Mistérios da Natividade

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  • 8/20/2019 Mistérios da Natividade

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    Mistérios da NatividadeANTÓNIO ARAÚJO (Texto) e SUSA MONTEIRO (Ilustração)

    13/12/2015 - PÚBLICO

    Os presépios sempre serviram para doutrinar. Mas nem a gruta, oestábulo, o burro, avaca ou o Meninoaquecido pelo bafodos animais fazemparte dosEvangelhoscanónicos. Crentes

    ou não-crentes,devemosreconhecer ainquestionávelverdade poética das narrativas evangélicas da Natividade.

    Estou debaixo de terra na Praça Central de Cracóvia. A observaresqueletos. De vampiros. Foram ali descobertos, creio querecentemente, os túmulos de seis mulheres: três delas deitadas emposição fetal, uma com as mãos atadas atrás das costas e asrestantes duas decapitadas, com as cabeças separadas do tronco.Só assim se impediria, segundo a crença, que os vampirosressuscitassem das tumbas e de novo viessem atormentar os vivos.A bizarra necrópole de Cracóvia data do século XI, mas estaspráticas funerárias são bem mais antigas. Delas existem vestígiosdo ano 765, em Paderborn, na actual Alemanha. Quem tivesse apele avermelhada, fosse canhoto, possuísse dentes salientes ousobrancelhas espessas poderia ser suspeito de vampirismo — e ter

    um destino idêntico ao daquelas seis mulheres de Cracóvia. Umamorte súbita ou o suicídio eram igualmente suspeitos. Porprecaução, decapitava-se o cadáver, apartando-se a cabeça docorpo e colocando-a sobre a tampa do caixão maldito.

    Lá em cima, a poucos metros de onde me encontro, um veterano daresistência ao nazismo imolou-se pelo fogo em Março de 1980,protestando contra a depravação da juventude, a extinção das artese ofícios tradicionais e o manto de silêncio que encobria o massacrede Katyn, quando no decurso da Segunda Guerra vários milhares

    de oficiais polacos foram abatidos a sangue-frio às ordens deEstaline e Lavrentiy Beria.

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    Nas arcadas do Mercado, o Café Noworolski, develudos sumptuosos. Inaugurado em 1910, erafrequentado pelas elites da cidade até os

    ocupantes nazis o terem requisitado para usoexclusivo de cidadãos alemães. Em 1949, foinacionalizado pelo governo comunista, só sendo devolvido à famíliados proprietários originais em 1992. O interior do Mercado é hojeinteiramente preenchido por bancas de artesanato e souvenirs  turísticos. Entre eles, os presépios de Cracóvia. Feitos da prata doschocolates, as suas cores brilhantes refulgem esplendorosas entreorvalhos de sangue e tantas memórias de morte.

    Há-os noutros lugares da Polónia. Mas, por direito e tradição, ospresépios pertencem a Cracóvia. Diz-se que lá chegaram no séculoXIII, trazidos de Itália pelos franciscanos. E é em Cracóvia, na Igrejade Santo André, que as Irmãs Clarissas guardam o mais antigopresépio da Polónia — ou até mesmo da Europa, garantem osespecialistas —, composto por duas figuras talhadas em madeira detília na segunda metade do século XIV, que parecem peças dexadrez e, provavelmente, faziam parte de uma composição maior:São José, pensativo e absorto, e Maria jubilosa, de braços abertos,pronta a acolher o Menino no seu regaço. Os olhos da Virgem sãopintados e cobertos de vidro, técnica semelhante à que seriautilizada mais tarde pelos grandes artesãos napolitanos.

    Sob o impulso da Contra-Reforma, e da necessidade decatequização de um povo de poucas ou nenhumas letras, ospresépios adquiriram uma importante função didáctica; para estapedagogia da fé, as Clarissas tinham um presépio ainda hojeexibido na Igreja de Santo André, e em que as figuras eram

    mudadas durante o período do Natal para

    representar sucessivamente a Adoraçãodo Menino pelos Pastores, a Matança dosInocentes, a Circuncisão de Jesus, aAdoração pelos Reis Magos e aApresentação no Templo. É também noambiente pós-tridentino que segeneralizam os presépios domésticos,expostos o ano inteiro, com figuras de ceraou madeira policromada resguardadas no

    interior de maquinetas envidraçadas.

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    Mas, a par disso, havia outro modelo de presépio que dizem serexclusivo da Polónia. Nele, ao lado das figuras tradicionais existiaum espaço para espectáculos de marionetas, tendo por temas a

    história do nascimento de Jesus ou, em versão satírica e profana,comédias de costumes, prática que as autoridades da Igrejaacabariam obviamente por proibir. Contudo, os espectáculos eramextremamente populares — e rentáveis. Como num thriller   deacção, a plateia assistia horrorizada à Matança dos Inocentes paralogo depois aclamar, em ruidoso delírio, o castigo infligido aHerodes, o vilão da história: entrando em cena de rompante, aMorte cortava a cabeça ao rei da Judeia e o Diabo levava a suaalma para os confins das trevas. Moral da história: até os reis mais

    poderosos tinham de se submeter à implacável lei divina, assim serestaurando um elementar sentido de justiça por que o povo deCracóvia tanto ansiava.

    Os monges, como é óbvio, não estavam dispostos a abrir mãodeste script   arrebatador. Por isso, encontraram formas subtis deiludir a proibição eclesiástica, aproveitando o ritual das visitasdomésticas de Natal e Ano Novo (koleda ) para utilizar trabalhadoresdos conventos ou estudantes de catequese como actores nasrepresentações teatrais feitas porta a porta. Nestes percursos,transportavam consigo igrejas em miniatura com presépios, oschamados “betlemitas” (betlejemki ). Encontram-se aí, nos finais doséculo XVIII, as raízes da arte dos presépios cracovianos, tal comohoje a conhecemos. Mas só no século seguinte ela ganhou forma evigor devido à conjugação de diversos factores. Desde logo,Cracóvia possuía um abundante acervo de estórias e personagenslendárias, capazes de alimentar as peças representadas naNatividade, as quais eram escritas por literatos e membros da

    intelligenzia   local, sedentos de afirmar a especificidade da culturanacional polaca e, no seu seio, a supremacia da cultura local dacidade; a incorporação dessas figuras lendárias tinha a vantagemde tornar a dramaturgia da Noite Santa imediatamente reconhecívelpelo auditório. Por outro lado, a circunstância de os presépiosintegrarem monumentos e edifícios emblemáticos, religiosos ouprofanos (como o Castelo de Wawel, a Torre do Relógio, a Porta deSão Floriano), tornava-os um poderoso elemento identitário deCracóvia, não sendo por acaso que as representações da

    Natividade contaram sempre com o generoso patrocínio daburguesia local.

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    Se a isto acrescentarmos o interesse românticopelo folclore e pelas tradições popularescompreenderemos em que medida o

    florescimento dos presépios de Cracóvia seinscreveu num movimento mais vasto, que atodos envolvia: artesãos, literatos, comerciantesburgueses e autoridades políticas. Tratava-se,além disso, de um negócio lucrativo e rentável,em que alguns artistas ganharam merecida famae histórica reputação. Entre eles, MichalEzenkier, um pedreiro e fabricante de azulejos

    que concebeu presépios e dirigiu um grupo que representou cenas

    da Natividade desde 1864 até à sua morte em combate, na PrimeiraGuerra Mundial. A ele se deve a concepção do modelo dospresépios de Cracóvia, sendo o seu filho Leon responsável peloguarda-roupa das figuras. No Museu Etnográfico é possível admirarum exemplar da autoria de Ezenkier, com quatro figuras sob aforma de marionetas — Herodes e sua mulher, o Diabo e a Morte —, estando ausentes as personagens centrais da Natividade, e atémesmo a Sagrada Família… Não se trata, pois, em bom rigor, deuma alegoria do Natal, mas de um artefacto para um teatro de

    marionetas a ser apresentado ao público na época natalícia.Em todo o caso, ainda hoje, do ponto de vista arquitectónico, ospresépios cracovianos seguem o perfil traçado por Ezenkier: duastorres laterais em forma de pináculos góticos, semelhantes aos daIgreja de Santa Maria situada na Praça Central da cidade,acompanhadas por duas torres mais baixas, de inspiração barroca,e uma torre central mais elevada e dominante. A iluminação atravésde velas (que em Portugal vitimou, pelo menos, dois sumptuosos

    presépios barrocos de Lisboa) foi proibida por razões de segurança,passando a ser usadas lâmpadas eléctricas.

    Em finais do século XIX, o cânone estava estabelecido, sendo atéfundada nessa altura uma guilda de artesãos de presépios, muitosdos quais pedreiros e carpinteiros dos arredores da cidade que, nãotendo trabalho nos meses de Inverno, dedicavam o seu engenho epaciência à construção de representações da Natividade. Depois,iam mostrá-las de casa em casa, encenando teatralmente onascimento do Menino, de uma forma não muito diversa daquela

    que os monges dos conventos tinham apresentado no séculoanterior.

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    As duas guerras mundiais abalariam esta tradição artística, e oconcurso anual de apresentação dos presépios de Cracóvia (szopkakrakowska ), iniciado em 1937 graças aos esforços do historiador dearte e etnógrafo Jerzy Dobryzcki, só seria retomado em 22 de

    Dezembro de 1945. Todos os anos, na primeira quinta-feira deDezembro, os habitantes da cidade e os turistas podem contemplaro desfile. De invulgar estatura e dimensões pujantes, os presépiossão transportados pelos artífices e seus familiares, que osdepositam no meio da neve, junto à estátua do bardo nacional, opoeta romântico Adam Mickiewicz.

    No concurso existem categorias de prémios destinados a crianças e jovens, na tentativa de preservar a continuidade desta arte. Hádinastias famosas de artesãos, como as famílias Malikowie,Gluchowie e Piacikowie, mas, segundo se diz, paira uma novaameaça sobre os presépios de Cracóvia. Ao aproximarem-se daestátua do poeta muitos artistas são aliciados a vender logo ali assuas obras, em vez de aguardarem pelo dia em que serão expostasno Museu de História da Cidade. Intermediários vindos dos hotéis,delegados de agências de viagens, representantes de grandesempresas ou turistas endinheirados disputam avidamente ospresépios de Cracóvia antes sequer de estes entrarem emcompetição.

    Nem sempre o tamanho conta. Espantei-me pelo facto de um presépio volumososer mais barato do que outro, bastantemais pequeno. Porém, um exame atentopermitiu surpreender maior delicadezadas formas e mais fina perfeição dorecorte dos papéis de prata e de folha de

    alumínio. As figuras centrais do presépiosão, evidentemente, a Virgem, São Josée o Menino. Por cima da Sagrada Família,

    anjos puríssimos fazem soar trombetas de alegria, enquantopastores e ovelhas, e por vezes os Reis Magos, se aproximam emgloriosa adoração.

    Com frequência, os presépios de Cracóvia apresentam figurashistóricas: monarcas antigos, príncipes afortunados, heróis quealimentam o orgulho de uma nação martirizada ao longo de séculos.Copérnico aparece em alguns presépios, a par de personalidades

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    lendárias como o corneteiro que, na torre da Igreja de Santa Maria,teve a garganta trespassada por uma flecha enquanto alertava acidade para a invasão iminente dos tártaros. Ou Pan Twardowski,nobre e feiticeiro do século XVI que, como o Dr. Fausto, vendeu a

    alma ao Diabo a troco de poder mundano e grandes riquezas. Ouainda o cavaleiro de vestes pseudo-orientais, o Lajkonik, quecelebra a chacina dos tártaros e do seu Khan às mãos dosintrépidos barqueiros do Vístula, fasto ainda hoje recordado numdesfile que todos os anos percorre Cracóvia no mês de Junho,durante a semana do Corpus Christi .

    Como sucede nos presépios de todo o mundo, certas figurasenvergam trajes tradicionais da região, ainda que sem aexuberância faustosa das suas congéneres de Nápoles. Em algunsdeles, personalidades contemporâneas como Karol Wojtyla ou atémesmo Lech Walesa presenciam o nascimento do Menino. Aexposição actualmente patente na antiga Fábrica de OskarSchindler mostra presépios iconoclastas, em que Hitler e Estalineocupam o lugar central e a Sagrada Família se afasta de burro,espavorida, a caminho de um Egipto imaginário. Tudo isto não devecausar estranheza se pensarmos que em Gabriela, Cravo e Canela, de Jorge Amado, o vastíssimo presépio feito pelas beatas irmãsDos Reis com figuras recortadas de jornais e revistas ostentava,além das de Rodolfo Valentino ou Charlie Chaplin, a imagem deVladimir Illich Oulianov, a.k.a. Lenine — e sem que daí resultasseescândalo na retrógrada cidade de Ilhéus, Estado da Bahia.

    Construídos em torno de uma armação de madeira, os presépios deCracóvia têm uma característica singular: neles são representados,em patamares sobrepostos, as principais igrejas e outrosmonumentos da cidade, desde o românico à art nouveau . Algunspresépios são verdadeiros guias turísticos em três dimensões,

    como aquele que vi na penumbra da Basílica de São Francisco deAssis, à entrada dos claustros. Monumental, mais grandioso do queos que se podem contemplar no Museu Etnográfico, o presépio daBasílica de São Francisco apresenta as diversas igrejas deCracóvia, devidamente assinaladas num mapa explicativo.

    A reverberação da luz na prata multicolor dá-lhes uma aparênciafeérica, com laivos de sumptuosidade oriental, característica que éadensada pelo facto de muitos dos presépios de Cracóvia seremencimados por um zimbório em forma de cebola, à maneirabizantina ou ortodoxa. Por vezes, a Sagrada Família é ofuscada

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    pela luminosidade resplandecente das cores vivíssimas e pelapujança dos ornamentos, raiando o kitsch . Quase nos esquecemosque Jesus nasceu numa gruta.

    A gruta de Belém

    A gruta de Belém nãoé sequer mencionadanos Evangelhos.Aliás, quase tudo oque faz parte doimaginário e dacenografia da

    Natividade — a grutae o estábulo, o burroe a vaca, o Meninoaquecido pelo bafodos animais — nãoconsta dos

    Evangelhoscanónicos. Em Lucas2, 7 fala-se apenas de

    uma manjedoura,onde o Menino foideitado, envolto em panos. Não se trata de um pormenor. Pelocontrário, a imagem de Jesus-criança enfaixado em panos,propagada pela tradição dos ícones, contém uma alusão antecipadaà hora da sua morte. Prefiguração fulgurante, que introduz umanoção de circularidade do tempo na narrativa evangélica e nos levaa encarar o Calvário e tudo quanto lhe está associado — a Pietá , oStabat mater dolorosa , etc. — a uma nova luz, impregnada de

    sombra: a da mãe que se reencontra com o filho morto,exactamente do mesmo modo como antes o tomara nos braços,recém-nascido.

    Mais extraordinário ainda é pensarmos que, certamente de formainvoluntária, esta ligação entre o nascimento e a morte de Cristoteve uma singular expressão artística: as primeiras grandesrepresentações da Natividade, os presépios com figuras talhadasem retábulos feitos a partir do século XV no Norte dos Alpes,mostram claras semelhanças com os grandes Calvários do gótico

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    tardio que foram realizados precisamente nessa época, e namesma região.

    Se a gruta não é referida nos Evangelhos, ela consta de umaantiquíssima tradição, como testemunharam o mártir Justino (Dial.,

    78) e Orígenes (Contra Cels., 1, 51) (cf. Salvador Muñoz Iglesias,Los Evangelios de la Infancia , vol. III, 1987, pp. 99ss). Também SãoJerónimo escreveu, em 404, sobre o specus Salvatoris , a gruta doSalvador. Baseando-se no teólogo protestante Peter Stuhlmacher,professor em Tübingen, Joseph Ratzinger afirma, no seu livro Jesusde Nazaré. Prólogo. A Infância de Jesus  (2012), que desde sempre,na região em redor de Belém, foram usadas grutas como estábulos.A isto poderíamos acrescentar que os Apócrifos contêm mençõesexplícitas à gruta onde nasceu Jesus, como sucede, por exemplo,no Papiro Bodmer 37, 10 (“E ali encontrou uma gruta: levou-a paraela”), no Proto-Evangelho de Tiago 18, 1 (“Encontrou lá uma gruta:levou-a para lá”) ou no Evangelho do Pseudo-Mateus (“disse,depois, à bem-aventurada Maria que descesse do animal queentrasse numa gruta sob uma caverna na qual nunca entrava a luz,mas só as trevas, porque não podia receber a luz do dia”).

    Em Roma, na actual Igreja de Santa Maria

    Maggiore, venerava-se como relíquia umpedaço da gruta original onde Jesus nasceu,a partir da qual foi construída, no século VII, aprimeira réplica da gruta da Natividadeexecutada no Ocidente. Foi também nessaigreja que se iniciou a tradição da missa dameia-noite. A manjedoura de Belém, diz alenda, terá sido destruída no século II àsordens do imperador Adriano. Ainda assim,

    entre 432 e 440 o Papa Sixto III conseguiu trazer para Roma váriosfragmentos do Santo Presépio, que mais tarde seriam dispersos poralguns templos da Cidade Eterna: Santa Maria Maggiore, a Igrejade Santa Maria no Trastevere e, naturalmente, a Basílica doVaticano. Séculos depois, no ano de 1223, São Francisco faz erigirna floresta de Greccio aquele que é considerado o primeiro presépiodo mundo, imortalizado por Giotto num fresco celebérrimo daBasílica de Assis. Mesmo isso, no entanto, suscita interrogações emistérios, pois alguns especialistas entendem que o presépio, tal

    como o conhecemos, só tomaria forma muitos anos depois. Ou, aoinvés, muitos anos antes, bastando recordar que a mais antiga

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    conhecida imagem de Nossa Senhora com o Menino se encontraem Roma, nas Catacumbas de Santa Priscilla. Datando do séculoIII, mostra a Virgem, Jesus e um profeta indicando a estrela, aestrela que, nas palavras de Pascoaes, é divino sorriso alumiante.

    Já falaremos dela, dentro de minutos.O nascimento de Jesus

    A par da gruta de Belém, outros mistérios se adensam em torno donascimento de Jesus, começando pela data em que ocorreu. Este éum ponto em que até Ratzinger concorda com os que, como E. P.Sanders (A Verdadeira História de Jesus , 2004, p. 27) ou JoachimGnilka (Jesus de Nazaré , 1999, p. 77), dizem que houve um erronos cálculos feitos no século VI pelo monge cítico Dionísio Exíguo

    († ca. 544) para a elaboração do seu calendário litúrgico e para adeterminação do anno Domini . O nascimento de Cristo terá assimocorrido alguns anos antes da data que, a partir daqueles cálculos,marca o início da contagem da nossa era. Vivemos, pois, por voltade 2019 ou de 2021 d.C. Por sua vez, Jesus terá nascido no ano 4,5, 6 ou até 7 a.C., facto que pode apoiar a tese da inverosimilhançade diversas passagens do Novo Testamento mas que, queiramo-loou não, tem um desconcertante sentido profético. Antes de nascer,Cristo já o era. Talvez possamos enquadrar essa realidade nas

    palavras de São João Baptista, recolhidas no Evangelho de João:“Aquele que vem depois de mim é mais importante do que eu,porque já existia antes de mim” (Jo, 1, 30).

    Muitos defendem que, ao invés de buscar afanosamente umasustentação histórico-factual para todas as referências evangélicas,devemos assumir que as tentativas de concordismo bíblico, quesubsistem entre diversos exegetas católicos e protestantes, sãodestituídas de fundamento em face da flagrante discrepância entre

    os relatos de Mateus e Lucas (pese as similitudes detectadas porvários autores, como René Laurentin, Les Évangiles de l’Enfance duChrist , 1982, pp. 361ss). Aquela discrepância, note-se, não éfactual, uma vez que os evangelistas nunca tiveram o propósito deelaborar uma biografia histórica de Jesus mas antes uma narrativaconstruída com um objectivo estritamente teológico, não distante deum género literário hebraico antigo, o “midraxe hagádico”, em queuma dada interpretação das Escrituras é apresentada através derelatos e narrações (cf. Joaquim Carreira das Neves, Jesus Cristo.História e Mistério , 2000, pp. 55ss). Em face disto, tanto se afiguram

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    vãs as “denúncias” de um E. P. Sanders sobre as contradiçõesentre Mateus e Lucas como se revelam as dificuldades de umJoseph Ratzinger para encontrar uma explicação histórica para tudoquanto os dois evangelistas afirmam. Por exemplo, Bento XVI

    apoia-se em Flávio Josefo († ca. 100) para fundamentarhistoricamente a ocorrência de um recenseamento para finstributários na época de Augusto, mas não menciona que o autor deAntiguidades Judaicas   em lugar algum se refere à matança decrianças no reinado Herodes, facto que, a ter ocorrido, mereceriacertamente registo nos anais da época. Do mesmo passo,Ratzinger sustenta que Maria e José terão ido a Belém justamentepor causa daquele censo fiscal, pois, apesar de viverem em Nazaré,é legítimo “supor que José, da casa de David, possuísse um terreno

    em Belém, pelo que tinha de ir lá para a cobrança dos impostos”(op. cit ., pág. 57).

    Na ausência de bases históricas para uma tal suposição, melhorserá abrirmo-nos à intenção profética das narrativas evangélicas,nos termos da qual Jesus tem de nascer em Belém por ser essa acidade de David. Só dessa forma se cumpre e realiza o destinoprofetizado em Miqueias 5, 1: “Quanto a ti, Belém, no clã de Efrata,embora sejas tão pequena entre as terras de Judá, de ti farei seguiraquele que vai ser o guia de Israel.” Muito do que encontramos noEvangelho de Mateus surge ordenado — e só é explicável — justamente enquanto cumprimento de um desígnio messiânico ouprofético, incluindo um ponto que, além do nascimento em Belém, éincontroverso para todos os evangelistas: a concepção virginal deJesus. A virgindade de Maria é prenunciada em Isaías 7, 14: “Poisbem, é o próprio Senhor que vos vai dar um sinal: a jovem mulherestá grávida e vai dar à luz um filho e pôr-lhe-á o nome de Emanuel”(no texto hebraico; sendo mais expressiva a antiga versão grega

    dos Setenta, a Septuaginta: “A virgem ficará grávida e dará à luz umfilho que se há-de chamar Emanuel”). Por outro lado, quando o anjoGabriel saúda Maria (“O Senhor está contigo”, Lc 1, 28), actualiza aprofecia constante da Escritura hebraica, mais precisamente deSofonias 3, 17: “O Senhor, teu Deus, está no meio de ti.” A fugapara o Egipto, por seu turno, realiza a profecia de Oseias 11, 1:“Chamei do Egipto o meu Filho.” O massacre das criancinhas visacumprir o que escreveu o profeta Jeremias 31, 15. E a presença emNazaré, e não na Judeia, tem um propósito evidenciado em Mateus

    2, 23: “Ali fixou residência numa terra chamada Nazaré. Foi assim

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    que se cumpriu aquele dito dos profetas: ‘Ele há-de chamar-seNazareno’.”

    Sonhos e presságios

    É também a esta luz, à luz do cumprimento de um desígnioprofético, que se compreende que os chamados “evangelhos dainfância” sejam marcados por analepses teológicas, digamos assim,que fazem com que a narrativa seja constantemente atravessadapor sonhos e presságios, sinais, profecias. É o Natal com seusmistérios. Um anjo aparece em sonhos a José, tranquilizando-osobre a virgindade de Maria (Mt 1, 20); outro lhe surgirá, tambémem sonhos, ordenando-lhe que fuja para o Egipto (Mt 2, 13) e, maistarde, que de lá regresse à terra de Israel (Mt 2, 19). É também

    através de um sonho que Deus — desta feita, dispensando aintermediação de anjos — avisa os sábios do Oriente para nãovoltarem a encontrar-se com Herodes (Mt 2, 12).

    No relato lucano, as angelofanias não emergem numa atmosferaonírica, mas sob a forma de aparições. É desse modo que um anjoanunciou a Zacarias o nascimento de João Baptista (Lc 1, 11) ouque outro anjo, Gabriel, anunciou a Maria o nascimento de Jesus(Lc 1, 26). “Servirei o Senhor como ele quiser. Seja como tu dizes”,

    respondeu-lhe a Virgem, o que levou alguns padres da Igreja aconcluírem que Maria terá concebido através do ouvido, por umaobediente audição da Palavra de Deus, derivando daí, segundo sediz, a expressão popular “emprenhar pelos ouvidos”.

    A densidade, a um tempo poética e teológica, da aparição angelicalé potenciada por uma breve mas lindíssima frase, também elamisteriosa, que remata o diálogo entre Maria e o anjo Gabriel. Apósa Virgem lhe ter dito “Seja como tu dizes”, o Evangelho de Lucasacrescenta: “E o anjo retirou-se” (Lc 1, 38). Como salienta JosephRatzinger, esse dito tão simples, aparentemente destituído designificado — “E o anjo retirou-se” —, surpreende, ao colocar Marianum momento de solidão, de confronto consigo mesma e com atarefa que lhe fora atribuída. A sós, com Deus. O mistério daNatividade é também o mistério da maternidade e da solidão quesempre a rodeia, em todos os tempos e lugares, hoje como há doismil anos.

    A reserva e a discrição de Maria têm algo de enigmático, emergindo

    em tantos momentos do texto de Lucas que muitos asseveram queuma das fontes do evangelista terá sido a própria Virgem,

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    descrevendo factos que só poderiam ser revelados após a suamorte. Ao presenciar a correria dos pastores rumo a Belém, paradivulgar a Boa Nova, “Maria recordava todas estas coisas emeditava nelas atentamente” (Lc 2, 19). A narrativa lucana da

    Anunciação só é possível por acesso directo a Maria ou, emalternativa, sendo fruto da imaginação do evangelista, queobviamente não presenciou, por exemplo, o diálogo da Virgem como anjo Gabriel. Mais adiante, quando Jesus abandona por instantesa família, aos 12 anos de idade, e responde aos pais, inquietos peloseu desaparecimento, “Porque é que me procuravam? Não sabiamque eu tinha de estar em casa de meu Pai?”, Lucas acrescenta:“Eles não compreenderam o que lhes disse” (Lc 2, 50). A famíliaregressa a Nazaré e Jesus continuou a ser obediente. “Sua mãe

    guardava todas estas coisas no coração” (Lc 2, 51). Este é o trechodecisivo, aquele em que se revela de forma mais patente a solitáriareserva da Virgem Maria. E também, passado um momento deperturbação inicial, a suave placidez com que presenciou e se fezcúmplice do Natal e seus mistérios.

    A serenidade da Virgem, sintomaticamente, contrasta com aazáfama dos pastores que correram apressados a Belém, com asinquietações de Herodes e do Sinédrio ou com o escândalosuscitado em Jerusalém pelo nascimento do Menino. À semelhançado que ocorreu com a imagem do Menino envolto em panos (Lc 2,7), o nascimento e a morte de Cristo voltam a encontrar-se. Aperturbação sentida em Jerusalém por alturas do Natal é idêntica àque ocorrerá aquando da entrada triunfal de Cristo na cidade santa.De acordo com Mateus, “quando Herodes teve conhecimento disto,ficou muito preocupado, e como ele todos os moradores deJerusalém” (Mt 2, 3); 30 anos depois, “quando Jesus entrou emJerusalém, toda a cidade ficou em alvoroço” (Mt 21, 10). De igual

    modo, o Sinédrio intervém a pedido de Herodes, aquando donascimento de Jesus (Mt 2, 4-5), e depois para o seu julgamento(Mt 26, 57). Aliás, os Reis Magos buscam o “rei dos Judeus” (e não,como deveriam, o “rei de Israel”), sendo aquele o título pelo qualJesus será, muito mais tarde, julgado e condenado à morte (Mt, 27,11). Nascimento e morte, os dois pólos da existência terrena deJesus, em torno dos quais se constrói a narrativa evangélica,segundo o polarismo, técnica de expressão simbólica muito comumna semântica hebraica (cf. Gianfranco Ravasi, Videro il Bambino e

    sua Madre. Meditazioni sui vangeli dell’infanzia,  2000, p. 6). Éextraordinário pensar, como expressão acidental dessa polaridade,

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    que a data do nascimento de Cristo foi fixada em 25 de Dezembropelo Papa Júlio I tendo em conta precisamente a sua estreitaligação ao Calvário, a par de outros factores, como a celebraçãoromana do Dies natalis solis invictis , o solstício de Inverno.

    O Menino Jesus

    Jesus Cristo é o Menino, o Menino Jesus, e assim será conhecidopela tradição da fé, feita história de amor humano. No Auto PastorilPortuguês , Gil Vicente fala, enternecido, do “cachopinho tamfermoso e sesudinho / filho de Nossa Senhora”. A imagética daNatividade e todo o ambiente que a envolve animam sentimentosvários, desde o embevecimento pelos recém-nascidos à exaltaçãoda sua inocência. De permeio, a composição dos presépios é um

    regresso ao tempo da infância ou um Ersatz  da maternidade. Nãopor acaso, desde a Idade Média existiu nos conventos femininosgermânicos a tradição do Kindlwiegen   (“Embalar o Menino”), emque a figura de Jesus-criança surge colocada num berço móvel,com o qual se podia brincar. Neste contexto, o Menino adquireabsoluta centralidade, a um ponto tal que passa a ser alvo dedevoção específica e de representações artísticas que o tomam porobjecto exclusivo. Aparece então sob a forma de uma criança iguala todas as outras, com absoluta candura, na quietude do sono. Na

    Igreja Paroquial da Carvoeira, em Torres Vedras, Jesus Meninodorme tranquilamente, de faces rosadas, na completa nudez comque nasceu, numa delicada torção, com a cabecinha postada numaalmofada de seda bordada a missangas, fazendo cócegas noumbigo. Noutros lugares, como na Igreja das Chagas e noConvento dos Cardaes, em Lisboa, ou na Igreja Paroquial de SãoPedro, em Peniche, surge deitado num berço, de olhos abertos aoespanto do mundo. Quem assim se mostra não é o Redentor ou oMessias, mas tão-só uma criança recém-nascida. Numa escultura

    de vulto pleno e reduzidas dimensões, feita no século XVIII-XIX porum autor desconhecido, e hoje exibida no Museu do Patriarcado deLisboa, o Menino tem um vasto enxoval de 25 vestidos, em cetim eprata, que se mudavam consoante o gosto, num dispositivoparecido ao do Menino Jesus de Praga, que desde o século XVIvem acumulando um abundantíssimo enxoval, com roupas de todaa parte.

    Esta dimensão lúdica da Natividade é tão importante como areligiosa, o que obrigou frequentemente à intervenção correctivadas autoridades eclesiásticas. No inventário de um castelo italiano,

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    elaborado em 1567, consta que a duquesa de Amalfi tinha doisbaús com 116 figuras de presépio, certamente para seu deleite eentretenimento. Pela mesma altura, no Sul da Alemanha, aarquiduquesa Maria de Wittelsbach enriquecia o seu presépio

    privado com figuras de madeira encomendadas a artesãos deMunique. E, no século XVIII, as famílias da aristocracia napolitanacompetiam entre si pela posse do presépio mais faustoso, maisricamente adornado por figuras de barro ataviadas com delicadosfinimenti , numa opulência visual que fascinaria Goethe.

    Na Bíblia, porém, a designação de “menino” tem um objectivopreciso e nada lúdico ou aparatoso: destina-se a evitar que Jesusseja apresentado como filho de José. O anjo de Deus diz a José“levanta-te, toma o menino e sua mãe e foge com eles para oEgipto” (Mt 2, 13) e, mais tarde, “levanta-te, toma o menino e suamãe e volta para a terra de Israel” (Mt 2, 20-21), quando a fórmulacorrecta teria sido “toma o teu filho e sua mãe…”. No Alcorão, aliás,Cristo é reiteradamente descrito tão-só como “Jesus, filho de Maria”,sem menção do nome do pai (2.ª surata, versículos 87 e 253; 3.ªsurata, versículo 45). No Evangelho de Mateus, a genealogia deCristo é apresentada através do encadeamento das gerações porvia masculina (“Abraão gerou Isaac…”), mas, singularmente,chegando a Jesus, deixa de se falar em geração: “Jacob gerouJosé, esposo de Maria, da qual nasceu Jesus, que se chama Cristo”(Mt 1, 16). Só assim se torna possível preservar a concepçãovirginal de Maria e, em simultâneo, integrar Jesus na linhagem daCasa de David (cf. Jean Daniélou, Les Évangiles de l’Enfance ,1967, p. 45; cf. ainda John P. Meier, A Marginal Jew. Rethinking thehistorical Jesus , vol. I, 1991). Significativamente, não se diz queJosé gerou Jesus, pois Cristo é “obra do Espírito Santo” (Mt 1, 20).Quando os Reis Magos se abeiram da gruta de Belém, José não se

    encontra lá, estranhamente (Mt 2, 11).Ratzinger reconhece que nunca conseguiu encontrar explicaçãopara tal ausência. Em alguns Apócrifos, todavia, José está lá, juntoa Maria, e com ela recebe dos Magos oferendas preciosas (cf., porex., o Evangelho do Pseudo-Mateus 16, 2). Mas é incontroversoque, nas narrativas dos Evangelhos canónicos, José não seencontra em cena quando os sábios do Oriente fazem aproskynesis   perante o Menino real, ou seja, quando se prostramdiante d’Ele. Aliás, a presença de José nas representações do

    presépio só se torna comum no século VI, altura em que aNatividade e a Adoração dos Magos já eram visíveis em diversas

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    obras de arte, como o cofre de Werden, na Vestefália, os mosaicosde São Apolinário ou as âmbulas metálicas de Monza, em Ravena.Em Natividade , um pastel sobre papel feito por Paula Rego em2002, exposto na Capela do Palácio de Belém, em Lisboa, Maria dá

    à luz amparada apenas por um anjo de rosto compenetrado egrave. Do marido, nem sombra. Ter-se-á José ausentado nomomento crucial da Noite Santa? Trata-se de um mistério tãosingular quanto é sabido que a realeza de Jesus — se quisermos, arealeza terrena de Jesus — provinha de José, da Casa de David, enão de Maria, simplesmente Maria, de família pobre de Nazaré. Emtodo o caso, é José que dá ao recém-nascido o nome de Jesus (“aquem José pôs o nome de Jesus”: Mt 1, 25) e é a paternidade deJosé que permite inscrever Jesus na genealogia de David, do

    mesmo modo que foi a ascendência de David que, no relato lucano,levou José e Maria a Belém, onde foram inscrever-se norecenseamento realizado quando Quirino governava a Síria. “Todosiam inscrever-se, cada um na sua cidade. Por isso, José partiu deNazaré, na província da Galileia, e foi para Belém, na província daJudeia, onde tinha nascido o rei David. Como José era descendentede David, foi lá inscrever-se com Maria, sua mulher, que estavagrávida” (Lc 2, 3-5). Por conseguinte, José é pai de Jesus nãoapenas em face da lei mas também porque só desse modo se

    realiza a profecia que fez nascer o Menino em Belém. Todavia, ecomo salienta Ratzinger, a origem de Jesus, no que respeita àpaternidade de José, “permanece um mistério”, a juntar a tantosoutros que a Natividade encerra. “Supunha-se que era filho deJosé”, diz-nos Lucas 3, 23.

    Bichos

    Falemos dos animais. Nas mais antigas

    representações da Natividade, trêssarcófagos do século IV que hoje seencontram nos Museus do Vaticano, jásurgem o burro e a vaca junto ao berço doMenino. Não são referidos nos Evangelhoscanónicos, mas há quem descortine a sua

    presença em trechos veterotestamentários cuja concatenaçãopoderia explicar que junto ao Menino estivessem um burro e umavaca, testemunhos de obediência e fidelidade, signos de mansidão.

    Em Isaías 1, 3: “O boi reconhece o seu proprietário, e o burro oestábulo do seu dono; mas Israel, o meu povo, nada conhece e

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    nada compreende.” Há quem realce igualmente a versão grega deHabacuc 3, 2: “No meio de dois seres vivos serás conhecido (…);quando vier o tempo, tu aparecerás.” Simplesmente, a esta mençãoliga-se os dois querubins que, segundo o Êxodo 25, 18-20, estavam

    colocados sobre a cobertura da Arca da Aliança, indicando esimultaneamente escondendo a misteriosa presença de Deus.Mesmo admitindo a existência de um paralelismo entre amanjedoura de Belém e a Arca da Aliança, permanece um mistérioa correlação entre os querubins do Êxodo e a alusão a um boi e aum jumento feita em Isaías 1, 3. Essa correlação não tem,evidentemente, a pretensão de desvendar aqui, num trechorelacionado com animais domésticos, o cumprimento de umgrandioso desígnio profético, como bem observam comentadores

    rigorosos (cf. Salvador Muñoz Iglesias, op. cit., pp. 104ss). E porisso talvez se afigure mais avisado, até numa perspectiva dereconhecimento de espaço à tradição da Igreja, situar o surgimentodo burro e da vaca numa fase posterior da História, num tempo dereconstrução imaginária da Natividade, valorizando o Natal comouma narrativa aberta tanto ao labor dos exegetas quanto à fé doscrentes.

    A presença dos animais — não apenas do burro e da vaca, mas detodos quantos depois entraram nos presépios, desde as ovelhasdos pastores aos elefantes e girafas, macacos e leopardos queacompanhavam o séquito dos Reis Magos — aprofunda odeslumbramento encantado e o afecto generoso que o presépiosempre desperta. “O Evangelho é simplesmente um catálogo decoisas inesperadas. Não se espera que um boi e um burro adorema manjedoura. Os animais estão sempre a fazer as coisas maisincríveis nas vidas dos santos. Faz tudo parte da poesia, o ladoAlice no País das Maravilhas   da religião”, diz Lady Marchmain a

    Charles Ryder em Brideshead Revisited , de Evelyn Waugh. Como épossível explicar, senão desta forma, que Jesus faça a sua entradatriunfal em Jerusalém montado numa burra acompanhada de um jumentinho?

    A estrela

    Agora, a estrela. É elaque, dirigindo-se paraocidente, guia os ReisMagos até à gruta de

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    Belém. Quando a avistaram, os sábios “sentiram uma alegriaenorme” (Mt 2, 9-10). Outro prodígio da Natividade. “Era real e nãoimaginada”, escreve Sophia, num poema que lhe dedicou. Contudo,muitos duvidam da sua existência, dizendo mesmo que era

    impossível uma estrela deslocar-se da maneira descrita nosEvangelhos. Johannes Kepler, no que parece ser seguido poralguns astrónomos actuais, salientou a existência de umaconjunção dos planetas Júpiter, Saturno e Marte, acompanhada deuma supernova, por altura dos anos mais prováveis do nascimentode Jesus. Afirma-se também que tábuas cronológicas chinesasassinalam o surgimento de uma estrela por volta do ano 4 a.C.

    No seu monumental Guide to the Bible , o prolífico escritor edivulgador científico Isaac Asimov duvida do aparecimento de umasupernova, mas reconhece a singular aproximação entre Júpiter eSaturno ocorrida, segundo ele, em 7 a.C. A hipótese que tem pormais plausível é, todavia, a da passagem do cometa Halley pelosistema solar interno, que se verificou em 11 a.C. Não existem, emqualquer caso, provas concludentes sobre a existência da estrelada Natividade (cf. Salvador Muñoz Iglesias, op. cit ,, vol. IV, 1990,pp. 226ss). Podemos considerá-la um dispositivo literário, umestratagema metafórico para assinalar o domínio cósmico de Deuse o universalismo da sua mensagem; ou, de novo, encará-la como aconcretização de uma referência do Antigo Testamento, aquela queé feita à estrela de Balaão no livro dos Números 24, 17: “Umaestrela de Jacob vai dominar, vai erguer-se um ceptro de Israel.” Oupodemos, pura e simplesmente, eliminar a estrela dos céus daJudeia, considerando “patéticos” os esforços para demonstrar edocumentar a sua existência (cf. Gianfranco Ravasi, op. cit., p. 8) oumesmo afirmando acidamente, como José Saramago: “Brilhamlumes no céu? Sempre brilharam.” Mas, se assim fizermos, com

    isso se perderá o mais cintilante dos mistérios da Natividade, a“ditosa strella, que os três Reys guiaste ”, como lhe chamou o poetaquinhentista Diogo Bernandes.

    Entrai, pastores

    As primeiras testemunhas do nascimento de Jesus são pastores (eos seus rebanhos, claro). Não é difícil discernir a razão e o sentidoda sua presença ali, no meio dos campos. A mensagem evangélica,neste passo, é cristalina: os pastores são os humildes, os pobres,os eleitos para a mesa do Senhor, alegoricamente apresentada soba forma de manjedoura. Os pastores foram também os que de noite,

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    naquela noite, se encontravam de vigia, atentos aos sinais doscéus, o que inspirará as veladas e as orações nocturnas da tradiçãomonacal. Não por acaso, uma das figuras características nospresépios napolitanos — também presente em alguns exemplares

    do barroco português — é o homem que dorme, o “dorminhoco” quenão está atento aos sinais de Deus nem se encontra pronto aacolher a mensagem da Natividade e seus mistérios. O sonocorresponde, neste contexto, a uma alusão metafórica à descrençae ao paganismo. Por outro lado, Cristo, nascendo entre pastores,será, como David, o grande Pastor dos homens. “Não tenhammedo!”, diz-lhes o anjo num cântico (Lc 2, 9), exortação retomada emundialmente celebrizada por João Paulo II, que antes de ser Papafora arcebispo de Cracóvia, a cidade dos presépios

    resplandecentes.

    Os Reis Magos

    Dos Reis Magos muito se poderia dizer,começando pelo facto de, segundo diversosexegetas, a sua presença não ser essencial àapreensão do Natal e seus mistérios (cf., porex., Jean Daniélou, op. cit ., p. 105). Contudo,

    o facto é que o Evangelho de Mateus refere os“sábios de Oriente” que vêm prostrar-se aospés de uma família humílima, a querecusaram hospedagem no caminho paraBelém, um dado muito expressivo eparadoxal, como sublinha o Evangelho de São

    João: “Veio para o seu próprio povo, que não o quis receber” (Jo 1,11). “Nom tendes cama bom jesus não / non tendes cama senão nochão (…) / non tendes cama senão de feno ”, dizia um poeta

    português anónimo do século XVI. De facto, a Sagrada Família tevede buscar refúgio num estábulo. A palavra “presépio” deriva do latimpraesepe , cujo significado básico é “estábulo” ou “curral”, sendocomposta pelo prefixo prae   (“diante”) e pelo substantivo saepes  (equivalente a “lugar fechado”, o que produziu a palavra “sebe”). Opresépio só existe quando terceiros se encontram diante da cena daNatividade, que perante eles se apresenta — ou representa —teatral e cenicamente. Os Reis Magos não serão imprescindíveispara compreender a Natividade mas, juntamente com os pastores,

    afiguram-se essenciais para que exista “presépio”, tal como este édesignado em castelhano, português ou italiano (em alemão, a

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    palavra “Krippe ” denominava apenas a manjedoura, à semelhançade “crèche ”, em francês; a língua inglesa, curiosamente, não temuma expressão para designar a representação figurativa daNatividade).

    A comitiva dos Reis Magos foi variando com o tempo. Chegaram aser 12. Um decreto papal do século V, apoiando-se numa homilia deLeão Magno, fixou definitivamente em três o número dos sábios doOriente. E se, de acordo com a interpretação agostiniana, amanjedoura equivale metaforicamente à mesa de Deus, para a qualtodos são convidados, a tradição tomou os magos como reis detodos continentes então conhecidos — África, Ásia, Europa. Entreeles, encontra-se um rei negro, o que para diversos intérpretes,como Joseph Ratzinger, é sinal demonstrativo de que não hádistinção de raça nem de proveniência no reino de Jesus Cristo. Napaleta de Vasco Fernandes e Francisco Henriques, a Adoração dosReis Magos   (1501-1506) apresenta mesmo, em vez de um negro,um índio de terras de Vera Cruz, da etnia tupinambá. Num registomenos surpreendente, até vulgar em representações barrocas, oPresépio da Madre de Deus, em Lisboa, atribuído ao escultorAntónio Ferreira, exibe quatro cavaleiros árabes, na peugada dossábios do Oriente. Também já se viu nos Magos a enunciação dasidades da vida: a juventude (Baltasar), a idade adulta (Gaspar) e avelhice (Melchior). No entanto, a ideia de que os Reis Magos teriamvindo de todos os continentes não se coaduna com aqueloutra,igualmente sustentada por Ratzinger, segundo a qual os magos(mágoi ) pertenceriam à casta sacerdotal persa ou, maisprecisamente, a um pequeno grupo de astrónomos que aindaexistiria na Babilónia e que teriam sido capazes de alcançar osignificado da conjunção astral dos planetas Júpiter e Saturno nosigno zodiacal dos Peixes, verificada nos anos 7-6 a.C., ou seja,

    naquela que é apontada como a verdadeira data do nascimento deJesus.

    A atribuição aos magos do título régio não coloca particularesproblemas se, uma vez mais, for lida em articulação com elementosextraídos do Antigo Testamento, nomeadamente o Salmo 72 (“Osreis de Társis e das ilhas oferecerão tributos, / os reis de Sabá e deSeba mandarão presentes! / Todos os reis se curvarão diante dele; /todas as nações o servirão!”) e a passagem de Isaías 60 sobre anova Jerusalém: “E os reis serão atraídos para o esplendor da tua

    aurora.” No entanto, ao resolver-se deste modo a questão darealeza dos magos, outro problema se suscita. O Salmo 72, como

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    se viu, alude aos reis de Társis, nome pelo qual os gregosdescreviam a primeira civilização do Ocidente (Tártassos), a que osromanos chamavam Tartessus, localizada na actual Espanha, numtriângulo formado na costa sudoeste da Península Ibérica e que

    hoje envolve as províncias de Huelva, Sevilha e Cádiz. Há quemassevere que este território civilizacional abrangia também oAlgarve, as margens do Guadiana e até do Tejo. Poderemos suporque um dos Reis Magos era algarvio? Não. Os sábios queadoraram Jesus vieram de Oriente; a alusão à mais ocidental dascivilizações então conhecida destina-se tão-só a sublinhar avastidão do domínio do Messias ou, noutra perspectiva, ouniversalismo da sua mensagem, patente no cântico jubiloso deSimeão: “Já vi com os meus olhos o Salvador que enviaste para

    todos os povos” (Lc 2, 30-31).

    Ao menino de Belém, os Magosoferecem ouro, incenso e mirra, bensdecerto supérfluos para o agregadofamiliar de um carpinteiro da Galileia,mas cujo alcance se descortina, umavez mais, no Velho Testamento, nos jácitados Salmo 72, 10-12 e Isaías 60, 5.Segundo a tradição da Igreja, o ouroapontaria para a realeza de Jesus, oincenso para o Filho de Deus e a mirrapara a Paixão e seus mistérios. Naverdade, irrompe aqui, novamente, a

    polaridade entre o nascimento e a morte de Cristo, pois oEvangelho de João refere que, para ungir o corpo de Jesus,Nicodemos trouxe, entre outras coisas, como perfumes e aloés,

    uma grande quantidade de mirra (Jo 19, 39).Vindos de distintas origens, os Reis Magos chegaram a Jerusalém13 dias depois do nascimento de Jesus. Feita sem paragens ouinterrupções, numa caminhada em que todos, incluindo os animais,nada comeram ou beberam, a viagem, aos olhos dos Magos,pareceu ter sido realizada num só dia. No Livro dos Reis Magos ,escrito na segunda metade do século XIV pelo monge carmelitaJoão de Hildesheim, diz-se que “muitos se espantam pela rapidezda viagem”. Logo de seguida, o frade acrescenta que, se para tudo

    existisse uma explicação racional, a fé seria desnecessária. Naverdade, muito do que se lê nos Evangelhos não é compreensível à

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    luz da razão. Por exemplo, não se percebe o motivo pelo qualHerodes mandou matar todas as crianças até à idade de dois anos:teria demorado tanto tempo a aperceber-se de que os Reis Magos oenganaram?

    O tempo da Natividade não é, decididamente, o tempo dascronologias — como o demonstra, desde logo, a inaudita velocidadecom que os Reis Magos e os seus exércitos chegaram à gruta deBelém. A propósito de outro trecho dos Evangelhos, há quemdistinga o tempo cronológico do tempo da revelação. Diz-se que háo tempo da acção, por um lado, e o tempo das personagens, poroutro; e que, sendo a narrativa uma operação sobre o tempo, anarrativa vocacionada para as personagens é diferente da que tempor objecto a acção (cf. José Tolentino Mendonça, A Construção deJesus. A Surpresa de Um Retrato , 2004, pp. 164ss). É também issoque ocorre, e porventura com ainda maior intensidade, nos“evangelhos da infância”, não sendo ao acaso que, na peça deShakespeare, o príncipe Hamlet proclama que “o Natal é temposanto e cheio de graça”. Na verdade, o Natal desperta um temposuspenso, adormecido, em que a febril actividade humana é alvo desúbita paragem e momentânea pausa. Com o frio lá fora, ao lumeda lareira antiga, os homens dão tréguas a si próprios e ao vaziotrepidante em que vivem. Durante uns dias, ou um par de horas, oritmo abranda, no convívio festivo com os entes mais queridos oupróximos. A alegria transbordante aparece sempre, seja de formareal ou simulada, serena ou ruidosa. Suspendem-se os conflitos eas inimizades, pensa-se nos que estão distantes e sós, tudo nosserve de pretexto para o doloroso recordatório de natais pretéritos,os da meninice — e para a saudade dos que já partiram. A “Tréguade Natal” de 1914, quando espontaneamente, dos dois lados dastrincheiras, os soldados alemães e britânicos decidiram largar as

    armas e, em vez de tiros, trocar entre si saudações festivas,cânticos natalícios — e até presentes! — comprova o poderapelativo da Noite Santa, a sua enorme força simbólica. AWeihnachtsfrieden   ou Christmas truce   da Primeira Guerra é tãointrigante como a caminhada dos Reis Magos, só sendo explicávelno quadro do tempo suspenso que caracteriza a Natividade e seusmistérios.

    A nuvem

    Não há mistérios sem nuvens. E a nuvem, espessa e poderosa, láaparece nos Evangelhos. Na Anunciação, Gabriel diz a Maria: “O

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    Espírito Santo descerá sobre ti e o poder do Deus altíssimo tecobrirá com uma nuvem” (Lc 1, 35). A nuvem sagrada — a shekinà  — assinala a presença de Deus, ao mesmo tempo que o esconde.Ela surge, luminosa mas ameaçadora, em diversas passagens do

    Livro do Êxodo. Quando o povo de Israel marchou para o deserto,conduzido por Moisés, foi orientado, de dia, por uma coluna denuvens e, de noite, por uma coluna de fogo (Ex 13, 21-22); aochegarem ao Sinai, uma “espessa nuvem” cobriu o monte (Ex 19,16); então, Deus ordenou a Moisés que subisse o monte, quepermaneceu coberto pela nuvem durante seis dias; ao sétimo dia,do interior da nuvem, o Senhor chamou Moisés, que entrou nanuvem, subiu ao monte e aí esteve 40 dias e 40 noites (Ex 24, 15-18). No Novo Testamento, a nuvem reaparecerá num dos

    momentos cruciais e mais carregados de mistério, a Transfiguração.Quando Jesus leva Pedro, João e Tiago a um monte, para orarem,uma nuvem passa por cima deles e os discípulos ficaram cheios demedo. “Da nuvem saiu então uma voz, que dizia: ‘Este é o meuFilho querido. Escutem o que ele diz’”, um relato presente nos trêssinópticos (Mt 17, 5; Mc 9, 7; Lc 9, 35).

    Escutemos, pois, o que nos dizem os filhos de Deus — Cristo etodos os homens. Crentes ou não-crentes, devemos, acima de tudo,reconhecer a inquestionável verdade poética das narrativasevangélicas da Natividade (cf. Frederico Lourenço, O Livro Aberto:Leituras da Bíblia , 2015, p. 40). Eis uma mensagem que tambéminterpela a Igreja, devendo lembrar-se que a última obra a sercolocada no Índex, antes de este ser abolido, foi o livro Vie de Jésus  (1959), de um notável biblista francês, Jean Steinman. A sua leiturafoi proibida devido ao capítulo dedicado aos “evangelhos dainfância”, o que prova que estes são uma questão muito mais sériado que uma mera fábula com burros e vacas ou uma historieta

    fantasiosa que ciclicamente, todos os anos, emerge e sinaliza a“quadra natalícia”, à semelhança do frenesi das compras ou dasmortes nas estradas.

    Afinal, feliz

    Há poucas semanas, em finais de Novembro, uma mãe emdesespero deixou o seu filho recém-nascido na manjedoura de umpresépio montado numa igreja de Queens, em Nova Iorque. Apolícia conseguiu localizar a mulher, que disse estar convicta deque na igreja cuidariam melhor do seu bebé do que ela. A criança,um rapaz, estava embrulhada numa toalha, trazendo ainda consigo

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    resquícios do cordão umbilical. Segundo os jornais, a mulher nãoserá processada criminalmente, uma vez que a legislação vigenteno estado de Nova Iorque permite que os pais de crianças commenos de 30 dias as deixem ao cuidado de outrem ou as

    abandonem numa suitable location , um “lugar apropriado”. Nestecaso, o lugar tido como “apropriado” por uma mãe em desespero foiuma igreja do bairro de Queens. Mais precisamente, a Igreja doMenino Jesus.