιῳ

ἀλδξὶ παξ᾽ ἀθιήξῳ ᾧ κὴ βίνηνο πνιὺο εἴε

ἢ πᾶζηλ λεθύεζζη θαηαθζηκέλνηζηλ ἀλάζζεηλ41

(Repuacuteblica III 386c)

Dizia eu neste discurso portanto anulemos de iniacutecio todas as coisas desta

natureza que assim tenham iniciado ndash ―pois eu preferiria viver sendo um

trabalhador do campo para um outro homem ateacute mesmo sem nobreza e

que eventualmente sua vida natildeo fosse de posses do que reinar sobre

cadaacuteveres que tiveram sido destruiacutedos

Como nos fica evidente temos na citaccedilatildeo acima uma criacutetica agrave produccedilatildeo literaacuteria

homeacuterica especificamente ao Canto XI da Odisseacuteia em que Odisseu encontra-se no Hades

com alguns companheiros da Guerra de Troacuteia Nesse encontro os guerreiros de alta estirpe

40

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101673Abook3D33Asection

3D387b agraves 1523hs de 12 de julho de 2010 41

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101673Abook3D33Asection

3D386c agraves 1530hs de 12 de julho de 2010

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como Agamecircmnon Aquiles e Aacutejax mostram-se numa situaccedilatildeo natildeo gloriosa A morte para

eles representa um infortuacutenio

Na conversa que Odisseu tem com Agamecircmnon percebe-se que o Atrida vecirc-se

desolado pela traiccedilatildeo da esposa que o levou a uma morte traacutegica inclusive chama atenccedilatildeo

para que Odisseu tenha cuidado no retorno ao lar precavendo-se de uma armadilha que assim

como Cliteminestra Peneacutelope poderia ter preparado para o Laertida Agamecircmnon conta em

detalhes a sua morte de seus companheiros e de Cassandra todos pegos pela artimanha

realizada por sua esposa Cliteminestra junto com seu amante Egisto E depois da narraccedilatildeo o

Atrida no verso 412 conclui ―wAgravej qanon oi)ktistwi qanatwi rdquo42 isto eacute ―Assim morri

com a morte mais lamentaacutevel (Odisseacuteia Canto XI v 412)

O diaacutelogo entre Odisseu e Aquiles natildeo seraacute diferente tanto que Platatildeo chega a falar

(III ndash 386c-d) que narraccedilotildees desse tipo devem ser anuladas O teor desse diaacutelogo sugere para

Platatildeo certa inutilidade para composiccedilatildeo do estado ideal por significar uma ameccedila ao estado

beacutelico E como sabemos nessa passagem Aquiles revela-se insatisfeito em ser rei dos

mortos preferindo ser um ―bouloimhn krsquo e)parouroj e)wUumln qhteuemenrdquo43 (Odisseacuteia

Canto XI v 489) ou seja ―pois eu preferiria viver sendo trabalhador do campo desde que

ainda estivesse vivo Uma narraccedilatildeo como essa segundo Platatildeo abalaria a propensatildeo guerreira

dos heroacuteis que natildeo devem temer a morte pois se um heroacutei como Aquiles mostra-se

arrependido os jovens ver-se-atildeo influenciados negativamente Por isso Platatildeo

definitivamente indica que tais faacutebulas devem ser eliminadas do estado jaacute que natildeo satildeo

beneacuteficas na formaccedilatildeo dos homens dos jovens enfim da sociedade em geral

Aacutejax conhecido como o maior guerreiro grego depois de Aquiles tambeacutem natildeo se

encontra em estado de graccedila e glorificado no Hades Pelo contraacuterio aparece ainda ressentido e

negando-se a falar com Odisseu magoado pela destinaccedilatildeo das armas de Aquiles Estas ao

inveacutes de ficarem com ele satildeo destinadas a Odisseu justificando-se entatildeo a sua atitude de

desdeacutem Esta passagem tambeacutem natildeo eacute adequada aos jovens pois natildeo os enobrece e sim

mostra a desobrigaccedilatildeo para com a filiiquesta ou seja com aqueles que compotildeem o grupo de

amizade

42

Texto disponiacutevel em httpwwwhs-

augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_od11html agraves 1533hs ded 12 de julho de

2010 43

Texto disponiacutevel em httpwwwhs-

augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_od11html agraves 1540hs de 12 de julho de

2010

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Seja atraveacutes de Agamecircmnon Aquiles eou Aacutejax o que queremos mostrar com a

explanaccedilatildeo acima eacute o posicionamento e os criteacuteios utilizados por Platatildeo diante da avaliaccedilatildeo

do texto literaacuterio que como se vecirc eacute baseada em criteacuteios morais de utilidade Platatildeo avalia a

arte atraveacutes de sua utilidade ou inutilidade buscando um fundamento de serventia para a

sociedade e para os homens que a compotildee Assim perguntado sobre quais gecircneros poderiam

permanecer no estado apoacutes ter apontado tantas ―faacutebulas inuacuteteis a exemplo das de Homero

responde

[397δ] ηί νὖλ πνηήζνκελ ἦλ δ᾽ ἐγώ πόηεξνλ εἰο ηὴλ πόιηλ πάληαο ηνύηνπο

παξαδεμόκεζα ἢ ηῶλ ἀθξάησλ ηὸλ ἕηεξνλ ἢ ηὸλ θεθξακέλνλ44

(Repuacuteblica

III 397d)

Entatildeo como realizaremos Dizia eu Seraacute por acaso que aceitaremos para

cidade todos (gecircneros) desta espeacutecie ou outro puro ou o que mistura

O Canto XI nosso objeto central de anaacutelise no proacuteximo capiacutetulo eacute avaliado por

Platatildeo a partir de um criteacuterio utilitaacuterio daiacute a sua opccedilatildeo em eliminar tal arte do estado Jaacute

Aristoacuteteles diferentemente natildeo analisa o texto literaacuterio pelo pressuposto da utilidade mas da

estrutura e verossimilhanccedila interna do texto independentemente da accedilatildeo narrada vir a ser

positiva ou negativa para a formaccedilatildeo do cidadatildeo Por haver essas distinccedilotildees teoacutericas

consideramos explanar mesmo que resumidamente acerca dos paracircmetros de avaliaccedilatildeo que

Platatildeo faz da arte literaacuteria ainda que a nossa pesquisa fundamente-se nos escritos

aristoteacutelicos

Ainda no Livro III (393d) Platatildeo diz preferir a exposiccedilatildeo a narraccedilatildeo pois

considera que no momento em que o poeta se oculta dando voz aos personagens transfigura-

se em outros seres Essa transfiguraccedilatildeo ocorre bem nitidamente nas trageacutedias e comeacutedias

mas no preceito platocircnico ao realizar tal imitaccedilatildeo o poeta afasta-se trecircs vezes da realidade

No Livro X esta distacircncia da arte imitativa em relaccedilatildeo agrave realidade seraacute ainda mais

desenvolvida por Platatildeo chegando afirmar que a arte poeacutetica estaacute muito afastada da realidade

por isso ele afirma que todos os poetas desde Homero ―thordfj deUuml a)lhqeiaj ousup1x

aAgraveptesqairdquo45 (Ibidem 601a) ou seja ―da verdade natildeo consegue se unir Mais proacutexima da

irracionalidade e distante da realidade a arte segundo Platatildeo pode causar danos aos homens

44

Textop retirado de

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101673Abook3D33Dsection

3D3976d agraves 1530hs de 15 de julho de 2010 45

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A199901016710Abook3D33Asection

10A601ac agraves 1530hs de 15 de julho de 2010

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E uma cidade sob sua influecircncia acaba sendo governada pela dor pela emoccedilatildeo e natildeo pelo

nomoj46

Uma outra exposiccedilatildeo de Platatildeo no Livro X tambeacutem nos interessa Eacute que o autor

da Repuacuteblica apesar das criacuteticas feitas a Homero admite haver uma certa dificuldade eou

estranheza em ter que falar o que pensa a respeito da arte homeacuterica tendo em vista que haacute de

sua parte uma dedicaccedilatildeo e respeito fruto de sua infacircncia Segue abaixo esse discurso aleacutem de

outro que mostra a importacircncia de Homero para a sociedade grega natildeo soacute a arcaica como

tambeacutem a claacutessica Por isso Platatildeo realiza as seguintes afirmaccedilotildees sobre o autor da Odisseacuteia

θαίηνη θηιία γέ ηίο κε θαὶ αἰδὼο ἐθ παηδὸο ἔρνπζα πεξὶ Ὁκήξνπ ἀπνθσιύεη

ιέγεηλ47

(Repuacuteblica X 595b)

E de fato haacute alguma amizade e respeito que possuo desde a infacircncia a

respeito de Homero que impede-me de falar

() γὰξ ηῶλ θαιῶλ ἁπάλησλ ηνύησλ ηῶλ ηξαγηθῶλ πξῶηνο δηδάζθαιόο ηε

θαὶ ἡγεκὼλ γελέζζαη48

(Ibidem 595c)

Na verdade vem a ser ele o primeiro mestre e guia de todos esses belos

autores traacutegicos

Essa afirmaccedilatildeo de Platatildeo mais uma vez confirma-nos a influecircncia que Homero

realizou sobre os autores traacutegicos Influecircncia essa que pode ser observada natildeo apenas na base

mitoloacutegica como tambeacutem nas cenas homeacutericas aproveitadas e desenvolvidas pelos autores

traacutegicos Ainda mais essa influecircncia pode ser observada nisso acreditamos na proacutepria

elaboraccedilatildeo do traacutegico Este seraacute afixado na literatura grega por meio dos tragedioacutegrafos mas

como podemos notar jaacute se manifesta nas eacutepicas homeacutericas em especial Essa influecircncia

exercida por Homero nos autores traacutegicos como Eacutesquilo Soacutefocles e Euriacutepedes justifica sua

intitulaccedilatildeo como o primeiro mestre dos traacutegicos ldquoprwordftoj didaskaloj twordfn tragikwordfnrdquo

como bem nos caracterizou Platatildeo

46

Em grego nocentmoj de necentmw verbo que significa distribuir partilhar dividir Tem como sentido

primordial o que eacute estabelecido pelo uso o costume justamente por ser uma accedilatildeo de partilha entre os integrantes

da comunidade daiacute o radical derivar de necentmw Como segundo sentido indicado por Romizi (2006) ) nocentmoj indica o que ocorre segundo o termo da lei da norma distribuiacuteda pelo estado 47

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A199901016710Abook3D33Asection

10cD595b agraves 1530hs de 15 de julho de 2010 48

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httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A199901016710Abook3D33Asection

10cD595c agraves 1530hs de 15 de julho de 2010

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Diante da exposiccedilatildeo acima jaacute podemos inferir que Aristoacuteteles ao contraacuterio do seu

mestre analisa a arte literaacuteria em sua estrutura e construccedilatildeo poeacutetica como criaccedilatildeo bem no

sentido etimoloacutegico do termo poihsije natildeo como fez Platatildeo pela perspectiva da

funcionalidade social da arte dos valores e da moral propagada Vejamos pois em siacutentese as

concepccedilotildees aristoteacutelicas da arte literaacuteria presentes na Poeacutetica

Na PeriUuml PoihtikhUumlj49 de Aristoacuteteles que conhecemos geralmente como

Poeacutetica ou Arte Poeacutetica temos comentaacuterios acerca da poeacutetica como indica sua proacutepria

etimologia ou seja da criaccedilatildeocomposiccedilatildeo artiacutestica A poeacutetica central para qual se dirigem os

comentaacuterios do autor eacute a trageacutedia Esta ele considera como mais elevada do que os demais

gecircneros ao ponto de no capiacutetulo XXVI apoacutes suscitar um grau de comparaccedilatildeo entre a

trageacutedia e a epopeacuteia (1461b) demonstrando os atributos de uma e de outra Aristoacuteteles afirma

Eicopy ouAcircn toumacrtoij te diafemacrrei pacurrensi kaiUuml eaumlti twcurrenlaquo thcurrenj temacrxnhj eaumlrgw ()

fanerocentn oagraveti kreittwn aatilden eiOacuteh maIacutellon toucurren Iacutetelouj tugxaiquestnousa

thIacutej epopoiiaj50 (Poeacutetica 26 1462b 11-14)

Entatildeo se ela se distingue por todas essas coisas e ainda pelo trabalho

artiacutestico () eacute claro que a trageacutedia eacute superior agrave epopeacuteia obtendo melhor sua

finalidade

Antes de iniciarmos as nossas consideraccedilotildees sobre o traacutegico a partir da Poeacutetica

ressaltamos que natildeo haacute objetivamente um esclarecimento de Aristoacuteteles do que seria o

traacutegico ao contraacuterio do que ocorre com a trageacutedia cuja estrutura ele conceitua e define

Portanto o que faremos eacute por meio de uma leitura arguta tentar depreender quais elementos

constituem uma accedilatildeo traacutegica e para tanto nos serviremos das exposiccedilotildees que Aristoacuteteles faz

da trageacutedia Ateacute porque como dissemos anteriormente eacute nesta poeacutetica que encontramos de

fato a efetuaccedilatildeo do traacutegico apesar de este jaacute se manifestar nas eacutepicas homeacutericas

Logo ao iniacutecio de sua exposiccedilatildeo no capiacutetulo I Aristoacuteteles afirma-nos que a

epopeacuteia a trageacutedia enfim a criaccedilatildeo poeacutetica de modo geral eacute uma mimhsij51 (1447a) ou

49

Em grego PeriUuml eacute uma preposiccedilatildeo que significa o que estaacute em torno de algo envolta de acerca de eou sobre

algo PoihtikhUumlj eacute formada pelo radical Poihoriundo do verbo temaacutetico poieiquestw que indica o fazer o

compor o criar jaacute o sufixo tikhj conforme nos informa Romizi (2007) indica a atitude a relaccedilatildeo com alguma

coisa o que pertence a algo daiacute PoihtikhUumlj vir a significar o que eacute relativo a criaccedilatildeo a poeacutetica Logo

poderiacuteamos sugerir como traduccedilatildeo para PeriUuml PoihtikhUumljliteralmente ―sobre o que pertencerelativo a

poeacutetica 50

ARISTOacuteTELES 1979 p 75 51

Etimologicamente a palavra mimhsij eacute formada pelo radical mimhiquest do verbo meacutedio mimemacromai que

significa imitar representar reproduzir por meio da imitaccedilatildeo Este verbo por ser meacutedio jaacute nos daacute outra

informaccedilatildeo eacute a de que esta accedilatildeo para que se realize necessita da participaccedilatildeo do envolvimento subjetivo de

66

seja eacute o produto de uma representaccedilatildeo Portanto a concepccedilatildeo aristoteacutelica da arte literaacuteria jaacute eacute

bem demonstrada neste iniacutecio em que estabelecendo a poeacutetica como mimhsij afasta dela

os criteacuterios de avaliaccedilatildeo eacutetica e moral visto que ela natildeo eacute a realidade e sim uma

representaccedilatildeo criativa baseada na necessidade do contexto e na verossimilhanccedila

A anaacutelise literaacuteria seguindo os ditames aristoteacutelicos deve centrar-se na estrutura do

texto e na sua coerecircncia interna e natildeo nos preceitos morais que ela veicula aos jovens como

doutrina Platatildeo baseado na funcionalidade social da poesia Aleacutem da anaacutelise natildeo dever

pautar-se nos valores transmitidos tambeacutem natildeo deve ser feita atraveacutes do aspecto meramente

formal por exemplo preso agrave meacutetrica Essa consideraccedilatildeo de Aristoacuteteles pode ser esclarecida

quando ele distingue a composiccedilatildeo de Empeacutedocles com a de Homero (1447b) tanto que

mesmo ambos utilizando-se da meacutetrica Homero seraacute identificado como poihthmacrj52 e aquele

como o fusioloiquestgoj53

No capiacutetulo II da Poeacutetica o autor explicita-nos que o objeto da imitaccedilatildeo tanto da

trageacutedia quanto da epopeacuteia satildeo os homens superiores (1448a) o que bem nos demonstra a

poeacutetica de Soacutefocles e Homero Tais personagens diferem dos da comeacutedia pois esta imita os

homens natildeo elevados O pressuposto levantado jaacute nos daacute um indiacutecio a respeito do sujeito

traacutegico que eacute pertencer necessariamente a essa dita classe dos superiores honrados e

gloriosos porque estes satildeo os objetos de imitaccedilatildeo da trageacutedia gecircnero em que o traacutegico

realiza-se

Este conhecimento tambeacutem nos ilumina sobre outro aspecto do traacutegico que eacute a

sua relaccedilatildeo com a epopeacuteia pois como observamos eles tecircm em comum o mesmo perfil

Assim as personagens da eacutepica e da arte traacutegica tatildeo diferentes em alguns pontos identificam-

se essencialmente por serem pertencentes a uma mesma classe de homens e mulheres

nobres a citar Agamecircmnon Aacutejax Eacutedipo Antiacutegona Medeacuteia Ifigecircnia enfim Os nomes

citados satildeo de personagens que compotildee a trageacutedia e a epopeacuteia e ainda mais nos casos de

Agamecircmnon e Aacutejax temos personagens de trajetoacuteria eacutepica como tambeacutem traacutegica eles

quem age jaacute que a voz meacutedia inclui o sujeito na accedilatildeo verbal Portanto o imitar parte de um interesse do sujeito

natildeo eacute uma accedilatildeo pragmaacutetica A palavra em estudo possui tambeacutem o sufixo sij Este indica a accedilatildeo e o efeito da

accedilatildeo logo mimhsij traduz-se como a accedilatildeoefeito do imitar do representar 52

Este vocaacutebulo refere-se ao criador da composiccedilatildeo literaacuteria jaacute que poihthmacrj eacute formado pelo radical poihdo

verbo poieiquestw criar mais o sufixo thmacrjindicador da pessoa que realiza a accedilatildeo Assim poihthmacrj representa a

pessoa que cria que compotildee logo o que podemos chamar de poeta artiacutefice 53

O termo referido fusioloiquestgoj eacute formado pela composiccedilatildeo de fusija natureza mais loiquestgoj

genericamente tido como razatildeo proveniente de lemacrgw o dizer atraveacutes da racionalidade da reflexatildeo intelectual

Aleacutem do mais o sufixo oj como diz-nos Romizi (2007) reflete a pessoa que age Logo fusioloiquestgoj vem a

significar aquele que estuda a nureza que se traduz como o fisioacutelogo

67

protagonizam cenas na Iliacuteada e na Odisseacuteia bem como em peccedilas de Eacutesquilo e de Soacutefocles

Ressaltamos poreacutem que na Odisseacuteia jaacute percebemos o caraacuteter traacutegico desses heroacuteis mesmo

estando presentes numa narrativa eacutepica

No capiacutetulo IV dissertando sobre a origem da poesia Aristoacuteteles informa-nos que

Homero foi o responsaacutevel por traccedilar as diretrizes para outros gecircneros literaacuterios Ou seja o

autor da Odisseacuteia natildeo soacute instaurou a literatura no mundo Ocidental como nos legou os

direcionamentos para as demais produccedilotildees literaacuterias vejamos

Ὥζπεξ δὲ θαὶ ηὰ ζπνπδαῖα κάιηζηα πνηεηὴο Ὅκεξνο [35] ἦλ (κόλνο γὰξ νὐρ

ὅηη εὖ ἀιιὰ θαὶ κηκήζεηο δξακαηηθὰο ἐπνίεζελ) νὕησο θαὶ ηὸ ηῆο

θσκσηδίαο ζρῆκα πξηνο ὑπέδεημελ νὐ ςόγνλ ἀιιὰ ηὸ γεινῖνλ

δξακαηνπνηήζαο ὁ γὰξ Μαξγίηεο ἀλάινγνλ ἔρεη ὥζπεξ Ἰιηὰο [1449a] θαὶ ἡ

δύζζεηα πξὸο ηὰο ηξαγσηδίαο νὕησ θαὶ νὗηνο πξὸο ηὰο θσκσηδίαο54

(Poeacutetica IV144b-1449a 34-39)

Assim como Homero era sobretudo poeta com relaccedilatildeo aos (gecircneros)

nobres pois sozinho criou bem representaccedilotildees de accedilotildees desse modo

tambeacutem primeiro mostrou a forma da comeacutedia natildeo o censurado mas a

poesia dramaacutetica que provoca o riso Na verdade o Margites tem sua

analogia pois assim como a Iliacuteada e a Odisseacuteia estatildeo relacionadas as

trageacutedias desse modo aquele (Margites) estaacute para as comeacutedias

Como pode ser visto a importacircncia de Homero daacute-se natildeo apenas pela produccedilatildeo

dos gecircneros que produziu como a epopeacuteia mas para os que natildeo chegou a compor como

comeacutedia e trageacutedia Isto porque a partir de suas obras legou-nos a dramaticidade e outros

elementos que constituem as linhas baacutesicas para a trageacutedia e comeacutedia Desse modo tendo

traccedilado as linhas da trageacutedia e da comeacutedia como Aristoacuteteles afirma-nos acreditamos tambeacutem

que Homero traccedilou as linhas do traacutegico legando-nos o que veio a ser elemento essencial da

trageacutedia

Apoacutes no capiacutetulo V comentar a respeito da comeacutedia sua estrutura e

caracteriacutestica distinguindo-a e comparando-a com a trageacutedia e a epopeacuteia Aristoacuteteles no

capiacutetulo VI propotildee uma definiccedilatildeo para a trageacutedia e descreve suas partes essenciais Logo ao

iniacutecio ele expotildee uma definiccedilatildeo esclarecedora e sinteacutetica sobre a trageacutedia

Ἔζηηλ νὖλ ηξαγσηδία κίκεζηο πξάμεσο ζπνπδαίαο [25] θαὶ ηειείαο κέγεζνο

ἐρνύζεο ἡδπζκέλση ιόγση ρσξὶο ἑθάζηση ηλ εἰδλ ἐλ ηνῖο κνξίνηο

54

Texto disponiacutevel em httpwwwhs-

augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante04Aristotelesari_poi1html agraves 1800hs em 16 de julho de

2010

68

δξώλησλ θαὶ νὐ δη᾽ ἀπαγγειίαο δη᾽ ἐιένπ θαὶ θόβνπ πεξαίλνπζα55

ηὴλ ηλ

ηνηνύησλ παζεκάησλ θάζαξζηλ56 (Poeacutetica VI 1449b 24-28)

Portanto a trageacutedia eacute representaccedilatildeo de uma accedilatildeo grave e acabada que possui

certa extensatildeo com uma linguagem ornada cada uma das partes aparece em

seccedilatildeo em que se age e natildeo atraveacutes de narraccedilatildeo levando a atingir por meio

da piedade e do temor a catarse de tais sofrimentos

Pela passagem acima selecionada depreendemos a partir de quatro caracteriacutesticas

baacutesicas o que Aristoacuteteles entende por trageacutedia Primeiro a trageacutedia representa uma accedilatildeo que

deve ser completa e ter certa extensatildeo segundo a linguagem dever ser ornada o que mais agrave

frente o proacuteprio autor explica como uma linguagem que possui ―rucedilqmoUumln kaiUuml acedilrmonimacran

kaiUuml memacrloj ou seja ―ritmo harmonia e melodia terceiro na trageacutedia natildeo deve haver

narraccedilatildeo isto porque os atores eacute quem agem sem a necessidade da intervenccedilatildeo de um

narrador para esclarecer o que ocorre pois a accedilatildeo transcorre aos nossos olhos quarto e muito

importante a trageacutedia mediante toda a estrutura citada deve suscitar ―esup1leou kaiUuml

fomacrbou57 (Ibidem) isto eacute ―compaixatildeo e medo

Desse modo a trageacutedia mediante as accedilotildees encenadas faz surgir o temor e a

piedade sentimentos contraacuterios mas que se completam pois um a esup1leoj aproxima os

espectadores propicia a identificaccedilatildeo para que possam apiedar-se do sujeitosituaccedilatildeo traacutegico

enquanto o outro o fomacrboj faz com que haja um certo afastamento do espectador em

relaccedilatildeo ao traacutegico posto em cena Assim nessa posiccedilatildeo intermediaacuteria envolta pelo sentimento

55

A utilizaccedilatildeo de perainousa uma forma de particiacutepio presente de perainw que siginifa atingir alcanccedilar

levar denota a simultaneidade da accedilatildeo verbal Por isso ele eacute construiacutedo a partir do tema do infectum que indica

a accedilatildeo inacabada (MURACHO 2007) No caso da citaccedilatildeo o uso de perainousa sugere-nos que

simultaneamente ao processo de narraccedilatildeo traacutegica somos levados a atingir a catarse 56

Texto disponiacutevel em httpwwwhs-

augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante04Aristotelesari_poi1html agraves 1805hs em 16 de julho de

2010 57

Fomacrboj eacute segundo Romizi (2007) a forma nominal do verbo femacrbomai indicando a fuga apavorada em

temor que tambeacutem se relaciona ao verbo fobemacrw que tem o sentido primeiro de fazer pavor aterrorizar fazer

fugir meter em fuga pelo temor Como vemos haacute uma semacircntica ligada ao aterrorizante do que potildee medo ao

ponto de fazer algoalgueacutem lanccedilar-se em fuga Por isso haacute algumas complicaccedilotildees na traduccedilatildeo que fazem deste

termo Uns optam por terror como Eudoro de Sousa (1992) e outros por temor como Jaime Bruna (1995) J

Hardy (1979) traduz-se como crainte ou seja receio num campo semacircntico mais proacuteximo de temor do que

terror Com base nessas discussotildees Lessing e John citados por Sandra Luna (2005) preferem traduzir Fomacrboj

apenas como temor jaacute que terror indicaria um sentimento mais desmedido Diante dessas controveacutersias e da

referecircncia etimoloacutegica consideramos a traduccedilatildeo por temor mais adequada jaacute que ela em si traz ainda o sentido

daquilo que de tatildeo apavorante faria fugir todavia natildeo o faz pelo sentimento de esup1leoj da compaixatildeo piedade

que eacute suscitado junto com ele estabelecendo assim um certo equiliacutebrio Se traduziacutessemos Fomacrboj por terror

acabariacuteamos por indicar um sentimento desmedido que de tatildeo aterrorizante paralisa proacuteximo ao mostruoso

bem contraacuterio ao sentido etimoloacutegico que vimos de fobemacrw Por tudo isso a traduccedilatildeo por terror natildeo eacute

apropriada para as trageacutedias gregas

69

de piedade e de temor a trageacutedia que promove o surgimento dessas emoccedilotildees ―perainousa

thUumln twordfn toioutwn paqhmatwn kaqarsinrdquo (Poeacutetica 1449b) isto eacute ―levando a atingir a

catarse de tais sofrimentos

Sobre a kaqarsij muitas satildeo as discussotildees sobre o sentido real e o uso desse

termo verificado nas trageacutedias tanto que Alfredo Carvalho citado por Sandra Luna (2005)

sugere que se mantenha transcrito nas traduccedilotildees a palavra catarse natildeo delimitando seu

sentido como purgaccedilatildeo eou purificaccedilatildeo fato que ocorre em muitas ediccedilotildees O motivo para

tal indicaccedilatildeo estaacute justamente no fato de essa palavra remeter-nos a uma plurisignificaccedilatildeo

para qual natildeo temos em nossa liacutengua uma palavra que possa vir a cobrir sua semacircntica

A palavra catarse do grego kamacrqarsij tem seu radical kamacrqarproveniente do

verbo kaqaimacrrw que genericamente traduz-se como purificar a exemplo de Bailly (2000)

Romizi (2007) e Liddell amp Scottlsquos (1996) Por isso kaqaromacrj de mesmo radical significa

puro Formada pelo radical kamacrqar- mais o sufixo -sijque indica a accedilatildeo eou efeito da

accedilatildeo kamacrqarsij entatildeo etimologicamente significaria purificaccedilatildeo Todavia atentamos que

esta palavra pode ter uma semacircntica diversa a depender do contexto em que eacute utilizada seja

este meacutedico seja religioso

Assim na utilizaccedilatildeo meacutedica o uso deste verbo kamacrqarsij indica purgaccedilatildeo

limpeza esvaziamento do que for de maleacutefico para a sauacutede orgacircnica do inviacuteduo Na utilizaccedilatildeo

religiosa kamacrqarsij significa purificaccedilatildeo que simboliza a limpeza do espiacuterito impuro que

desagrada ao divino Segundo Jean Chevalier e Alain Gheerbrant (2009) a purificaccedilatildeo eacute um

rito presente em todas as religiotildees

Na verdade mesmo diante dessas aparentes distacircncias entre os termos

acreditamos que purgaccedilatildeo e purificaccedilatildeo encontram-se num mesmo campo semacircntico apesar

de utilizadas em contextos diferentes pois ambas indicam a eliminaccedilatildeo de impurezas e

malefiacutecios sejam eles fiacutesicos (purgaccedilatildeo) ou espirituais (purificaccedilatildeo) De todo o modo para

que possamos explicitar essa duplicidade semacircntica presente no termo em questatildeo

utilizaremos ao longo do nosso trabalho como indica Carvalho o vocaacutebulo catarse Assim

natildeo pomos fim a essa vaacutelida discussatildeo linguiacutestica e literaacuteria aleacutem de sua duplicidade

semacircntica

Entendida a explanaccedilatildeo sobre a carga semacircntica presente em

kamacrqarsijrelacionaremos esse conceito e sua importacircncia inseridos no entendimento da

trageacutedia e do traacutegico Para Lesky (1995) a catarse pode ser um instrumento para

70

entendermos melhor o traacutegico e seu efeito jaacute que seria o resultado da accedilatildeo traacutegica Se para

Aristoacuteteles a trageacutedia propicia o despertar de sentimentos como o temor e a piedade e aleacutem

disso vem a operar a catarse dessas emoccedilotildees que ela mesma fez surgir entendemos que isso

natildeo ocorre apenas pela linguagem condimentada pelo ritmo ou melodia Entatildeo o componente

da trageacutedia essencial para inspirar esses sentimentos eacute justamente o traacutegico

Toda essa explanaccedilatildeo sobre a kamacrqarsij nos eacute importante por acreditarmos que

o Canto XI da Odisseacuteia passa por um processo kartaacutetico Ao ver os grandes heroacuteis em

infortuacutenio Odisseu apieda-se perante o sofrer de seus semelhantes ao mesmo tempo em que

tambeacutem sente temor de que pudesse vir a ter um destino desventuroso o que natildeo seria difiacutecil

por haacute tanto vir enfrentando sofrimentos diversos na busca de retornar ao lar Tendo passado

pelo processo de kamacrqarsij Odisseu purificado livre das enfermidades espirituais do

excesso e da desmedida pode finalmente alcanccedilar seu objetivo buscado jaacute por longos anos

chegar a Iacutetaca

Aliado aos demais elementos da trageacutedia o traacutegico eacute o responsaacutevel para que se

suscitem as emoccedilotildees de piedade e temor as quais segundo Aristoacuteteles satildeo fruto das accedilotildees

representadas na peccedila e natildeo narraccedilotildees Pois mais do que as outras partes da trageacutedia como

ritmo melodia e linguagem condimentada eacute o traacutegico que essencialmente tem a capacidade

de provocar e inspirar a esup1leojpiedade e o fomacrbojo temor

Deste modo uma representaccedilatildeo traacutegica como a de Agamecircmnon que apoacutes dez

anos volta agrave sua terra glorificado pela vitoacuteria mas que logo eacute pego por uma armadilha da

esposa e de seu amante matando-o indignamente faz surgir dois sentimentos

esup1leojpiedade e o fomacrbojo temor O primeiro porque diante de um sofrer que parece

indigno injusto imerecido acaba-se por sentir compaixatildeo Lembremos de que Agamecircmnon

um homem de grandes feitos aAtildenac asup1ndrwIacuten58 o senhor dos heroacuteis retorna trazendo a gloacuteria

para o lar e como recepccedilatildeo encontra a morte preparada pela esposa numa banheira Tudo

isso nos inspira a esup1lemacroj Ao mesmo tempo toda essa situaccedilatildeo traacutegica se veio atingir um

grande rei como Agamecircmnon por este ter cometido uma accedilatildeo errocircnea poderia vir atingir

tambeacutem os demais menos ilustres Logo desponta-se entatildeo o receio de que o traacutegico possa

tambeacutem nos atingir E essa circunstacircncia inspira o fomacrboj Por isso o coro diz em

Agamecircmnon

58

Este eacute um epiacuteteto bastante utilizado para Agamecircmnon na Iliacuteada e que o distingue dos demais indicando que

ele eacute o que comanda os demais heroacuteis e reis como Aquiles Aacutejax Odisseu enfim

71

ἰὼ ἰὼ βαζηιεῦ βαζηιεῦ

πο ζε δαθξύζσ

θξελὸο ἐθ θηιίαο ηί πνη᾽ εἴπσ

θεῖζαη δ᾽ ἀξάρλεο ἐλ ὑθάζκαηη ηῶδ᾽

ἀζεβεῖ ζαλάηῳ βίνλ ἐθπλέσλ

ὤκνη κνη θνίηαλ ηάλδ᾽ ἀλειεύζεξνλ

δνιίῳ κόξῳ δακεὶο

ἐθ ρεξὸο ἀκθηηόκῳ βειέκλῳ

(Agamecircmnon v 1513 -1520)

Ioacute ioacute Rei rei

Como chorar-te-ei

O que falar a partir do coraccedilatildeo amigo

Eacutes posto nessa teia de aranha expirando

a vida por uma impiedosa morte

Oacutemoi oacutemoi Neste indigno repouso

Tendo sido dominado sob trapaceira sorte

Pela matildeo com arma cortante de ambos os lados

A trageacutedia por meio do traacutegico tendo feito surgir os sentimentos de temor e

piedade realiza a catarse desses sentimentos assim os sentimentos que ela mesma inspirou

formam um processo cartaacutetico Processo possiacutevel pela existecircncia do traacutegico na composiccedilatildeo

estrutural da trageacutedia pois como vimos o traacutegico eacute o elemento responsaacutevel por inspirar o

temor e a piedade Desta maneira proporcionando meios de ser efetuado o que eacute

provavelmente o maior objetivo da trageacutedia a kaqarsij

Apesar de Aristoacuteteles natildeo nos definir exatamente o que eacute o traacutegico podemos

percorrer suas ponderaccedilotildees na Poeacutetica sobre os elementos da trageacutedia Com isso se natildeo

chegamos ao traacutegico aristoteacutelico pelo menos nos aproximamos de sua significaccedilatildeo Assim a

partir do raciociacutenio de que o traacutegico tem a capacidade de fazer surgir os sentimentos de temor

e piedade e depois realizar a catarse deles podemos chegar a mais uma conclusatildeo sobre o

traacutegico Porque se o inspirar do temor e da piedade como nos diz Aristoacuteteles ocorre atraveacutes

da accedilatildeo dos atores e natildeo da narraccedilatildeo chegamos a mais uma caracteriacutestica sobre o traacutegico ele

decorre da accedilatildeo dos personagens

E essa accedilatildeo traacutegica segundo Aristoacuteteles eacute o elemento mais importante da trageacutedia

grega porque nela encontramos a origem para a fortuna humana seja ela boa ou maacute (1450a)

e eacute tambeacutem atraveacutes da accedilatildeo que o caraacuteter se revela jaacute que a qualidade dos personagens estaacute

exposta em suas accedilotildees Desta maneira elencando o mito o caraacuteter a elocuccedilatildeo o pensamento

o espetaacuteculo e a melopeacuteia como as seis partes componentes da trageacutedia ele afirma

72

Μέγηζηνλ δὲ ηνύησλ ἐζηὶλ ἡ ηλ πξαγκάησλ ζύζηαζηο ἡ γὰξ ηξαγσηδία

κίκεζίο ἐζηηλ νὐθ ἀλζξώπσλ ἀιιὰ πξάμεσλ θαὶ βίνπ θαὶ εὐδαηκνλία θαὶ

θαθνδαηκνλία ἐλ πξάμεη ἐζηίλ θαὶ ηὸ ηέινο πξᾶμίο ηηο ἐζηίλ νὐ πνηόηεο59

(Poeacutetica VI 1450a 15-19)

O mais importante (elemento) eacute a composiccedilatildeo dos fatos pois a trageacutedia eacute

representaccedilatildeo natildeo de seres humanos mas de accedilotildees e da vida Tambeacutem a

fortuna e o infortuacutenio estatildeo na accedilatildeo e a finalidade eacute alguma accedilatildeo natildeo uma

qualidade

Apoacutes ter identificado a accedilatildeo como a parte mais importante da trageacutedia Aristoacuteteles diz

que sem accedilatildeo natildeo haacute trageacutedia Tal definiccedilatildeo como vemos faz parte de um argumento bem

loacutegico pois se antes ele havia dito que a accedilatildeo eacute o elemento mais importante da trageacutedia logo

supomos que sem ela natildeo haacute trageacutedia e eacute isso que ele nos confirma ―brvbarbrvbarEti aAtildeneu meUumln

pracewj ousup1k aAtilden genoito tragdia aAtildeneu deUuml hsup1qwordfn ge noitrsquo aAtilden60 (Ibidem 23-25)

ou seja ―Ainda assim a trageacutedia natildeo poderia vir a ser sem accedilatildeo mas sim sem os caracteres

Mesmo porque a accedilatildeo ―sup1ArxhUuml meUumln ouaringn kaiUuml oiaringon yuxhUuml ocedil muordfqoj thordfj tragdiaj61

(Poeacutetica VI 1450a 39-40) ― Portanto o mito eacute como que o princiacutepio e a alma da trageacutedia

Seguindo tambeacutem o raciociacutenio loacutegico de Aristoacuteteles poderiacuteamos dizer o traacutegico eacute

proveniente da accedilatildeo dos personagens sem accedilatildeo natildeo haacute trageacutedia logo concluiacutemos que sem

traacutegico natildeo haacute trageacutedia Chegamos entatildeo temos mais um pressuposto para legitimar nossa

tese do traacutegico como essecircncia da trageacutedia grega seja esse refletido no destino ou apenas em

uma situaccedilatildeo de vida

Esta accedilatildeo traacutegica deve tambeacutem estar ligada a dois meios que realizam a comoccedilatildeo

dos acircnimos satildeo eles asup1nagnwiquestrisij e peripemacrteia ou seja reconhecimento e peripeacutecia

Anteriormente jaacute explicamos a etimologia e o significado de cada um agora nos eacute importante

compreender a importacircncia deles na estrutura da trageacutedia percebamos

Πξὸο δὲ ηνύηνηο ηὰ κέγηζηα νἷο ςπραγσγεῖ ἡ ηξαγσηδία ηνῦ κύζνπ κέξε

ἐζηίλ αἵ ηε πεξηπέηεηαη θαὶ ἀλαγλσξίζεηο62 (Poeacutetica VI 1450a 33-35)

59

Texto disponiacutevel em httpwwwhs-

augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante04Aristotelesari_poi2html agraves 1905hs de 16 de julho de

2010 60

Texto disponiacutevel em httpwwwhs-

augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante04Aristotelesari_poi2html agraves 1910hs de 16 de julho de

2010 61

Ibidem 62

Texto disponiacutevel em httpwwwhs-

augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante04Aristotelesari_poi2html agraves 1910hs de 16 de julho de

2010

73

Para junto disso a trageacutedia extasia-os com seus importantes elementos que

satildeo parte do mito as peripeacutecias e os reconhecimentos

Entatildeo se asup1nagnwiquestrisij e peripemacrteia satildeo meios fundamentais atraveacutes dos

quais a trageacutedia alcanccedila a comoccedilatildeo do espiacuterito portanto satildeo tambeacutem fundamentais para

intensificaccedilatildeo do traacutegico jaacute que este corresponde ao elemento miacutetico na estrutura da trageacutedia

Ressaltamos que esses dois elementos para que o traacutegico seja desenvolvido devem estar

aliado a outros elementos pois sozinho natildeo realizam o traacutegico Ateacute porque como sabemos

asup1nagnwiquestrisij e peripemacrteia satildeo elementos comuns tambeacutem da comeacutedia Mas como partes

do mito reconhecimento e peripeacutecia aleacutem de fazerem a estrutura literaacuteria ser como define

Aristoacuteteles mais complexa tambeacutem corroboram para a intensificaccedilatildeo do efeito traacutegico Por

isso classificando os tipos de reconhecimento no capiacutetulo XVI da Poeacutetica o filoacutesofo

informa-nos que apesar de existirem vaacuterias realizaccedilotildees do reconhecimento a melhor delas eacute a

que deriva do conflito (1455a v 17-22) da accedilatildeo Como a de Ifigecircnia em Aacuteulis (2002) e a de

Eacutedipo Rei (2001) e natildeo as que se realizam por meios artificiais a exemplo de sinais da

memoacuteria e do silogismo

Isto porque quando sofre uma peripeacutecia o sujeito traacutegico vecirc-se num conflito

Basta lembrarmos de Eacutedipo Rei em que o rei procura o assassino de Laio quando ele mesmo

vem a ser a proacutepria causa de tantos malefiacutecios Do mesmo modo com o reconhecimento pois

quando o indiviacuteduo vecirc-se tomado pela indesejada circunstacircncia ou destino traacutegicos ele se

reconhece como sujeito traacutegico proacuteximo de sua cataacutetrofe Para tanto eacute soacute nos lembrarmos

por exemplo de Eacutedipo Aacutejax Ifigecircnia e Hipoacutelito quando se reconhecem como figuras

traacutegicas O primeiro ao perceber que era ele mesmo a causa do mal que procurava o

segundo ao entender que havia matado animais e natildeo os guerreiros gregos a terceira ao ver

que sua vida seraacute aniquilada pelo proacuteprio pai e o quarto enxergando-se como vitimado por

um crime que natildeo cometera Observemos

ἰνὺ ἰνύ ηὰ πάλη᾽ ἂλ ἐμήθνη ζαθῆ

ὦ θο ηειεπηαῖόλ ζε πξνζβιέςαηκη λῦλ

ὅζηηο πέθαζκαη θύο η᾽ ἀθ᾽ ὧλ νὐ ρξῆλ63

(Eacutedipo Rei 1182-1184)

Ioacuteu ioacuteu Atingiste-me e todas as coisas estatildeo claras

Oacute luz nesse instante eu poderia olhar-te o fim

eu fiz aparecer o filho de que natildeo havia necessidade

63

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101913Acard3D1196 agraves

1940hs de 17 de julho de 2010

74

ἰὼ

ζθόηνο ἐκὸλ θάνο

ἔξεβνο ὦ θαελλόηαηνλ ὡο ἐκνί

ἕιεζζ᾽ ἕιεζζέ κ᾽ νἰθήηνξα

ἕιεζζέ κ᾽ νὔηε γὰξ ζελ γέλνο νὔζ᾽ ἁκεξίσλ

ἔη᾽ ἄμηνο βιέπεηλ ηηλ᾽ εἰο ὄλαζηλ ἀλζξώπσλ

ἀιιά κ᾽ ἁ Δηὸο ἀιθίκα ζεὸο ὀιέζξη᾽ αἰθίδεη

64

(Aacutejax 394-403)

Ioacute Treva toda minha luz

Oacute Eacuterebo como eacutes brilhantiacutessimo para mim

Leva-me leva-me para tua morada

leva-me Pois nem mereccedilo olhar nem por um dia

para a raccedila dos deuses nem igualmente para a dos homens

Todavia a filha de Zeus

o poderoso deus

atormenta-me para destruiccedilatildeo

νἲ γώ κᾶηεξ ηαὐηὸλ ηόδε γὰξ

κέινο εἰο ἄκθσ πέπησθε ηύρεο

θνὐθέηη κνη θο

νὐδ᾽ ἀειίνπ ηόδε θέγγνο

ἰὼ ἰώ65

(Ifigecircnia em Aacuteulis 1279-1283)

Ai de mim matildee Pois este mesmo

canto do acaso caiu para ambas

Para mim natildeo (haveraacute) mais luz

e nem a claridade do sol

Ioacute ioacute

αἰαῖ αἰαῖ

δύζηελνο ἐγώ παηξὸο ὡο ἀδίθνπ

ρξεζκνῖο ἀδίθνηο δηειπκάλζελ

ἀπόισια ηάιαο νἴκνη κνη

()

αἰαῖ αἰαῖ

θαὶ λῦλ ὀδύλα κ᾽ ὀδύλα βαίλεη

κέζεηέ κε ηάιαλεο

θαί κνη ζάλαηνο Παηὰλ ἔιζνη

πξνζαπόιιπη᾽ ἀπόιιπηε66

(Hipoacutelito 1348-501370-74)

64

Tento disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101833Acard3D394 `s 2000hs

de 17 de julho de 2010 65

Texto disponiacutevel em httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseustext1999010107 agraves 2020hs de

17 de julho de 2010 66

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101053Acard3D1370 agraves

2030hs de 17 de juho de 2010

75

Aiacuteaiacute aiacuteaiacute

Eu sou miseraacutevel por causa de um pai injusto

de profecias injustas desfeitas vergonhosamente

fui destruiacutedo estou desgraccedilado ai de mim

Aiacuteaiacute aiacuteaiacute

E agora vai causa-me dor causa-me dor

deixais-me ir desgraccedilado

e que o Curador da morte venha para mim

destroacutei-me destroacutei-me

As passagens citadas ilustram bem que a tragicidade da peccedila eacute aumentada quando

os personagens passam do estado da ignoracircncia para o conhecimento e consciecircncia dos fatos

Para entendermos mais claramente eacute soacute imaginarmos um homem que mata o pai e casa com a

matildee mas sem saber ou seja sem a asup1nagnwiquestrisij Isso nos causaria piedade eou temor

Acreditamos que natildeo e o proacuteprio Eacutedipo retifica-nos pois antes de saber que ele era o

responsaacutevel pelo mal que assolava Tebas ele natildeo se lamentava apenas buscava o culpado

enfim ele natildeo se reconhecia como um personagem traacutegico Do mesmo modo a falta de

reconhecimento com Aacutejax Ifigecircnia Hipoacutelito pode diminuir ou ateacute mesmo vir a extinguir

toda a tragicidade

Como percebemos peripemacrteia e asup1nagnwiquestrisij surgidas da estrutura interna

do mito satildeo importantes natildeo apenas para a trageacutedia e seus aspectos formais mas para o

desdobramento intensificado do traacutegico Aristoacuteteles diz-nos ainda que ocorrendo juntas a

peripeacutecia e o reconhecimento compotildeem uma estrutura complexa Podemos depreender pela

explanaccedilatildeo e exemplificaccedilatildeo que fizemos acima que juntas a peripeacutecia e o reconhecimento

reforccedilam a dramaticidade da peccedila Tal ideacuteia talvez nos permita afirmar que uma trageacutedia

aristotelicamente complexa possui mais teor traacutegico do que as de estrutura simples sem

reconhecimento e peripeacutecia

Para Aristoacuteteles a estrutura do mito traacutegico bem realizado deve ser uniforme e

como um todo deve ter iniacutecio meio e fim Por isso ele explica que um ser muito grande ou

muito pequeno natildeo se aproximaria do que eacute belo (1451a) Esse comentaacuterio ajuda-nos a

compreender entre outros fatores o porquecirc da unidade de accedilatildeo ser tatildeo relevante para a

teorizaccedilatildeo aristoteacutelica devendo estar presente tanto numa trageacutedia quanto numa epopeacuteia

Tanto que Aristoacuteteles aponta as epopeacuteias homeacutericas como exemplos dessa unidade de accedilatildeo jaacute

que apesar de extensas os episoacutedios convergem para accedilatildeo central compondo o todo Aleacutem

do mais tambeacutem podemos perceber o porquecirc de a extensatildeo da trageacutedia ser baseada no tempo

76

suficiente em que se possa transcorrer a mudanccedila da fortuna do personagem Vejamos o que

ele diz

ὡο δὲ ἁπιο δηνξίζαληαο εἰπεῖλ ἐλ ὅζση κεγέζεη θαηὰ ηὸ εἰθὸο ἢ ηὸ

ἀλαγθαῖνλ ἐθεμῆο γηγλνκέλσλ ζπκβαίλεη εἰο εὐηπρίαλ ἐθ δπζηπρίαο ἢ ἐμ

εὐηπρίαο εἰο δπζηπρίαλ κεηαβάιιεηλ ἱθαλὸο [15] ὅξνο ἐζηὶλ ηνῦ κεγέζνπο67

(Poeacutetica VII 1451a 11-15)

Em certa extensatildeo simplesmente devem realizar o narrar um apoacutes outro

segundo a verossimilhanccedila e a necessidade e que ocorra com o traspassar

para a fortuna a partir do infortuacutenio e da fortuna para o infortuacutenio este eacute o

limite conveniente de sua extensatildeo

A unidade de accedilatildeo segundo os preceitos aristoteacutelicos eacute fundamental para a

estruturaccedilatildeo de uma faacutebula Assim mesmo numa epopeacuteia os episoacutedios devem convergir para

a accedilatildeo central tornando-a una e coesa E essa limitaccedilatildeo temporal da trageacutedia que deve

desenvolver-se numa temporalidade suficiente para que possamos ter a mudanccedila de fortuna

tambeacutem nos colabora para outra compreensatildeo do traacutegico Pois este para ser melhor realizado

tambeacutem deve ter unidade pois faltaria totalidade a um mito que depois de ocorrer a accedilatildeo

traacutegica passasse a desenvolver outros temas dispersando e diluindo o traacutegico Isso nos faz

compreender o porquecirc das criacuteticas agrave peccedila de Soacutefocles Aacutejax Nesta peccedila apoacutes concretizada a

mudanccedila da fortuna do heroacutei com o seu suiciacutedio vemos o desenvolver da defesa de seu corpo

por Teucro seu meio-irmatildeo Muitos criacuteticos entendem que essa continuidade da peccedila

prejudicaria sua qualidade Natildeo entraremos nessa discussatildeo contudo podemos compreender

que a accedilatildeo traacutegica deve ser condensada deve ter unidade a fim de que natildeo se dilua por

completo nem se disperse Assim sendo conforme as indicaccedilotildees de Aristoacuteteles o tempo da

accedilatildeo traacutegica deve limitar-se agrave mudanccedila de fortuna

No capiacutetulo XIII Aristoacuteteles expotildee-nos mais diretamente a respeito do traacutegico

comentando o que viria a ser uma situaccedilatildeo traacutegica por excelecircncia para que possa inspirar o

temor e a piedade e depois a catarse desses sentimentos Para termos essa ―plausiacutevel

situaccedilatildeo traacutegica ela natildeo deve ter homens muito bons passando para o infortuacutenio - o que

causaria excesso de piedade - nem muito maus o que levaria a um distanciamento Mesmo

porque essas circuntacircncias natildeo fazem surgir o temor fomacrboj nem a piedade esup1lemacroj estes

sentimentos que devem vir da accedilatildeo dos personagens e que satildeo inspirados em determinadas

situaccedilotildees

67

Texto disponiacutevel em httpwwwhs-

augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante04Aristotelesari_poi2html agraves 2025hs de 17 de julho de

2010

77

ἔιενο κὲλ πεξὶ ηὸλ ἀλάμηνλ θόβνο δὲ πεξὶ ηὸλ ὅκνηνλ68

(Poeacutetica XIII 1453a 5-6)

() a piedade sobre o imerecido o temor sobre o semelhante

Diante disso resta ao heroacutei uma situaccedilatildeo intermediaacuteria (1453a) pois nem tatildeo

virtuoso nem tatildeo maldoso Sua tragicidade viraacute natildeo pelo caraacuteter mas por uma accedilatildeo errocircnea

Este erro a aumlmartian seria o responsaacutevel por fazer algueacutem passar da fortuna ao infortuacutenio

ou vice-versa Muitas discussotildees haacute sobre essa hamartia aristoteacutelica e qual seria seu

significado essencial mas por hora vejamos o que nos diz o filoacutesofo referindo-se ao heroacutei

que natildeo cai no erro por falha de caraacuteter mas por causa de

ἁμαρτίαν τινά ηλ ἐλ κεγάιῃ δόμῃ ὄλησλ θαὶ εὐηπρίᾳ νἷνλ Οἰδίπνπο θαὶ

Θπέζηεο θαὶ νἱ ἐθ ηλ ηνηνύησλ γελλ ἐπηθαλεῖο ἄλδξεο () ἐμ εὐηπρίαο εἰο

δπζηπρίαλ κὴ δηὰ κνρζεξίαλ ἀιιὰ δη᾽ ἁμαρτίαν μεγάλην ἢ νἵνπ εἴξεηαη ἢ

βειηίνλνο κᾶιινλ ἢ ρείξνλνο69 (Poeacutetica XIII 1453 a 10-1215-17)

() algum erro daqueles de grande gloacuteria e boa fortuna como o de Eacutedipo e

Tiestes tambeacutem por homens ilustres de famiacutelias tais () a partir da fortuna

para o infortuacutenio natildeo por maldade mas atraveacutes de um grande erro ou como

o que foi dito ou de um (erro) melhor ou ainda pior

A primeira referecircncia de hamartia presente no texto de Aristoacuteteles diz ἁμαρηίαν

ηινά Liddell e Sccottlsquos (1996) informam-nos que aumlmartia significa filure error ou seja

falha erro Este substantivo eacute originado pelo verbo aumlmartanw definido como to miss miss

the mark quer dizer falharerrar eou errar o alvo Seu qualificador tina sendo pronome

indefinido expressa a indefiniccedilatildeo por meio de ―um algum Podemos entatildeo chegar agrave

traduccedilatildeo para aumlmartian tina como ―errar um alvo Este sentido indefinido dificulta-nos

para sabermos a que erro Aristoacuteteles se refere contudo essa indefiniccedilatildeo daacute-nos um indiacutecio

importante esse erro pode ser de origens diversas

Em aumlmartian megalhn poderemos entender melhor o que seria o erro traacutegico

indicado por Aristoacuteteles O termo megalhn equivale a megaj que significa aquilo que eacute

largo grande importante Logo aumlmartian megalhn pode ser traduzido por ―grande erro

68

Ibidem 69

Os destaques satildeo nossos Texto disponiacutevel em httpwwwhs-

augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante04Aristotelesari_poi2html agraves 2035hs de 17 de julho de

2010

78

Percebemos entatildeo que este erro fundamental para o decorrer da accedilatildeo traacutegica eacute grandioso

grave muito importante para todo o contexto em que se estabelece

Baseada nas discussotildees acima sobre a hamartia aristoteacutelica podemos chegar agrave

conclusatildeo de que a hamartia natildeo estaacute relacionada como poder-se-ia pensar a um erro moral

originado em decorrecircncia de uma falha de caraacuteter Na verdade apesar de ser um grande eou

grave erro ele eacute sem intencionalidade Todavia esta falta de intenccedilatildeo natildeo o exime do traacutegico

Este natildeo deve ser confundido como um castigo e sim como uma mudanccedila de fortuna que

geralmente ocasiona para o agente um infeliz resultado

Esse grandioso erro tambeacutem eacute indefinido por isso o aumlmartian tina que nos

sugere uma falha natildeo especiacutefica impedindo-nos de definir o que seria um erro traacutegico ou natildeo

mas que eacute um aumlmartian megalhn um grande erro Todavia ressaltamos que haacute falhas

traacutegicas por excelecircncia como por exemplo as cometidas contra os deuses aleacutem das

realizadas como diz-nos o proacuteprio Aristoacuteteles (19791995) no capiacutetulo XIV contra pessoas

da famiacutelia

Ὅταν δ᾽ ἐν ταῖς φιλίαις ἐγγένηται τὰ πάθη οἷον ἢ ἀδελφὸς

ἀδελφὸν ἢ υἱὸς πατέρα ἢ μήτηρ υἱὸν ἢ υἱὸς μητέρα ἀποκτείνηι ἢ

μέλληι ἤ τι ἄλλο τοιοῦτον δρᾶι ταῦτα ζητητέον70 (Ibidem XIV

1453b 20-23)

Quando estas cataacutestrofes realizam-se em amizades ou com um irmatildeo que

mata irmatildeo ou um filho que mata o pai ou a matildee que mata o filho ou o

filho que mata a matildee ou quando venha ocorrer alguma outra coisa desta

natureza estas coisas tecircm que ser buscadas

O fato de existirem essas situaccedilotildees traacutegicas por natureza faz com que entendamos

o impacto traacutegico das trageacutedias Medeacuteia Oresteacuteia e Eacutedipo Rei ateacute hoje pelos assassinatos

entre familiares Por isso temos a existecircncia de famiacutelias em que se delineiam o traacutegico

mesmo com o passar das geraccedilotildees a exemplo da dos Labdaacutecidas e dos Atridas E eacute esse

aspecto do conflito familiar somado aos finais infortunados que segundo Aristoacuteteles acaba

por fazer Euriacutepedes ser o mais tragikomacrj dos poetas

Atraveacutes das consideraccedilotildees acima realizadas tentamos compreender definiccedilotildees e

aspectos relativos ao traacutegico a partir da Poeacutetica Esta obra legou-nos as primeiras reflexotildees

teoacutericas sobre a literatura mais especificamente sobre a trageacutedia e a epopeacuteia Tentamos

70

Texto disponiacutevel em httpwwwhs-

augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante04Aristotelesari_poi2html agraves 2035hs de 17 de julho de

2010

79

depreender atraveacutes dela a estrutura e significaccedilatildeo do traacutegico para as trageacutedias gregas como

tambeacutem para as epopeacuteias homeacutericas jaacute que nelas podemos encontrar consideraacutevel

manifestaccedilatildeo de tragicidade presente por exemplo no Canto XI da Odisseacuteia

24 A busca do traacutegico outras reflexotildees teoacutericas

Na tentativa de compreender melhor a categoria do traacutegico claacutessico

continuaremos em busca de seu entendimento mas desta vez percorrendo os conceitos e as

discussotildees realizadas por outros autores Este processo assim como os demais que

desenvolvemos ateacute entatildeo tem o propoacutesico de subsidiar-nos para a compreensatildeo do nosso

objetivo geral que eacute o de analisar a tragicidade no Canto XI da Odisseacuteia Em auxiacutelio agrave nossa

proposta contribuem os seguintes autores Jean-Pierre Vernant Grimal Jacqueline de

Romilly Anatol Rosenfeld Junito Brandatildeo Albin Lesky e Sandra Luna

Em Mito e trageacutedia na Greacutecia Antiga (2008) Jean-Pierre Vernant discorre que na

trageacutedia o homem (heroacutei) eacute posto para realizar uma escolha definitiva diante de um mundo

ambiacuteguo e instaacutevel Para o autor isso seria a ―mateacuteria-prima da trageacutedia o primeiro aspecto

do conflito Diante disso a trageacutedia possui tambeacutem algumas marcas que seriam tensatildeo entre

mito e pensamento citadino conflitos humanos de valores do mundo e do universo divino

caracteriacutestica ambiacutegua e equiacutevoco linguumliacutestico Estas marcas da trageacutedia satildeo fundamentais

tambeacutem para a realizaccedilatildeo do traacutegico principalmente no que diz respeito agrave tensatildeo e ao conflito

do homem para com os demais O homem como ―mateacuteria-prima do traacutegico vecirc-se desafiado

por decisotildees e suscetiacutevel perante sua fragilidade pois ―neste jogo do qual natildeo eacute senhor o

homem sempre corre o risco de cair na armadilha de suas proacuteprias decisotildees (VERNANT

2008 p 21)

Estas decisotildees afligem muitas vezes a jornada do homem que acaba por se tornar

uma sujeito traacutegico E assim aquele homem na eacutepica que exalta seu vigor e alcanccedila a gloacuteria

depara-se com sua fragilidade e finitude diante da vida e de suas circunstacircncias Por isso

Vernant (2008) considera que no traacutegico a accedilatildeo e o agir humano dividem-se em dois poacutelos o

primeiro eacute o de deliberar pesar eou prevecirc a melhor opccedilatildeo de escolha e o segundo eacute

considerar a presenccedila do incompreensiacutevel do desconhecido e de forccedilas sobrenaturais que

possam vir preparar seu sucesso ou sua derrota Assim o traacutegico estaacute indissoluvelmente

aliado a uma accedilatildeo que pressupotildee uma escolha

80

O autor afirma que a culpa traacutegica pode ser realizada de duas formas uma eacute

atraveacutes da hamartia que ele define como uma concepccedilatildeo religiosa do erro uma ―doenccedila do

espiacuterito em que o sujeito coagido por elementos superiores chega a cometer o delito a

outra eacute por meio do adikon71

em que o sujeito sem nenhuma coaccedilatildeo decide cometer o erro

Assim entendemos que o indiviacuteduo poder torna-se traacutegico ou por um erro sem

voluntariedade hamartia sob forccedilas superiores ou por deliberaccedilatildeo proacutepria por isso eacute

chamado de adikon injusto

Um aspecto bastante discutido sobre o traacutegico refere-se agrave existecircncia ou natildeo da

vontade e da responsabilidade humana Natildeo pretendemos aprofundar-nos nessa questatildeo

contudo ela nos serve para entender as circuntacircncias que levam ao traacutegico Assim Vernant

(2008) afirma que no Periacuteodo Arcaico da literatura grega natildeo haacute vocaacutebulo para designar a

vontade o querer direcionado ao homem mas sabemos que ela havia em relaccedilatildeo aos deuses

como se vecirc por exemplo na Iliacuteada (v5) No Periacuteodo Claacutessico mesmo ainda sem a existecircncia

dessa palavra para os homens jaacute comeccedilamos a ter o levantamento desses questionamentos

Mesmo porque o autor defende que para haver uma decisatildeo tem que existir alguma vontade

Desde que o indiviacuteduo se empenha numa decisatildeo que se decide

qualquer que seja o plano em que se situe sua resoluccedilatildeo ele se constitui a si

proacuteprio como agente isto eacute como sujeito responsaacutevel e autocircnomo que se

manifesta em atos e por atos que lhe satildeo imputaacuteveis (Ibidem 2008 p 26)

A necessidade (asup1namacrgkh) imposta pelos deuses eou pela ocasiatildeo impulsiona o

homem a tomar decisotildees Estas possuem de alguma maneira expressotildees de seus desejos

apesar de que muitas vezes soacute haacute uma escolha Por isso diz Vernant que se haacute uma vontade

ela natildeo eacute autocircnoma e sim ―amarrada pelo temor que o divino inspira se natildeo constragida por

potecircncias sagradas que assediam o homem no seu proacuteprio iacutentimo (VERNANT 2008 p 28)

Entatildeo concluimos que a partir da necessidade emana a accedilatildeo do homem pois segundo

Vernant ainda natildeo podemos falar em vontade na trageacutedia grega Na verdade ela ―marca uma

etapa e como que uma virada na histoacuteria dos avanccedilos do homem grego antigo na direccedilatildeo da

vontade (Ibidem p 42)

A partir de sua exposiccedilatildeo Vernant (2008) define o traacutegico como a interrogaccedilatildeo do

homem sobre seus atos chegando ao ponto de fazer daquele heroacutei eacutepico exemplar o

responsaacutevel por sua accedilatildeo errocircnea Tal accedilatildeo volta-se contra ele mesmo ocasionando o

71

Esta palavra em grego aatildedikoj eacute formada pelo a privativo mais o radical dik de dikhmacr justiccedila Logo

aatildedikoj significa injusto

81

contraacuterio do que ele pretendia Percebemos por isso que o traacutegico faz-nos interrogar sobre a

condiccedilatildeo humana e suas fronteiras estas que satildeo colocadas a cada um sejam aos grandes

heroacuteis como Aquiles ou aos deuses como vemos em Prometeu Cadeeiro (2009) Por

exemplo o Pelida no encontro com Odisseu no Hades mostra-se arrependido da escolha que

fez de morrer em campo de batalha Como se vecirc a decisatildeo de Aquiles voltou-se contra ele

mesmo Entretanto tal situaccedilatildeo analisaremos melhor no capiacutetulo a seguir

Pierre Grimal em O Teatro Antigo (2002) diz que a trageacutedia grega desenvolve-se

num periacuteodo histoacuterico de bastante relevacircncia jaacute que nesse momento foi realizada uma

elevada criaccedilatildeo filosofia Diante desse contexto as trageacutedias em forma de accedilatildeo de drama

representavam acontecimentos oriundos das lendas heroacuteicas tatildeo cantadas pelos autores

eacutepicos todavia Grimal faz-nos a seguinte ressalva se para noacutes os acontecimentos encenados

possuem caraacuteter lendaacuterio para os gregos havia um significado histoacuterico E mais ainda na

trageacutedia aquele heroacutei que para os gregos fazia parte da histoacuteria vecirc sua fragilidade diante de

um impasse porque

A trageacutedia mais do que esclarescer o significado metafiacutesico do mito

(como o faraacute Heacutercules no Etna de Secircneca) traz agrave luz do dia a infeliz

condiccedilatildeo dos mortais incapazes de compreenderem as consequumlecircncias de

suas accedilotildees quando cedem natildeo soacute ao irresistiacutevel poder do Amor como agraves

outras paixotildees que os deuses lhes enviam (GRIMAL 2002 p 45)

Se no Periacuteodo Arcaico as eacutepicas ilustram as grandes guerras e os magistrais

combates dos heroacuteis no Periacuteodo Claacutessico tanto poetas quanto filoacutesofos conforme indica

Grimal (2002) centralizam suas discussotildees no ser humano Este seraacute o protagonista do

traacutegico pois deparando-se com o conflito as armas e o vigor fiacutesico natildeo mais podem fazecirc-lo

vencedor como ocorria nas eacutepicas Ao contraacuterio toda a sua accedilatildeo reverte-se para si mesmo e

levando-o ao traacutegico Isso veremos bem no proacuteximo capiacutetulo atraveacutes do relato de

Agamecircmnon no Canto XI da Odisseia em que se percebe que toda a sua nobreza e heroiacutesmo

relatados na Iliacuteada natildeo o impediu de ter uma morte traacutegica e indigna

Em A trageacutedia Grega (2008) Jacqueline de Romilly considera que o mito se

introduz na trageacutedia proporcionando-lhe sentido Assim podemos concluir que o traacutegico alia-

se ao mito e natildeo agrave estrutura formal da trageacutedia e ainda mais que o traacutegico eacute que daacute sentido a

trageacutedia grega Vejamos como ela considera a importacircncia do traacutegico dentro do panorama da

trageacutedia claacutessica

82

No conjunto a trageacutedia grega adquire assim mais uma ressonacircncia

particular por ter conservado um contato constante com as realidades

colectivas da vida poliacutetica tal como adquire uma forccedila mais rude por ter

conservado o contacto com os mitos originais mas nem num caso nem no

outro se confunde com a mateacuteria que lhe eacute fornecida assim O seu

verdadeiro alcance vem da interpretaccedilatildeo humana que daacute dos males evocados

E soacute esta interpretaccedilatildeo define verdadeiramente o traacutegico (ROMILLY 2008

p 168)

Por isso eacute que o traacutegico aleacutem de natildeo se relacionar tambeacutem natildeo deve ser

confundido com o melodrama moderno Mas para que essa proximidade natildeo ocorra e que

crimes como os de Medeacuteia Clitemnestra e Eacutedipo por exemplo natildeo sejam melodramas deve

haver o que Romilly (2008) chama de ―luz traacutegica Esta fundamentada na asup1namacrgkh

(necessidade) ou seja nas ―causas que ultrapassem o caso individual e que os tornem

necessaacuterios em nome das circuntacircncias que se impotildee aos homens Tanto que essas situaccedilotildees

traacutegicas poreacutem necessaacuterias ―ao mesmo tempo em que inspiram piedade pelas viacutetimas

inspiram tambeacutem piedade por eles piedade pelo homem (Ibidem p 168-169) E a accedilatildeo

dessas forccedilas sobrehumanas que impulsionam o homem pela necessidade satildeo indicadas pelo

proacuteprio coro segundo Romilly (2008)

Este sentimento de piedade Odisseu sentiraacute ao deparar-se com seus distintos

companheiros no Hades e ouvir o lamuacuterio pelo final traacutegico que a vida lhes reservou Isto

ocorre ateacute no caso de Aacutejax que mesmo sem falar ignorando a presenccedila de Odisseu

demonstra seu rancor por aquele que julga culpado de seu mal No caso de Agamecircmnon

segundo Romilly (2008) eacute a accedilatildeo do daacuteimon daimacrmwn 72 enquanto para Aacutejax eacute a accedilatildeo do

destino Teriacuteamos em suma duas causalidades uma que eacute regida pela forccedila superior e outra

pela vontade humana e que segundo a autora ―jaacute presente em Homero esta dupla

causalidade existe para sempre na trageacutedia (Ibidem p 172) ateacute porque no mundo grego em

geral elas coexistiam sem haver contradiccedilotildees

A autora por mais que natildeo acredite haver vontade nas trageacutedias considera que haacute

algum comprometimento humano Pois certo eacute que tudo ocorre pela vontade divina mas

tambeacutem o homem toma para si a responsabilidade no momento em que adere a accedilatildeo Natildeo haacute

renuacutencia entatildeo o sujeito traacutegico compromete-se Isto faz Romilly (2008) afirmar que ―o

divino e o humano combinam-se sobrepotildee-se A trageacutedia implica necessariamente a accedilatildeo e

seu autor sempre tenta agir bem ou mal Mas esta accedilatildeo traz-lhe graves consequecircncias Por

72

O daimacrmwn representa o divino sua vontade a sorte dividida pelo deus por isso o radical dai de daimacromai que eacute dividir partilhar

83

isso Romilly defende que haacute sempre uma espeacutecia de inocecircncia esta funcionando como

sinocircnimo de heroiacutesmo Vejamos

Que sofram uma sorte querida pelos deuses que paguem pelos erros

dos antepassados ou que paguem por sua proacutepria imprudecircncia haacute sempre

neles uma parte de inocecircncia E mesmo quando nos satildeo apresentados como

culpados mesmo quando suas accedilotildees os arrastam satildeo-no porque o erro eacute o

lote do homem ou porque correspondem a situaccedilotildees que satildeo igualmente o

lote do homem (ROMILLY 2008 p 175)

Esse heroiacutesmo imanente e ao mesmo tempo indissociaacutevel do heroacutei traacutegico faz

com que seja conservada a sua grandeza tendo triunfo mesmo na queda Isto eacute o personagem

traacutegico mesmo vendo mudar a sua figura de heroacutei eacutepico para a de heroacutei traacutegico ainda

manteacutem certa expressatildeo de inocecircncia de heroiacutesmo que provoca a simpatia e justifica o surgir

da piedade Como poderemos ver no momento de nossa anaacutelise Odisseu sente piedade pelos

seus companheiros ao reencontraacute-los no Hades por constatar o destino lamuriado de cada um

E mesmo apoacutes ouvir os relatos traacutegicos dos guerreiros manteacutem ainda o sentimento de

respeito natildeo se esquecendo da distinccedilatildeo proacutepria que ele mesmo testemenhou um dia

Anatol Rosenfeld em A teoria dos Gecircneros (1985) observa que a definiccedilatildeo e

classificaccedilatildeo dos gecircneros eacute artificial pois ―natildeo existe pureza de gecircneros em sentido absoluto

(ROSENFELD 1985 p 16) Contudo o autor avalia como importante esta sistematizaccedilatildeo

dos gecircneros por definir as diversas categorias literaacuterias E esta artificialidade eacute comprovada

com o fato de natildeo haver gecircnero puro O que haacute para o autor eacute o significado substantivo e

adjetivo dos gecircneros Naquele encontramos a essecircncia estiliacutestica de cada gecircnero eacute o que nos

possibilita definir o gecircnero de um texto pois eacute especiacutefico Por significado adjetivo

entendemos o traccedilo estiliacutestico aquilo que pode ser encontrado em todos os outros gecircneros

Por exemplo o corpus de nossa pesquisa Canto XI da Odisseacuteia tem como significado

substantivo o gecircnero eacutepico e como adjetivo o traccedilo do traacutegico Tal exemplificaccedilatildeo pode ser

feita com muitas outras obras porque ―no fundo poreacutem toda obra literaacuteria de certo gecircnero

conteraacute aleacutem dos traccedilos estiliacutesticos mais adequados ao gecircnero em questatildeo tambeacutem traccedilos

estiliacutesticos mais tiacutepicos dos outros gecircneros (Ibidem p 19)

Todas essas ponderaccedilotildees de Rosenfeld (1985) a respeito da teoria dos gecircneros e

de seus significados adjetivo e substantivo contribuem para o nosso trabalho em alguns

pontos Elas creditam nossa pesquisa em analisar a presenccedila do traacutegico numa epopeacuteia

homeacuterica Tais consideraccedilotildees aleacutem de reforccedilar que natildeo haacute gecircnero puro (e que talvez nunca

tenha existido) permite-nos demonstrar que essa pureza nem mesmo na Antiguidade Claacutessica

84

existiu apesar de muitos verem esse periacuteodo como sinocircnimo de uma produccedilatildeo literaacuteria

regrada de estrutura fechada A anaacutelise do nosso trabalho abre perspectivas para entendermos

que as inovaccedilotildees estiliacutesticas as influecircncias e a interpenetraccedilatildeo de gecircneros satildeo procedimentos

realizados desde a Antiguidade e natildeo como uma singularidade moderna No final das

avaliaccedilotildees como diz o proacuteprio Rosenfeld (1985) ser puro ou natildeo natildeo define a qualidade de

um trabalho

Apoacutes discorrer sobre o nascimento da trageacutedia Junito Brandatildeo em Teatro Grego

(2009) fala-nos a respeito de outro elemento importante para a compreensatildeo do traacutegico

uAgravebrij73 e aatildeth74

A primeira ocorre quando o heroacutei ultrapassa o meacutetron a medida

cometendo entatildeo a uAgravebrij A segunda eacute o resultado da hyacutebris pois diante desta soacute resta ao

heroacutei ser punido pelos deuses que lhe lanccedilam a ateacute Tomado pela uAgravebrij e aatildeth todo e

qualquer ato que o heroacutei realizar se voltaraacute contra ele Para o autor o traacutegico se enquadra com

os seguintes envolvimentos apoacutes a ultrapassagem do meacutetron hyacutebrisrarr neacutemesis (nemacrmesij-

ciuacuteme divino)rarr ateacuterarr Moira (Moiordfra- destino cego puniccedilatildeo divina) Por esse processo ele

afirma que no sentido religioso a trageacutedia grega suplica contra a desmedida

No Canto XI da Odisseacuteia avaliaremos a presenccedila desses elementos da trageacutedia

(uAgravebrij aatildeth nemacrmesij Moiordfra) Observaremos atraveacutes do destino dos heroacuteis mais

precisamente de Agamecircmnon e de Aacutejax a influecircncia destas forccedilas sobre-humanas

Junito Brandatildeo faz uma distinccedilatildeo importante entre conflito traacutegico fechado e uma

situaccedilatildeo traacutegica A primeira implica um final desditoso eacute a accedilatildeo do destino traacutegico como

vemos em Eacutedipo Rei e em Antiacutegona Jaacute no segundo o final natildeo eacute desditoso Parte-se do

infortuacutenio para a fortuna pois o que eacute traacutegica eacute a situaccedilatildeo vivida natildeo o seu fim como o

exemplo lido em Alceste Porque ―() o traacutegico pode natildeo estar no fecho mas no corpo da

trageacutedia Chamamos por isso mesmo trageacutedia a peccedila cujo conteuacutedo eacute traacutegico e natildeo

necessariaamente o fecho (Ibidem p 15) Esta diferenccedila eacute importante para a nossa anaacutelise

porque observaremos uma situaccedilatildeo traacutegica jaacute que na Odisseacuteia natildeo haacute espaccedilo para se falar

em destino traacutegico No Canto XI podemos observar tanto uma ―situaccedilatildeo traacutegica como por

exemplo a vivida por Odisseu como tambeacutem um ―conflito traacutegico fechado o que pode ser

73

Em grego uAgravebrij indica a accedilatildeo de insolecircncia violecircncia soberba excesso ou seja uma accedilatildeo fruto de uma

desmedida 74

Em grego aatildeth significa um infortuacutenio segundo o Bailly (2000) eacute um flagelo enviado pelos deuses como a

puniccedilatildeo por algum fato conhecida tambeacutem como uma cegueira enviada pelos deuses

85

visto por exemplo atraveacutes do relato de Agamecircmnon e da visualizaccedilatildeo de Aacutejax e seu eterno

sentimento de desonra

Albin Lesky em A trageacutedia Grega (2006) alerta-nos logo ao iniacutecio de que natildeo

tentaraacute encontrar uma foacutermula para o traacutegico Entre outras coisas sua obra ajuda-nos a tentar

compreender se o traacutegico estaacute unicamente relacionado agrave trageacutedia ou se como acreditamos a

outros meios literaacuterios Tendo em vista que ―() jaacute se encontram os germes em que se prepara

a primeira e ao mesmo tempo a mais perfeita objetivaccedilatildeo da visatildeo do mundo no drama do

seacuteculo V (LESKY 2006 p 23) Inclusive a partir dos novos estudos feitos da Iliacuteada e da

Odisseacuteia o autor informa-nos que ―suscita-se com crescente vivacidade a questatildeo relativa aos

germes do traacutegico nas duas epopeacuteias (Ibidem) Eacute por isso que Karl Jaspers citado por Lesky

(2006) refere-se a Homero como a mais antiga manifestaccedilatildeo do traacutegico Tal posicionamento

respalda nossa pesquisa

Na comprovaccedilatildeo dessa existecircncia do traacutegico jaacute nas epopeacuteias homeacutericas Lesky

(2006) aponta-nos alguns fatores para esse entendimento Assim em Homero jaacute vemos que

os heroacuteis apesar de na maioria das vezes serem exaltados podem ter um destino venturoso

ou desventuroso a depender dos desiacutegnios divinos Como exemplo ele cita o Canto I da

Iliacuteada mas noacutes exemplificaremos pelo Canto XI da Odisseacuteia pois neste vemos a desventura

narrada por exemplo por Aquiles dizendo preferir ser um trabalhador do campo a reinar

sobre os mortos Eacute narrada tambeacutem a desventura de Agamecircmnon que pelo histoacuterico da

famiacutelia Atrida e por ter sacrificado sua filha seraacute penalizado pelo proacuteprio cocircnjuge Como

destino venturoso podemos citar o do proacuteprio Odisseu que cumpre uma das suas mais

difiacuteceis missotildees que eacute descer ateacute a entrada do Hades e depois voltar tendo o direito de poder

continuar em sua jornada

Aleacutem dessa mobilidade humana entre a ventura e a desventura Lesky (2006) cita

tambeacutem que vemos em Homero o encadeamento das accedilotildees e de tudo o que as envolvem Haacute

tambeacutem a centralidade do tempo e da accedilatildeo ocorrendo em alguns momentos a

presentificaccedilatildeo de algumas narraccedilotildees como se elas ocorressem naquele instante mesmo com

narraccedilotildees em flah-back Para noacutes vale destacar que estes elementos tambeacutem podem ser

verificados na Odisseacuteia em que as accedilotildees assim como na Iliacuteada satildeo encadeadas havendo

para cada uma delas um resultado que leva o personagem ao seu objetivo No Canto XI por

exemplo o cumprimento do ritual (nemacrkuia) por Odisseu o leva para casa Vecirc-se tambeacutem

neste canto uma narraccedilatildeo bastante centralizada no tempo em que os fatos ocorrem e de tudo

86

que estaacute em volta De modo que ateacute as narraccedilotildees feitas por Odisseu aos Feaacutecios de tudo que

passara aparentam estar ocorrendo naquele mesmo instante

Assim segundo o autor como natildeo eacute faacutecil descrever o processo de evoluccedilatildeo do

traacutegico tambeacutem natildeo eacute de entendecirc-lo no contexto claacutessico por natildeo ter sido legada uma teoria

pelos gregos Mesmo diante da complexidade expressa ele faz alguns comentaacuterios sobre o

traacutegico conforme Aristoacuteteles Para este o traacutegico possui o sentido de algo solene desmedido

mas depois passou a indicar o terriacutevel estarrecedor o bombaacutestico perdendo completamente o

sentido da induccedilatildeo e da necessidade Lesky (2006) considera ainda que para haver o

sentimento traacutegico ―o caso deve interessar-nos afetar-nos comover-nos Quando nos

sentimos atingidos nas profundas camadas de nosso ser eacute que experimentamos o traacutegico

(Ibidem p 33) Aleacutem disso o imerecimento tambeacutem eacute fundamental para que alcancemos a

sensaccedilatildeo traacutegica pois o imerecido faz-nos sentir compaixatildeo Jaacute o sujeito para se identificar

como traacutegico deve ter consciecircncia conhecimento do seu padecer No Canto XI da Odisseacuteia

poderemos verificar alguns desses elementos como a desmedida o despertar da comoccedilatildeo a

compaixatildeo o imerecido e toda uma vivecircncia do traacutegico mesmo que incipiente

Questionando se o traacutegico natildeo teria seu significado estabelecido na Poeacutetica Lesky

diz acreditar que na catarse estaria a essecircncia do traacutegico Por tudo o que foi referido

consideramos que Homero deu os passos iniciais das trageacutedias que estavam por vir e com

isso tambeacutem entendemos o porquecirc de ele jaacute ter sido considerado o pai da trageacutedia Natildeo

entraremos nessa discussatildeo mas concordamos com Lesky de que Homero eacute ―um preluacutedio agrave

objetivaccedilatildeo do traacutegico na obra de arte (LESKY 2006 p 25)

Sandra Luna em Arqueologia da Accedilatildeo Traacutegica (2005) realiza importantes

explicaccedilotildees sobre o traacutegico que seratildeo relevantes para a nossa pesquisa Depois de expor os

indiacutecios antropoloacutegicos e literaacuterios sobre a existecircncia do traacutegico antes da trageacutedia a autora

afirma que Homero pelas epopeacuteias jaacute nos apresentava o traacutegico apesar de este natildeo ser seu

objetivo Explica ainda que essa veiculaccedilatildeo do traacutegico com Homero deve ser feita por haver

algumas discussotildees a esse respeito Aleacutem do mais diz ser inegaacutevel a presenccedila dos momentos

de tragicidade verificadas ao longo de suas epopeacuteias Para tanto ela cita o Canto IX da

Odisseacuteia e ressalta que a morte dos companheiros de Odisseu alerta-nos sobre o destino e

sobre a fragilidade humana Pois ―() a vida gloriosa do heroacutei eacutepico projeta-se

necessariamente sobre o fundo sombrio das desventuras () (LUNA 2005 p 30)

Ao longo de nossa anaacutelise verificaremos essa tragicidade homeacuterica reforccedilada

pelos desiacutegnios divinos pela accedilatildeo do destino e da fragilidade humana pois o heroacutei um dia iraacute

deparar-se com sua condiccedilatildeo humana portanto com a fraqueza e a instabilidade Destino esse

87

que tanto conduz Odisseu agrave ventura em seu retorno ao lar como tambeacutem fez sua matildee

Anticleacuteia padecer de saudades do filho de quem ela natildeo mais tinha notiacutecias Esse destino

infortunado tambeacutem natildeo permitiu que Agamecircmnon morresse na guerra Desta forma tendo jaacute

retornado pensa estar protegido em seu palaacutecio mas eacute surpreendido pela morte traiccediloeira Por

isso Luna afirma-nos

Vale a pena refletir mais pausadamente sobre a recorrecircncia dos

elementos traacutegicos nas epopeacuteias gregas atentando para os episoacutedios que

reiteradamente fazem ecoar a condiccedilatildeo de instabilidade da vida humana Satildeo

inuacutemeras as incidecircncias aleacutem daquelas implicadas nas duas centenas de

mortes referenciadas na Iliacuteada (Ibidem p 31)

Sandra Luna natildeo considera Homero como pai da trageacutedia com isso podemos

tambeacutem concordar todavia consideramos que ele foi o responsaacutevel pela fundamentaccedilatildeo

literaacuteria do traacutegico A autora afirma tambeacutem que Homero natildeo alimenta o traacutegico dispersando-

o por meio de banquetes e mudanccedilas de cena ele apenas o deixa entrever Tal constataccedilatildeo eacute

verdadeira assim como eacute verossiacutemil que Homero natildeo o alimente senatildeo teria feito uma eacutepica

sem coerecircncia o que natildeo ocorre pois a presenccedila do traacutegico natildeo desnorteia o teor eacutepico ao

contraacuterio sua presenccedila o enriquece Mas tambeacutem natildeo podemos negar que as mortes narradas

por Homero satildeo carregadas de envolvimentos externos que aumentam a tragicidade ele natildeo

nos poupa dos detalhes traacutegicos Basta-nos lembrar das narraccedilotildees que Odisseu ouve de como

ocorreram as mortes de sua matildee de Aquiles e de Agamecircmnon e ao final de cada relato

todos se derramavam em laacutegrimas

Luna (2005) informa-nos ainda que o conflito entre mito e razatildeo seraacute

―determinante para o surgimento do que estamos chamando de espiacuterito traacutegicolsquo na trageacutedia

manifestando-se esse espiacuterito na consciecircncia da morte natildeo como parte da vida mas como fim

da vida portanto como fenocircmeno aterrorizante e lutuoso (LUNA 2005 p 169) No

proacuteximo capiacutetulo analisaremos a presenccedila desse ―espiacuterito traacutegico no Canto XI da Odisseacuteia

em que o heroacutei protagonista deparando-se com a morte de amigos e familiares vive a

assustadora finitude da vida aleacutem de sua circunstacircncia imerecida Outro fator reitera a nossa

fundamentaccedilatildeo em estudar o traacutegico na Odisseacuteia pois a autora indica-nos a existecircncia de

estudos sobre o conflito entre muordfqoj e lomacrgoj (mito e razatildeo) na Odisseacuteia

Ao falar sobre sua tese de racionalizaccedilatildeo do traacutegico Luna aponta-nos a presenccedila

de alguma responsabilidade humana nem que seja por suas fraquezas que ―() contribuem

para acionar a maacutequina traacutegica (Ibidem p 171) Pois natildeo soacute os deuses os encaminham para

o traacutegico como eles mesmos podem dirigir-se a ele Talvez seja por essa possibilidade de

88

escolha que Agamecircmon no Hades alerta Odisseu para natildeo confiar em sua esposa Peneacutelope

pois isso poderia levaacute-lo a uma indigna morte assim como havia ocorrido com ele proacuteprio

E apoacutes considerar que a catarse eacute o objetivo maior da trageacutedia a autora diz-nos

que o caminho do heroacutei eacutepico deve servir de modelo Ele eacute um exemplo de honra e vigor a ser

seguido Ao contraacuterio do heroacutei traacutegico que muitas vezes sendo ateacute o mesmo que jaacute figurou

distinto nas eacutepicas deve ter sua trajetoacuteria como modelo do que natildeo deve ser seguido e sim

do que devemos evitar Tal afirmaccedilatildeo eacute bastante vaacutelida para nossa anaacutelise do Canto XI pois

neste temos claramente perfis apresentados de heroacuteis eacutepicos e traacutegicos Deste modo

Odisseu passando pela catarse vive um processo forte de aprendizagem do que natildeo deve

seguir atraveacutes do traacutegico relato de Aquiles e Agamecircmnon e do fim de Aacutejax que pode

contemplar Assim enquanto Odisseu nos representa o que devemos seguir como modelo os

relatos do Pelida e do Atrida somada agrave lamentaacutevel condiccedilatildeo de Aacutejax ilustra-nos a condiccedilatildeo

de um heroacutei traacutegico cujo exemplo devemos evitar

Ao longo desse capiacutetulo desenvolvemos trecircs toacutepicos que consideramos

importantes para uma melhor apreensatildeo do traacutegico No primeiro discorremos sobre as

relaccedilotildees e especificidades do traacutegico e da trageacutedia As diferenccedilas estabelecidas permitem-nos

compreender a pertinecircncia em estudar uma configuraccedilatildeo do traacutegico em uma epopeacuteia No

segundo toacutepico destacamos as teorizaccedilotildees de Aristoacuteteles sobre as trageacutedias gregas e a partir

delas tentamos entender o que o filoacutesofo comprende do traacutegico e dos elementos que

circundam em sua realizaccedilatildeo No terceiro foram expostas algumas explanaccedilotildees teoacutericas do

traacutegico feitas por autores diversos De modo geral toda a abordagem realizada contribuiu

para a compreensatildeo de alguns pontos que seratildeo importantes para o nosso proacuteximo capiacutetulo no

qual nos aprofundaremos na anaacutelise da tragicidade verificada no Canto XI da Odisseacuteia

89

3 TRAGICIDADE NO CANTO XI DA ODISSEacuteIA ANTICLEacuteIA AQUILES

AGAMEcircMNON AacuteJAX

31 Odisseacuteia momentos de tragicidade

Neste terceiro capiacutetulo propomos realizar a anaacutelise da tragicidade identificada ao

longo do deacutecimo primeiro livro da Odisseacuteia Para tanto dedicamos este primeiro subtoacutepico agrave

ilustraccedilatildeo de que a tragicidade a ser analisada no Canto XI natildeo eacute uma exceccedilatildeo dentro da obra

tanto que em outros cantos podem ser vistas tambeacutem situaccedilotildees com teor traacutegico E apoacutes o

desenvolvimento dos aspectos citados dedicaremos um segundo toacutepico ―Tragicidade no

Canto XI da Odisseacuteia Anticleacuteia Aquiles Agamecircmnon Aacutejax para a anaacutelise especiacutefica do

traacutegico no Canto XI principalmente a partir das circunstacircncias em que Odisseu encontra-se

com a sua matildee Anticleacuteia e seus antigos companheiros em Troacuteia Agamecircmnon Aquiles e

Aacutejax Como pode ser percebido adiantamos que o fator de parentesco e os viacutenculos de

amizade satildeo intensificadores da accedilatildeo traacutegica ocasiatildeo que seraacute analisada no proacuteximo toacutepico

Como abordamos nos dois capiacutetulos anteriores Homero aleacutem de ter nos deixado

as duas grandes epopeacuteias do Ocidente Iliacuteada e Odisseacuteia legou-nos tambeacutem as primeiras

representaccedilotildees literaacuterias do traacutegico Representaccedilotildees estas que por volta do seacuteculo V e IV aC

seratildeo o cerne das trageacutedias elaboradas por tragedioacutegrafos como Eacutesquilo Soacutefocles e Euriacutepedes

Estes satildeo bastante influenciados pelas obras homeacutericas ao ponto de desenvolverem em suas

obras situaccedilotildees jaacute prenunciadas em Homero a exemplo da Oresteacuteia de Eacutesquio e Aacutejax de

Soacutefocles

Considerado por alguns como o ―pai da trageacutedia Homero natildeo nos poupou

representaccedilotildees traacutegicas Por isso apesar de elegermos o Canto XI da Odisseacuteia como o livro

em que haacute maior intensidade nessas representaccedilotildees destacamos tambeacutem que no transcorrer

da obra outros momentos de grande teor traacutegico podem ser contemplados Com isso

objetivamos respaldar ainda mais a nossa pesquisa mostrando que a tragicidade pode ser

encontrada na Odisseacuteia em momentos distintos natildeo estando restrita a um uacutenico canto

Lesky (2006) ressalta-nos que Homero legou-nos germes do traacutegico em suas

epopeacuteias Em congruecircncia com esta afirmaccedilatildeo Sandra Luna (2005) diz ser possiacutevel a

identificaccedilatildeo de momentos traacutegicos na literatura homeacuterica Tais assertivas jaacute discutidas no

segundo capiacutetulo acabam sendo motivadoras deste nosso percurso ao longo dos versos da

90

Odisseacuteia em busca de momentos traacutegicos ou ao menos de episoacutedios que nos vislumbrem

tragicidade Sabemos que para a ocorrecircncia de uma vivecircncia do traacutegico satildeo importantes

elementos como o imerecido a ideacuteia de culpa75

pela ultrapassagem do meacutetron a compaixatildeo o

temor pois todas essas circunstacircncias propiciam o despertar da comoccedilatildeo Assim logo ao

iniacutecio da epopeacuteia no Canto I deparamo-nos com a representaccedilatildeo de um sofrimento que nos eacute

apresentado como imerecido Tal situaccedilatildeo ocorre quando Telecircmaco entre os versos 214-220

responde agrave deusa Atena transfigurada como Mentes sobre sua ascendecircncia jaacute que esta havia

perguntado se ele seria filho de Odisseu e ele responde

215 κήηεξ κέλ ηέ κέ θεζη ηνῦ ἔκκελαη αὐηὰξ ἐγώ γε

νὐθ νἶδ᾽ νὐ γάξ πώ ηηο ἑὸλ γόλνλ αὐηὸο ἀλέγλσ

ὡο δὴ ἐγώ γ᾽ ὄθεινλ κάθαξόο λύ ηεπ ἔκκελαη πἱὸο

ἀλέξνο ὃλ θηεάηεζζηλ ἑνῖο ἔπη γῆξαο ἔηεηκε

λῦλ δ᾽ ὃο ἀπνηκόηαηνο γέλεην ζλεηλ ἀλζξώπσλ

220 ηνῦ κ᾽ ἔθ θαζη γελέζζαη ἐπεὶ ζύ κε ηνῦη᾽ ἐξεείλεηο76

((Odisseacuteia I 215-220)

Minha matildee diz que fui gerado por ele mas

pelo menos eu natildeo o sei na verdade natildeo

existe algueacutem que saiba de sua sproacutepria origem

Como eu desejei ser filho de algueacutem abenccediloado

de um varatildeo que vegasse agrave velhice com suas riquezas

Agora do mais infeliz dos homens mortais

eu descendo digo-te jaacute que tu perguntas

Como podemos perceber Telecircmaco sente anguacutestia e sofre pelo desaparecimento

do pai de quem ele natildeo se lembra da fisionomia tendo em vista que era muito pequeno

quando haacute vinte anos Odisseu partira para Troacuteia A passagem citada provoca-nos o

sentimento de piedade o que nos incita a sensaccedilatildeo do traacutegico Ou seja natildeo queremos dizer

que Telecircmaco seja um personagem traacutegico e sim que possui um estado permeado por

elementos importantes para a efetivaccedilatildeo do traacutegico como o imerecimento e o suscitar da

75

O termo referido natildeo se relaciona a ideacuteia de culpa cristatilde ligada ao pecado do indiviacuteduo a algo noscivo do qual

os cristatildeos devem distanciar-se para que natildeo sejam punidos Ao utilizarmos a palavra ―culpa remetemo-nos ao

sentimento de responsabilizaccedilatildeo projetada no homem que foi resultado de accedilotildees do divino do destino de sua

desmedida ou seja resultado de uma construccedilatildeo coletiva E essa responsabilizaccedilatildeo a que nos referimos natildeo pode

ser compreendida pelo o que concebemos de ―culpa cristatilde jaacute que esta estaacute envolta com a noccedilatildeo de indiviacuteduo

culpado e que portanto deve ser punido pelos seus proacuteprios atos No processo de realizaccedilatildeo do traacutegico podemos

encontrar a culpa a responsabilizaccedilatildeo do homem por seus atos fazendo-os chegarem ao destino ou a momentos

traacutegicos Contudo sabemos que na eacutepica e nas trageacutedias gregas a accedilatildeo divina e todo um construto coletivo

impulsionam-os ao erro daiacute o distanciamento com o sentimento de culpa apregoada pelo cristianismo 76

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D13Acard3

D178 retirado agraves 2035h em 20 de dezembro de 2010

91

piedade Mesmo porque diz-nos Lesky (2006) que o sentimento traacutegico ocorre quando algo

nos afeta nos comove fazendo com que nos sintamos atingidos ―nas profundas camadas de

nosso ser77

(LESKY 2006 p33) Contudo sentimo-nos ainda mais aflitos ao sabermos que

Telecircmaco natildeo sofre apenas por natildeo se recordar do pai e saber de seu estado se vivo ou morto

mas tambeacutem por ver toda a sua heranccedila ser consumida dia a dia pelos pretendentes que

cortejam sua matildee e destroem seus bens Vejamos o que ele diz a Atena sobre sua afliccedilatildeo

uacutenica heranccedila que ele considera que o pai deixou

νὐδέ ηη θεῖλνλ ὀδπξόκελνο78

ζηελαρίδσ

νἶνλ ἐπεί λύ κνη ἄιια ζενὶ θαθὰ θήδε᾽ ἔηεπμαλ

()

ηξύρνπζη δὲ νἶθνλ

ἡ δ᾽ νὔη᾽ ἀξλεῖηαη ζηπγεξὸλ γάκνλ νὔηε ηειεπηὴλ

250 πνηῆζαη δύλαηαη ηνὶ δὲ θζηλύζνπζηλ ἔδνληεο

νἶθνλ ἐκόλ ηάρα δή κε δηαξξαίζνπζη θαὶ αὐηόλ79

(Odisseacuteia I 243-244 248-251)

Natildeo eacute soacute por este algueacutem que eu lamento mas

nesse instante sofro por mim com os males que os deuses ocasionam-me

()

A matildeo e o palaacutecio eles me consomem e

ela nem recusa o casamento abominaacutevel nem aceitar

eacute capaz de fazer assim eles acabam consumindo

meu palaacutecio e rapidamente destruiratildeo a mim mesmo

Diante de tais lamuacuterios como sabemos a narrativa prossegue e Atena aconselha-o

a partir em busca de notiacutecias do pai Nessa citaccedilatildeo percebemos que Telecircmaco natildeo se sente

apenas angustiado por sofrer pelo pai o sentimento que o toma eacute ainda mais traacutegico a dor

imerecida A partida do pai mesmo a contragosto para a Guerra de Troacuteia provoca em

Telecircmaco a anguacutestia espera do pai que ele natildeo conheceu efetivamente A guerra se encerra

mas Odisseu natildeo retorna e nenhuma notiacutecia eacute trazida sobre o paradeiro do rei de Iacutetaca soacute

77

Apesar de servir para nossa anaacutelise destacamos que a afirmaccedilatildeo de Lesky (2006) pode ser relativizada tendo

em vista que ele define o sentimento traacutegico a partir de seu caraacuteter metafiacutesico relacionado agrave recepccedilatildeo dos

espectadoresleitores 78

A utilizaccedilatildeo do particiacutepio presente ὀδσρόμενος eacute apropiada ao contexto por indicar a simultaneidade da accedilatildeo

expressa pelo verbo Assim ὀδσρόμενος indica-nos que a lamentaccedilatildeo de Telecircmaco natildeo estaacute acabada

(perfectum) nem eacute pontual (aoristo) e sim inacabada por isso Homero coerentemente utilizou um tema do

infectum 79

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D13Acard3

D230 retirado agraves 2041h em 20 de dezembro de 2010

92

comentaacuterios incertos Sua matildee Peneacutelope comeccedila entatildeo a ser cortejada por muitos homens

de Iacutetaca antigos conterracircneos de Odisseu ou de cidades vizinhas Para adiar o enlace com um

dos pretendentes ela tece pela manhatilde uma mortalha para Laertes e agrave noite quando todos

dormem destece num trabalho infindo Nesse transcorrer de tempo os servos e os bens

deixados pelo pai satildeo consumidos pelos pretendentes jaacute que estes vatildeo ao palaacutecio todos os

dias para banquetes e festejos enquanto esperam a decisatildeo da rainha Desse modo como se jaacute

natildeo bastasse natildeo ter vivido com o pai e a incerteza se ele se encontrava vivo ou morto

Telecircmaco sofre pelos bens que via sendo diluiacutedos a cada dia que se passava Desde crianccedila

sem ter cometido erro algum imerecidamente sofria males sem razatildeo E eacute esse sentimento

diante de uma dor imerecida que nos faz sentir esup1lemacroj a piedade ao mesmo tempo em que

nos faz temer passar por tal sofrimento o fomacrboj Assim sentindo compaixatildeo e temor

aproximamo-nos de um processo cataacutertico e entatildeo experimentamos o traacutegico Lembremos do

que nos diz Aristoacuteteles sobre o sentimento provocado pela imagem traacutegica

ἔλεος μὲν περὶ τὸν ἀνάξιον φόβος δὲ περὶ τὸν ὅμοιον80

(Poeacutetica XIII 1453a 5-6)

() a piedade sobre o imerecido o temor sobre o semelhante

O imerecido sentimento que acentua nossa vivecircncia do traacutegico como jaacute vimos eacute

tambeacutem representado na vida de Odisseu o polutropoj81 que em suas muitas voltas e

maneiras protagoniza no decorrer dos cantos da Odisseacuteia cenas em que sofre com seus

muitos trabalhos Natildeo eacute pois sem propoacutesito que Atena logo no Canto I reclama a Zeus os

tantos sofrimentos de Odisseu por considerar que satildeo imerecidos diferentemente dos de

Egisto que satildeo bem cabidos agraves suas accedilotildees Por isso reclama a deusa

ἱέκελνο θαὶ θαπλὸλ ἀπνζξῴζθνληα λνῆζαη

ἧο γαίεο ζαλέεηλ ἱκείξεηαη νὐδέ λπ ζνί πεξ

80

Texto disponiacutevel em httpwwwhs-

augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante04Aristotelesari_poi2html retirado agraves 2025hs de 17 de julho

de 2010 81

Esse epiacuteteto foi explicado por noacutes anteriormente no primeiro capiacutetulo desse trabalho

93

60 ἐληξέπεηαη θίινλ ἦηνξ ιύκπηε νὔ λύ η᾽ δπζζεὺο

Ἀξγείσλ παξὰ λεπζὶ ραξίδεην ἱεξὰ ῥέδσλ

Τξνίῃ ἐλ εὐξείῃ ηί λύ νἱ ηόζνλ ὠδύζαν Ζεῦ82

(Odisseacuteia I 58-62)

Contudo Odisseu fica colocando-se a pensar sobre a fumaccedila

que se solta da sua terra que anseia ou ateacute mesmo agora morrer

Oliacutempico teu coraccedilatildeo natildeo se move Odisseu natildeo era querido

Quando ao lado das naves dos Argivos agradava-te fazendo sacrifiacutecios

Na ampla Troacuteia Agora o odeias tanto por que Zeus

A deusa questiona natildeo o sofrer de um homem mas o incompreensiacutevel fato de ver

um valoroso guerreiro um heroacutei que sempre respeitou e sacrificou pelos deuses sofrer

imerecidamente Neste caso o incompreensiacutevel soma-se ao imerecido para intensificar o

traacutegico pois aquele que cumpre com seus deveres natildeo pode sofrer sem causa o que nos

sugere a sensaccedilatildeo de injusticcedila de um destino indevido Questionado Zeus responde natildeo ter

ressentimento para com Odisseu ateacute mesmo porque ele sempre foi distinguido entre os

demais e sempre ofertou aos eternos Todavia uma uAacutebrij cometida para com Polifemo o

filho de Posiacutedon fez este desejar-lhe todo mal explica Zeus

ἀιιὰ Πνζεηδάσλ γαηήνρνο ἀζθειὲο αἰεὶ

Κύθισπνο θερόισηαη83

ὃλ ὀθζαικνῦ ἀιάσζελ

70 ἀληίζενλ Πνιύθεκνλ ὅνπ θξάηνο ἐζηὶ κέγηζηνλ84

(Odisseacuteia I 68-70)

Entretanto Posiacutedon que a terra estremece cultiva para sempre

o oacutedio enfurecido por ele ter tornado cego do olho o Ciclope

O dado agora acrescentado do desagrado cometido por Odisseu a Polifemo e

consequentemente ao seu pai Posiacutedon mostra tambeacutem que os atos iacutempios satildeo

inevitavelmente punidos A desmedida a uAacutebrij cometida eacute traacutegica porque eacute necessaacuteria

sendo portanto inevitaacutevel Um exemplo dessa uAacutebrij inevitaacutevel necessaacuteria encontramos

82

Texto disponiacuteevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D13Acard3

D44 retirado agraves 2039h em 20 de novembro de 2010 83

O uso do perfectum kexolwtai de xolow ndash enfurecer sugere-nos que a accedilatildeo verbal neste caso a raiva de

Posiacutedon eacute perfeita acabada ou seja natildeo indica o processo e sim o resultado de uma accedilatildeo (MURACHO 2007)

Por isso na citaccedilatildeo acima a utilizaccedilatildeo de kexolwtai representa o ―enfurecido deus como resultado da accedilatildeo

de Odisseu ao ter furado o olho do seu filho 84

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D13Acard3

D44 retirado agraves 2040h em 20 de novembro de 2010

94

no Canto IX em que se narra a perda de Odisseu dos seus doze dos mais fortes companheiros

que satildeo comidos pelo Ciclope Polifemo Tal situaccedilatildeo faraacute com que o Laertida e os soacutecios

sobreviventes presenciem cenas horrendas e dolorosas daiacute todos se vecircem impelidos pela

necessidade de agirem contra o Ciclope Para entendermos melhor a explanaccedilatildeo vejamos

uma dessas cenas em que o Polifemo devora seus companheiros

ζὺλ δὲ δύσ κάξςαο ὥο ηε ζθύιαθαο πνηὶ γαίῃ

290 θόπη᾽ ἐθ δ᾽ ἐγθέθαινο ρακάδηο ῥέε δεῦε δὲ γαῖαλ

ηνὺο δὲ δηὰ κειετζηὶ ηακὼλ ὡπιίζζαην δόξπνλ

ἤζζηε δ᾽ ὥο ηε ιέσλ ὀξεζίηξνθνο νὐδ᾽ ἀπέιεηπελ

ἔγθαηά ηε ζάξθαο ηε θαὶ ὀζηέα κπειόεληα

ἡκεῖο δὲ θιαίνληεο ἀλεζρέζνκελ Δηὶ ρεῖξαο

295 ζρέηιηα ἔξγ᾽ ὁξόσληεο ἀκεραλίε δ᾽ ἔρε ζπκόλ85

(Odisseacuteia IX 289-295)

Tendo apreendido dois como a cachorros sobre a terra

os lanccedilou o ceacuterebro de cada um correu ao chatildeo e molhou o solo

O jantar preparou com eles tendo partido seus membros

comia como um leatildeo montanhecircs natildeo deixava sair nada

entranhas carnes e ossos com tutanos

Chorando noacutes erguemos as matildeos para Zeus

enquanto assistiacuteamos aquelas terriacuteveis obras

a impotecircncia possuiacutea nosso acircnimo

Diante do espetaacuteculo horrendo Odisseu e os demais companheiros apavoram-se

pois sabem que seratildeo as proacuteximas viacutetimas Para escapar do fim aparentemente inevitaacutevel

Odisseu com toda a sua astuacutecia o polumhtij86 resolve entatildeo ludibriar o monstro

Primeiro oferece-lhe vinho O monstro aceita e bebe ainda mais por trecircs vezes O Ciclope

pergunta o nome do heroacutei Este percebendo que o vinho jaacute havia alterado a razatildeo do

Polifemo responde Oucurrentij (IX 366) ou seja Ningueacutem O monstro avisa a Odisseu que ele

seraacute o uacuteltimo a ser comido e depois acaba dormindo O heroacutei presencia outro espetaacuteculo

horriacutevel que soacute o impulsiona mais a encontrar uma saiacuteda A asup1namacrgkh a necessidade e o

daimwn um democircnio uma forccedila divina impelem-nos a agir desmedidamente observemos

() θάξπγνο δ᾽ ἐμέζζπην νἶλνο

ςσκνί η᾽ ἀλδξόκενη ὁ δ᾽ ἐξεύγεην νἰλνβαξείσλ

85

Texto disponeacutevel em

dehttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D93Acard

3D281 retirado agraves 2045h em 20 de outubro de 2010 86

O epiacuteteto polumhtij como explicamos no capiacutetulo primeiro evoca e relaciona Odisseu aos deuses Zeus e

Atena e indica o de muita prudecircncia e sagacidade

95

375 θαὶ ηόη᾽ ἐγὼ ηὸλ κνριὸλ ὑπὸ ζπνδνῦ ἤιαζα πνιιῆο

ἧνο ζεξκαίλνηην ()

380 θαὶ ηόη᾽ ἐγὼλ ἆζζνλ θέξνλ ἐθ ππξόο ἀκθὶ δ᾽ ἑηαῖξνη

ἵζηαλη᾽ αὐηὰξ ζάξζνο ἐλέπλεπζελ κέγα δαίκσλ

νἱ κὲλ κνριὸλ ἑιόληεο ἐιάηλνλ ὀμὺλ ἐπ᾽ ἄθξῳ

ὀθζαικῶ ἐλέξεηζαλ ἐγὼ δ᾽ ἐθύπεξζελ ἐξεηζζεὶο

δίλενλ87

(Odisseacuteia IX 373-376 380-384)

() para fora da garganta colocava vinho e

pedaccedilos crus de carne dos humens arrotou embriagado

alguns E eu coloquei a vara embaixo da numerosa cinza

ateacute que queimasse ()

eu o transportava de dentro do fogo os companheiros ficaram

em ambos os lados mas um grande democircnio dotou-nos de coragem

Eles levantaram a vara afiada de madeira de oliveira

e sua ponta empurraram no olho (do Ciclope) eu tendo-me

apoiado por cima fazia (a vara) girar

A asup1namacrgkh e o daimwn impulsionam Odisseu e seus companheiros a decidirem

pela tomada de accedilatildeo independente dos resultados que ela traria pois naquele momento

tinham que fugir do monstro Constrangidos pela necessidade e pelo divino tomados pelo

temor de que aquilo viesse ocorrer com eles assim enfiam o pau de oliveira no olho do

monstro Polifemo cegando o filho de Posiacutedon Como diz-nos Vernant (2008) a accedilatildeo do

homem mesmo natildeo voluntariosa emana da necessidade Eacute o que Romilly (2008) como foi

visto no segundo capiacutetulo nomeia de ―luz traacutegica jaacute que a situaccedilatildeo ocorre ―em nome das

circunstacircncias que se impotildeem aos homens (ROMILLY 2008 p 168) Ainda segundo a

autora isso nos faz sentir piedade natildeo apenas pelas viacutetimas neste caso o Polifemo mas

tambeacutem pelos agentes Odisseu e seus companheiros pois o que sentimos na verdade eacute a

―piedade pelo homem (Ibidem p169) E esse sentimento de piedade somado ao temor que

temos de vivenciar tais fatos propiciam-nos a experiecircncia do traacutegico que pelo que vimos ateacute

entatildeo pode ser conferida em muitos momentos da Odisseacuteia

No Canto IX ainda sabemos que o Ciclope pede ajuda mas quando perguntado

sobre quem teria lhe feito mal ele responde Oucurrentij (IX 366) Ningueacutem Traiacutedo e enganado

pela astuacutecia do heroacutei polumhtij Polifemo natildeo consegue ajuda Odisseu e os demais natildeo

podem sair da caverna trancada por uma imensa pedra que soacute o monstro consegue tirar Mais

87

Texto disponiacutevem em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D93Acard3

D360 Texto retirado agraves 2010h em 15 de novembro de 2010

96

uma vez sua aliada astuacutecia lhe serve e ele resolve que todos devem amarrar-se aos carneiros

pois ao raiar o filho de Posiacutedon retiraraacute a pedra da entrada da caverna para que os carneiros

possam pastar e eles presos aos animais possam escapar Assim eles fazem Ao terem

fugido Odisseu com palavras de jactacircncia ataca o Ciclope Os companheiros amedrontados

com tudo o que viram tentam deter o heroacutei Mas nada o que fazem adianta pois Odisseu

continua desmedidamente a atacar o Ciclope apesar de jaacute estar a salvo

Κύθισς αἴ θέλ ηίο ζε θαηαζλεηλ ἀλζξώπσλ

ὀθζαικνῦ εἴξεηαη88

ἀεηθειίελ ἀιασηύλ

θάζζαη δπζζῆα πηνιηπόξζηνλ ἐμαιαζαη

505 πἱὸλ Λαέξηεσ Ἰζάθῃ ἔλη νἰθί᾽ ἔρνληα89

(Odisseacuteia IX 502- 505)

Ciclope se algum dos homens mortais vier e

perguntar a causaa de tua vergonhosa cegueira do olho

podes dizer que completamente cegou-te Odisseu o saqueador de

cidades]

o filho de Laertes que em Iacutetaca tem morada

Diante do descomedimento do heroacutei e das palavras injuriosas de vaidade e

orgulho o Polifemo implora ao seu pai vinganccedila Pede que Odisseu natildeo mais retorne ao lar

mas se o seu destino natildeo o permitir que ao menos venha a ter dificuldades perdendo os

soacutecios e atraveacutes de navio estrangeiro chegue ao seu lar e laacute venha encontrar tambeacutem muitas

afliccedilotildees

Esse breve relato que fizemos da histoacuteria eacute importante para que possamos entender

como viraacute o castigo de Odisseu por sua atitude desmedida Antes do seu encontro com o

Ciclope eacute verdade ele jaacute havia andado errante mas nada em comparaccedilatildeo com o que ele iraacute

passar tendo agora como seu perseguidor Posiacutedon Depois que Odisseu e os seus soacutecios

partiram de Troacuteia haviam passado apenas pela terra dos Ciacuteconos e Lotoacutefagos Na primeira

cidade satildeo perseguidos por terem-na saqueado Depois partindo para Iacutetaca fortes ventos e

uma corrente os fazem passar nove dias errantes ateacute que chegam ao paiacutes dos Lotoacutefagos Nesta

cidade trecircs companheiros comem as flores de loto e esquecem de querer retornar Odisseu

diante do risco traz de volta os amigos Daiacute aportam no paiacutes dos Ciclopes onde ocorre tudo

88

Omodo subjuntivo exprime a ideacuteia de uma accedilatildeo possiacutevel eventual que pode vir ocorrer no futuro

(MURACHO 2007) por isso Odisseu utilizou-se desse modo em eiAtilderhtai de eAtilderomai- perguntar questionar

Assim ele exprime o fato possiacutevel de algueacutem perguntar por isso traduzimos ―se perguntar na tentativa de

transmitir essa ideacuteia do provaacutevel 89

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D93Acard3

D500 retirado agraves1520h em 2 de novembro de 2010

97

o que anteriormente narramos o Polifemo come doze dos seus companheiros mais fortes

Odisseu e os demais cegam o monstro e partem antes poreacutem o heroacutei exclama palavras

injuriosas A partir de entatildeo eacute que Odisseu amaldiccediloado por Polifemo e perseguido por

Posiacutedon iraacute sofrer errante vagando de paiacutes em paiacutes ateacute chegar a Iacutetaca

Essa contextualizaccedilatildeo faz-se importante para que possamos compreender as

circunstacircncias traacutegicas na vida de Odisseu em contraposiccedilatildeo agraves situaccedilotildees traacutegicas e

principalmente ao destino traacutegico de seus companheiros Tais diferenccedilas entre o destino de

Odisseu e dos seus soacutecios como orienta Aristoacuteteles seratildeo determinadas pelas accedilotildees dos

personagens e natildeo pelos seus caracteres Daiacute a personagem ideal da trageacutedia ser o heroacutei que

tem o caraacuteter intermediaacuterio nem valoroso demais nem maldoso em excesso Nas passagens

acima referidas sobre Odisseu e seus companheiros na terra dos Ciclopes pudemos ver que a

tragicidade atingiu a todos Mas um fator determinante faraacute com que o destino de seus

companheiros seja desventuroso fato este que estaacute relacionado ao que eles faratildeo com as vacas

do Sol no Canto XII Contudo antes que cheguemos laacute sigamos linearmente e do Canto IX

partamos para o X

No Canto X da Odisseacuteia Odisseu e seus companheiros chegam agrave ilha de Eacuteolo

onde satildeo bem recebidos e laacute permanecem por um mecircs ateacute que o heroacutei resolve partir Para

ajudaacute-los Eacuteolo daacute ao Laertida uma sacola de couro com os ventos Deste modo eles partem

Mais uma vez o daimwn a forccedila superior age prejudicando a todos Odisseu dorme e

curiosos os companheiros abrem a sacola espalhando ventos por todos os lados De volta agrave

ilha Eacuteolo recusa-se a um novo auxiacutelio por perceber que um daimwn natildeo desejava vecirc-los

bem indicando que algo de mal eles teriam feito Assim Eacuteolo potildee todos para fora de sua

cidade jaacute que natildeo satildeo homens querido pelos deuses pelo contraacuterio satildeo odiados pelos divinos

(Odisseacuteia X 72-75)

Eacuteolo percebe logo que uma vontade divina ou seja uma accedilatildeo superior ocasionou

o mal agravequeles viajantes fazendo Odisseu adormecer e os seus companheiros serem tomados

pela curiosidade Ferozmente punidos estes personagens despertam nossa comoccedilatildeo por

percebermos que uma vontade superior empurra-os ao erro Como percebemos a situaccedilatildeo

descrita tem os elementos importantes que constituem uma vivecircncia traacutegica o imerecido

injusto o erro (aumlmartia) a accedilatildeo divina (daimwn) enfim Diante desses componentes

traacutegicos fazemos lembrar Rosenfeld ao afirmar que todo gecircnero literaacuterio de alguma forma

conteacutem os ―traccedilos estiliacutesticos mais tiacutepicos dos outros gecircneros (ROSENFELD 1985 p19)

Assim apesar de estarmos analisando uma obra de gecircnero eacutepico percebemos fortes marcas

98

que satildeo mais especificamente caracteriacutesticas da trageacutedia Pela linha de Rosenfeld (1985) a

obra em sua substacircncia possui categorias baacutesicas do gecircnero eacutepico ao passo que tambeacutem traz

o traacutegico como elemento adjetivo visto ser este uma categoria mais especiacutefica do gecircnero

dramaacutetico

Ainda no Canto X temos a narraccedilatildeo de que tendo saiacutedo da ilha de Eacuteolo Odisseu

e seus companheiros vagam por seis dias ateacute chegarem agrave terra dos Lestrigotildees em Lamo

Ancoram o barco e alguns homens que satildeo enviados para conhecerem a cidade deparam-se

com a filha do rei Esta os leva ao palaacutecio local onde um deles eacute logo feito de almoccedilo

deixando os demais apavorados Em fuga alguns ainda satildeo arrebatados e levados para serem

devorados E Odisseu resolve partir imediatamente Atraveacutes dessa narrativa percebemos a

perseguiccedilatildeo incansaacutevel que eles estatildeo sofrendo sem nem se darem conta do que fizeram para

merecerem tamanha hostilidade Nesse percurso de volta para casa a accedilatildeo desmedida que eles

cometeram principalmente contra Polifemo faz com que eles sejam punidos mesmo que

tenham sido impulsionados pela asup1namacrgkh e pelo daimwn mesmo que a accedilatildeo tenha sido

involuntaacuteria e natildeo por falha de caraacuteter Nesses casos em anaacutelise aristotelicamente a accedilatildeo eacute

que os encaminha para a cataacutestrofe como veremos especificamente com os companheiros de

Odisseu no Canto XII

Guiando a nau Odisseu e seus companheiros partem de Lamo e aportam na ilha de

Eeacuteia morada de Circe Odisseu percebe a accedilatildeo do daimwn pois esse natildeo era o destino

imaginado contudo naturalmente alcanccedilam a ilha O Laertida conclui que um dos deuses

havia servido como guia Apoacutes dois dias na embarcaccedilatildeo partem para a cidade e aproximam-

se da casa de Circe onde se viam leotildees e lobos possuiacutedos por feiticcedilo Circe canta e ao vecirc-los

chama-os para entrar oferecendo-lhes bebida e comida Todos aceitam com exceccedilatildeo de

Euriacutecolo Mais uma vez por accedilatildeo inconsequente deles proacuteprios inconscientemente satildeo

levados para o seu fim Vejamos

αὐηὰξ ἐπεὶ δθέλ ηε θαὶ ἔθπηνλ αὐηίθ᾽ ἔπεηηα

ῥάβδῳ πεπιεγπῖα θαηὰ ζπθενῖζηλ ἐέξγλπ

νἱ δὲ ζπλ κὲλ ἔρνλ θεθαιὰο θσλήλ ηε ηξίραο ηε

θαὶ δέκαο αὐηὰξ νοῦς90

ἦλ ἔκπεδνο ὡο ηὸ πάξνο πεξ91

(Odisseacuteia X 237-240)

90

Do grego nooj que significa inteligecircncia consciecircncia dicernimento Os destaques satildeo nossos 91

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D103Acard3

D208 retirado em 20 de outubro de 2010

99

(Circe) deu-lhes e eles tudo beberam entatildeo imediatamente

tendo sido tocados com a varinha ela ia confinando-os nos chiqueiros

Eles tinham de porcos as cabeccedilas o grunhir as cerdas e

tambeacutem o corpo Contudo a consciecircncia anterior estava conservada

Transformados de homem em porcos nesta citaccedilatildeo podemos identificar

humanos numa representaccedilatildeo traacutegica deparando-se com a sua proacutepria finitude e fragilidade

Por uma accedilatildeo de feiticcedilo os antes vigorosos combatentes de guerra e viajantes passam a

figurar como porcos tragicamente ainda mantendo a consciecircncia de homens - fato que

intensifica o sofrer de todos por terem consciecircncia de sua fraacutegil condiccedilatildeo Essa transmutaccedilatildeo

faz-nos visualizar as maneiras pelas quais Homero nos insere num contexto traacutegico mesmo

que este natildeo seja seu objetivo final Contudo eacute inegaacutevel que ele ―convida-nos a ponderar

gravemente sobre o traacutegico fim da existecircncia humana (LUNA 2005 p 29) Eacute-nos

importante ressaltar que essa traacutegica finitude humana natildeo deve ser visualizada apenas com a

passagem da vida para a morte pois acreditamos que essa significaccedilatildeo pode ser mais ampla

No momento em que os homens passam a figurar como porcos temos tambeacutem uma marcante

representaccedilatildeo da diluiccedilatildeo da vida humana neste caso de humanos a bichos Assim seguindo

a afirmaccedilatildeo de Sandra Luna (2005) deparamo-nos tambeacutem com a diluiccedilatildeo da vida e a traacutegica

finitude da existecircncia dos mortais

Esta figuraccedilatildeo em porcos tem um siacutembolo importante jaacute que este animal

representa de um modo geral as ―tendecircncias obscuras sob todas as suas formas da

ignoracircncia da gula da luxuacuteria e do egoiacutesmo (Chevalier Gheerbrant 2009 p 734) De

maneira mais particular no caso em que Circe transforma os companheiros de Odisseu em

porcos Jean Chevalier e Alain Gheerbrant (2009) citando Grid dizem que a deusa feiticeira

transformava os homens em animais que representavam a essecircncia e o caraacuteter dos homens

aprisionados Podemos observar entatildeo que tal mutaccedilatildeo de homens para porcos revela-nos a

essecircncia desses viajantes que por sua proacutepria ignoracircncia (daiacute o siacutembolo dos porcos) padecem

na tragicidade

No capiacutetulo anterior desenvolvemos a ideacuteia de que uma accedilatildeo traacutegica eacute ainda mais

efetiva quando o seu sujeito reconhece-se como traacutegico identificando-se e tendo plena

consciecircncia de sua condiccedilatildeo Eacute a asup1nagnwiquestrisij que intensifica a vivecircncia traacutegica natildeo

apenas para os espectadoresleitores mas principalmente por seu proacuteprio sujeito que se vecirc

natildeo mais como um homem de coragem valoroso e respeitado mas como vemos neste caso

como simples porcos Assim ao dizer-nos Vernant que ―a consciecircncia traacutegica nasce e

desenvolve-se com a trageacutedia (2008 p 9) vemo-nos impulsionados a levantar uma

100

problematizaccedilatildeo pois como nos mostram os versos em discussatildeo esses personagens

homeacutericos possuem consciecircncia de sua tragicidade Diante do grave conflito da condiccedilatildeo

humana sua fragilidade e limitaccedilatildeo Homero explicita-nos sobre os companheiros de Odisseu

apoacutes a transformaccedilatildeo de homens viris em porcos mas que ainda mantecircm sua consciecircncia de

homens (X 240) Por isso consideramos importante confrontarmos essa afirmaccedilatildeo de

Vernant (2008) com a passagem em anaacutelise jaacute que esta e as outras que estamos destacando

mostram-nos que em Homero certamente natildeo se desenvolveu a dita ―consciecircncia traacutegica

mas bem provavelmente foi com o autor da Odisseacuteia que ela nasceu mesmo que

incipientemente Esse fato vem a respaldar nossa pesquisa que propotildee identificar e analisar

na epopeacuteia homeacuterica o despontar dos elementos traacutegicos que mais tarde seriam

desenvolvidos nas trageacutedias gregas Por tudo isso concordamos com Platatildeo ao considerar

Homero como o ―prwordftoj didaskaloj twordfn tragikwordfn (Repuacuteblica X 595b) ou seja o

mestre primeiro dos traacutegicos

Na continuidade da narrativa do Canto X Euriacuteloco que desconfiado natildeo vai ateacute a

deusa presencia tudo e corre apavorado para contar a Odisseu o que sucedera Este decide ir

sozinho ajudar os demais No caminho encontra com Hermes transfigurado em um rapaz

que lhe oferece a erva de Molu para imunizaacute-lo ao feiticcedilo de Circe Aleacutem disso indica como o

heroacutei deve proceder ateacute deitar-se ao seu leito da deusa para que consiga salvar seus

companheiros Assim Odisseu o faz Deste modo consegue salvar os companheiros que antes

transformados em porcos voltam a seus corpos humanos Esse desfazer do feiticcedilo remete-nos

agrave defesa de Sandra Luna (2005) de que Homero natildeo alimenta o traacutegico pois atraveacutes de outros

elementos como por exemplo a ocorrecircncia de banquetes ele dispersa o efeito traacutegico Neste

caso vemos que a cena traacutegica eacute dissolvida pelo desfazer do feiticcedilo jaacute que certamente natildeo eacute

―traacutegico o efeito pretendido pelo poeta (LUNA 2005 p 29) Contudo esta constataccedilatildeo natildeo

invalida ou atenua o meacuterito de nossa pesquisa mesmo porque como deixamos evidente no

segundo capiacutetulo Homero foi coerente com seu propoacutesito literaacuterio de composiccedilatildeo de uma

epopeacuteia e natildeo de uma trageacutedia apesar de ter deixado para esta valoroso legado

Circe diz a Odisseu para que ele vaacute ateacute a nau para pegar seus tesouros armas e

homens Ele assim o faz A deusa diz tambeacutem para que ele esqueccedila de todas as suas dores

Odisseu segue seu conselho e permanece na ilha de Eeacuteia por um ano em festejos ateacute que seus

companheiros exortam-no a retornar ao solo paacutetrio O Laertida resolve entatildeo falar com Circe

e esta aceita sua partida inclusive adianta-lhe que antes de chegar a Iacutetaca teraacute que ir ao

Hades falar com Tireacutesias Sabendo desta revelaccedilatildeo ele se desespera

101

ὣο ἔθαη᾽ αὐηὰξ ἐκνί γε θαηεθιάζζε θίινλ ἦηνξ

θιαῖνλ δ᾽ ἐλ ιερέεζζη θαζήκελνο92

νὐδέ λύ κνη θῆξ

ἤζει᾽ ἔηη δώεηλ θαὶ ὁξᾶλ θάνο ἠειίνην93

(Odisseacuteia X 496-498)

Assim ele dizia e rompeu-me o querido coraccedilatildeo

sentou no leito agora chorava pelo meu destino

natildeo desejava viver nem ainda ver a luz do sol

Diante da revelaccedilatildeo feita por Circe o ―heroacutei mais ceacutelebre de toda a antiguidade

(GRIMAL 2005 p 458) angustia-se por saber que para cumprir seus objetivos ndash de retorno

ao lar - ainda teraacute que passar por obstaacuteculos maiores Ir ateacute o Hades e depois voltar era uma

tarefa que poucos cumpriram Heacuteracles Orfeu Teseu e Piriacutetoo O tamanho desse desafio

desespera o heroacutei Desse modo Homero acaba por nos ―Apresentar o sentimento da vida

inspirar terror e piedade obrigar a partilhar um sofrimento ou uma ansiedade ndash a epopeacuteia

fizera-o sempre e ensinou os tragedioacutegrafos a fazecirc-lo (ROMILLY 2008 p 22) Assim

Odisseu espera o amanhecer do novo dia para contar a nova empreitada aos companheiros

Estes ficam ainda mais desesperados pensam natildeo suportar mais tantos trabalhos por isso

com o coraccedilatildeo partido eles sentam gemem aos prantos chegando a arrancar os cabelos da

frente (Odisseacuteia X 566-567)

Apoacutes toda a anguacutestia ao terem conhecimento da missatildeo de ir ao Hades Odisseu e

os demais partem para a empreitada Eles foram sabendo que apoacutes retornarem do Hades

deveriam retornar a ilha de Circe para que ela pudesse informa-lhes dos proacuteximos

acontecimentos dando-lhe as novas coordenadas Essa circunstacircncia lembra-nos o capiacutetulo

anterior em que discutimos a caracterizaccedilatildeo do heroacutei seja na epopeacuteia eou na trageacutedia e

observamos que uma relevante diferenccedila eacute a de que ―No novo quadro do jogo traacutegico

portanto o heroacutei deixou de ser um modelo tornou-se para si mesmo e para os outros um

problema (VERNANT 2008 p 2) Observemos que apesar de natildeo estarmos falando de

uma trageacutedia grega especificamente a cena citada possibilita-nos enxergar a alusatildeo de um

heroacutei no caso Odisseu figurado como um problema natildeo apenas para si mas tambeacutem para os

outros Seus companheiros embarcam nas suas mesmas empreitadas e acabam sofrendo por

uma perseguiccedilatildeo que Posiacutedon realiza especificamente contra o heroacutei de Iacutetaca Vejamos que

92

O uso do particiacutepio perfeito kaqhmenoj de kaqhmai ndash sentar indica a noccedilatildeo do aspecto acabado

concluiacutedo (MURACHO 2007) por isso a traduccedilatildeo ―sentou exprimindo o ato perfeito terminado 93

Texto disponiacutevel em

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D475 retirado agraves 1630h em 18 de outubro de 2010

102

apesar de ter ocorrido uma accedilatildeo conjunta contra o Polifemo o grande mentor foi Odisseu

Aleacutem do mais este ao ter fugido ainda lanccedilou palavras injuriosas levando o Ciclope a

implorar a Posiacutedon que o pai de Telecircmaco fosse impedido de voltar agrave paacutetria ou no miacutenimo

ter seu retorno dificultado Como sabemos o deus concede ao filho o pedido e a partir daiacute

dificulta ainda mais o caminho de volta de Odisseu fato este que logo torna-se um

problema tambeacutem para os seus companheiros

No Canto XI Odisseu realiza o grande feito de ir agraves proximidades do Hades e

retornar para a terra Como jaacute adiantamos ao longo deste trabalho muitos satildeo os elementos

traacutegicos a serem analisados contudo por este ser o objetivo central do nosso trabalho

escolhido para anaacutelise deixaremos seu desenvolver para o toacutepico subsequente Partamos

entatildeo para o estudo do proacuteximo canto

Tendo retornado do Hades Odisseu e os demais vatildeo ateacute Circe Esta reforccedila os

apontamentos jaacute feitos por Tireacutesias e indica ao seu heroacutei predileto os outros tantos desafios

que teraacute de enfrentar e como deveraacute proceder para conseguir escapar Ela fala das Sereias de

Cila Cariacutebdes e da fome na ilha do Sol que enfrentaratildeo mas que deveratildeo resistir natildeo

alimentando-se de suas belas vacas para que natildeo venham padecer Odisseu minuciosamente

conta tudo aos companheiros antes de partirem e logo iniciam a jornada

Passando pelas Sereias Odisseu seguindo as orientaccedilotildees de Circe potildee cera nos

ouvidos dos viajantes enquanto estes o amarram Continuando a remar todos se apavoram ao

enxergarem uma grande neacutevoa e teriam deixado os remos se natildeo fosse Odisseu enchecirc-los de

acircnimo e confianccedila Deparam-se entatildeo com uma cena horripilante Cariacutebdes ao lado de Cila

chupava a aacutegua do mar terrivelmente e depois expelia com grande barulho metendo medo em

todos Mas Odisseu e os seus ainda vatildeo deparar-se com uma cena mais forte descrita pelo

heroacutei como a mais terriacutevel de todas que jaacute viu Nela Cila arranca da nave seis dos

companheiros engolindo-os Vejamos

αὐηνῦ δ᾽ εἰλὶ ζύξῃζη θαηήζζηε94

θεθιεγηαο

ρεῖξαο ἐκνὶ ὀξέγνληαο ἐλ αἰλῇ δεηνηῆηη

νἴθηηζηνλ δὴ θεῖλν ἐκνῖο ἴδνλ ὀθζαικνῖζη

πάλησλ ὅζζ᾽ ἐκόγεζα πόξνπο ἁιὸο ἐμεξεείλσλ95

(Odisseacuteia XII 256-259)

94

Tratando-se de uma forma verbal do imperfeito kathsqie de kathsqiw ndash devorar comer exprime a accedilatildeo

inacabada natildeo concluiacuteda (MURACHO 2007) Essa forma linguumliacutestica acentua ainda mais a tragicidade da cena

citada jaacute que Odisseu e seus companheiros acompanham a accedilatildeo em processo de Cila comer alguns de seus

soacutecios 95

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D234 retirado agraves 2014h em 18 de outubro de 2010

103

Na proacutepria entrada (da caverna) ela os comia eles gritaram

estendendo aos matildeos para mim numa terriacutevel batalha

Aquilo foi a cena mais lamentaacutevel para meus olhos que eu vi

De todas as outras grandes que sofri explorando as passagens do mar

A fragilidade e a efemeridade humana potildeem-se diante dos olhos daqueles homens

que muitas coisas terriacuteveis jaacute haviam presenciado O traacutegico observado nessa passagem estaacute

representado atraveacutes da aterrorizante fraqueza e finitude inerente agrave condiccedilatildeo humana visto

que fortes guerreiros todos vencedores na grande guerra de Troacuteia num segundo enxergam-se

como pequenas presas na boca de um feroz predador Assim verificamos a respeito do heroacutei

eacutepico que para ―aleacutem de todas as honras das quais venha a desfrutar a tragicidade estaraacute

sempre suspensa sobre sua cabeccedila (LUNA 2005 p 31) pois ―Apesar de sua caracteriacutestica

sobre-humana sabe-se que o heroacutei haveraacute um dia de ser igualado aos seus os mortais

(Ibidem) Assim o heroacutei traacutegico96

deparando-se com sua fragilidade e efemeridade comum a

todos os mortais luta contra a accedilatildeo das divindades e contra as leis da natureza E satildeo essas

forccedilas sobre-humanas contra as quais sua condiccedilatildeo humana natildeo o permite combater que o

levam ao traacutegico

Aleacutem disso a cena traacutegica realizada perante os olhos dos sobreviventes faz o fomacrboj

(o medo que faz fugir) apoderar-se de todos tementes de que viessem tambeacutem a figurar nessa

grande encenaccedilatildeo dramaacutetica como presas Mas tambeacutem a esup1leoj (a compaixatildeo) acarreta a

todos ao verem aqueles seis companheiros que haacute tanto tempo juntos lutavam pela

sobrevivecircncia e pelo retorno falecerem drasticamente e sem honra alguma A uniatildeo dos

sentimentos proporcionados pelo fomacrboj e pela esup1leoj proporciona aos viajantes passarem

pelo processo cartaacutetico de purificaccedilatildeo pois como nos elucida Aristoacuteteles (Poeacutetica VI

1449b) a kaqarsij soacute pode ser atingida quando fomacrboj e esup1leoj satildeo suscitados

No transcorrer da narrativa Odisseu e os seus soacutecios saem da tenebrosa passagem

entre Cila e Cariacutebde e aportam na ilha do Sol A fim de evitar o grande mal prenunciado

Odisseu sugere afastarem-se da ilha pois bem lembra dos avisos de Tireacutesias e Circe a respeito

dos sofrimentos que passariam e da necessidade que tinham para o proacuteprio bem de deixarem

ilesas as vacas do sol Os demais retrucam e Euriacutecolo como porta-voz acusa Odisseu de

crueldade jaacute que apoacutes tantos enfrentamentos estavam todos muito cansados Sem o apoio

96

Nesse aspecto podemos destacar uma antonomia do heroacutei claacutessico com o heroacutei moderno pois enquanto o

primeiro luta contra forccedilas sobre-humanas deuses e natureza o heroacutei moderno tem seu conflito realizado no

embate contra as forccedilas sociais

104

dos soacutecios restou a Odisseu ficar Todavia o polumhtij percebe que a forccedila superior tenta

arruinaacute-los (XII 295-296) Odisseu jaacute havia avisado a todos em Eeacuteia do perigo que poderiam

enfrentar e ainda faz o mesmo ao chegarem agrave ilha do Sol Mas os companheiros

demonstravam natildeo ter ideacuteia do mal que estava por vir por isso o heroacutei impotildee a todos um

juramento O Laertida faz todos jurarem que por nada viriam a comer vacas ou ovelhas

divinas pois deveriam saciar-se apenas com as iguarias dadas por Circe Assim realizam o

juramento por isso diz Odisseu ―ὣο ἐθάκελ νἱ δ᾽ αὐηίθ᾽ ἀπώκλπνλ ὡο ἐθέιεπνλ97

ou seja

―Como eu dizia imediatamente eles juraram como eu recomendava(Odisseacuteia XII 303)

Assim conforme o filho de Laertes propocircs o juramento todos fizeram E logo

apoacutes terem selado o acordo com o juramento todos observam a tempestade que surge

mandada por Zeus Astuto Odisseu compreende o sinal enviado pela divindade e avisa mais

uma vez para que poupem as vacas do Sol para que nenhuma desgraccedila venha ocorrer a eles

Como podemos perceber atraveacutes do juramento e dos avisos o esposo de Peneacutelope teme que

um mal ainda pior venha acontecer pois naturalmente se algum mal vier acarretar seus

companheiros acarretaraacute tambeacutem em males para o proacuteprio heroacutei Por meio das ressalvas e do

juramento Odisseu tenta evitar que seus soacutecios cometam a uAgravebrij e que esta venha como um

miasmoj contaminar a todos os integrantes da nau ou no miacutenimo fazer com que sejam

perdido mais companheiros Ateacute porque a cada soacutecio perdido a jornada de Odisseu torna-se

ainda mais dolorosa tendo que tudo enfrentar sozinho - e esta eacute a justificativa para o seu

temor

Amedrontado pela uAgravebrij que seus soacutecios podem cometer Odisseu avia-os por trecircs

vezes aleacutem do juramento que orienta-os a fazer satildeo eles ainda na Ilha de Circe em Eeacuteia

depois logo ao chegarem na ilha do Sol avisa e pede-lhes o juramento e por uacuteltimo recorda-

os novamente do perigo apoacutes a tempestade lanccedilada por Zeus Apesar de todos os avisos e do

juramento estabelecido os companheiros de Odisseu natildeo suportam e jaacute tendo passado-se um

mecircs da estada na ilha do Sol falta-lhes comida Como vemos a asup1namacrgkh a necessidade

impele-os e entatildeo decidem ir procurar alimento Odisseu percebe o perigo aproximar-se e

ora mas natildeo adianta pois o daimwn age pondo-lhe em sono profundo Euriacutecolo aproveita a

ausecircncia do Laertida e discursa aos demais que morrer de fome eacute pior que morrer navegando

e sugere que faccedilam os sacrifiacutecios e devorem as vacas Diante desse discurso de Euriacuteloco

97

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dehttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D13Acard

3D1 retirado agraves 0803h em 20 de outubro de 2010

105

todos manifestam estar de acordo e devoram as vacas ou seja cometem a uAgravebrij a

desmedida para com um ser divino o Hiperiocircnio Apoacutes a accedilatildeo consumada que os levaraacute ao

traacutegico Odisseu acorda e desespera-se ao perceber que havia dormido e que portanto natildeo

tinha podido controlar seus companheiros a natildeo comerem as vacas O heroacutei queixa-se com

Zeus e com os demais deuses considerando que foi para o seu mal que eles mandaram-lhe o

sono proporcionando que em sua ausacircncia os soacutecios pudessem ter cometido um terriacutevel

crime contra os deuses (Odisseacuteia XII 370-372) Essa conclusatildeo que chega Odisseu ao

acordar demonstra sua percepccedilatildeo da accedilatildeo superior do daimwn como responsaacutevel por todo o

mal que decorreria daquela accedilatildeo para o heroacutei e para os seus companheiros

A percepccedilatildeo do filho de Anticleacuteia estaacute correta ele percebe que o traacutegico aproxima-se

como resultado de uma uAgravebrij feita pelos seus soacutecios mas que foi impulsionada pelas forccedilas

superiores da asup1namacrgkh e do daimwn daiacute decorre o teor traacutegico dessa situaccedilatildeo Na

continuaccedilatildeo da narrativa o Sol recebe a notiacutecia do fim de suas vacas e implora a Zeus e aos

demais poderosos que todos os companheiros do filho de Laertes sejam punidos e ameaccedila de

que se seu desejo natildeo for atendido iraacute ao Hades para conduzir a luz aos mortos Defrontado

com o pedido divino e com a ameaccedila de acabar com a ordem do universo Zeus sinaliza

atender o pedido do Hiperiocircnio A fim de evitar o fim traacutegico que havia previsto o Laertida

tenta inultilmente recompor as vacas mas as carnes mortas gemem e movem-se Nesta cena

em que Odisseu luta contra a accedilatildeo traacutegica tentanto recompor o mal jaacute feito percebemos que a

inutilidade de sua accedilatildeo nos propicia um outro entendimento do traacutegico que eacute a

impossibilidade humana de desfazer o mal de voltar atraacutes Isso porque a accedilatildeo traacutegica eacute

fechada e natildeo se pode alterar sua jornada ou seja uma vez definida pelos deuses o traacutegico

natildeo mais pode ser evitado pelos mortais que natildeo possuem forccedilas para defrontar-se com a

determinaccedilatildeo divina Eacute por isso que apoacutes comerem as vacas por seis dias no seacutetimo com o

bom vento Odisseu e os demais partem e Zeus lanccedila um raio que lanccedila todos os soacutecios da

nau O traacutegico apanha os companheiros de Odisseu mas tambeacutem o contamina (miasmoj)

por isso ele fica sozinho a navegar

Podemos ver que apesar de todos os avisos os companheiros deixam-se levar

pela fragilidade humana ao contraacuterio de Odisseu que com sua coragem e astuacutecia heroacuteica

aleacutem da proteccedilatildeo divina consegue suportar a fome e tantos outros trabalhos que lhe foram

reservados a fim de que possa conseguir a gloacuteria domeacutestica Nesse momento da narrativa

fica-nos clara a diferenccedila do destino de Odisseu em relaccedilatildeo ao dos seus companheiros

Aristotelicamente falando o destino desventuroso destes foi ocasionado pelas suas proacuteprias

106

accedilotildees e natildeo pelos seus caracteres E isso estaacute anunciado desde os primeiros versos da

Odisseacuteia quando o cantor diz que Odisseu natildeo conseguiu salvar seus soacutecios natildeo por sua

culpa jaacute que seus soacutecios vieram a padecer pelas proacuteprias accedilotildees insensatas (Odisseacuteia I 7) A

partir dessa anaacutelise compreendemos bem a aumlmartia aristoteacutelica teorizada no nosso

segundo capiacutetulo que enfatiza o erro como fruto de uma accedilatildeo natildeo da falta de caraacuteter e eacute esse

erro que os leva agrave cataacutestrofe Vejamos o que diz Aristoacuteteles sobre a aumlmartia

ἁμαρτίαν τινά ηῶλ ἐλ κεγάιῃ δόμῃ ὄλησλ θαὶ εὐηπρίᾳ νἷνλ Οἰδίπνπο

θαὶ Θπέζηεο θαὶ νἱ ἐθ ηῶλ ηνηνύησλ γελῶλ ἐπηθαλεῖο ἄλδξεο () ἐμ

εὐηπρίαο εἰο δπζηπρίαλ κὴ δηὰ κνρζεξίαλ ἀιιὰ δη᾽ ἁμαρτίαν μεγάλην ἢ

νἵνπ εἴξεηαη ἢ βειηίνλνο κᾶιινλ ἢ ρείξνλνο98 (Poeacutetica XIII 1453 a 10-

1215-17)

() algum erro daqueles de grande gloacuteria e boa fortuna como o de Eacutedipo e

Tiestes tambeacutem por homens ilustres de famiacutelias tais () a partir da fortuna

para o infortuacutenio natildeo por maldade mas atraveacutes de um grande erro ou como

o que foi dito ou de um (erro) melhor ou ainda pior

Assim como acreditamos ter ficado bem explicitado um dos argumentos que

justificam a diferenccedila entre o destino de Odisseu e dos seus soacutecios levando estes para

cataacutetrofe estaacute na aumlmartia e no descomedimento (uAacutebrij) cometido por eles no momento em

que desrespeitando todos os avisos e ateacute mesmo os proacuteprios juramentos comem as vacas da

divindade Ressaltemos que essa aumlmartia a accedilatildeo errocircnea eacute cometida natildeo por maldade

eou falta de caraacuteter mas pela forccedila da necessidade (asup1namacrgkh) e pelo impulso superior do

daimacrmwn Lembremos que eles jaacute estavam na ilha haacute um mecircs e a comida tinha acabado por

completo (asup1namacrgkh) e que Odisseu desde que chega na ilha constatou a accedilatildeo do daimacrmwn

duas vezes A primeira foi logo quando ele chegou e seus companheiros quiseram descansar

na ilha (XII 296) e a outra ao acordar e perceber que havia sido tomado por um sono

profundo natildeo podendo impedir os companheiros de cometerem a aumlmartia (XII 370-372)

No traacutegico o personagem de sua accedilatildeo muitas vezes natildeo eacute apresentado como

responsaacutevel ou inocente logo esse ―protagonista traacutegico funde a mimesis dupla de ―culpado

e inocente pois eacute o proacuteprio responsaacutevel por seus males ao mesmo tempo em que eacute tambeacutem

sua maior viacutetima Lembremos ―que sofram uma sorte querida pelos deuses que paguem pelos

98

Os destaques satildeo nossos Texto disponiacutevel em httpwwwhs-

augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante04Aristotelesari_poi2html agraves 2035hs de 17 de julho de

2010

107

erros dos antepassados ou que paguem por sua proacutepria imprudecircncia haacute sempre neles uma

parte de inocecircncia (ROMILLY 2008 p 175) Isso eacute bem ilustrado com a situaccedilatildeo dos

companheiros de Odisseu jaacute que ao comeram as vacas do Sol fazem-nos perceber certa

inocecircncia pois foram levados pela sua fragilidade humana neste caso bem simbolizada pela

fome E esse choque de papeacuteis leva-nos a sentir piedade e temor como tambeacutem de termos

empatia para com eles Por isso para Romilly (2008) a accedilatildeo do heroacutei mesmo numa tentativa

boa ou maacute volta-se contra ele mesmo daiacute decorre sua defesa de haver sempre uma inocecircncia

no personagem traacutegico alimentando mesmo na queda o seu heroiacutesmo

Para entendermos ainda mais essa accedilatildeo traacutegica que inclusive diferencia os

destinos acima referidos recordemos que no capiacutetulo anterior expusemos a chamada ―dupla

causalidade traacutegica defendida por Romilly (2008) Dupla causalidade esta que apesar de

alicerccedilar as trageacutedias jaacute estava ―presente em Homero (Romilly 2008 p 172) Nessa ―dupla

causalidade o traacutegico decorre pelas accedilotildees dos proacuteprios personagens ou pela accedilatildeo do daacuteimon

daimacrmwn ou ainda mais elas podem coexistir sem se anularem e sem nenhuma contradiccedilatildeo

Essa accedilatildeo da ―dupla causalidade adequa-se perfeitamente agrave circunstacircncia das Vacas do Sol

pois nela observamos tanto a accedilatildeo superior do daimacrmwn como tambeacutem o traacutegico decorrendo

da proacutepria accedilatildeo humana a aumlmartia A primeira pode ser exemplificada quando Odisseu

logo percebe sua accedilatildeo convencendo-se de que um daimacrmwn tentava arruinaacute-los (XII 296) Jaacute a

segunda a aumlmartia exemplificamos a partir da descomedida atitude que os soacutecios de

Odisseu fizeram ao comer as vacas do Sol apesar dos avisos de Tireacutesias e Circe repassados

por Odisseu e do juramento realizado

Assim levados pela ―dupla causalidade traacutegica todos os companheiros padecem e

Odisseu navega sozinho durante nove dias ateacute que no deacutecimo chega agrave Ogiacutegia na ilha de

Calipso Como sabemos todas essas erracircncias de Odisseu estatildeo sendo narradas aos Feaacutecios

que tudo ouvem atentamente E pelo fato de a narrativa natildeo ser linear essa estada do heroacutei

em Ogiacutegia remete-nos ao Canto I e dura ateacute o V quando ele numa balsa feita a proacuteprio

punho parte de laacute para a Feaacutecia Contudo eacute mais precisamente no Canto V que temos a

narraccedilatildeo das lamuacuterias de Odisseu durante essa estadia com Calipso jaacute que seu anseio eacute o

mesmo de sempre retornar ao lar Intercedendo por seu protegido Atena jaacute havia desde o

Canto I cobrado de Zeus permitir que a vontade do heroacutei fosse atendida

Eacute por isso que no Canto V Hermes enviado por Zeus vai falar com Calipso para

que ela permita ao pai de Telecircmaco partir O mensageiro comparando-o com os demais

heroacuteis que combateram em Troacuteia define-o como o heroacutei mais sofrido (V 105) Hermes

108

reforccedila ainda que apesar de todo o sofrimento pelo qual Odisseu passou o seu destino exige

seu retorno por isso mesmo indignada Calipso permite o retorno do esposo de Peneacutelope

ajudando-o ainda com bons conselhos Hermes entatildeo parte e a deusa vai ao heroacutei contar-lhe

o ocorrido poreacutem encontra-o na praia aos prantos Leiamos

ηὸλ δ᾽ ἄξ᾽ ἐπ᾽ ἀθηῆο εὗξε θαζήκελνλ νὐδέ πνη᾽ ὄζζε

δαθξπόθηλ ηέξζνλην θαηείβεην δὲ γιπθὺο αἰὼλ

λόζηνλ ὀδπξνκέλῳ ἐπεὶ νὐθέηη ἥλδαλε λύκθε

() πόληνλ ἐπ᾽ ἀηξύγεηνλ δεξθέζθεην δάθξπα ιείβσλ

99

(OdisseacuteiaV 151-153 158)

Ela o encontrou sentado na margem em um

rumor de laacutegrimas ele derramava a doce vida

lamentando o retorno jaacute que a ninfa natildeo mais o agradava

()

Olhava fixo para o alto mar infecundo derramando laacutegrimas

Atraveacutes da citaccedilatildeo percebemos os sofrimentos que Odisseu sente apesar de poder

desfrutar do leito de uma deusa todos os dias bem como da eternidade Descontente o heroacutei

ansiava apenas o seu retorno Assim perante tantas dores a deusa avisa-lhe para partir jaacute que

eacute o seu desejo e orienta-o a construir uma jangada para sozinho atravessar o oceano

Odisseu desconfia e estremecido pelo medo pergunta se natildeo eacute nenhuma armadilha ela dizer-

lhe para atravessar o infindo oceano numa jangada Ele sabe que ―o homem sempre corre o

risco de cair na armadilha de suas proacuteprias decisotildees (VERNANT 2008 p 21) Por isso

Odisseu faz a deusa jurar que tem boa intenccedilatildeo e ela o faz pela Terra pelo Ceacuteu e pelo Estige

este que eacute o grande juramento o Mega oAgraverkoj100

Apoacutes ter a deusa realizado o grande juramento Odisseu parte de Ogiacutegia e navega

na pequena jangada por dezessete dias ateacute o momento em que Posiacutedon voltando do paiacutes dos

Etiacuteopes enxerga-o e fica indignado Como vemos o deus natildeo esquece a uAacutebrij cometida por

Odisseu contra seu filho o Ciclope Polifemo por isso uma nova situaccedilatildeo traacutegica seraacute

vivenciada pelo heroacutei Pois ao ver que Odisseu seguia rumo a concretizaccedilatildeo do retorno a

Iacutetaca o deus suscita uma tempestade faz surgir os ventos as nuvens cinzentas a Noite entatildeo

99

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D53Acard3

D262 retirado agraves 1730h em 20 de outubro de 2010 100

Era atraveacutes do Estige que o juramento sagrado dos deuses era realizado Esse Mega oAgraverkoj pode ser melhor

compreendido por meio da Teogonia (2009) entre os versos 386 e 401

109

Euro e Noto chocam-se Zeacutefiro e Boacutereas agem Odisseu estremece e lastima-se mais uma

experiecircncia traacutegica

ὤ κνη ἐγὼ δεηιόο ηί λύ κνη κήθηζηα γέλεηαη

()

ηξὶο κάθαξεο Δαλανὶ θαὶ ηεηξάθηο νἳ ηόη᾽ ὄινλην

Τξνίῃ ἐλ εὐξείῃ ράξηλ Ἀηξεΐδῃζη θέξνληεο

ὡο δὴ ἐγώ γ᾽ ὄθεινλ ζαλέεηλ θαὶ πόηκνλ ἐπηζπεῖλ

() ηῶ θ᾽ ἔιαρνλ θηεξέσλ θαί κεπ θιένο ἦγνλ Ἀραηνί

λῦλ δέ ιεπγαιέῳ ζαλάηῳ εἵκαξην ἁιλαη101

(Odisseacuteia V 299 306-308311-312)

Como eu sou fraco Agora o que me viraacute de pior

()

Trecircs e quatro vezes abenccediloados os Dacircnaos que morreram

na ampla Troacuteia suportando por causa dos Atridas

De qualquer forma eu preferiria seguir o destino e ali morrer

()

Eu obteria honras fuacutenebres e os Acaios divulgariam a minha gloacuteria

Agora sou capturado pelo destino para a morte miseraacutevel

Como vimos no paraacutegrafo anterior Odisseu havia desconfiado da permissatildeo de

Circe de que ele iria ao seu lar retornar Contudo nessa citaccedilatildeo vemos que o heroacutei entra em

conflito com a decisatildeo que ele mesmo havia tomado de sozinho numa jangada atravessar o

oceano Esse conflito gerado por uma escolha imposta ao heroacutei faz-nos recordar Jean-Pierre

Vernant em Mito e trageacutedia na Greacutecia Antiga (2008) de que na trageacutedia o heroacutei vecirc-se

obrigado a tomar uma decisatildeo mesmo diante de um entorno natildeo propiacutecio num mundo

ambiacuteguo e instaacutevel Exemplificando essa consideraccedilatildeo observemos que Odisseu vecirc-se

obrigado a aceitar a proposta de Calipso mesmo porque tudo o que ele fez e sofreu foi para

poder voltar para casa Mas por outro lado essa decisatildeo eacute conflituosa pois seu entorno natildeo eacute

dos melhores pelo contraacuterio teve que aceitar a proposta quase impossiacutevel de numa jangada

partir para atravessar o oceano infinito Para Vernant (2008) eacute esta tomada de decisatildeo muitas

vezes traiccediloeira que aflige o heroacutei tornando-o susceptiacutevel a sua transformaccedilatildeo em sujeito

traacutegico Isso seria a base da trageacutedia pois aquele heroacutei que normalmente na eacutepica tem seu

vigor exaltado e glorificado vecirc-se na trageacutedia como um fraacutegil homem viacutetima de suas

decisotildees cheio de limitaccedilotildees e assombrado pela finitude da vida

101

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D53Acard3

D262 retirado agraves 2032h em 25 de outubro de 2011

110

Entre os versos 299-303 306-312 do Canto V deparamo-nos com essa situaccedilatildeo

tiacutepica da trageacutedia uma vez que Odisseu arrepende-se de sua decisatildeo dizendo inclusive

preferir ter morrido em batalha a vir a padecer em alto mar sem nenhuma honraria nenhuma

fama102

Assombrado pela morte que jaacute vislumbrava a sua frente desespera-se ao ver que iria

perecer miseraacutevel e na escuridatildeo (V 312) Podemos dizer entatildeo que nos versos referidos

temos os dois poacutelos nos quais segundo Vernant (2008) a accedilatildeo traacutegica divide-se a

deliberaccedilatildeo e a consideraccedilatildeo do incompreensiacutevel de forccedilas superiores que prepararam a sorte

seja de sucesso seja de derrota Portanto encontramos na eacutepica homeacuterica um aspecto traacutegico

comum nas trageacutedias o que para Vernant (2008) relaciona-se agrave accedilatildeo que pressupotildee uma

escolha conflituosa

Haviacuteamos dito que por causa da falta de lineariade da narrativa iriacuteamos retomar o

canto V em que melhor eacute descrita a passagem de Odisseu na caverna de Calipso e como se

deu sua jornada ateacute chegar aos Feaacutecios Esta chegada ocorre no Canto VI quando ele seraacute

auxiliado por intermeacutedio de Atena por Nausiacutecaa a filha do rei dos Feaacutecios Alciacutenoo No

Canto VII o heroacutei chega ao palaacutecio e lanccedila-se sobre os peacutes da rainha Arete pedindo-lhe para

enviaacute-lo para casa e o Alciacutenoo concorda Odisseu entatildeo conta-lhes como ali chegou desde a

ilha de Calipso seu naufraacutegio e a ajuda de Nausiacutecaa na Feaacutecia concedendo-lhe roupas No

Canto VIII Odisseu eacute recepcionado pelos Feaacutecios numa assembleacuteia em que decidem a

preparaccedilatildeo do retorno do estrangeiro Depois realizam disputas nos jogos ateacute que Demoacutedoco

comeccedila a cantar sobre o adulteacuterio de Ares e Afrodite e depois sobre o Cavalo de madeira

idealizado por Odisseu para adentrarem na cidade troiana O filho de Laertes natildeo se conteacutem e

chora levando o rei Alciacutenoo a perguntar-lhe o porquecirc do choro incontido e qual a sua origem

A partir daiacute no Canto IX comeccedilam as narrativas de Odisseu sobre todas as suas erracircncias103

102

Essa fala de Odisseu remete-nos a visatildeo de bela morte tatildeo estimada pelos gregos antigos e desenvolvida por

Vernant (1989) em Lrsquoindividu la mort lrsquoamour Nesta obra Vernant exemplifica atraveacutes do Canto XXII da

Iliacuteada o significado da bela morte para os gregos sua importacircncia e o desejo que os heroacuteis tinham de padecer

belamente em campo de batalha Para os valorosos heroacuteis essa morte conservaria-lhes a honra a nobreza a

distinccedilatildeo guerreira por isso era tatildeo almejada A bela morte buscada por Heitor no Canto XXII da Iliacuteada apesar

deste saber que sua morte estaacute proacutexima demonstra-nos que soacute a bela morte pode dar-lhe a gloacuteria impereciacutevel

conservando para sempre seu brilho guerreiro Assim na referida passagem da Odisseacuteia o filho de Laertes diz

preferir ter tido a bela morte combatendo em Troacuteia a padecer em alto mar Isso porque a bela morte conservaria

sua honra sua gloacuteria e seu nome para toda eternidade jaacute a morte no imenso mar ao contraacuterio faria com que ele

morresse esquecido sem honra sem fama E eacute desse morte fatalmente traacutegica que Odisseu luta para escapar

103

Assim Odisseu fala no Canto IX de suas erracircncias na terra dos Ciacuteconos dos Lotoacutefagos ateacute encontrar a dos

Ciclopes Depois no X fala de Eacuteolo Lestrigotildees e Circe No XI sobre a consulta com Tireacuterias no Hades No XII

sobre as Sereias Cila Caribde e os bois do Sol Essa siacutentese eacute importante para que natildeo nos percamos na

narrativa nem muito menos no nosso percurso de anaacutelise que naturalmente acaba tendo como necessaacuterias as

indas e voltas ao longo da Odisseacuteia por sua estrutura natildeo linear

111

Retomemos a anaacutelise do Canto XII quando Odisseu narra aos Feaacutecios a estada

com Calipso e sua partida Partida esta na qual por obra de Posiacutedon tornou-se um naacuteufrago e

foi ajudado por Leucoteacuteia que lhe entrega o seu veacuteu imortal Este veacuteu como ela o orientou

foi amarrado ao peito para que a Morte natildeo viesse pegaacute-lo ateacute que chegasse a terra firme

neste caso a dos Feaacutecios Ainda no Canto XII o cantor Odisseu termina sua narraccedilatildeo e

iniciam-se os preparativos para seu retorno Os cantos subsequentes ao XII mostram o

desenrolar do destino de Odisseu rumo a sua gloacuteria domeacutestica Eacute assim que no Canto XIII

finalmente o nosso heroacutei polutropoj apoacutes tantas voltas retorna a Iacutetaca Como os

proacuteximos cantos mostram o desenrolar e os preparativos para a vinganccedila dos pretendentes

saltaremos nossa anaacutelise para o Canto XXII Neste o filho de Laertes apoacutes ter planejado sua

vinganccedila apresenta-se para os pretendentes (XXII 35-41) fato marcante que levaraacute agrave chacina

dos mesmos sendo punidos por todo empreendimento que fizeram contra o heroacutei e sua

famiacutelia O Laertida diz a eles que ao arruinarem seus bens violentarem suas servas e

pretenderem sua esposa eles natildeo tiveram medo dos deuses nem da vinganccedila dos homens E

logo apoacutes sua apresentaccedilatildeo Odisseu inicia a matanccedila com a ajuda do seu filho e de alguns

servos

Na ocasiatildeo da chacina dos pretendentes temos marcadamente a ideacuteia de castigo

natildeo sendo nenhum deles poupado de suas accedilotildees apesar da estirpe e de suas nobres famiacutelias

Por isso viratildeo todos os pretendentes sobrerbos padecer pelas matildeos de Odisseu No Canto II

Atena transfigurada em Mentor aconselha Telecircmaco a ir buscar notiacutecias do pai e diz para

que ele natildeo se preocupe com os pretendentes anunciando o fim que restava a todos eles

Vejamos

η λῦλ κλεζηήξσλ κὲλ ἔα βνπιήλ ηε λόνλ ηε

ἀθξαδέσλ ἐπεὶ νὔ ηη λνήκνλεο νὐδὲ δίθαηνη

νὐδέ ηη ἴζαζηλ ζάλαηνλ θαὶ θῆξα κέιαηλαλ

ὃο δή ζθη ζρεδόλ ἐζηηλ ἐπ᾽ ἤκαηη πάληαο ὀιέζζαη104

(Odisseacuteia II 281-284)

Agora despreza os pretendentes como tambeacutem teu plano e teu

dicernimento]

eles insensatos nem satildeo justos nem satildeo disscretos105

natildeo sabem eles que a morte e o negro destino

estatildeo proacuteximos para eles a fim de que todos um dia venham perecer

104

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D23Acard3

D267 retirado agraves 1010h em 25 de outubro de 2010 105

Os destaques satildeo nossos

112

Essa citaccedilatildeo eacute bem interessante para nossa discussatildeo do traacutegico na Odisseacuteia pois

bem podemos fazer a diferenccedila entre o destino dos pretendentes de Odisseu e dos seus soacutecios

O Laertida sofre como vimos passando por situaccedilotildees traacutegicas tanto pela accedilatildeo do daimacrmwn

quanto por sua proacutepria accedilatildeo errocircnea - aumlmartia Mas isso natildeo faraacute que ele tenha um destino

traacutegico e sim algumas vivecircncias Por sua vez seus companheiros passam natildeo soacute por

vivecircncias traacutegicas como tambeacutem possuem o destino traacutegico fruto da ―dupla causalidade

Ou seja suas vivecircncias e destino traacutegicos provecircm tanto pela accedilatildeo do daimacrmwn como tambeacutem

de suas proacuteprias accedilotildees

Assim seja atraveacutes de Odisseu ou dos seus companheiros Homero nos daacute uma

formulaccedilatildeo traacutegica mostrando-nos como heroacuteis experienciam o traacutegico em circunstacircncias

(Odisseu) ou definitivamente em seus proacuteprios destinos (os seus soacutecios) Nestes dois casos

podemos ver vaacuterios dos elementos que compotildee uma accedilatildeo traacutegica a aumlmartia o daimacrmwn a

asup1namacrgkh a uAacutebrij a kaqarsij o fomacrboj a esup1leoj a asup1nagnwiquestrisij Elementos estes

que nos mostram o heroacutei em conflito tendo que necessariamente deliberar e deparar-se com

sua finitude e fragilidade comum a todos os mortais Como vimos ao longo deste toacutepico

somados estes elementos levam o heroacutei a vivenciar o traacutegico (Odisseu) ou a concretizaacute-lo em

seu destino (os seus companheiros) Ressalta-se que aristotelicamente natildeo falta caraacuteter a

esses personagens mas uma accedilatildeo eacute que os encaminha para cataacutestrofe

Poderiacuteamos entatildeo pensar que na chacina ocorrida com os pretendentes temos

aspectos traacutegicos por termos o sofrer destes e muitas mortes em torno de cento e dezesseis

contando com as servas que tambeacutem satildeo punidas por terem traiacutedo seu senhor ajudando os

pretendentes Inclusive ao longo da Odisseacuteia natildeo haacute nem de perto uma quantidade tatildeo

grande de representaccedilotildees de mortes Contudo Homero aleacutem de ter-nos deixado o despontar

de representaccedilotildees traacutegicas legou-nos tambeacutem as natildeo traacutegicas mesmo que superficialmente

pudessem assim ser entendidas Deste modo atraveacutes da chacina dos pretendentes Homero

demonstra-nos que o traacutegico natildeo estaacute necessariamente relacionado agrave morte pois se assim

fosse a corte dos cortejantes agrave matildeo de Peneacutelope seria a cena mais traacutegica na Odisseacuteia

Aristoacuteteles nos ensina (Poeacutetica XIII 1453a 5-6) e Homero representa-nos que

para ocorrer o traacutegico natildeo basta encenar sangue dor e mortes haacute de se ter muitos outros

elementos a exemplo do imerecido para suscitar-nos piedade e a empatia para suscitar-nos

o temor Assim a chacina dos pretendentes nem eacute imerecida porque muito fizeram para

merecer tal castigo nem nos proporciona o temor jaacute que natildeo haacute construccedilatildeo de empatia para

com esses personagens Eacute por isso que Aristoacuteteles diz-nos (Poeacutetica 1453a 7-11) que os

113

heroacuteis com seus caracteres intermediaacuterios satildeo os protagonistas ideais do traacutegico ao contraacuterio

dos muito bons que incitam excesso de piedade e dos muito maus que incitam a satisfaccedilatildeo

humana de ver os maus em decadecircncia Por isso as cento e dezesseis mortes narradas no

Canto XXII representam a puniccedilatildeo de todos os males cometidos pelos pretendentes Males

estes resultantes natildeo apenas de uma accedilatildeo errocircnea mas tambeacutem pela falta de caraacuteter por isso

Atena diz que eles satildeo insensatos injustos e portanto agem sem bom-senso (II 281-284)

A situaccedilatildeo da chacina dos pretendentes natildeo nos incita o traacutegico pois pela falta do

imerecido e da empatia natildeo nos provoca o fomacrboj nem a esup1leoj Ao contraacuterio a nossa

tendecircncia em geral eacute de nos satisfazermos com a representaccedilatildeo dessas muitas mortes porque

consideramos que eles tiveram o fim merecido Basta-nos para entendermos melhor essa

afirmaccedilatildeo lembrar da reaccedilatildeo da ama Euricleacuteia ao ver Odisseu em meio aos corpos todo

ensanguentado Ela natildeo consegue conter a alegria sendo necessaacuteria a intervenccedilatildeo do heroacutei

para que ela se contenha (XXII 411-416) visto que natildeo eacute adequado regozijar perante os

mortos E sobre isso jaacute nos orientava Aristoacuteteles (Poeacutetica 1453a) porque um homem muito

malvado passando da felicidade para infelicidade naturalmente natildeo nos suscita nem temor

nem piedade ao contraacuterio satisfazemo-nos por considerarmos que a justiccedila foi feita e que os

pretendentes e as amas pagaram por seus erros Eacute isso que comemora Euricleacuteia e Odisseu

mostrando sua dignidade e saber reprime-a por natildeo ser divino alegrar-se diante dos que jaacute

foram castigados por seus males Lembremos

ἡ δ᾽ ὡς οὖν νέκυάς τε καὶ ἄσπετον εἴσιδεν αἷμα

ἴθυσέν ῥ᾽ ὀλολύξαι ἐπεὶ μέγα εἴσιδεν ἔργον

ἀλλ᾽ Ὀδυσεὺς κατέρυκε καὶ ἔσχεθεν ἱεμένην περ

καί μιν φωνήσας ἔπεα πτερόεντα προσηύδα

ἐν θυμῶι γρηῦ χαῖρε καὶ ἴσχεο μηδ᾽ ὀλόλυζε

οὐχ ὁσίη κταμένοισιν ἐπ᾽ ἀνδράσιν εὐχετάασθαι

τούσδε δὲ μοῖρ᾽ ἐδάμασσε θεῶν καὶ σχέτλια ἔργα

οὔ τινα γὰρ τίεσκον ἐπιχθονίων ἀνθρώπων

οὐ κακὸν οὐδὲ μὲν ἐσθλόν ὅτις σφέας εἰσαφίκοιτο

τῶι καὶ ἀτασθαλίηισιν ἀεικέα πότμον ἐπέσπον106 (Odisseacuteia XXII 407- 416)

Entatildeo a ama Euricleacuteia viu os cadaacuteveres e o imenso sangue

e eacute verdade que atacou a gritar quando viu o grande trabalho

Mas Odisseu a deteve e decerto segurou sua agitaccedilatildeo

106

Texto disponiacutevel em httpwwwhs-

augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_od22html retirado agraves 1500hs de 15 de julho

de 2010

114

Tambeacutem ele mesmo tendo falado alto dirigia-lhe essas palavras aladas

Na alma velha alegra-te mas natildeo grita reprime pois para si

Natildeo eacute da lei divina manifestar-se assim sobre os homens que perecem

Estes o destino dos deuses submeteu como tambeacutem a seus trabalhos

[funestos

Eles natildeo respeitavam nenhum dos homens viventes da terra

nem o mau nem certamente o bom que a eles se apresentou

E por essas accedilotildees insanas perseguiu-lhes o destino indigno

Essa discussatildeo tambeacutem nos faz recordar da explanaccedilatildeo de Junito Brandatildeo em

Homero e seus poemas deuses mitos e escatologia (1998) a respeito de que a Odisseacuteia

instaura na literatura ocidental representaccedilotildees novas Essas satildeo sobre a ideacuteia de culpa

castigo ―em que a hyacutebris a violecircncia a insolecircncia a ultrapassagem do meacutetron () comeccedilam

a despontar (BRANDAtildeO 1998 p 134) Junito Brandatildeo diz ainda que a culpa traacutegica

como jaacute foi dito no capiacutetulo anterior pode ser realizada de duas formas da hamartia em que

forccedilas superiores impulsionam o homem ao erro (a exemplo dos soacutecios de Odisseu no caso

das vacas do Sol) ou atraveacutes do adikon quando o sujeito deliberadamente sem coaccedilatildeo

comete o erro A esta uacuteltima culpa relacionamos os pretendentes pois por deliberaccedilatildeo

proacutepria intentaram contra Odisseu e sua famiacutelia consumindo seu palaacutecio seus bens

pretendendo sua esposa violentando suas servas aleacutem de terem chegado inclusive a planejar

a morte de seu filho Telecircmaco que soacute natildeo ocorreu por causa da proteccedilatildeo de Atena Assim

Odisseu mata-os para que eles e suas accedilotildees funestas sejam definitivamente reparadas e

abolidas

Atraveacutes de todo o percurso de anaacutelise que fizemos neste toacutepico Odisseacuteia

momentos de tragicidade pudemos perceber as valorosas contribuiccedilotildees que Homero legou-

nos tanto para literatura ocidental como mais especificamente para a trageacutedia grega Esta

desenvolveu os elementos traacutegicos jaacute bem traccedilados por Homero Nesses uacuteltimos paraacutegrafos

constatamos tambeacutem duas contribuiccedilotildees baacutesicas que nos lega Homero a representaccedilatildeo de

como os homens satildeo levados a sofrer vivecircncias traacutegicas (Odisseu) ou destinos traacutegicos (os

soacutecios do heroacutei) como tambeacutem uma amostra de como os personagens mesmo

impiedosamente mortos podem natildeo provocar nenhum sentimento de empatia nenhuma

comoccedilatildeo diante de seu sofrer Deste modo fica-nos evidente o que eacute necessaacuterio para termos

um personagem traacutegico pois natildeo basta o sofrimento ele tem tambeacutem que ter dignidade ser

levado pela asup1namacrgkh e pelo daimacrmwn a cometer a aumlmartia e a uAacutebrij e assim suscitando

o fomacrboj e a esup1leoj levar-nos agrave kaqarsij E essa tragicidade como vimos pode ser

acentuda por outros elementos a exemplo da asup1nagnwiquestrisij em que o personagem traacutegico

115

experiencia tudo com plena consciecircncia Essa accedilatildeo traacutegica apresenta-se para noacutes como

incompreensiacutevel proporcionando-nos uma vivecircncia do espiacuterito traacutegico ao observarmos o

homem defrontando-se com a sua fragilidade e limitaccedilatildeo comum aos mortais

32 TRAGICIDADE NO CANTO XI DA ODISSEacuteIA ANTICLEacuteIA AQUILES

AGAMEcircMNON AacuteJAX

Neste toacutepico realizaremos uma aplicaccedilatildeo teoacuterico-analiacutetica do traacutegico a partir do

Canto XI da Odisseacuteia em especial naqueles momentos em que Odisseu encontra-se no Hades

com a sua matildee Anticleacuteia e seus companheiros em Troacuteia Agamecircmnon Aquiles e Aacutejax Como

veremos o Laertida iraacute ao deparar-se com sua matildee tomar conhecimento de sua morte aleacutem

de constatar que seus antigos companheiros em Troacuteia amarguravam um destino funesto

Agamecircmnon sofre pela desonra de sua morte fruto da traiccedilatildeo da esposa com o amante Egisto

Aquiles inconformado diz-se infeliz em reinar sobre mortos preferindo vivo ser um

trabalhador do campo e Aacutejax mesmo apoacutes a morte encontra-se ainda ressentido pelo fato de

ter perdido as armas de Aquiles para Odisseu Consideramos a anaacutelise que segue o cerne do

nosso trabalho tendo em vista as suas relevantes cenas que nos sugerem o espiacuterito do traacutegico

A afirmaccedilatildeo acima natildeo invalida ou diminui o valor dos capiacutetulos e toacutepicos

anteriores ao contraacuterio eles satildeo os responsaacuteveis pela fundamentaccedilatildeo da nossa anaacutelise

proporcionando-nos uma maior percepccedilatildeo do traacutegico e uma mais clara justificativa do porquecirc

da escolha do Canto XI Neste podemos ver Odisseu apoacutes ter sido orientado por Tireacutesias

passar por um processo cartaacutetico atraveacutes da vivecircncia traacutegica que passa junto a Anticleacuteia

Agamecircmnon Aquiles e Aacutejax E assim por meio de sua catarse estaraacute pronto para prosseguir

seu objetivo alcanccedilar um destino glorioso de retorno e consagraccedilatildeo domeacutestica

Odisseu comunicado por Circe que deveria ir ao Hades desespera-se (X 496-

498) por saber que pouquiacutessimos homens tiveram esse privileacutegio Aflito e angustiado o heroacutei

teme natildeo ser capaz de tatildeo grande empreitada Contudo o que o aguarda no Hades eacute ainda

pior deparar-se com a matildee que havia deixado a vida como eiAtildedwlon morta e ouvir todas as

desventuras dos companheiros que antes alcanccedilaram a gloacuteria em Troacuteia

Entendamos como ocorre a chegada de Odisseu ao Hades e como seratildeo seus

encontros traacutegicos O Canto XI da Odisseacuteia inicia-se com Circe agrave beira mar enviando ventos

116

propiacutecios para Odisseu e seus companheiros Nesse momento percebamos que os mortos

comeccedilam a aproximar-se do heroacutei e quem o faz primeiro eacute Elpenor antigo soacutecio e que veio a

padecer Com a visatildeo o heroacutei sente o coraccedilatildeo apertar e vertendo laacutegrimas pergunta como ele

morreu O seu antigo soacutecio apoacutes responder suas perguntas pede para que seja sepultado

erguendo um monumento na beira do mar e fincando o remo que usara Como percebemos

Elpenor sente falta de ter seus ritos fuacutenebres realizados ateacute porque ele que combateu em

Troacuteia e que vagou com Odisseu por terras e mares morreu sem ao menos ter uma laacutepide

para lembrar sua morte Assim para evitar esse imerecido esquecimento de um companheiro

Odisseu logo se compromete a realizar seu desejo

Entatildeo apoacutes Elpenor distanciar-se a matildee do Laertida aparece Essa eacute a primeira

experiecircncia traacutegica que Odisseu tem no Hades ateacute mesmo porque ele natildeo sabia ainda da

morte da matildee jaacute que ao partir para Troacuteia havia deixado-a com vida em Iacutetaca Perante tal

visatildeo o heroacutei potildee-se a chorar pois ao ter aceitado o desafio de ir ao Hades natildeo havia

imaginado que em meio a dolorosa visatildeo das sombras encontraria sua matildee como mais uma

alma dos mortos (XI 87) Mas como ele tinha que primeiro falar com Tireacutesias o Laertida natildeo

deixa a matildee aproximar-se do sangue Para entendermos todo o cenaacuterio com o qual Odisseu

depara-se no Hades logo no iniacutecio do Canto XI em que o deinoj107 apodera-se do heroacutei

apoacutes ele ter feito todos os rituais vejamos o que nos explica Vernant (2000)

Entatildeo percebe que estaacute vindo em sua direccedilatildeo a multidatildeo formada pelos que

natildeo satildeo ningueacutem ouacutetis como ele pretendeu ser Satildeo os sem-nome os

noacutemymnoi os que natildeo tem mais rosto que natildeo satildeo mais visiacuteveis que natildeo

satildeo mais nada Formam uma massa indistinta de seres que outrora foram

indiviacuteduos mas dos quais natildeo se sabe mais nada Dessa massa que desfila a

sua frente sobe um rumor apavorante e indistinto Eles natildeo tem nome natildeo

falam eacute um barulho caoacutetico Ulisses eacute envadido por um medo terriacutevel diante

desse espetaacuteculo que representa a seus olhos e ouvidos a ameaccedila de uma

dissoluccedilatildeo completa num magma disforme sendo sua palavra tatildeo haacutebil

afogada num rumor inaudiacutevel sua gloacuteria sua fama e sua celebridade caindo

no esquecimento (VERNANT 2000 112-113)

Diante desta cena observamos que Odisseu fica rodeado por uma massa de

sombras sem nome sem rosto sem gloacuteria o que logo ao iniacutecio do Canto XI faz com ele ele

seja apoderado pelo sentimentos de foboj E este sentimento de temor inspirado o foboj

que eacute o medo que faz fugir que propicia ao heroacutei o desejo de querer afastar-se da morte

107

Em Retoacuterica das Paixotildees Aristoacuteteles diz que ao depararmo-nos com um parente proacuteximo em situaccedilatildeo

dolorosa o que sentimos natildeo eacute compaixatildeo e sim o deinoj Ou seja experienciamos o terriacutevel o apavorante por

tal fato narrado estaacute muito proacuteximo de noacutes

117

buscando retornar a Iacutetaca para que natildeo venha ser mais uma dessas sombras esquecidas

disformes e indistintas como as que ele se depara no Hades Pois toda a busca que Odisseu

faz desde que saiu de Troacuteia para retornar a Iacutetaca natildeo simboliza apenas o desejo de voltar

para casa e para os seus familiares mas tambeacutem o de fugir impelido pelo foboj da morte

desonrosa que o levaria ao esquecimento e tornaria-o mais um deinoj entre tantos que sem

gloacuteria vagueiam no Hades

E no decorrer da narrativa apoacutes a visatildeo amedrontadora das sombrasTireacutesias entatildeo

aparece e pede-lhe para recolher a espada para que possa provar do sangue e dizer-lhe toda a

verdade Observemos atraveacutes desta fala do adivinho que tudo o que ele vier a contar seraacute

verdade pois tendo Odisseu feito o ritual conforme Circe indicara todas as sombras soacute

poderatildeo falar a verdade para o heroacutei Assim o tebano prenuncia tudo o que o heroacutei teraacute que

enfrentar desde a sua saiacuteda do Hades ateacute o procedimento que deve ter ao chegar em Iacutetaca

Revela-lhe a perseguiccedilatildeo de um deus que atrapalharaacute o seu retorno mas natildeo o impediraacute caso

consiga refrear a sua cobiccedila e dos seus soacutecios diz-lhe ainda que ao chegar em Iacutetaca

enfrentaraacute muitos trabalhos pois homens soberbos destroem seus bens e pretendem sua

esposa Mas Tireacutesias tranquiliza-o com seu destino dizendo-lhe que ao chegar em Iacutetaca daraacute

castigo a todos os pretendentes (XI 118) Tireacutesias avisa ao heroacutei que conseguiraacute evitar o

destino traacutegico apoacutes cumprir as empreitadas reveladas e realizar os rituais sagrados Tudo

isso para que apoacutes vivenciar tantos momentos traacutegicos Odisseu possa enfim viver com sua

famiacutelia tranquilamente ateacute que a doce morte venha pegaacute-lo (XI 134-137)

Contudo sabemos que antes de vir a alcanccedilarr o seu pretenso destino Odisseu teraacute

que enfrentar muitos desafios e muitos momentos traacutegicos Momentos estes que ele enfrentaraacute

ainda no Hades atraveacutes dos encontros que com sua matildee e com alguns companheiros de Troacuteia

Assim tendo Tireacutesias terminado as revelaccedilotildees sobre o destino do heroacutei este pergunta-o o

porquecirc da indiferenccedila de sua matildee que natildeo o fala (XI 140-144) Esse questionamento do

filho de Laertes demonstra-nos sua inconformidade de enfrentar aleacutem da visatildeo da matildee morta

sua indiferenccedila e renuacutencia de falar-lhe O adivinho diz para o heroacutei deixaacute-la aproximar-se do

sangue a fim de que lhe fale tambeacutem soacute a verdade Esse ritual deve ser realizado com toda e

qualquer sombra com a qual Odisseu deseje falar

Como sabemos as pessoas com as quais Odisseu comeccedilaraacute a falar jaacute estatildeo mortas

Por isso gostariacuteamos de elucidar a condiccedilatildeo em que se encontra a consciecircncia dessas pessoas

Para entendermos o niacutevel de coerecircncia e verossimilhanccedila desses diaacutelogos primeiro resaltamos

que como foi avisado por Tireacutesias toda a sombra que Odisseu deixasse aproximar-se do

118

sangue iria falar-lhe apenas a verdade enquanto as demais recuariam Ou seja podemos

compreender logo que toda a sombra que se aproximar de Odisseu falaraacute fatos verdeiros

sem ilusotildees ou inverdades Aleacutem disso eacute significativo sabermos que geralmente ―() no

Hades a psiqueacute o eiacutedolon eacute uma sombra uma imagem paacutelida e inconsistente abuacutelica

destituiacuteda de entendimento sem precircmio nem castigo (BRANDAtildeO 1998 p 146) No

entanto o eiAtildedwlon 108

essa sombra abuacutelica e paacutelida como diz-nos Junito Brandatildeo (1998)

pode recuperar por alguns instantes a razatildeo mediante um complexo ritual como o que foi

detalhadamente descrito no Canto XI da Odisseacuteia (v 20-50) Perante tais consideraccedilotildees

sabemos que aleacutem de falarem a verdade as sombras que dialogam com Odisseu tecircm

recuperadas as consciecircncias e portanto falam com racionalidade pois o filho de Laertes

cumpriu com todos os rituais necessaacuterios

Neste momento em que entendemos a condiccedilatildeo mental do eiAtildedwlon

prosseguimos a nossa anaacutelise Como vimos o esposo de Peneacutelope falara com Tireacutesias e sabia

como proceder para conquistar seu desejado retorno O vate parte e Odisseu interessado em

falar com a matildee deixa ela se aproximar do sangue para poder falar-lhe Anticleacuteia aproxima-

se reconhece o filho instantaneamente e pergunta o que ele faz no Hades e se jaacute havia

retornado a seu paiacutes O eiAtildedwlon de sua matildee natildeo entende o porquecirc de o filho estar ali local

sobre o qual ela afirma ser aos vivos tatildeo difiacutecil de contemplar (XI 156) Odisseu responde-

lhe e pergunta-lhe como estatildeo seu pai seu filho sua esposa seu palaacutecio enfim Sobre a

esposa ela diz que vive em prantos sem fim (XI 182-183) o filho sozinho administra o

palaacutecio e seu pai passou a dormir no inverno junto aos servos e no veratildeo dorme sobre as

folhas no chatildeo vivendo triste agrave espera do filho amado jaacute ela proacutepria veio a falecer de

saudades Vejamos com detalhes o discurso de Anticleacuteia sobre as dores sentidas por ela e

pelo marido

νὔη᾽ ἐκέ γ᾽ ἐλ κεγάξνηζηλ ἐύζθνπνο ἰνρέαηξα

νἷο ἀγαλνῖο βειέεζζηλ ἐπνηρνκέλε θαηέπεθλελ

νὔηε ηηο νὖλ κνη λνῦζνο ἐπήιπζελ ἥ ηε κάιηζηα

ηεθεδόλη ζηπγεξῇ κειέσλ ἐμείιεην ζπκόλ

ἀιιά κε ζόο ηε πόζνο ζά ηε κήδεα θαίδηκ᾽ δπζζεῦ

ζή η᾽ ἀγαλνθξνζύλε κειηεδέα ζπκὸλ ἀπεύξαlsquo109

(Odisseacuteia XI 198-203)

108

Essa palavra deriva do grego eiAtildedwlon que segundo Romizi (2007) significa o aspecto a imagem de um

morto Por isso relaciona-se agrave figura de um fantasma de uma imaginaccedilatildeo de uma sombra 109

Texto diponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D113Acard3

D180 retirado agraves 0718h em 05 de novembro de 2010

119

No uqarto natildeo me matou a arqueira perspicaz

com suas lanccedilas gentis vindo-me de encontro

nem foi doenccedila que me veio para o grande

definhamento abominaacutevel e que o acircnimo dos membros tirou-me

Mas por ti notaacutevel Odisseu a saudade de ti as preocupaccedilotildees contigo

a tua gentileza e doccedilura tudo isso arrebatou minha vida

O heroacutei apoacutes jaacute ter enfrentado tantos desafios e por longo tempo ter ficado errante

por mar e por terra suportando hostilidades de povos diversos depara-se com uma nova

empreitada realizada por poucos de ir ao Hades e voltar No territoacuterio dos mortos depara-se

ainda com uma amedrontadora imagem e barulho sendo rodeado por sombras diversas

paacutelidas sem rosto e sem razatildeo O deinoj apodera-se do heroacutei Mas muito ainda o aguardava e

ele que ao sair de Iacutetaca havia deixado sua matildee viva vem encontraacute-la morta Todavia isso natildeo

eacute suficiente para um heroacutei de tantas dores por isso Anticleacuteia revela-lhe que sua esposa

Peneacutelope vive em pranto infindo e que seu pai Laertes vive plenamente triste e

acabrunhado suportando a velhice E mais ainda ela revela que natildeo a matou a velhice ou a

deusa frecheira mas o proacuteprio filho Odisseu e a saudade que ele deixara O Laertida apesar

de heroacutei eacute um mortal como os demais homens e a estes como diz-nos Vernant (2006) em

Mito e religiatildeo na Greacutecia Antiga as dores e os sofrimentos satildeo comuns E eacute esse caraacuteter

humano que faz dos heroacuteis personagens propensos a do alto do seu heroiacutesmo caiacuterem como

os mortais comuns em tragicidade O traacutegico como vemos ao longo deste trabalho eacute fato

comum na trajetoacuteria de Odisseu apesar de natildeo o ser em seus destinos pois

A Odisseu favorece um destino (moicurrenra) epecial que de fato natildeo estaacute dirigido

para morte mas natildeo obstante o caraacuteter negativo da Moira denuncia-se aiacute

com muita clareza ele deve atravessar graves sofrimentos () Tambeacutem

neste caso o fado trava eacute retributivo ―ainda natildeo ateacute que ndash este eacute o

autecircntico tom da Moira110

()

( OTTO 2005 p 245)

Apesar de estarmos no iniacutecio da anaacutelise fica-nos claro que mesmo diante do

destino fechado de Odisseu a Moicurrenra persegue-o para que antes de gozar de seu prestiacutegio

em Iacutetaca venha passar por muitas dores e sofrimentos Sofrimentos como os que estamos

estudando sua matildee conta-lhe que por culpa so proacuteprio heroacutei Peneacutelope chora infinitamente

seu pai Laertes vive incondicionalmente triste e ela mesma desceu ao Hades por culpa dele

natildeo suportando as saudades Assim tragicamente Odisseu vecirc-se sem o merecer como

culpado pela morte da matildee amada e do sofrer de seu pai e de sua esposa Daiacute decorrer a

110

Os destaques satildeo nossos

120

inocecircncia traacutegica que Romilly diz ser encontrada nas trageacutedias pois ―() mesmo quando nos

satildeo apresentados como culpados mesmo quando suas accedilotildees os arrastam satildeo-no porque o erro

eacute o lote do homem ou porque correspondem a situaccedilotildees que satildeo igualmente o lote do

homem (ROMILLY 2008 p 175)

Assim mesmo sem uma accedilatildeo direta Odisseu eacute responsabilizado pelos

sofrimentos dos seus familiares e principalmente pela morte de sua matildee (Odisseacuteia XI 195-

203) Tal constataccedilatildeo faz-nos recordar de Aristoacuteteles ao afirmar que as cataacutestrofes satildeo mais

traacutegicas quando ocorrem entre familiares

Ὅταν δ᾽ ἐν ταῖς φιλίαις ἐγγένηται τὰ πάθη οἷον ἢ ἀδελφὸς

ἀδελφὸν ἢ υἱὸς πατέρα ἢ μήτηρ υἱὸν ἢ υἱὸς μητέρα ἀποκτείνηι ἢ

μέλληι ἤ τι ἄλλο τοιοῦτον δρᾶι ταῦτα ζητητέον111 (Ibidem XIV

1453b 20-23)

Quando estas cataacutestrofes realizam-se em amizades ou com um irmatildeo que

mata irmatildeo ou um filho que mata o pai ou a matildee que mata o filho ou o

filho que mata a matildee ou quando vecircm ocorrer alguma outra coisa desta

natureza estas coisas tecircm que ser buscadas

Naturalmente entendemos essa concepccedilatildeo aristoteacutelica de que um contexto de

tragicidade entre familiares eou entre personagens que cultivam amizade proporcia maior

comoccedilatildeo e sofrimento sendo portanto ainda mais efetivo para a manifestaccedilatildeo do sentimento

traacutegico Para entendermos tal posiccedilatildeo basta-nos lembrar de Aristoacuteteles dizendo que em meio

agrave dor sofrimentos e mortes aproximamo-nos da cataacutestrofe e portanto do traacutegico (Poeacutetica

1452b 12-14) E esse fato eacute reforccedilado pela fala do porqueiro antigo servo de Odisseu e do

seu pai que no Canto XV ao ser perguntado pelo mendigo (Odisseu) qual o destino de

Laertes e Anticleacuteia responde que Laertes apesar de vivo pede a morte e que Anticleacuteia morta

de saudades teve o pior dos fins

ἡ δ᾽ ἄρετ νὗ παηδὸο ἀπέθζηην θπδαιίκνην

ιεπγαιέῳ ζαλάηῳ ὡο κὴ ζάλνη112

ὅο ηηο ἐκνί γε

ἐλζάδε λαηεηάσλ θίινο εἴε θαὶ θίια ἔξδνη113

111

Texto disponiacutevel em httpwwwhs-

augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante04Aristotelesari_poi2html agraves 2035hs de 17 de julho de

2010 112

Nessa citaccedilatildeo temos trecircs verbos no modo optativo qanoi de qnhskw- morrer eiAtildeh de e)aw- permiter

deixar ocorrer e eAtilderdoi de eAtilderdw- fazer Essa observaccedilatildeo eacute importante pois essa forma lingiacutestica exprime de

modo coerente o contexto da passagem citado Isso porque o optativo exprime a possibilidade o voto o desejo

(MURACHO 2007) Assim o porqueiro exprime seu desejo de que seus conhecidos natildeo tenham a mesma morte

da matildee de Odisseu por isso traduzimos ―que ningueacutem morra ―quenatildeo ocorra ―que natildeo se faccedila

121

(Odisseacuteia XV 358-360)

Ela pereceu pela anguacutestia da morte miseraacutevel e sem gloacuteria

do filho Que ningueacutem meu morra assim que isso natildeo ocorra ao

habitante daqui amigo e que natildeo se faccedila ao que me eacute querido

Atraveacutes da fala de Eumeu o porqueiro percebemos que ele compreende que eacute

muito doloroso morrer indiretamente por culpa de um ente amado E assim diante dessa

morte estruturalmente dolorosa ele pede aos deuses para que ningueacutem em sua ilha ou com

quem ele tenha afeto venha padecer de tatildeo horrorosa morte Padecimento este em que um

filho leva a matildee agrave morte mesmo sem intenccedilatildeo e muito menos sem accedilatildeo direta Odisseu de

forma imerecida torna-se o culpado pelas dores da famiacutelia e pela morte da matildee que foi gerada

pela accedilatildeo da Moicurrenra e do daimacrmwn A riqueza dos detalhes dessa morte somada ao contexto

em que ela foi gerada faz com que esta morte na narrativa seja presentificada aumentando

sua tragicidade Por isso Odisseu natildeo se conteacutem e apoacutes ouvir o relato da matildee que soa para

ele como tortura ele exclama

―ὣο ἔθαη᾽ αὐηὰξ ἐγώ γ᾽ ἔζεινλ θξεζὶ κεξκεξίμαο

κεηξὸο ἐκῆο ςπρὴλ ἑιέεηλ θαηαηεζλεπίεο

ηξὶο κὲλ ἐθσξκήζελ ἑιέεηλ ηέ κε ζπκὸο ἀλώγεη

ηξὶο δέ κνη ἐθ ρεηξλ ζθηῇ εἴθεινλ ἢ θαὶ ὀλείξῳ

ἔπηαη᾽114

(Odisseacuteia XI 205-209)

Dizia eu desejava tecirc-la ao peito mas tendo-a apertado

o espiacuterito da minha matildee morta escapava-me

O acircnimo comandava-me e por trecircs vezes apertei-a

por trecircs vezes tambeacutem como se fosse sombra ou sonho

dos meus braccedilos ela se evolou

Natildeo bastasse todo o relato da matildee pondo-o como responsaacutevel por sua morte

Odisseu para atenuar a dor tenta abraccedilaacute-la por trecircs vezes em vatildeo O heroacutei natildeo compreende

que o corpo anterior de sua matildee agora eacute um eiAtildedwlon mais uma sombra entre tantas outras

vagantes no Hades E esse aspecto do morto intocaacutevel e natildeo palpaacutevel por natureza impede-o

de abraccedilar a matildee e aleacutem do mais isso o faz perceber que aquela eacute uma imagem de sua matildee

de outrora Mas resistindo ao reconhecimento (asup1nagnwiquestrisij) desse fato que sua matildee agora

113

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D153Acard3

D185 retirado agraves 1352h em 10 de novembro de 2010 114

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D113Acard3

D180 retirado agraves 1352h em 10 de novembro de 2010

122

eacute mais um eiAtildedwlon Odisseu tenta agarraacute-la por trecircs vezes Em todas as tentativas

naturalmente ele se frustra por isso questiona agrave matildee o porquecirc daquilo e desconfia se natildeo

seria mais um castigo dessa vez enviado por Perseacutefone enganando-o e iludindo-o atraveacutes de

um fantasma Ela poreacutem explica-lhe que com a morte a carne e os ossos deixam os tendotildees

Isto eacute apoacutes a morte natildeo haacute mais o corpo anterior firme e palpaacutevel o que resta eacute apenas uma

sombra do que foi sombra esta que eacute exatamente o eiAtildedwlon Depois disso Anticleacuteia antes

de partir avisa ao filho que guarde o que ouviu para poder contar em Iacutetaca

Odisseu narra tudo isso aos Feaacutecios que quietos a tudo ouvem E no instante em

que o filho de Laertes pausa seu canto a rainha dos Feaacutecios Arete promete dar-lhe presentes

e Alciacutenoo garante que daraacute o pretenso retorno ao heroacutei Este agradece O rei da Feaacutecia entatildeo

pede para que relate se viu algum dos guerreiros que junto a ele combateu em Troacuteia pois

todos suportariam o sono para ouvi-lo Odisseu diz que se estatildeo dispostos a ouvir ele

continuaraacute a narrativa e assim o faz Diz que narraraacute fatos ainda mais graves pois viu padecer

seus companheiros diletos vitoriosos em Troacuteia O primeiro deles a aproximar-se eacute

Agamecircmnon que bebe do sangue e realiza altos gemidos estendendo as matildeos para Odisseu

Este percebe que o Atrida natildeo tem mais o vigor de antes quando em Troacuteia comandava os

guerreiros e diante dessa imagem o filho de Laertes sente o peito apertar e potildee-se a chorar

(Odisseacuteia XI 391-395)

Na guerra de Troacuteia Agamecircmnon era o detentor do cetro o aAtildenac asup1ndrwIacuten o

senhor dos heroacuteis era o responsaacutevel por comandar todos os gregos Nessa passagem Odisseu

dapara-se com o rei de Micenas o supremo chefe dos aqueus elevando altos gemidos

estendendo as matildeos como em pedido de auxiacutelio tambeacutem sem vigor nos membros Diante da

cena Odisseu com o peito apertado vai agraves laacutegrimas A cena suscita a esup1leoj pois

aristotelicamente sente-se compaixatildeo ao ver-se em semelhante desventura Mas Odisseu

ainda natildeo sabe o porquecirc da morte do Atrida e pergunta se foi obra de Posiacutedon de inimigos na

disputa de mulheres ou na conquista de cidades Agamecircmnon nega essas opccedilotildees e responde

ἀιιά κνη Αἴγηζζνο ηεύμαο ζάλαηόλ ηε κόξνλ ηε

ἔθηα ζὺλ νὐινκέλῃ ἀιόρῳ νἶθόλδε θαιέζζαο

δεηπλίζζαο ὥο ηίο ηε θαηέθηαλε βνῦλ ἐπὶ θάηλῃ

ὣο ζάλνλ νἰθηίζηῳ ζαλάηῳ πεξὶ δ᾽ ἄιινη ἑηαῖξνη

λσιεκέσο θηείλνλην () ἤδε κὲλ πνιέσλ θόλῳ ἀλδξλ ἀληεβόιεζαο

κνπλὰμ θηεηλνκέλσλ θαὶ ἐλὶ θξαηεξῇ ὑζκίλῃ

ἀιιά θε θεῖλα κάιηζηα ἰδὼλ ὀινθύξαν ζπκῶ

123

ὡο ἀκθὶ θξεηῆξα ηξαπέδαο ηε πιεζνύζαο

θείκεζ᾽ ἐλὶ κεγάξῳ δάπεδνλ δ᾽ ἅπαλ αἵκαηη ζῦελ115

(Odisseacuteia XI 409-413416-420)

Mas a mim Egisto causou a morte e o destino desgraccedilado

pois junto com minha esposa maldita ao chamar-me em sua casa para um

banquete]

matou-me do modo como algueacutem mata um boi na manjedoira

Assim morri da morte mais lamentaacutevel ao meu redor os demais

companheiros]

eles mataram continuamente ()

Jaacute presenciaste a morte de muitos guerreiros

seja morrendo em combates individuais ou em batalha poderosa

Mas tendo visto aquilo sofrerias muitiacutessimo no coraccedilatildeo

pois ao redor de crateras e mesas que tinham estado haacute pouco cheias

estaacutevamos deitados no salatildeo com o chatildeo todo ensanguumlentado116

Agamecircmnon ainda completa que mais doloroso foi ouvir os gritos de Cassandra

descendente dos troianos trazida por ele para servir-lhe como escrava Diante da narraccedilatildeo

acima podemos perceber muitos elementos que nos indicam a presenccedila do traacutegico Tanto que

Eacutesquilo (2004) iraacute se inspirar nesse episoacutedio para a composiccedilatildeo de sua trilogia traacutegica a

Oresteacuteia Desse modo o aAtildenac asup1ndrwIacuten apoacutes aacuterdua batalha em Troacuteia aguarda ser recebido

por festas e consagraccedilotildees em sua terra Mas o que o aguarda eacute a morte funesta elaborada por

sua esposa Clitemnestra junto com o seu amante Egisto Por isso o Atrida

conscientemente afirma ―ὣς θάνον οἰκτίστωι θανάτωιrdquo117 isto eacute ―Assim morri com a

morte mais lamentaacutevel (Odisseacuteia Canto XI v 412)

Eacute atraveacutes de passagens como essa que Homero lega aos tragedioacutegrafos o espiacuterito

traacutegico e seu contexto em que os deuses natildeo mais satildeo o siacutembolo da proteccedilatildeo como eacute comum

vermos na eacutepica Eles agora implusionam o homem para o erro este que por sua vez levaraacute o

homem ao traacutegico Pois os deuses ―jaacute natildeo mais iluminam antes seduzem e transviam eacute o

caminho da queda (OTTO 2005 p 259) como seraacute tiacutepico da trageacutedia no seacuteculo V aC

Temos a accedilatildeo da Moicurrenra impelindo o heroacutei para o destino mais catastroacutefico a morte sem

gloacuteria sem nobreza Nos diaacutelogos entre Odisseu com os antigos companheiros em Troacuteia

como eacute o caso do citado com Agamecircmnon percebemos que esses heroacuteis antes tatildeo protegidos

115

Retirado de

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D113Acard3

D40 retirado agraves 1426h em 10 de novembro de 2010 116

Destaque nosso 117

Verso disponiacutevel em

httpwwwhsaugsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_od11html agraves 1533hs ded 12

de julho de 2010

124

pelas divindades como ocorre na Iliacuteada vecircem-se desolados nas matildeos do destino Este guarda

para eles a morte funesta como uacuteltimo grande legado pois ―() eacute o destino da vida natildeo

alcanccedilar tais e tais coisas falhar aqui e ali e finalmente decair () (Ibidem p 258)

Entre os versos 412-413 o Atrida abatido pela morte vergonhosa sugere-nos

mais um elemento traacutegico que Vernant trata em Mito e Trageacutedia na Greacutecia Antiga (2008

p2) o heroacutei deixou de ser soluccedilatildeo para figurar como problema natildeo apenas para si mas

tambeacutem para os outros Assim o aAtildenac asup1ndrwIacuten que antes no comando dos demais heroacuteis

saiu vencedor na guerra de Troacuteia torna-se presa na matildee da esposa e do seu amante

Ao desembarcar em Argos o rei traz a vitoacuteria para os seus e em contrapartida

recebe a morte por matildeos familiares Contudo a morte natildeo atinge apenas o rei que pelo

miasmoj118 de sua famiacutelia e por accedilotildees proacuteprias deveria ser punido mas tambeacutem seus

companheiros que satildeo vitimados sem culpa nenhuma mesmo sem descenderem dos Atridas

nem serem responsaacuteveis pela morte de Ifigecircnia119

Mesmo assim imerecidamente eles que

pensavam ser exaltados ao retornarem agrave paacutetria satildeo tragicamente mortos

O mesmo ocorre com Cassandra pois apesar de natildeo cometer aumlmartia ou

uAacutebrij tem tambeacutem uma morte traacutegica ligada ao aspecto irracional do imerecido Assim

aquele rei que antes solucionava os problemas do seu povo torna-se o culpado pela morte sua

dos seus companheiros e de Cassandra que ele havia trazido como geiquestraj precircmio de guerra

Este distingue o heroacutei dos demais aleacutem de assegurar-lhe a timh120 a honra E para desonra e

humilhaccedilatildeo completa de Agamecircmnon Clitemnestra e Egisto natildeo apenas o matam mas

tambeacutem aniquilam Cassandra Assim natildeo vive nem mais a lembranccedila do heroacutei eacutepico que foi

Agamecircmnon nem o seu geiquestraj simbolizava Ao contraacuterio com a morte de Cassandra e dos

demais fica-nos o siacutembolo do Atrida como o heroacutei traacutegico que acarretou problema para si e

para os demais

Tendo reconhecido sua figuraccedilatildeo traacutegica Agamecircmnon ainda completa que apesar

de Odisseu jaacute ter presenciado todo o tipo de morte ainda assim ―ἀιιά θε θεῖλα κάιηζηα ἰδὼλ

118

Este termo indica a ―contaminaccedilatildeo transcendental que neste caso pode ser exemplificada pela

contaminaccedilatildeo gerada pela famiacutelia Atrida atraveacutes de fatos como por exemplo o Banquete de Tiestes e por isso

seus descendentes contaminados teriam de pagar pelos erros do passado sendo aniquilados 119

Essa referecircncia deve-se ao fato de que Clitemnestra utiliza como justificativa para matar o esposo o fato de

ele ter lhe tirado a querida filha Isso pode ser melhor avaliado atraveacutes de Ifigecircnia em Aacuteulis de Euriacutepedes (2002) 120

Para entendermos a importacircncia da timh para um heroacutei grego conveacutem voltarmos ao iniacutecio do primeiro

capiacutetulo do nosso trabalho em que fazemos um comentaacuterio elucidador a este respeito relacionando-a com

Aquiles na Iliacuteada

125

ὀινθύξαν ζπκῶ ―() ante aquele espetaacuteculo terias sentido piedaderdquo121

(XI 418) Neste

verso encontramos dois fatos que reforccedilam nossa tese A primeira eacute que nesse Canto XI

Odisseu presencia uma espeacutecie de ―espetaacuteculo traacutegico o que pode ser observado atraveacutes dos

detalhes que satildeo dados das cenas em que ocorre a accedilatildeo aleacutem de todos os elementos traacutegicos

como a morte por matildeo parental imerecida inesperada acarretando a desonra do heroacutei enfim

Detalhes esses que apesar de Odisseu apenas estar ouvindo propiciam-lhe uma vivecircncia do

fato traacutegico como se eles estivessem se realizando sob os seus olhos proporcionando-o uma

imagem teatral O proacuteprio narrador neste caso Agamecircmnon ao fazer a descriccedilatildeo de sua

morte refere-se a ela como um ―espetaacuteculo122

Nos versos acima a exemplo de ―Quando nos

visses no meio dos copos e mesas repletas pelo salatildeo a fazer e no soalho a sangueira

escorrendo a riqueza dos detalhes nos proporciona visualizar o narrado como uma imagem

presentificada aos nossos olhos Assim Odisseu como espectador desse ―teatro traacutegico

apieda-se

No iniacutecio do paraacutegrafo anterior dissemos que no verso 418 do Canto XI haacute dois

fatos que reiteram nossa proposta de anaacutelise O primeiro sobre o qual jaacute comentamos refere-

se agrave ―encenaccedilatildeo traacutegica que no Canto XI desenrola-se por meio dos diaacutelogos aos olhos de

Odisseu O segundo diz respeito ao que defendemos desde o iniacutecio deste trabalho sobre o

despertar do sentimento de piedade que seraacute gerado principalmente a partir dos encontros

que o heroacutei tem no Hades O sentimento de esup1leoj como enfatizamos eacute fator importante para

que tenhamos a kaqarjij desde que esteja junto a um outro sentimento que eacute o fomacrboj

(Poeacutetica XIII 1453a 5-6)

Como sabemos a esup1leoj eacute suscitada quando nos deparamos com o imerecido

Relacionando essa assertiva com a anaacutelise do Canto XI da Odisseacuteia percebamos que

Agamecircmnon narra a forma de sua morte de seus companheiros e de Cassandra Mortes estas

que de modo geral relacionam-se ao imerecido123

Portanto entendamos que o Atrida pelo

121

Destaque nosso 122

Esse espetaacuteculo traacutegico ao qual nos referimos e que eacute presentificado neste Canto XI foi responsaacutevel por

influenciar os autores traacutegicos do seacuteculo V a exemplo de Eacutesquilo (2004) Este inspirado na cena traacutegica jaacute

iniciada por Homero produziu as suas na trageacutedia Vejamos tambeacutem a riqueza dos detalhes jaacute que a morte natildeo

era encenada e sim anunciada pelo coro

ὤκνη κνη θνίηαλ ηάλδ᾽ ἀλειεύζεξνλ

δνιίῳ κόξῳ δακεὶο

ἐθ ρεξὸο ἀκθηηόκῳ βειέκλῳ

(Agamecircmnon v 1513 -1520)

Oacutemoi oacutemoi Neste indigno repouso

Tendo sido dominado sob trapaceira sorte

Pela matildeo com arma cortante de ambos os lados

123

Para podermos compreender melhor o sentido traacutegico dessas mortes seria necessaacuterio um estudo mais

especiacutefico da trageacutedia Agamecircmnon (2004) que neste momento natildeo eacute o nosso objetivo

126

fato de carregar desde o seu nascimento uma maacutecula transcendental (miasmoj) de sua

famiacutelia estaacute fadado a cometer a aumlmartia124 que por sua vez iraacute levaacute-lo agrave morte imerecida

E Odisseu sente compaixatildeo ao ver o seu comandante em Troacuteia vigoroso rei em choro

incontido Jaacute em relaccedilatildeo agrave morte dos seus companheiros e de sua escrava Cassandra esse

imerecido eacute bem mais claro de entender jaacute que eles nada fizeram para merecer esse triste fim

pois ateacute mesmo a relaccedilatildeo que tinham com o rei era de subordinaccedilatildeo Por isso a descriccedilatildeo

dessas imerecidas mortes eacute traacutegica inspirando em Odisseu a esup1leoj

Deste modo para reiterar nossa defesa de que nos diaacutelogos do Canto XI Odisseu

iraacute experienciar a kaqarjij inspirado pelo fomacrboj e pela esup1leoj consideramos importante

recorrermos agrave Retoacuterica das Paixotildees de Aristoacuteteles (2003) Assim vejamos primeiramente o

que Aristoacuteteles (2003) define sobre a esup1leoj E discorrendo sobre a compaixatildeo o filoacutesofo

daacute-nos tambeacutem uma informaccedilatildeo de que para sentirmos a piedade temos que estar vulneraacuteveis

a pensar que o mal com o qual nos compadecemos tambeacutem pode ocorrer conosco ou com

quem amamos

ἔζησ δὴ ἔιενο ιύπε ηηο ἐπὶ θαηλνκέλῳ θαθῶ θζαξηηθῶ ἢ ιππεξῶ ηνῦ

ἀλαμίνπ ηπγράλεηλ ὃ θἂλ αὐηὸο πξνζδνθήζεηελ

ἂλ παζεῖλ ἢ ηλ αὑηνῦ ηηλα θαὶ ηνῦην ὅηαλ πιεζίνλ θαίλεηαη δῆινλ γὰξ ὅηη

ἀλάγθε ηὸλ κέιινληα ἐιεήζεηλ ὑπάξρεηλ ηνηνῦηνλ νἷνλ νἴεζζαη παζεῖλ ἄλ ηη

θαθὸλ ἢ αὐηὸλ ἢ ηλ αὑηνῦ ηηλα θαὶ ηνηνῦην θαθὸλ νἷνλ εἴξεηαη ἐλ ηῶ ὅξῳ

ἢ ὅκνηνλ ἢ παξαπιήζηνλ125

(Retoacuterica das Paixotildees II 8 13-18)

Seja entatildeo a compaixatildeo certo pesar por um mal que se mostra destrutivo ou

penoso e atinge quem natildeo o merece mal que poderia esperar sofrer a

proacutepria pessoa ou um de seus parentes e isso quando esse mal parece

iminente com efeito eacute evidentemente necessaacuterio que aquele que vai sentir

compaixatildeo esteja em tal situaccedilatildeo que creia poder sofrer algum mal ou ele

proacuteprio ou um de seus parentes ()126

(ARISTOacuteTELES 2003 p53)

Buscando ampliar nossa concepccedilatildeo de compaixatildeo resolvemos procurar em

Retoacuterica das Paixotildees informaccedilotildees complementares que viessem auxiliar-nos a entender os

124

Para compreendermos melhor a aumlmartia cometida por Agamecircmnon devemos recorrer a duas trageacutedias

Agamecircmnon o primeiro livro da Oresteacuteia (2004) e Ifigecircnia em Aacuteulis (2002) Atraveacutes dessas obras observamos

que o Atrida derramou sangue parental de sua proacutepria filha daiacute a aumlmartia Contudo sabemos que sua accedilatildeo

foi necessaacuteria pois como puniccedilatildeo de Aacutertemis por ele querer medir-se com ela no arco se ele natildeo sacrificasse a

filha natildeo haveria ventos para os gregos alcanccedilarem Troacuteia ficando presos numa ilha 125

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100593Abook3D23Achapter

3D83Asection3D2 retirado agraves 1503h em 25 de novembro de 2010 126

(FONSECA 2003 p 53)

127

pressupostos do traacutegico presentes na Poeacutetica nossa base de estudo E nesse percurso de

ampliaccedilatildeo do entendimento sobre a esup1leoj obtemos mais uma informaccedilatildeo relevante que vem

reiterar nosso trabalho Ou seja segundo Aristoacuteteles (2003) aleacutem do fato de sentirmos

compaixatildeo diante de um fato doloroso e imerecido temos tambeacutem de estar vulneraacuteveis a

passar pelo mesmo padecimento soacute assim efetivamente o sentimento de compaixatildeo pode ser

suscitado Odisseu entatildeo tanto se depara com um sofrer imerecido como tambeacutem estaacute

vulneraacutevel a passar por tudo o que o Atrida passou pois ele tambeacutem apoacutes longos anos

distante retornaraacute ao seu lar podendo sim vir a encontrar sua morte armada pela esposa

junto com um amante Tanto estaacute susceptiacutevel a passar pelo mesmo que o rei de Argos alerta-o

para ter cuidado com a esposa natildeo lhe contando seus planos pois apesar de acreditar que

Peneacutelope natildeo seria capaz de tal ato diz que natildeo se pode confiar nas mulheres (XI 441-456)

Essa vulnerabilidade de Odisseu a vir a ser traacutegico como Agamecircmnon fica bem claro quando

no Canto XIII ao chegar em Iacutetaca as primeiras palavras que diz eacute em relaccedilatildeo a seu destino

que seria semelhante ao de Agamecircmnon caso natildeo fosse a proteccedilatildeo de Atena Pois assim

como o Atrida ele tambeacutem poderia ter a morte aguardando-lhe em casa o primeiro por causa

da esposa e do amante e no caso de Odisseu por accedilatildeo planejada dos pretendentes

Outra informaccedilatildeo tambeacutem nos eacute importante a respeito do suscitar da piedade Eacute

que para Aristoacuteteles (2003) noacutes nos compadecemos dos conhecidos ou dos nossos

semelhantes seja em idade seja em haacutebito enfim E nessa condiccedilatildeo Odisseu tambeacutem estaacute

inserido pois sabemos que eles natildeo satildeo apenas conhecidos como tambeacutem havia certa

semelhanccedila entre eles Aleacutem do mais a experiecircncia traacutegica do filho de Anticleacuteia e seu

compadecimento justificam-se tambeacutem porque ―com Agamecircmnon seu comandante-em-chefe

Odisseu se comportava com infaliacutevel lealdade () respeitava a hierarquia e reconhecia em

Agamecircmnon o portador do cetro (BEYE 2006 p 66) Essa relaccedilatildeo de companheirismo

entre Agamecircmnon e Odisseu pode ser observada tambeacutem na Iliacuteada Tatildeo marcante foi essa

relaccedilatildeo que ciente disso Eacutesquilo faz tambeacutem uma referecircncia a esse companheirismo em

Agamecircmnon (2004) Por isso ao desembarcar em Argos o Atrida saudado pelo coro por sua

volta relembra os enfrentamentos em Troacuteia e dos falsos homens com exceccedilatildeo de Odisseu Eacute

o que vemos no livro I Agamecircmnon da Oresteacuteia (2004) entre os versos 832-843

παύξνηο γὰξ ἀλδξλ ἐζηη ζπγγελὲο ηόδε

θίινλ ηὸλ εὐηπρνῦλη᾽ ἄλεπ θζόλνπ ζέβεηλ

δύζθξσλ γὰξ ἰὸο θαξδίαλ πξνζήκελνο

ἄρζνο δηπινίδεη ηῶ πεπακέλῳ λόζνλ

ηνῖο η᾽ αὐηὸο αὑηνῦ πήκαζηλ βαξύλεηαη

θαὶ ηὸλ ζπξαῖνλ ὄιβνλ εἰζνξλ ζηέλεη

128

εἰδὼο ιέγνηκ᾽ ἄλ εὖ γὰξ ἐμεπίζηακαη

ὁκηιίαο θάηνπηξνλ εἴδσινλ ζθηᾶο

δνθνῦληαο εἶλαη θάξηα πξεπκελεῖο ἐκνί

κόλνο δ᾽ δπζζεύο ὅζπεξ νὐρ ἑθὼλ ἔπιεη

δεπρζεὶο ἕηνηκνο ἦλ ἐκνὶ ζεηξαθόξνο

εἴη᾽ νὖλ ζαλόληνο εἴηε θαὶ δληνο πέξη127

ιέγσ (Eacutesquilo Agamecircmnon 832-843)

Poucos entre os homens tecircm congecircnito

Respeito sem inveja por amigo fausto

Maleacutevolo veneno sentado no coraccedilatildeo

Duplica o mal de quem dela adoece

Eacute oprimido por seu proacuteprio sofrimento

E pranteia ao ver alheia prosperidade

Ciente eu diria pois bem conheccedilo

O espelho social imagem de sombra

Satildeo aparentes os beneacutevolos comigo

Soacute Odisseu que invito navegou

Foi sob o jugo o meu pronto parceiro

Fale eu dele morto ou ainda vivo128

Atraveacutes dessa passagem percebemos que toda a relaccedilatildeo construiacuteda entre Odisseu

e Agamecircmnon intensifica seu compadecimento para com o Atrida E isto foi aproveitado

tambeacutem por Eacutesquilo (2004) na elaboraccedilatildeo do primeiro livro da Oresteacuteia Assim verificamos

que Homero legou aos tragedioacutegrafos a essecircncia do traacutegico como procuramos demonstrar

nesta anaacutelise do Canto XI Sabemos de um modo geral que algumas cenas eacutepicas serviram

de inspiraccedilatildeo para as trageacutedias mas no caso do Canto XI temos duas em especiacutefico uma

relacionada aos momentos de diaacutelogo entre Odisseu e Agamecircmnon e a outra do Laertida com

Aacutejax como veremos mais agrave frente E a influecircncia que duas cenas deste canto tiveram para o

surgimento de duas peccedilas Agamecircmnon de Eacutesquilo (2004) e Aacutejax de Soacutefocles (2008)

mostrando o quanto satildeo significativas as imagens traacutegicas que analisamos nesse canto jaacute que

estas produzem o que para muitos eacute o objetivo maior da trageacutedia a kaqarjij Mas isso

veremos com mais acuidade mais a frente por hora continuemos a analisar o texto pela

linearidade da narrativa

Pego por esse destino Agamecircmnon lamenta e ainda inconformado chora pois

jamais pensara que em casa aguardava-o a morte Ao contraacuterio apoacutes os dez anos de Guerra

dos combates dos sofrimentos comuns no campo de batalha da vitoacuteria sobre os troianos

sendo ele o comandante o aAtildenac asup1ndrwIacuten deparou-se com o inesperado destino

127

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100033Acard3D810 retirado agraves

1816h em 15 de outubro de 2010 128

(TORRANO 2004 p161)

129

() ἦ ηνη ἔθελ γε

ἀζπάζηνο παίδεζζηλ ἰδὲ δκώεζζηλ ἐκνῖζηλ

νἴθαδ᾽ ἐιεύζεζζαη ()129

(Odisseia XI 430-432)

Na verdade ele dizia

bem-vindo eu esperava ser para os filhos e para os escravos

em minha volta para casa

Na passagem acima podemos perceber dois fatos importantes o primeiro eacute o

conflito entre o plano humano e o divino o segundo eacute o confronto entre o heroacutei eacutepico e o

traacutegico Entre os versos 430 e 432 observamos que Agamecircmnon diante do grande feito em

Troacuteia espera em casa ser glorificado exaltado pelo povo de Argos e saudado pelos filhos e

pela consorte Ou seja o Atrida conta com a gloacuteria mas o que o espera eacute a morte vergonhosa

Esse conflito decorre do fato de termos dois planos incongruentes um feito pelo homem e

outro pelos deuses Neste caso o homem eacute Agamecircmnon planejando ser exaltado no retorno

da guerra e a divindade eacute a Moicurrenra que planeja sua morte indigna para apagar o miasmoj

da famiacutelia Atrida e a sua aumlmartia ao ter matado mesmo por necessidade a proacutepria filha E

neste caso ―haacute uma consciecircncia traacutegica da responsabilidade quando os planos humano e

divino satildeo bastante distintos para se oporem sem que entretanto deixem de parecer

inseparaacuteveis (VERNANT 2008 p 4) Nessa situaccedilatildeo naturalmente o plano divino se opotildee

levando o homem agrave cataacutestrofe Odisseu a tudo ouve atentamente e percebe que nenhum

homem pode medir-se com o plano divino pois apesar da ideacuteia de que ―a presenccedila divina

ilumina o homem e lhe evita o tropeccedilo (OTTO 2005 p253) sabe-se tambeacutem que ―() tudo

procede das matildeos dos deuses inclusive o traacutegico da vida humana (ibidem p 255)

O outro fato importante citado no iniacutecio do paraacutegrafo anterior diz respeito ao

choque de sua proacutepria figura enquanto heroacutei eacutepico tornando-se heroacutei traacutegico Como sabemos

na Iliacuteada (2009) Agamecircmnon teraacute papel fundamental sendo o chefe dos guerreiros e

comandando as decisotildees tanto que o Canto XI da Iliacuteada eacute dedicado a contar seus grandes

feitos eacute a aristia do Atrida E eacute esse personagem que chega em Argos com todo o seu orgulho

e toda a sua gloacuteria mas ao desembarcar ele jaacute natildeo eacute mais o heroacutei eacutepico passando entatildeo

como vemos em Agamecircmon (2004) a representar o heroacutei traacutegico que encontra a morte nas

matildeos da esposa E nesse diaacutelogo com Odisseu Agamecircmnon deixa evidente o conflito que ele

129

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D113Acard3

D404 retirado agraves 1800h em 15 de outubro de 2010

130

proacuteprio sofreu esperando ser tratado como eacutepico Por isso diz que esperava ser bem-recebido

pelos familiares e pelos servos do palaacutecio (XI 430-434)

Contudo na conversa em que Odisseu tem com o Atrida este deixa-nos perceber

seu conflito pois o que ele pensara ser (heroacutei eacutepico) antepotildee-se com o que ele veio a ser um

heroacutei traacutegico no momento em que desembarca em Argos Isso porque apesar de estarmos

estudando uma eacutepica podemos perceber que a configuraccedilatildeo de Agamecircmnon jaacute na Odisseacuteia eacute

a de um heroacutei de destino traacutegico fato esse que posteriormente Eacutesquilo desenvolveu na

trageacutedia E esse conflito que o proacuteprio Atrida nos expotildee ao esperar em casa ser tratado com

as honrarias do heroacutei eacutepico acentua ainda mais a tragicidade desse personagem refletido na

Odisseacuteia Isso porque atraveacutes da conversa com o Laertida o Atrida mostra a transposiccedilatildeo de

como ele se reconhecia eacutepico e passou a ver-se como traacutegico chegando a exclamar ―ὣς

θάνον οἰκηίζηῳ θανάηῳrdquo130 isto eacute ―Assim morri com a morte mais lamentaacutevel (Odisseacuteia

Canto XI v 412)

Apoacutes ter ouvido como o senhor dos heroacuteis morreu pelas matildeos da esposa e do

amante Odisseu apieda-se e mostra perceber a accedilatildeo do daimacrmwn no destino de Agamecircmnon

por isso fala que Zeus natildeo destinou coisas boas para os Atridas pois Menelau tinha uma

esposa Helena culpada pela morte de muitos homens em Troacuteia e ele tinha Cliptemenstra

que veio ocasionar sua proacutepria morte (Odisseia XI 436-439)

Essa percepccedilatildeo que Odisseu tem da accedilatildeo dos superiores no destino de

Agamecircmnon eacute uma habilidade que em muitos momentos ele nos mostra Tanto que ao

decorrer do toacutepico anterior vimos que ele sempre percebia quando o daimacrmwn agia sobre ele e

seus companheiros Entatildeo assim tambeacutem ele faz com o Atrida exemplificando a accedilatildeo do

daimacrmwn atraveacutes dos feitos de Helena e Clitmenestra Observemos que essa accedilatildeo do divino

pode levar o homem ao traacutegico ou agrave ventura No caso de Agamecircmnon leva-o ao destino

traacutegico no caso de Odisseu como foi visto no toacutepico anterior leva-o agraves situaccedilotildees traacutegicas E

o seu destino soacute natildeo eacute traacutegico por causa da accedilatildeo divina especificamente pela proteccedilatildeo de

Atena E isso o heroacutei de Iacutetaca tambeacutem observa Assim ao desembarcar em sua cidade e ser

avisado pela deusa do perigo dos pretendentes ele diz que se natildeo fosse pelos avisos de

Atena ele teria em casa o destino funesto assim como Agamecircmnon (XIII 383-386)

Na continuidade do diaacutelogo entre Odisseu e Agamecircmnon este pergunta sobre

notiacutecias do filho O esposo de Peneacutelope diz natildeo saber E insistentemente o Atrida repete para

130

Texto disponiacutevel em httpwwwhs-

augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_od11html agraves 1533hs ded 12 de julho de

2010

131

que Odisseu natildeo confie na esposa e tenha cuidado ao retornar pois um grande mal pode estar

aguardando-o E ficam conversando e chorando um por seu destino traacutegico e o outro pelas

situaccedilotildees traacutegicas que ateacute entatildeo vinha sofrendo

A dor manifestada por ambos eacute fruto do enlace traacutegico em que se assemelham um

no destino o outro nas circunstacircncias da vida E assim percebemos a presenccedila do traacutegico na

vida desses personagens Contudo para Odisseu este contato reserva-lhe natildeo apenas o

protagonismo do traacutegico como analisamos no toacutepico anterior mas tambeacutem a experiecircncia do

traacutegico como espectador Pois apesar de o fato natildeo ocorrer aos seus olhos a descriccedilatildeo

detalhada dos fatos torna possiacutevel a visualizaccedilatildeo de todo o ocorrido Aleacutem do mais jaacute nos diz

Aristoacuteteles

ηλ δὲ ινηπλ ἡ κεινπνηία κέγηζηνλ ηλ ἡδπζκάησλ ἡ δὲ ὄςηο

ςπραγσγηθὸλ κέλ ἀηερλόηαηνλ δὲ θαὶ ἥθηζηα νἰθεῖνλ ηῆο πνηεηηθῆο ἡ γὰξ

ηῆο ηξαγῳδίαο δύλακηο θαὶ ἄλεπ ἀγλνο θαὶ ὑπνθξηηλ ἔζηηλ ()131

(Poeacutetica

VI 1450b 18-20)

Assim mesmo sem atores e sem encenaccedilatildeo a trageacutedia por si proacutepria eacute

convincente aleacutem do mais para a montagem mais importante satildeo os

inteacuterpretes do que os poetas

Assim como espectador do traacutegico cantado satildeo suscitados em Odisseu tanto a

esup1leoj como jaacute explicamos assim tambeacutem como o fomacrboj levando-o agrave kaqarsij Para

que compreendamos tal afirmaccedilatildeo assim como fizemos para entender a esup1leoj recorramos

tambeacutem agrave Retoacuterica das Paixotildees para entendermos o fomacrboj Em nosso estudo da Poeacutetica no

segundo capiacutetulo vimos que Aristoacuteteles afirma que o sentimento de temor eacute gerado para com

nosso semelhante (Poeacutetica XIII 1453a 5-6) Entatildeo para que esse sentimento seja melhor

compreendido buscamos na Retoacuterica das Paixotildees um maior esclarecimento sobre o fomacrboj

o que ele significa como ele eacute suscitado enfim Assim Aristoacuteteles (2003) define o fomacrboj

ἔζησ δὴ ὁ θόβνο ιύπε ηηο ἢ ηαξαρὴ ἐθ θαληαζίαο κέιινληνο θαθνῦ

θζαξηηθνῦ ἢ ιππεξνῦ νὐ γὰξ πάληα ηὰ θαθὰ θνβνῦληαη νἷνλ εἰ ἔζηαη

ἄδηθνο ἢ βξαδύο ἀιι᾽ ὅζα ιύπαο κεγάιαο ἢ θζνξὰο δύλαηαη θαὶ ηαῦηα ἐὰλ

κὴ πόξξσ ἀιιὰ ζύλεγγπο θαίλεηαη ὥζηε κέιιεηλ132

(Retoacuterica das Paixotildees II 5 21-25)

131

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100553Asection3D1450b

retirado agraves 0900h em 18 de outubro de 2010 132

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100593Abook3D23Achapter

3D53Asection3D1 retirado agraves 2012h em 15 de outubro de 2010

132

Seja entatildeo o temor certo desgosto ou preocupaccedilatildeo resultantes da suposiccedilatildeo

de um mal iminente ou danoso ou penoso pois natildeo se temem todos os

males por exemplo o de que algueacutem injusto ou de espiacuterito obtuso mas sim

aqueles males que podem provocar grandes desgostos ou danos e isso

quando natildeo se mostram distantes mas proacuteximos e iminentes133

(ARISTOacuteTELES 2003 p31)

Pela definiccedilatildeo observamos que o fomacrboj eacute suscitado por um mal que

injustamente acarreta danos graves a uma pessoa e aleacutem do mais aparece na iminecircncia de

ocorrer tambeacutem para outrem - assim este veraacute em si surgir o fomacrboj Aristoacuteteles (2003)

completa ainda que satildeo temiacuteveis os danos sem soluccedilatildeo gerados por forccedila superior e que soacute

tememos por aquilo que tambeacutem podemos vir a sofrer Aleacutem disso o temor surge quando o

ouvinte presencia o sofrimento de algueacutem mais forte superior ou semelhante a ele Explica-

nos Aristoacuteteles

ὥζηε δεῖ ηνηνύηνπο παξαζθεπάδεηλ ὅηαλ ᾖ βέιηηνλ ηὸ θνβεῖζζαη αὐηνύο ὅηη

ηνηνῦηνί εἰζηλ νἷνλ παζεῖλ (θαὶ γὰξ ἄιινη κείδνπο ἔπαζνλ) θαὶ ηνὺο

ηνηνύηνπο δεηθλύλαη πάζρνληαο ἢ πεπνλζόηαο θαὶ ὑπὸ ηνηνύησλ ὑθ᾽ ὧλ νὐθ

ᾤνλην θαὶ ηαῦηα ltἃgt θαὶ ηόηε ὅηε νὐθ ᾤνλην (Retoacuterica das Paixotildees II 5

8-12)

Assim quando eacute melhor que os ouvintes sintam temor eacute preciso pocirc-los nessa

disposiccedilatildeo de espiacuterito dizendo-lhes que podem sofrer algum mal pois

outros mais fortes que eles sofreram e mostrar-lhes que pessoas como eles

sofrem ou sofreram por parte de que natildeo imaginavam essas provaccedilotildees e em

circunstacircncias que natildeo esperavam (p 35)

Diante das definiccedilotildees e explicaccedilotildees acima podemos sugerir entatildeo que o fomacrboj eacute

suscitado em Odisseu atraveacutes do canto de Agamecircmnon tendo em vista que o Laertida eacute

colocado a defrontar-se com um grande mal imerecido injusto que ao mesmo tempo

aparece-lhe iminente jaacute que ele pode vir a passar pelo mesmo quando voltar a Iacutetaca Aleacutem

disso esse mal eacute sofrido por um superior que padeceu de um mal inesperado Assim

constatamos que Odisseu aleacutem de ser inspirado pela compaixatildeo (esup1leoj) tambeacutem o eacute pelo

temor (fomacrboj) podendo desta forma chegar agrave kaqarsij dos seus sofrimentos (Poeacutetica VI

1449b 24-28)

No Canto XI da Odisseacuteia por meio do diaacutelogo de Odisseu e Agamecircmnon no

Hades percebemos o traacutegico circundar a vida dos dois personagens O primeiro visualiza

como um espectador traacutegico a dolorosa e indigna morte do Atrida atraveacutes de sua narraccedilatildeo

133

(Trad FONSECA 2003 P31)

133

Essa visualizaccedilatildeo do traacutegico permite que em Odisseu sejam suscitados o fomacrboj e a esup1leoj

que o levam agrave kaqarsij ou seja a purificaccedilatildeopurgaccedilatildeo de todos seus padecimentos Jaacute em

relaccedilatildeo a Agamecircmnon percebemos atraveacutes da narraccedilatildeo que ele mesmo faz de sua morte que

ele natildeo eacute mais um heroacutei eacutepico como jaacute fora na Iliacuteada (2009) e sim bem mais proacuteximo do

heroacutei traacutegico atraveacutes do qual Eacutesquilo (2004) desenvolveu na trageacutedia Heroacutei esse envolto com

os elementos mais comuns de tragicidade o imerecido injusto aumlmartia a uAacutebrij a accedilatildeo

do daimacrmwn fazendo surgir a esup1leoj e o fomacrboj para desencadear na kaqarsij

No transcorrer da conversa lamuriosa entre Odisseu e o Atrida aparece o

eiAtildedwlon de Aquiles O Pelida questiona ao filho de Laertes o porquecirc dessa nova empreitada

e principalmente porque teve que ser logo no Hades local dos mortos sem consciecircncia em

que haacute apenas os simulacros dos homens que um dia viveram (XI 467-472) Jaacute podemos

perceber por essa fala de Aquiles a condiccedilatildeo miseraacutevel das sombras no Hades em que a

inconsciecircncia supera todas as gloacuterias que tiveram em vida O Laertida responde ao Pelida que

desde que saiu de Troacuteia natildeo retornou agrave paacutetria ao contraacuterio sofre a vagar pelas terras e que

sua visita ao Hades foi para consultar Tireacutesias para que este pudesse orientar-lhe sobre o

retorno para casa Odisseu depois de ter visto a lamentaacutevel situaccedilatildeo de Agamecircmnon espera

enfim ver que pelo menos o Pelida encontra-se glorificado apoacutes a morte por isso exclama

νὐ γάξ πσ ζρεδὸλ ἦιζνλ Ἀραηΐδνο νὐδέ πσ ἁκῆο

γῆο ἐπέβελ ἀιι᾽ αἰὲλ ἔρσ θαθά ζεῖν δ᾽ Ἀρηιιεῦ

νὔ ηηο ἀλὴξ πξνπάξνηζε καθάξηαηνο νὔη᾽ ἄξ᾽ ὀπίζζσ

πξὶλ κὲλ γάξ ζε δσὸλ ἐηίνκελ ἶζα ζενῖζηλ

Ἀξγεῖνη λῦλ αὖηε κέγα θξαηέεηο λεθύεζζηλ

ἐλζάδ᾽ ἐώλ ηῶ κή ηη ζαλὼλ ἀθαρίδεπ Ἀρηιιεῦlsquo134

(Odisseacuteia XI 481-486)

Pois ateacute esse momento nunca fui proacuteximo dos Acaios nem ainda

pus o peacute em nossa terra e sempre tenho enfrentado coisas maacutes

Contudo nenhum guerreiro Aquiles eacute mais abenccediloado do que tudo no

passado e no futuro]

Antes quando eras vivo eu e os Argivos honravamo-te tanto quanto aos

deuses]

agora aqui entre os mortos exerces grande poder

Assim sendo natildeo sofra por ter morrido Aquiles

Aquiles o maior e mais temido heroacutei grego na guerra de Troacuteia desceu ao Hades

com o destino que ele mesmo escolhera viver pouco mas ser honrado e glorificado em

134

Texto disponeacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D113Acard3

D440 retirado agraves 1828h em 15 de outubro de 2010

134

campo de batalha135

Eacute por isso que no Canto I da Iliacuteada (2009) ao ter perdido Briseida seu

precircmio de guerra (geraj) ele pede agrave matildee que cobre de Zeus a sua honra a timh pois jaacute que

morreraacute jovem ao menos que tenha uma curta existecircncia poreacutem gloriosa Vejamos o que ele

dissera a sua matildee cobrando a vida curta mas honrada

κῆηεξ ἐπεί κ᾽ ἔηεθέο γε κηλπλζάδηόλ πεξ ἐόληα

τιμήν πέξ κνη ὄθειιελ ιύκπηνο ἐγγπαιίμαη

Ζεὺο ὑςηβξεκέηεο λῦλ δ᾽ νὐδέ κε ηπηζὸλ ἔηηζελ (Iliacuteada I 353-355)

Matildee como me geraste de curta existecircncia

seria justo o Oliacutempio Zeus a minha honra fazer aumentar

aquele que ressoa do alto ceacuteu

O discurso de Odisseu ao encontrar o Pelida mostra que seu desejo foi cumprido

uma existecircncia curta poreacutem gloriosa tanto que o filho de Laertes reforccedila que enquanto

esteve vivo foi honrado como um deus (XI 483) Como vemos Aquiles teve todas as

honrarias em vida sendo inclusive comparado a uma figura divina Assim jaacute que Zeus

concedeu-lhe o destino cobrado (ver Canto I da Iliacuteada) entatildeo eacute de se imaginar que agora

morto Aquiles continua feliz ateacute mesmo porque realiza domiacutenio sobre os mortos Esta razatildeo

faz com que Odisseu entenda que de nada poderia o Pelida se queixar (XI 485-486) Odisseu

apoacutes tanto ter sofrido ao ouvir a desonrosa morte que teve o seu comandante Agamecircmnon

imagina que enfim veraacute um de seus heroacuteicos companheiros satisfeito com a vida e com o

poacutes-morte que teve Vimos que na conversa com o Atrida ele se encheu de esup1leoj e fomacrboj

mas agora com o Pelida pensa ser diferente atenuando todo o seu temor ao ver que um de

seus companheiros tivera a vida e o destino que almejara que eacute desejo de todo o heroacutei ter

gloacuteria e honra tanto em vida quanto em morte Contudo mais uma vez sua expectativa seraacute

desconstruiacuteda e Aquiles responde-lhe

―ὣο ἐθάκελ ὁ δέ κ᾽ αὐηίθ᾽ ἀκεηβόκελνο πξνζέεηπε

κὴ δή κνη ζάλαηόλ γε παξαύδα θαίδηκ᾽ δπζζεῦ

βνπινίκελ136

θ᾽ ἐπάξνπξνο ἐὼλ ζεηεπέκελ ἄιιῳ

135

No primeiro capiacutetulo do nosso trabalho fizemos uma explanaccedilatildeo sobre o destino de Aquiles e a sua escolha

fato que estaacute narrado no Canto I da Iliacuteada (2009) 136

Atraveacutes dos optativos bouloimhn deboulomai ndash desejar preferir e eiAtildeh- infinitivo optativo de eiAcircmi-ser

exprime-se o desejo de Aquiles pois ele bem sabe que natildeo pode ser mais realizado pois seu destino jaacute foi

selado

135

ἀλδξὶ παξ᾽ ἀθιήξῳ ᾧ κὴ βίνηνο πνιὺο εἴε

ἢ πᾶζηλ λεθύεζζη θαηαθζηκέλνηζηλ ἀλάζζεηλ137

(Odisseacuteia XI 487-491)

Desse modo dizia ele imediatamente mudando falou

Natildeo me convenccedila da morte ilustre Odisseu

Pois eu preferiria viver sendo trabalhador de campo para um

Homem ateacute mesmo sem recursos se bem vivo eu estivisse

a ser rei de todos estes cadaacuteveres dos que morreram

Aquiles como mostra a passagem acima mostra-se arrependido da escolha que

fizera em ter uma vida guerreira curta ao inveacutes de uma vida longa e comum Esse discurso

potildee em questatildeo o valor da vida guerreira e toda a sua nobreza por isso Platatildeo considera

perigosas passagens como essas elaboradas por Homero (Repuacuteblica III ndash 386c-d) O Pelida

ao levantar o arrependimento da vida guerreira que tivera potildee em questatildeo os maiores valores

para o mundo grego E essa tomada de decisatildeo que eleva o homem mais tarde ao

arrependimento aflige-no e torna-o um sujeito traacutegico viacutetima de sua proacutepria escolha Por

isso diz-nos Vernant (2008) em Mito e trageacutedia na Greacutecia Antiga que o fato traacutegico

relaciona-se a deliberar tomar decisatildeo vindo desta sua proacutepria escolha todo seu mal daiacute o

fato traacutegico Isso tambeacutem nos lembra a exposiccedilatildeo no capiacutetulo anterior de Romilly (2008) em

A trageacutedia Grega de que o traacutegico implica uma accedilatildeo e esta seja boa ou maacute iraacute sempre trazer

ao heroacutei graves consequecircncias Em decorrecircncia disso a autora acredita na existecircncia de uma

inocecircncia do personagem traacutegico assegurando mesmo apoacutes a cataacutestrofe o seu heroiacutesmo

Aflito por sua proacutepria escolha e viacutetima inocente de sua proacutepria accedilatildeo o Aquiles

com o qual Odisseu depara-se no Hades natildeo eacute mais o heroacutei eacutepico honrado e glorificado

como um deus ele eacute agora se assemelha a um heroacutei traacutegico Naquele instante o Laertida

enxerga em Aquiles o arrependimento comum aos heroacuteis traacutegicos ―βοσλοίμην κ᾽ ἐπάροσρος

ἐὼν θηηεσέμενrdquo (Odisseacuteia Canto XI 489) ou seja ―pois eu preferiria viver sendo

trabalhador do campo mas para o qual natildeo haacute mais soluccedilatildeo pois o destino jaacute foi selado

Sandra Luna (2005) afirma-nos que no Hades Aquiles ―potildee em questatildeo os

valores mais aclamados entre os gregos a honra a nobreza e a riqueza (LUNA 2005 p

182) Valores estes que naturalmente tambeacutem aclamados por Odisseu fazem-no conflitar-se

natildeo apenas em ver Aquiles infeliz mas por vecirc-lo desprezar os valores que distinguem a honra

do guerreiro pela qual ele tanto lutou em Troacuteia Diante do espetaacuteculo inesperado Odisseu vecirc

137

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D113Acard3

D486 retirado agraves 1924h em 16 de novembro de 2010

136

o maior heroacutei grego em Troacuteia preferindo ser um simples trabalhador do campo E esse destino

injusto e imerecido para um heroacutei tatildeo valoroso e distinto faz Odisseu apiedar-se para com seu

semelhante ao mesmo tempo em que tambeacutem sente temor de vir a ter a mesma trajetoacuteria

Todo esse cenaacuterio suscita-lhe o fomacrboj e a esup1leoj sentimentos responsaacuteveis por

proporcionar-lhe a kaqarsij

A respeito de todo esse ―espetaacuteculocenaacuterio traacutegico realizado perante os olhos de

Odisseu queremos esclarecer que estruturalmente haacute dois fatos que permitem-nos essa

interpretaccedilatildeo no Canto XI O primeiro deles eacute a riqueza de detalhes como ilustramos no caso

do diaacutelogo de Odisseu com Agamecircmnon Detalhes esses utilizados como recurso na epopeacuteia

homeacuterica que tambeacutem influenciaram as trageacutedias Ateacute porque sabemos que nas encenaccedilotildees

das trageacutedias gregas as mortes natildeo eram realizadas na frente do puacuteblico cabendo aos

espectadores saber da ocorrecircncia das mortes por outros meios a exemplo da fala do coro Daiacute

a necessidade de detalhes para proporcionar ao puacuteblico o entendimento da accedilatildeo traacutegica

Mas aleacutem dessa riqueza de detalhes para presentificaccedilatildeo da cena narrada temos

no Canto XI outro elemento fundamental para representaccedilatildeo dramaacutetica e que foi alicerce para

as trageacutedias gregas os diaacutelogos Podemos observar que a estrutura do Canto XI eacute baseada nos

diaacutelogos que Odisseu teraacute com as sombras de sua matildee Agamecircmnon Aquiles Aacutejax enfim

Sobre o diaacutelogo Anatol Rosenfeld (1985) em A teoria dos gecircneros diz-nos que eacute atraveacutes

dele que a accedilatildeo dramaacutetica eacute manifestada aleacutem de ser o responsaacutevel por levar a accedilatildeo dramaacutetica

ao conflito Este que por sua vez eacute base para o traacutegico pois o protagonista deve estar em

conflito com algo seja consigo mesmo com os outros ou com o seu destino A necessidade

do conflito para a accedilatildeo traacutegica pode ser ilustrada nos diaacutelogos acima pois como vimos

Agamecircmnon conflitua-se com o destino imposto pelos deuses a morte indigna pelas matildeos da

esposa e Aquiles estaacute em conflito com a decisatildeo de destino que ele proacuteprio fez morrer jovem

em campo de batalha mas que agora preferia viver como ―ἐπάροσρος θηηεσέμενrdquo (XI 489)

ou seja um trabalhador do campo E para aleacutem desses importantes elementos numa

construccedilatildeo dramaacutetica mesmo que esteja sendo analisada sua presenccedila numa eacutepica Aristoacuteteles

diz-nos que o fomacrboj e a esup1leoj podem ser suscitados natildeo soacute atraveacutes da encenaccedilatildeo teatral

Vejamos o porquecirc

δεῖ γὰξ θαὶ ἄλεπ ηνῦ ὁξᾶλ νὕησ ζπλεζηάλαη ηὸλ κῦζνλ ὥζηε ηὸλ [5]

ἀθνύνληα ηὰ πξάγκαηα γηλόκελα θαὶ θξίηηεηλ θαὶ ἐιεεῖλ ἐθ ηλ

137

ζπκβαηλόλησλ ἅπεξ ἂλ πάζνη ηηο ἀθνύσλ ηὸλ ηνῦ Οἰδίπνπ κῦζνλ138

(Poeacutetica XIV 1453b 4-7)

Pois eacute preciso que tendo o mito manifestado-se os ouvintes mesmo sem ver

os trabalhos venham a arrepiar-se e apiedar-se dos acontecimentos eacute o que

sofreria algueacutem ouvindo o mito de Eacutedipo

Assim Odisseu ao presenciar os fatos traacutegicos na vida de seus companheiros se

apieda como tambeacutem sente temor E apoacutes ter-lhe revelado ser infeliz mesmo reinando sobre

os mortos Aquiles diz ser melhor saber notiacutecias do filho e do pai a ficar falando desses

assuntos O Pelida pergunta se o filho Neoptoacutelemo nas batalhas fica agrave frente ou atraacutes e se o

pai Peleu vive ainda honrado junto aos Mirmidotildees Odisseu diz natildeo poder dar notiacutecias de

Peleu mas sobre Neoptoacutelemo diz que o conduziu e que nas assembleacuteias era o primeiro a

falar sempre de modo adequado No discurso soacute perdia para Nestor e Odisseu mas nas

batalhas a todos vencia saindo de Troacuteia sem nenhum ferimento Aquiles alegra-se contudo

o cenaacuterio traacutegico natildeo eacute atenuado apesar da alegria momentacircnea de Aquiles pois ao seu redor

o quadro eacute destoante

αἱ δ᾽ ἄιιαη ςπραὶ λεθύσλ θαηαηεζλεώησλ

ἕζηαζαλ ἀρλύκελαη εἴξνλην δὲ θήδε᾽ ἑθάζηε139

(Odisseacuteia XI 541-542)

Mas as outras sombras dos que foram pegos para baixar a morte

tristes mantiveram-se a narrarem sua infelicidade

Discutimos no segundo capiacutetulo agrave luz de Sandra Luna (2005) que Homero

dissolve as cenas traacutegicas presentes em suas epopeacuteias exemplificando inclusive os

momentos dessa diluiccedilatildeo do traacutegico Contudo atraveacutes do que estamos analisando no Canto XI

da Odisseacuteia percebemos que as cenas traacutegicas satildeo sobrepostas sem atenuante Assim o

Laertida dialoga com Agamecircmnon depois com Aquiles e em cada um desses diaacutelogos

depara-se com a manifestaccedilatildeo do sentimento traacutegico E no fim do diaacutelogo com o Pelida ao

vermos este ter um instante de alegria logo pensamos que haveria uma dissolviccedilatildeo do traacutegico

mas ao contraacuterio a alegria momentacircnea do Pelida contrasta com o quadro de dor e

sofrimento de muitas almas tristes narrando umas para as outras seus proacuteprios infortuacutenios

138

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100553Asection3D1453b

retirado agraves 2035h em 02 de dezembro de 2010 139

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D113Acard3

D538 retirado agraves 2052h em 02 de dezembro de 2010

138

Isso nos mostra a presenccedila marcante da tragicidade no canto XI da Odisseacuteia e que natildeo eacute

dissolvida por atenuantes como banquetes confraternizaccedilotildees soluccedilotildees para o conflito cortes

de cena enfim Recursos atenuantes estes que vimos serem comuns na eacutepica homeacuterica e

inclusive ao longo da proacutepria Odisseacuteia como analisamos no toacutepico primeiro deste capiacutetulo O

que observamos ao lonho dos diaacutelogo eacute o traacutegico mediado em que Odisseu eacute o espectador

Odisseu na continuidade da narrativa ao ter-se deparado com a cena das almas

tristes a lamentarem seu destino observa Aacutejax afastado das outras almas Este aparenta ainda

estar inconformado com a disputa pelas armas de Aquiles da qual foram juiacutezes os filhos dos

troianos e a deusa Palas Atena Contudo Aacutejax natildeo consegue ver que a accedilatildeo do daimacrmwn foi

responsaacutevel por esta decisatildeo por isso ainda alimenta raiva de Odisseu fazendo com que este

imerecidamente sinta-se culpado pelo seu mal Assim o filho de Laertes exclama que

desejaria nunca ter ganho a disputa pelas armas de Aquiles jaacute que essa decisatildeo fez com que

Aacutejax o mais valoroso dos gregos depois de Aquiles viesse a morrer tragicamente (Odisseacuteia

XI 548-551)

Contudo o ressentimento era tatildeo grande para com Odisseu que o Telemocircnio natildeo

percebia que a forccedila superior fizera-o padecer E segundo Walter Friedrich Otto em

Teofania o reconhecimento de que uma forccedila maior levou-o ao traacutegico acaba por enobrececirc-

lo pois ―Por mais que o homem perceba ter cometido um erro e por graves que sejam para si

as consequecircncias isso natildeo o rebaixa enquanto ele reconhece estar nas matildeos da divindade

(OTTO 2006 p 80) Mas Aacutejax natildeo percebe a accedilatildeo do daimacrmwn ao contraacuterio responsabiliza

Odisseu que injustamente sofre a culpa da morte de um antigo e valoroso companheiro Natildeo

bastasse ter sido posto como responsaacutevel pela morte da matildee e pelos sofrimentos de seus

familiares o Laertida tem que carregar o traacutegico fardo do suiciacutedio de Aacutejax

O peso dessa imerecida culpa faz Odisseu lamentar-se por ter ficado com as armas

de Aquiles Entendamos a gravidade do desejo de Odisseu de natildeo ter sido contemplado com

as armas pois a disputa das armas do heroacutei que morria mostrava a distinccedilatildeo do heroacutei que as

herdava daiacute a inconformidade de Aacutejax Imaginemos entatildeo o valor das armas de Aquiles

que naturalmente simbolizaria para o seu herdeiro todo o prestiacutegio do maior heroacutei grego que

combateu em Troacuteia Desse modo as armas de Aquiles muito significavam Por obra divina

elas ficaram com Odisseu aiacute este encontra a grande queixa de Aacutejax Pois como era

considerado o maior depois de Aquiles considerava que ele deveria ser o detentor das armas

do Pelida Mas natildeo eacute o que ocorre Diante do sofrer do companheiro no Hades Odisseu

139

amargura-se desejando inclusive nunca ter ficado com aquelas armas apesar de todo o valor

delas

Ao natildeo reconhecer o desejo divino voltando toda a sua raiva para Odisseu Aacutejax

acaba sendo rebaixado ainda mais por natildeo ter como diz-nos Otto (2006) o ―reconhecimento

do erro que eacute enobrecido pela consciecircncia do divino e isso lhe preserva a grandeza de alma

() (Ibidem) Sem a consciecircncia da accedilatildeo divina Aacutejax culpa Odisseu por todo o seu mal

Sabemos que a partir dessa cena Soacutefocles inspira-se para composiccedilatildeo da peccedila Aacutejax em que

se narra a morte deste Morte esta que ele mesmo efetuou na busca de preservar ainda alguma

gloacuteria depois de ter matado animais pensando que matara os guerreiros gregos como

Agamecircmnon Menelau Odisseu Essa loucura como vemos na peccedila foi-lhe imposta para sua

cataacutestrofe por Atena a fim de proteger os demais de todo o seu oacutedio Mas Aacutejax natildeo se

convence por isso a peccedila iraacute refletir tambeacutem como jaacute o vemos neste Canto XI essa

responsabilidade dada por Aacutejax a Odisseu acusando este como culpado do seu mal140

Assim

culpado imerecidamente o filho de Laertes observa-se como aquele heroacutei traacutegico explicitado

por Vernant (2008) em Mito e Trageacutedia na Greacutecia Antiga que traz o mal natildeo soacute para si

como tambeacutem para os outros

Surpreendido pelo fato de Aacutejax ter-lhe rancor mesmo ali no Hades entre os

mortos Odisseu continua a falar ao Telamocircnio que as armas pelos deuses tornaram-se

malditas por isso que por elas veio a padecer o baluarte dos Aqueus Diz ainda que assim

como sofreram pela morte do Pelida sentiram tambeacutem profundamente a sua morte E mais

uma vez Odisseu tenta fazer com que Aacutejax reconheccedila a accedilatildeo divina e enobrecido por esse

reconhecimento venha a abrandar o coraccedilatildeo Vejamos

αἴηηνο ἀιιὰ Ζεὺο Δαλαλ ζηξαηὸλ αἰρκεηάσλ

ἐθπάγισο ἤρζεξε ηεῒλ δ᾽ ἐπὶ κνῖξαλ ἔζεθελ

ἀιι᾽ ἄγε δεῦξν ἄλαμ ἵλ᾽ ἔπνο θαὶ κῦζνλ ἀθνύζῃο

ἡκέηεξνλ δάκαζνλ δὲ κέλνο θαὶ ἀγήλνξα ζπκόλlsquo

140

Na Odisseacuteia Aacutejax natildeo reconhece ter sofrido pela accedilatildeo divina tanto que Odisseu enfatizaraacute isso vaacuterias vezes

para que ele natildeo lhe tenha oacutedio jaacute que ambos seja para o bem seja para o mal foram viacutetimas do desejo divino

Contudo por termos a leitura da peccedila sabemos que Aacutejax iraacute responsabilizar tanto Odisseu acusando-o de ser o

mais canalha do exeacutercito como tambeacutem a deusa Vejamos o momento em que ele reconhecendo que caiacutera no

traacutegico percebe a accedilatildeo de Atena

ἀιιά κ᾽ ἁ Δηὸο ἀιθίκα ζεὸο ὀιέζξη᾽ αἰθίδεη

140

(Aacutejax 394-403)

Todavia a filha de Zeus

o poderoso deus

atormenta-me para destruiccedilatildeo

140

―ὣο ἐθάκελ ὁ δέ κ᾽ νὐδὲλ ἀκείβεην βῆ δὲ κεη᾽ ἄιιαο

ςπρὰο εἰο Ἔξεβνο λεθύσλ θαηαηεζλεώησλ141

(Odisseacuteia XI 559-564)

Todavia a culpa eacute de Zeus que terrivelmente odiou o exeacutercito

dos guerreiros Dacircnaos ele te colocou o destino funesto

Poreacutem conduzi-te para aqui heroacutei para que possas ouvir a

minha palavra e a minha histoacuteria domina a ira do teu valoroso coraccedilatildeo

Assim eu falava ele nada respondia e caminhou com as outras

almas que haviam morrido para o Eacuterebo

Como percebemos apesar de todas as tentativas de Odisseu de abrandar o rancor

de Aacutejax tudo eacute em vatildeo e este parte sem nada dizer-lhe desprezando o astuto guerreiro Para

entendermos essa reaccedilatildeo de desprezo de Aacutejax para com Odisseu recorremos a Aristoacuteteles

(2003) em Retoacuterica das Paixotildees Para o filoacutesofo o sentimento de desprezo ―() eacute a

atualizaccedilatildeo de uma opiniatildeo acerca do que natildeo parece digno de consideraccedilatildeo () e diz ainda

que ―trecircs satildeo as espeacutecies de desprezo o desdeacutem a difamaccedilatildeo e o ultraje (ARISTOacuteTELES

2003 p7) Assim Aacutejax mostra desprezar Odisseu negando-lhe inclusive a palavra

mostrando-se indiferente para com toda a tentativa de Odisseu de reaproximaccedilatildeo E se

―desprezamos o que natildeo tem valor algum (Ibidem p9) Aacutejax natildeo apenas culpa Odisseu por

todo seu mal como tambeacutem o desdenha e desmerece todo seu valor Desse modo vemos que

o Telemocircnio desconsidera os combates em que juntos trouxeram a gloacuteria para os gregos

como tambeacutem a accedilatildeo conjunta nas empreitadas a exemplo da que os dois fizeram ao lado de

Fenice para convencer Aquiles a voltar a lutar com os gregos (Iliacuteada IX 167-169)

Culpado pela humilhaccedilatildeo e pelo fim da vida de seu companheiro e aleacutem do mais

desprezado por ele mesmo no Hades em que o seu destino jaacute fora selado Odisseu aproxima-

se da representaccedilatildeo do heroacutei traacutegico sem a gloacuteria e sem a honra consagrada ao heroacutei eacutepico

Como todo heroacutei traacutegico o filho de Laertes carrega a culpa pelo seu mal e pelo mal dos

outros mesmo quando foram os deuses que assim determinaram mesmo quando a

necessidade impelia-o a agir mesmo quando tentava agir bem Traacutegico tambeacutem eacute para

Odisseu observar que nem no Hades Aacutejax pocircde ficar bem livrando-se do mal que cercara

sua morte Ao contraacuterio natildeo bastasse o destino traacutegico que os deuses lhe reservaram ele

levou consigo para o Hades todo o rancor e o oacutedio pelo mal que lhe fizeram natildeo podendo

assim ficar em paz e gozar dos gloriosos feitos que fizera em vida Como vemos no Hades

toda a gloacuteria eacute esquecida as conquistas no campo de batalha as honrarias comuns ao heroacutei

141

Texto disponiacutevel em

httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D113Acard3

D538 retirado agraves 2214h em 02 de dezembro de 2010

141

eacutepico satildeo apagadas Em vez da honra Odisseu vecirc que para Aacutejax natildeo haacute gloacuteria nem

consagraccedilatildeo eacutepica mas apenas a amargura e o ressentimento do heroacutei traacutegico na escuridatildeo do

Hades

Apoacutes a saiacuteda de Aacutejax Odisseu deseja ver outros mortos Entatildeo vecirc primeiro

Minos o filho de Zeus a distribuir a justiccedila depois vecirc Oriatildeo cercado por feras Tiacutecio tendo

seu fiacutegado devorado por dois abutres Tacircntalo castigado com sede e com fome diante de lago

cheio de aacutegua que seca quando ele vai beber e quando quer comer as frutas satildeo levadas pelo

vento no momento em que ele vai pegaacute-las das aacutervores vecirc Siacutesifo que carrega uma enorme

pedra que cai quando ele alcanccedila o topo do penhasco depois Odisseu vecirc a sombra de

Heacuteracles

O filho de Zeus reconhece-o e fala-lhe entre gemidos dos grandes trabalhos que

enfrentou Chega a associar os seus trabalhos com a nova empreitada de Odisseu (XI 618-

619) pois Heacuteracles teve que natildeo apenas ir ao Hades mas pegar o catildeo e depois devolvecirc-lo

tarefa que fez com ajuda de Atena e Hermes Esse encontro eacute importante pois serve de

imagem alegoacuterica para Odisseu do destino no qual deve espelhar-se O contato que tivera com

seus companheiros em Troacuteia foi suficiente para ele observar que eles natildeo satildeo mais modelos de

vida como eram quando heroacuteis eacutepicos Figurados neste Canto XI como heroacuteis traacutegicos

Odisseu natildeo pode espelhar-se em seus destinos muito menos dos castigados (Tacircntalo Siacutesifo

etc) Deve entatildeo ter Heacuteracles como o protoacutetipo heroacuteico daquele que apesar dos muitos

trabalhos e das vivecircncias traacutegicas veio alcanccedilar no fim da vida a gloacuteria eterna e

recompensado pelos sofrimentos foi morar ao lado dos deuses no Olimpo Depois Heacuteracles

parte

Odisseu permanece ateacute que muitas almas aparecem em tumulto fazendo com que

ele se sinta tomado pelo medo (XI 633) amedrontado de que Perseacutefone enviasse-lhe a cabeccedila

de Goacutergona Impelido pelo fomacrboj no imediato instante Odisseu sobe agrave nau e exorta os

soacutecios a embarcarem para que pudessem logo partir E assim o fazem terminando o Canto

XI

Como pudemos ver ao longo de nossa anaacutelise do Canto XI da Odisseacuteia muitos

satildeo os seus momentos de tragicidade justificando a nossa escolha desse Canto para a anaacutelise

central deste trabalho dissertativo Assim pudemos analisar a configuraccedilatildeo traacutegica do heroacutei

observada a partir de Agamecircmnon Aquiles e Aacutejax E reforccedilando a forte presenccedila traacutegica

contida nesse Canto viemos ter alguns seacuteculos apoacutes a produccedilatildeo dessa epopeacuteia a peccedila

Agamecircmnon primeiro livro da Oresteacuteia de Eacutesquilo como tambeacutem Aacutejax de Soacutefocles A

142

primeira baseada na traacutegica morte do Atrida e em suas graves consequecircncias e a segunda

sobre o suiciacutedio de Aacutejax Ambos os fatos jaacute prenunciados e tragicamente desenvolvidos no

Canto XI da Odisseacuteia

Isso ocorre porque mesmo o heroacutei eacutepico estaacute facilmente propenso agrave uAacutebrij jaacute que

ele ―estaacute sempre numa situaccedilatildeo limite e a areteacute a excelecircncia leva-o facilmente a transgredir

os limites impostos pelo meacutetron suscitando-lhe o orgulho desmedido e a insolecircncia (hyacutebris)

(BRANDAtildeO 1998 p 67) Ou seja inerentemente agrave estrutura do heroacutei seja eacutepico ou traacutegico

encontramos certa disposiccedilatildeo que lhe permite cometer a desmedida esta que por sua vez iraacute

encaminhaacute-lo definitivamente para aumlmartia ndash tornando-o de protagonista eacutepico em um

heroacutei com relevantes semelhanccedilas de um protagonista traacutegico

A tarefa de ir ao Hades e voltar jaacute era para Odisseu considerada impossiacutevel daiacute

seu desespero no momento em que Circe anuncia seu novo trabalho (X 496-498) Contudo

ele natildeo esperava que para acentuar ainda mais essa empreitada ele iria encontrar-se com a

matildee que ele natildeo sabia que morrera e com seus antigos companheiros em estado traacutegico de

insatisfaccedilatildeo com o destino acionado pelos deuses como eacute o caso de Agamecircmnon ou com o

destino escolhido por ele proacuteprio como eacute exemplificado atraveacutes de Aquiles ou ainda como

ocorre com Aacutejax inconformado e rancoroso com Odissseu sobre quem ele descarrega toda a

culpa do seu mal Aqueles valorosos heroacuteis eacutepicos no Hades natildeo passam de sombras de

eiAtildedwlon a vagarem paacutelidas sem consciecircncia sem nome sem honra E no instante em que

tecircm a razatildeo por causa do ritual feito por Odisseu natildeo recordam nada da gloacuteria e das

conquistas que tiveram quando heroacuteis eacutepicos ao contraacuterio restam-lhes apenas a lembranccedila e a

dor dos heroacuteis traacutegicos que se tornaram no final da vida E nesses como vimos o Laertida

natildeo pode espelhar-se pois como diz-nos Sandra Luna (2005)

Natildeo eacute por acaso que no aproveitamento da literatura grega como instrumento de

educaccedilatildeo humanista o heroacutei traacutegico desenha uma trajetoacuteria a ser evitada enquanto

a do heroacutei das epopeacuteias por seus gloriosos feitos mas sobretudo porque consegue

vencer o traacutegico projeta uma imagem a ser emulada Por tudo isso eacute possiacutevel

enquadrar a trageacutedia grega como uma estrateacutegia poeacutetica de racionalizaccedilatildeo do

traacutegico (LUNA 2005 p 383)

Configurados no Canto XI da Odisseacuteia como heroacuteis traacutegicos Agamecircmnon

Aquiles e Aacutejax natildeo mais podem servir para Odisseu como exemplo ao contraacuterio como todo e

qualquer heroacutei traacutegico seus caminhos devem ser evitados Desse modo em Odisseu como

espectador de todo esse cenaacuterio traacutegico satildeo suscitados os sentimentos de fomacrboj e esup1leoj O

primeiro porque todos eles satildeo seus semelhantes e ele estaacute suscetiacutevel a vivenciar o mesmo

143

tendo que portanto procurar fugir142

desses destinos Consequentemente a inspiraccedilatildeo desses

sentimentos levaraacute Odisseu agrave kaqarsij a fim de que tenha a purificaccedilatildeopurgaccedilatildeo desses

males (Poeacutetica 1449b) E apoacutes toda a vivecircncia traacutegica que o leva agrave kaqarsij Odisseu

pode enfim prosseguir purificado em seu caminho de retorno ao lar e da busca da gloacuteria

domeacutestica Pois como ele bem viu no Hades natildeo haacute lembranccedila das eacutepicas vitoacuterias e gloacuterias

resta aos mortos apenas o lamuacuterio pelo destino ingrato e a recordaccedilatildeo da traacutegica morte

Desse modo considerando-se que a kaqarsij como resultado da accedilatildeo traacutegica

constatamos que no Canto XI da Odisseacuteia a kaqarsij realiza-se no momento em que

Odisseu presencia situaccedilotildees traacutegicas de sua matildee e dos seus companheiros assim como

tambeacutem as escuta Assim essa narrativa permeada por elementos traacutegicos como aatildeth Moiordfra

asup1namacrgkh daimacrmwn aumlmartia uAacutebrij fomacrboj esup1leoj e asup1nagnwiquestrisij propicia a Odisseu

ser um espectador do traacutegico atraveacutes do que vecirc e ouve levando-o a kaqarsij Ao longo

deste trabalho pode-se observar a experiecircncia traacutegica vivida por Odisseu como rito de

passagem instrumento para o heroacutei passar pela kaqarsij e assim estar preparado para

finalizar sua jornada em Iacutetaca Com a realizaccedilatildeo da kaqarsij arriscamos a afirmar que

especificamente no Canto XI da Odisseacuteia Homero lega-nos natildeo apenas os germes traacutegicos

(Lesky 2006) mas a primeira representaccedilatildeo de um espectador traacutegico que eacute levado a

kaqarsij Assim tendo vivido e presenciado experiecircncias traacutegicas e tambeacutem tendo

purificado e purgado os sentimentos que foram suscitados com a kaqarsij Odisseu pocircde

seguir seu caminho de retorno a paacutetria- seu objetivo maior desde que saiacutera de Troacuteia

142

Verificar a explicaccedilatildeo dada no segundo capiacutetulo sobre fomacrboj que etimologicamente indica o medo que faz

fugir

144

Consideraccedilotildees finais

Em nosso trabalho dissertativo ―Tragicidade no Canto XI da Odisseacuteia Anticleacuteia

Agamecircmnon Aquiles Aacutejax analisamos o teor traacutegico que percorre a eacutepica Odisseacuteia mais

especificamente no Canto XI em que Odisseu encontra-se com sua matildee e com alguns que

foram seus companheiros na Guerra de Troacuteia A partir dos diaacutelogos desenvolvidos entre o

filho de Laertes com os demais personagens pudemos identificar diversos elementos traacutegicos

que inclusive seratildeo responsaacuteveis por desencadear em Odisseu a kaqarsij como resultado

dos sentimentos de fomacrboj e esup1leoj que lhe foram inspirados

A fim de alcanccedilar o objetivo pretendido desenvolvemos em nosso trabalho trecircs

capiacutetulos No primeiro intitulado ―Contextualizaccedilatildeo miacutetica e religiosa da Odisseacuteia fizemos

uma explanaccedilatildeo a respeito das representaccedilotildees miacuteticas e seus significados para o mundo

homeacuterico como tambeacutem realizamos uma apresentaccedilatildeo da Odisseacuteia Ainda discorremos sobre

a estrutura do poema eacutepico a ser estudado e do perfil multifacetado do seu heroacutei Odisseu

Todas essas informaccedilotildees contribuiacuteram para entendermos em qual contexto o traacutegico pocircde

despontar em meio a esse contorno eacutepico

No segundo capiacutetulo ―Traacutegico aspectos teoacutericos e conceituais discorremos

sobre a accedilatildeo traacutegica sua origem formaccedilatildeo seus elementos constitutivos e seus meios de

efetivaccedilatildeo literaacuteria Para tanto expusemos a relaccedilatildeo do traacutegico com a trageacutedia gecircnero atraveacutes

do qual foi consagrado aleacutem de discutirmos tambeacutem a configuraccedilatildeo do traacutegico na Poeacutetica

atraveacutes de Aristoacuteteles como tambeacutem por meio de outros autores que se dedicaram ao estudo

da accedilatildeo traacutegica Jean Pierre Vernant Pierre Grimal Jacqueline de Romilly Anatol Rosenfeld

Junito Brandatildeo e Sandra Luna

No terceiro capiacutetulo ―Tragicidade no Canto XI da Odisseacuteia Anticleacuteia Aquiles

Agamecircmnon e Aacutejax fizemos uma anaacutelise da realizaccedilatildeo do traacutegico dentro do contexto eacutepico

especificamente no Canto XI da Odisseacuteia Contudo para entendermos que essa tragicidade

natildeo era um fato isolado dentro da obra primeiro realizamos a identificaccedilatildeo e anaacutelise da

tragicidade presente ao longo da Odisseacuteia no primeiro toacutepico nomeado ―Odisseacuteia momentos

de tragicidade No segundo toacutepico depois de compreender que o traacutegico permeia toda a

Odisseacuteia analisamos o Canto XI a partir dos encontros de Odisseu no Hades com sua matildee

que ele natildeo sabia que morrera e com os antigos companheiros Agamecircmnon Aquiles e Aacutejax

todos sofrendo pelo destino traacutegico que a vida lhes reservou Como espectador das cenas

145

traacutegicas no Hades Odisseu ao mesmo tempo em que se apieda tambeacutem fica amedrontado de

vir a ter o mesmo destino traacutegico de seus companheiros em Troacuteia E todos esses encontros

proporcionam ao heroacutei de Iacutetaca vivenciar fatos traacutegicos e atraveacutes deles ser inspirado pelo

fomacrboj e pela esup1leoj levando-o agrave kaqarsij

146

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Michelle Bianca Santos Dantas

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