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Trabalho, Educação e Saúde: reflexões críticas de Joaquim Alberto Cardoso de Melo 1 Trabalho, Educação e Saúde: reflexões críticas de Joaquim Alberto Cardoso de Melo

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Trabalho, Educação e Saúde: reflexões críticas de

Joaquim Alberto Cardoso de Melo

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ESCOLA POLITÉCNICA DE SAÚDE JOAQUIM VENÂNCIO

DiretorAndré Malhão

Vice-Diretor de Desenvolvimento InstitucionalSergio Munck

Vice-Diretora de Pesquisa e Desenvolvimento TecnológicoIsabel Brasil

CoordenaçãoJúlio César França LimaLenira Zancan

RevisãoCátia Guimarães

CapaZé Luiz Fonseca

Projeto Gráfico e EditoraçãoMarcelo Paixão

Reimpressão - 03/03/08

Catalogação na fonteEscola Politécnica de Saúde Joaquim VenâncioBiblioteca Emília Bustamante

E74t Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (Org.) Trabalho, educação e saúde: reflexões críticas de Joaquim Alberto Cardoso de Melo / Organizado pela Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio. Rio de Janeiro:EPSJV, 2007.

36f. ISBN 978-85-98768-31-1

Nota de Conteúdo: Reúne dois textos inéditos de autoria de Joaquim Alberto Cardoso de Melo (1936 - 1993), do ano de 1992.

1. Educação.2. Saúde. 3. Trabalho e Educação. 4. Pedagogia I.Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio. II.Título

CDD-370

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É com orgulho, saudade e satisfação que a EscolaPolitécnica de Saúde Joaquim Venâncio torna pre-sente, pela memória, o professor Joaquim AlbertoCardoso de Melo.

O orgulho remete ao fato de termos sidos escolhi-dos por Joaquim para partilhar de sua inteligência,humor e afeto, tão importantes na construção denossa história. A saudade, que tem muitas faces,nos leva a ter a consciência de que as respostas queproduzimos aos desafios que a educação de traba-lhadores da saúde nos traz seriam mais ricas sepudéssemos contar com ele para o diálogo. Já asatisfação se deve ao fato de estarmos inaugurandoo Auditório Joaquim Alberto Cardoso de Melo, cujadenominação foi aprovada de forma unânime peloConselho Deliberativo desta Escola. Trata-se de umespaço de convivência em torno da vontade de co-nhecer, que sempre animou nosso Mestre Joaquime que permanece em todos nós.

Manguinhos, 3 de abril de 2007

André MalhãoIsabel Brasil

Sergio Munck

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Sumário

Apresentação

Trabalho, Educação e Saúde: da pedagogiaa uma socioantropologia das organizaçõesde saúde — uma des-construção

Educação e as Práticas de Saúde

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Apresentação

Por ocasião da inauguração do auditório da Escola Politéc-nica de Saúde Joaquim Venâncio, que leva o nome do Profes-sor Joaquim Alberto Cardoso de Melo, em abril de 2007,considerou-se oportuno lançar esta brochura com dois textosinéditos de sua autoria.

Nascido em Pirajuí, São Paulo, formou-se em Odontolo-gia na USP em 1961, onde especializou-se em Odontologiaem Saúde Pública em 1966 e em Educação em Saúde Públicaem 1967, defendendo sua tese de doutoramento A Prática da

Saúde e a Educação na Unicamp, em 1976. Publicada nosCadernos do CEDES/CEBES, sob o título Educação sanitária:

uma visão crítica, sua tese revisou mais de 50 anos de produ-ção sobre o tema da educação em saúde no Brasil, tornando-se referência para os campos de saber e práticas da educaçãopopular e da promoção da saúde.

Amante das artes, do teatro (atuando na primeira monta-gem de Morte e Vida Severina, em São Paulo), da boa culináriae da filosofia, esteve sempre próximo dos profissionais dosServiços e das Escolas de Saúde Publica em todo o país, lecio-nando nos cursos descentralizados da Ensp e participando naformulação de políticas e programas nos diversos níveis daadministração pública. Assessorou prefeituras e ministérios daSaúde e da Educação, influenciando direta e indiretamente omovimento de reformas dos anos 80. Inspirado nas idéias dePaulo Freire e outros críticos da educação e da saúde, coorde-nou departamentos e programas nas secretarias de saúde deSão Paulo e Niterói, e desenvolveu o Programa de Saúde para

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Professores e Alunos de 5ª a 8ª série, intitulado Saúde como

Compreensão de Vida.

Como professor do Departamento de Ciências Sociais da

Escola Nacional de Saúde Pública, de 1978 até 1993, quando

morreu no auge da sua maturidade intelectual, contribuiu deci-

sivamente para a inovação do ensino e das práticas de saúde

na Fiocruz. Do curso de Treinamento Avançado em Serviço em

parceria com a Unidade, hoje Centro de Saúde Escola, que deu

origem à Residência em Saúde Pública da ENSP, até as aulas de

filosofia ministradas aos adolescentes do Politécnico, Joaquim

marcou sua trajetória com a paixão pela educação e o compro-

misso com a Saúde Pública. Sua perspectiva teórica e prática

transdisciplinar está também na coletânea Educação, Razão e

Paixão, que ele organizou.

A partir de 1987, começa a discutir no Politécnico de Saúde

a formação profissional técnica na área da saúde, ajudando a

formular o projeto do curso regular de segundo grau. Dentre

as iniciativas estão a sua participação na organização e

operacionalização da Semana de Estudos com a equipe de

profissionais da Escola, onde iniciamos nossos estudos sobre

o conceito de politecnia, a partir de Antonio Gramsci, sob sua

coordenação; como membro da equipe de visitação à Escola

Técnica Federal de Ouro Preto, Minas Gerais, como parte do

programa de reconhecimento das experiências de formação

profissional no Brasil; na organização do seminário Choque

Teórico, que serviu de base conceitual e operacional para a

formação regular de técnicos na Escola e; na seleção dos pro-

fessores da formação geral que viriam compor a primeira equi-

pe do então Curso Técnico de Segundo Grau.

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Mas Joaquim ainda teve atuação destacada em duas im-portantes atividades. A primeira, em 1990, junto à equipe deprofessores da formação geral, que então discutia a criação doProjeto 4ª série, com o horizonte de uma formação omnilateraldos alunos. Esse projeto, iniciado em 1991, que hoje se con-figura na Projeto Trabalho, Ciência e Cultura (PTCC), buscavarefletir e investigar o processo de trabalho em saúde e seuspossíveis desdobramentos no currículo escolar, bem como dis-cutir e desencadear possíveis interferências do aluno no traba-lho em saúde que vivenciava. Em segundo lugar, a sua incorpo-

ração ao quadro docente quando, de 1991 até 1993, exerceua docência de Filosofia no Curso Técnico de Segundo Grau.

Portanto, sua trajetória na Escola Politécnica de Saúde Joa-quim Venâncio está profundamente imbricada com a constru-ção da proposta politécnica de ensino, da formação de umnovo homem e de uma sociedade democrática, justa e solidá-ria. Os textos a seguir trazem essa marca, pois apontam para aarticulação trabalho (práticas de saúde), educação e saúde,insistentemente discutidas no âmbito da equipe de professoresao longo do período que atuou na EPSJV.

Os textos devem ser entendidos dentro desse contexto devida e trabalho do professor Joaquim, em particular no seuesforço de consolidar um grupo de ensino e pesquisa em tornodas interfaces entre Trabalho, Educação e Saúde. Os dois tex-tos se complementam e foram sendo redigidos e revisitadosdurante os últimos anos de atividade junto ao DCS e aoPolitécnico, portanto, não sabemos precisar a data das versõesaqui apresentadas. Optamos por abrir com o texto Trabalho,

Educação e Saúde: da pedagogia a uma socioantropologia das

organizações de saúde - uma de-construção, seguido do texto

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Educação e as Práticas de Saúde, respeitando o conteúdo ori-ginal, com pequenas edições e complementações de forma apossibilitar sua divulgação.

São produções inacabadas que apontam para uma idéiacentral: as práticas dos agentes (trabalhadores de saúde e usu-ários) se desenvolvem em relação e enquanto processo educa-cional são mediações das relações sociais que se estabelecemcom a totalidade social da qual emergem e fazem parte, por-tanto as práticas de saúde são fenômenos educativos. Nessesentido, a categoria trabalho torna-se o centro da reflexão ecategoria organizativa dos elementos que compõem esse mes-mo fenômeno.

Júlio César França LimaPesquisador Associado da Escola Politécnica de

Saúde Joaquim Venâncio

Lenira ZancanPesquisadora Adjunta da Escola Nacional de

Saúde Pública Sergio Arouca

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Trabalho, Educação e Saúde: da

pedagogia a uma socioantropologia

das organizações de saúde

- uma des-construção

Cardoso de Melo, Joaquim Alberto, 1992

Breve apresentação

Educação e Saúde vêm sendo objeto de minha reflexão.Minha primeira experiência de trabalho no campo da educaçãodeu-se a partir da proposta teórico-metodológica elaboradapelo Professor Paulo Freire, participando de um programa deeducação de adultos, em 1964/65. Por suas mãos ingresseinesse fascinante universo; e esse ingresso implicou a necessi-dade de refazer, redimensionar o lugar onde me encontrava.Formado em Odontologia, tive que me reorientar no campoda saúde; e a educação em saúde pública foi a possibilidade dearticular esses dois fenômenos – educação e saúde. Bem logome apercebi que, na verdade, ambas faziam parte desde sem-pre, e constitutivamente, de minha existência. O que mudou foia possibilidade de poder olhar para algo que já estava semprelá, embora não tivesse muita clareza disso.

Assim, pensar a educação é pensar desde a minha biogra-fia, na qual estão incluídas muitas parcerias intelectuais e afetivas.Talvez por isso, pensar educação e saúde para mim esteja mar-cado por vê-las como dimensões do ser humano em socieda-de, onde me vejo como coadjuvante e co-autor desse “script”

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de várias e múltiplas vozes; de re-produção da vida, de real-iz-ação do real e da des-construção da existência.

Educação-ação ou relação?

“Somos sempre empenho de viver. Viver é deixar-selibertar para o empenho. Dependendo das condi-ções de viver, a existência se dá como penhor detodo empenho. É a questão. E por isso, também, éa questão que mora no fundo das questões sobreensinar e aprender.”

(Carneiro Leão, E. 1989)

Mas, continua o autor, a questão só pode ser colocadaverdadeiramente se nós mesmos nos colocarmos em questão,procurando o caminho em que caminham todos nos esforçosde formar e informar. Em todo relacionamento humano se en-contra tanto de formação e informação quanto nele houver de

ensinar e aprender. Educação e saúde – manifestações da vida– são um genuíno livro para quem quiser e souber lê-lo.

É possível, consoante com a modernidade, pensar a educa-

ção e também a saúde como prestação de serviço. Reduzidas acoisas de utilidade instrumental, são vistas mais como umaoperação/intervenção/ação de uns sobre outros, corrigindo oque se desvia de uma norma estabelecida de antemão, exteriora qualquer sujeito. Esse é o senso comum, representação ar-raigada em muitos de nós, às vezes até dentro dos nossos

melhores. A educação, nessa perspectiva, também pode serpensada como mera informação, compreendendo a divulga-ção de ações e noções consideradas básicas por uns, e dirigidaspara outros; tal como vemos na proposta atual do Ministério

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da Saúde e que parece fruto de uma antiga confusão entreinformação e formação.

No entanto, não são esses os caminhos que vamos trilhar. Onosso caminho nos leva a tomar a educação como um fenômenohumano, histórico-cultural, processo constitutivo das relaçõessociais, através do qual nós nos produzimos, somos o que so-mos – processos de individuação, frutos complexos da vida e dasociedade em que vivemos, processos de socialização. Ao-mes-mo-tempo processo de individu-ação e social-iz-ação.

Essas questões nos remetem à concepção que os gregostinham de educação – Paidéia. Algo da ordem do que vem à luz,que se nutre e se dirige para fora. Educar, no mundo grego,destinava-se a criar condições ao homem para que ele pudesseser livre, autogovernar-se, para poder governar e pensar osdestinos da Pólis.

A partir do século XVI e, mais profundamente, do século XVIII,a educação se institucionalizou, ficando reduzida ao espaço es-colar. Educação se tornou sinônimo de ensino, assunto de espe-cialistas, algo que agora exigia legitimidade jurídico-social parase ter acesso e para ser exercida. Tal cientificização implicou oesquecimento do ser. Da arte à ciência, a morte do educador, nodizer de Marilena Chauí (1983), porque morreu a reflexão. Algoformalizado técnica e cientificamente passou a se interpor entremim e a criança que fui e ainda sou (mesmo que não saiba direitocomo ainda sou), entre mim e a minha sexualidade que é, nodizer de Freud, fonte da curiosidade intelectual.

É esse projeto que, em nome de uma razão soberana, pre-tendeu excluir tudo o que não era razão. É preciso um ato deamor para trans-formar o sapo de novo em príncipe, como dizRuben Alves (1983). Talvez o educador não tenha morrido,

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mas durma no interior de cada um de nós. Como nos lembraMarilena Chauí (1983), se o educador morreu, não se trataagora de um retorno romântico e ingênuo ao passado, poisessa volta está barrada; trata-se de recuperar um espaço pos-sível que o próprio sistema de ensino abafou – o espaço dareflexão, da crítica e — por que não? — dos sonhos, onde o D.Quixote que habita cada um de nós encontre, de vez em quan-do, um Sancho Pança para acolher-nos enquanto sonhamos.

A imposição, pela modernidade, de uma razão soberana,que exclui tudo o que não é razão, tornou-nos “neutros” ob-servadores externos do mundo; tornou-nos seres“anestesiados” e a recuperação da “aesthesis”, da sensibilida-de “adormecida”, depende do reencontro da razão com o seuoutro, como propõe Rouanet (1985). Talvez resida aí o acor-dar do educador em nós adormecido, anestesiado, e um dosatos de amor seja a reflexão crítica – o amor ao saber (a Filo-sofia), a recuperação ética e estética da vida. Assim, falar emeducação é falar de criança, de condução da criança (Peda-gogia); tanto daquela que fomos (e ainda somos), bem comode criança enquanto experiência de criar, inventar algoinacabado, contínuo, ininterrupto – fazer existir, criar a existên-cia, real-iz-ação do real. Penhor no empenho do desempenho,de criação – poiesis.

Esse modo de compreender a educação, como fenômenohumano, processo histórico-social, processo ao-mesmo-tem-po de individu-ação e social-iz-ação, orienta-nos para a cons-trução de um quadro teórico metodológico transdisciplinar emdiálogo com diferentes autores e diversas áreas, que, mediataou imediatamente, se ocupam de pensar educação, saúde, tra-balho e vida.

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As teorias da educação, de acordo com Saviani (1987),podem ser classificadas, segundo as relações que estabe-lecem entre educação e sociedade, em: teorias não-críti-cas, em que o fenômeno educativo aparece como instru-mento de equalização social, portanto, como algo “exter-no” à sociedade; teorias crítico-reprodutivistas, que contra-riamente à categoria anterior, vêem na educação a funçãoreprodutora das ideologias das classes dominantes através dosaparelhos ideológicos do Estado e, assim, servindo não comoinstrumento de equalização, mas como meio de discriminaçãosocial — a educação é, nessa perspectiva, um fenômeno socialincluso, sofrendo os condicionantes histórico-sociais; por fim,teorias críticas que, aprofundando a contribuição dos autoresda segunda corrente, enfatizam as contradições da sociedade.Nessa perspectiva, a educação, constitutiva das relações soci-ais, ao reproduzi-las, reproduz as contradições e as relaçõesde hegemonia, portanto, as relações de força que a compõem.

Nessa linha, Cury (1989) propõe cinco elementos funda-mentais para a apreensão da educação: os agentes que, comointelectuais no sentido de Gramsci, são portadores de repre-sentações da realidade, partem das visões e concepções dehomem e de mundo; as instituições que, como organizaçõesculturais, dão suporte material às idéias, que por sua vez sãomaterializadas nos agentes, nos materiais utilizados e nos ritu-

ais que a instituição organiza, bem como nos rituais informaisque são o potencial instituinte da dinâmica social contida nasinstituições, que ao mesmo tempo contêm e estão contidas natotalidade do social.

Ao tomarmos esses elementos construídos por Cury (1989),consideramos que o fenômeno educativo não se reduz a re-

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presentações, idéias, visões e concepções de mundo. No nos-so entender, as práticas desenvolvidas pelos agentes em rela-ção são parte dessas relações, portanto fazem parte do fenô-meno educativo. Nesse sentido, tomamos a categoria trabalho

como centro de nossas reflexões e como organizativa dos ele-mentos citados por Cury.

Trabalho em Saúde

Para a construção do trabalho em saúde, tomamos comoponto de partida as contribuições de Offe (1989), quando dife-rencia trabalho em serviço do trabalho empregado na produçãode bens materiais, de mercadorias. Assim, o trabalho em serviçoé um trabalho reflexivo. Pressupõe que o trabalhador em saúdetenha um conhecimento; algumas palavras são reveladoras dopapel do conhecimento no trabalho médico: dia-gnóstico — co-nhecimento entre ou através de — e pro-gnóstico — conheci-mento à frente. É verdade que o trabalho em saúde tambémopera e modula um objeto, mas, diferentemente da produçãomaterial que coloca o trabalhador operando sobre uma matériamanipulável e moldável, no caso da saúde esse objeto é parteconstitutiva de um sujeito que, por sua vez, opera “ativa” e “pas-sivamente” no seu processo de saúde/doença. Isso faz com queo trabalho em saúde seja co-operativo, o que, por sua vez, impli-ca uma intersubjetividade, portanto, comunicação, empatia e umaforma particular de compromisso.

Se a produção de mercadoria tem um valor de uso e detroca, o produto do trabalho em saúde tem um valor vital, umaracionalidade de outra ordem — a da razão prática —, oque coloca questões de natureza ética no trabalho em ser-viços de saúde.

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Há uma tensão permanente no trabalho em serviços desaúde entre duas razões e duas racionalidades. De um lado, o

serviço de saúde se organiza nos moldes do trabalho do “mun-do sistêmico” — relação entre homem e natureza —, da razãoinstrumental e do agir instrumental dirigido a fins de eficácia eeficiência. Por outro lado, a natureza do trabalho em serviçose, particularmente, nos serviços de saúde, traz questões darazão prática, do agir comunicativo dirigido a valores, no pla-

no ético e estético, do “mundo da vida” — interação entresujeitos (Habermas, 1987). Nessa perspectiva, tomamos trêspilares para a análise das relações que se constroem nos ser-viços de saúde — a Linguagem, o Trabalho e o Poder.

Essas questões, entre outras, têm nos feito pensar as orga-nizações não enquanto sistemas simples e fechados, mas comosistemas complexos e abertos, em que convivem contrários,antagonismos, ordem e desordem, que não necessariamentecaminham para sínteses tranqüilizadoras e definitivas, inclusiveno que diz respeito aos conflitos que elas podem engendrar.

Nessa perspectiva, tomamos como referencial a chamadasocioantropologia das organizações e do trabalho. Nessa li-nha, enfocamos autores que vêm construindo um paradigma

que, visando romper com a tradição da modernidade de umarazão soberana — excludente de seu outro, fundada na cisão-oposição sujeito-objeto, natureza-cultura, biológico-social, cor-po-mente —, apontam para o que vem sendo chamado comouma “sutura epistemológica” entre cultura e natureza.

Essas questões implicam tomar os fenômenos da vida, eparticularmente da vida humana, como fenômenos ao mesmotempo totalmente biológicos e totalmente sociais (Morin, 1989).

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Desse modo, pensamos poder rever as idéias ao redor doque seja processo de trabalho em saúde, do compromissosocial desse trabalho, a partir da complexidade das diferentesrazões e das tensões implicadas nas relações entre profissio-nais, entre profissionais e clientes e entre estes. E isso implicauma nova ética para a saúde, fundada na compreensão dascondições de vida para além das sociedades humanas, para ascondições de vida a partir da hipótese Gaia que toma a terraela mesma como um organismo vivo. Implica ainda pensaruma nova estética em termos de educação, como também umacapacidade de compreender a realidade como arte de desen-cantamento e re-encantamento desse mundo em que vivemose como uma das possíveis manifestações de vida — não aúnica, nem necessariamente a mais perfeita e acabada.

Não somos, como humanos, externos ao mundo, mas par-te de uma longa cadeia de processos que tornaram e aindatornam possível a vida humana existir e se manifestar.

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CURY, Carlos Roberto Jamil. Educação e contradição. 4ª. ed., SãoPaulo: Cortez Editos, 1989.

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SAVIANI, Dermeval. Escola e democracia. 16ª. ed. São Paulo: Cortez-Autores Associados, 1987.

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Educação e as Práticas de Saúde

Cardoso de Melo, Joaquim Alberto et alii, 1992

As concepções de educação em saúde decorrem do que seentenda por educação, saúde e sociedade. Assim, como apon-tou Freitag (1987) em relação à conceituação de educação, aeducação em saúde também expressa uma doutrina pedagógi-ca, a qual, implícita ou explicitamente, se baseia em uma filoso-fia de vida, concepção de homem e de mundo.

As concepções dominantes de educação em saúde, de modogeral, decorrem, de um lado, de uma visão objetivista da soci-edade e, de outro, de uma visão subjetivista. Em ambas asvisões, a educação em saúde é tomada como um instrumento,um meio, uma técnica que teria por finalidade “educar” osindivíduos para que estes pudessem prevenir a doença, mantere melhorar a sua saúde e, assim, a da sua comunidade.

Nas correntes de tendência mais subjetivistas, a educaçãoem saúde visa formar e desenvolver as “consciências sanitári-as” dos indivíduos e da população. Nas de tendência maisobjetivistas, a preocupação está em criar comportamentos de-sejáveis ou em mudar os indesejáveis.

Essas concepções seguem uma dualidade presente no pen-samento moderno, que tem origem na cisão-oposição “resextensa” estabelecida por Descartes. Essa cisão vai se reno-vando no pensamento humano, vão sendo introduzidos novoscontornos específicos ao longo da história sem, contudo, su-perar essa dicotomia.

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Essa dicotomia que está na base do pensamento humanotem implicações óbvias nas práticas sociais, nas ações quetendem a se orientar unilateralmente.

O pensamento e a ação assim dicotomizados são apreen-didos numa dimensão reducionista, restrita – porque unilateral– ou excluem o sujeito privilegiando o objeto, ou, ao contrário,excluem o objeto dando primazia ao sujeito, compreendidoenquanto sujeito da consciência. Decorre daí a crença de que arealidade é criada pela razão, ou de que a razão é mero reflexodo real.

Essas correntes do pensamento estão contidas no sensocomum e nas representações que os sujeitos sociais têm doreal, numa permanente tensão entre sujeito e objeto, que ex-pressa a tensão das relações que os seres humanos estabele-cem com a natureza e entre si.

Além disso, nessas perspectivas, tanto a educação em saú-de quanto a saúde são descontextualizadas, deixando de levarem conta que ambas são processos históricos e sociais.

A partir dos anos 80, no Brasil, houve um esforço nosentido da reconstrução da educação em saúde em novasbases conceituais, teóricas e metodológicas. Para isso, foifundamental uma (re)leitura crítica dos autores considerados“crítico-reprodutivistas” da educação e, também, uma (re)leiturade Gramsci.

Assim, autores como Gadotti, Saviani, Cury, Namo de Mello,entre outros no Brasil, Manacorda, Snyders, Giroux, Brocolli,entre outros no exterior, vêm contribuindo para pensar a educa-ção para além de uma concepção meramente instrumental, pe-dagógica stricto sensu, escolar. De mero epifenômeno das es-

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truturas sociais ou de simples instrumento de adaptação de indi-víduos à ordem social, ou de formação de consciências para oaperfeiçoamento da sociedade, a educação passa a ser concebi-da como fenômeno constitutivo das relações sociais, processode produção e reprodução da existência.

Nesse sentido, pensar a educação em saúde deixa de sermeramente propor programas, ações de intervenção pedagó-gica que se acrescentam ou se integram às práticas de saúde,como se dá nas práticas que aqui chamamos “tradicionais” eque são as dominantes. Nestas, a educação em saúde é toma-da por um dever e depende de um querer fazer; portanto, podeou não ocorrer. Essas concepções é que fazem com que osprofissionais de saúde se polarizem em posições que, de umlado, defendem a educação em saúde como apanágio de solu-ções para os problemas de saúde e, de outro, negam a práticaeducativa, por considerá-la inócua ou ineficaz.

A reflexão crítica acerca dessas concepções nos permitechegar ao que nos parece ser a questão principal que pretende-mos aprofundar neste trabalho: a educação em saúde comoum processo que vai muito além das práticas educativas restri-tas a indivíduos, grupos ou populações. Enquanto processoeducacional, é mediação de relações sociais com a totalidade,relações essas que se concretizam nas práticas de saúde.

Em nossa reflexão, buscamos colocar a educação em saú-de como um processo que se realiza independentemente daconsciência que os sujeitos tenham dela. Assim como Gramsci(1982) afirma que todo homem é intelectual, embora nem sem-pre exerça essa função, podemos dizer que todo homem éeducador, embora não o saiba, nem tenha essa funçãoexplicitada necessariamente.

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A partir dessa concepção, Cury (1989) propõe cinco ele-mentos fundamentais para a apreensão do fenômeno educativo:as instituições pedagógicas, os agentes pedagógicos, as idéi-as, os materiais e os rituais pedagógicos.

Em nosso caso, as instituições pedagógicas em que a educa-ção se processa no nível formal e não-formal são os serviçospúblicos de saúde. Os agentes dessa educação são os profissio-nais de saúde e a população atendida. O “conteúdo” dessa edu-cação é dado pelas idéias — representações, imagens, significa-dos, o mundo simbólico e imaginário que os agentes produzeme reproduzem —, por suas concepções de homem e de mundo,de saúde e doença, de normal e patológico, e pelas explicações,justificativas e representações de suas práticas, das políticas desaúde, da sociedade, bem como dos conflitos, as formas de seuenfrentamento, superação ou aceitação.

Entre os rituais, há os formais, dados pela racionalidadedos serviços, do trabalho, e os não-formais, que compreen-dem as racionalidades da rede de relações que se constroem àmargem do discurso racionalizador oficial.

Para nós, pensar a educação em saúde passa a ser, então,refletir criticamente sobre as práticas de saúde e as relaçõesentre os sujeitos nelas envolvidas. É pensar também a reprodu-ção/transformação dessas relações e práticas sociais.

Longe de tomarmos a educação como instrumento, ou nosentido de uma ação de um (profissional de saúde, no caso)sobre o outro (paciente), interessa-nos ver como uns e outrosinteragem, particularmente no espaço contraditório econflituoso que é uma instituição pública de saúde. É esse es-paço que vamos privilegiar pois

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as instituições já prescrevem e determinam as for-mas e o conteúdo de um ´agir conjunto´, estabe-lecendo um processo que tem um significado maisprofundo do que aquele que é apreendido por umaabordagem tradicional do funcionamento das or-ganizações, abordagem esta que toma como dadonão questionado a estrutura institucional existen-te, que concebe a atividade técnica nas institui-ções como simples operacionalização de funções,prescritas e que desemboca em propostas de aper-feiçoamento da ´dinâmica´ e das ´técnicas´ detrabalho nas quais, via de regra, as contradiçõesinstitucionais são deslocadas do plano estruturalpara o plano das relações interpessoais concebi-das de modo mecânico e restrito (MEC/CENAFOR,1984, p.8).

Ramos et alii (1989, p.153) destacam três aspectos princi-pais a serem considerados na análise das instituições de saúde:

1. é um equipamento de consumo coletivo;

2. é uma unidade produtora de serviços e, portanto, umainstituição onde estão presentes relações de trabalho;

3. é também um espaço de gestão que reflete um dadomodelo da política pública para o setor.

Assim, esses autores compreendem a instituição como umsubsistema situado na esfera da reprodução social, de produ-ção de um serviço e também de expressão política. Dentre ostrês aspectos citados, vamos nos deter, neste momento, nosegundo: a instituição pública de saúde como uma unidadeprodutora de serviços.

Nas sociedades industriais modernas, essa forma de traba-lho vem crescendo continuamente em relação ao volume total

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de trabalho social. Offe (1989) aponta uma clivagem sociolo-gicamente significativa entre as formas de trabalho “produtorde bens” e “gerador de serviços”.

Esse autor busca delinear um conceito de “trabalho emserviços” a partir da crítica da literatura existente, na qual adefinição é geralmente dada por exclusão ou por defini-ções negativas. No primeiro caso, o setor terciário — ou deserviços — compreenderia “todos os tipos de trabalho (nosentido do emprego contratual) ou de organizações do tra-balho que claramente não podem ser classificadas comoprimárias (extrativas) ou secundárias (produtivas)” (Offe,op. cit., p.135). Quanto aos atributos negativos, destacam-se os “produtos não-materiais” gerados por esse tipo detrabalho, sua não — ou pequena — suscetibilidade à raci-onalização técnica e organizacional, sua não-produtivida-de, não-mensurabilidade, etc.

Indo contra essas definições das atividades de serviços comocategorias residuais e negativas, Offe (op. cit., p. 136) propõeo desenvolvimento desse conceito “focalizando as funções so-ciais que podem e devem ser desempenhadas pelas atividadesem serviços”. A partir desse enfoque, o autor vê nos conceitosde trabalho de “sintetização”, de “mediação” ou de “normali-zação”, a possibilidade de uma melhor compreensão dessafunção característica dos trabalhadores de serviços.

A produção industrial de bens possui uma racionalidadeque é determinada por problemas de escassez e de eficiência,ao passo que o volume de trabalho social dedicado à geraçãode serviços se confronta com problemas de ordenamento e denormatização, ficando sempre localizado na interseção de duasracionalidades:

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1 – a racionalidade da ́ economia industrial´, baseada noemprego contratual, que impõe a especificação detalhadados meios e dos fins, o controle vertical direto sobre aatividade laboral, o pequeno campo de manobra e os altosníveis de estandardização; 2 – a racionalidade da ́ media-ção´ e ́ conciliação´ típica das atividades de serviços, querequerem espaço de manobra justamente com o objetivode responder como serviços a situações específicas (Offe,op. cit., p. 138).

O próprio trabalho se torna reflexivo e, nesse caso, elabo-ra e mantém o próprio trabalho e produz a produção mental.Atividades como ensino e cura, entre outras, ou, mais generi-camente, atividades de prevenção, absorção e assimilação deriscos e desvios da normalidade, mesmo sendo “trabalho as-salariado”, se diferenciam por duas características, segundoOffe. Primeiramente porque os “casos” tratados pelo trabalhoem serviços não têm homogeneidade, além de se caracteriza-rem pela descontinuidade e pela incerteza temporal, social ematerial. O controle da execução do trabalho não pode tomarcomo critério normatizador uma função técnica de produçãopara o trabalho. Em segundo lugar, faltam referências sobre ovolume da demanda, que é definida em grande parte pela pró-pria oferta, tendendo a crescer juntamente com ela. O trabalhoem serviços não possui um critério de economicidade, o quefaz com que não se possa prever o tipo, o volume, o local e omomento de sua oferta.

Quanto à racionalidade técnica do trabalho em servi-ços, a tendência é que sua normatização seja cada vez maisdifícil. Essa dificuldade é compensada por virtudes: a capa-cidade de interação, o senso de responsabilidade, a empatia

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e a experiência adquirida casuisticamente. No lugar dos crité-rios de racionalidade econômica e estratégica, surgem estima-tivas da demanda e das utilidades adquiridas por convenção,consenso ou de forma política discussionária. Vemos, portan-to, que os critérios de racionalidade de controle da força detrabalho na produção capitalista somente podem ser transpos-tos para a produção da ordem e da normalidade gerada pelotrabalho em serviços com limitações rigorosas.

O serviço fica tencionado por duas racionalidades distin-tas, que ao mesmo tempo se antagonizam, gerando conflitos,não conseguindo uma se emancipar em relação à outra.

A racionalidade do trabalho de serviços de tipo reflexivo,ao contrapor valores materiais, qualitativos e humanísticos, fazcom que os trabalhadores em serviço desafiem a sociedade dotrabalho e seus critérios de racionalidade.

Segundo Offe, o trabalho em serviços pode ser considera-do bem sucedido se produzir um equilíbrio entre processos deindividualização e diferenciação, por um lado, e entre as ne-cessidades de coordenação e padronização, por outro. O equi-líbrio depende, assim, da adaptação recíproca entre a“especificidade do caso” e a “generalidade da norma”. Nocaso do trabalho médico, por exemplo, esse equilíbrio estarianão somente no estabelecimento do fato de que o médico devecurar pacientes, mas também no reconhecimento de que oscritérios para “tratamento bem sucedido” e os meios para al-cançar esse objetivo devem ser determinados em relação àespecificidade do caso.

As atividades de serviço devem lidar com o dilema entre“norma” e “caso” no nível individual de prestações de serviço,

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devendo ser resolvido, ainda segundo Offe, através da subor-dinação a orientações normativas, à experiência, à ética profis-sional, às capacidades de interação específica e às qualifica-ções sociais. Mas há um segundo dilema, agora no nívelorganizacional, que resulta do fato de as atividades em servi-ços serem desempenhadas como trabalho contratual. Nessecaso, os critérios de racionalidade da organização — tais comoa eficiência, a eficácia, o controle – chocam-se com as necessi-dades de autonomia e flexibilidade, surgidas a partir do primei-ro dilema citado.

Toda organização apresenta uma linguageminstitucionalmente permitida ou autorizada, ou seja, um discur-so instituído, aquele que pode ser proferido, ouvido e aceitocomo verdadeiro e autorizado. Trata-se de um discurso cir-cunscrito e demarcado quanto aos interlocutores, o tempo, olugar, a forma e o conteúdo, sendo por Chauí (1987) designa-do de “discurso competente” e assim resumido: “não é qual-

quer um que pode dizer a qualquer outro qualquer coisa emqualquer lugar e em qualquer circunstância”. Inseridos numaescala hierárquica, a alguns interlocutores é dado o direito defalar e a outros o de ouvir. Conteúdo e forma encontram-se,assim, autorizados e reconhecidos segundo os cânones daesfera da competência.

Segundo Chauí, a ideologia burguesa em sua forma clássi-ca e, portanto, anterior ao processo de burocratização dassociedades contemporâneas tal como o vemos hoje, possuía

um discurso eminentemente legislador, ético e pedagógico:

um discurso proferido do alto e que, graças àtranscendência conferida às idéias, nomeava o real,possuía critérios para distinguir o necessário e o

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contingente, a natureza e a cultura, a civilização ea barbárie, o normal e o patológico, o lícito e oproibido, o bem e o mal, o verdadeiro e o falso:punha ordem no mundo e ensinava.

Os detentores legítimos da autoridade provinham de insti-tuições como a Pátria, o Estado, a Empresa, a Escola e a Famí-lia, explicitando a figura dos subordinados e a legitimidade dasubordinação.

Com o fenômeno da burocratização e da organização, odiscurso da ideologia burguesa passa a fundamentar-se naracionalidade dos fatos, não mais centrando-se natranscendência das idéias. Tem-se, agora, um discurso anôni-mo e impessoal, embora ainda legislador, ético e pedagógico,não mais proferido do alto mas inscrito no mundo racional,pronunciado de um lugar oculto. Torna-se o discurso neutro dacientificidade ou do conhecimento – confunde, contudo, o co-nhecimento com a ciência e com a cientificidade.

O discurso competente enquanto discurso do conhecimentoé, portanto, o discurso do especialista, proferido de um deter-minado ponto da escala hierárquica organizacional. Estamosdiante de um conhecimento instituído e não de um saberinstituinte cuja eficácia depende do reconhecimento e da acei-tação de que nem todos os homens possuem a condição desujeitos — esta é conferida apenas aos que detêm o conheci-mento racional e científico —, mas que são, em sua maioria,objetos sociais. Chauí refere-se a esse processo com a expres-são “competência privatizada”, no sentido de que alguns ho-mens resgatam sua condição de sujeitos socioeconômicos esociopolíticos ao se tornarem autorizados a falar por intermé-dio do discurso do conhecimento, revalidados por uma com-

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petência que lhes diz respeito enquanto sujeitos individuais oupessoas privadas. A autora alerta, porém, para o logro de quese reveste esse resgate ou revalidação, uma vez que “é apenasa transferência, para o plano individual e privado, do discursocompetente do conhecimento cujas regras já estão dadas pelomundo da burocracia e da organização”.

Da mesma forma, cria-se nos demais homens — os quese encontram reduzidos à condição de objetossocioeconômicos e sociopolíticos — a crença de que sãosujeitos, ao se oferecerem discursos derivados que ensinarãoa cada um como relacionar-se com o mundo e com os outroshomens. O homem passa a relacionar-se com a vida, com seucorpo, com a natureza e com os demais seres humanos atra-vés da mediação de inúmeros modelos científicos e doespecialismo. Submetido à linguagem do especialista, que lhepermite, indulgentemente, conhecer artifícios mediadores epromotores de conhecimento, o não-especialista tem a ilusãode participar do saber. Assim, segundo Chauí, os discursos depopularização do conhecimento são apenas “uma das mani-festações de um procedimento ideológico pelo qual a ilusãocoletiva de conhecer apenas confirma o poderio daqueles aquem a burocracia e a organização determinaram previamen-te como autorizados a saber”.

Os Agentes

Dependendo da concepção em saúde que se tem, os agen-tes do processo educativo variam. Assim, no caso do Brasil, doinício dos anos 20 até 1961, em São Paulo, os agentes eramos chamados “educadores sanitários”. A eles competia desen-

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volver as práticas educativas nas escolas, nos serviços de saú-de e nas comunidades, práticas essas dirigidas a indivíduos,grupos ou comunidades.

Nos anos 1940, com a criação do Serviço Especial deSaúde Pública (SESP) — acordo de guerra Brasil - Estados Uni-dos —, uma outra concepção de educação em saúde começoua ser introduzida: a de que os profissionais de saúde poderiamdesenvolver práticas educativas. O educador sanitário, comoseria então chamado, deveria planejar e supervisionar as açõeseducativas a serem desenvolvidas pelos profissionais de saú-de, o que implicava treiná-los para esse fim. Em 1961, foisuspenso o curso de formação de educadores sanitários daFaculdade de Saúde Pública da USP; ao ser reaberto, em 1967,com novo nome — curso de formação de educadores de saúdepública — e novo perfil, tinha como clientela não mais osprofessores primários do período anterior, mas profissionaisde nível superior, com formação básica na área de ciênciashumanas, preferentemente.

Porém, apesar das mudanças havidas, a educação foi sem-pre compreendida como instrumento de ação de um agentesobre o educando, como uma situação em que existe um agen-te que deve ensinar e um outro que deve aprender.

Dentro da perspectiva de educação que buscamos traba-

lhar, entretanto, não nos interessa essa ação de um sobre o

outro, mas como os agentes envolvidos no processo educativo

interagem. Para isso, consideramos dois níveis de interação

existentes nas práticas sociais, segundo a racionalidade que os

sustenta, de acordo com Habermas (1987). Há uma razão ins-

trumental à qual o discurso médico instituído obedece, visando

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a uma intervenção racional que produza um bem útil, com mai-

or eficácia e eficiência. O trabalho e seus instrumentos são os

mediadores da relação nesse caso.

Mas há também uma razão prática, que rege as normas que

organizam as relações entre os profissionais, os pacientes e

entre eles, fundada numa interação comunicativa, segundo

Habermas, e que tem a linguagem como mediação.

Na linguagem estão representados os modos como a rea-

lidade é percebida pelos agentes em relação. Há um jogo de

significados, de representações, de imagens que os agentes

possuem e que nos interessa captar.

O discurso instituído prescreve de antemão o conteúdo e a

forma do que deve e pode ser dito. Segundo Clavreul (1983),

é a própria lógica do discurso médico que “desumaniza” a

relação médico-paciente, já que o que importa nesse discurso

é a doença. O doente é apenas o suporte da doença. Do mes-

mo modo, o médico também não é importante; ele deve estar

presente somente com a sua ciência pura, segura e a mais

anônima possível. Para ele, o ideal da medicina é que qualquer

médico faça o mesmo diagnóstico e dê o mesmo tratamento

para o mesmo caso particular. Ou seja, é a própria lógica do

discurso instituído que leva à alienação dos profissionais e dos

pacientes nas instituições de saúde.

Habermas (1987) vê na interação comunicativa uma saída

para essa alienação, para a superação do discurso instituído,

que impede a transformação. Numa situação de comunicação

tendencialmente livre, os agentes buscam o consenso — e não

a coerção — e orientam-se para o entendimento recíproco.

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Porém, ao formular sua teoria da ação comunicativa,Habermas trabalha com uma situação ideal, utópica, na qual acomunicação não seria perturbada nem por efeitos externoscontingentes nem por coações resultantes da própria estruturada comunicação. Ou seja, há condições mínimas a serem pre-enchidas para que se possa pensar na possibilidade do estabe-lecimento de uma ação comunicativa que, no nosso caso, ain-da não existe, como vemos neste trabalho. Porém, as possibi-lidades de transformação, sim, existem. Assim, conhecendo ainstituição, as relações entre os agentes, as idéias existentes,podemos pensar em estratégias de ação visando à construçãode uma situação de real possibilidade de diálogo, de interaçãocomunicativa, que busque as transformações necessárias pelavia do consenso.

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