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“QUE QUE É ISSO QUE ESSAS BICHAS TÃO FAZENDO?” MICROPOLÍTICAS DE RESISTÊNCIA EM ENVIADESCER DA MC LINN DA QUEBRADA Samilo Takara Doutorando e Mestre em Educação/PPE-UEM “Uma bicha não pode ter requinte. Porque ela, pela própria atitude, já é o anti- requinte”. Entender a expressão dita por um entrevistado à pesquisadora Carmen Guimarães (2004, p. 98) quando ela pergunta a diferença entre a bicha e o homossexual é perceber que a figura feminina em corpos machos a bicha é uma forma de contraposição ao que foi entendido social e culturalmente. Essa figura rompe com as normativas e estruturas das masculinidades sejam elas heterossexuais ou homossexuais. Desse modo, é necessário para a apresentação deste ensaio teórico, elencar elementos que explicitem os desconfortos das feminilidades em corpos machos e das homossexualidades a uma estrutura lógica binária que segrega, valora e supõe que o masculino e o feminino sejam opostos, contraditórios e complementares no contemporâneo. Entrar em conflito com essa leitura acerca das relações de gênero é retomar um esforço empreendido por Louro (2013) para problematizar Um corpo estranho, como a autora denominou sua obra que analisa e problematiza o movimento queer. Para tal (e)feito, valho-me da explicação de Zago (2013, p. 27) acerca da experiência para explicar que [...] não é algo transferível ou comunicável, experiência não é objeto: experiência talvez seja produção de vida, aquilo que catalisa e provoca a produção de vida, aquilo que faz produzir vida (que produz dúvida, receio, curiosidade, memória, reflexões) em mim e nos/as outros/as, em nós todos/as(ZAGO, 2013, p. 27). Ou seja, a experiência relatada causa experiências no/a leitor/a. Assim, o/a leitor/a que se depara com a blasfêmia aqui lido como movimento ensinado por Donna Haraway (2009) não como apostasia, incredulidade, mas passível de crítica, de análise e de problematização porque existe algo em que se acredita. Esta blasfêmia é feita com a experiência estética/formativa do clipe e da letra da música Enviadescer feita por MC Linn da Quebrada, uma artista/ativista terrorista de gênero que se denomina bicha, transviada, preta e periférica. Este gesto de leitura e interpretação pode ser uma blasfêmia em

MICROPOLÍTICAS DE RESISTÊNCIA EM … · Porque ela, pela própria atitude, já é o anti-requinte”. ... nenhum cânone específico do pensamento científico, a não ser que tenhamos

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“QUE QUE É ISSO QUE ESSAS BICHAS TÃO FAZENDO?”

MICROPOLÍTICAS DE RESISTÊNCIA EM ENVIADESCER DA MC LINN DA

QUEBRADA

Samilo Takara

Doutorando e Mestre em Educação/PPE-UEM

“Uma bicha não pode ter requinte. Porque ela, pela própria atitude, já é o anti-

requinte”. Entender a expressão dita por um entrevistado à pesquisadora Carmen Guimarães

(2004, p. 98) quando ela pergunta a diferença entre a bicha e o homossexual é perceber que a

figura feminina em corpos machos – a bicha – é uma forma de contraposição ao que foi

entendido social e culturalmente. Essa figura rompe com as normativas e estruturas das

masculinidades – sejam elas heterossexuais ou homossexuais.

Desse modo, é necessário para a apresentação deste ensaio teórico, elencar elementos

que explicitem os desconfortos das feminilidades em corpos machos e das homossexualidades

a uma estrutura lógica binária que segrega, valora e supõe que o masculino e o feminino

sejam opostos, contraditórios e complementares no contemporâneo. Entrar em conflito com

essa leitura acerca das relações de gênero é retomar um esforço empreendido por Louro

(2013) para problematizar Um corpo estranho, como a autora denominou sua obra que

analisa e problematiza o movimento queer.

Para tal (e)feito, valho-me da explicação de Zago (2013, p. 27) acerca da experiência

para explicar que “[...] não é algo transferível ou comunicável, experiência não é objeto:

experiência talvez seja produção de vida, aquilo que catalisa e provoca a produção de vida,

aquilo que faz produzir vida (que produz dúvida, receio, curiosidade, memória, reflexões) em

mim e nos/as outros/as, em nós todos/as” (ZAGO, 2013, p. 27). Ou seja, a experiência

relatada causa experiências no/a leitor/a.

Assim, o/a leitor/a que se depara com a blasfêmia – aqui lido como movimento

ensinado por Donna Haraway (2009) – não como apostasia, incredulidade, mas passível de

crítica, de análise e de problematização porque existe algo em que se acredita. Esta blasfêmia

é feita com a experiência estética/formativa do clipe e da letra da música Enviadescer feita por

MC Linn da Quebrada, uma artista/ativista terrorista de gênero que se denomina bicha,

transviada, preta e periférica. Este gesto de leitura e interpretação pode ser uma blasfêmia em

muitos sentidos: por trazer um funk para ser lido e problematizado na ciência, por fazer a

ciência – este espaço crédulo, asséptico e sem vida – espaço para a vida, a obra e a

experiência – que aqui é uma blasfêmia – um espaço para ler as possibilidades pedagógicas da

produção de uma ativista/artista.

Entretanto, rendo-me aqui o título de uma bicha que está analisando a obra de outra

bicha acerca das masculinidades afeminadas e das críticas a um sistema engessado para

problematizar outras formas de viver e diferentes experiências. Chamo-me de bicha para

afastar o/a leitor/a curioso do conforto de pensar-me como um colega que redige um texto e

coloco-me como alguém que trabalhando com um material documental, emprega métodos e

técnicas, no intuito de descobrir algo. Perigoso gesto. Posso ser desacreditado no campo

acadêmico por ser subjetivo e relativista, embora, eu tenha fundamentação teórica até para me

aproximar desse pecado de relativizar.

Defendo-me com o que Larrosa (2010, p. 157-158) ensina-me em sua pedagogia

profana:

O relativismo é pecado porque vai contra a fé – e é necessário conservar a fé

na realidade e na verdade porque essa fé é condição indispensável para que

sejam fiéis aos que falam em seu nome, a todos aqueles por cuja boca fala a

realidade e a verdade, bem como para seguir seus mandamentos. E, da

mesma forma que houve um tempo em que se obedecia aos que falavam em

nome de Deus e transmitiam suas ordens, é necessário que se obedeça aos

que falam em nome dos Fatos e transmitem seus imperativos. E é essa fé que

hoje parece estar em crise (LARROSA, 2010, p. 157-158).

Como me chamei acima de bicha, aprendi o blasfemar supracitado como estratégia. E

vou usar um linguajar acadêmico e problematizar com base em autores, em uma seleção de

método bibliográfico e documental, desenvolvendo um estudo exploratório na perspectiva de

uma pesquisa qualitativa para problematizar o movimento de Enviadescer ensinado por MC

Linn da Quebrada em seu artefato cultural (clipe/música). Este ensaio coloca-se sob suspeita.

Não é necessário esconder esse interesse em fazer incômodo aos cânones acadêmicos.

Estamos em disputa, porque como ensina Wallerstein (2004, p. 8) “[n]ão há

conhecimento desinteressado. Todo conhecimento é uma investida política no mundo. E

enquanto atitude política, não se pode aceitar qualquer coisa”. A autora mostra como os

feminismos criaram diferentes leituras de mundo e ofereceram perspectivas que reconhecem a

necessidade de problematizar, de não aceitar por pronto e dado o conhecimento que vem

disseminado por valores e ideais constituídos e embrutecidos por uma lógica rígida.

Perder a rigidez, claro, sem deixar de lado o rigor, porque como explica Veiga-Neto

(2009, p. 87), “[...] sempre é preciso seguir alguns preceitos, normas ou regras previamente

estabelecidas por uma cultura que nos precedeu e na qual estamos mergulhados [...] quando

aqui chegamos, o mundo já estava aí...”. (VEIGA-NETO, 2009, p. 87). Aceitar o

funcionamento do rigor é colocar-se em disposição a problematizar os sentidos e não

perverter determinadas regras que sustentam o campo para ser um espaço de disputa, de

mudança e de formação de sentidos acerca do mundo. Ser uma bicha pesquisadora não desfaz

nenhum cânone específico do pensamento científico, a não ser que tenhamos por entendido

que bichas são incapazes de pesquisar.

Não creio que seja assim. Desse modo, retomo a leitura de Guimarães (2004) em que a

autora explica que existem lógicas sustentadas que classificam o macho na sociedade com sua

identificação como pertencente ou não a uma cultura homossexual, gay ou homoerótica e que

pode ser lida de diferentes modos. O homossexual pode ser masculino, hipermasculinizado ou

mesmo existem heterossexuais que realizam práticas afetivas e sexuais com outros homens

também heterossexuais ou, ainda, homossexuais e que são chamados de HsH (Homens que

fazem sexo com Homens), como denomina o Ministério da Saúde em suas campanhas de

prevenção de Doenças Sexualmente Transmissíveis.

Mas também existe o anti-requinte. Garcia (2000, p. 12) diz que a bicha “[...] como

indicação sociocultural pejorativa (discriminatória e preconceituosa)” dita no Brasil não

agrada a todos. Há quem prefira o termo homoerótico porque o termo “descarta o

estigmatismo do sujeito, passando a eleger o ato, enquanto atividade, ação homoerótica”

(GARCIA, 2000, p. 13). Entretanto, não há como discordar de Trevisan (2000, p. 21) que

“[...] vivemos numa cultura das aparências”. Ou seja, a bicha é um problema para o

homoerótico, o homossexual, o gay ou qualquer outra nomenclatura que classifique esse

grupo, porque como anti-requinte a bicha é o que é: um macho afeminado.

Incômodo nítido para a análise de Trevisan (2000, p. 399) percebo que existe um

machismo arraigado que incomoda porque os papeis são binários e estipulam que existam

feminilidades e masculinidades estáticas. Desse modo, a homossexualidade passa a ser lida

socialmente e culturalmente de forma heteronormativa e compulsória em que é necessário

existir alguém que ocupe o local do feminino heterossexual: a bicha. Assim, “[...] as bichas

desmunhecadas (objeto de escárnio social) e, no outro polo, aqueles bofes que comem bichas

(sem que seja diminuída sua virilidade social). Mas, em se tratando da cultura brasileira

carnavalizada, nem tudo que reluz é ouro”.

Gosto de como Paulo Augusto entende a bicha, apesar de ser mais que isso, é

interessante ver como rompemos com uma lógica fixa, rígida ou sem vida. “Ser bicha é um

estado de espírito,/ de choque, de sítio/ de graça./ É ter parte com o demônio,/ aprendiz de

feiticeiro./ É estar entre, no meio, ser meta-de/outros homens” (AUGUSTO, Paulo apud

TREVISAN, 2000, p. 266-267). É nisso que me interessa a análise do clipe/música da

artista/ativista Linn da Quebrada. Ela propõe em um trecho de sua letra que “se quiser ficar

comigo boy, vai ter que enviadescer”. Linn, leva a música por outro caminho, diferente de

levar em conta apenas a prática sexual.

[...] ser homossexual reduz-se, lamentavelmente, a fazer sexo. Ora, o

consumo de sexo passa pela garganta estreita dos padrões “vendáveis” no

mercado da carne, em clima de competição baseada no exibicionismo.

Criou-se para tanto um estereótipo, cada vez mais implantado, de

superbichas, quer dizer, homens vendendo fantasias exacerbadas, com base

no tripé virilidade, beleza e juventude. [...] Os mesmos corpos, os mesmos

músculos, as mesmas poses. E o antigo anseio por uma identidade, tão cioso

do direito à diferença, resultou na obsessão generalizada de buscar no outro

o mais igual possível a si mesmo. A padronização virou culto à igualdade.

Ou seja, instaurou-se uma uniformização do desejo. (TREVISAN, 2000, p.

472).

Se esses são os valorizados por uma sociedade de consumo e espetáculo, os alvos

devem ser exilados, em um primeiro momento, e, quem sabe, exterminados na primeira

oportunidade. As representações hegemônicas de masculinidade povoam o desejo

homossexual e delegam aos corpos machos afeminados, junto aos idosos e os que não estão

encaixados no padrão de beleza como sujeitos desinteressantes, ou como Zago (2013)

denomina, os anticorpos. “Quem são eles? Os efeminados, os feios e os velhos, que são

punidos com a execração e a estigmatização excludente. Assim, os valores homofóbicos

voltaram reforçados, agora exercidos entre os próprios homossexuais” (TREVISAN, 2000, p.

472).

Linn da Quebrada, essa bicha transviada, preta e periférica em sua letra/clipe chama

esse ideal de masculinidade vestido socialmente de macho discreto para dizer que não está

interessada na representação fálica, na virilidade vendida por essa iconografia e que tem

interesse afetivo e/ou sexual pelas bichas, gosta “das afeminadas, das que mostram muita

pele, rebolam, saem maquiada”. Essa atitude investe outro lugar para os corpos desejados e os

que são ignorados. Linn, no seu lugar, no investimento social e cultural que apresenta sobre

si, tem interesse no abjeto, naquelas que estão segregadas do sistema, das indesejadas.

Digo, ancorado em Garcia (2000, p. 13) que o ato queer de Linn é “[...] um

posicionamento político pela ressignificação simbólica do desejo”. Entretanto, o queer é um

ato de questionamento e desconstrução. “Problematizar a matéria dos corpos acarreta, em

primeiro lugar, uma perda de certeza epistemológica, mas essa perda de certeza não tem por

resultado necessário o niilismo político” (BUTLER, 1998, p. 38). Acompanhar essa

explicação da autora nos auxilia a entender que o queer não é um pensamento final, mas

profano como nos coloca Agamben (2007).

O ato de profanar é o de restituir ao uso humano. Ou seja, retirar do sacrifício que

torna algo transcendente e metafísico para ser mundano, possível, comum. Ao dar outros

contornos do desejo, ao provocar um masculino hegemônico para dizer que ele é preterido

diante da bicha é uma forma de localizar a afeminada como objeto de desejo. O macho que

regula e centraliza as normas e o poder interessa menos que “as afeminadas que rebolam e

saem maquiadas”. Na voz de Linn: “Se quiser ficar comigo, boy, vai ter que enviadescer!”.

Assim, artista terrorista de gênero devolve à humanidade a possibilidade de estar ou localizar-

se ante ao binômio masculino/feminino.

Humana, possível e plural, a bicha Linn provoca por registrar que o desejo dela não é

como o que está massivamente disseminado no social. Ela nos ensina, assim como explica

Louro (2003, p. 10) a “[...] abandonar qualquer pretensão de retorno a um tempo idílico em

que as coisas e as pessoas pareciam estar todas em seus devidos lugares. (E esse tempo terá

existido?)” (LOURO, 2003, p. 10). A potencialidade da bicha está na exigência declarada.

Linn não quer ficar, se envolver, ter prazer com o que esse macho discreto chamado para o

“papo reto” e o que ele acha importante, ou seja, o “seu grande pau ereto”. Zamboni (2013, p.

3-4) representa brilhantemente esse potencial ao explicar que a bicha faz do que dela se diz

uma “composição estética, dos afectos e perceptos pelos quais se inventa a bicha”

(ZAMBONI, 2013, p. 3-4).

Ao entender que “[...] a bicha funciona como devir, mutação constante, processo

inventivo. Não existe o ser bicha, pode-se apenas devir bicha, uma existência paradoxal que

corrói as formações do ser” (ZAMBONI, 2016, p. 6), também me aproximo do movimento

que a terrorista de gênero Linn coloca em sua expressão. “Ai, meu deus, que que é isso que

essas bichas estão fazendo, pra todo lado que olho estão todxs enviadescendo”. Usando o x

como elemento da linguagem não-binária, abrindo possibilidades para pensar que o gênero

masculino/feminino é um binarismo significado na cultura, Linn me leva a pensar na

identidade que Hall (2000) explica como um conceito que não resolve, mas que é usado por

falta de outro para se pensar e diz que o termo identidade está sob rasura. Hall (2000) também

usa o x como signo de rasura para explicar que o “[...] sinal de “rasura” (X) indica que eles

não servem mais – não são mais “bons para pensar” – em sua forma original, não-

reconstruída” (apud HALL, 2000, p. 104).

A bicha, transviada, preta e favelada, do gueto e da quebrada também quebra, rasura,

coloca sob o signo da confusão. Linn não se engana e também não mente aos seus/suas

leitores/as, ouvintes, espectadores/as ao mostrar que o macho discreto precisa enviadescer

para chamar sua atenção.

A Linn amplia o gueto, chama as bichas para dançar e lembra: “Mas não tem nada a

ver com gostar de rola ou não, pode vir, cola junto as transviada, sapatão, bora enviadescer até

arrastar a bunda no chão”. Linn convida. Ela mostra que o espaço dela está aberto para a

diversão, porque além de enviadescer tem “que bater a bunda na nuca”. O convite para

compor essa gangue terrorista não tem a ver com o gosto pela genitália, ou apenas por uma

expressão de masculinidade. Filógina, Linn convida para dançar, confundir e causar

desconfortos ao que está estabelecido. “Paquerando constantemente a finitude e o fracasso, a

bicha afirma-se minoritária e segue inventando meios de prosseguir sua existência insidiosa”

(ZAMBONI, 2016, p. 41).

Maginal, a bicha não compactua com uma lógica de hierarquia estabelecida. O macho

discreto com seu grande pau ereto é a representação do que está todo momento oprimindo as

formas femininas em corpos machos, as diferentes masculinidades possíveis dos corpos

fêmeas, as pluralidades e fragmentações daquelas/es que não cabem neste estreito binômio

masculino/feminino. “A bicha não pode se engrenar na máquina estatal. Ela permanece às

bordas, no contato constante com a máquina, atacando-a. [...] Ela se instala, cínica, à beira da

ágora moderna, ladrando as contradições do Estado democrático burguês e racista”

(ZAMBONI, 2016, p. 47). Ao mostrar as limitações de entendimento e pluralidade e a

necessidade de enviadescer, de abrir espaços para o plural, Linn corporifica um gesto. Ou

gestualiza um corpo bicha que apresenta o quão a misoginia e o machismo estão impregnados

nas significações sociais.

Destruidora, Linn inicia o clipe com o cabelo rosa, roupas femininas e um colar feito

com partes de um boneco de plástico. Entre verde e rosa, entre as masculinidades e

feminilidades, entre o possível e o imaginado, a terrorista gargalha. A bicha ri. É com essa

efervescência que ela aparece ao meio de um grupo de pessoas que apresentam diferentes

características e não estão fixadas em masculinidades e feminilidades hegemônicas.

O clipe continua e Linn canta e convoca o macho discreto para um diálogo. Neste

momento, ela está deitada no chão, usando a cabeça e as pernas de apoio, Linn sugere estar de

ponta-cabeça, ela olha para a câmera e em um colam que lembra um rosto, ela corporifica

outra representação. Ela declara-se interessada nas bichas. Ou seja, “[...] Ela é um incômodo,

um grito, um anjo proscrito, um signo na pele, subterrânea e arredia, pela qual se compõe um

‘quadro vivo e autônomo’. Pura sensação a partir da qual pode-se infundir algum sentido para

a vida, que nunca tem de antemão” (ZAMBONI, 2016, p. 61).

Essa interrogação delgada, brilhante e colorida que se faz cantora, artista, terrorista de

gênero incita a enviadescer. “A bicha é constantemente confrontada com a morte pela

violência cultural, circunscrita da espontaneidade cotidiana que é preciso enfrentar para que a

bicha crie passagem, inventando suas próprias armas pela poesia” (ZAMBONI, 2016, p. 62).

Linn está acompanhada. Estou à espreita mediado pelo vídeo, mas não me sinto solitário.

Sinto-me representado em todas as cenas e a MC me coloca para dançar, para repetir o refrão.

Linn me contagia.

As cenas continuam com lésbicas, gays, drag queens e oferece uma percepção de

enfrentamento e problematização. É nesse momento que me lembro de Foucault (2014, p.

257) explicando que “[...] se não houvesse resistência, não haveria relações de poder. Porque

tudo seria simplesmente uma questão de obediência. Do instante em que o indivíduo está em

situação de não fazer o que ele quer, ele deve utilizar relações de poder”. O autor ainda

explica que esse potencial de resistir implica nas relações de poder para que elas se alterem.

E, desse modo, ele considera “[...] o termo “resistência” é a palavra mais importante, a

palavra-chave dessa dinâmica” (FOUCAULT, 2014, p. 257, grifo do autor).

Essa afirmação oferece outros sentidos históricos que perpassam a bicha até o

enfrentamento de Linn e seu convite para o enviadescer. Green (2000) analisou as

representações da homossexualidade na história brasileira do século XX e explicou que a

bicha aparece como o efeminado e passivo na história da homossexualidade masculina. Ou

seja, a bicha é homossexual, entretanto, ao ser passiva com um macho discreto “[...] o papel

sexual atribuído ao homem ‘verdadeiro’” não coloca esse masculino em risco porque “[...] ele

pode ter relações sexuais com outros homens sem perder seu status social de homem”

(GREEN, 2000, p. 28). É isso que a terrorista Linn está desdenhando, menosprezando e

mostrando seu desinteresse.

A bicha aparece na história brasileira na década de 1930 e tornou-se uma forma

pejorativa de se referir aos homossexuais como a palavra viado. Green (2000, p. 145) explica

que “Um estudo de 1939 sobre as atividades sociais, costumes, hábitos, apelidos e gírias para

homossexuais na cidade de São Paulo, dirigido pelo Dr. Edmur de Aguiar Whitaker, incluiu

uma lista de expressões vernaculares empregadas por homens jovens” Assim, bicha é a

definição de “pederasta passivo”.

As bichas não poderiam se envolver. Desse modo, “[q]uando dois homens

reconheciam que ambos eram homossexuais e queriam ter relações um com o outro, isso era

incompreensível para muitas bonecas [termo de referência a homossexuais afeminados e/ou

travestis]” (GREEN, 2000, p. 302). Ou seja, a ideia de Linn é abjeta na história da

homossexualidade brasileira. Por apresentar-se e desejar o macho afeminado, a bicha que

deseja afeminadas, esta possibilidade de ser é contrastante historicamente com as formas de

pensar binárias e complementares que estão presente em uma heterossexualidade

compulsória. Assim, “[a] masculinidade era a essência de ser um bofe. A feminilidade era a

essência de ser um bicha. O termo ‘homossexual’, na forma como era usado por essa rede

social, referia-se aos bichas e as bonecas e não aos bofes” (GREEN, 2000, p. 303).

Historicamente, se alterou essas formas de pensar e ser. Um exemplo é a disseminação

do gosto por “semelhantes” como discute Gregori (2016) ao analisar a pornografia gay norte-

americana e brasileira e constatar a existência de perfis de homens parecidos envolvidos

sexualmente. Em 1970, esses “clones” como explica a autora, tornaram-se uma possibilidade

na representatividade social em diferentes contextos. Acusados de narcisismo, os corpos

semelhantes nessa estética clone também registravam que era uma busca por homens

masculinizados e de corpos atléticos e torneados que fossem parecidos em trejeitos e aspectos

físicos para o envolvimento afetivo/sexual. Ao mesmo tempo, esses homossexuais também

“[...] levam à reflexão sobre certos aspectos subjacentes às teorias de gênero. O

relacionamento entre idênticos desafia o sentido do dimorfismo sexual, sobretudo o princípio

da incomensurabilidade e da busca pela complementaridade, no modo de conceber a diferença

entre os corpos [...]” (GREGORI, 2016, p. 58).

Escapando da noção binária de opostos, os clones também produziram outros sentidos

para estética e a constituição cultural da homossexualidade. Entretanto, também disseminaram

uma lógica objetificante e alienadora interessada em corpos torneados, gestuais masculinos e

estruturas aceitas socialmente. Nos estudos de Gregori (2016) ela fala de um entendimento da

morte desses perfis no período de disseminação do vírus HIV e o desaparecimento dessa

estética. Em minha leitura, acompanhada por Linn, percebo que essa masculinidade é o tal do

macho discreto que perpetua e propõe um tipo de visibilidade dominante que menospreza,

inferioriza e marginaliza a bicha.

Entretanto, volto a Foucault (2012, p. 83) porque concordo que ainda encontram-se os

que pensam que os sujeitos desviantes “insultam ‘a verdade’: um homem ‘passivo’, uma

mulher ‘viril’, pessoas do mesmo sexo que se amam”. Assim, o machismo e a misoginia

sustentam um sexismo que impele contra os corpos machos afeminados e as fêmeas

masculinizadas. Somos um problema por não nos encaixarmos nesses padrões. E Linn deixa

nítida essa querela. Incomodamos e somos muitos/as enviadescendo.

Desse modo, a bicha traz outras experiências. Entendo que o modo de vida gay que

Foucault (2014) tratava dialoga com a necessidade de resistência ao empreendimento

consumista que vem tomando a cultura LGBT e seus múltiplos modos de ser. Estamos à todo

momento sendo avaliados, colocados sob medida, centímetro por centímetro e sendo

valorados como ruins, inferiores e desprezíveis seres ao não sermos coniventes com o “macho

discreto de grande pau ereto”.

Linn enviadesce, chama as transviadas, sapatões, causa furor entre diferentes formas

de ser. A terrorista de gênero esfrega em nossa cara com sua “bunda na nuca” como estamos

acostumados a aceitar migalhas e pequenos milímetros no processo de enfrentamento diário a

homofobia, ao machismo, ao sexismo e as diferentes formas de opressão. A artista, bicha,

transviada, preta e favelada, da quebrada, explode em gargalhadas. Ela nos quer sentindo a

vergonha de estarmos coniventes com sistemas de opressão. Ela aponta o dedo para os nossos

privilégios. A masculinidade hegemônica que pregamos, o centrismo branco que sustentamos,

a lógica heteronormativa que alimentamos.

[...] é preciso ser intransigente, não se pode estabelecer um compromisso

entre a tolerância e a intolerância, só se pode estar do lado da tolerância. Não

se deve procurar um equilíbrio entre os que perseguem e os que são

perseguidos. Não se pode estabelecer como objetivo ganhar milímetro por

milímetro. Sobre esse ponto da relação entre a polícia e o prazer sexual, é

preciso ir longe e assumir posições de princípios (FOUCAULT, 2014, p.

176).

Enviadescer é uma música que retoma princípios, lá no gueto e na quebrada e que

provoca em nós diferentes experiências com a visualidade do corpo bicha, com a sonoridade

da voz da bicha, com a acidez bem humorada da bicha em nos contar, em denunciar um

sistema de privilégios que oprime, mata, ofende, silencia. Linn ecoa em meus ouvidos, suas

cores me colocam em movimento. A bicha é uma experiência estética e ética, ela nos exige

posicionamento. Enviadescer, para ficar com a Linn, parece ser a resposta.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Encontrar-se com Linn na frente de uma porta de loja entre o rosa e o verde é

chocante. As cores, as imagens, as expressões, as maquiagens, o rebolado, a força que a

terrorista, artista, bicha, transviada, preta e favelada, da quebrada oferece é a de quem está

usando do corpo como plataforma política, como prática de resistência. Linn emprega com

sua gestualidade, letra, voz e presença outra possibilidade de corpo/experiência e nos

desacomoda diante da potencialidade pedagógica de seus atos.

Em entrevistas e em diferentes momentos a terrorista de gênero coloca-se sob um

aspecto de exemplo que é pedagógico e explicita como a bicha é potencialmente uma

personagem possível para a aprendizagem acerca das questões referentes à gênero e

sexualidade. Linn da Quebrada conjura elementos da prática discursiva acerca das

masculinidades e feminilidades por meio do termo enviadescer para problematizar as noções

hegemônicas de corpo, gênero e sexualidade.

Nessa proposição, percebe-se por pedagogias culturais de gênero e sexualidade que os

discursos que perpassam este artefato oferecem outras leituras acerca da vivência social, das

práticas sexuais e das performances de gênero que não estão localizadas no binário

masculino/feminino e, entretanto, sugerem outras formas de entender as práticas corporais, as

leituras de mundo e os enfrentamentos aos discursos homofóbicos ao inserir elementos desse

discurso e ressignificar como desejantes os padrões entendidos por depreciativos na sociedade

contemporânea.

As imagens mercadológicas sustentam a imagética e a discursividade que localizam o

macho masculino em uma performance de gênero viril como sujeito alvo e centro do desejo.

Linn abre brechas nessas representações por apresentar experiências e vivências diferentes em

suas peças. O clipe/letra Enviadescer é um convite ao movimento de tornar-se bicha. Não

existe um lugar seguro e nem uma forma única pronta no fim do processo. Talvez, só exista o

processo. Esse constante devir que evoca as feminilidades em corpos machos, que convida as

diferentes subjetividades para dançar, rebolar e abrir mão de modelos pré-estabelecidos em

busca de um prazer e de um desejo que irrompem com as formas prontas.

Linn é artesanal em sua prática de experimentação da vida, ela tece, de fio em fio

outras formas de entender e compreender as possibilidades que o corpo nos oferece como

suporte das práticas de significação de gênero e sexuais. A artista terrorista de gênero arma

sua bomba de prazeres e representações. Os anseios e medos da masculinidade hegemônica

são expostos. Ela desdenha esse macho discreto de grande pau ereto para se deleitar com a

bicha, a afeminada, as peles expostas, a maquiagem. Linn artista emociona e coloca em

movimento outras formas de ser. Nessa hora, ouve-se a bomba da terrorista explodir. Está

instalado o desconforto de enviadescer.

REFERÊNCIAS

AGAMBEN, Giorgio. Profanações. Trad. Selvino José Assmann. São Paulo: Boitempo,

2007.

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