REVISTA NACIONAL DE EDUCAÇÃO 55,

Míscelanea de Observaçoens Phí osophícas noEstado do Grão' Pará

(ANNO DE 1 '784)

ALEXANDRE RODRIGUES FERRE IRA

1

Da pelle da Preguiça preparão os mazombos os seus cordovoens,que são bom; alguns comem a sua carne, e geralmente os índios não arejeitam.

II

Os signais que o Gentio deixa no mato para se não perder nelle,são os seguintes: ou vai quebrando os galhos e ramos das arvores maischegados ao chão. emquanto não desconfia de que o sigão os brancos emconhecendo aqu~lle signal ; ou se desconfia de que os brancos já o co-nhecem vai quebrando (lS ramos de cima da arvore deixando-os ainda de-pendurados os ramos que quebra; ou desconfia tambem deste, e entãonão só quebra os ramos, mas, sem os deixar dependurados, leva-os com-sigo e vai espalhando-os pelo mato; ou finalmente nem quebra, nem dei-xa ou leva ramo algum quebrado, mas nos troncos das arvores vai rá-pando aquelle musgo, ou casca cuja que tem deixando um pequeno es-paço limpo para os outros o conhecerem.

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He tão humida a atmosfera do Pará, que o sabão deixado nasparteleiras das casas se desfaz: o sal, ou coiza que si o tenha logo se faz

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liquida: a roupa nos bauz se cobre de bolôr; os sapatos botas, ainda queestejão expostas ao ar dentro de 3 ias igualmente se cobrem de bolôr:os ponteiros de aço dos rologios que os tem, e á miudo lhes abrem o vi-dro para regular o ponteiro, cêdo se enÍerrujão; e com ser esta obser-vação constante nas casas mais ventiladas, ainda mais encerrâo o ardas casas dos mazombos as malditas surupembas, de hum tecido depalha tão junto, que nem se conhece quem está por dentro: ora alemde que eu morei nesta cidade na rua do Norte que he humidissima eas casas as janellas rasgadas, bastava a cortina de riscado que eu tinhaá poria da alcôva, para sempre estar humido, isto he, mais hu-mido do que na sala, o que dentro estava: pois bem larga era a entradada alcôva: que mais pode ser, se tanto a meza que eu escrevia no rueyoda sala, que era grande, como as duas mezas em que riscavam os dese-nhadores, cada huma defronte da sua janella, por se lhes não bolirdesde o sabbado a noyte até a segunda-feira de manhã; o vinhopor pouco tempo que o deixem no cópo exposto ao ar, ou em frascosdestapados se derranca, e avinagra: o cobre por mais que se limpe dehum dia para outro, em se não olhando para elle cria zinabre ; o ferrose enferruja. .. os esteios das casas ficão podres, e cerciados ao pé daterra, se não ha a prevenção de descascar, e tostar toda a porção que fiesenterrada no chão.

IV

Huma observação curiosa he a que fazem os pescadores do PeixePirarucú, e dizem os Indios que o mesmo observão no Bagre, no 'I'ucu-naré, no Uiritinga: trazem os filhos por onde quer que vão sempre ároda da cabeça, do mesmo modo que os Pintos á roda da gallinha; empersintindo qualquer movimento na agoa, de repente abre a mãy osoperculos das guelras, e correm os filhos á esconder-se dentro dellas;de modo que pescando-se as vezes os Pirarucús á hatpão, que he comose pescão, a proporção que se lhes vão dando pancadas na cabeça, paramorrerem, vão saltando os filhos de dentro para fora.

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As cordas que se tecem da fêbra de curauá, sim sao fortespara sustentarem rêdes, ou outros pêzos em sêcco, mas molhadas que

OFICINAS DO MUSEU NACIONAL - RIO DB JANBIRO

Estampa inédita da Viagem Filosófica de Alexandre Rodrigues FerreiraMASCARAS FESTIVAS DOS IND[OS JURÚPIXUNl!

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VI

sejao, ou em estando debaixo de agoa, apodrecem tão repentinamenteque estalão logo: não tem mais que fazer a experiencia de deixar demôlho de fêbras, mesmo de hum dia para o outro, e ver-se-há logo adiferença: ao Sargento MóI' Bernardo Toscano, quando estava por Com-mandante em o Pará succedeo, que içando a bandeira por huma corda

-destas, e deixando-a içada em huma noyte em que choveo muito, namanhãa do outro dia a veyo achar no chão, por que se tinha molhado acorda, e em breve tempo estalado.

Veja-se huma superstição dos Índios sobre a A,ranha caranguejei-ra ,Quer por exemplo saber a mulher se he vivo o marido que está fórada terra,se já vem de viagem,se vem já perto,ou ainda está longe, parao saber, dizem ellas não tem mais do que praticar o seguinte. .. obser-vão onde está no mato algu li buraco da sobredita Aranha; levam 6graons de café já descascados, e separada huma da outra metade, demodo que ajustem a conta de 6 gr., deixão estes grãos á porta do bu-raco; feito isto elles se retirão athe o outro dia pelas mesmas horas emque vão observar os signais da noticia que querem ter. Se achão osgraons mordidos, e embrulhados na ma, he" signal que he morto o ma-rido: se não estão mordidos, e se achão á porta do buraco, he signal quehe vivo o marido; se os achão postos hum atraz do outro ao pé da portahe signal que já vem de viagem, mas ainda vem longe; se estão postos"na mesma ordem, porem longe do buraco, he signal que já vem perto:o peyor he que mazombos ha, e filhos de Português tão seriamente per-suadidos de similhantes illusoens, que consultão, e pagão a tais índias.para lhos saberem das noticias que pertendem.

VII

Não se pode ser Terceiro do Carmo no Pará. Depois de pagarhum homem 1400 de entrada, e 200 reis de bentinho, 200 reis de con-tas, e 200 reis de vela, o que tudo completa a quantia de 2000 pela en·

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trada ; depois de repetir a mesma despeza na profissão; e continuar apagar todos os annos 360 de annuaes, e 1200 por cada vez que servena Mêza, alem dos benefícios directos, e indirectos, com sempre os Ter-ceiros beneficião os Frades, a paga que estes lhe dão he a seguinte ...como não querem os Frades que se vá sepultar o Terceiro no habitoque tem de Terceiro, ha de por força comprar o 'I'erceiro a mortalhaaos Frades, levando para a cova o habito, e o manto, ou só quer levarpara a cova o habito. Se quer levar todo o habito, hade pagar pelo ha-bito 4000. e pela capa ou manto outros 4000; se quer levar só o habito,mas não a capa para a cova hade pagar 4000 pelo habito, e 600 de alu-guel pela capa: se leva no enterro só o habito, e com elle se enterra entãosó 4000. Demais disto se não he chamada a communidade para o en-terro, não podem sahir os Terceiros a acompanharem o seu Irmão, por-que de força hão de sahir debaixo da cruz dos Frades: para sahir a com-munidade de 3 huma, ou he dentro do bairro da cidade o enterro, e nãovay outra communidade junta, e neste caso paga outros 4000, ou vaypor exemplo tambem a communidade das Mercês, ou he fora da cida-de, e nestes dois ultimos casos, qualquer delles que se verifique, hadeexhibir outros 4000, porque a communidade só vende os seus passospor 8000.

VIII

De muitos Paus se fazem as Canôas: a canôa de Pequeáranadura muito porem he pezada: a do Pequeá verdadeiro tambem pezamuito, e vay ao fundo emquanto nova, mas depois com o tempo se fazleve, e dura 6 annos e mais: a do Louro vermelho he muito leve, e duraaté 4 annos ~a do Louro amarello atura mais, e pelo seu conseguinte aoLouro prêto : a do pau de rosa segue as mesmas propriedades: as decupiuba são muito pezadas: a de pau amarello he muito leve com sermadeiro pezada: a de Guariúba he leve: a Faueira que he uma arvoreque da urnas favas que curão umas impigens, he leve; Jandiróiarúa hepau de dura e leve: o Bacurizeiro he de dura e leve. A Itaúba he peza-da, porem de dura: o Cumarú pezado e de dura; embirájuba pezado ede dura: Peki que nasce nos Igapós (he alagadiço) tambem he pezadoe de dura: Angelim ha de 3 qualidades, Prêto, Vermelho, e de Pedra:todas 3 são pezadas, mas a do angelim prêto he de mais dura; também

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se fazem canôas de uacapurana; são pesadas, e de dura: o Angelim, aCapiuba, o Pequeá, o Cumarú, a Pequearana, a Jandiroiarua, e todo opau duro he sugeito ao Turú que he huma verme que se mete pelospaus, e os passa: não o Louro, não a Guariúba, e não os paus leves: tam-bem se fazem de paracúuba que he pezado, e de dura; tão bem de Tata-juba que he de dura, e não vai ao fundo: tambem de Embirárema quedura; tambem de J acaréuba que he como o Louro; tambem de Acaya-carana, que he leve, e dura. Do pau de Jutahy he que o Gentio faz asua canôa; isto he de casca do Pau; e o tal Jutahy he que da a rezinaque por isso chamam Jutaicica, como se dissesse breu, ou rezina da Ju-tahí : tambem se fazem de Assacú.

De qualquer das madeiras sobreditas fazem os Indios as suas ca- .nôas, sem lhes ser preciso comprar nada, porque tudo tirão do mato;para amarras tirão do mato sipó do Murukityca, o sipó pitanga, o sipóparanárembo, alem das embiras da Monguba, a embira branca, o tim-bó titica, etc ., os tornos para as segurarem são de louro, nacapú, o breupara calafetarem he o breu branco que chamão sicantãatinga, o breupreto que chamão siguiryba, que he pau que em tendo breu deita 10,12 arrobas de breu, e deste pau he que de ordinário se fazem os coxesdas Sarapas nos Engenhos; o breu Jutaicyca que he com que vidrão aLoiça, como logo se verá: o breu do Ananí, o' da massaranduba, que porsi misturado com um pouco de outros breus não necessita de azeite, e omesmo he o do !A.na.ní. O methodo pelo que fazem o breu fluido he oseguinte: derretem o dito breu, e derretido que esteja vão lançando emhum vaso de agoa pingas para a experiencia que fazem: se elle quebra,e não pega bem, vão ajuntando ao breu derretido ou manteiga de tarta-ruga, ou de peixe boy ou azeite de Nhandiroba; se não está peganhento;porque está muito ralo, ajuntão mais breu, etc. A estopa para calafetar,ou he a entrecasca do Castanheiro ou do cumaty, ou o Macucú, que comoraspão a casca de fora, e servem-se da moinha em que fazem a de den-tro e esta he cheya da rezina natural não carece de breu; do Pau da em-Lira branca por ser leve, e de dura fazem mastros: as velas ou são d 3-

Muruty, ou de Jupaty, ou não havendo isto qualquer palmeira de boacopa serve de mastro e vela: com a casca do Muruty ou Jupaty, ou tim-

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botitica, ou J auari, ou Guarumá tecem uma esteira por baixo, e outrapor cima, e entre estas esteiras metem a palha de Ubé. ou a folha doGuarumá, ou a do caaguassú: os remos fazem-nos do pau que na linguageral chamão Iapucuitá-íua, que quer dizer pau de remo: ou do outropau que chamão Carapauáyuá ou do outro Apitaji~, ou de Amapá, ouMangá-narana .

IX

Nem de todo o barro fazem os Indios a sua Loiça. Provão pri-morro o barro, e em lhe achando elles, hum sabôr azêdo, com a outraeircumstancia mais de não ter areia misturada, então he bom barro; deoutro modo estala o barro ao cozer-se no fôgo. Sem rodas, nem machi-na alguma. emprehendem a mão a tal fabrica de panellas, pratos, etc.,para isto POl", prompto q ie esteja o barro, tirão do mato a casca do pauh. marl carmpe, e queimão-na, e depois de queimada levão a cinza ao

P ). I T, .C,,· bem P11:da. e passão por huma peneira depois; e pe-neirada com o barro, amassando huma com outra substancia, até ficarhuma massa, a que vão dando com as maons os feitios que querem: nafalta de tal casca seccão no pilão as escorias do ferro que ficão nas for-jas, para moidas que sejão as encorporarem com o barro; e na falta distocalcinão o casco das tartarugas, e indo ao pilão misturão l;omo fazem coma casca; sem este adubo, qualquer dos 3 que seja, dizem que não fica aIoiça consistente, e que deixa passar a agoa: feita a forma vai para ofôrno á cozer, que não he fôrno, he hum tijupá de lenha com que co-brem toda a loiça, de ordinario são cascas de paus, e quando tirão assimquente. e como sabe a loiça dão-lhe por dentro com a rezina Jutaicica,quecomo acha o barro quente, se derrete, e vai envernizando o barro, queparece então vidrado ; para a panella depois em sendo nova não dár aocomer, o sabôr da resina, antes que uzem della, fazem ferver dentrohuma quantidade de agoa, e sem isto dizem não dura a panella : ou vol-tão a panella com bôcca para baixo sobre brazas para se lhe queimar arezma ,

X

Sôbrc o clima do Pará. sustentão os velhos que elle está mudado.Antigamente dizem elles que todos os dias constantemente pelas duashoras da tarde era certa a Trovoada, a qual passava logo deixando a

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atmosfera limpa e fresca; de sorte que era frase corrente entre os nego-ciantes que avizavão hum ao outro da sua idade tarde á caza daquellecompanheiro havião de tratar algum negocio, avizarem-no logo que empassando a Trovoada o procurarião , A differença que notão consisteem que prezentemente não tem óras determinadas a Trovoada, porquetanto chove de manhã como ao meio-dia como de tarde como á noite semhaver óra certa. Com effeito o que eu tenho observado he que pelo es-paço de 8 mezes tem sido mais frequentes as chuvas de tarde que demanhãa : tambem tenho visto chover a qualquer óra da tarde assimcomo Trovoadas á bocca da noite, pelo meio della e de madrugada.

Os relampagos sêccos são muito ordinarios no Paiz, a maior partedelles tão grandes que illuminão a cidade: outra observação he certaque do nascente pela maior parte he que vem as Trovoadas; poucas Ele

demorão tempo consideravel: o mesmo vento que as traz as vai trans-portando para outros logares a chuva que cahe grossa, a terra entra aivaporar de si hum cheiro terreo, imbebe-se e conserva mais ou menostempo a agoa segundo a sua qualidade, porque se predomina nella arôalogo se enxuga como succede no Bairro da Campina, se tem muito Ti-júco sem haver escoanta para as agoas ficam estagnadas e assim se de-morão por mais tempo. como succede na Praça do Pala cio, até que ocalor do sól lhe evapore a agoa. O calôr mais sencivel do que costumaser he o annuncio da Trovoada; emquanto pendem as nuvens sem sedesatarem em agoa, fica tão abafada a cidade, que mal se pode supportarsobre, o corpo a mesma camiza; ex que vem a chuva repentinamente re-fresca a atmosfera. Até o ponto aguas vezes de ser preciso cobrirem-se os homens mais do he ordinario.

XI

Para curtirem os couros são varias as cascas que applicão, porque-applicão a casca de Paricá-rana, de Paricá verdadeiro, de Manguede que tambem misturão as folhas, da mesma Guyabeira, as folhaschamadas de Sapateiro, a casca do uacapú, a casca do ~,ngelim, e outros:mas nem todas estas cascas tem a mesma estimação dos curti dores ; aParicá-rana, observão que deixa a sóla vermelha, esgretada quando ademorão mais tempo, e de menos dura; o Paricá verdadeiro he o me-lhor para a sóla.As fôlhas chamadas do sapateiro servem só para coirosmiudos, como carnursas de pelie de cabra, veados, eutias, e não para