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MIGUEL CARQUEIJA · — Eu sei, paizinho. Mas não aguento ficar lá. A escola está um cemitério e eu não sei porque você não quer romper o Ano Novo comigo. Vincent lembrou-se

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MIGUELCARQUEIJA

HORIZONTESOMBRIO

FREEBOOKSEDITORAVIRTUAL–NOSSOSAUTORES

TERROR-HORROR-FANTASIA-FICÇÃOCIENTÍFICA

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Título:HORIZONTESOMBRIO.

Autor:MiguelCarqueija.

Paísdeorigem:Brasil.

Imagemdacapa:Autordesconhecido,séc.XIX.

Leiautedacapa:Canva.

Série:NossosAutores–vol.22.

Editor:FreeBooksEditoraVirtual.

Site:www.freebookseditora.com

Direitos:©MiguelCarqueija.Proibidaa reproduçãosemautorizaçãopréviaeexpressadoautor.

Ano:2017

Sitesrecomendados:

www.triumviratus.net,www.contosdeterror.com.br

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SumárioINTRODUÇÃO

FIMDEFESTACAPÍTULO1

REUNIÃO

CAPÍTULO2OSEGREDOPORTRÁSDOSEGREDO

CAPÍTULO3

OARTEFATOCAPÍTULO4

MENSAGENSATRAVÉSDOTEMPO

CAPÍTULO5OSESPIÕES

CAPÍTULO6

UMADISCUSSÃOFILOSÓFICACAPÍTULO7

OPRESENTEDOSDEUSES

CAPÍTULO8ACONVULSÃO

CAPÍTULO9ASURPRESAFINAL

EPÍLOGO

TRINTAANOSDEPOISSOBREOAUTOR

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INTRODUÇÃO

FIMDEFESTA

As ruas esvaziavam-se e as pessoas apressavam-se por chegar nas suascasas. Nesse clima esquisito de fim de festa, Vincent Franco caminhava comrapidez, ele próprio apressado, quando ouviu passos que corriam pelas suascostas, sapatos que batiam no cimento da calçada, e uma voz familiar quegritava:—Papai,espere!

Vincentvoltou-se,espantadoecontrariado.Agarotadeuniformeescolarachegou-se,abraçou-oe,napontadospés,beijou-o.

—Oi,papai!Eutambémestavaindoparacasa!

—Porquevocênãoestánocolégio?Nãoésódia2quevocêvoltaria?ÉperigosoandarporessasruasnavésperadoAnoNovo!

—Eusei,paizinho.Masnãoaguentoficarlá.AescolaestáumcemitérioeeunãoseiporquevocênãoquerromperoAnoNovocomigo.

Vincentlembrou-sedareuniãoemsuacasa.OquepoderiadizeraTiana?

—Achomelhorvocêvoltar.

—Ah, issoéquenão!Vocêmesmodissequeéperigoso!As ruasestãovazias,eestamospertinhodecasa.Euestoucomfomeelánãotemnemcomidadireitonosferiados!

Porcausadocolégiointerno,Vincentmalconheciaasuafilhadequatorzeanos. Não a julgava capaz dessa iniciativa. Reconhecia agora ter sido umabobagem marcar a reunião em sua própria casa, mas não havia muitas

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alternativas.

Umruído forte fez comque ambos erguessemseusolhares.Umavião ajatopassavanasalturas.

O ano de 1930 estava chegando e, ao longe, um zepelim passavaarrastandoumagrandefaixacomemorativa.

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CAPÍTULO1

REUNIÃO

Caminharamcelerementeatéchegaremà rua residencialondeocientistamoravasozinhodesdequeenviuvaraeinternaraafilha.Ojardinzinhonafrenteestava malcuidado, coisa que Tiana sempre reparava, e que a deixava muitocontrariada.Opai,porém,alegavaquenãoerajardineiroequeaempregadanãotinhaobrigaçãodefazeressetipodeserviço.

Tianacorreuparaoseuquartoafimdetrocarderoupa,poisnãotrouxeraquase bagagem. Para Vincent, ela simplesmente fugira do internato.Provavelmentehaveriaproblemascomamadresuperiora.

Vincentprocuroupensarrapidamente.Ànoitechegariamosamigosparaareuniãodoplasmefaltoedasoutrascoisas.LorenzoeAgnaldonãoiriamgostarnemumpoucodapresençadeTiana.Eseelesfossemembora?Lorenzoestavaprestesaviajar.Vincentpensounasamostrasdeplasmefaltoeplasmeítenoseuescritório.

OseudesgostoaumentouquandoTianaressurgiudoquartojádepijama,oquesignificavaaplenadisposiçãodenãosairdecasanaquelanoite.

—Tiana— disse ele, severamente— não quer passar o “reveillon” nacasadasuatia?

—Vocêvaipassarlá?

—Euficareiaqui.

—Então,éclaroqueeunãovou!Quepergunta,papai!Euqueroficarcomomeupai!

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Vincentarriounosofá.Sentia-seextenuado,masnãoqueriacederdiantedafilha:

— Olha aqui, Tiana, você praticou uma ação muito feia, fugindo docolégio.Eseteexpulsarem,comoéqueagentefica?

Osolhosdapequenasearregalaram.

—Doqueéquevocêestáfalando?EunãofugidoSion,não!AIrmãCéliameabriuoportão!Euexpliqueiqueiaparacasa!

MasVincentenxergounissoumpretextoparaselivrardafilha:

— Você vai se vestir de novo e eu vou levá-la de volta ao colégio.Ninguémgostadeestudantesfujonaseeunãoqueropassarvergonha!

Tianacontemplouosprópriospésdescalços,refletiunotrabalhoqueiasertornarasevestir,acompanharopaipelasruashorríveisdo31dedezembrosobaquela canícula, desfazer o mal-entendido no colégio e retornar já de noite,cansada,suarentaemal-humorada,ereagiu:

—Vocênãoouviuoqueeudisse?Jádissequenãofugidocolégio!Alémdisso,seeuvoltaràruavouterumainsolação!—Vista-se—ordenouVincent.

Otelefonetocou,estridentemente.

Vincentteveumestremecimento.Poralgunsinstantesficouolhandoparaaqueleaparelhonegroefeio,comosenãoacreditassequeomesmofossecapazdeemitirsom.Entretanto,acampainhacontinuavaatocar,ebemalto.

Foi Tiana quem se decidiu. Dando uma olhada de esguelha para o pai,

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comosejánãooconhecesse,elapegouofoneedisse“Alô!”.

—Quemestáfalando?

—Desculpe,mas fui eu que atendi o telefone. O senhor é que deve seidentificar.

— O Vincent está? — e a pessoa gritou tão alto que o dono da casaescutou.

Saindo do seu transe, que o fazia parecer um zumbi,Vincent avançou eTianalheestendeuofone:

—Éalgummal-educado,papai.

Vincentarrancouoobjetodamãodagarotaepronunciouum“alô”quaseinaudível.

— Vincent, seu burro! Eu ouvi isso! Sua filha está com você? Nóscombinamos...

—Elajávaisair.

—Achobom!DigaaoLorenzoqueeuvoumeatrasarumpouco...unsdezouquinzeminutos.

—Estábem.

—Lembre-sedaimportânciadetudo.Adeus!

Ebateucomotelefone.

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Vincentrecolocou,comoumautômato,ofonenoganchoevoltouoolharparaapequenaque,osbraçoscruzados,enfrentavaoseuolhar.

—Porquevocêaindanãosevestiu?Nãolhedeiordemparasevestir?

—Paraque,papai?Eunãovouvoltaraocolégio!Euvoupassaranoiteaqui!

—Vocêvai,sim.Euestouordenando!

—Então vai ter queme levar amarrada. Pensa que eu sou boba, papai?Esse seu amigomal-educado e o tal de Lorenzo vão chegar aqui, parece quevocêsvãoteralgumareuniãosecreta,eéporissoquevocêestámeexpulsandodecasanapassagemdoano,oquenuncaaconteceuantes.Oqueestáhavendo?Nãoteconheçomais.Jánãogostadesuafilha?

—Vocênãotemqueficarescutandoasminhasconversas...

— De qualquer forma, é inútil. Eu sei que vocês vão discutir sobre oplasmefalto.

Vincentteveumverdadeirosobressalto.

—Oque?

—Essematerialdeconstruçãoàbasedemelaçoquevocêinventouequeirárevolucionaraconstruçãocivil.Nãoéissomesmo?Nãoéporissoquevocêsfizeramtantosegredo?

—Mascomoéquevocêsabedisso?

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—ÉqueeumedoucomofilhodoLorenzo,vocêsabe...

—Hein?OfilhodoLorenzo?

—OGaleno, pai, você conhece ele.Ah, e eu sei queo seu amigomal-educadoéoAgnaldo...

—Paredechamá-lodemal-educado.

—Ué,eelenãoé?

“Se eu fosseumpai dos antigos”, pensouVincent comamargura, “dariaagoraumtapanacaradela.Masnão,eueAdalgisanãoacriamosassim,agoraétardeparaumacriaçãosevera”.

—Queseja.ComoéqueoGalenosabeoqueopaiandafazendo?

—ÉqueoLorenzoconfianofilho,coisaqueaparentementevocênãofazcomigo. Que coisa feia, papai! Eu quero ser tratada como filha, e não comoestranha!Porqueachaqueeuvouatrapalharemvezdeajudar?

Sentindoqueassuasdefesasruíamrapidamente,

Vincentaindaprocurouargumentar:

—Vocêéumacriança,nãodevesemeteremconversadeadulto.

—Criança?Papai,eujámenstrueihádoisanos!

Vincent corou. No seu tempo, meninas não falavam essas coisas. E, no

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entanto,eletinhaconsciênciadequehavialógicanaquelaspalavras.

—Vocêéquaseumacriança—eeleseagarrouàquelatábuadesalvação.

— Então está resolvido. Eu não vou escutar a conversa de vocês nogabinete,masvouficaremcasa.

Uma ideiabrilhouno íntimodohomem.Talvez fossepossível contornartudosemmaioresproblemas.Ascriançasnãoprecisavamsaberdetudo.

— Está bem. Vá para o seu quarto, fique lendo um livro. Você tem acoleçãodeThalesAndrade...

—Émesmo,papai?Euvouficaremjejumatéamanhãdemanhã?

Vincent suspirou. O nervosismo estava fazendo com que ele esquecessecoisaselementares.Tambémestavacomfomee,alémdomais,precisavadeumbanho. Se não perdesse tempo, conseguiria resolver tudo antes que as visitaschegassem.

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CAPÍTULO2

OSEGREDOPORTRÁSDOSEGREDO

Felizmente,LorenzoeGalenochegaramprimeiro.Vincentnemesperavaque o garoto viesse; mas sendo Lorenzo, como ele próprio, viúvo, não quisdeixarofilhosozinholánoCatete,ecomovieradecarronãotemiaavoltanotumulto da passagem de ano. Realmente formavam-se uns blocos pré-carnavalescos onde não faltavam bêbados exaltados, que às vezes quebravamvitrinasapedradas.

TianapegouGalenopelamãoelevou-oparaoseuquarto.Vendo-seasóscomoamigo,Vincentconfiou-lheassuaspreocupações:

—OAgnaldonãovaigostardapresençadosnossosfilhos.

—OAgnaldo émeio paranoico,Vincent. É o que dá viver sozinho poranoseanos.

—PorquevocêcontouaoGalenosobreascasasdemelaço?

—Eporquenão?AssimacuriosidadedeleedaTianasesatisfaz,eelesnãochegarãopertodacoisamaisimportante.

Estavamnobar, eVincent servira umBourbon espumante aLorenzo.Oitaliano,enquantosorviaabebida,comentoudisplicentemente:

—A ideia do avião com a navalha dentada não agradou nada a Santos-Dumont, sabia? Na audiência que tivemos ele só faltou chorar por causa dasvidasqueoaviãoceifou.

—Seeupudesse falar comesse sujeito lembrariaqueo avião já salvou

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inúmerasvidas,transportandovíveresaflagelados,porexemplo...

—Poisé,maselenãoadmitequeseutilizeasuainvençãocomoarmadeguerra.

—Mas oAlberto não é o único inventor do avião.Tem aqueles irmãosnorte-americanos,temoOttoLilienthal...

—Santos-Dumontéoprincipal,Vincent,todomundosabedisso.

—Sim,masmesmoassim...

Nessemomento a campainha tocou.Vincent eLorenzo foramatender e,comoesperavam,eraoAgnaldo.

Assimqueeleentroueabraçouosamigos,oitalianofoilogoavisando:

—Ébomvocêsaberqueascriançasestãoaqui,noquartodaTiana.

Agnaldo,sujeitodeaparênciameiocavalar,reclamoudeimediato:

—Maseunãofaleiqueissonãoconvinha?

Rompendoumpoucoasuatimideznatural,Vincentresolveupeitarooutroparainibirqualquerdiscussão:

—Vocêachafácilagenteselivrardosfilhosnoúltimodiadoano?Vocênãotemfilhos,nãosenteoproblema!

—Masháumrisco...—eAgnaldobaixouapropriadamenteovolumeda

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voz.

—Elesnãosaberãoapartemaisimportante—sussurrouLorenzo.—Sóas nossas invençõezinhas. É melhor chamar os dois, Vincent, para umarecomendaçãofinal.

—Oquevocê jádisseaoGaleno?—indagouAgnaldo,semesconderotomdeaflição.

—Orabolas,homem!Essahistóriademelaço,etudoomaisdesomenosimportância!Sómesmooartefatoelesnãopodemsaber!Orestoésecundárioevocêsabedisso!

Agnaldodeudeombros.

— Ainda acho que vocês são linguarudos demais. O plasmefaltorepresentadinheiroeexisteaespionagemindustrial.

—Sim.Masteriamderoubarafórmula,nãoéisso?

—Jáquenãoháoutrojeito,vouláchamá-los.Estãoláemcima,nãoé?

Agnaldosubiurapidamenteaescada,localizouoquartodagarotaeabriudisplicentementeaporta.

TianaestavanocolodeGaleno,estesentadonapoltrona.

— Estávamos brincando de namoro... — balbuciou a menina, saltandofora,ruborizada.

—Sóbrincando,hein?—Agnaldosorriu,enxergandonissoumachance

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debarganha.—Desçam,por favor.Osseuspaisvão lhescontarunssegredosquenãodevem revelar aninguém... e eu achoquevocês tambémnãoqueremqueeureveleoseusegredo,nãoé?

—Nãofalaremosnada—garantiuGaleno,secundadoporTiana.

—Qualquercoisavocêsestavamjogandodamas—acrescentouAgnaldo,olhandoparaotabuleironaescrivaninha.

*

—Seráquenãovaidarformiganessascasas?

AperguntapartiradeTiana,eseuprópriopaiseencarregouderesponder:

—Dejeitonenhum.Afinal,aproporçãodomeladoépequena e com otratamento químico ele já não será doce. Vocês devem compreender que aargamassa que usamos terá 65% de areia, 30% de argila e somente 5% deplasmefalto,queéondeentraomelado.

—Euacheimuitagraçanisso—observouGaleno,apósumbocejo.

—Carrosàbasedemelaço!Aliás,émelaçooumeladoquesediz?

—Tantofaz—respondeuopaidogaroto.

—Masvocêstêmoutrasinvençõesmisteriosas—arriscouTiana.

— Temos o aquecedor de pés, idéia minha — disse Agnaldo,complacentemente. — Funciona assim: você adapta um tubo de borracha àsnarinas e liga a outra extremidade aos calçados. Assim, com o simples ar

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exalado,vocêevitaqueospéssecongelemsetiverquecaminharnaneve—noAlasca,digamos.

—Ora!— comentou Tiana, rindo.— Isso serve para o Rio de Janeiro,também.Emjulhoeagostoeusintofrionospés...

—Masnãodáparacongelar,boba—implicouGaleno,rindotambém.

Vincent estava com pressa. A que horas conseguiria dormir? Resolveucortaraquelepapoeseergueu:

— Bom. Eu, o Agnaldo e o Lorenzo temos de conversar no gabinete,precisamosplanejaressaindústriadeplasmefaltoeplasmeíte.Nenhumdenóséricoeessapodeseraoportunidadeparalevarmosumavidamelhorzinha.Nessepaísdepolíticatãoinstável,issoéimportante.

—Elembrem-se—acrescentouAgnaldo—esseassuntoésigiloso,vocêsnemdeviamterficadosabendo,masoLorenzoétagarela...

—Ora!—fezLorenzo,masooutroprosseguiu:

—Existe a espionagem industrial. Nossos concorrentes podem lançar osmateriais na frente e nós ficamos a ver navios. Espero que vocês sejamadolescentesresponsáveis.

—Podedeixar—disseTiana.—Morreuaqui.Nãoé,Galeno?

—Nãofalamosnada,nãoqueremosquevocêspercamdinheiro.

—Euseiofilhoqueeutenho—eLorenzofitouGalenocomorgulho.

—Eessameninatambéméajuizada!

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AgnaldopiscoumaliciosamenteparaGalenoeTianaecompletou:

—Bem,vamoslá.Vocêsdoispodemficarjogandodamas.

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CAPÍTULO3

OARTEFATO

Os três homens examinaram as amostras de plasmefalto e plasmeíte naescrivaninha de Vincent, encimada por livros como a “Divina Comédia”, deDante, “Don Quixote de la Mancha”, de Cervantes, “Fausto”, de Goethe e“Ivanhoé” de Walter Scott. Lorenzo sopesou um retângulo de plasmefalto,materialenvernizadoebelocomoasasasdeumabarata,ecomentou:

— Estive olhando a sua planilha de custos. Realmente, poderemosrevolucionaraconstruçãocivilcomisso.

—Tudo isso já foi planejado o suficiente— interrompeuAgnaldo, quecom seu jeito desinibido gostava de se fazer de sabichão e mandachuva. —Vamostratarlogodoassuntoquenosreuniu.

—Oartefato—completouLorenzo,emtomalgosombrio.

Vincentanuiu.Preocupado,nãoconseguiacompartilhardoentusiasmodoamigo.Sentiamedododesconhecidoetambémdasforçaspolíticasemebuliçãonopaís,equepoderiaminterferirnosassuntoscientíficoseindustriais.GetúlioVargas, Luís Carlos Prestes, Lampião, Washington Luís, Plínio Salgado,MonteiroLobato,asideiasandavamemefervescênciaecombatia-senonortedopaís.Eraprecisoagircomdiscrição.

Ele pegou de um molho de chaves na gaveta superior esquerda daescrivaninhaeabriuumarmáriodemadeira.Retirouumpequenosacodesarja,depositou-osobreotampodaescrivaninhaedeláretirouumestranhoobjeto.Osoutrosdoisachegaram-separaolhar.

—Éumadroga—murmurouVincent,azedo.—Amanhãéquarta,oquesignifica que quinta e sexta todo mundo enforca, e só na segunda o país

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readquireoritmonormal...

— Que importa isso agora, homem? — e Agnaldo fez um gesto deimpaciência.—Oqueimportaéapossedessacoisa!

Eapontouparaoobjeto.

Era uma espécie de esfera, mas com uma base de apoio, do tamanhoaproximadodessesgloboscomimagensoucatedraisdentro.Entretanto,nãoeratransparenteesimmetálico,cordecobre,masconfeccionadocomalgumaligadesconhecida.Encontrava-seeriçadaporalto-relevosqueos trêspesquisadoresjá haviam reconhecido como sendo controles. Na parte superior via-se umaespéciedetelaretangularcomunsdezcentímetrosdecomprimentoportrêsdelargura.Opaca,nãodeixavaverointerior.

—Comojáexpliqueiavocês—lembrouVincent—esteprojetormostraossegredosquedormemnointeriordoaparelho.

—Nóstrêsoachamos,velhinho—ironizouLorenzo.

—EmnossapesquisaarqueológicanoCeará,eéoúnico lucrodenossatentativaarqueológica.

Vincent recordava-se muito bem. Durante muito tempo divertiram-seprojetandoimagensqueeramvistasnoar,comonumateladecinema,aunstrêsmetros acima do projetor — ou enviesadamente, mudando-se a posição doobjeto.

Anaturezadaquelasvisõeslevaraostrêshomensajurarsegredo.Eraumconhecimentotãoexplosivoquelhestrariaatériscodevida.FoiLorenzoquemenxergoucommaisdramaticidadeaspossíveisconsequênciasdeumarevelaçãodosegredoàsautoridades:

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—Poderãodecidirqueoconhecimentodessascoisascrime,punívelcomapenademorte.

—MasnãohápenademortenoBrasil—objetouVincent.

—Tratarãodecriá-laparanós.Éoquesechamaumcasuísmo.

Vincent ficoucomaguardadoartefato.Estudou-onasolidãodeseu lar,evitando mexer nele quando a filha estava em casa. O mesmo, quando afaxineira estava. Acabou chegando à conclusão de que a geringonça era umabiblioteca portátil, que ali se encontrava o conhecimento acumulado de seresalienígenas,comvisõesdemundosestranhos,dedimensõesignotas.Coisasquefascinavam, aturdiamemetiammedo—masque tambémprometiampoder eriquezaparaquemsoubesseinterpretartudoaquilooupelomenosumaparte.

Agnaldotentouserprático:

—Vocênosgarantiuqueagoravaleráapenamanipularessaesfera.

—Nem todos os conhecimentos podem ser aplicados na Terra, é claro.Maseu jáachei,porexemplo,osdadosnecessáriospara rodearoplanetacomumaredemundialdecomunicaçãoeletrônica.

— Uma rede de computadores. Já discutimos isso, Vincent. Levariadécadas para que as pessoas pudessem ter os seus computadores residenciais.Precisamosdecoisasmaisrápidasepráticas.

—Oque,porexemplo?

—Aperfeiçoarorádioreceptor,porexemplo.Incluiraimagem.

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—Atelevisão jáexisteexperimentalmente,vocêssabem;eaquelepadreestábastanteavançadonosseusinventos.Ultrapassá-loseráfogo...

—Porquenãooconvidamosparaseuniranós?—sugeriuLorenzo.

— Não aconselho. Landell de Moura provavelmente não nos aceitaria,desconfiariadenós.

—Nãoselhemostrarmosoartefato—objetouAgnaldo.—Masécedoparapensarnisso,homem.Liguelogoessacoisaevamoscomeçaraexploraçãodehoje!

Vincentobedeceu.Segurouacoisaemexeunumapequenamanivela,queligavaoaparelhocomamaiorsimplicidade.Queespéciedebateriaaliestava,garantindoaoperaçãodaquiloapósséculosoumilênios?

Logo,umatelaimpalpávelsefezvisívelnoar.Asimagenspareciamentrarde forma aleatória, e no momento podia-se observar um grande número depolias, roldanas e engrenagensque iam se ajustando; braçosmecânicos a tudomanipulavam, atarraxando, ajustando, calibrando, sopesando; cabos cheios dealperavazes,deutilizaçãoignorada,iam-seconectandounsaosoutros;máquinasquefaziamopapeldemaçaricossurgiamdevezemquando,soldandoligasdecoresvistosas.

—Vincent,Agnaldo,oqueéafinalessaembrulhadatoda?Cadêosseresquecontrolamessasmáquinas?

—Elesnuncaaparecem—admitiuVincent, torcendoobigode raloe jámeiogrisalho.

— Isso é tudo automático. Uma programação perfeita— comentouAgnaldo,pensativo.—Sepudéssemosconstruirrobôstãoavançados!

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—Poderíamosfazerumarevolução,colega.Umexércitoderobôshaveriadeserinvencível!

Aos poucos o mecanismo foi se consolidando: parecia uma espécie denaveespacialdecorrida,fazendolembrarqualquercoisadashistóriasdeBrickBradford.

—Mude o disco— disse Lorenzo, jámaçado.—De nada nos adiantaolharparaisso!

—Estábem.Vejamosoutracoisa.

Ofilmeseguintemostrouoquepareciaserumausinadedessalinização,aindaqueosalfosseazul.OpróprioVincentseimpacientouemoveuocontrole.Viramumaexploraçãodeminérioaurífico,tambémcompletamenteautomática,efinalmentealgoimpressionante:umaexplosãoqueredundavanumaimensaeassustadoranuvememformadecogumelo,queseerguiadeumpilardecinzasefumaçaquesubiadosolo.

—Quecoisamedonha!Oquepoderáserisso?—indagouAgnaldo.

—Comcerteza,algumtipodeenergiaquedesconhecemosouaindanãosabemosusar—eVincentdeudeombros.

AgnaldodeuumaolhadaemLorenzo,omaistímidoefleumáticodotrio,queporémjádavamostrasdeimpaciência,eresolveuapertarumpoucoooutro:

—Vincent,sevocênãotemnadamaisclaroparanosmostrar,eumesmovoutentarmanipularesseaparelho.Afinal,sóavisãodessascoisasnãovainospropiciarriquezaepoder!

—Eutenhocoisamelhor—eVincentsorriudiscretamente.

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—Oquepoderáser?

—Agnaldo,oquevocêsabesobreasteoriasdeEinstein,orelativismo,ocontínuoquadridimensionalespaço-tempo?

—Muitomenosdoqueeugostaria,masalgumacoisa.

—Tudoérelativo.Nãoéisso,Vincent?

—Nãotãosimples,Lorenzo.Nãoseisetudoérelativo,oqueseiéqueotempoérelativoeadmiteatalhos,damesmaformaqueoespaço.Osubespaço,por exemplo, seria um atalho no espaço. No subespaço uma nave poderiaultrapassar a velocidade da luz, que é reconhecida como o limite físico emtermosdevelocidade.

—Sim,masnotempo...

—No tempo, para alcançar o futuro teríamos que usar uma velocidadesuperioràdadeslocaçãodopresente.Apenasisso.Nadireçãodopassadoacoisacomplicaumpouco,porqueasetadotempoapontanumasódireção.

—Quefilósofomalucovocêandoulendodessavez?—cortouAgnaldo,sarcástico.

—Bom.Tereidemostraravocêsoqueeudescobri.Nãoadiantaficarsófalando.

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CAPÍTULO4

MENSAGENSATRAVÉSDOTEMPO

Vincentsopesouoobjeto,tendoantesdesligadooprojetor.

—Comopodemver, sãomuito complexos esses controles.Esta bolinhaaquipodeserpuxadaparafora,comoumaverdadeiraantena.Observem:

Assim ele fez, extravasando um pequeno cabo. Vincent mudou então aposiçãodedoisoutroscontroles,quepodiamsermovidosatravésdeestojos,etornoualigaraprojeção.

Atelaformadanoarmostrouumamensagem...emportuguês!

“Telefone individual portátil: teoria e fabricação. Instruções abaixo.Aguardamosresposta.”

—Oqueéisso,caramba?—exclamouAgnaldo,dandoumpulo.

—Vincent,seestáquerendonosembromar...equetecladoéesse?

Realmente, uma espécie de teclado, semelhante ao das máquinas deescrever,apareceradiantedoaparelho,encostadoàsuabase.Erarosado,etéreo,semcontornosdefinidos.

—Elenãoésólido,éenergético—explicouVincent.

— Por ele, damos respostas na tela embaixo da mensagem, naquelequadradoembranconoar.

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—Masoquequerdizerisso,homemdeDeus?—insistiuAgnaldo.

Vincentpermitiu-seumsorrisodesuperioridade.

— Desde o Ceará vocês mexeram às pampas com esse troço e nãoatinaramcomesse recurso.Bem, eudescobri isso, quenos coloca emcontatocomumacivilizaçãodesconhecidadeoutromundoeoutrotempo.

—PelasbarbasdePlank!—deixouescaparLorenzo,limpandoosuordatesta.—Eelespodemsecomunicaratravésdotempo?

—Sim,atravésdetecnologiaquenãoestáaonossoalcance,anãoserquepossamosumdiareproduzirestamáquina.

—Compreendo,Vincent...masaídizqueelesaguardamresposta.

—Temossóquedigitarumarespostaedespachá-lapelateclaprópria,játroqueialgumasmensagenseaprendicomofazer.

—Vocêofez?Quando?—quissaberAgnaldo.

—Deumasemanaparacá.

—Masporquenãonosfalou?

— Pelo telefone não se falam essas coisas, e vocês não acreditariammesmosemolhardeperto.AmaioriadaspessoasécomoSãoTomé.

—Pioréquevocêestácomarazão—sorriuLorenzo.

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—Eusóacreditoporqueestouvendo!

—Masporqueelesnosdariamsua tecnologia?—questionouAgnaldo,comprudência.

—Peloqueeuentendi,eraumaraçaagonizantequebuscara refúgioemnosso planeta.Mas era o tempo dos grandes dinossauros e eles não se derambem.

—Esperaaí!Essenegóciotemmilhõesdeanos?

—Aparentementesim,colega.Ointeressedelesétransmitiraalguémosseusconhecimentos...mesmoquesejagentedeumdistantefuturo.Comoveem,umaatitudebastantealtruísta.

— Mas e esses planos do comunicador individual? Isso já existe nashistóriasdeficçãocientífica...

— Sim, e vai existir na prática. Nós vamos patentear essa invenção eenriquecer!

—Não—disseLorenzo.—Faltamosplanos.Otextoterminaaí!

—Seutolo,issosobe.Aquinessetecladoimaginário,temumcursorparaisso.

Emoveuumaalavanquinha.Foisubindo—eperdendoapartedecima—umlongotextoexplicativoparaafabricaçãodecomunicadores individuais,dotamanhodeóculos.

Agnaldo, que procurava abarcar todos os detalhes, lembrou-se de um

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importante:

—Comoéqueelespodemsecomunicarnanossalíngua?

—Issoéuma longahistória.Eupermanecimuitashorasdigitandodicassobre o Português, e aprendendo alguma coisa da língua deles. Depois, elestambém têm como visualizar imagens colocadas ao alcance do aparelho, demodoquefuimostrandofolhaporfolhadodicionárioedolivrodegramática.

—Não devíamos ter te deixado sozinho por tanto tempo...— ironizouLorenzo.

—É.EcomaTatianaaqui,eujánãotereitantaliberdade.AnoitedeNatalela passou comigo e eu, que mal tinha começado a decifração, tive queinterrompereficaransioso.

— É melhor isso ficar agora comigo, que eu moro sozinho — propôsAgnaldo.

—Pensei nisso.Masprimeiro temosdedaruma resposta a eles.Vamosbolarumaresposta!

—Ainda não disseram quem são eles? De que planeta eles vêm? Queformatêm?Issoémuitoestranho!

—Tambémacho—disseLorenzo.

Vincentcoçouobigodeerespondeu:

—Bem... talvez a inteligência, no universo, sejamais importante que aformafísica.

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CAPÍTULO5

OSESPIÕES

Enquantoasrevelaçõessesucediamnogabinetefechado,oqueandavamfazendoascriançasdeVincenteLorenzo?

DepoisdealgumtemposentadanocolodeGalenoetendotrocadoalgunsselinhos,Tianacomeçouasesentirentediada.

— Já estoumeio cansada de ficar no seu colo. O quemais a gente fazquandonamora?

—Bem,agentevaiaocinema,ouaoteatro,oupasseiademãosdadas...

—Nós não podemos sair agora.Ah, temuma coisa que eu li no “DomCasmurro”.Eupodiapentearoseucabeloedepoisvocêpenteiaomeu.Nãoéumaideiagenial?

—Ah,semdúvida—disseele,semmuitaconvicção.

—Edepoisagentepasseiademãosdadaspelocorredor.Quetal,Galeno?

—Podemosexperimentar.

— Você parece pouco animado! Não vai ficar assim no dia do nossocasamento,espero!

—Casamento?Vocêjáestápensandoemcasamento?

—Eporquenão?Eusouumagarotaséria!Quatroanospassamdepressa!

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—Vocêquercasardaquiaquatroanos?

—É,porqueagentetemquecompletar18anos.

Elenãosoubeoqueresponder.Atendendoaumasúbitaideialevantou-se,comameninanosbraços,epôs-seacarregá-lapeloquarto.

—Estágostando,Tatiana?

—Ah,estouadorando!Dámaisumasvoltasassim!

—Nãodá!Achoquevocêpesamaisdoqueeu!Eleabotounapoltronaearfoubastante.

—Puxa,vocêestámorrendo...—disseela,sorrindo.

—Vamospentearoscabelosentão?

—Não!Acabeidemelembrardeumacoisa!

—Oquê?

—Podemosespionarosnossospais!

—Puxa,nãobrinca!

—Falosério!

—???

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—Éclaroqueeufalosério!Seubobo,nãopercebeuqueomeuquartoficaexatamenteemcimadoescritóriodopapai?

— Ah, é? Não, eu não tinha notado, mas e daí? Nem assim estamosescutandocoisaalguma!

—Ah,masfaztempoqueeuconstruíumtuboacústicoparaouvirtudooquesepassaláembaixo!

—Puxa,entãovocêestáapardetodosossegredosdoseupai...

Maselafezummuxoxo:

—Semchance.Geralmenteeleestásozinhoeaindanãoficoumaluco,porisso não fala sozinho. A única coisa que eu escuto são ruídos ou, de vez emquando,umespirro.Papaiviveresfriado...

—Masquecoisachata...

— Só que hoje tem duas pessoas com ele! Os três conspiradores estãojuntos!

Ele já estava bem interessado: pôs as mãos nos ombros da menina eindagou:

—Comoagentefazparaescutar?

—Voutemostrar.

Elapegouumaespátuladealumínionumagavetadacômoda,abaixou-senumcantoe removeualguns tacos recém-envernizados.Haviaumaespéciede

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tubo bifurcado com bocais, espremido a um lado, fixado por uma pequenacorreia.Haviapresilhasmasquepodiamserabertas.Tatianaelevouumaalçaelevantouumatampadealçapão.Galenoestavaincrédulo,boquiaberto.

—Barbaridade!

—Schiu!Falabaixo! Issoaquidáparaumaespéciedeforro,senãoelesveriamaabertura.

—Comoagentevaiouvir?

—O tubo sebifurca.Ponhaum terminalno seuouvidoqueeuponhoooutronomeu.Éumaespéciedetelefonesemfio!

—Vocêpuxouaoseupai,vocêéumaLeonardaDaVinci...

—Ah!Bondadesua!

Elatascou-lhemaisumselinhoeentregou-lheumadaspontasdotubo.

—Esperoqueagentepeguecoisasimportantes...

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CAPÍTULO6

UMADISCUSSÃOFILOSÓFICA

AlgunsMesesdepois,AgnaldoPeixotoMartinelliconversavacomoPadreRobertoLandelldeMoura,emseurefúgiodeSantos.Oilustrefísicoeinventor,que pusera o Brasil à frente das telecomunicações, como Santos-Dumont opuseranadianteiradanavegaçãoaérea,jáestiveranoRiodeJaneiroaconvite,dandoalgunssubsídios técnicosparaoaperfeiçoamentodoscomunicadores—agorachamados“telefonesdebolso”.Nãoforapossível,noentanto,ocultardoidoso e encanecido sacerdote-cientista a procedência extraterrestre dosconhecimentos obtidos. Não desejando precipitar-se em assunto tão delicado,Landell de Moura escrevera a Agnaldo solicitando vê-lo com urgência. “Sepossível, procure-me em minha residência. Sei que é pedir muito, mas éimportanteenãoestoupodendocompareceraoRioporenquanto”.

Agnaldofoi,sabendoquevoltariadeimediato.Sóprecisavasaberoqueopadre desejava conversar. Recebido na residência do clérigo, aceitou um cháoferecido pela governanta da casa e logo em seguida ele e Landell deMourafecharam-senogabinete.

—Fiqueimuitocuriosocomasuacarta—explicouAgnaldo.

—Vocêformou-seemFísicanaSorbonne,devesermuitomaispreparadodoqueeu,umvelhoedesatualizadoinventor...

—Nãodigaisso!Semasuaorientação,nãoestaríamosjácomaspatentesepreparandoafabricaçãodoprimeirolote...

— Não se esqueça que o governo federal ficará com todo ele, e nemsabemosporque.

—Bem...—Agnaldofitoudistraidamenteohieráticocrucifixonaparede

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àscostasdopadre,sentadoemsuamesadetrabalho.—Nãocontávamosrevelartais coisas ao governo,mas nãopudemos continuar escondendopor causa daspatentes.Eclaroquepuseramaspatasnoassunto.Masdepoishaveráliberaçãoparaopovo,éclaro.

—Talvezdaquiaalgunsanos...nãoimporta.Oqueimportaéapretensaorigemextraterrestredoobjetoqueestásobasuaguarda.

Agnaldo teve um ligeiro estremecimento. Não se atrevera a deixar o“objeto”guardadoemsua casaoucomosoutrosdois.Trouxera-onamaladeviagem,comtodososriscos.

—Quetemoobjeto?—indagou,fazendo-sedeinocente.

—Compreendaasimplicaçõesdissotudo.

—Vocêquerdizer,dopontodevistadareligião?Seráqueareligiãocristãnãoadmitevidaemoutrosplanetas?

—Nãoéisso.Atéadmite.Oproblemaéprovar,eeunãoconsideroissoprovado.

—Ora,padre!Comoéqueexplicaentãoascomunicações,easdicasqueelesenviaramequeprovaramestarcorretas?

— Este aparelho, por suas características, pode ter sido construído pormãoshumanas;elenãofazsuporumaanatomiadiferentedado“Homosapiens”.

—Damosisso.Mas,edaí?Quemsabeaformahumanaéuniversal?

—Acho issomuito pouco provável. Além disso, embora não possamosainda visitar outros planetas, emvinte anos deveremos estar naLua, comonofilmedeFritzLang,eaAstronomiajápraticamentenosgarantequenãoexiste

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vidanoSistemaSolar,pelomenos,vidaadiantada.

—Sim,masquemnosgarantequeelessãodonossosistema?Ouniversoéinfinito...

— Agnaldo, pelo amor de Deus vamos ser razoáveis. Não desconhececertamente a teoria de Albert Einstein e nem as distâncias interestelares eintergaláticas.

—Sim,eusei,epodehavererrosnaTeoriadaRelatividade.Quemsabenãoháummeiodeultrapassaravelocidadedaluz?

—Seépossível,não sei.Masqual aquantidadedeenergiaque se farianecessária?

Agnaldosorriu.

— Padre Moura, me desculpe mas acho que nós não precisamos nospreocupar muito com esse detalhe. Não temos como saber da tecnologia dosestranhos,milhõesdeanosnosseparameoúnicoelodecontatoéoaparelho.QuemsabeelesficaramnaufragadosnaTerra,sempodervoltaraoseumundodeorigem...

—Maselesnãorevelaramasuaaparênciafísica.

—Não,elesnãoofizeram.Suacivilizaçãoeraaltamenteautomatizada...

—Issoéoutracoisaestranha,poisnão foramencontrados restos fósseisdessasupostacivilização...

— São milhões de anos, Padre Moura. Eras geológicas! Passaram-seidadesdogelo,continentesafundaramesurgiram...

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LandelldeMourabrincouumpoucocomopequenocrucifixopenduradoemseupescoço.

—Porquevocêsnãopedemqueelesenviemimagensdeseuscorpos?

—Penseinisso,PadreRoberto,masnósnãoqueremosmelindrá-los...

— Hum. Não vejo como isso poderia causar melindre, mas vocês jáenviaramsuasprópriasimagens?

—Transmitimosfotosefilmesdocumentários.

—Então “eles”, sejam lá quem forem, já possuemanossa imageme jáconhecemmuitacoisadanossacivilização.Nãoseráissoperigoso?

Agnaldo fez um gesto de impaciência. Na sua cabeça as objeções docientistaestavamvinculadasacrendicesreligiosas.

—Não me diga que “eles” poderiam ser demônios! Landell de Mourasorriu.

—Não,meu caro, o demônio não utiliza essas técnicas.Mesmo assim,algumacoisamedizquenósnãoestamoslidandocomumacoisainteiramentesegura.Esea“coisa”explodir,destruindooquarteirão,edequebraavocêstrês?Podemestarfazendoigualaoaprendizdefeiticeiro!

Agnaldotambémsorriu.

—Tenhocertezadequeesserisconãoexiste.Émaisfácilofogãoládecasaexplodir...

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—Bem.Comodizoditado,vocêssãoadultosevacinados,devemsaberoqueestãofazendo.Nãomefurtareialhesdarconsultoriacientíficasemprequeprecisarem,masnãotenhoomínimointeressedeparticiparnasuafirmaemsi.Compreenda,meuamigo, jáestoumuitovelhoecansadoehojeemdiasómededicoàreligiãoesuapastoral,aciênciaagoraésóumadistraçãoagradáveleosnegócios,então,issomesmoéqueperdeutodaaimportânciaparamim.

Emboranãoodemonstrasse,Agnaldosentiuumgrandealíviocomaquelaspalavras.Achavaqueosdoissóciosoriginaiserammaisquesuficientes—alémde serem fáceis demanobrar— e temia que o padre quisesse tomar parte noempreendimento.PassarLandelldeMouraparatrásprovavelmentenãoseriatãofácil,masjánãoserianecessário.

Conversaram algumas banalidades, trocaram algumas ideias sobre aexplosivasituaçãonacional,eAgnaldoporfimsedespediueretornouàcapitaldopaís.

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CAPÍTULO7

OPRESENTEDOSDEUSES

E assim passaram-se algunsmeses; aUltraluz tornou-se, quase da noitepara o dia, uma empresa de grande porte e fornecedora de tecnologia para ogovernofederal.Esteexigirasigiloemrelaçãoaostelefonesdebolso,jáquesuautilização, num mundo à beira da guerra, deveria se restringir à segurançanacional. Pelo menos, foi esta a explicação dada. Este fato contrariousobremaneira o trio Vincent-Lorenzo-Agnaldo, que contavam com uma famaigual à deCarmenMiranda— senão para eles, aomenos para o invento.Oslucrosvinham,maséclaroqueseriammaioresquandooinventofosseliberadoparaograndepúblico.

Em contrapartida, não havia restrições quanto ao plasmefalto e àplasmeíte.Jásederainícioàconstruçãodeumpequenobairrodeplasmefaltonafronteiraurbanacarioca,aBarradaTijuca,ecasasdotipoemoutroslocaisdopaís.DiversasoutrasinvençõesforamacumulandopatenteseAgnaldosonhavaumdiatornar-seohomemmaispoderosodopaís.Quemsabe,algumdiapoderiaalcançar a presidência da república?Sentia-se entediado ao constatar o caráterprosaico das preocupações dos seus parceiros— incomodados, por exemplo,com o inocente namoro entre Tatiana e Galeno, que iam ao cinema de mãosdadas, assistirHarold Lloyd, BusterKeaton, Charles Chaplin ou oGordo e oMagro.VincenteLorenzoaindaachavamqueseusfilhoseramcrianças.

Durante esse tempo Landell de Moura dera, discretamente, algumasorientações técnicas, pedindo, porém, que seu nome nunca fossemencionado.Carmen e Aurora Miranda haviam aparecido em anúncios do plasmefaltopublicados na revista de Assis Chateaubriand, “O Cruzeiro”, recentementelançada.HumbertodeCampos,nas suas crônicas, fizera referência aoprodutoque estava revolucionando a habitação.Além disso, os alienígenas prometiampassarnovastecnologias.

Em sua última conversa com Landell de Moura, Agnaldo achou osacerdote reticente, casmurro, circunspecto, parecendo estar com medo de

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algumacoisa.OclimadeeuforiareinantenadiretoriadaUltraluznãocontagiarao inventor.Agnaldo tentou esclarecer omotivo daquele desânimo e só obteveestaspalavras:

— Meu amigo, aqui neste mundo não há nada que corra bemindefinidamente.Emsuma...mas eunãoqueroparecerumacassandra.Vamosaguardar os acontecimentos, e tomara que essa intervenção no tempo nãoprovoquedanosecológicos.

—Ora,padre!Cadavezvocêprocuraumacoisaparasepreocupar!Essascomunicaçõesviatemponãoafetamoar,aáguaouosolo,nãopoluemenfim!Comopoderiam?Nãoébobagemficarexcogitandoasdesgraçasquepodemviraocorrer?

Valeesclarecerque,sendoAgnaldoumempedernidoagnóstico,eracontradirigir tratamento cerimonioso a padres, e tratava Landell de Moura comoqualqueramigo,istoé,chamando-ode“você”.Ovelhoclérigojáseacostumaraàquelafamiliaridade.

*

Numanoitefriadejulho,alheiosàagitaçãopolíticaquejátraumatizavaopaís, os três inventores tornaram a se reunir no gabinete deVincent.Agnaldotrouxeraoartefato.Eraaprimeiravez,desdeavésperadeAnoNovo,emquesereuniamnaquelelocal.OapartamentodeAgnaldoestavasendopintado.

Foiobastanteparaqueosdoispequenosespiõesesquecessemseunamoroeseposicionassemnoquartodagarota,prontosanovasbisbilhotices.

—Veja,querido,nósprecisamosteracessoaessacoisa.Temosquecopiarachavedoescritório!

—Eutambémacho,masqueadiantaseesseespertodesseAgnaldoestá

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mantendooartefatonacasadele?

—Talvezdeixeaquiporenquanto.Acasadeleestáemobras.

—É,vamosrezarporisso.

—Opioréquenósnãopodemosfazernada!Essesnossospaisficamaí,abrindoaCaixadePandora,enãopodemnemsaberqueagentesabe!

—Psiu!Agoravamosescutaroqueelesfalam!

*

Havianovidades.Naquelanoite“eles”deramaconheceranovaetapaquevinhamanunciando:

—Entraremosemnovafasedenossascomunicações.Poderemospassaravocês diretamente, por transmissão de matéria, as altas tecnologias quepossuímosecorremoriscodeseperderemparasempre.

Contendosuaemoção,Vincentdigitouemresposta:

— Por transmissão de matéria? Através do tempo? Como isto serápossível?

— Passaremos o esquema completo de um receptor de matéria. Nóspossuímosatécnicanecessáriaparaateleportaçãoatravésdoespaçoedotempo,mas isto não pode ser feito continuamente em razão da grande energiadispendida. Inicialmente vocês devemmontar um receptor experimental, parapequenosvolumes.

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Ostrêsseentreolharam,excitados.Nadapoderiasermaissensacional!Háalgumtempoosestranhosfinalmentehaviamreveladosuaforma, transmitindosuas imagens, e eram tão humanos quanto os terrestres. Isto contribuíra paradissiparapreocupaçãolevantadaporLandelldeMoura.

Agnaldo pediu maiores detalhes. Veio então uma revelação ainda maisestarrecedora:

—Nós trabalhamos com portais. Estabelecendo alguns em seu mundo,vocês terão resolvidooproblemade transporte.Poderão irdeumcontinenteaoutrocomalgunspassos.

—Comoistoseriapossível?Éassombroso!

— Isto nós chamamos dobra espacial. É como se o espaço se dobrasse,permitindoapontosdistantesseencontrarem.

—Afísicaquânticatemdessascoisas...—observouLorenzoPelincaemvozalta,paraosseusamigos.

Agnaldovoltouadigitar:

—Oqueteremosprimeiro?

— Primeiro, o transmissor-receptor temporal de matéria. Vocês logoaprenderãotodoomecanismodoprocesso.

—Maseunãoentendo.Sendotãopoderosos,porquevocêsestãoàbeiradaextinção?

— Já explicamos que a nossa raça é muito velha. Além disso, nossos

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ancestrais de uma era perdida vieram de outra galáxia, e aqui nosso DNA secorrompeupelagrandemudançadeambiente.Sabemosqueaglaciaçãoqueseaproxima—aprimeiradesteplaneta,poisoutrasvirão—nosextinguirá.Vocês,decertaforma,darãocontinuidadeaopatrimôniodanossaraça.

Vincent,incomodadoporestarsendopostoparatrás,insistiuemregistrartambémumcomentário,apesardosciúmesdoAgnaldo:

—Masvocêssãoterrestrestambém!Permaneceramaquimuitasgerações!

— Nós nos consideramos terrestres, mesmo porque não temos maiscondições para retornar à galáxia de Andrômeda, de onde viemos; a dobraespacial requer uma energia grande demais, que não temos possibilidade deproduzir,comotínhamosemnossomundonatal.

—Masanossaprópriaraça...nãoaconheceram?

— Não pudemos. Porque nossa força vital está no fim, e já nãoconseguimos nos reproduzir senão raramente, somente atrapalharíamos, nãopoderíamos nos misturar com a sua espécie. Infelizmente vocês não poderãoherdaranossatecnologia,queserádestruídapelosglaciaresepeloscataclismosdiversosquegolpearãoaTerra.

—Extraordinário!—murmurouLorenzo.—Opadrenãovaigostarnadadesaberdessascoisas...

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CAPÍTULO8

ACONVULSÃO

E assim foram se passando os meses, e por incrível que pareça os trêsmosqueteirosmantinham-sealienadosemrelaçãoaosacontecimentosdopaísedomundo,sematentarquenosdoishemisfériosultimavam-sefatorescapazesdelevar o mundo à ruína. O quarto mosqueteiro, Landell de Moura, doente ecansado, só se manifestava quando os outros encaminhavam algum problematécno-científico.Jánemdavavazãoaosseustemores.

Umbelodia,porém,foisurpreendidocomumtelefonemainesperado.

—PadreMoura?

—Sim?—osacerdotenãoconseguiu identificaravoz infantildooutroladodalinha.

—ÉaTatiana!

—Tatiana?QueTatiana?

—Nãoselembramaisdemim?ATiana!Osenhorjáveionosvisitar,meupaiéseuamigo.

—Ah,sim?Equaléonomedele?

—ÉoProfessorVincentFranco,ofísico...

—Ah!OProfessorFranco!Éclaro!Aconteceualgumacoisacomele?

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—Éclaroquenão!Soueuquequerofalarcomosenhor!

—Olhasó,vocêestáfalandodeonde?

—Aqui do Rio de Janeiro! Estou em casa, mas papai não está! Estoupassandoofim-de-semanacomele!

Landell deMoura estava perplexo.Que poderia uma adolescente querercomele?

—Vocêestáconscientedequeumaligaçãointerurbanaécaraeseupaiéquemvaipagaraconta?

—Eusei,masoqueeupossofazer?Épelobemdopapaimesmo!

—Muitobem,Tatiana,doquesetrata?

—Padre, o senhor tem que fazer o papai parar com essas experiências!Antesquesejatardedemais!

—Ué,oquevocêsabesobreisso?

—Seimuitacoisa!EueoGalenoestamosmuitoaflitos!

—Galeno?

—Esqueceudeletambém?ÉofilhodoDr.Lorenzo!

—Ah sim, lembro agora!Mas, por que vocês estão se envolvendo emassuntodegenteadulta?

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—Padre, o senhor está a par doque eles andam fazendo!Atualmenteomeupaiestáconvencidodequeatalcivilizaçãodopassadoéadosatlantes,eestásuperexcitadocomosconhecimentoscientíficosqueestáacumulando...

—Comoéquedescobriramessascoisas,seelesnãocontamavocês?

—Issonãoimportaagora.Elesnãodizemquesãoatlantes,dizemquesãoextraterrestres, mas cada vez mais o papai duvida deles. Acha que estãoescondendoalgumacoisa.Mas,dequalquermodo,quemestácontrolandotudoéoAgnaldo,eessesujeitosóqueraparecereganharfamaeriqueza!

—Vocêestásendomuitoseveracomumapessoaadulta!

—PadreMoura, só porque eu tenho quinze anos não quer dizer que eusejadebiloide.

—Não,éclaroquenão.MasselevarmosemcontaaimportânciadoqueVincent,AgnaldoeLorenzoestãolevantando...

—Masosenhoracreditanisso?Umaraçadopassadoentregatudodemãobeijadadessejeito?Seelessãotãopoderosos,estariamlutandoparasobreviver!

—Masoquevocêachaquepodeacontecer?

—Ah,nãosei.SóDeussabe.MasfaleicomoGalenoeeleconcordouqueeuligasseparaosenhor.Porfavor,impeçaqueelescontinuem!

—Vocêjátentouexporsuaopiniãoaoseupai?

—Ah,não!Elenãosabequeeuseidessascoisas!Osenhorcompreende...

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o Galeno e eu descobrimos tudo clandestinamente! Até vimos o artefato,pegamos nele, mas não tivemos coragem de escondê-lo. Nossos pais nosmatariam...

— Não, eu não compreendo que vocês espionem seus próprios pais...mexamnascoisasdeles...

—Masseépelobemdeles...alémdisso,padre,nósprecisamossalvarahumanidade!

—Calma,mocinha.AhumanidadejáfoisalvaporJesusCristoeeutenhocertezadequeElenãoprecisaquenósasalvemosdenovo.

—Entãovamosdarumaajudazinha.Padre,osenhornãovaiajudar?

— Vou, sim. Farei o que estiver ao meu alcance. Agora, se me derlicença...

Depoisqueencerroualigação,opadrepensourapidamenteetomouumaresolução:

“Farei um sacrifício e viajarei ao Rio de Janeiro. Irei eu mesmo exporalgumasperguntasàquelacoisa.Tenhocertezadequenenhumdostrêsusouoscritériosmais corretos aodialogar comquemesteja dooutro lado.Sei que eupossodescobrircoisasqueelesnãosãocapazes.”

E nenhum deles teria coragem de impedir Landell de Moura nessainiciativa.

*

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MasquandoLandelldeMourapegouotremedirigiu-seaoRiodeJaneiro,soubenorádiodepilhadoprecipitardosacontecimentosepercebeuquetalvezjá fosse tarde demais para interferir. A tuberculose, que tratara rigorosamentedoisanosatrás,deixarasequelase,apesardeaindaestarbeirandoos70,elejásesentiamuitoalquebrado.

LandelldeMourasabia,éclaro—pormenosquegostassedeacompanharpolítica—queJoãoPessoahavia sidoassassinadoem26de julho,noRecife,porJoãoDantas.Masnaqueledia3deoutubrode1930,umasexta-feira,aáguada chaleira finalmente entrava em ebulição.A revolução estourara por todo opaís; Getúlio Vargas, Mena Barreto, Tasso Fragoso, o Almirante Isaías deNoronha,OsvaldoAranha, JuarezTávora e outros líderes, incendiaram o paíscontraWashingtonLuíseopresidenteeleito,JúlioPrestes.

Amovimentaçãodetropasimpediuotremdechegaraoseudestino.Haviacombatesaolongodalinha.Osacerdoteviu-seconstrangidoaretornaràcapitalde São Paulo, sem ter sequer atravessado a fronteira do Estado do Rio deJaneiro.

Fez uma nova tentativa no dia 10, e teve a desagradável surpresa de seencontrar no mesmo comboio onde viajava Getúlio Vargas. A essa altura jácorriaumaverdadeiraboatariasobreosaparelhossecretosutilizadospelasforçasleaisaopresidente,queserecusavaarenunciar.Eramaparelhoscomunicadores,telefones móveis, até então conservados em segredo pelo governo deWashingtonLuís.

A História conta que, contra todas as previsões e as possibilidadesconhecidas,asortesorriuaWashingtonLuíseamaioriadoslíderesrevoltosos—acomeçarporGetúlioVargas,curiosamenteex-ministrodopresidente

— exilou-se nos países vizinhos ou em Portugal. E o que colaboroudecisivamenteparaoêxitodogovernoforamoscomunicadores,outelefonesdebolso—emborafossementãounstrambolhos,quetinhamdesercarregadosemcapangas ou pochetes, pois algibeirasmesmo só de capotes—que permitiam

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rápida e fácil comunicação entre as tropas governistas, de maneira queWashingtonLuís triunfougraçasà logística.Éclaro,muitasunidadesmilitaressóreceberamosaparelhosdepoisqueclaramenteficaramcomogoverno.

Quandoovendavalpassou,era tardeparaLandelldeMoura intervirnosacontecimentos. Um novo e desesperado telefonema de Tatiana só obteve arespostadequeoreligiosoachava-seinternadoemtratamentointensivo,poisatísicasedeclararanovamente.

LandelldeMoura,mesmodoleitohospitalar,fezopossívelparasemanterapardosacontecimentos.Escreveucartas,falandoomínimopossível,temendoque elas fossem interceptadas. Assim ficou sabendo que a situação estavaevoluindocomarapidezdeumfoguete—oumesmodeumtrem-bala,anovatecnologiafornecidapelosalienígenas.Oanode1931,jásobogovernodeJúlioPrestes(queprometiaumasériedereformasnaáreatrabalhista)avançoucélere,enquantoLandelldeMoura,lutandopelavida,serecuperavalentamente.

“Omundoestápassandoportransformaçõesincríveis”—diziaafinalumacartadeVincentFranco.—“Recebemos,emminiaturas,osprotótiposdotrem-bala, agora só temos que construí-lo em modelo natural. O dinheiro estácorrendo a rodo. As grandes potências estão de olho no Brasil. Até o Ducetomou-sedeamizadepelogovernobrasileiro,ecomsua influênciafacilitouascoisasparaaUltraluzquejávirouumamultinacional.Emdezembroteremosolancemáximo:estamosinstalandoportaispelomundo,nasprincipaiscapitais,epor eles receberemos mais uma tecnologia, a última, que os nossos amigosgarantem,nosdaráosmeiosparadominarmosoSistemaSolar.”

Landell deMoura, ansioso por receber alta, passava boa parte do temporezando,pedindoaDeusumainspiração.

—NossaSenhora—murmurouele,apósleracartadeVincent—comoelepode estar tão tranquilo e exultante?Não estávendoque, se eles tivessemtudoisso,nãoprecisariamnospassar?

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CAPÍTULO9

ASURPRESAFINAL

O tempo estava chuvoso quando a campainha tocou no casarão da RuaBarãodeMesquita;umadascriadas,atendendoàcampainhaeaos latidosdoscachorros,desceuosterraçosdevegetaçãoeencontrouoPadreMoura,debatinaeguarda-chuva,olhosfebris,perguntandoporVincentFranco.LandelldeMourafoi introduzido e, na sala de estar, foi recebido por Tiana que, em calçascompridas conforme a novamoda entre as garotas, quase parecia umamulherfeita comseusdezesseis anos.Ela abraçouLandelldeMoura,mal contendoochoro:

—Padre!Porquenãopôdevirantes...

—Poisseeuquase tiveque fugirdosanatório...ondeestãoaqueles trêsmalucos?

—Mascomo!OsenhornãosabedaexperiênciadehojenaQuintadaBoaVista?

—Sim,eusoube.

—Masquemochilapesadaosenhorcarrega!

—Étudocoisaqueeutalvezprecise.Maselesjáestão

lá?

— Já foram na frente. O país está em polvorosa, já se vê, nós viemosmorarnessepalacetequaseemsegredo,eunãogostodessafama.

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—Eporquevocênãofoilátambém?

— Estou esperando o Galeno, ele vai comigo, afinal nós vamos casardaquiadoisanos.

—Jádecidirammesmo?—eopadresorriu,apesardapoucavontadedesorrirnosúltimostempos.

—Já,sim.Senenhumatragédiaocorrerantes...PadreMoura,vaicomagente.Nósestamostãoapavorados!Agentetomaumtáxi,eupagocomaminhamesada!

— Está bem, iremos os três. Já não celebro missas, a saúde não mepermite.EDeussabecomoestouempé—mostrouabengala.—Talvezsejaaúltimacoisaútilqueeupossafazernavida.

*

Osholofotesiluminavamoquepareciaserumatelaluminosadotamanhodasqueexistemnoscinemas,todavianãoeraumatela,eraumportaltemporal,conformeAgnaldoexplicouaotrôpegosacerdote.

— O senhor não devia ter se esforçado tanto. A sua saúde é maisimportante...

“Até esqueceu a velha familiaridade”, pensou Landell de Moura, erespondeu:

—Oquevocêesperaquesaiadaí?

—Pelo pouco que eles disseram, acredito que receberemos um foguete

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capaz de chegar àLua e aos planetas, umanavemovida pela energia nuclear.Outras serão recebidas por nossos representantes em Paris, Londres,Moscou,Tóquio,BuenosAires,Nova Iorque e Lisboa. Será omaior acontecimento doséculo.

—Etudoisso,apenasatendendoaocomandodacaixinha?

—Éclaro,padre.Jáestamosnacontagemregressiva.

Landell de Moura olhou ao redor, incomodado com o calor sufocanteapesardagaroa.WashingtonLuísencontrava-senopalanquepróximo,rodeadode seguranças; até os contistas Humberto de Campos e Coelho Neto ali seencontravam.Repórteresefotógrafoscirculavamemquantidade,eraferiadonoRiodeJaneiro.Opadreachavaquetudoaquiloeraumainsensatez louca,masnãopuderainvestigarafundo,sócontavacomaprópriaintuiçãoepoderiaestarenganado.

Àhoraaprazada—meio-dia—atelamudoudecor,tornou-sedeumíndigocarregado,esubitamentepareceuserasgar.Apareceuentão...

Adecepçãofoibrutal.

Surgiram uns veículos blindados, algo parecidos com tanques de guerra,mas com “design” diferente; e umamultidão demáquinas estranhas, robôs degrandeporte, alguns semelhandoaracnídeos e lacraias.Nãopareciamnemumpouco com as naves prometidas. E ante o grito de espanto da multidão, elesavançaram—ejádisparando.

LorenzosacudiuosombrosdeAgnaldoque,semquereracreditarnoquevia,pareciaparalisadodeestupor:

— É uma cilada, homem! Um cavalo de Tróia! Que está esperando?Desligueoaparelho!

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Agnaldo bem que tentou. Mas nem ele, nem Lorenzo e nem Vincentconseguiramdesativaroartefato;algumaespéciedetravafôraativada.

Epelomundoaforaasmáquinasassassinasestavamsendoejetadasatravésdosportais,ecausandoumagrandecarnificina.

*

Omundoparecia tomadopor amência.Passadososprimeirosmomentosdepânicoeestupor,asforçasmilitaresprocuraramreagirenasdiversascapitaisenvolvidastiveramlugarcombatesencarniçados.Entretanto,asforçasinvasorasnãoparavamdesair.

Emmeio ao pânico generalizado o velho padre sentou-se num banco eabriuamochila.Osdoisadolescentescercaram-no:

—Padre, o que vamos fazer?Vamosmorrer se ficarmos aqui!— disseGaleno,segurandoabatinanegradoreligioso.Bastavaqueosatacantesdessemumaguinadaqueelesficariamaoalcancedosprojéteis.

—Tomaraquedêcerto—respondeuele.

Tirou de dentro uma espécie de retângulo, parecendo um relógio deparede,repletodecontrolesemostradores.Acionouváriosbotões,direcionandouma espécie de tubo para o portal. Um raio esverdeado partiu e atingiu afantástica tela. Esta estremeceu e se desfez como por encanto; uma últimamáquina, do tamanho de um caminhão-tanque, só passou pela metade e foicortada,detendo-seemcompletainutilidade.

—Vamostodosparaomeucarro!—gritouAgnaldo.

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—Temosdefugirdaqui!

Correram todos e espremeram-se no reluzente Cadillac último tipo deAgnaldoPeixoto,frutodosrecenteslucroscomtodasaquelasinvenções.

—Oquevocê fez?—exclamouLorenzo.—Comopôde fechar aqueleportal?

—Muito simples.Utilizei estemeu interferômetro que funciona com asondaslandellianas,queeudescobri.Corteialigaçãocomopassadoeneutralizeiesse maldito aparelho. Espero que esse efeito tenha acontecido no resto domundo.

—Estamosarruinados!Provavelmentevãonoslinchar!

— Vamos para o Palácio do Catete, pessoal! — comandou Landell deMoura,numassomodeenergia, superando,por forçadascircunstâncias,a suasemidecrepitude.—Temosdeexplicaràsautoridadesoqueeufizetentarlevá-las a entender que algum lucro a humanidade teve com esses novosconhecimentos!

Tatianatocouamãodoseuherói:

—Padre...somenteomaiorgêniodaFísicamoderna,osenhor,poderiaternossalvo.Senão,aquelascoisascontinuariamasairindefinidamenteematariamatodosnós.Mas,oqueeraaquilo?Nãovinenhumservivo.

—Eutambémnão,minhafilha.Talvezelesnemexistam.

—Comoassim?

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— Eu tenho uma teoria, mas é cedo para expressá-la. Preciso de maisdados.

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EPÍLOGO

TRINTAANOSDEPOIS

Atéaqui,venhoredigindonaterceirapessoa,buscando,comosdadosqueacumulei,preencheraslacunasdascenasqueeunãopresenciei.Agoraéhoradefechar este sombrio relato não como um narrador onisciente, mas como oProfessor Vincent Franco. Graças a Deus, ainda tenho saúde apesar da idadeavançada. Lorenzo ainda vive, mas necessita de cuidados especiais. Agnaldo,infelizmente,morreudedesgostoalgumtempodepois;suavaidadeearrogâncianão suportaram o fiasco mundial que levou ao fechamento da Ultraluz; commuita dificuldadeLorenzo e eu pudemos abrir outra firmapara exploraçãodoplasmefalto,únicotriunfoquenosrestou.

Nosprimeirosdiasda invasão sucederam-segrandesbatalhas; nãohaviameio de nos comunicarmos com asmáquinas e de resto, quando foi possívelneutralizareabrirmuitasdelas,nãoseencontrounenhumservivonapilotagem.Tudoeramaparelhos,autômatos,eincrivelmentecoordenavamassuasações,jáquenãomantinhammaiscontatocomsuabasenopassadoremoto.

Foram dias terríveis, com mortes aos milhares, quarteirões arrasados,populaçõesinteirasemfuga.Lorenzo,Agnaldoeeufomosajulgamento;creioque só o fato de nossos telefones terem contribuído para salvar o governo deWashington Luís nos livrou de uma longa pena de prisão ou coisa pior.Estávamos,porém,queimadosperanteaopiniãopública.

LandelldeMoura,transformadoemheróinacional,passouosúltimosanosdesuabrilhantevidatrabalhandoparadesmontaroartefatoemdefinitivo,oqueelecompletoudoismesesantesdasuamorteem5demaiode1934.Aindapôdeassistir,emjaneirodaqueleano,aocasamentodaminhafilhaTianacomGaleno.

Infelizmente, embora ataquesmaciços de artilharia e aviação acabassemdestruindo aquelas máquinas — que utilizavam raios destrutivos e projéteisfeitos com ligas desconhecidas— não foi possível eliminá-las por completo.

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Muitas fugiram para regiões inóspitas, como Amazônia e Saara, e se auto-replicaram,comomáquinasdeVanNeumann;nãopoderãonosexterminar,masrepresentam a guerra eterna, algo comque teremos de conviver nos próximosséculos.

NaúltimaconversaquetivecomRobertoLandelldeMoura,perguntei-lheseele já tinhaumapistadoqueeramaquelas coisas.Eo sábio respondeu-mecomvozfraca:

—Elas não são seres vivos, é claro, embora pareçam ter um propósito.Alguma civilização do universo as criou, programando-as para atacarem seresviventesedestruí-los.Devemtersaídodocontroledeseuscriadores,talvezatésevoltadocontra eles.Provavelmenteeles, fossemquem fossem,conseguiramteleportá-lasparaaTerra.

—Ecomonãoencontramosseusrestos?

— Pode haver muitas respostas para isso. Pode ser que as máquinastenhamafinalconseguidoescapardonossoplaneta,oupodemtersidodestruídaspor algum inimigo, afinal tudo isso tem relação com alguma guerra ancestral.Elastinhammeiosdeviajarnotempoeutilizaramaquelaiscaparatentaraajudade alguma civilização do futuro. Tudo isso fazia parte da sua programaçãológica.As condições da Terra naquele tempo doCretáceo eram desfavoráveismesmo para máquinas, e suas sondagens revelaram a nossa existência, daí aprojeçãodaarmadilhaemformadeaparelhomiraculoso.

—Masporquenosatacaramdaquelejeito,padre?

—Nãopodiam fazermaisnada,Vincent.Erammáquinas, não tinhamousodarazãoeapenaspodiamseguirasuaprogramação,ouseja,esmagar,matar,destruir.

—Mas,seráqueelasforamcriadasporhumanoides?Asimagensquenos

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mandaram...

—Nãoprovamnada.Vocêsjátinhamtransmitidonossasfiguras,lembra?Creioquejamaissaberemosaformadascriaturasoriginais.

—Até quando conviveremos com isso? Não passa ummês sem algumataquedessasmáquinas,semalgumabatalha.

— Meu caro, lembre-se que os micro-organismos também matam,provocandodoenças,enósnãopodemosnoslivrardeles.MastalvezaCiênciavenha a encontrar, em breve, um sistema que permita aniquilar de vez essesartefatosassassinos.Eujánãoestareiaqui,masquemviververá.

Bem,trintaanosdepoisaindaestamosprocurando...

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SOBREOAUTOR

Miguel Carqueija é carioca, autor de histórias de ficção científica, fantasia,terroremistério.Publicouoslivros“AEsfingeNegra”,“Ofantasmadoapito”,“Tempo das caçadoras”, “O estigma do feiticeiro negro” (em parceria comMelanieEvarino),“Horizontesombrio”,“Nasgarrasdofuturo”,“AfaceocultadaGaláxia”ediversosoutros.