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Minha Vagina, Minhas Regras: o aborto em discurso1
Fernanda Pereira (UNIOESTE)
Resumo: Práticas para interrupção da gestação sempre existiram e sua aceitação ou proibição
passam por questões morais e éticas acerca do início da vida humana, além do imaginário em
torno da maternidade e do corpo da mulher. Desde a Idade Média, a formação discursiva
religiosa determina papéis para as mulheres, no sentido de controlar o corpo feminino e sua
sexualidade. Interditada por essas discursividades, a prática do aborto passa a ser condenada,
não cabendo “oficialmente” à mulher decidir acerca de seu próprio corpo, que não pertence
mais a ela, mas ao marido, à religião, ao Estado. Neste sentido, o grupo feminista FEMEN
produz protestos, utilizando seus corpos nus, com o propósito de questionar este controle,
exercido pela moral religiosa, sobre os corpos das mulheres. Por meio da Análise de Discurso
francesa, este trabalho pretende analisar um protesto do grupo, contra a criminalização do
aborto na Espanha, a fim de demonstrar como o corpo nu, coberto com enunciados que
questionam o controle dos corpos, produz sentidos, na medida em que desloca o corpo das
manifestantes da função “inata” da maternidade.
Palavras-chave: Aborto, corpo, religião, Análise de Discurso francesa, FEMEN.
Abstract: Practices to interrupt gestation have always existed and their acceptance or
prohibition goes through moral and ethical questions about the beginning of human life, as well
as the imaginary around motherhood and the woman's body. Since the Middle Ages, the
religious discursive formation determines roles for women, in the sense of controlling the
female body and its sexuality. Interdicted by these discourses, the practice of abortion is
condemned, and it is not "officially" for the woman to decide about her own body, which no
longer belongs to her, but to her husband, to religion, to the State. In this sense, the feminist
group FEMEN produces protests, using their naked bodies, with the purpose of questioning
this control, exercised by religious morality, on the bodies of women. Through the French
Discourse Analysis, this paper intends to analyze a protest of the group, against the
criminalization of abortion in Spain, in order to demonstrate how the naked body, covered with
statements that question the control of the bodies, produces meaning, as it displaces the body
of the protesters from the "innate" function of motherhood.
Keywords: Abortion, body, religion, French Discourse Analysis, FEMEN.
1 Este trabalho é parte da dissertação de mestrado entitulada “CORPOS EM PROTESTO: Análise discursiva do
movimento FEMEN”, desenvolvida sob a orientação da Profa. Dra. Dantielli Assumpção Garcia. Disponível em:
http://tede.unioeste.br/handle/tede/3051. Acesso em: 08 dez. 2017.
Fundado na Ucrânia em 2008, o grupo feminista FEMEN2 luta contra o patriarcado em
suas três formas de ação (exploração comercial e sexual do corpo da mulher, principais regimes
ditatoriais e principais religiões), utilizando o corpo feminino nu como instrumento de protesto.
Por meio desta técnica, denominada pelas manifestantes como sextremismo, o grupo questiona
e denuncia práticas que interditam, controlam, e cerceiam o corpo da mulher, produzindo
rupturas com o discurso estabilizado, promovendo mudanças, ressignificações.
Escolheu-se trabalhar com esse grupo feminista, justamente pela maneira como
protestam, utilizando o corpo como materialidade discursiva (corpo discursivo)3, ou conforme
afirma Orlandi (2004), o corpo tornando-se lugar material de significação em que a “letra”, o
“desenho” significam. Além disso, a reação que esses corpos nus provocam em seus
“interlocutores”, os efeitos de sentido produzidos por esses corpos, instigou o interesse de se
investigar como se justificaria a agressão sofrida por essas manifestantes, além de analisarmos
como diferentes formações discursivas4 (FDs), possibilitam a produção desses sentidos.
A imagem 1 abaixo retrata um destes protestos do FEMEN, no qual integrantes do
grupo realizam uma manifestação em Paris, contra a reforma na lei do aborto na Espanha,
apresentada em 2014:
2 Disponível em: https://femen.org/about-us/. Acesso em: 28 set. 2017. 3 O corpo, quando faz ou mostra aquilo que não é esperado, que não é determinado, assim como o sujeito, a
história e a língua, também apresenta um real. Dessa forma, pode-se pensar, segundo Ferreira (2011) em um real
do corpo, ou corpo discursivo, como o impossível de ser simbolizado, mas que de alguma forma se faz presente. 4 Pêcheux (2014a, p.147) define formação discursiva como “aquilo que, em uma formação ideológica dada, isto
é, a partir de uma posição dada em uma conjuntura dada determinada pelo estado da luta de classes, determina ‘o
que pode e deve ser dito [...]. Isto significa colocar que as palavras, expressões, proposições, etc. recebem,seus
sentidos da formação discursiva na qual são produzidos’.”
Imagem 1: Pelo direito ao aborto – Paris, 2014.
Fonte: https://goo.gl/hbf4rr. Acesso em: 24 abr. 2017.
O aborto era permitido no país desde 19855, mas apenas em três casos: sérios riscos à
saúde mental e física da gestante, estupro, e má-formação ou defeitos no feto. A partir de 2010,
o aborto passou a ser uma decisão da mulher6. Em 2013, foi apresentado um projeto de lei que
propunha criminalizar o aborto, exceto em casos de estupro e risco para a vida para a gestante,
ou seja, um retrocesso à lei de 1985. A partir dessa proposta, uma onda de protestos pelo direito
ao aborto surgiu na Espanha e em outros países da Europa. Na imagem 1 acima, as
manifestantes do FEMEN, com coroas de flores na cabeça e vestindo apenas calças pretas,
trazem escritas em seus corpos os seguintes enunciados:
My pussy7 my rules (Minha vagina minhas regras)
Aborto es sagrado/abortion is sacred (O aborto é sagrado)
God out of my vagina (Deus fora da minha vagina)
Thanks God I can abort (Obrigada Deus eu posso abortar)
No God in my vagina (Sem Deus na minha vagina)
5 Disponível em: https://goo.gl/fkbJRr. Acesso em: 24 abr. 2017. 6 Disponível em: https://goo.gl/cxmI5E. Acesso em: 24 abr. 2017. 7 Termo popular da Língua Inglesa para vagina.
Esses enunciados materializam uma relação interdiscursiva de contraposição entre duas
FDs, uma claramente religiosa e contrária ao aborto, e a outra que defende o direito de escolha
das mulheres.
O enunciado “Minha vagina minhas regras” aparece como efeito metafórico do
enunciado “Meu corpo minhas regras” refletindo a aproximação entre contracepção e aborto
promovida pelo movimento feminista. Segundo Diniz (2012, p.317),“‘Nosso corpo nos
pertence’ ou ‘Esse corpo é nosso’ foram algumas das expressões usadas pelas feministas a
partir dos anos 1990, em um giro argumentativo sobre a quem caberia controlar o corpo e a
reprodução”. A autora afirma que esse lema buscava a soberania da mulher sobre a
maternidade, cabendo ao Estado proporcionar-lhes os meios para tanto, seja pela utilização de
contraceptivos ou pelo aborto. Dessa forma, em países nos quais o aborto não é permitido, essa
FD se opõe a outras (religiosa, jurídica, médica, etc) que negam à mulher o direito a essa
prática.
Ainda nesse mesmo enunciado, a opção pelo pré-construído “vagina”, em seu termo
popular em inglês (pussy), reflete uma FD focada no órgão sexual feminino como
representação de sua sexualidade e da maternidade. Ao mesmo tempo, essa FD se origina a
partir de uma FD religiosa medieval (anterior ao século XVI), e propagada nos séculos
seguintes pelo ideal de feminilidade defendido por outras FDs, na qual tudo estava centrado no
útero, denominado na época como “madre” (DEL PRIORE, 2009), e no principal papel da
mulher (determinado pela natureza), cuja única função era a procriação.
No entanto, a exaltação da maternidade está presente desde a pré-história, representada
na forma de estatuetas com os seios, quadris, e barriga exagerados, relacionando o corpo
feminino aos ciclos da natureza, desvinculada da sexualidade, conforme afirma Leal (2004).
Ao longo da história, os discursos sobre a maternidade foram se transformando, refletindo as
mudanças econômicas e culturais das sociedades humanas, e instaurando diferentes
perspectivas acerca do corpo feminino. O autor aponta o advento da agricultura como fator que
associou a fertilidade feminina à da terra. A partir desse ponto, a mulher passa a receber a
semente do homem e fica incumbida de gerar esse princípio vital que a ele pertence. A fim de
garantir a propriedade e a herança, a maternidade passa a ser vinculada à sexualidade, e se torna
a principal função da mulher. O corpo feminino, como consequência, passa a ser domínio do
homem, sua propriedade.
A FD religiosa predominante durante a Idade Média, retoma essa memória, mas
associando a sexualidade ao pecado e atribuindo a culpa deste à mulher, intensifica o controle
sobre o corpo feminino, que só poderá se redimir por meio da maternidade. Segundo Del Priore
(2009), a sexualidade, que não visava à procriação, era considerada nociva, e as mulheres que
não tinham filhos eram taxadas como devassas, luxuriosas, sem qualidades, se opondo ao papel
de mãe conforme definido pela Igreja. Nesse contexto, a FD religiosa percebia o sexo feminino
como naturalmente mais suscetível ao pecado e as forças do mal. A partir desse momento, o
controle dos corpos passa a pertencer a “Deus”. Nesse sentido, negar a maternidade, seja por
infertilidade, seja por vontade própria, passa a ser uma afronta aos desígnios divinos. A igreja
tinha convicção de que
na maternidade residia o poder feminino de dirimir pecados. E dentre eles, o
maior de todos: o original. Causa central da expulsão do paraíso terreal, a
mulher podia resgatar o gênero humano do vale de lágrimas que bracejava,
chamando a si a permanente tarefa da maternidade. Nessa perspectiva o
aborto corporificava maior monstruosidade (DEL PRIORE, 2009, p.254).
Segundo a autora, os dizeres sobre proteção e exaltação da gravidez e da fecundidade
da mulher, são frutos do culto à Virgem Maria, da valorização da maternidade, e do corpo
feminino como meio de redenção dos pecados. Para a FD na qual as instituições religiosas se
inscrevem, o aborto é um pecado contra o corpo e, sobretudo, contra Deus, significando o
oposto da maternidade e, como os corpos pertencem ao divino, a mulher estaria impedida de
decidir sobre ele.
Del Priore (2009) relata que as discursividades da medicina, reproduzindo a
discursividade religiosa, apresentaram um olhar funcionalista sobre o corpo da mulher,
afirmando que a “madre” poderia provocar no organismo uma série de males, todos decorrentes
do mau funcionamento dos órgãos de reprodução. O aspecto mais tocante da “madre”, segundo
a autora, era um desejo inacreditável de conceber e procriar, além de um profundo instinto
materno. A partir dessa perspectiva, a maternidade assume a função “reguladora da saúde do
corpo feminino (p.179)”, e o corpo da mulher passa também para o domínio do saber
“científico” da época. A autora afirma que
Maternidade e gravidez eram, sem dúvida, neste quadro mental, o remédio
eficaz e preventivo para evitar toda a sorte de enfermidades que atacavam a
mulher quando seu corpo funcionava apenas como cloaca (DEL PRIORE,
2009, p.184).
Interditada por essas discursividades (religiosa e médica), a prática do aborto, passa a
ser condenada, não cabendo “oficialmente” à mulher decidir acerca de seu próprio corpo, que
não pertence a ela, mas ao marido, à religião, ao Estado. Ou seja, o corpo da mulher tem seu
papel determinado pelas FDs que constituem essas instituições e os sujeitos nelas inseridos.
Nesse sentido, o enunciado “Minha vagina minhas regras” reflete a ilusão constitutiva
do sujeito, provocada pela forma que o sujeito toma no discurso8 (“minha” e “minhas”),
esquecendo-se de que esses discursos são anteriores a ele, e o interpelam, determinando aquilo
que podem e não podem fazer com seus corpos. O sujeito acredita que o corpo é dele, que ele
possui algum poder de decisão sobre aquilo que deve ou não fazer com ele, quando, na verdade,
em última instância, são as FDs que vão determinar aquilo que é permitido ou proibido a esse
corpo. Ou seja, independente da proibição legal da prática, é a FD que vai determinar se a
mulher irá se submeter a um procedimento clandestino, por exemplo. Mas o sujeito tem a ilusão
de que está no controle para decidir.
A FD religiosa, durante a Idade Média, significava a sexualidade como sinônimo de
promiscuidade, o corpo feminino como naturalmente lascivo e o aborto como resultado de
relações extraconjugais indesejadas, se contrapondo ao papel social reservado pela Igreja à
mulher, a santa mãe, devidamente casada, obediente ao marido e a Deus. Segundo Del Priore
(2009, p. 256),
A Igreja e o Estado, portanto, encontravam respaldo para combater o aborto
na rejeição à mulher que rompia o acordo com a natureza. Ao que tudo indica,
a Igreja passou a reforçar a imagem da mulher-que-aborta com aquela mulher-
que-vive-a-ligação-ilegítima. Ela distinguia a mulher-que-aborta por não ter
um casamento protetor no seio do qual criar cristãmente a prole, daquela
“outra” que educa os filhos à sombra das normas tridentinas e do sagrado
matrimônio.
Apesar de apagada nesse protesto, essa FD persiste, produzindo efeitos de sentido que
culpam a mulher por exercer a sua sexualidade livremente, impedindo-a de abortar. Nesse
sentido, essa FD coloca o filho como sinônimo de castigo, que deve ser suportado pela mulher
que “pecou” contra a vontade divina. A imagem 2 abaixo retoma efeitos de sentido produzidos
por esse discurso:
8 Segundo Pêcheux (2014a), a Forma Sujeito do Discurso (FS) é a forma que o sujeito toma no discurso para
poder enunciar e constitue a ilusão que a língua dá ao sujeito de que ele está no controle, quando, na verdade, a
superfície é ditada por uma estrutura profunda, dissimulando o assujeitamento por meio dos esquecimentos.
Imagem 21: Campanha contra a legalização do aborto.
Fonte: CatólicosDefensoresDaFé - https://goo.gl/lXd5Wq. Acesso em: 24 abr. 2017.
O protesto do FEMEN, assim como toda a discussão sobre a questão do aborto, aniquila
a participação do sexo masculino no processo de concepção. As duas FDs, tanto a religiosa,
quanto a FD pró-aborto reproduzem discursos nos quais toda a responsabilidade recai apenas
sobre a mulher e a responsabilidade do homem é inexistente.
No enunciado “O aborto é sagrado”, verifica-se o efeito do pré-construído9 e do
discurso transverso10 em sua construção. A escolha do pré-construído “aborto” e a ligação
(efeito do discurso transverso) com o adjetivo “sagrado”, apresenta uma relação de
contraposição à FD religiosa, na qual o aborto é condenado (maldito, não sagrado). A
discursividade religiosa prega que “a vida é sagrada”, nesse sentido, um enunciado nuclear
possível para a FD na qual o FEMEN se insere, seria algo do tipo: “O aborto é vida”. Esse
efeito de sentido é possível devido ao discurso médico científico, que aponta a prática como
uma das principais causas de morte materna, segundo Santos et al. (2013), associada a
complicações resultantes de procedimentos clandestinos. Dessa forma, o efeito de sentido
materializado nesse protesto é de que aborto e vida são sinônimos. Pois falar que aborto não é
9 Um dos elementos do interdiscurso, “o ‘pré-construído’ corresponde ao ‘sempre-já-aí’ da interpelação
ideológica que fornece-impõe a ‘realidade’ e seu ‘sentido’ sob a forma da universalidade” (PÊCHEUX, 2014a,
p.151). Em outras palavras, o pré-construído representa as possibilidades de preenchimento dos espaços de um
sintagma. 10 O discurso-transverso ou “‘articulação’ constitui o sujeito em sua relação com o sentido, de modo que ela
representa, no interdiscurso, aquilo que determina a dominação da forma-sujeito” (PÊCHEUX, 2014a, p.151,
grifos do autor). Em outras palavras, o discurso transverso é o enunciado que fica implícito e sustenta a articulação
dos enunciados explícitos. É o que permite que se produza o mesmo sentido utilizando outras palavras e que
Pêcheux chama de paráfrase.
vida, silencia o problema de saúde pública provocado pela sua criminalização, atingindo
principalmente as mulheres pobres11.
A desvinculação da sexualidade feminina, considerada nociva pela discursividade
religiosa, da maternidade (sagrada e assexuada), produz um apagamento da discussão sobre
métodos contraceptivos, por exemplo. Ou seja, a maternidade aparece sempre desassociada da
sexualidade da mulher. A imagem não aborda a necessidade de um programa de políticas
públicas para a conscientização da população e apoio às mulheres carentes, como realizaram
os países nos quais o aborto foi legalizado, para que a gravidez passasse a ser evitada a fim de
não banalizar a prática do aborto. Nesse sentido, o protesto evidencia a liberdade sexual da
mulher, mas apaga as condições de produção sobre as quais essa discursividade se desenvolveu.
Em um outro protesto, realizado pelo FEMEN Espanha, durante uma passeata de grupos
contrários ao aborto em Madrid, as manifestantes com seus rostos pintados simulando caveiras,
trazem os enunciados “Tu moral mi muerte (Tua moral minha morte)” e “Provida Genocida”
em seus corpos nus.
Imagem 3: Pelo direito ao aborto – Espanha, 2014.
Fonte: https://goo.gl/BVhGg7. Acesso em: 24 abr. 2017.
Ambos os enunciados fazem parte da mesma matriz de sentidos que contém “aborto é
vida” como base. De acordo com o enunciado “Pró-vida Genocida”, todos aqueles contrários
ao aborto seriam responsáveis pela morte de milhões de mulheres por ano devido a
procedimentos clandestinos, cometendo assim um genocídio. O enunciado “Tua moral minha
morte” produz o mesmo efeito de sentido, pois é a moral religiosa (FD religiosa) que defende
11 Disponível em: https://goo.gl/PkzvjY. Acesso em: 24 abr. 2017.
a vida desde a concepção (pró-vida), interditando a legalização da prática, o que ocasionaria a
morte das mulheres (genocídio). A FS do discurso, materializada nos pronomes possessivos
“tua” e “minha”, coloca, como no enunciado discutido anteriormente, os sujeitos no centro da
discussão, ficando esquecido para os mesmos que eles apenas agem de acordo com a ideologia
dominante. Ou seja, não são os sujeitos que definem se a prática do aborto será legalizada ou
não, tampouco, a mulher que possui poder sobre seu corpo, mas o todo complexo das FDs
presentes naquela sociedade em questão.
Nesse protesto, pode-se perceber uma mudança no padrão dos corpos das
manifestantes, resultado da internacionalização do grupo, provocada pela ruptura com Viktor,
um dos fundadores do FEMEN. As manifestantes do FEMEN Espanha não apresentam o
padrão dos corpos das ucranianas (altas, magras, brancas, loiras), mas outros padrões de beleza,
materializando, dessa forma, o slogan “meu corpo minhas regras” ou meu corpo, meus padrões.
Em outros protestos realizados pelo grupo, a interferência da religião no Estado é questionada
com enunciados como “O Estado não é religião”, colocando a religião como ponto principal
de controle sobre os corpos. A imagem 3, no entanto, traz a presença do Estado, não religioso
(laico), exercendo controle repressivo sobre as manifestantes, impedindo o protesto. Em seus
protestos, o FEMEN resiste à religião, no entanto, não são as instituições religiosas que as
impedem de protestar, mas sim o Estado. É o Estado laico, por meio de seus aparelhos
repressivos, que interdita os protestos do grupo.
Práticas para interrupção da gestação sempre existiram e sua aceitação ou proibição
passam por questões morais e éticas acerca do início da vida humana, ou aquilo que pode ser
definido como vida humana, além do imaginário em torno da maternidade e do corpo da
mulher. Meira e Ferraz (1989) afirmam que a questão do aborto é bem antiga. Segundo os
autores, os hebreus já tinham leis punitivas para a prática; na Grécia antiga, o aborto era
utilizado como meio de controle populacional, desde que o embrião ainda não apresentasse
sinais de vida; Santo Agostinho e São Tomás de Aquino retomaram a discussão do aborto
fazendo uma diferenciação entre um feto formado e um feto ainda não formado, que em sua
concepção ainda não teria alma. Para o Império Romano, o feto era considerado como parte
integrante do corpo materno, e por isso a prática não era considerada crime. Ao longo da
história, o aborto aparece como prática social, às vezes permitida, às vezes estigmatizada, mas
com o surgimento do Cristianismo ele passa a ser proibido.
Pesquisas realizadas no Brasil – (SOARES, 2003, LOUREIRO e VIEIRA, 2004,
SANTOS et al., 2013) – , demonstram que, em meio aos médicos, ainda existe uma rejeição
muito grande em relação à prática do aborto, o que demonstra que apesar desses profissionais
serem constituídos por uma FD racional/científica, esses sujeitos ainda são inconscientemente
atravessados pela FD religiosa e, portanto, refletem-na em seu trabalho na forma de
inseguranças e preconceitos contra a prática, mesmo quando legalizada. Contrário ao discurso
da ética médica12, muitos ainda acreditam que é seu dever tentar reverter o desejo das mulheres
de abortar, outros condenam as mulheres que chegam aos hospitais com complicações devido
a abortos clandestinos, e creem que é seu dever denunciá-las para a polícia.
Os artigos citados apontam que a discussão sobre a questão do aborto se dá em um
terreno mais social e político que propriamente racional ou científico. Ou seja, ela está
localizada no embate entre as FDs racional/científica e a FD religiosa. No campo científico, o
desenvolvimento da medicina, possibilitou a realização de procedimentos seguros para a
interrupção da gestação e também ferramentas que possibilitaram a detecção de problemas de
má-formação do feto ou riscos que a gravidez possa trazer à vida e à saúde da gestante. No
entanto, no campo ideológico, discursividades que pregam a existência de um princípio vital
sobrenatural (divino), que colocam a maternidade como papel principal (ou único) da mulher,
e que condenam a liberdade sexual feminina, produzem efeitos de sentido que interditam a
prática do aborto. Da mesma forma, discursividades que atribuem outras posições à mulher,
que percebem sua sexualidade como equivalente à dos outros sujeitos, e que apresentam uma
visão evolutiva (darwiniana) com relação ao desenvolvimento da vida, permitem discursos que
aprovam procedimentos e práticas que possam evitar e até interromper a gestação. São as FDs
que vão determinar o que se pensa sobre esses temas ao longo da história permitindo ou
interditando o que pode e o que não pode e deve ser dito a respeito do aborto.
O enunciado “God out of my vagina (Deus fora da minha vagina)”, é um chiste quando
analisado na Língua Inglesa:
God out of my vagina!
Get out of my vagina!
O chiste é produzido quando as manifestantes trocam o verbo “Get” pela palavra “God”,
transformando a expressão “Get out! (Fora!)” em “God out! (Deus fora!)”. Dessa maneira, o
12 Lei n.º 3.268, de 30 de setembro de 1957, com seus decretos e alterações – Disponível em:
http://www.portalmedico.org.br/novocodigo/integra.asp. Acesso em: 24 abr. 2017.
chiste aparece no protesto como uma forma de se contrapor à FD religiosa que produz discursos
no sentido de controlar o corpo feminino e sua sexualidade. Segundo Pêcheux (2014b), o chiste
diz aquilo que está interditado, que causa desconforto, que não poderia ser dito. O enunciado
aparece na imagem como uma ordem à religião para que ela não interfira em assuntos que
dizem respeito ao corpo da mulher. E evidencia o atravessamento da FD religiosa em todas as
outras (jurídica, médica, criminal).
O enunciado “Thanks God I can Abort (Obrigada, Deus, Eu posso abortar)”, também
constitui um chiste quando analisado diretamente na Língua Inglesa. A forma gramaticalmente
correta seria “Thank God (Graças a Deus)”, mas, ao substituir o verbo no imperativo (thank)
pelo substantivo thanks13, o enunciado provoca um efeito de sentido irônico. Utiliza-se a
expressão “thanks”, em Inglês, como forma de agradecimento informal, acompanhada ou não
do nome da pessoa a qual se está agradecendo. Por exemplo: “Thanks, Mary!”. Nesse sentido,
as manifestantes estariam contradizendo o discurso religioso, produzindo o efeito de sentido
de que Deus as permitiu abortar (Thank God), um Deus onipresente, onipotente. No entanto, a
substituição pelo termo informal thanks, rebaixa o status de “Deus” a um ser mortal, comum,
ao qual se pode agradecer no dia a dia “Thanks, God!”. Ou seja, esse enunciado coloca Deus e
a religião no patamar mundano, não divino e que, portanto, não estaria acima de outras coisas
ou de outras FDs.
A discussão pela legalização do aborto é cercada por conflitos de cunho moral e ético
em torno do embrião. Definir quando inicia a vida humana, segundo Leite e Henriques (2014),
é a questão central relacionada ao tema. Os autores explicam que não existe um consenso no
meio científico acerca do status do embrião, se seria uma vida humana ou não, ou se teria um
status diferente em relação a outros tecidos do organismo. Os grupos religiosos são os que têm
a posição mais conservadora, na medida em que acreditam que a vida humana se origina no
momento da concepção. É, no entanto, a discursividade religiosa que prevalece, definindo a
maternidade como algo “abençoado” e inato à mulher, interditando qualquer manifestação
contrária à gravidez. Os filhos são uma “benção de Deus” e, portanto, sempre bem-vindos. O
natural é a mulher assumir o papel social de mãe, construído desde a Idade Antiga, propagado,
ampliado e aprofundado para atender a interesses religiosos, econômicos, políticos. Nesse
sentido, a superestrutura capitalista faz uso desse imaginário sobre a maternidade,
13 Expressão de informal de gratidão, derivada de “many thanks”. Disponível em: https://www.merriam-
webster.com/dictionary/thanks. Acesso em: 24 abr. 2017.
transformando-o em um mercado lucrativo. Além do consumo de itens relacionados à futura
mãe e ao bebê, os avanços na medicina possibilitaram o surgimento de um novo mercado, o
das técnicas de reprodução assistida (TRA).
A FD que permitiu a aceitação das TRA se apoia no discurso pró-vida. Essa FD, no
entanto, silencia etapas de descarte de embriões necessárias ao processo de fecundação
artificial. Leite e Henriques (2014) afirmam que os embriões passam por avaliação a fim de
prever características indesejáveis (mutações, condições genéticas) e só os embriões
“saudáveis” são utilizados. Aqueles que não são transferidos para o útero, na primeira tentativa,
são armazenados para serem utilizados em futuras fecundações ou descartados. Há ainda a
etapa denominada Redução Embrionária que vai retirar os embriões excedentes implantados
no útero. Para a FD religiosa, todas essas etapas seriam consideradas abortivas, mas, nesse
contexto, elas não são necessariamente condenadas. Dos países listados na pesquisa dos
autores, apenas a Itália proíbe as etapas que descartam embriões. O Brasil proíbe, oficialmente,
apenas a Redução Embrionária, as outras etapas são permitidas. A FD que exalta a maternidade
como único papel da mulher e que assegura a vida silencia o que para ela é considerado aborto,
a fim de atender à FD capitalista que em última instância visa ao favorecimento do mercado.
Aqui o aborto é legalizado, permitido, estruturado, etapa fundamental para o sucesso do
processo de fertilização artificial.
Analisando as imagens 1 e 3 como sequências discursivas, pode-se perceber
regularidades presentes nos protestos do FEMEN: os corpos nus (seios); os enunciados que
deslizam para os corpos das manifestantes; coroas de flores na cabeça; braços estendidos com
os punhos cerrados; o corpo em posição de enfrentamento; a cor negra; a religião como
responsável pelo controle dos corpos femininos. Além dos enunciados curtos
(afirmativos/negativos), que antecipam a voz do outro, de forma “não-marcada, da ordem do
discurso, sem visibilidade (discurso indireto livre, ironia, etc.)” (GARCIA & ABRAHÃO
SOUSA, 2014, p.1045), sem espaço para discussão. Em ambos os protestos o corpo nu, coberto
com enunciados que questionam o controle dos corpos, produz sentido, na medida em que
desloca o corpo das manifestantes do papel determinado para as mulheres, de submissão,
obediência, pudor, pureza, e da função inata da maternidade (Kehl, 2016). Desta forma, o uso
do corpo como instrumento para questionamento político em prol dos direitos das muheres se
constitui como uma prática extrema, de agressão à sociedade.
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