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MITHISTÓRIA Francisco Murari Pires Arquivo Upado por MuriloBauer - FileWarez

Mithistória

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MITHISTÓRIA

Francisco Murari Pires

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Humanitas FFLCH/USP – junho 2001

USP – UNIVERSIDADE DE SÃO PAULOReitor: Prof. Dr. Jacques MarcovitchVice-Reitor: Prof. Dr. Adolpho José Melfi

FFLCH – FACULDADE DE FILOSOFIA,LETRAS E CIÊNCIAS HUMANASDiretor: Prof. Dr. Francis Henrik AubertVice-Diretor: Prof. Dr. Renato da Silva Queiroz

VENDAS

LIVRARIA HUMANITAS-DISCURSO

Av. Prof. Luciano Gualberto, 315 – Cid. Universitária05508-900 – São Paulo – SP – BrasilTel: 3818-3728 / 3818-3796

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FFLCH/USP

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MITHISTÓRIA

Francisco Murari Pires

São Paulo, 1999

PUBLICAÇÕESFFLCH/USP

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO • FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

ISBN 85-86087-68-8

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Editor ResponsávelProf. Dr. Milton Meira do Nascimento

Coordenação editorial e capaM. Helena G. Rodrigues

DiagramaçãoAntonieta Caputo

RevisãoMauro de Queiroz

HUMANITAS PUBLICAÇÕES FFLCH/USP

e-mail: [email protected].: 818-4593

Copyright 1999 da Humanitas FFLCH/USP

É proibida a reprodução parcial ou integral,sem autorização prévia dos detentores do copyright

Serviço de Biblioteca e Documentação da FFLCH/USPFicha catalográfica: Márcia Elisa Garcia de Grandi CRB 3608

P744 Pires, Francisco MurariMithistória /Francisco Murari Pires. – São Paulo: Humanitas

Publicações / FFLCH / USP, 1999.

476 p.

ISBN 85-86087-68-8

1. História antiga 2. Mitologia grega 3. Literatura grega4. Historiografia 5. Tucídides I. Título

CDD 930907.2

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Para Iliana, Paulo, Ivan e Adriana

“Histórias duram mais que homens, pedras mais que histórias,estrelas mais que pedras. Mas mesmo as noites de nossas es-trelas têm limites e com elas passará esta história modelo parauma terra há muito morta.

...................................................

ser a história que eu conto àqueles com olhos para ver e com-preensão para interpretar; despertá-la sempre e saber que nos-sa história jamais será interrompida, mas recontada a cadanoite, enquanto homens e mulheres lerem as estrelas”.

(John Barth, Quimera).

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Sumário

Apresentação ---------------------------------------------------------------------9

I. As Graias: a vigia do acontecer e a história do acontecimento ---- 13

II. A condição humana, entre o Sputnik e Prometeu ------------------- 35

III. Ájax, Atena e os (des)caminhos da métis ----------------------------- 51

IV. O melhor dos aqueus ----------------------------------------------------- 79

V. Menelau, o Herói Segundo -------------------------------------------- 107

VI. Édipo e (o enigma d)a visão das idades----------------------------- 129

VII.História e epopéia, os princípios da narrativa ---------------------- 147

1. Axiológico (a questão da grandeza)------------------------------- 151

2. Teleológico (a questão do valor-utilidade) ----------------------- 181

3. Onomasiológico (a questão do sujeito) -------------------------- 205

4. Metodológico (a questão da verdade) ---------------------------- 235

5. Arqueológico (a questão do início) eEtiológico (a questão da causa) ---------------------------------- 273

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VIII. A retórica do método (Tucídides I.22 e II.35)---------------------- 277

IX. Memórias tucidideanas ------------------------------------------------- 293

Acasos e anomalias da guerra ---------------------------------------- 293

Péricles e Cleonte, democracia e demagogia----------------------- 341

X. Leituras da Athenaíon Politeía ---------------------------------------- 385

Perda e redescoberta --------------------------------------------------- 385

Estruturalismos (J. J. Keaney) ----------------------------------------- 409

XI. Leões alados e círculos triangulares ---------------------------------- 433

Referências bibliográficas --------------------------------------------------- 464

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Apresentação

Mythhistoricus: assim Francis M. Cornford condensou, já no título, osentido de sua obra acerca da historiografia tucidideana (Thucydides Myth-historicus, 1907). Tucídides se dispusera a narrar a história da Guerra doPeloponeso, a relatar os acontecimentos bélicos em sua seqüência fatual. Emesmo teorizara, a melhor fundamentar as ambições de veracidade deseu relato, os princípios de método de sua apreensão reconstituidora pelanarrativa. Conseqüentemente, pretendia inaugurar a história opondo-a àpoesia épica, especialmente homérica, pela recusa do primado do mito deque ele agora denunciava as limitações de um deficiente (des)apego àverdade dos fatos.

Todavia, prisioneiro de seu tempo, instruído por suas categorias epadrões de pensamento, sua obra fora vitimada por verdadeira peripéciairônica afim dos destinos trágicos, pois Tucídides, insciente mas inexoravel-mente, acabou por conformar as proposições de sua história no e peloquadro do pensamento mítico, mais especialmente herdado por meio deseu desdobramento dramático esquileano. Assim, da história da Guerrado Peloponeso, contada por meio dos episódios da campanha de Pilos, dodiálogo de Melos e da expedição à Sicília, resultara uma tragédia de Ate-nas, de que se vislumbravam os desvios hibrísticos de ambições imperiaisdesmedidas, infladas em sua avidez de ganhos por golpes inesperados desorte próspera, logo, entretanto, revirada em infortúnio conseqüente à per-da de lucidez racional, porque agora a cidade errava em suas decisões.

Por aquela apropriada invenção onomástica, com que fundira para-doxalmente história com mito, Cornford anunciava a intriga provocativade sua obra, a qual respondia por uma teleologia hermenêutica precisa-

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mente circunscrita aos debates intelectuais de sua época. Integrante, juntocom Gilbert Murray e Albert C. Cook, do grupo de helenistas, que posteri-ormente se convencionou denominar os Ritualistas de Cambridge, e quetinha em Jane E. Harrison seu pólo ordenador (a quem, aliás, o Mythhisto-ricus era dedicado), Cornford investia seu ataque contra a orientaçãohegemônica do helenismo erudito e acadêmico europeu, que celebravaexclusivamente as glórias racionais do classicismo grego. Tucídides, dadopor uma de suas maiores expressões, revelava-se, pela leitura de Cornford,em sua face reversa por modos arcaicos, por raízes míticas, ainda persisten-tes de emotividades, quem sabe, irracionais.

Tese, em 1907, se não atrevidamente herética, certamente de ousa-dia heterodoxa. Destino de ajuizamento crítico logo confirmado por varia-das refutações e recusas do mundo acadêmico que, sucedendo-se pelonosso século, decidiram desconsiderar seus vislumbres inovadores. O pesoda autoridade historiográfica moderna, que identificava em Tucídides umade suas colunas clássicas, persistia vigoroso. Só mais recentemente, ao pas-sar do fluxo acelerado de mutações e avatares dos paradigmas epistemoló-gicos de nossa época, retomaram-se as contribuições hermenêuticas dosRitualistas de Cambridge, de modo a, agora, dispensar uma melhor consi-deração por que possamos apreciar o Mithhistoricus.

A coletânea de ensaios que ora apresentamos presta homenagem aCornford, tomando de sua criatividade a inspiração onomástica intitula-dora da obra. Assim apropriado o título, a obra investe em suas perspec-tivas de uma hermenêutica da historiografia grega clássica, antes situan-do suas significações contra e pelo horizonte de suas ambivalentes heran-ças míticas, mais especialmente homéricas, do que projetando-as contrae pela identificação das categorias do moderno pensamento historiográ-fico. Todavia, para nós, apropriação (des)provida de apenas frágil alcan-ce teleológico, que não propriamente o de uma tese estruturada em en-cadeamentos de uma trama argumentativa como a de Cornford, a suce-der seus desdobramentos à maneira do mito trágico, recomendado pelaPoética aristotélica. Assim, coletânea de ensaios apenas justapostos, e

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mesmo em ordem seqüencial antes arbitrária, a lembrar mais uma arquite-tura labiríntica em que anexos se sucedem, se reformam e se interconectam(ou não) consoante às renovadas e ampliadas necessidades das voltas deuma trajetória histórica, todavia não terminada, em andamento. Por vezesos nexos de trânsito entre eles aparecem, mas não alinhavam um fio deAriadne. Como no ciclo do mito das Graias, que o tampo de uma pyxisateniense figura em disposição circular, e como na não menos bela(re)criação literária do mesmo por John Barth, projeta-se uma (inter)açãoentre mito e história, em que a seqüência hermenêutica inaugurada peloque se observa na visão do passado, comunicada pelo que se conta pormeio da narrativa do presente e finalizada pelo que se sabe com a medita-ção do futuro, amolda-se à circularidade de modo a retomar o princípiopelo fim, o passado pelo futuro, e assim figurar um ponto presente nocírculo. E interação que assim pretende reatualizar as imagens do passadono futuro de nosso presente histórico através do delicado artesanato histo-riográfico de sua (re)composição por cenas narrativas em que transparecemos focos de nitidez delimitados pelos alcances de nossa acuidade críticacontra os apagamentos e brancos dispostos pelas figurações memorizadas.

Para essa trajetória investigativa, de que agora publicamos os pri-meiros resultados, contamos com os auxílios financeiros de Bolsas de Pes-quisa com que o CNPq a tem acompanhado. A FAPESP proveu-nos osrecursos para nossa estada de atualização bibliográfica junto à FondationHardt pour les Etudes Classiques (Genebra), entre maio e junho de 1997.Somos também gratos ao Museu Arqueológico Nacional de Atenas quenos concedeu a autorização de uso da cópia fotográfica que ilustra nossacapa na qual figura-se o encontro de Perseu com as Graias (inv. 1291).Haiganuch Sarian e Ulpiano Toledo Bezerra de Menezes, por zelos ami-gos, viabilizaram a obtenção da foto.

Nossas investigações em alguns destes ensaios, em estado de hiber-nação por volta de 1997, foram especialmente revitalizadas por fins doinverno e inícios da primavera (setembro) graças a um instigante curso depós-graduação ministrado na Universidade de São Paulo, Departamento

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de História, por François Hartog, a cujas preciosas reflexões hermenêuticasaliadas aos encantos de aprimorada arte narrativa certamente devemos oredespertar de nossos trabalhos.

Jandira Albuquerque de Queiroz, Selma Mª. Consoli Jacintho e MariaHelena Gonçalves Rodrigues dispensaram os melhores cuidados por com-petentes esforços para que Mithistória fosse aprimorado em sua composi-ção final, quer revisando o texto quer concebendo graficamente a obra.

Iliana dedicou-se, como mais outra manifestação de amor, a pacien-temente empreender a primeira revisão de todos os textos, zelando porsanar seus vícios maiores de redação e de problemática inteligibilidade,todavia por demais renitentes em suas impregnações tucidideanas mimeti-zantes. A ela esta obra é especialmente dedicada como pequeno géras degratidão retributiva.

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I. As Graias: a vigia do acontecer e ahistória do acontecimento *

Perseíada1

O tempo passara, duas décadas. O desgaste dos anos alcançaraPerseu, já quarentão, gordo, inícios de calvície, juntas enferrujando. Terrí-vel tédio de administrar um reino ordeiro, que se regia sozinho. Por máxi-ma excitação de aventuras, as caçadas de coelhos!

A existência, agora, reduzira-se a mesquinharias de convivência do-méstica. Já rebeldia dos filhos. Mas, sobretudo, as mazelas do casamento.O atrito dos anos desgastara a paixão. Perseu e Andrômeda eram só brigase desavenças, plenas de discussões e bate-bocas, provocações irritantes emútuas desfeitas.

Prisioneiro de sua obra heróica, Perseu usufruía a autoridade régiaem apenas aprisionar, todas as noites, uma assistência cativa, a aborrecê-lacom as histórias de sua vida. E, perdido nessa história, acossado pelasserpentes do passado, o herói estava se petrificando, destino de reversaironia para quem decepara Medusa, assim passando, agora, de agente avítima desse efeito.

Então, novo percurso da antiga rota, repassando e refazendo os en-contros da trajetória heróica original. Perseu e Andrômeda, náufragosrixentos agarrados à velha arca, revivem a exposição primeva. Em Sérifo,

* Primeiro publicado em Revista Brasileira de História, 15 (1995): 29-46.1 Remontagem abreviada do conto de John Barth, incluído na coletânea de Quimera.

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as figuras se duplicam: Perseu é também novo Polidectes, Andrômeda énova Dânae, e Dânao-Dictis, o novo Perseu. Duplicação que prossegue naestada em Samos, no templo de Atena, lugar das instruções da deusa:nova Medusa, de agora ação reversa, a transformar pedra em carne, emvez de vice-versa. Inicia-se a sedução, agora por Perseu, novo Posídon.Depois, entrevista com as Graias desarmadas, revertendo o estilo da ação,direta ao invés de indireta, mais passiva que ativa, com resultado tambémcontrário, a recuperar e devolver o olho das Cinzentas Senhoras. E, porfim, não mais ir à busca de Medusa, mas, sim, ser por ela encontrado e,pelo encontro, inverter seu sentido, a agora efetivar mesmo o amante aoinvés do destruidor. Então, reversão da obra decepadora, a desvendar acabeça velada, selando união amorosa. Obra de reversão do heroísmo,despetrificadora, a terminar a segunda etapa de uma vida mortal, gerandonovo homem!

Então, fim bem realizado pela (i)mortalidade de destino estelar(in)finito.

E, assim, (velho) Perseu, o herói é só memória, bem fixada sua his-tória por cenas murais, painéis de templos marmóreos, que narramalabastralmente os vários capítulos de dourada juventude voadora, plenoobrar de desempenhos virtuosos.

Um deles, o sexto, retratava sua visita às Graias:

“Meu primeiro trabalho, então, claramente talhado no quarto painel, tinhasido apressar-me de Samos para o Monte Atlas, onde o trio caduco estavanos seus tronos, olhando para tudo em volta, de costas uma para a outra,ombro a ombro como num vil triângulo. A uma pequena distância do seuvértice mais próximo (que por acaso ficava entre a terrível Dino e Péfredo,a do ferrão), escondi-me atrás de uma moita de sarça para fazer um reco-nhecimento e logo deduzi, considerando o único olho e dente que parti-lhavam, seu modus normal de circulação. As coisas iam da direita para aesquerda, olho antes do dente antes de nada, num tipo de ritmo assim:Péfredo, digamos, cega e muda, ficava sentada com as mãos no colo en-quanto Dino à sua direita, usava o olho o bastante para perscrutar seusetor e Ênio, à sua esquerda, o dente o suficiente para dizer ‘Nada’. Então

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com sua mão direita, Péfredo tomava o olho da mão esquerda de Dino,encaixava-o no lugar e esquadrinhava, enquanto Dino com sua direitatomava o dente da mão esquerda de Ênio, enfiava-o no lugar para dizer‘Nada’ e passava-o para Péfredo, que passava o olho para Ênio, colocavao dente e dizia ‘Nada’. Assim o relatório se seguia à observação e a medi-tação ao relatório, exceto quando (conforme soube alguns momentos de-pois) ao menor alarme qualquer uma das encarquilhadas senhoras pode-ria, com um toque de ombro, pedir o que qualquer uma das outras estives-se usando. Então, depois de entender o ciclo, eu me aproximei num volteiocauteloso, mantendo sempre à ré o olho, no vértice entre o relator e omeditador; mas quando rocei um seixo com o pé, Ênio, no momentocego, sua mão direita estendida para pegar o olho de Péfredo, deu umtapa em Dino para dar a ré e apanhou o dente também! Joguei-me à suadireita, em Péfredireção no momento em que ela encaixava o órgão; quan-do estava com o dente para gritar ‘Alguma coisa’, Péfredo me ouvira aseus pés e com um tapinha pediu o olho a Dino, ao mesmo tempo esten-dendo a mão à direita para o dente-da-sua-vez. Dino, não podendo res-ponder que já tinha devolvido o dente para Ênio, deu tapas nas duasdireções; Ênio, recebendo dois tapas, se atrapalhou com as mãos, dando aPéfredo o olho e a Dino o dente; eu mergulhei sob os tronos para o centro;todas deram tapas em todas; olho e dente saltavam em torno, emcontracírculos, mas não chegavam a ser colocados por nenhuma delas,pois eram duplamente exigidos antes. Enfiando com destreza, num certomomento, minha mão direita entre a idem de Dino e a esquerda de Ênio,eu interceptei a posse do olho; nenhum problema então, quando Péfredotentou colocar o inflexível incisivo na gengiva, simplesmente passar porcima do seu ombro e extraí-lo. O painel mostrava-me segurando ambostriunfalmente no alto, enquanto as gritantes Gréias se debatiam, se espar-ramavam e grasnavam em vão, como garças aleijadas”.2

O ciclo das Graias

Na recriação de Barth, o mito das Graias compõe um modo dedisposição de vigia voltada para captar o instantâneo do acontecer, segun-

2 J. Barth. Quimera, p. 56-7.

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do configuração sincrônica de ações perscrutantes a apreender essa fugazrealidade fenomênica. Assim, a disposição espacial de seus tronos e cor-pos, figurando vil triângulo, conforma uma vigia setorizada, a impor umadependência de complementaridade, que bem abarque a totalidade docampo de manifestação do acontecer.

Outra dependência de complementaridade também se impõe paraessa vigia, agora suposta pela sua disposição instrumental: o único olho edente que partilham em rodízio. Pelo olho, enquanto capacidade orgânicade percepção visual, operam a apreensão fenomênica do acontecimento.Pelo dente, enquanto capacidade orgânica de comunicação discursiva,operam seu relato enunciativo. De modo que tem-se três sujeitos a vigia-rem o acontecer, mas apenas duas capacidades ativas de vigia – perceptivae comunicativa –, a impor, necessariamente, um sujeito (in)ativo, o queconfigura, então, singular estado de (in)ação em (medit)ação.

Tais dependências de complementaridade da vigia sincrônica impli-cam mais outra, disposta agora temporalmente, a conformar a vigia dia-crônica, que apreende a realidade duradoura do acontecimento, historica-mente memorizada.

E assim, por tal norma de circulação da ação vigilante, ordena-se ahistória do acontecimento, bem dispondo:

1. O Princípio da Vigia, efetuado pela (ação de) visão, a fundar arealidade do acontecimento como percepção. De modo que a percepçãoinaugura o acontecimento e funda sua realidade. A prioridade, pois, deuma percepção o assinala, a determinar a História enquanto Passado;

2. O Meio da Vigia, efetuado pela (ação de) comunicação, publica arealidade do acontecimento como narrativa, de modo que esta, ao relatá-lo, disponibiliza sua realidade fatual. A derivação, pois, de uma narrativa oassinala, a determinar a História enquanto Presente;

3. O Fim da Vigia, efetuado pela (ação de) meditação, reflete a rea-lidade do acontecimento como saber. Então, o saber finaliza o aconteci-mento, bem deliberando sua realidade e, conseqüentemente, orientando a

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ordem da ação seguinte. A prescrição, pois, de um Saber o assinala, adeterminar a História enquanto Futuro.

Então, concebido o ciclo da vigia do acontecer dotado de extensõestemporais por ações que delimitam durações, tem-se a modalidade huma-na de historiar a realidade do acontecimento, ordenando seqüencialmenteo ciclo de percepção, narrativa e saber em desdobramentos de Passado,Presente e Futuro.

Então, concebido o ciclo da vigia do acontecer isento dos gravamesda temporalidade, de modo a indissociar sincronia de diacronia, tem-se amodalidade divina de mitificar a realidade do acontecimento, a bem(con)fundir Fim com Princípio em Meio, e Futuro com Passado em Pre-sente.

A sentinela

Agamêmnon, comovido às lágrimas, saudava regozijante seu regresso:nem bem tocara o solo descendo da nau, beijou o pátrio chão.

“Mas, de sua vigia, a sentinela o viu, lá postada

por ação de Egisto ardiloso, que lhe prometera salário

de dois talentos de ouro. E guardava já por um ano,

não viesse o que chegava escapar-lhe, e recordasse a

valentia vigorosa.

E correu ao palácio a noticiar ao pastor de povos.

De imediato, Egisto meditou doloso recurso.

Separou, dentre o povo, vinte homens, os melhores,

armou emboscada, e do outro lado ordenou os preparativos

do banquete.

Depois, a chamar Agamêmnon, pastor de povos, ele foi

com seu carro e cavalos, ofensas a maquinar”.3

3 Homero. Odisséia, IV.521-531 (grifos do autor).

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Assim, já Homero diz a concepção tríptica de ações que seqüenciama vigia do acontecer.

As Graias

Quem primeiro diz das Graias, as Velhas, é Hesíodo. Conhece duas,nomeadas Penfredo e Ênio. Ésquilo supõe três, sem nomeá-las. Ferecides,a quem provavelmente Apolodoro segue, menciona todas, dando tam-bém o nome da terceira: Dino. Já Ovídio diz apenas duas irmãs.4

Geradas da união de Fórcis e Ceto, prolífica em seres monstruosos,elas são chamadas Fórcides. Participam, então, da linhagem de Póntos(Mar), pois este, acasalado à própria mãe, gerara aqueles progenitores.

Hesíodo adjetiva-lhes a aparência graciosa de encantos femininos:elas têm “belas faces”, atributo que qualifica igualmente a mãe, Ceto;Penfredo tem “véu perfeito”, e Ênio tem “véu açafrão”. Já Ésquilo conce-be-as com “formas de cisne“, dotadas de um só olho comum e de umúnico dente. Deformidade esta que os relatos de Ferecides e de Apolodorotambém consagram: as três tinham apenas um olho e um dente, cujo usoelas partilhavam em rodízio. Outros – Ovídio, Higino e Nonnos – falamsomente do olho.

Todos, “deuses imortais e homens caminhantes da terra”, diz Hesíodo,identificam-nas como Velhas: “grisalhas de nascença”. Ésquilo assim tam-bém as define, dizendo fórmula similar: vetustas virgens.

As Graias habitam, diz Ésquilo, a “Gorgonéia Planície de Cistene”, aque se chega atravessando o mar e cruzando o fluxo limite dos continen-tes, lá onde “nem o sol contempla com seus raios, nem a noturna luajamais. Perto delas estão as três irmãs aladas vestidas de serpentes, asGórgonas, aos mortais hediondas: homem nenhum que as vir terá alento”.E do sítio das Graias para o das Górgonas, diz Ovídio, caminham “sendas

4 Hesíodo. Teogonia, 270-3; Ésquilo. Prometeu Prisioneiro, 791-800; Apolodoro. Biblio-teca, II.4.2; Ovídio. Metamorfoses, IV.774-9.

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ocultas e rotas secretas, por meio de rochedos eriçados de florestas escar-padas”. Então, região de confins do extremo ocidente, pela Líbia: ao sopédo Atlas, ou mesmo no Jardim das Hespérides, confundidas com elas, ouainda junto ao lago Tritônio.

Das tramas que tecem os mitos, as Graias participam daquelas queenredam na história de Perseu a figura de Medusa. Obra inaugural de seupercurso heróico: trazer a Polidectes, rei de Sérifo, a cabeça da Górgonamortal. Mas a direção dos deuses, a quem o herói é caro, favorece o em-preendimento, quer guiando-lhe o percurso, quer dispondo-lhe os recur-sos, quer instruindo-lhe os modos da ação heróica. Atena entrega-lhe brôn-zeo escudo, polido como espelho, onde pudesse refletir a imagem daGórgona, assim evitando sua funesta mirada petrificante. Hermes cede-lhefoice adamantina, com que decepar a cabeça monstruosa.

Mas, o herói teria ainda que munir-se de mais artefatos: sandáliasaladas, para os vôos de tão longínqua viagem (de ida, a alcançar e, devolta, a fugir das Górgonas); um alforje especial – kíbisis –, em que guardara horrenda cabeça; e o elmo da invisibilidade de Hades, a lhe resguardar afuga, ocultando-a da perseguição das terríveis irmãs imortais de Medusa.

Para ir defrontar-se com as Górgonas, Perseu teria antes que passarpor suas irmãs, as Graias. Isto porque, diz Ferecides (e também Apolodoro),só elas conheciam os caminhos que levavam às Ninfas, de cuja posse esta-vam as sandálias, o alforje e o elmo necessitados pelo herói. Já Higino eEratóstenes, remetendo-se ao que Ésquilo contara nas Fórcides, afirmamcomo a razão dessa passagem pelas Graias o fato de estas serem as guar-das avançadas das Górgonas, sentinelas que vigiavam e defendiam as viasde acesso às suas horrendas irmãs.

Assim, Perseu foi ter com as Graias. Ferecides e Apolodoro narramsucintamente o encontro. Perseu subtraiu-lhes o olho e o dente que entreelas circulavam. Elas, surpreendidas, suplicam sua devolução. O herói ad-mite que os detém, mas só os restituiria caso elas lhe revelassem o caminhoque conduzia às Ninfas. Elas o indicaram, e Perseu, devolvendo-lhes oolho e o dente, prosseguiu então para as Ninfas.

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Já no relato de Eratóstenes, Perseu, quando encontra as Graias, estáplenamente armado: obteve o elmo e as sandálias de Hermes e a foiceadamantina de Hefesto (assim o dissera Ésquilo nas Fórcides). Mas, domi-nar as Velhas para livrar a passagem para as Górgonas exigia do heróiinativar-lhes a ação de vigia e guarda, em apossando-se das defesas comque elas as realizavam: o olho e o dente comum por que as operavam emrodízio. Perseu assim o fez, recorrendo a manobras astuciosas. “Às escon-didas, graças a um hábil ardil, no momento em que uma o transmitia àoutra, substituindo sua mão pela mão estendida da Graia”, Perseu apode-rou-se do olho, diz Ovídio. Ao rastejamento furtivo de doloso campeão, oqual embosca, com palma cava e punho ladrão, a captura do olho erranteda Fórcide insone, alude Nonnos nas Dionisíacas5, assim menosprezandoo feminino modo de combate de Perseu, o qual não se pode equiparar aosfeitos de Bakchos, o herói por ele celebrado. Então, vencidas as Velhas, oherói atirou o olho ao lago Tritônio, prosseguindo agora para as Górgonas.Desarmadas, em aflitivo desespero, quedaram para sempre as Graias emcena fixada pelos ceramistas.6

E, das Graias, não se diz mais.

Cenas figuradas em artefatos imaginaram instantes da trama mítica,delineando percepções da furtiva captura do olho das Graias por Perseu.

Em um espelho etrusco comparecem duas Graias, nominalmenteidentificadas: Ênio, já de posse do dente em sua mão esquerda meio fechadae baixa junto ao joelho, estende a mão direita levantada passando o olhopara Penfredo, ao passo que esta, também com o braço direito esticado e apalma da mão disposta para cima em concha, aguarda seu recebimento.Perseu aparece já trajado de recursos e armas: a foice segura pela mão es-querda, o kíbisis dobrado no mesmo braço, as sandálias aladas nos pés e umelmo de escalpo de lobo provido de asas. O herói, protegido por Atena queo guia pela retaguarda, projeta sua mão direita de permeio entre as das

5 Nonnos. Dionisíacas, XXV.61-65; XXXI.13-24.6 Oakley. 1988: 384.

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Velhas, pronto para interceptar a passagem do olho. Preenchem ainda acena um tritão e um par de golfinhos a comporem a paisagem marítima.7

Uma pyxis ática de figuras vermelhas apresenta as três Graias senta-das em um local rochoso. Compõe-lhes, pelos cabelos negros, uma apa-rência mais juvenil. Todas portam um cetro. A Graia do meio, por um lado,avança a mão para passar o olho para a Graia da direita, a qual aguardacom o braço esticado, palma da mão para cima; pelo outro lado, ela voltaa cabeça em direção da Graia da esquerda, a qual também lhe estende obraço, palma da mão para cima. Perseu – trajando gorro, túnicas e botasaladas, armado de duas lanças na mão esquerda – esgueira-se agachado,interpondo a mão direita no percurso de transmissão do olho entre as duasprimeiras Graias. Completa essa primeira cena a presença do movimentode Atena, que vêm à esquerda da última Graia, segurando um elmo coríntionuma mão e uma lança na outra. Outra cena preenche o restante da pyxis,compondo três figuras: no meio Hermes, assinalado pelo caduceu seguropela mão esquerda; ladeiam-no, sentado à esquerda, Fórcis, de cabelosalvos e portando um cetro, e de pé à direita, Posídon, assinalado pelotridente; golfinhos saltam ao redor lembrando a paisagem marítima.

Velhas

Já sua denominação comum, Graíai, nomeia o aspecto que bemdefine o seu ser mítico: Velhas, Anciãs.

Em Homero, graia e grays designam a figura da velha criada deprestimosos serviços e que goza da plena confiança de seus senhores. As-sim, é sob a aparência daquela velha serva, que lhe preparava finas lãs, ede quem Helena muito gostava quando ainda se encontrava na Lacede-mônia, que Afrodite se apresenta diante da amante de Páris: entendia adeusa que, graças a esta identidade de afeiçoada anciã, Helena confiar-se-ia a seus pedidos.8

7 Oakley. p.383-91; Beazley 1949: 8.8 Homero. Ilíada, III.383-389.

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No retrato homérico da figura da velha criada destaca-se especial-mente Euricléia, a solícita e fiel serva, primeiro de Laertes e depois deOdisseu, que dedicava valiosos préstimos aos senhores de Ítaca há longotempo, desde que, ainda jovem, fora comprada ao pai pelo preço de vintebois. Laertes mesmo a estimava igual à própria esposa, Anticléia. E esta,assim que acabara de dar à luz, confiou o filho, Odisseu, aos desveladoscuidados da serva. Euricléia, ama-de-leite do herói, o criou. Odisseu a temafetuosa e respeitosamente como mãe, ao que ela corresponde tendo-opor filho meu. É ela ainda que cuida, também prestimosa, de Telêmacodesde criança, reproduzindo com este novo filho as mesmas atenções dededicação materna, o que ele lhe retribui com iguais apegos de veneraçãofilial. Criada diligente, fiel, sensata e digna de toda a confiança. Assim,quando Odisseu, ainda sob disfarces de mendigo, aceita que lhe banhemos pés, desde que o seja por uma velha mulher, de prudente discriçãocultivada por sofrimentos de longa vivência, Penélope atende a seus recla-mos destacando para aquele serviço Euricléia, uma anciã que, observa afiel esposa, aloja ajuizados pensamentos em seu coração, e a quem, pois,ela podia plenamente confiar as reservas do banho do herói. Auras deafeto, respeito e virtuosidade envolvem a velha ama, senhora venerável,plena de sapiência prudente que a experiência idosa propicia.9

Então, a velhice, que a figura da graía homérica delineia, comportaaspectos benéficos associados a préstimos valiosos e a experiente sapiência.

Já outras significações, posteriores, associam graía a certas manifes-tações, que figuram a velhice pela retração da pele que constitui a mem-brana superficial dos corpos. Assim, diz Aristóteles, chamam-se graíai (ve-lhas) as crostas que se formam à superfície quando resfria a cevada cozida,fenômeno similar ao que ocorre com a pele humana que, comenta o filó-sofo, nada mais é do que carne superficial ressecada.10

9 Homero. Odisséia, I.425-444; XIX.335-360; 479-502; XXII.391-397.10 Aristóteles. Problemata, X.27.1; Geração dos Animais, II.6.26.

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Também graía (velha) é chamada a nata do leite, como aquela querepugnou a Menandro, recusando-se a bebê-lo quando, certa vez, ao bus-car conforto junto a Glacira, esta lho ofereceu hospitaleira. Mas a cortesã,não satisfeita com a recusa, replicou-lhe que bastava soprá-la, podendo,então, usar o que ficava por baixo, em maliciosa alusão a que ele não sedetivesse diante da aparência superficial desagradável da pele enrugadada velha – nata ou mulher –, pois o interior era ainda aproveitável.11

Graía, velha, diz-se ainda da pele humana de dobras formada emtorno ao umbigo.12

Igual concepção de repugnância associada à velhice polariza o ima-ginário que compõe, de modo impiedosamente sarcástico, a caracteriza-ção da figura da mulher velha. Já é assim a Cleobule de Arquíloco.

Graía é também aquela velha enrugada que, no Pluto de Aristófanes,sustentava generosamente o jovem amante em troca de gratos favores.Mas, o enriquecimento geral promovido pela divindade rompera esse laçoaprisionador de amantes, pois o jovem, agora não mais premido pela im-periosa necessidade, desobrigara-se de seus antigos serviços. Outrora, va-lorosas eram as milésias, com a pobreza fazendo-lhe comer de tudo; masagora, rico, não apreciava mais lentilhas, pelo contrário, desgostava-o avelha amiga, encanecida, cheia de rugas, por dentes tendo um molar só,borra bolorenta de vinho de que não mais beberia. E foi ela mesma, avelha, a incumbida de, no cortejo festivo que conduzia Pluto à acrópole,portar à cabeça o caldeirão de legumes cozidos. A visão da cena ensejou aCremilo o jocoso comentário: ocorria a estes caldeirões bem o oposto queaos de outrora, quando a velha (graía: a crosta ressecada do cozido) lhesficava por cima, pois que agora a tinham por baixo, que os levava.

Então, por estas percepções pejorativas, associam-se à velhice quegraía assinala aspectos repulsivos, sinais de degenerescência, especialmen-

11 Ateneu. Dipnosofistas, 585c.12 Bailly. s.v. graia.

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te manifestos pela retração da pele que perdeu todo o viço da vida exube-rante.

Assim, por uma acepção, Graias, as Velhas, lembram SenhorasVenerandas, em que a velhice avançada em anos assinala préstimos valio-sos, socorros benfazejos e sensata sapiência. Por outra acepção, Graiaslembram Velhas Encarquilhadas, em que a velhice de rugoso definhamentoassinala o anúncio da morte. Pela primeira acepção, velhice é objeto bené-volo, em que se confia plenamente. Pela segunda acepção, velhice é mani-festação maligna, que se evita repulsivamente. Por um lado, velhice acolhee protege a vida, e por outro, antecipa e ameaça a morte.

Fórcis

Da velhice que define o ser das Graias, dizem já especialmente osmitos do pai, Fórcis.

Hesíodo dá Fórcis como filho gerado por Póntos unido à mãe Gaia,o que o situa, portanto, na linhagem do Mar. E foi como divindade mari-nha que Fórcis ficou consagrado em todas as tradições antigas. Assim,lexicólogos e escoliastas tardios, associando sua figura mítica com o velozfluxo das correntes oceânicas, buscavam em phéro e phorein (levar, trans-portar) a justificativa etimológica de seu nome; ou também propunham asinonímia que identificava em phórkes um peixe do mar, charakes.

Associações marinhas que, por um viés, percebiam o mar em aspec-tos benéficos para o humano, o que Opiano sintetizou ao se perguntar senão fora Fórcis quem ensinara aos homens a pesca e as demais lides domar.

Mas, um outro viés de associações supunha, antes, o mar percebidoem aspectos maléficos, destruidores. Como na qualificação de odiosa águacom que o distingue Fânocles. Assim, identificavam-se com o nome deFórcis localidades rochosas, de recifes ou de encostas litorâneas, ruínaspara navegantes que contra elas naufragavam. Era nas costas da Eubéia,

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entre escarpas ásperas e montes cavernosos, que Lícofron refere a moradade Fórcis, lá mesmo onde ressoavam, confundidos com os rugidos derebentações que turbilhonantes refluxos arrastavam, quantos gemidos deaqueus regressantes de Tróia: Náuplio, o Destruidor, em raivosa vingançapela morte do filho, Palamedes, desencaminhara seus navios contra asrochas, guiando-os pelo engodo de um fogo sinaleiro.13 E, como se cha-mavam mesmo, à entrada do Bósforo, aquelas rochas caminhantes, queesmagavam em seu entrechoque os navegantes que por elas se aventuras-sem, as Simplégades? Diz Carístio que os homens as chamavam Ciáneas,mas os deuses, Portas de Fórcis.

Divindade marinha, é pela velhice que bem se identifica Fórcis. As-sim o afirma a sinonímia proposta por Hesíquio, a qual entende phorkónpor leukón, polión, rysón: embranquecido, grisalho, enrugado.

Então, a figura do Velho do Mar fornece a concepção com que oscomentadores antigos glosavam o nome e explicavam o personagem míticode Fórcis. Daí, as equivalências, por eles operadas, entre Fórcis e outrasnomeações do Velho do Mar. Hesíquio, e também o parafraseador deLícofron, o identificam com Nereu. O escoliasta de Apolônio Ródio o dácomo Proteu, identificação esta também afirmada por Artemidoro ao dizerque ele tinha igualmente o dom da mutação, como Proteu e Tétis. Dionísiode Bizâncio comenta que o Velho do Mar é dito Nereu por uns, Fórcis poralguns, e Proteu por outros. Já Apolônio Ródio, narrando a passagem dosArgonautas pelo lago Tritônio, conta que os heróis, após serpentearem aArgo o dia todo errando pelo lago, propiciaram, súplices, a divindade daságuas que, então, os tirou do impasse de sua viagem, conduzindo-os aomar aberto. Mas esse deus, Jasão não sabia ao certo como nomear em suaprece: se Tríton, se Fórcis, ou se Nereu?14

Assim, Fórcis, Proteu, Nereu, tantos nomes do Velho do Mar.

13 Lícofron. Alexandra, 373-386.14 Apolônio Ródio. Argonáutica, IV.1537s.

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Fórcis, em Homero, é uma vez referido como pai da ninfa Toosa, dequem Posídon gerou Polifemo, o mais poderoso dentre todos os ciclopes.Diz, então, que ele reina sobre o mar incansável.15

Depois, Fórcis nomeia a enseada onde ancoram os navios em Ítaca,lá mesmo onde os feácios desembarcaram Odisseu, consumando o regres-so do herói ao lar, após longa errância de atribuladas aventuras. Dois pro-montórios escarpados projetam-se protetores, resguardando a enseada dasondas elevadas por ventos potentes, assim, separando do exterior de marencapelado o interior de ancoragem abrigada. No topo, uma oliveira es-tende as folhagens. Perto, uma gruta adorável, sombria, consagrada àsNinfas, chamadas Náiades: provida de pétreas crateras e ânforas bialadas;de favos de abelhas; de alongados teares líteos, em que as ninfas trançamtecidos marinho-purpúreos; de fontes sempre fluentes; e de duas portas,uma para o lado de Bóreas, por onde entram os homens, e a outra, para olado de Noto, reservada a deuses imortais. Paragens de natureza civilizada,onde o inóspito de penhascos escarpados atua como proteção de abrigo;onde disposições líteas conformam artefatos; onde púrpura marinha, mele água dão-se inesgotáveis; e onde oliveira tudo encima. Lugar sagradoem que o humano contata o divino, por sacrifícios às Náiades ofertados.Aqui, Fórcis é dito, por Homero, Velho do Mar.16

Velho do Mar, em Homero, é também e plenamente Proteu. Eleaparece no episódio do retorno de Menelau, em que o herói encontrava-seretido na ilha de Faro, ao largo do Egito. No impasse da viagem, uma divin-dade o favorece: Idótea, comovida pela aflição do herói desejoso do re-gresso. Ela era filha de Proteu, o Velho do Mar. O pai, revela a deusa aMenelau, conhecia as profundezas do mar todo, e poderia, pois, dizer-lhe avia do retorno: rota e distância a percorrer, e como ir pelo mar piscoso. Epoderia também inteirar-lhe de tudo que se passava em seu palácio desdeque o herói partira, bem como revelar-lhe ainda o desagrado divino quecausava a sua retenção naquele local.

15 Homero. Odisséia, I.72.16 Homero. Odisséia, XIII.96 e 345.

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Saber, portanto, mântico, pois ciente de todo acontecer, quer passa-do, presente ou futuro. Saber divino inalcançável pelo humano. Mas, ovelho era sabido em manhas, perito em artes dolosas, e comprazia emesquivar-se às revelações de seu espírito por meio de ardis de inúmerasmutações, pelas quais assumia todas as formas, seja de quantos seres ras-tejam sobre a terra, seja da água, seja do fogo. Idótea, então, aconselhou oherói a ardilosamente emboscar-se e apanhar Proteu durante o sono, queele costumava diariamente dormir em terra sob cavos antros. Haveria,então, que prendê-lo fortemente por todas as suas mutações, só o libertan-do quando ele se dispusesse a falar, retomando a figura original. Agora ointerrogasse, pois ele lhe livraria as revelações que seu espírito guardava. Eassim procede Menelau, e assim o saber de Proteu tirou o herói do impassede sua viagem marítima.

Aqui, várias identificações qualificam o Velho do Mar: egípcio, imor-tal e divino, potente e infalível.17

E ainda em Homero, Velho do Mar é também o pai de Tétis e suasirmãs Nereidas, que a seu lado habitam as profundezas.18

Nereu, implicitamente suposto pelo dizer homérico, nomeia expres-samente o Velho do Mar em Hesíodo.19 Diz que ele é o mais idoso dosfilhos de Póntos. Diz que ele é apseudés e alethés. Diz que o chamamVelho. E explica, dando a razão: porque “infalível e bom, nem os preceitosolvida, mas justos e bons desígnios conhece”. E diz, ainda, que ele é irre-preensível, ao lembrar suas filhas, as Nereidas, cinqüenta “virgens sábiasde ações irrepreensíveis”.

Nereu, então, como Velho do Mar, figura a essência da palavra deação oracular.20 Manifestação de palavra inequívoca, antes mesmo indizível

17 Homero. Odisséia, IV.365s.18 Homero. Ilíada, I.358 e XVIII.36.19 Hesíodo. Teogonia, 233-236; 263-264 (tradução de Jaa Torrano).20 M. Detienne. 1967: 28.

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em suas qualificações, pois se qualifica apenas pela negação e privação das(des)qualificações que limitam a palavra humana: a-lethés, a-pseudés, a-mýmon, ne-mertés (sem esquecimento ou ocultamento, sem logro ou enga-no, sem falha ou falta, sem erro ou equívoco, sem reparo ou repreensão).Nereu, ser e saber benevolente, sempre atualizando justiça. Nereu, Senhorda Verdade e Agente da Justiça, compõe a figura do Velho do Mar pormodelares competências de benfazeja realeza, propícia em sua benignidade.

De Nereu contam-se ainda os modos protéicos. Assim, ele compare-ce na narrativa do décimo primeiro trabalho de Héracles – a colheita dasmaçãs douradas das Hespérides –, registrada já por Ferecides e tambémfixada por Apolodoro.21 Diz-se que o herói, após cruzar o Equedoro, ondeduelou com Cicno, e atravessar a Ilíria, encontrou-se com Nereu no sítioem que as Ninfas, filhas de Zeus e Têmis, lhe revelaram junto ao Erídano.Héracles, então, o agarrou à força enquanto ele dormia e, por mais que odeus se transmutasse em todo tipo de formas – Ferecides lembra a meta-morfose em água e em fogo, como o Proteu de Homero –, não o soltou atéque o Velho, retomando a aparência anciã, lhe ensinasse onde encontraras Hespérides e suas maçãs de ouro.

Tais são os aspectos da velhice que o dizer dos mitos compõe emfiguras. Fórcis, o pai das Graias, é Velho do Mar, ancião valioso por suasabedoria mântica, conhecedor dos recônditos dos caminhos marítimos,conhecimento este que desfaz impasses, livrando saídas ao percurso herói-co. Figura, pois que guarda as secretas vias marinhas, por quem necessa-riamente passa o acesso do herói à realização de seu feito. Mas, êxito depassagem que supõe o domínio da velha figura de guarda, que só disponi-biliza suas revelações se imobilizada em prisão de forte abraço, que não lhepermite escapar em suas várias mutações.

Similarmente, as Graias, também Velhas, constituem, para a obraheróica de Perseu, a passagem do feito inaugural: ou, na concepção deFerecides, porque elas guardam as revelações das vias que conduzem às

21 Apolodoro. Biblioteca, II.5.11.

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Ninfas, ou, na concepção de Higino e de Eratóstenes, porque, sentinelasavançadas das Górgonas, elas lhes defendem o acesso. E êxito de passagemque exige dominar as Graias, inativá-las, aprisionando suas capacidades devigia e guarda, privando-as do olho e do dente por que as efetuam. E domí-nio que reclama os desempenhos astuciosos de emboscadas inesperadas,flanqueando sinuosamente os cuidados vigilantes da Velha Figura.

Empreendimento, então, que envolve obstáculos, depara ameaças,enfrenta perigos, interpondo, assim, na trajetória do percurso heróico umaoutra prova. O que remete para o aspecto negativo, destruidor, que o servelho das Graias também anuncia: o risco da morte.

Dos riscos da morte dizem bem os nomes das Graias.

Nomes

Os nomes das Graias enunciam seres negativos, destruidores, mortí-feros. Já os comentadores antigos, uma vez que as Graias eram divindadesmarinhas, buscavam as etimologias de seus nomes em associações queimaginavam os perigos do mar. Derivavam Pephridó de phríssein (eriçar,arrepiar, estremecer), vendo em Penfredo os tremores medrosos dosnavegantes em mares tempestuosos. De en-aúo (gritar, bradar) derivavamÊnio, a indicar a gritaria dos náufragos. E por dinos (torvelinho, redemoi-nho) entendiam em Dino os turbilhões marinhos.

Ora, pemphredón, anota o escoliasta de Nicandro de Cólofon, éuma espécie de vespa, pouco maior do que uma formiga, porém menordo que uma abelha, preta e branca, aninhando em carvalhos ocos. Paradeter as dores de sua venenosa ferroada, Nicandro receita óleo comummisturado com vinho, ou xarope misturado com neve.22

Ênio, em Homero, nomeia a divindade belicosa, destruidora de ci-dades, que ao lado de Ares comanda guerreiros, trazendo consigo o impu-

22 Nicandro. Alexipharmaca, 178-185; 537-550; Theriaca. 805-816.

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dente Tumulto da Matança. Diz Ésquilo que, por ela, associada a Ares e aDerrota sanguinária, juram, mergulhando as mãos em sangue sacrificial,os campeões de Polinices, ao atacarem Tebas: ou a arrasariam, ou perece-riam regando o chão com seu próprio sangue.23 E Quinto de Esmirna adescreve a circular regozijante em meio aos combates, o suor medonho aescorrer-lhe pelos membros, com os ombros e mãos borrifados de dolori-do sangue empoeirado: chama-a de “irmã da guerra”.24

Dino é a Terrível.

Seres de negação e ruína, portadoras de morte, as Graias ocupamconsentâneo espaço: a Gorgonéia Planície de Cistene, justamente além dofluxo limite dos continentes. A qualificação gorgonéia do lugar sela, deimediato, os sentidos de ameaça mortífera. Região trevosa, de permanentenoite, privada de toda a luz, quer solar diurna, quer lunar noturna. Confinsde extremo ocidente-poente que a corrente de Oceano cerca e limita, sepa-rando o espaço para cá, onde se confina a vida, do espaço para além, quesedia a morte. Lugar de morada próprio de Deusas por três modos afinsdas Górgonas: por filiação e linhagem, pois são irmãs, geradas de Fórcis eCeto; por contigüidade, pois habitam perto; e por finalidade, pois as Graiasguardam o acesso às Górgonas.

Então, dos riscos da morte circundante dizem os nomes das Graias.Mortíferas divindades marinhas, as Graias bem pertencem à linhagem dosmonstros do mar.

Ceto

Monstro do mar é especialmente Ceto, a mãe das Graias.

Hesíodo tem Ceto por filha de Póntos e Gaia, como Fórcis, de quemela, acasalada, gera variada prole de monstros: Graias, Górgonas, Cérbero,

23 Ésquilo. Sete contra Tebas, 45s.24 Quinto de Esmirna. Queda de Tróia, VIII.425s.

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Esfinge, Quimera...25. Todavia, o poeta épico, compondo seu versohexâmetro, qualifica-a pelo epíteto de “belas faces”, atributo este com queHomero memoriza um dos aspectos da graciosa beleza feminina.

Divindade marinha, o escoliasta glosa seu nome por “as funduras”.

Ketos é o designativo dos monstros aquáticos em geral, seres enor-mes que vivem na água (baleia, crocodilo, hipopótamo ...). Assim, refere omonstro marinho que Posídon envia, junto com inundações, a devastarreinos de ímpios mandatários, contra eles furioso por terem ofendido ashonras divinas. A ação mítica do cetáceo exige o sacrifício da filha do reiem exposição ao monstro, salva, entretanto, pela chegada providencial doherói. Tais são as histórias de Andrômeda e Perseu na Etiópia, e de Hesíonee Héracles em Ílion.

Em particular, keto designa a foca, como no episódio do encontrode Menelau com Proteu, em que o Velho do Mar aparece protetoramentecercado em seu sono por um bando delas. Tidas por rebentos da beladeusa marinha, elas emergem do mar grisalho a exalar o acre odor dasprofundezas. Por este fedor – o mais funesto, terrivelmente opressor –, elasse constituem em companhia monstruosa, insuportável para o humano.Barreira de odores mortíferos que defende o sono de Proteu. Atravessarincólume tais ares pestilentos requer do herói o socorro divino: inalar oantídoto preparado com ambrosia imortal de bem doce fragrância.26

Então, ketos aplica-se comumente a tudo o que se refere aos peixesdo mar que se distinguem pelo seu enorme tamanho, como a baleia e oatum.

Essa, sua monstruosidade própria: a forma enorme, volume caver-noso e profundo, receptáculo ruinoso, precisamente como é dito o Cavalode Tróia por Quinto de Esmirna: cavalo cetáceo.27

25 Hesíodo. Teogonia, 238s.26 Homero. Odisséia, IV.446s.27 Quinto de Esmirna. Queda de Tróia, XII.314.

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Velhas de nascença

Que monstruosidades distinguem as Graias?

A descrição hesiódica, calcada no procedimento narrativo formulardo epíteto épico, compõe a figura das Graias por aparências de formosura,graça e encantos femininos: “as belas faces” (como já Ceto, a mãe), “o véuperfeito” de Penfredo, e “o véu açafrão” de Ênio. Atrativos femininos sedu-tores, que contrastam com as figuras de monstruosidade que envolvem adescendência originada da união amorosa de Fórcis e Ceto, descendênciaesta que Hesíodo arrola bem em seguida à menção das Graias. Contrastede beleza e monstruosidade que a razão excludente do escoliasta recusou,dispondo-se à correção do texto hesiódico, de modo a restringir apenas aCeto o atributo das “belas faces”. Mas, contraste comum ao épos mítico,que por ele também assim diz de Medusa.

Em Ésquilo, domina já a concepção da monstruosidade. Monstruo-sidade implicada pelo hibridismo da forma císnea, se bem que, por talforma mesma, as Graias ganhem também aspectos de graciosa, majestosae elegante aparência. Auras de monstruosidade intensificadas pelas estrei-tas afinidades que aproximam as Graias de sua horrendas irmãs, asGórgonas. E monstruosidade especialmente marcada pela deformidadecorpórea que singularmente as estigmatiza: o único olho e o único dente,de que as três são dotadas em comum.

O cisne, pela tonalidade de sua plumagem, é dito grisalho, sen-do, pois, signo de velhice. Também pelo canto o cisne lembra a morte,pois seu canto tem valor mântico, anuncia a aproximação da morte:seja porque, supõem os homens comuns, o cisne, quando chega suahora, tomado de tristeza, entoa trenos lamentadores; seja porque, en-tende o filósofo, pelo contrário, então regozijante, antes saúda a morte,pois, sagrado servidor de Apolo, é presciente dos bens, que com a pas-sagem para o Hades, advêm. Canto, portanto, de vate profético, que afigura mítica de Orfeu especialmente assinala: de cisne é a nova vidaque sua alma escolhe no Hades, a manter os hábitos do viver anterior,

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em distintivo contraste com a escolha do vate rapsódico, Tamiras, queprefere a vida do rouxinol.28

O cisne lembra, também miticamente, a realeza. Cicno, Cisne, no-meia filhos de divindades (Apolo, Ares, Posídon), cujas mortes às mãos deheróis (Héracles, Aquiles) suas histórias memorizam. Assim compõem-se,nos mitos da realeza sagrada, os atos rituais de eliminação violenta do reino combate ou confronto em que se disputa o poder régio, segundo oprincípio mesmo que ordena o modo mítico de sucessão da realeza. En-tão, o canto do cisne anuncia e celebra a morte anual do rei sagrado,consoantemente metamorfoseado nessa ave mesma. Particularmente, astradições da realeza espartana destacavam essa significação da figura docisne: de Zeus-Cisne, que sob essa forma seduz Leda, mulher de Tíndaro,rei de Esparta, descendem Helena, Castor e Pólux.

Então, pela velhice císnea associam-se às Graias lembranças da morteritual da realeza.

E, mais especialmente, a velhice monstruosa das Graias é compostapelo singular modo que bem as define: elas são as Velhas enquanto “grisa-lhas de nascença”. Nelas a velhice, que o encanecimento manifesta, pro-vêm de, ou vêm com o nascimento. E, na fórmula similar de Ésquilo, elassão as Velhas enquanto “vetustas virgens”, de modo que a potência juve-nil de virgindade procriadora é dada pelo definhamento vetusto infértil.

Assim, o ser e a natureza monstruosa das Graias bem se define poressa singular velhice, justamente composta pela união de vida e morte,porque se (con)fundem, indissociados, o que é nascimento e, pois, princí-pio, com o que é morte e, pois, fim do existir humano.

Da (con)fusão de Princípio (Passado) e Fim (Futuro), então referidaà concepção de temporalidade composta pela História enquanto memó-ria do existir humano, diz similarmente a recriação do mito das Graias porBarth.

28 Platão. República, 619s.

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II. A condição humana, entre oSputnik e Prometeu *

Outubro de 1957, o Sputnik em órbita terrestre. Hannah Arendt,maravilhada pelo evento, apreende seu fascínio pela reflexão do discurso.O fascínio do evento: um marco de princípio, ato inaugural, início, começode uma outra realidade da vida humana situando uma nova era: “O pri-meiro passo para libertar o homem de sua prisão na Terra”.1

O lançamento do Sputnik dispara o movimento de projeção da vidahumana no espaço. O que, enfocado em sua face reversa, implica a saídada Terra enquanto o lugar do viver humano. O homem, agora, liberta-sede uma de suas prisões, um de seus grilhões que, até então, constituía umadas condições necessárias do seu viver: o homem liberta-se da Terra en-quanto o hábitat necessário da existência humana. O viver humano pode,assim, deixar de supor a Terra como seu lugar de existir. A Terra podedeixar de ser condição da humanidade.

Mas a Terra sempre foi “a própria quintessência da condição huma-na, e, ao que sabemos, sua natureza pode ser singular no universo, a únicacapaz de oferecer aos seres humanos um hábitat no qual eles podem mo-ver-se e respirar sem esforço nem artifício”.2 Projetar a vida humana no

* Primeiro publicado em L.O. Felix e M. B. Goettems Cultura Grega Clássica. Porto Ale-gre: Editora da UFRGS, 1989, p. 44-53.

1 Hannah Arendt. A condição humana, p. 9.2 Idem, ibidem. p. 10.

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espaço, isto é, para fora da Terra, implica, então, a necessidade de umoutro homem, de um homem futuro, cuja, natureza de ser vivo, cuja cons-tituição de organismo vivo, não fique mais circunscrita às condições(im)postas pela natureza terrena. Mas essa criação do homem futuro, essaprodução de uma nova natureza humana constituindo uma outra modali-dade de organismo humano vivo, já está também em curso graças a umaoutra conquista da ciência moderna, graças a um outro feito libertador datecnologia científica. Trata-se da artificialização da própria vida humana,esse feito tecnológico da engenharia genética:

“Recentemente, a ciência vem se esforçando por tornar artificial a própriavida, por cortar o último laço que faz do próprio homem um filho danatureza. O mesmo desejo de fugir da prisão terrena manifesta-se na ten-tativa de criar a vida numa proveta, no desejo de misturar, sob o microscó-pio, o plasma seminal congelado de pessoas comprovadamente capazes,a fim de produzir seres humanos superiores e alterar-lhes o tamanho, aforma e a função; e talvez o desejo de fugir à condição humana estejapresente na esperança de prolongar a duração da vida humana para alémdo limite dos cem anos”.3

A geração criadora de vida, esse último refúgio que a natureza aindamantém no homem, esse último ponto de contato do homem com o mun-do animal (o fato natural da reprodução sexuada), passa, agora, a ser umproduto artificial: a vida não mais como algo que nos foi dado, propiciado,posto e imposto pela natureza, mas antes algo criado, produzidoinaturalmente pelo homem. O homem é agora Deus: não mais somenteagente reprodutor da vida humana dada naturalmente, mas agente gera-dor, criador de vida.

E há, ainda, outra conquista do moderno saber científico, outro feitopotencialmente libertador da moderna tecnologia científica: o advento daautomação no âmbito da produção:

3 Idem, ibidem. p. 10.

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“Mais próximo e talvez igualmente decisivo é outro evento não menosameaçador: o advento da automação, que dentro de algumas décadasprovavelmente esvaziará as fábricas e libertará a humanidade do seu far-do mais antigo e mais natural, o fardo do trabalho e da sujeição à neces-sidade. Mais uma vez, trata-se de um aspecto fundamental da condiçãohumana”.4

Com a automação da produção consumada pelo movimento deindustrialização na modernidade, o trabalho humano, desenvolvendo aomáximo suas capacidades produtivas, termina por “negar-se a si mesmo,termina por abolir a sua própria necessidade”.5

Ora, mas os progressos da ciência moderna e seus feitos tecnológi-cos constituem um movimento de dupla face em termos da efetividadeque ele pode produzir ou desencadear: trata-se de um movimento tantopotencialmente positivo quanto negativo. A ciência moderna tanto podeser efetivada enquanto instância geradora de vida humana, enquanto ins-tância criadora do homem novo, quanto, pelo contrário, igualmente “des-truidora, aniquiladora de toda forma de vida orgânica da Terra”.6 Tal é odado angustiante posto pela física atômica para o nosso viver quotidiano.

O saber que a ciência moderna constitui pode, ainda, ser tanto agentede libertação do homem quanto, pelo contrário, instância aprisionadora,escravizadora do homem, que o oprime e nega enquanto agentedeterminante que comanda suas próprias ações, sua própria prática:

“O problema tem a ver com o fato de que as verdades da moderna visãocientífica do mundo, embora possam ser demonstradas em fórmulas ma-temáticas e comprovadas pela tecnologia, já não se prestam à expressãonormal da fala e do raciocínio...Ainda não sabemos se esta situação édefinitiva; mas pode vir a suceder que nós, criaturas humanas que nos

4 Idem. Entre o passado e o futuro, p. 12.5 Idem, ibidem. p. 45.6 Idem, ibidem. p. 11.

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pusemos a agir como habitantes do universo, jamais cheguemos a com-preender, isto é, a pensar e a falar sobre aquilo que, no entanto, somoscapazes de fazer. Neste caso, seria como se o nosso cérebro, condiçãomaterial e física do pensamento, não pudesse acompanhar o que fazemos,de modo que, de agora em diante, necessitaríamos realmente de máqui-nas que pensassem e falassem por nós. Se realmente for comprovado essedivórcio definitivo entre o conhecimento (no sentido moderno de know-how) e o pensamento, então passaremos, sem dúvida, à condição de es-cravos indefesos, não tanto de nossas máquinas quanto de nosso know-how, criaturas desprovidas de raciocínio, à mercê de qualquer engenhocatecnicamente possível, por mais mortífera que seja”.7

E ainda a ciência moderna pode tanto realizar, consumar, as aspira-ções mais arraigadas do viver humano, tornar realidade seus sonhos maisdesejados – a libertação do trabalho – quanto, pelo contrário, esvaziar to-talmente o sentido do viver humano, tornar a vida humana algo inócuo,frustrante, sem valor e sublimação:

“A era moderna trouxe consigo a glorificação teórica do trabalho, e resul-tou na transformação efetiva de toda a sociedade em uma sociedade ope-rária. Assim, a realização do desejo, como sucede nos contos de fadas,chega num instante em que só pode ser contraproducente. A sociedadeque está para ser libertada dos grilhões do trabalho é uma sociedade detrabalhadores, uma sociedade que já não conhece aquelas outras ativida-des superiores e mais importantes em benefício das quais valeria a penaconstituir essa liberdade...O que se nos depara, portanto, é a possibilidadede uma sociedade de trabalhadores sem trabalho, isto é, sem a única ativi-dade que lhes resta. Certamente nada poderia ser pior”.8

Assim, o momento presente, atual, posto pela modernidade para oviver humano, é crucial: está em jogo o futuro da vida humana. E tambémmomento angustiante, porque pólos exatamente opostos, mutuamente

7 Idem, ibidem. p. 11.8 Idem, ibidem. p. 12-13.

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negadores, descortinam-se para o homem do presente como alternativasigualmente possíveis de equacionar seu destino futuro: as opções de nossadecisão oscilam entre criação e geração do homem novo, ou destruição eaniquilação, desaparecimento total; entre libertação ou escravização dohomem; e entre realização consumadora das mais sonhadas aspirações doviver humano, ou esvaziamento e frustração do sentido e valor desse viver.

Mas, no decorrer da modernidade, a proposição de criação do ab-solutamente novo, de instauração de uma origem marcando um recomeçoda história a efetivar uma nova era, essa proposição distingue uma parti-cular modalidade de prática política: a revolução. Em Marx, no DezoitoBrumário, ela assume sua formulação talvez a mais radical:

“Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem;não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com quese defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado. A tradiçãode todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dosvivos. E justamente quando parecem empenhados em revolucionar-se a sie às coisas, em criar algo que jamais existiu, precisamente nesses períodosde crise revolucionária, os homens conjuram ansiosamente em seu auxílioos espíritos do passado, tomando-lhes emprestados os nomes, os gritos deguerra e as roupagens, a fim de apresentar a nova cena da história domundo nesse disfarce tradicional e nessa linguagem emprestada...A revo-lução social do século XIX não pode tirar sua poesia do passado, e sim dofuturo. Não pode iniciar sua tarefa enquanto não se despojar de toda ve-neração supersticiosa do passado. As revoluções anteriores tiveram quelançar mão de recordações da história antiga para se iludirem quanto aopróprio conteúdo. A fim de alcançar o seu próprio conteúdo, a revoluçãodo século XIX deve deixar que os mortos enterrem seus mortos”.9

Mas, pergunta-se Hannah Arendt, qual é o ideal de sociedade deMarx que, produto da obra da revolução, “cria o que jamais existiu nahistória”:

9 K. Marx. Dezoito Brumário, p. 17-10.

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“Na filosofia de Marx, que não virou Hegel de cabeça para baixo tantoassim, mas inverteu a tradicional hierarquia entre pensamento e ação,contemplação e trabalho, e Filosofia e Política, o início feito por Platão eAristóteles demonstra sua vitalidade, ao conduzir Marx a afirmações fla-grantemente contraditórias, principalmente na parte de seus ensinamentosusualmente chamada utópica. As mais importantes são suas predições deque, sob as condições de uma humanidade socializada, o Estado desapa-recerá, e de que a produtividade do trabalho tornar-se-á tão grande que otrabalho, de alguma forma, abolirá a si mesmo...Essas afirmações, alémde serem predições, evidentemente contêm o ideal de Marx da melhorforma de sociedade. Como tal, não são utópicas, reproduzindo antes ascondições políticas e sociais da mesma cidade-estado ateniense que foi omodelo da experiência para Platão e Aristóteles e, portanto, o fundamentosobre o qual se alicerça a nossa tradição. A pólis ateniense funcionou semuma divisão entre governantes e governados e não foi, assim, umEstado...Os cidadãos atenienses, além disso, eram cidadãos apenas namedida em que possuíssem tempo de lazer, em que tivessem aquela liber-dade face ao trabalho que Marx prediz para o futuro”.10

Pois, que forma de estruturação político-social a pólis gregaconceitualizou? A pólis, afirma Hannah Arendt, antes de mais nada funda-se na dissociação entre público e privado. O domínio privado – a esfera dacasa, da comunidade familiar – é definido como o campo da necessidade.O domínio privado destina-se, então, ao atendimento das coações que omero viver, que a simples reprodução da vida, impõe: a manutenção esubsistência da vida individual e a garantia da sobrevivência da espécie (aprodução alimentar, mais a reprodução sexuada). O domínio público, pelocontrário, é distinguido pela ausência da necessidade. O domínio público éo campo da liberdade. Espaço de interação de cidadãos, singularizadoscomo homens livres pela sua condição de disponibilidade para a política,para o viver na pólis. O domínio público é que propriamente identifica ecorporifica a pólis. Mais do que excluir o privado, o domínio público osupõe. A liberdade, enquanto fenômeno essencialmente político, só se efe-

10 H. Arendt. Entre o passado e o futuro, p. 45.

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tua e realiza no domínio público. Daí que a liberdade implica a liberaçãodo trabalho. Mas, então, a liberdade impõe, como sua condição, o controlee o domínio da necessidade: é preciso, para ser livre politicamente, libertar-se das coações que a necessidade instaura. Na forma que a pólis cria, essalibertação se realiza por meio da sujeição, ou seja, por meio da imposiçãodo trabalho a outrem. De forma que a categoria dos livres constitui conco-mitantemente o seu reverso: os não livres. De modo que a liberdade assen-ta na dominação. Assim, a relação mando/obediência, que a dominaçãodefine instituindo a oposição senhor/escravo, é a relação constitutiva doâmbito privado. Portanto, na pólis a dominação situa-se anterior e exterior-mente ao domínio público, à esfera da política. No âmbito público, naesfera da política, reina a liberdade e, com a liberdade, a igualdade, aisonomia, instituindo uma forma de organização política na qual os cida-dãos convivem à margem de todo poder, sem uma divisão entre governantese governados.11

Assim, o ideal de sociedade de Marx – a eliminação do Estado e aausência do trabalho – foi historicamente realizado pela pólis grega. Des-vanece-se, então, o fascínio inaugural que a tradição revolucionária, proje-tada por Marx, avocava para si enquanto proposta de criação do absoluta-mente novo na história. Trata-se de um equívoco, um equívoco de igno-rância, ou seja, um equívoco que ignora a pólis. O que essa tradição revo-lucionária coloca como o fim da história, nada mais é do que o seu princí-pio. Pesou contra Marx, sentencia Hannah Arendt, “a vingança da tradi-ção”, operante contra todos aqueles que, não só Marx mas tambémKierkegaard e Nietzche, ousaram desafiar a tradição no século XIX. Pois,para inverter a hierarquia conceitual da tradição, para pôr Hegel de cabeçapara baixo, o preço pago como tributo foi o ter que supor os própriosconceitos da tradição que se pretendia inverter. O desafio destruidor datradição, ao operar a crítica da tradição, o faz, entretanto, no quadro dascategorias e conceitos postos pela tradição. De modo que a crítica movida

11 H. Arendt. A condição humana, p. 36-37.

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pelos agentes destruidores da tradição no século XIX, embora teça o fim datradição, não rompe com ela, nem quebra sua existência, antes a prolongae a faz perdurar na crítica e pela própria crítica. Daí o irônico paradoxo,verdadeira peripécia trágica que se teve como desfecho exatamente opos-to ao pretendido pela crítica da tradição: a tradição vive, se reproduz, nocorpo mesmo daqueles que a matam.

A narrativa hesiódica do mito de Prometeu, presente na Teogonia 12,busca apreender a percepção grega da condição humana. Trata-se de ummito etiológico que explicita o princípio que dá a razão da distinção, dadiferenciação da condição humana em oposição à divina e, concomitante-mente, explica a origem da modalidade grega da prática dos sacrifícios emoferenda às divindades. O mito relata o episódio da disputa e confrontodoloso, astucioso, trapaceiro, onde medem-se e confrontam-se as métis dePrometeu e de Zeus. Ambos os jogadores buscam, por meio de lances deintenções sinuosas, verdadeiras manobras de dissimulação trapaceira, lu-dibriar o adversário, almejando, dessa forma, ganhar vantagens e benefí-cios em detrimento do outro. Prometeu joga favorecendo a condição hu-mana; Zeus resguarda a superioridade da condição divina.

É Prometeu quem toma a iniciativa do primeiro lance do desafio.Ele partilha o boi em dois quinhões: um constituído pelas carnes e vísceras,o outro, pelos ossos; a seguir oculta a manifestação aparente desses qui-nhões, recobrindo-os por outra aparência, dissimuladora: as carnes e asentranhas com a pele e o ventre do boi; já os ossos com a brilhante banha.Propõe, então, a Zeus que escolha um dos dois quinhões, “aquele que nasentranhas te exorta o ânimo”.13

Pelos valores projetados pela ótica de quem propõe o jogo, ou seja,pelo olhar de Prometeu, que cuida de beneficiar o gênero humano, trata-

12 Para a análise do mito hesiódico vejam-se os estudos de Jaa Torrano. O sentido deZeus, p. 43-50, e de Jean-Pierre Vernant. The cuisine of sacrifice..., p. 21s.

13 Hesíodo. Teogonia, v. 549. Todas as traduções da Teogonia por nós citadas são deautoria de Jaa Torrano.

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se de uma partilha desigual, de uma divisão em porções desiguais, porqueapreciadas, pelo e para o gênero humano, como compondo valores opos-tos: partes boas, superiores (carnes e entranhas), contra partes ruins, infe-riores (ossos). Tal apreciação valorativa implicitamente supõe a valorizaçãodo boi enquanto alimento para o gênero humano, distinguindo entre oapropriado e o inaproveitável em termos comestíveis. Assim, no princípiodo jogo doloso, é posta como princípio da condição humana a identifica-ção da sua específica propriedade alimentar, todavia, produto resultantedo desfecho do jogo. Portanto, princípio alimentar teleológico.

Mas a decisão dessa divisão e distribuição das partes compete aZeus, a quem Prometeu reconhece a autoridade que a sela. Daí o doloperpetrado ao dissimular e enganar a aparência dos quinhões: a porçãomelhor (as carnes e vísceras), ou seja, a porção desejável, é dissimulada edesmentida pela aparência do que é pior, rejeitável (o ventre repugnante),enquanto que, pelo contrário, a porção pior, inaproveitável e indesejável(os ossos), é dissimulada e desmentida pela aparência do que é melhor, aagradável (a brilhante banha).

Mas essa apreciação da desigualdade dos quinhões supõe a ótica dogênero humano, implicada pelo olhar de Prometeu. Daí que a apreciaçãovalorativa dos quinhões seja ambivalente, pois há, em oposição ao olharde Prometeu, o olhar de Zeus, a ótica do divino. As partes, então, sãoapreciadas como “melhores-superiores” ou, precisamente ao contrário,como “piores-inferiores”, dependendo da ótica de quem aprecia, da per-cepção do sujeito da valoração. Pois, pelo olhar de Zeus, que aprecia apartilha consoante à condição divina, os valores dos quinhões ficam inver-tidos: as carnes e vísceras, porque constituem a parte putrescível, cuja de-composição assinala a finitude temporalmente delimitada da existência,não condizem com a condição de imortalidade que distingue e define odivino, e são, portanto, pela ótica dos deuses, as partes piores, rejeitáveis,indesejáveis; já os ossos, porque constituem a parte imperecível (a existên-cia marcada pela permanência inalterada), são apropriados para, queima-dos pelo fogo nos altares, agradavelmente alimentarem os deuses com os

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odores da fumaça que ascende aos céus, constituindo, portanto, pela óticados deuses, as partes “melhores-agradáveis-desejáveis”.

Assim, Zeus está ciente de que a partilha de Prometeu, pretensamentedolosa contra as divindades – pois tenciona reservar para elas o quinhãoimprestável, ficando para os homens a porção valorosa –, resulta, pelocontrário, danosa para os humanos: estes, porque se alimentam da parteputrescível, ficam estigmatizados pelo fato da degenerescência, ficam assi-nalados pela condição de mortalidade. O atributo qualitativo do alimentodetermina, portanto, a condição por meio de uma contradição: o alimentoque propicia e assegura a subsistência, e portanto mantém a vida, igual-mente sela a degenerescência, e portanto destina à morte. Essa negação(de que a condição da vida é a morte) assinala a identidade humana (osmortais) por oposição à identidade divina (os imortais). Todo o sentido domito de Prometeu, enquanto a obra dolosa que produz a discriminação dehomens e deuses supõe, como e por princípio, a perspectiva que define acondição humana e a condição divina por mútua negação.

Mas Zeus aceita o jogo e desafio da trama de dolos proposto porPrometeu. Escolhe uma das porções e, ao ver os alvos ossos ocultos sob abanha, “raivou nas entranhas, o rancor veio ao seu ânimo”.14 Zeus execu-ta, então, seu lance em resposta ao de Prometeu: “Negou nos freixos aforça do fogo infatigável aos homens mortais que sobre a terra habitam”.15

A efetividade do contralance de Zeus neutraliza a efetividade do lance dePrometeu, pois, sem o fogo, nenhum dos dois quinhões realiza seu valoralimentar potencial: nem as carnes e vísceras para os homens, porqueexigem o cozimento (em uma concepção de homem civilizado); nem tam-pouco os ossos para os deuses, porque exigem a queima que os transfor-ma nas fumaças odoríferas que alcançam os céus.

O que leva, então, Prometeu a, por sua vez, neutralizar essa neutra-lização efetuada por Zeus: roubou o fogo às divindades, oculto em oca

14 Idem, ibidem. v. 554.15 Idem, ibidem. v. 563-4.

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férula. O que, então, obriga Zeus ao lance decisivo encerrando a disputa,pondo fim ao confronto doloso: “E criou já ao invés do fogo um mal aoshomens”, Pandora, a mulher; “e após ter criado belo o mal em vez de umbem, levou-a lá onde eram outros deuses e homens, adornada pela deolhos glaucos e do pai forte; o espanto reteve deuses imortais e homensmortais ao verem íngreme incombatível ardil aos homens. Dela descendea geração das mulheres. Dela é a funesta geração e grei das mulheres,grande pena que habita entre homens mortais”.16 Esse o “dom” final deZeus aos homens: a concessão do “mal” (a mulher) que compensa, con-trabalança, a obtenção do bem (o fogo).

Mas o que entender por essa afirmação de que a efetividade dessemal (a mulher) compense a efetividade daquele bem (o fogo)? Certamenteque as formulações valorativas da narrativa mítica hesiódica expressamuma antropologia pessimista, especialmente amarga em sua negatividadeno desconsiderar e desapreciar a mulher enquanto corporificação mesmada miserabilidade da existência humana. Mas o mito não compõe só essaresposta àquela questão. A interpretação, então, requer não só dizer o tex-to, mas também o contradizer. Contradizer o texto não implica asseverarque seu discurso é falso ou inverídico, mas antes almeja apreender umdizer contra o texto, dizer o que ele não diz expressamente, mas recalca.Dizer, pois, contra a memória que ele corporifica, pois a memorização, aodizer, também cala; ao revelar, também oculta; ao declarar, também supri-me; ao lembrar, também esquece.

Então, nos Trabalhos e dias, Hesíodo afirma o preceito imposto pelaordem de Zeus: é o trabalho – a dedicação, as fadigas e o penar das ativi-dades – e não as ociosas querelas jurídicas junto a juízes corruptos, queconstitui o modo justo de derivação de propriedade, bens e riquezas. Essepreceito compõe uma lei natural, (im)posta na natureza terrena pela or-dem de Zeus: “Oculto retém os deuses o vital para os homens”.17

16 Idem, ibidem. v.570; 585-592.17 Hesíodo. Trabalhos e dias, v. 42. Para os Érga valemo-nos da tradução de Mary Lafer.

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Essa ordem natural de ocultamento dos meios de prover a subsistên-cia humana advém como punição infligida por Zeus aos homens,por causada ofensa cometida por Prometeu. Pois, anteriormente à obra de Prometeu,quando, pelo contrário, os meios de subsistência humana eram aparentes,diretamente presentes e, portanto, facilmente disponíveis, imediatamente aces-síveis aos homens, então “vivia sobre a terra a grei dos humanos a recato dosmales, dos difíceis trabalhos, das terríveis doenças que ao homem põemfim...uma raça de ouro dos homens mortais...que eram do tempo de Cronos,quando no céu este reinava; como deuses viviam, tendo despreocupadocoração, apartados, longe de penas e misérias; nem temível velhice lhes pe-sava, sempre iguais nos pés e nas mãos, alegravam-se em festins, os malestodos afastados, morriam como por sono tomados; todos os bens eram paraeles: espontânea a terra nutriz fruto trazia abundante e generoso e eles, con-tentes, tranqüilos nutriam-se de seus pródigos bens”.18

Mas Zeus, irado pelo roubo do fogo por Prometeu, concedeu paraos homens a mulher. E com a mulher vieram todos os males, de formaque, declara Hesíodo, “antes não estivesse eu entre os homens da quintaraça, mais cedo tivesse morrido ou nascido depois. Pois agora é a raça deferro e nunca durante o dia cessarão de labutar e de penar e nem à noitede se destruir; e árduas angústias os deuses lhes darão”.19

Mas, nesse cosmos terreno, onde agora impera a necessidade dotrabalho, qual a efetividade e qual o valor da presença da mulher para ohomem? Em primeiro lugar, com a mulher e pela mulher, instaura-se umanova modalidade de geração da vida humana, inaugura-se uma nova for-ma de reprodução do gênero humano: os homens agora não nascem maisdiretamente da terra ou dos freixos, como os das raças anteriores, geradosespontaneamente da natureza e pela natureza; os homens, agora, geram-se das mulheres e pelas mulheres por meio da prática do sexo, da gestaçãoda mulher e do labor do parto, ou seja, por meio da obra humana.

18 Idem, ibidem, v. 90-92; 109-119.19 Idem, ibidem. v. 173-177.

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Mas o que mais, e ainda e também, a mulher efetiva e vale para ohomem? A mulher efetiva para o homem a necessidade do trabalho, im-posta pelo ocultamento do provimento da vida.

Assim, pela obra de Prometeu, os homens ficam providos de trêselementos: os alimentos comestíveis, o fogo e a mulher. Pela presença damulher, enquanto lugar e meio da reprodução sexuada, a obra humanaassegura a cláusula que atende à reprodução da vida humana no âmbitoda espécie; e pela presença e ação complementares da composição dostrês elementos – os alimentos, mais o fogo enquanto agente de cozimento,mais a mulher assinalando o trabalho enquanto agente de produção doalimento –, a obra humana assegura-se desses itens que atendem à repro-dução da condição humana no âmbito da vida do indivíduo.

Todos esses três itens e cláusulas da condição humana só de formaambígua podem ser conceituados como “dons” das divindades, isto é,como dádivas espontâneas, de bom grado concedidas pelos deuses aoshomens enquanto bens. Os alimentos e a mulher não são efetivamentedons porque, em não se tratando de “bens” pela avaliação de Zeus, cons-tituem “dons” dolosos, que Zeus concede e anui aos homens (só nesseaspecto constituem dons divinos) para sedimentar a condição de inferiori-dade do viver humano face à existência divina. E o fogo também não éefetivamente dom de Zeus porque, embora seja conceituado como bempela sua avaliação, não é concedido por Zeus aos homens, pelo contrário,foi dele suprimido para ser entregue aos homens. O fogo era, sim, um domde Zeus aos homens antes, quando ele o concedia espontaneamente pormeio dos incêndios provocados nas florestas pelo seu raio.

Mas o que implica dizer que esses dons, porque ambíguos, não sãoefetivamente dons concedidos pelas divindades aos homens? Implica quea obtenção desses itens de reprodução da condição humana não estãomais na dependência da concessão e anuência divina. O homem, no querespeita ao atendimento de suas próprias condições de vida, constituiu,pela obra de Prometeu, autonomia em relação aos deuses: os homens,agora, geram-se a si mesmos, os homens, agora, produzem e cozem os

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seus alimentos; ou seja, os homens se auto-reproduzem e perpetuam. Oprincípio da vida humana está agora localizado entre os homens, entre osmortais, não está mais nas mãos de Zeus.

Então, tanto o fogo quanto a mulher, apreciados enquanto instân-cias agentes de reprodução da vida humana, possuem, para o homem, amesma efetividade e constituem o mesmo valor e bem: agentes deautonomização do homem perante as divindades no assegurar a reprodu-ção de si mesmo.

Mas, por que então a mulher é avaliada como mal que nega o bemdo fogo? É significativo que o texto hesiódico corporifique (na Teogonia) aidéia desse mal pela representação de uma oposição da ordem natural davida animal que opõe duas modalidades de viver consubstanciadas porum princípio masculino e um princípio feminino: “Tal quando na colméiarecoberta abelhas nutrem zangões, emparelhados de malefício, elas todo odia até o mergulho do sol diurnas fadigam-se e fazem os brancos favos,eles ficam no abrigo do enxame à espera e amontoam no seu ventre oesforço alheio, assim um mal igual fez aos homens mortais Zeus tonítruo:as mulheres, parelhas de obras ásperas, e em vez de um bem deu opostomal”.20

Há aqui, nessa figuração metafórica de uma ordem natural da vidaanimal, uma oposição dos princípios masculino e feminino do viver, que otexto hesiódico apropria localizando, ainda obsessivamente, a fonte detodo o mal na mulher. Mas a metáfora a que ele recorre é enfática: aoposição mulher/homem, figurada pela oposição abelhas/zangãos, com-põe, de um lado, trabalho contra ociosidade, de outro, provimento contraconsumo de alimento, e ainda, esforço e fadiga contra desfrute e gozo.Então, na ordem terrena provocada pelo mal do trabalho, o gênero huma-no – não apreciado enquanto ser ou natureza, mas enquanto ação, en-quanto práticas que consubstanciam o viver – não constitui mais uma uni-dade homogênea: o fato da dominação cinde o viver humano em um

20 Hesíodo. Teogonia, v. 594-602.

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princípio masculino contra um feminino, o que implica dizer que a raçaférrea do gênero humano, a raça histórica, conhece e convive com a raçaáurea, a raça divina, pois o que é o viver do zangão, o viver masculino, oviver do dominador – ociosidade, consumo, desfrute, gozo – senão o vivera ausência do trabalho que caracteriza a vida humana sob a realeza deCronos?

A ordem imposta por Zeus, assumida pelo texto hesiódico, afirma,portanto: porque o homem constitui autonomia relativamente aos deuses,impõe-se, como contrapartida dessa autonomia e para essa autonomia, anecessidade do trabalho. E a necessidade do trabalho, certamente aprecia-da como mal já que negação de liberdade, é elipticamente traduzida eassumida como necessidade da dominação. Tem-se, então, um mal bem eprecisamente identificado, só que o mal, esse mal – a necessidade do tra-balho – não é um mal para o homem enquanto tal, enquanto unidadehomogênea constituída por oposição aos deuses. Esse mal – a necessidadedo trabalho – é sim contra o homem enquanto princípio feminino do viver,ou seja, ele é contra o homem enquanto objeto da dominação; mas ele é,pelo contrário, a favor do homem enquanto princípio masculino do viver,ou seja, ele é a favor do homem enquanto sujeito da dominação.

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III. Ájax, Atena e os(des)caminhos da métis *

A raiva de Atena

No Ájax de Sófocles, logo no início, ainda no Prólogo, uma cena temintrigado, senão perturbado mesmo, o zelo da crítica moderna em seu afãde melhor entender a trama trágica. Ela situa a intervenção direta de Atenanos episódios. A deusa, pela revelação de sua palavra especialmente pro-piciada a Odisseu, já desfizera o enigma do misterioso massacre dos reba-nhos ocorrido naquela noite, bem e plenamente declarando ter sido Ájaxquem o perpetrara. E, finalizando esse pronunciamento, dispôs-se aindaAtena a expor o próprio criminoso defronte à presença de Odisseu (presen-ça esta de que Ájax, entretanto, não teria ciência), para que o herói, assim,se certificasse da realidade do fato que seu saber divino acabara de lherevelar.

A deusa, então, chama Ájax para fora da tenda, e põe-se a inquirir oherói sobre a obra de seu recente feito noturno, que a tivera por “aliada”.Assim, dolosamente, enseja sucessivas e exacerbadas manifestações devanglória a um pretenso vitorioso que, vingativo, tripudia sobre a ruína dosinimigos supostamente por ele derrotados. Como, todavia, tudo não passade uma ilusão demente de Ájax, ensandecido pela própria deusa, cujaintervenção o desviara da consecução mesma de seus intentos homicidas,o que se tem, de fato, é, pelo contrário, a ruína do próprio herói, ironica-

* Primeiro publicado em Classica, 7/8 (1994/1995): 195-209.

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mente ludibriado pelo insidioso concurso daquela enganosa assistênciadivina.

O vilipêndio contra a honra do herói, assim resultante de seu desvai-rado feito, é de tal ordem, e tanto o apequena e humilha, que mesmo Odisseu,apesar de seu inimigo ferrenho, compadece-se com seu infortúnio, pois secientifica da fragilidade da condição humana e da conseqüente transitorie-dade de sua fortuna, que num instante reverte o mais grandioso dos homensno mais ínfimo.

Cena de impacto tão chocante para a (in)compreensão da críticamoderna que ela se vê imediatamente compelida a entender as razões quejustifiquem, ou não, a ação da deusa. Seria justo e condizente aqueleespezinhamento infligido contra o herói? Seria próprio e condigno da gran-deza divina? Não teria havido exagero e desmedida da parte de Atena?Assim, logo aventaram-se razões mais propriamente subjetivas escavando-se as falhas do caráter da deusa, mais particularmente atribuindo-se aque-les desmandos de sua punição vingativa contra o herói às mazelas de suanatureza feminina, até mesmo patologicamente sádica, a comprazer-se emtorturar o adversário. E, assim, compuseram-se críticas indignadas a des-qualificar a revoltante concepção do divino conformada pelo mitosofocleano.1

Em reação a tais enfoques distorcidos de (des)entendimento do tex-to, pesquisaram-se também razões mais objetivas, que, ao invés de ajuizaros atos da deusa aferindo-os por sensos éticos anacrônicos a projetaremvalores de outras historicidades, alcançasse suas justificações apropriada-mente históricas, pois fundamentadas pelos conteúdos dos sentimentos

1 Para as indicações bibliográficas respeitantes à tradição moderna de interpretação dotexto sofocliano, confiram-se os acirrados comentários críticos de Flávio Ribeiro deOliveira (Oliveira, 1994) em sua Dissertação de Mestrado, especialmente no capítulo I,em que desdobra as argumentações já desenvolvidas em um texto de B. Knox (Knox,1979). Todas as citações em língua portuguesa da tragédia de Sófocles por nós feitasforam retiradas da primorosa tradução constitutiva desse Mestrado.

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religiosos helênicos e de seus valores civilizatórios mais gerais. Nesse senti-do, a fundamental análise de B. Knox (Knox, 1979), valiosa por inúmerascontribuições interpretativas, veio a praticamente cristalizar um entendi-mento equacionador dessa questão, buscando identificar as ordens de ra-zões que melhor compreendam, em sua historicidade própria, os desígniosde Atena ao obrar aquela intervenção por que ela leva Odisseu a defron-tar-se com Ájax. A ação da deusa, assevera esse autor, conforma a maisplena realização daquele preceito ético de conduta heróica, arcaico masainda atual no século V, que proclama: “fazer o bem aos amigos, o mal aosinimigos”. Ájax, outrora, ofendera a honra de Atena, sendo, pois, seu ini-migo. Ela, desde então irada, agora se vinga: arruina plenamente seu ad-versário, e assim vitoriosa, regozija-se em tripudiar sobre o derrotado. Vairir de sua humilhação vergonhosa, escarnecer de seu infortúnio inglório,espezinhar seu destino desonroso. Então, convida seu protegido Odisseu,também inimigo de Ájax, a associar-se a ela nesse gozo próprio do triunfo,entregando-se às mais sarcásticas zombarias a vilipendiar o adversário ven-cido.2

A argumentar a fundamentação textual desse entendimento, a obrahermenêutica da crítica moderna articula a composição de dois pronun-ciamentos da trama trágica sofocleana. Um deles, mais adiante no desen-

2 O que, então, implica uma interpretação dissociadora dos posicionamentos dos perso-nagens míticos conforme seu acolhimento, ou não, dos imperativos dessa ética: de umlado, Ájax e Atena, esta deusa por autonomia divina, aquele herói por grandiosidadedistintiva, mais os Atridas, estes por mesquinharia egoísta de meros detentores do po-der; e, de outro, Odisseu, cuja recusa configura a modernidade de superação dessaética arcaizante. O que, por sua vez, instaura uma conformação paradoxal de represen-tações do mito, pois a deusa assim age, por um lado, em consonância com a práxis doherói que ela, entretanto, arruina e, por outro lado, em divergência com a práxis doherói que ela, entretanto, favorece. Daí o corolário hermenêutico então reclamado: osdeuses gregos se permitem o que, pelo contrário, interditam ao humano, mesmo queheróico. Nem sempre, pois, devem, pelos humanos, serem tomados como modelos,pois preceituam a estes o reverso do que fazem! (confira-se, por exemplo, o artigo deKnox, 1979, p. 129-31).

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rolar da peça, é a palavra profética de Calcas. Por ela se desvenda a origemda ira de Atena para com Ájax. O fato ocorrera em meio aos combatestroianos. Atena viera associar-se ao herói em seu empenho beligerante,“exortando-o e instando-o a contra os inimigos voltar mão cruel”. MasÁjax, recusando o auxílio da deusa, retrucou-lhe esta “terrível e nefandapalavra” (vv. 774-5):

“Soberana, perto dos outros argivosfica; por nossa linha jamais romperá a luta”.

Essa é a razão original da raiva de Atena. O outro pronunciamentoencontra-se imediatamente antes da referida cena: a sugestão com queAtena intenta induzir Odisseu a que este presencie sua entrevista com Ájax,então persuadindo a boa disposição do herói nesse sentido ao lhe interpe-lar interrogativamente:

“Então o riso mais doce não é rir dos inimigos?” (v. 79)

Assim, conjugando-se os alcances daquele pronunciamento de Cal-cas, revelador da ira de Atena, com o da sugestão desta proposta divina deque o riso mais doce é o rir do inimigo, bem se constrói a hermenêuticatextual das razões que dão o sentido e a finalidade do tripúdio de Ájax porAtena, consumado por aquela cena inicial da exposição do mesmo peran-te Odisseu: certamente impiedoso, mas não menos justo, desafogo vinga-tivo do ultraje recebido. Assim o teria concebido o desígnio tramado pelaraiva da deusa.

E entendimento hermenêutico este que, então, é similar ao determi-nado pela ótica mais subjetiva de compreensão do ocorrido, elaboradapelo herói mesmo, pois foi acusando-o como ato impiedoso da deusa co-lérica, de humilhante espezinhamento de sua honra, que Ájax lamentouseu desfecho, dele ressentido contra Atena, cujo ludibriante poder divinocausara sua ruína (vv. 367; 401-2; 426-7; 450-6; 656).

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Entretanto, algumas interrogações ainda intrigam nosso entendimen-to. Pois, quando Atena mesma declara o propósito por ela vislumbradopara aquela exposição de Ájax defronte a Odisseu, a finalidade então ex-pressamente alegada pela deusa enquanto sua razão de ser é outra, quenão propriamente esse espezinhamento tripudiador do inimigo derrotado.Assim, ela diz a Odisseu apenas o seguinte (vv. 66-7):

“Mostrarei também a ti, manifesta, essa doença,para que a vejas e proclames a todos os argivos”.

Então, a finalidade e o sentido da cena da exposição de Ájax peran-te Odisseu, nos termos em que ela foi conformada pelo mito sofocleano,seria tão carente de sentido que, para bem compreendê-la, é preciso quenós, crítica moderna, além e sobre a alegação mesma de Atena, aindatenhamos que (retro)projetar o sentido do fato da ira de Atena, todavianarrado por Sófocles só bem mais adiante no evoluir da trama trágica?Pois, só assim, ao sabermos do furor de Atena contra Ájax, causado peladesonra por este consumada contra ela (o que faria da deusa uma inimigado herói), podemos apropriadamente entender como a finalidade deter-minante daquela proposta, a sobrepor-se às expressas alegações externadaspor Atena mesma a Odisseu, ser um convite para que este se associe a elano riso espezinhador de triunfantes com que ambos se regozijariam dianteda derrota vergonhosa daquele seu inimigo comum? Então, o sentido dacena inicial só bem e plenamente se realiza graças a uma tal operaçãoassim teleologicamente arquitetada? Ou essa hermenêutica teleológica éantes um fato da leitura do texto, e mais precisamente de seus malabaris-mos analíticos?

E, se as proclamações hibrísticas de Ájax, a soberbamente dispensa-rem o concurso do favor divino para o êxito de seus empreendimentosheróicos, comportam, não só a ofensa pessoalmente dirigida contra Atena,mas também uma similar genérica abrangendo os deuses todos, por que éapenas o poder divino da ira de Atena que o persegue? E, se tais manifes-tações hibrísticas atualizam-se na história heróica de Ájax desde o seu prin-

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cípio, por que razão o desencadeamento da ira de Atena, causa de suaruína, só se efetiva por ocasião do episódio do Juízo das Armas, em(con)seqüência dele, e não já antes, em qualquer outra ocasião anterior,apenas (con)seqüente àquela transgressão injuriosa contra a honra da deu-sa? Poderia o mito da tragédia de Ájax ter também memorizado uma espe-cial determinação do destino de sua história por meio de um significativoenredamento episódico, em que é a ação do herói que mobiliza tragica-mente a atualização da raiva dessa deusa, justamente porque tal ação in-troduz o herói no âmbito precípuo de honra do poder de Atena?

Então, retomemos a trama mítica desde o princípio.

A métis de Ájax

O herói fora desonrado e traído.

Ájax, ele que, em Tróia, terrível braço guerreiro, fora sempre só ou-sadia, coragem e intrepidez de desempenho por devastadoras batalhas, aassim, êmulo heróico, reiterar os precedentes feitos gloriosos de seu pai,Télamon (vv. 364-5; 434-40). Ele, guerreiro como o qual Tróia não vira natropa vinda da terra grega (vv. 423-5). E, todavia, os argivos, ao votarem aconcessão das armas de Aquiles, dadas como prêmio ao melhor dos aqueus,o haviam preterido em favor de Odisseu, contemplando, na pessoa deste,a distintiva e superior excelência astuciosa reclamada para a devidafinalização ruinosa da guerra troiana.3 Haviam dele, pois, arrebatado asarmas cuja posse, por honra, a ele deveriam caber (vv. 98-100). Os doisreis, aqueles Atridas, entretanto, desdenharam seus triunfos, usurpando-as(vv. 441-6). E em favor de quem? De Odisseu, finória raposa, velhaco, omais imundo biltre da tropa! (vv. 103; 379-82; 389).

Assim Ájax, desonrado e traído por seus próprios companheiros, aquem ele sempre antes fora leal e solidário, ruminava furores rancorosos

3 Assim foi relatado nos poemas cíclicos, a Etiópida e a Pequena Ilíada.

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contra todos os argivos, mormente contra os Atridas, centros personificadoresde poder e decisão régios na comunidade dos aqueus expedicionários contraTróia; e, em especial, contra Odisseu, o adversário que o vencera naqueladisputa, personificação emblemática da métis. Desonra e traição insupor-táveis.

Mas, ele se vingaria! Tramou o plano de um massacre, a exterminartais agentes traiçoeiros de desonras e a, assim, anular suas disposiçõesrapaces de armas (vv. 98-100; 449).

Todavia, vingança que requeria empreendimento guerreiro formi-dável, de ingente envergadura heróica: nada menos do que, por uma sóação agressora, eliminar os chefes argivos mais suas tropas, todos elesmagníficos e portentosos heróis, extremados em valor guerreiro! Comoassegurar o êxito de uma, entretanto, tão arriscada e temerária façanha?

Um cálculo equaciona a solução viabilizadora do sucesso do feito.Já outrora, imerso nos combates da guerra troiana, o herói claramenteexpressara esse entendimento. Travava-se então, terrível, a disputa em tor-no do cadáver de Pátroclo, e Zeus já assinalara a ocasional vitória troiana,velando o Ida de nuvens e troando forte por raio lançado a abalar o mon-te. Os aqueus partem em debandada. Ájax, ciente dos desígnios divinos,cuida, ainda assim, de salvar o corpo do companheiro. Mas a névoaturvadora recobre o campo e obsta o pleno desempenho de seu valorbélico. Então, o herói clama uma prece ao Cronida (Ilíada, XVII.645-7):

“Zeus pai, mas tu livra de sob a neblina os filhos dos aqueus,e faça céu fulgente, e conceda-nos vermos com os olhos.Depois, em plena luz, arruine, visto que assim te agrada”.

A Zeus pai queixa-se amargamente Ájax: como pode um guerreiro,por mais valoroso e corajoso que seja, combater heroicamente em meio atrevas? Como, então, bem se defender de um inimigo que agride oculto,cuja presença e ação ofensiva não se deteta nem se localiza? Na situaçãodessa desvantagem, a morte é certa! Que seja esta a determinação dodesígnio divino, Ájax bem acata. Mas, então, que pelo menos lhe conceda

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a morte gloriosa, viabilizando a atualização de seus valores heróicos, possi-bilitando-lhe defrontar agressores: assim, combater à luz do dia, condiçãode desempenho bélico valoroso de coragem e intrepidez. Esse, então, é ocálculo: agressor oculto, inviabilização de valor guerreiro de defesa, mortecerta!

Daí, o apropriado doloso plano: atacará os chefes argivos oculto sobas trevas de alta noite, quando nem mesmo ardem mais as vespertinasflamas, assim atacando indefesos adversários, surpreendendo-os na impo-tência guerreira de seu sono (vv. 15; 285-6; 291). Então, apropriada vin-gança: por métis os pune, ludibriante, contra o primado da métis – consa-grada na vitória de Odisseu – porque o desonram. E, ainda, justa vingan-ça: por traição os arruina, implacável, em contrapartida à traição porque odesgraçam.

E executaria o feito reiterando o modo e princípio mesmo de seuagir heróico: sozinho! (vv. 47; 294; 467; 614; 796). Absolutamente só, dis-pensando toda e qualquer ajuda ou cooperação de companheiros. Tal eraseu princípio heróico.

Então, já alta noite, quando vespertinas flamas não mais ardiam, saide sua tenda empunhando bigúmeo gládio, e precipita-se, sozinho, em suaempresa, investindo dolo assassino contra os chefes aqueus, agora por eleodiados como seus traiçoeiros inimigos (vv. 285-91).

Alcança já as portas dos chefes Atridas. E, surpreendentemente, eisque ouve a voz de Atena a seu lado, a insuflar seu ânimo belicoso naqueleempreendimento homicida. Inesperada assistência divina, pois nem entãosolicitada pelo herói!

Logo se entrega ao furor da matança, assim excitado pela assistên-cia da deusa a seu lado: brande contra aqueles dois a mão armada, edeixa-os mortos (vv. 49; 97-100); a seguir, afunda a espada na argiva tro-pa, e ainda liquida mais outros chefes; por fim, depois que descansou des-sa cruentação, fez prisioneiros, levando-os atados para sua tenda (v. 95).Malévolo, cuida, em especial, de um cativo, Odisseu, a finória raposa, ini-

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migo mais odiado, preparando-lhe sorte maior: prende-o à coluna do tetode sua barraca, reservando-o para o suplício de um vergastamento prolon-gado até a morte, desde já castigando-o com o látego duplo de granderédea eqüina, a seus sons sibilantes fazendo acompanhar insultos de pala-vras vis (vv. 56-65; 101-10; 239-44).

E, orgulhoso, exulta com seu feito. Ironiza, sarcástico, os inimigosvencidos, já zombando dos chefes Atridas e seus injustos pendores rapacesde armas, desafiando-os, agora cadáveres, a reiterarem aqueles seus mo-dos de governar (vv. 97-100). Também contra Odisseu dirige palavras dezombaria (vv. 103-6). E, por tal humor vitorioso, regozija-se em sua vingan-ça, rindo às gargalhadas da desgraça dos inimigos, ato último de vilipêndiocom que sela sua desonra de derrotados (vv. 301-4).

Foi assim, por esses termos, que Ájax, já no dia seguinte ao massa-cre daquela noite, concebeu a memória daquele seu feito guerreiro, agorasupostamente contando com o paradoxal favor do concurso divino deAtena, naquela ocasião sua inesperada aliada.

Só que tudo não passava de ilusão da mente extraviada do herói,então atacada de demência por obra de Atena.

A ciência de Atena

Quando os aqueus despertaram daquela noite para mais outro diade renovados combates no plaino de Tróia, depararam espetáculo catas-trófico: todo o restante rebanho, butim acumulado de reiteradas incursõesde saques e pilhagens por longos dez anos, fora destroçado; junto, tambémvítimas do massacre, os guardas mortos. Os modos do abate cruentoindiciavam ação humana, não ataque exterminador de feras vorazes(Kamerbeek, 1963, p. 24, nota ao v. 8). Misterioso acontecimento: no fur-tivo da noite, oculto por suas trevas, alguém exterminara rebanhos e guar-das, deixando as evidências do crime perpetrado, porém eliminando suasúnicas testemunhas oculares.

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Então, uma suspeita, imediata e consensual entre os aqueus todos, aaventar o malfeitor: Ájax, a quem atribuem o ato criminoso (v. 28). Supos-tamente, intrigante seqüela do Juízo das Armas, alguma desfeita estapafúrdiacontra sua desdita recente, preterido que fora pelos aqueus na contempla-ção da honra da herança heróica de Aquiles.

E suspeita logo alimentada por um testemunho: alguém afirmava teravistado Ájax, sozinho, a saltar pelo prado, transitando, pois, suspeitamentepelo local do crime, espada recém-aspersa (em sangue) (vv. 29-31). Mas,testemunho que, embora de valor inculpatório, ainda frágil, insuficienteenquanto prova, pois testemunho apenas indireto, compondo simples atodeclarativo de suspeita, sem implicar necessariamente Ájax como o execu-tante daquele preciso ato de massacre.

Então, a determinação heróica de Odisseu, movida pelo antagonis-mo que agora o opunha a este seu ferrenho inimigo, levou-o à iniciativa derealizar mais outro feito: encarregou-se do penoso trabalho de investigaçãodaquele misterioso crime (vv. 1-2; 18-20; 24). Tencionava apreender a ver-dade do ocorrido, dissipando a nebulosidade que turvava sua compreen-são e esclarecimento. Almejava por alcançar um conhecimento certo dofato, transparente em sua visão do ocorrido, que superasse aquela inseguraerrança cognitiva das suspeitas ainda incertas, conformando verdades ape-nas hipotéticas (vv. 21-4). Porém, feito investigatório de apuração da ver-dade singularmente dificultado, pois crime obscuro, de visão opaca, já queenvolto por trevas de realização noturna e sem deixar testemunhos de olhoshumanos que, justamente por tê-lo presenciado, pudessem relatar o ocor-rido, bem o esclarecendo.

Assim, pôs-se à caça investigatória daquele inimigo.

Partiu dos vestígios deixados manifestos pelo ato perpetrado: im-pressões de pegadas no chão apontavam uma pista investigadora. Perícianesta arte do rastreamento de um percurso de busca igualmente assinalauma excelência odisséica: compondo, como cadela lacônia (princípio hí-brido de faro canino e manhas de raposa) (Kamerbeek, 1963, p. 20, nota

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ao v. 8), os recursos apropriados de discernimento perseguidor maisacuidade astuciosa, o herói pôs-se a segui-las, perfazendo sua trilha. As-sim, reconstituiu o itinerário da ação perpetrada e, examinando os aspec-tos de sua efetividade impressora, avaliou a atualidade de pegadas recen-tes. Então descobriu itinerário inconfundível, conclusivamente certo de umsó possível agente, Ájax, pois caminho finalizado por um único e singularalcance mais longínquo, atingindo o ponto extremo do acampamento dasnaus, precisamente onde aquele herói posicionara sua tenda pessoal (vv.3-7). Itinerário, então, que indicia a suspeita presença de Ájax na tenda e,portanto, enseja vincular as condições desse seu estado lá presente às cir-cunstâncias da ação última atualizada no princípio do percurso, de queelas seriam, pois, seus resultados conseqüentes (vv. 1-7). Mas, ainda e no-vamente, conhecimento impreciso, eivado de limitações, compondo tantocertezas quanto confusões, pois exame inconclusivo das pegadas, umasreconhecíveis, outras não, travando a plena e clara identificação de seuagente causador (vv. 31-3).

Odisseu, em furtiva espreita, já se dispõe então a espionar o interiorda tenda. Justamente nesse momento Atena intervêm, detendo a açãoinvestigatória do herói.

Intervenção que situa o limiar delimitador dos alcances precípuos doconhecimento desse fato: o humano operado pela investigação de Odisseue o divino revelado pela ciência de Atena.

Pelo conhecimento humano, excelentemente obrado pela investiga-ção odisséica, a identificação de Ájax como o criminoso é praticamentesegura. Aquela iminente visão do interior da tenda deste herói lhe ensejariacertificar-se de suas suspeitas iniciais, bem as corroborando, pois lá dentrose encontrava recolhido o herói, associado a tantos efeitos assinaladoresdo ato criminoso: homem com suor a gotejar do rosto e (sangue) das mãosassassinas, e barraca que era só espetáculo de cruenta carnificina, executa-da contra rebanhos de bois e ovelhas, todos já jugulados ou despedaça-dos, menos um animal, infortunado carneiro, ainda preso à coluna da

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tenda, mas já supliciado por vergastamentos de açoites a aguardar aindamais torturas até o suplício final (vv. 9-10; 63-5; 219-21; 235-44). Então,fim de uma obra investigatória de ato criminoso que indicia seu agenteperpetrante, pois gotejamento de suores e aspersões de cruores animais,assim circunstanciados a tantos corpos das vítimas, fundam conjecturasretrospectivas de uma singular ação assassina de rebanhos.

A soma de todos os indícios incriminatórios aponta a culpabilidadede Ájax. Tudo levava a crer que fora mesmo Ájax quem massacrara osrebanhos! O conhecimento humano desse fato, assim alcançado pela arteda investigação odisséica, percorre a via de apreensão de uma justa verda-de fatual.

Todavia, nesse êxito se detêm todo o alcance da obra humana deapreensão da verdade do fato ocorrido, demarcando, pois, o seu fim en-quanto êxito apenas parcial, limitado. Duas ordens de razões assim a deli-mitam.

Primeiro, essa obra investigadora, que infere conclusivamente tersido Ájax quem cometera o crime, não pode, mesmo e apesar de estarbem fundada em razões de evidências comprobatórias, prover o conheci-mento de uma certeza absoluta: ela, de fato, compõe conjecturas, queembora altamente plausíveis, referem verdades, entretanto, apenas hipoté-ticas. Não pode proclamar ter alcançado a luminosidade transparente dacerteza absoluta dessa sua verdade. Pois, pelos humanos, este conheci-mento de certeza plenamente verdadeira, enquanto percepção de clarivi-dência transparente do fato mesmo, viabiliza-se apenas quando e porquederivada da realidade cognitiva de seu presenciamento (isto é: saber oocorrido por ter presenciado sua manifestação fenomênica, por ter estadopresente à sua ocorrência). Clarividência cognitiva, então, neste casoinviabilizada dada a morte dos guardas, suas únicas testemunhas huma-nas oculares.

Mas, não é essa limitação a mais significativa e relevante, já que,quanto a apreender quem fosse o criminoso – Ájax –, tal obra humana de

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investigação indiciadora positiva conforma, de fato, uma via sucedânea deconhecimento da verdade desse aspecto de realidade do fato ocorrido. Sóque, uma vez alcançada essa verdade – Ájax é o criminoso autor do mas-sacre dos rebanhos –, o que mais, a partir dela, se poderia saber por essarede de inferências indiciadas? Assim, que razões e motivos o criminosotinha, pode-se ainda suspeitar circunstancialmente: é quase certo que setrate de alguma desfeita, ou mesmo vingança furiosa, daquele herói, emrevolta indignada contra o resultado do Julgamento das Armas de Aquiles.Suspeita que, aliás, todos os gregos desde logo aventaram. Ora, mas porque, assim furioso, ele voltara sua sanha precisamente contra os rebanhos?Poderia haver algum sentido nesse ato a transcender o mero transtorno decomportamento causado por uma mente insana? Ou, antes, pelo contrá-rio, apenas agira pelo despropósito e falta de razão mesma que define aloucura, esse extravazamento de atos quaisquer da demência extraviada?Aqui, a possibilidade da obra humana de conhecimento pleno da verdadedesse fato detêm todo seu alcance, pois, a partir daqui suas conjecturasextraviam-se, perdem-se nas trevas mesmas projetadas pela loucura que jáperdera e desencaminhara o próprio Ájax ao perpetrar seu ato criminososob a ação do ludíbrio de Atena!

Mas, no limite onde termina o alcance da obra cognitiva humana,avança a revelação da palavra divina da ciência de Atena, que justamente,pelo contrário, o plenifica. Assim, imediatamente antes de Odisseu consu-mar aquela sua visão espreitadora do criminoso recolhido no interior desua tenda, exatamente então, intervém a emissão da palavra de Atena,que encerra a ação cognitiva do herói em sua observação perscrutante. Deimediato, o favor do concurso da revelação dessa palavra divina antecipa arealidade fenomênica que aquela visão espreitante do herói também al-cançaria se fosse efetivada: Atena declara a Odisseu que, lá dentro da ten-da, encontra-se mesmo o homem por ele procurado, faces gotejantes desuor e mãos apunhaladoras (vv. 9-11). E, a seguir, Atena proclama o prin-cípio de uma palavra divina que, então, encerra o érgon do exame cognitivoempreendido pelo sujeito humano (vv. 11-3):

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“E tu espiares para dentro desta portajá não é mister, mas sim relatares por quetal afã tens, para que de mim, que sei, aprendas”.

Assim, a ação sucedânea da ciência da deusa finaliza, portanto, oconhecimento apreendido pela ação cognitiva do herói. É pelo concursoda ação da ciência divina de Atena, então principiado a favorecer o en-cargo heróico de Odisseu, que se superam tais limites da cognição hu-mana.

As revelações assim propiciadas pela deusa agora cientificam o he-rói, Odisseu, de todo o ocorrido. O que ele, corroborando-a por indíciosassinaladores, conjecturava como suspeita, mas sem ter certeza absoluta,agora é asseverado como fato mesmo: sim, são de Ájax aqueles atos as-sassinos (v. 39). A causa que o mobilizara a perpetrar feito assim insensatotambém se confirma: propósitos de furor rancoroso conseqüente ao Juízodas Armas (v. 41). Então, e agora compondo já revelações insuspeitadaspelos argivos todos, e que mesmo a arte investigativa de Odisseu nãoindiciaria: ato que não comportava propriamente o extravazamento des-propositado da demência furiosa, mas sim o projeto de uma causalidadeprecípua, que comportava a razão de uma finalidade maior, pois aquelecrime não finalizava o massacre dos rebanhos mesmos, mas sim visavaantes ao extermínio dos chefes aqueus.4

Assim, é pelas revelações da palavra de Atena, que o fato fica plena-mente relatado por todas as tramas e modos de sua efetivação dolosa e desua proposição criminosa, ainda esclarecidos, a seguir, os desvios de seuintento fracassado: fora ela, Atena, que transtornara a percepção do herói,

4 Ájax, 42-5. Já G. Méautis (Méautis, 1957, p. 24) chamou a atenção para este ponto.Também Knox (Knox, 1979, p. 129, nota 29, e p. 131) adverte para este fato; entretan-to, ambiguamente (des)valoriza seu comentário, ao aqui enfatizar sua relevância poruma consideração cuja assertiva comporta valor antes tautológico, pois apenas declaraa importância dramática do mesmo.

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fazendo-o confundir rebanhos por homens, desviando-o do alvo de seuspropósitos assassinos (vv. 45-65).

Agora é Odisseu plenamente inteirado do fato, apreendido seu co-nhecimento cristalino graças às revelações da ciência de Atena, queaprofundam a percepção da razão vingativa daquele crime, revelando in-clusive sua hostilidade traidora contra a própria comunidade aquéia. E sóassim dissipam-se as trevas com que a (in)compreensão da realidade daloucura de Ájax turvava e perdia a visão humana da verdade última da-quele fato.

Então, como ato final de consecução da transmissão dessa verdadeda ciência divina a plenificar o conhecimento humano alcançado pelo he-rói, Atena declara (vv. 66-7):

“Mostrarei também a ti, manifesta, essa doença,para que a vejas e proclames a todos os argivos”.

Atena dispõe-se, agora, a produzir uma manifestação fenomênica queviabilizaria, para Odisseu, uma sucedânea visão humana (com)provadorada verdade daquele fato revelado por sua palavra divina – a demência deÁjax – em sua plena consumação final. Logo declara o fim a que essa visãopretende: o herói, assim cientificado da verdade daquele fato, poderia, en-tão, proclamá-la à comunidade aquéia. Com o que esta, já historiada publi-camente a realidade informativa do acontecimento, poderia, por sua vez,então reunida em assembléia, melhor deliberar sua decisão a esse respeito(vv. 719-34; 749-83). Assim, encerrar-se-ia, plenificados seus fins, a missãodesse novo e específico encargo heróico encetado por Odisseu: descobrir averdade do massacre dos rebanhos.

E, a instruir Odisseu, Atena antecipa-lhe quais são os modos impera-tivos dele então reclamados para presenciar o defrontamento de Ájax. Pri-meiro, que o herói bem a ele se disponha, não se negue, antes mantenha suapresença por firme confiança. E melhor o tranqüilizando, adverte-o a quenão sinta ameaça à sua pessoa, receando desgraça por sua presença diante

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de Ájax. Pois, afirma a deusa, a realidade da percepção de sua presençapor Ájax será por ela neutralizada, ao desviar do olhar deste a visão dafigura odisséica. Assim, que o herói não tema e, pois, não recue.5

De imediato, então, a deusa põe-se a chamar a presença de Ájaxpara fora da tenda, diante das barracas, ali mesmo onde já se encontraOdisseu, para com este defrontá-lo. Todavia, então ocorre um impasse: eisque Odisseu se nega a participar do defrontamento!

A cautela de Odisseu

Aqui alcançamos a cena crucial investida pela crítica para o seu en-tendimento das razões da ação da deusa ao propor esse defrontamento deÁjax perante Odisseu, e predominantemente, por essa crítica mesma, apre-ciada então como tendo por finalidade a impiedosa vingança da deusa avilipendiar seu inimigo derrotado que a desonrara, agora dele escarnecen-do e ridicularizando em regozijo triunfante.

Mas essa cena é toda ela conformada por uma intriga, pois o queAtena propõe – defrontar Ájax perante Odisseu –, é justamente ao queOdisseu, entretanto, se indispõe: o herói obstinadamente se recusa aodefrontamento. E, ainda, são justamente os modos contrários aos dele re-clamados por Atena que o herói atualiza como reação ao defrontamento:recua, receia, teme desgraça!

Pelo contrário, à precipitação dessa via o herói, em ação consoantecom a areté de solerte prudência que o distingue, opõe contenções deacautelamento. Logo declara que de forma alguma irá se submeter a ele.E, assim, sua recusa obsta, inviabiliza a iniciativa da deusa (v. 74).

Para dissuadir o herói desta sua atitude renitente, Atena recorre en-tão a uma estratégia argumentativa que percorre vários passos sucessivos

5 “Confiante fica, e não como uma desgraça recebas o homem: pois, desviado, eu impe-direi que o brilho de seus olhos veja tua figura” (Ájax, 68-70).

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de dissuasão. Primeiro, compõe uma provocação insinuadora de suspeitasvergonhosas, que aventam como instância determinante da recusa deOdisseu uma falha de seu caráter: vergonhosa covardia, indigna de um serheróico (v. 75).

Odisseu afiança-lhe que não se trata de covardia, mas ainda assimpersevera na recusa (v. 76).

Então, insiste Atena, se não há covardia subjetiva a ancorar de prin-cípio tal recusa, mesmo assim há temor objetivo, conseqüente às circuns-tâncias do fato, pois denuncia alguém receoso do que possa acontecer.Mas, objetivamente considerado o defrontamento em suas circunstânciascontextuais, por que temer defrontar Ájax? Ele é, agora como antes, ape-nas um homem! (v.77).

Sim, retruca Odisseu, apenas um homem, antes e agora. Mas, deimediato, bem qualifica quem é esse homem: ainda seu inimigo (v. 78).Ambígua declaração! Por um lado, concorda com, e mais reforça, o argu-mento de Atena: por ser apenas um homem, não é Ájax para ser temidopor Odisseu, tanto que não o temia nem antes, mesmo já então sendo seuinimigo. Isso não mudou: seu inimigo tanto antes quanto agora, não é porisso que agora o tema. Mas, por outro lado, declaração que também deAtena discorda: justamente porque ele é ainda seu inimigo, prolonga-se,como situação ainda não superada, uma potencial hostilidade a envolveraquele defrontamento. Assim, pode Odisseu aventar ainda algum temorpor outra razão fundamentadora, algo que justamente tenha mudado,uma realidade nova, em vista do que ele ancora a perseverança de suarecusa.

Mas Atena, rápido, investe agora nova réplica persuasiva, inten-tando apanhar em falso a argumentação do herói pela brecha nela des-cortinada: se Ájax é o inimigo de Odisseu, eis mesmo a razão, não paraevitar o confronto com ele, mas, pelo contrário, justamente ainda outravez querer vê-lo, pois, já o tendo vencido, boa oportunidade de consu-mar até o fim sua vitória, completando-a pelo prazer de selar o vilipêndio

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desonroso contra o inimigo derrotado. Não é, então, o riso mais doce o rirdos inimigos?6

Mas Odisseu, de renitente cautela, não se deixa apanhar pela sedu-ção desse prazer. Ainda temeroso do confronto, cujos receios até agora asdeclarações de Atena não dissiparam, o herói diz que se contenta antes pornão gozá-lo, prefere apenas evitar o defrontamento. Insiste e persiste emque Ájax fique mesmo na barraca! (v. 80).

Diante da consistente e resoluta determinação da recusa de Odis-seu, incontornável pelas vias sinuosas da persuasão discursiva da deusaque não dissiparam as nuvens de seu temor que o acautelava contra odefrontamento, Atena concede-lhe a admissão da razão que funda e justi-fica essa resistência do herói: é a demência de Ájax o objeto de seus re-ceios, a recomendar-lhe evitar deparar-se com aquele inimigo em tal esta-do de insanidade (vv. 81-2). Pois, essa é a mudança, a realidade nova:tem-se ainda um homem, ainda Ájax, ainda inimigo de Odisseu, mas ago-ra louco. E qual loucura? Um Ájax tomado por essa singular mania furiosade massacrar chefes argivos, a assim desafogar, vingativo, todo o ódio ran-coroso que lhes votava, especialmente aos Atridas e a Odisseu, principaiscausadores de sua desonrosa privação das armas de Aquiles! Então, daparte de Odisseu, justa cautela de homem prudente, pois a que risco oinduzia a via do defrontamento com Ájax, o insano inimigo, proposta por

6 Ájax, 79. A interrogação posta por Atena a Odisseu – “Então, o riso mais doce não é rirdo inimigo?” – vale, assim, como expediente de argumentação persuasiva bem circuns-tanciada e determinada por um contexto específico de significação e alcance, atreladamesmo à réplica do herói imediatamente antecedente. Ela não foi, portanto, formuladacomo se fosse uma declaração de princípio positivo asseverado pela deusa, no sentidode que ela, assim, partilharia, e ainda autorizaria, esse modo de conduta heróica. Pelocontrário, o princípio que, depois ao final da cena com Ájax, Atena expressamenteconsagra é bem o inverso, a negação desse princípio heróico (vv. 126-132). A argumen-tação de Atena, enquanto expediente de dissuasão retórica, vale, então, positivamentetanto quanto vale seu arrazoado anterior: afirmaria mesmo a deusa que Odisseu écovarde?

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Atena? Deparar-se, frente a frente, com tal inimigo agora tomado por essasingular mania assassina! É isso que a proposta de Atena enseja-lhe acon-tecer: Odisseu, o chefe argivo mais odiado por Ájax, postar-se, assim, dian-te do louco homicida! E, agora, não se trata mais, como na noite anterior,da ilusão ludibriadora de tomar gado por homem, pois é Odisseu mesmoque ele terá ao alcance de suas mãos assassinas!

Não é, pois, à toa que Odisseu recuse a solução dessa via por queAtena intenta propiciar-lhe a comprovação cognitiva da verdade que fina-liza sua missão heróica. Assim, o herói, renitentemente desconfiado, situaainda o impasse, a entravar a ação do concurso da deusa que o favorece.7

7 Os comentaristas modernos, a aventarem as razões de Odisseu em sua recusa de de-frontar-se com Ájax, parecem compor uma argumentação hermenêutica de operaçãoteleológica, pela qual projetam para o momento próprio em que essa recusa é atualiza-da – o princípio da cena do defrontamento –, o sentido, entretanto, só plenamenteefetivado por seu término e fim. Dão, pois, a elevada consciência odisséica da fragilida-de da condição humana e sua condizente piedade pela sorte adversa de Ájax, como arazão de sua recusa em espezinhar daquele seu adversário, contra o que fora entãopropugnado por Atena (confiram-se, por exemplo, as considerações de Knox (Knox,1979, p. 130) e de Meier (Meier, 1991, p. 231). Mas, quando Odisseu se recusa aparticipar do defrontamento com Ájax, antecedendo ao ato de exposição desse seuinimigo, ele não declara já que ele assim não o faz porque sinta piedade do outro; pelocontrário, ele sente piedade de Ájax justamente depois da exposição, e precisamenteporque presenciou o extravio da loucura e a miserabilidade do estado a que aqueleherói, outrora tão grandioso, fora reduzido, a bem tirar daí a lição conseqüente a essacontemplação: a fragilidade da condição humana manifesta pela ruína de Ájax, masque, por ser também genericamente a dele mesmo, suscita sua compaixão. Então,Odisseu se apiada de Ájax porque contemplou sua ruína, e não se negou a contemplarsua ruína porque se apiada dele. De modo que o preceito então por sua conduta, assimconsubstanciado, de não espezinhar e vilependiar triunfante sobre a desonra do adver-sário vencido, constitui, não o princípio consoante à sua recusa, mas sim o produto finalde sapiência resultante da experiência a ele propiciada por Atena, fazendo conjugar aoprincípio de prudência solerte do herói as instruções que sua ciência divina enseja. Paraentedermos a recusa inicial de Odisseu bastam, pois, as razões por ele mesmo declara-das: os justos receios de expor-se aos extravios homicidas do inimigo ensandecido!

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Atena, então, reconhecendo a justeza de tal temor, procura tranqüi-lizar o herói, afiançando-lhe que não precisa assim temer, pois Ájax não overá, mesmo estando perto (v. 83). Enigmática, incompreensível, e ainda,para o bem prudente Odisseu, suspeita garantia, pois, acautela-se o sem-pre desconfiado herói: sim, o homem está louco, mas não está cego! (v.84). Como, então, Ájax não o verá?

Assim, pelo entrelaçamento da trama conseqüente do diálogo daciência e do poder de Atena com a cautela prudente e solertemente des-confiada de Odisseu, conforma-se a solução que, superando as aporias doimpasse circunstancial, plenamente viabiliza o favorecimento do concursodivino ao herói: Atena obscurecerá as pálpebras de Ájax, ainda que dota-das de visão! (v. 85).

De fato, proclama Odisseu, os deuses tudo podem, até mesmo rea-lizar o (humanamente) impossível (v. 86). Tal, assim, uma visão que não vêe, pois, uma presença oculta! O que bem desfaz o impasse. Pois, a obten-ção por Odisseu da prova clara, manifesta, da singular demência consu-mada pelo agir de Ájax, que então a proclamaria junto a todos os argivos,bem arquitetada pelo favorecimento divino de Atena ao herói, supõe, comosua condição efetivadora, o defrontar-se de Odisseu com Ájax, para queassim ele testemunhe essa manifestação; mas, supõe também, por implica-ção necessária de realidade da condição humana, a presença de Odisseudiante de Ájax, cuja detecção por este é, entretanto, a situação que Odisseuacima de tudo pretende evitar. Daí, a solução divina: uma visão (por Ájax)que não vê (Odisseu) e, portanto, uma presença (de Odisseu) que presen-cia (Ájax), sem, todavia, ser ela mesma presenciada (por Ájax).

Agora, então, Odisseu acede à solicitação de Atena, prestando-se aodefrontamento com Ájax. Mas, mesmo assim, quando não têm mais ra-zões de temor para recusar o defrontamento, ainda então a prudência sem-pre alerta de Odisseu ainda lhe preceitua proclamar certa indisposição:declara que o faz e aceita, não porque seja do seu querer, seu desejo defazê-lo; pelo contrário, se a decisão coubesse apenas ao seu querer, “gosta-ria de me encontrar longe daqui”, diz ele. O espetáculo que, pois, irá pre-

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senciar, não atende aos reclamos do seu melhor agrado, nem tampouco desua mais precípua inclinação. Estes ânimos antes o indisporiam a defron-tar-se com seu inimigo louco.

Assim é superado o impasse por que Odisseu obstava a realizaçãodo defrontamento. E, assim, a deusa instruiu a consecução da confiançado herói, por aquela mesma via de solução que ela, Atena, desde o início,já antecipadamente lhe declarara:

“Confiante fica, e não como uma desgraça recebaso homem: pois, desviado, eu impedirei queo brilho de seus olhos veja tua figura”.8

A métis de Atena

Agora, livrada a via do defrontamento de Ájax perante Odisseu, ofavor da deusa propicia a este a prova finalizadora daquela sua obra herói-ca de investigação do crime cometido por Ájax.

A deusa, identificando-se ardilosamente como sua aliada, de modoa evocar-lhe exultante gratidão pelo pretenso favor de sua assistência naconsecução do empreendimento daquela noite, instiga o herói a relembrartodos os desígnios dos atos por ele então perpetrados. Ele, inflado de orgu-lho por seu feito supostamente exitoso, proclama regozijante como massa-crara a argiva tropa, como também eliminara os dois Atridas, e como,ainda, aprisionara Odisseu, arrastando-o para a tenda a fim de lá supliciá-lo até à morte (vv. 89-113). E, assim, insciente da presença de Odisseu,tudo revela e, pois, tudo então confessa.

8 Ájax, 68-70. Do verso 66 ao 89 conforma-se uma estrutura narrativa de composiçãoem anel, de modo que os versos 89-90 retomam precisamente o ponto da ação postopelos versos 71-3.

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Pela obra, portanto, da métis de Atena, ao ludibriadoramente inqui-rir Ájax sobre os modos e as intenções de seu recente feito noturno, confor-ma-se em ato como que a acareação do criminoso, e é Ájax, assim enga-nado, levado a produzir plena e cabal confissão de culpa pelo crime come-tido. E consecução de fim este justamente consoante com a efetividadeprópria de operação das manhas da arte astuciosa, pois, como, se não porludíbrio, obter a revelação de um crime cujo segredo encontra-se totalmen-te encerrado no espírito do próprio criminoso, único agente humano aagora conhecê-lo? Revelação que, portanto, supõe o paradoxal concursoda cumplicidade de disposição de quem, entretanto, é justamente a elaadverso!

A obtenção humana da prova jurídica do crime, bem efetivada peloconcurso da ciência e da métis de Atena prodigalizadas em favor de Odisseu,agora finaliza plenamente aquela sua singular ação heróica de uma inves-tigação criminal.

Então, a proposta, aparentemente sedutora, apresentada tão somenteinterrogativamente por Atena a Odisseu9, constitui antes um dos recursosargumentativos da retórica persuasiva da deusa, com que ela trama viabilizara realização desse defrontamento por meio do qual sua ciência divina fina-liza a missão cognitiva do herói. Via de persuasão retórica, entretanto, obs-tada pela recusa renitente da parte de Odisseu, que cautelosamente a des-carta. Recusa e descarte cautelosos que, depois, já consumada a exposi-ção de Ájax diante de seus olhos, finalizam-se por justa consciência piedo-sa, aprendida graças à obra de Atena que assim o levou a contemplar amiserabilidade da condição humana emblematicamente espelhada na fi-gura de Ájax, herói outrora tão grandioso, agora não menos aviltado. E,assim, compaixão de Odisseu que a deusa mesma, então, devidamentereconhece como condizente ato piedoso do herói, que apropriadamente

9 Proposta então aventada pela crítica moderna como a finalidade a que atenderia odefrontamento dos dois heróis: a exposição de Ájax ao riso de seu inimigo associado aAtena.

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tem ciência da fragilidade da condição humana e a quem, portanto, osdeuses justamente amam.10

Outra vez a obra heróica de Odisseu mais sua consciência sapientecompõem o produto da orientação divina do favor de Atena, que prodiga-mente o instrui e ensina. Bem o reconhecera o herói desde o início, aosaudar a vinda da deusa (vv. 34-5):

“Oportunamente chegas: pois sempre, tanto outroracomo no futuro, sou dirigido por tua mão”.

E, também, desde o princípio o proclamara Atena, ao interpelar oherói (v. 13):

“Para que de mim, que sei, aprendas”.

Ao apelo sedutor aparente daquela proposta retoricamenteinterrogativa, Odisseu, graças à sua renitente desconfiança, resistiu, não sedeixou apanhar, não enveredou por sua sedução. Ao, todavia, atribuirmosa Atena o desfrute desse mesmo riso sarcástico de vilipêndio como a fina-lidade a dar o sentido para aquele defrontamento dos dois heróis, peloqual ela, então, “ter-se-ia exemplarmente vingado de seu inimigo” derrota-do, não estaríamos nós, críticos modernos, a ingenuamente cair no engo-do persuasivo que, entretanto, Odisseu não caiu?

O fim de Ájax

Mas, então, afasta-se a presença de Atena, e desfaz-se a demênciado herói. Ájax recobra a razão, e constata os efeitos de sua obra assassina:

10 Ájax, 127-33. O que fecha o anel aberto pela declaração inaugural de Atena, nos versos11-13: “E tu espiares para dentro desta porta já não é mister, mas sim relatares por quetal afã tens, para que de mim, que sei, aprendas”.

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no interior da tenda depara apenas ruínas de mortos de ovina cruentação.Logo desespera-se, bate na cabeça e gane, arranca os cabelos. Depois, aperplexidade o paralisa, até que, retomando a capacidade da fala, indagafurioso a companheira que tudo assistira, ameaçando com terríveis pala-vras a que tudo lhe revele (vv. 306-16).

Agora, ganha (cons)ciência dos atos perpetrados. A filha de Zeus,invencível deusa de torvo olhar, o enganara, depois de insuflar-lhe furiosadoença. Assim, tomado por loucura, subjugado por extravio nefasto, olhare mente desencaminhados, trilhara a via sinistra por onde apenasbarafustara insanidades: errara a ensangüentar as mãos no gado argivo,não em seus chefes! Irrisória empresa de, entretanto, outrora primorosoherói: ele, o ousado, o corajoso, o intrépido em devastadoras batalhas,agora atualizava seu valor a atacar feras imbeles! (vv. 59; 123; 182-6; 206-7; 216; 337-8; 364-7; 447; 452-3). Assim, realizava pretensões de destinoheróico de ironia ridicularizante, pois guerreava amigos, em vez de inimi-gos, e caçava, não feras selvagens, mas animais domésticos, próprios decriação civilizada.11

Obra negadora de um ser heróico. Quem clamava pela luz diurnacomo tempo próprio e condição de efetividade de sua presença heróica, eque combatia franca e lealmente a descoberto, agora realizava seu feitoardilosamente, ocultando sua presença sob trevas noturnas. Quem antesdistinguia excelência heróica por superioridade de beligerância defensiva,figura de torre por sua pessoa e escudo protetor, agora intentava firmarprimazia honorífica por ataques assassinos, atualizando areté dependentede espada maléfica e ruinosa. O herói, que antes primava pela previdênciae discernimento de espírito, agora errava insane, mente desvairada. Plane-jara o êxito vitorioso, mas obtivera apenas desastre ruinoso. Quem bemintentara vangloriar-se insultante da desonra do inimigo vencido, era, pelocontrário, objeto, e não sujeito, de tal vilipêndio, pois o humor da vitória

11 Para algumas das contraposições aqui tecidas, conformando a crise trágica de reversãode situações do destino heróico, veja-se Segal (Segal, 1981, p 109-51).

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antes contra ele se voltava: já vê os Atridas a dele escarnecer, Odisseu adecerto gargalhar de prazer. Apreciara ter em Atena sua aliada, e todaviaela o maltratara até a perdição (vv. 363; 383; 454). Principiara por (re)afirmar,vingativo, sua honra, mas terminara desonrado. Buscara, como sempre,conquistar mais glórias, mas delas se via despojado. Então, obra infamante,a deslustrar sua história (vv. 143; 217; 191; 401-2; 426; 464-5).

O leal e solidário companheiro de combate, sempre dedicado asalvar seus amigos e, pois, a deles merecer gratidão, agora empreendiamatá-los, era deles inimigo e vil traidor, objeto de seu ódio e revolta (vv.618-20; 1266-7). Ele, o herói civilizador, baluarte na defesa e promoçãoda comunidade aquéia, sua potência de fundação e salvação, era agora,pelo contrário, seu agressor homicida, símile humano de forças caóticasde catástrofes naturais – fogos cósmicos, mais tormentas e tempestades deque irrompem raios e relâmpagos –, princípio só de desastres, destruiçãoe ruína.

Assim, ao tempo do Juízo das Armas, que consagrava entre osaqueus o primado heróico da métis, finalizou-se o feito doloso de Ájax,desempenho frustrado de uma iniciativa de vingança pelo âmbito desseespecial modo de ação inteligente, esfera de honra do poder divino deAtena.

Conta-se que Ájax, bem no princípio de sua trajetória heróica, quandodeixava sua casa para conquistar fama e glória nos campos troianos, desa-tinara ao negligenciar os conselhos paternos. O ancião, de prudente expe-riência, prodigalizando-lhe suas sábias instruções de despedida por conse-lhos de como piedosamente melhor deveria orientar seus atos, o advertira(vv. 762-5): “Filho, com lança pretende triunfar – mas triunfar sempre comum deus.”

Ele, entretanto, já cheio de empáfia orgulhosa, ignorara o conselhopaterno, imponderadamente lhe respondendo:

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“Pai, com os deuses mesmo quem não é nadaconquistaria o triunfo; mas eu, mesmo semeles, creio que hei de arrebatar essa glória”.12

Assim, firmava o princípio de conduta, a norma ética, por que co-mandaria seu ser guerreiro e, pois, seu destino heróico.

Depois, já em meio aos combates troianos, manifestara mais outrajactanciosa presunção, agora tão mais insensata quanto sacrílega, pois diri-gira a uma deusa, a própria Atena, que bem viera associar-se a ele naqueleempenho beligerante, “exortando-o e instando-o a contra os inimigos vol-tar mão cruel: esta terrível e nefanda palavra” (vv. 770-5):

“Soberana, perto dos outros argivosfica; por nossa linha jamais romperá a luta”.

Ájax, herói baluarte e torre, areté de capacidade guerreira defensi-va13, dispensa a ajuda de Atena: seu próprio valor guerreiro basta parasuster a linha de defesa no ponto onde ele combate. E, assim, ele pode, porambígua proclamação ambivalente, tanto de desprendimento generosopara com os companheiros quanto de altivez exacerbada para com a deu-sa, remeter a graça do favor divino para outros heróis.

Mas, já Homero dissera os modos desse princípio ético da heroicidadede Ájax, compondo-a por afinidade com os de Aquiles, o herói-extremo, eem contraposição ao de Odisseu, o herói-meio. Assim, igual a Aquiles, con-fiante em sua coragem e na força de seus braços, puxara seus navios aacampar em um dos dois pontos terminais da linha aquéia, irrelevando pre-

12 Ájax, 767-9. O arrazoado de Ájax opera um pressuposto – que os deuses podem favo-recer os desprovidos de valor –, todavia errôneo, se bem apreciadas as assertivas daprópria Atena a esse respeito; pois, diz ela: “os deuses amam os sensatos e abominamos vis” (Ájax, vv. 132-3).

13 Abordaremos a questão do delineamento dos tópicos caracterizadores da areté de Ájaxno próximo ensaio, “O melhor dos aqueus”.

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ocupações de conclamar as defesas de mais apoios vizinhos, como antes ofizera Odisseu, o qual situara sua tenda bem no meio do acampamento,posição privilegiada para que o chamado dos companheiros fosse por todosbem ouvido. Ájax, como Aquiles, é herói extremo! (Ilíada, VIII.220-6).

Para Ájax, a melhor realização do valor heróico reclama a dispensade todo concurso que eventualmente o minore, seja humano, a coopera-ção de companheiros, seja inclusive divino, a assistência de um deus. Con-tar com tal concurso de um outro valor em seu empreendimento guerreirosignifica admitir, em si mesmo, falta desse valor, cuja carência, então, aque-le outro justamente preenche. Não, pelo contrário, Ájax confia irrestrita eincondicionalmente na total suficiência de seu próprio valor guerreiro, ple-no e autônomo, a dispensar, portanto, todo e qualquer auxílio. Ájax é heróiextremo porque entende não lhe faltar qualquer valor guerreiro a necessi-tar suprimento por outros.

E, assim, pois, sempre principiou todos seus atos heróicos, confiantena auto-suficiência da potência de sua precípua areté guerreira, e sempreentão exitoso.

E, assim, também principiou aquele feito vingador de sua honraultrajada, agora excepcionalmente enveredando pelas vias sinuosas dasartes da métis, adentrando, pois, o âmbito de honra do poder divino deAtena.

Então, proclamações tão altivas de independência de princípio he-róico quanto insensatas para quem quer que humano seja, mesmo queherói valoroso. Agora a história de Ájax, em seu resultado ruinoso conse-qüente à própria atuação desse princípio heróico que ignora todo o con-curso do favor divino, ensinava a lição da ciência de Atena para quemdesonra seu poder, dele prescindindo a assistência na realização de obrasno âmbito da métis. Pois, nessa história heróica, a graça do favor de Atenafinaliza a prosperidade gloriosa de Odisseu, que a honra, enquanto arruinaa de Ájax, que a dispensa.

Quem quer que humano seja, ainda que herói, deve conhecer olimite que estigmatiza sua condição. Diz Alcmeón de Crotona que os ho-

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mens morrem pelo fato de não poderem juntar o princípio com o fim.Assim principiou, e assim, ao reverso do almejado por esse princípio, fina-lizou o ser heróico de Ájax, tragicamente enredando seu próprio destino.

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IV. O melhor dos aqueus

No célebre Catálogo das Naus, o aedo, Homero, conclama a Musapara que lhe declare quem, dentre os chefes aqueus combatentes em Tróia,era o melhor. A Deusa então distingue dois heróis, contemplados por talfama: Aquiles, e depois de Aquiles, Ájax. Todavia, no episódio do Juízodas Armas de Aquiles, a serem concedidas como prêmio justamemte aomelhor dos aqueus, o herói agraciado é Odisseu, e não Ájax.

Kirk (G. S. Kirk, 1985, p. 241), em seus comentários ao texto da Ilíada,não só não esclarece sua solução, como complica ainda mais a intriga assimequacionada, pois, quando Homero destaca Ájax como o melhor dos aqueusdepois de Aquiles, o crítico moderno, interpelando o poeta, interroga: porque não Diomedes?

Gregory Nagy (G. Nagy, 1986, p. 26-41) vislumbrou uma solução,ao que me parece, inversa, em seu alcance, à de Kirk. Em The Best of theAchaeans, sustenta a tese de que Aquiles é o melhor dos aqueus na tradi-ção épica corporificada para nós pela Ilíada, e Odisseu o é pela tradição daOdisséia. Já Ájax, integrado à tradição da Ilíada, é apreciado como o se-gundo melhor dos aqueus. Solução hermenêutica no mínimo tautológica,pois informa como resposta o que são os dados mesmos postos pela per-gunta.

E, assim, permanecemos com a questão inaugural intrigada pelosantigos.

Retornemos, então, às tramas narrativas dos textos mesmos.

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A iníqua sentença

Os eólios, estabelecidos na Tróade em tempos posteriores à ruína dacidadela heróica, contavam a seguinte história, registrada por Pausânias(Descrição da Grécia, I.35.4): quando Odisseu, regressante da guerra troiana,naufragou ao largo daquelas paragens, as armas de Aquiles, por ele ganhasno célebre episódio do Juízo, levadas pelas águas do mar foram dar napraia, arrastadas até junto à tumba de Ájax. A anedota compõe, assim,uma memória histórica daquele episódio mítico por velada denúncia con-tra a injustiça cometida pelos gregos. Mas, tanto mais comprometedoraporquanto advertia que fora apenas graças à intervenção corretora da na-tureza a desfazer aquele imperdoável erro humano que a justiça triun-fara.

Platão, em um de seus diálogos (A Apologia de Sócrates, 41b), con-densou similar memorização histórica em breve alusão ao mito de Ájax.Dentre outros dos argumentos com que Sócrates se declara disposto aacolher sua passagem para o Hades, ele lembra o ensejo de, nessa novamorada, não só usufruir a companhia de Orfeu, Museu, Hesíodo e Homero,se for verdade que tal seja possível, como ainda deparar-se com mais ou-tros entretenimentos maravilhosos, estes mais estreitamente afeitos à pró-pria história de seu destino: quando viesse ele a encontrar Palamedes, ÁjaxTelamônio e outros antigos igualmente mortos por sentença iníqua, pode-ria então comparar seus próprios sofrimentos com os deles.

Píndaro firmou também, em seus epinícios, denúncias a acusar aperversidade daquele juízo porque se encerrara “o funesto conflito” entreos dois heróis. Por essa decisão ajuizante os antigos, celebrados pelos mi-tos, haviam preterido “a valorosa honra guerreira do mais forte e bravo”,Ájax, nobre coração, primor de esforços bélicos, pela “astúcia pérfida” deOdisseu, antes exímio nas artes da “fala aduladora, companheira do dis-curso insidioso, obradora de ardis, peste malfeitora. Pois, os dânaos, porum voto secreto, favoreceram Odisseu, e Ájax, privado da armadura dou-rada, deparou-se com a morte”. As razões, entretanto paradoxais, da fama

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glorificante de um herói, Odisseu, por ato assim tão danoso e iníquo que,justamente finalizando a recompensa do mérito acabava antes por obliterara virtude agraciando o vício, adverte o poeta, haveria que percebê-las tan-to, por um lado, na malignidade mesma de cada indivíduo humano – “pois,a inveja cola no mérito, ela não conflita com a mediocridade” –, invejaindividual ainda agravada por outra viciosidade, agora no âmbito da com-posição coletiva do agir humano – “a cegueira passional das massas queas faz perderem a verdade” –, quanto, por outro lado, responsabilizar tam-bém a potência própria da arte poética – pois, “a voz de belos poemasressoa sempre, ela é imortal” –, e assim “o renome de Odisseu ultrapassouseus feitos, graças ao encanto de Homero, pois os mitos e a poesia desublime vôo deram-lhe não sei qual prestígio” (Píndaro, VII Neméia, 20-31;VIII Neméia, 19-37; IV Ístmica, 51-69).

Também Sófocles (Ájax, 1135-7), na composição de sua tragédia so-bre o herói salamínio, retratou situações que memorizam suspeitas sobre amelhor lisura do julgamento e sua tortuosa sentença favorável a Odisseu.Assim, na cena em que Têucro alterca com os Atridas enfrentando suasordens que lhe interditavam o sepultamento do irmão, o herói arqueiro che-ga mesmo a acusar manobras furtivas de Menelau a desencaminhar a vota-ção ajuizante, assim fraudando seu justo resultado. O próprio Ájax, na mes-ma tragédia (Ájax, 445-6), similarmente denuncia, senão a ilegalidade frau-dulenta dos procedimentos do tribunal, certamente o opróbrio moral de seuinjusto veredito por que este desonrava, antes do que recompensava, o méritoda excelência heróica superior. Amargamente vitupera ele contra a ingrati-dão dos comandantes da expedição troiana, os dois Atridas, insultando-ospor chefes “rapaces de armas”, eles que, ao concederem “em prol de umvelhaco” aquelas armas, dele por direito guerreiro, as haviam “usurpado,desdenhando seus triunfos”.

E, todavia, há, nessas várias instâncias de memorização históricaestigmatizadoras da injustiça do Juízo das Armas por que se vitimara ahonra heróica de Ájax, uma intriga que perpassa e compromete o melhoralcance hermenêutico de suas apreciações. Esse sentido, por que todas

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elas consagram a lembrança do episódio mítico, cristaliza na memória his-tórica a redutora parcialidade de um olhar indignado contra aqueleajuizamento, justamente porque esse olhar discerne valores e preceitos pordiversas formas em consonância com a atualidade das tramas mesmas dospróprios intuitos e significações particulares que ensejam a produção decada uma dessas singulares obras.

Tal parcialidade de olhar é por demais evidente nas apreciaçõescompostas pela tragédia sofocleana. Em seu texto elas conformam, pormeio dos termos virulentos da revolta furiosa de Ájax, uma ótica acusatóriacertamente contaminada pelos desaforos mais estritamente pessoais deavaliação do fato, enviesada pelos ódios rancorosos de um sujeito que sesente supostamente vítima de alegada injustiça. Ótica que se reitera pelacorroboração de sentimentos ajuizantes parciais de outros sujeitos, afinsdo herói. Assim Têucro, que justamente recorreu a similares diatribesdesqualificadoras de uma tal injustiça como réplica argumentativa em meioà discussão querelenta com que se contrapôs à ordem dos Atridas, arguindoentão de modo a invalidar o princípio de obediência ao comando políticoproclamado por Menelau. Pelos (des)entendimentos de Ájax e de Têucro,só se alcança uma compreensão do fato judicante em se vituperando con-tra as mazelas vergonhosas do exercício da autoridade instituída que ofundamenta e sela.

Já naquelas outras instâncias de memorização da injustiça perpetra-da pelo Juízo das Armas, parcialidades análogas, conformes os intuitos designificação próprios de suas respectivas obras, envolvem a preferênciadesse singular sentido porque elas lembram o acontecimento mítico, demaneira a exaltar o modo da heroicidade que distinguia nobremente Ájaxdaqueles logros mais vis personificados por Odisseu. Em Píndaro, alémdas proposições de princípio mais gerais que orientam seu pensamentopoético, observe-se que dois daqueles poemas, a VII e a VIII Neméias,celebram nobres de Egina, o primeiro Sógenes, vencedor do pentatlo, osegundo, Dinis, vencedor do estádio. Então, glorificação do vitorioso, atletae cidade, nos Jogos bem feliz na eleição alusiva de seus mitos modelares, a

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justamente exaltarem herói eácida.1 Já na notícia guardada por Pausânias,a melhor fama heróica de Ájax projeta também os reflexos de sua glóriapelo país e cidadãos eólios que piedosamente acolhem e preservam seutúmulo. Por sua vez, a Apologia de Platão, nas malhas da ironia socráticacom que se relembram as iniqüidades das sentenças de morte denuncia-das no âmbito de antiqüíssimas histórias míticas, prendem-se também ou-tros malfeitores de histórias bem mais recentes, pretensos juízes, a vitima-rem agora com seus votos judicantes a pessoa do filósofo.

Assim, obras de memorização histórica sedimentadoras de um sen-tido parcial de avaliação do fato mítico, a entendê-lo consoante as tramassubjetivas de seus individuais ensejos e intuitos de memorização mesma.Mas, também, assim igualmente instâncias de desentendimento do fatomítico porque sua parcialidade oblitera possíveis sentidos objetivos por elerealizados.

Todavia, a questão ainda se complica porque, se as instâncias dememorização textual que sedimentam a acusação da iniqüidade do vereditocomprometem assim, pela parcialidade eletiva do enviesamento de seus olha-res, a mais plena apreciação do sentido consumado pelo episódio do Juízodas Armas, nem por isso se afasta ainda uma validade consistente de suadenúncia. Pois, mesmo que os gregos, quer os chefes Atridas quer a massavotante, não tivessem então descaído sua decisão por qualquer falcatruamenos digna, haviam errado ainda injustamente: afinal não era sim Ájax,dentre os heróis combatentes em Tróia, fora Aquiles, o melhor dos aqueus?

Nas representações dispostas pelas narrativas míticas, por inúmerasvezes a memória helênica fixou essa apreciação em cenas com que o poetaglorificava Ájax com tal apanágio honorífico. Assim, nos episódios da Ilíada,em meio aos acirrados combates no plaino de Tróia, tanto companheiros

1 Confiram-se, em Heródoto (Histórias, VIII.64 e 121), as tradições com que os gregosassinalavam o prestígio heróico de suas vitórias nas guerras Medas, fazendo figurarnelas a presença do concurso de seus heróis eácidas.

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quanto adversários reconheceram e proclamaram Ájax o melhor dosaqueus. Afirmou-o, dentre os gregos, Idomeneu (Ilíada, XIII.321-5), e den-tre os troianos, seu maior adversário, Heitor, que com ele medira forças emduelo memorável (Ilíada, VII.289). E ainda também assim o exaltou a vozdo próprio Odisseu, em cenas tramadas agora ou pela Odisséia homérica(Odisséia, XI.550), por ocasião da descida do herói ao Hades no monólo-go com que interpelou a sombra do Telamônio, ou pelo Ájax sofocleano(Ájax, 1340-1), por ocasião do debate acerca das honras do sepultamentodo herói suicida.

Declarações de Odisseu a louvar Ájax como o “melhor dos aqueus”tanto mais intrigantes quanto formuladas justamente por quem fora, entre-tanto, em ocasião anterior, no Juízo das Armas, seu rival e ferrenho adversá-rio, a disputar então com Ájax, e a lhe arrebatar, o apanágio de ser honradojustamente por tal distinção mesma com que ganhara a posse das armas deAquiles. Intriga que os críticos modernos2 logo equacionam como provacabal da injustiça daquele julgamento, pois quem fora favorecido por seuveredito, agora, todavia, asseverava que o melhor mesmo era o outro, seuadversário, entretanto preterido. Portanto, clamoroso erro judicante!

Ilações hermenêuticas da crítica moderna, a meu ver, entretanto,equivocadas ao assim especularem que as proclamações de Odisseu, nosensejos daquelas duas ocasiões, asseverem o reconhecimento da injustiçado Juízo das Armas, como se estivesse ele, então, admitindo que quem,por mérito de excelência superior, deveria mesmo ter sido contempladocom aquele prêmio honorífico fosse não ele, mas sim Ájax. É que as pro-clamações de Odisseu a louvar Ájax como “o melhor dos aqueus” atuali-zam-se em tempos e realidades precisas, em ocasiões outras que circuns-tanciam questões outras, que não são propriamente aquelas concernentesaos méritos heróicos enquanto critério de atribuição das armas de Aquilescomo prêmio ao melhor dos aqueus. O tempo e realidade de apreciação

2 Confiram-se as indicações dadas por Winnington-Ingram, p.58, n.4; também Fisher (p.312, n. 92) e Meier (p. 219).

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desta questão por avaliação judicante está já encerrado, finalizado. Aque-las proclamações de Odisseu não têm alcance retroativo a negar o fatoconsumado, elas não implicam questionamento de sua injustiça por vereditoequivocado de aferição de excelências heróicas. Quer-me parecer que adisjunção de tempos e realidades conformadas pelas narrativas míticas nãocomportem razões para uma tal inferência de (con)fusão hermenêutica.Lá, no tempo e realidade do Juízo das Armas, em que a questão se atualizapropriamente, a ação de Odisseu é totalmente outra que a suposta pelasconjecturas da crítica moderna: Odisseu tanto mais entende ser ele “o me-lhor dos aqueus” a merecer aquele prêmio quanto justamente assim oproclama, postulando seus reclamos naquela disputa com e contra Ájax.Não nos consta que então tivesse arguido a justiça de sua concessão afavor de seu adversário!

Mas, há ainda outro registro da memória poética que mais taxativa-mente proclama a excelência maior de Ájax na guerra troiana, pois singular-mente a representou como fato mesmo dessa realidade mítica, assim formu-lada em nome da voz narrativa do próprio aedo, Homero, que no Catálogodas Naus externou expressamente tal juízo, declarando que, “depois deAquiles, o melhor dos aqueus era Ájax Telamônio” (Ilíada, II.768-9).3

Então, já em Homero, obra de memorização a associar as figuras he-róicas de Ájax e Aquiles, assim as apresentando como marcos supremos derealização de excelência, de areté guerreira, no cerco à cidadela troiana. Pro-jeção paralela de valorações heróicas que a tradição mitográfica pós-homéricaconformou em genealogia, aparentando os dois heróis: de Éaco, filho deZeus, por Endeis, nasceram Peleu e Télamon, e destes, Aquiles e Ájax.4

3 Confiram-se também: Ilíada, XVII.279-80 e Odisséia, XXIV.17-18. Também Alceu ecoouessa formulação: “Da raça do rei Cronida, Ájax, o melhor após Aquiles”.

4 Apolodoro. Biblioteca, III.12. Confiram-se as indicações e comentários de Frazer aotexto de Apolodoro (p. 57), bem como as considerações de Fleischer no Léxico deRoscher (s.v. Ájax).

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Se então, fora Aquiles, Ájax era mesmo o melhor dos aqueus, porque no Juízo das Armas concederam os gregos tal título honorífico a Odisseu,e não ao Telamônio? Que razões objetivas fundantes da concepção herói-ca de excelência, areté, poderiam estar assim consagradas pela memóriadesse episódio? Ou, no vazio dessa falta de objetividade, apenas se podeter do acontecimento o desentendimento com que aqueles olhares subjeti-vos o denunciaram como iníqua injustiça, negação de tais princípiosfundantes da honra heróica, a estigmatizar para sempre o opróbrio doterrível erro helênico de sua decisão favorável a Odisseu?

Retomemos, pois, do princípio, recompondo o que nos restou dasmemórias narrativas com que os helenos contaram os episódios constituin-tes desse fato mítico.

Os jogos e as armas

A encerrar as honras fúnebres celebrantes do magnífico herói,Aquiles, sua mãe, Tétis, proclamou a abertura dos jogos, depondo nomeio da arena esplêndidos prêmios. Jogos e prêmios inigualáveis, con-soantes à excelência máxima do herói então glorificado. Apenas desseexcepcional maravilhamento de quem os assistiu – a alma de Agamêmnon,a relatá-los à de Aquiles, lá no Hades – diz a memória homérica dosmesmos.5

Já o mitógrafo posterior, Apolodoro, registrando-os pela crônica des-carnada de uma esquemática narrativa episódica, guardou a lembrançade alguns vencedores: Eumelo na corrida de carros, Diomedes no estádio,Ájax no arremesso do disco e Têucro no disparo do arco.6

5 Homero. Odisséia, XXIV.85-97.6 Apolodoro. Epitome, V.5-6.

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Então, por fim, o prêmio maior: as armas do próprio Aquiles. Qualprova melhor decidiria o mérito de sua posse? Pelos contornos damemorização mítica desse episódio confunde-se uma duplicidade de ra-zões. Por um lado, em justa conformidade com uma tal origem, aquelasarmas caberiam, por precípua herança de sua identidade heróica, ao “me-lhor dos aqueus”. E, por outro, implicavam-se razões de direitos guerreiros,devendo justamente possuí-las quem já as ganhara em combate: qual dosaqueus as salvara de cair em mãos inimigas?; quem, em meio à ferrenhaluta travada junto às Portas Céias, resgatara o cadáver de Aquiles, impe-dindo que os troianos o despojassem e aviltassem por múltiplos atosdesonrosos?

Dois estupendos heróis pleitearam os devidos reclamos por essahonra: Ájax e Odisseu. Mas, a qual dos dois, então, melhor cabia o méritodesse feito? Quem especialmente defendera o corpo de Aquiles, resgatan-do-o da confusão dos combates?

A memória homérica desse resgate é indefinida em suas alusões.Em uma delas, a alma de Agamêmnon, em relato à de Aquiles no Hades,lembra apenas o lutuoso combate ao redor do cadáver, a consumir miríadesde heróis de ambos os lados, e a preencher todo o dia, interminável emsua indecisão, até que Zeus o liquidou desencadeando tempestadeinviabilizadora de lutas. Êxito vitorioso de defesa aquéia do corpo, entãotransportado para as naus, longe da peleja, a já reclamar honras fúnebres.Quem, pois, o salvou? Apenas um “nós”, a comunidade dos companhei-ros, é assim referida por Agamêmnon.7

Uma outra indicação homérica conforma-se pelas aflitivas lembran-ças de Odisseu. O herói vagava em sua jangada por dezoito dias, à vista jádas montanhas feácias, quando a perseguição do deus irado, Posídon, oalcançou novamente, desdobrando-lhe outro padecimento: agitou contrao navegante solitário medonha tempestade, de turbulência caótica com-posta por todas as espécies de ventos. Então, consciência heróica do terrí-

7 Homero. Odisséia, XXIV.36-45.

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vel perigo, receando antever o anúncio cósmico de uma morte inglória. Àmente lhe vem a lembrança de outro episódio igualmente assim ameaça-dor: lá em Tróia, “quando inumeráveis troianos disparavam-lhe êneas lan-ças ao redor do Pelida morto”.8 Alusão que, por certo, apenas lembra aparticipação de Odisseu no episódio, não comportando senão inferênciaselípticas quanto a tudo o mais.

Dois poemas cíclicos especialmente narraram o episódio. Segundoa Etiópida, conforme o resumo registrado por Proclo, é Ájax quem se apo-dera do cadáver subtraindo-o aos inimigos, e o transporta para as naus.Odisseu cobre sua retirada, rechaçando os troianos.9 Assim também o afir-mava a Pequena Ilíada, pelo que se depreende do escoliasta que a mencio-nou a glosar uma passagem dos Cavaleiros de Aristófanes. E tradição nar-rativa similarmente fixada pelo relato do mitógrafo tardio, Apolodoro, quediz ter Ájax, após matar Glauco, despojado o cadáver de Aquiles de suasarmas, logo as mandando para as naus; já o corpo mesmo, retirou-o dapugna em meio à saraivada de dardos com que o agrediam os troianos. Aseu lado, Odisseu os combatia.10

Então, pela abordagem da razão desse feito guerreiro, prova insolú-vel, travada pelo impasse de uma indecisão.

Como Ájax e Odisseu dissentissem a disputar o primado acerca desuas respectivas excelências, a sapiência experiente de Nestor vislumbroua via de saída do impasse. No conselho dos helenos propôs que se envias-se dentre eles escutas a surpreenderem, sob as muralhas de Tróia, quejuízos trocavam os inimigos a respeito da bravura daqueles dois heróis.11

8 Odisséia, V.299-312.9 Um papiro (Oxirrinco, 2510), em estado bem fragmentário, talvez referente à Etiópida,

sugere, porém não cabalmente, uma inversão no retrato das ações heróicas de Ájax eOdisseu: este teria carregado o cadáver aos ombros, enquanto aquele defendia suaretirada (Fragmentos de Épica Grega Arcaica, p. 147).

10 Apolodoro. Epítome, V.3-4.11 Pequena Ilíada, 3 (escólia a Aristófanes, Cavaleiros, 1056).

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Assim, o ancião discernia o modo de alcançar uma decisão imparcial, poisnão distorcida pelas preferências dos vínculos subjetivos dos ajuizantes, eobjetiva, pois não direcionada pelos apelos circunstanciais implicados peloreclamo da própria situação judicante.

E os escutas ouviram uma discussão entre algumas jovens troianasque justamente desdobrava aquele debate. Uma delas discorria a favor deÁjax, “bem superior” a Odisseu, argumentando que fora ele quem “toma-ra o corpo do Pelida e o retirara” da pugna, o que Odisseu, pelo contrário,não se dispusera a fazer. Mas a outra troiana, “por premeditação de Atena”,não se convenceu, antes replicou-lhe que ela estava a proferir coisas absur-das e enganosas. Que impropriedades então falseavam aquele arrazoadoda primeira troiana, esclarecem-se pelos versos aristofânicos justamenteglosados pela escólia que os referia à disputa entre Ájax e Odisseu, outroranarrada na Pequena Ilíada, e supostamente atribuíveis à réplica da segun-da troiana:

“Mesmo uma mulher levaria a carga, se um homem lha depusesse;

mas não combateria, pois desabaria se combatesse”.12

Assim, o salsicheiro, na disputa de pronunciamentos oraculares tra-vada com o paflagônio pela obtenção do favorecimento, enquanto seuintendente, de Demos, desqualificava aos olhos deste qualquer mérito da-quele, Cléon, que se pavoneava por ter trazido para Atenas aquela cargade prisioneiros, os lacedemônios sitiados em Esfactéria: feito de tanta cora-gem quanto a de uma mulher, afeita apenas a encargos servis, ente inútilnas lides guerreiras próprias de homens, pois quem de fato conquistaraaquela vitória no campo de batalha fora Demóstenes, o comandante quechefiava os atenienses. E, assim, também argumentara a segunda troiana,a menosprezar as mesmas mazelas femininas do esforço de Ájax diante daviril virtude guerreira de Odisseu ao salvar o corpo de Aquiles.

12 Aristófanes. Cavaleiros, 1056-7.

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Outra história, similar a essa, também aludia à intervenção do pare-cer dos troianos a encaminhar decisão favorável a Odisseu. Ao narrar oencontro do herói com a sombra de Ájax no Hades, Homero menciona avitória do primeiro no Juízo das Armas de Aquiles, postas à disputa entreos aqueus como prêmio pela mãe venerável, Tétis. E afirma que assim o“ajuizaram os filhos dos troianos e Palas Atena”.13 Ao que o escoliastaaduzia a história explicativa. Fora Agamêmnon, para se livrar dos dissabo-res suscitados por aquele espinhoso julgamento, quem remetera a decisãoa um tribunal especialmente composto por prisioneiros troianos, deles in-quirindo qual daqueles dois heróis causara mais danos aos inimigos. Eestes apontaram Odisseu.

Assim, ajuizando a efetividade ruinosa da obra guerreira contra Tróia,decidiu-se pela eleição de Odisseu a disputa heróica pela posse das armasde Aquiles. Firmava-se agora que, na ausência e falta de Aquiles, Odisseuera assim “o melhor dos aqueus”.

Ájax e Aquiles

Mas, dos aqueus combatentes em Tróia, fora Aquiles, o melhor nãoera Ájax Telamônio?

Pela ótica revoltada de Ájax, a apreciação desse resultado favorável aOdisseu queixa-se amargamente contra os dois Atridas mais os aqueus to-dos, que assim o haviam injustiçado ingrata e despudoradamente. Depoisde Aquiles, era ele, Ájax, “o melhor dos aqueus”! Como, então, não o ha-viam assim consagrado os gregos por tal título heróico? Por que, na conces-são das armas do Pelida, o haviam preterido em favor de um velhaco, finó-ria raposa? Ótica acusatória certamente comprometida por contornos estri-tamente subjetivos de apreciação dos acontecimentos, pois virulentamente

13 Odisséia, XI.547.

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contaminada pelos rancores de uma pretensa vítima de suposta injustiça. Eótica que ainda se amplia pela corroboração de sentimentos ajuizantes deoutros sujeitos, afins do herói, que similarmente (des)apreciaram o episódio:também como injustiça despudorada, Têucro, seu meio-irmão, vituperoucontra aquela decisão aquéia.14

Todavia, ótica não apenas de representação subjetiva pessoal, comotambém inter-subjetiva, pois sua proclamação, ajuizando Ájax como “omelhor dos aqueus” após Aquiles, foi ecoada por outras vozes, agora deheróis desvinculados do círculo pessoal do Telamônio. Assim o afirmounão apenas Idomeneu15, mas ainda o próprio Odisseu, entretanto, justa-mente seu rival e ferrenho adversário naquele episódio mesmo do Juízodas Armas, a arrebatar-lhe então a precisa honra de ser como tal glorifica-do16. Também o inimigo troiano, Heitor, que com ele medira forças emduelo memorável, o reconheceu.17

E ainda, ótica que alcançou já foros de memorização histórica porformulação de representação objetiva, pois os poetas que narraram as his-tórias do mito a consignaram como fato mesmo em suas obras. Assim oafirmou expressamente o aedo, Homero.18 E, assim, o consagraram poetasposteriores: Alceu19 e Píndaro20. Depois, também o filósofo lembrou a ini-quidade da sentença.21 E já em nossa era, o viajante grego registrou amemória de uma lenda que também aludia à injustiça sofrida pelo Tela-mônio: os eólios, posteriormente habitantes de Ílion, tinham-lhe contado

14 Confira-se o Ájax de Sófocles.15 Ilíada, XIII.321-5.16 Odisséia, XI.550; Sófocles. Ájax, 1340-1.17 Ilíada, VII.289.18 Ilíada, II.768-9; XVII.279-80; Odisséia, XXIV.17-18.19 “Da raça do rei Cronida, Ájax, o melhor após Aquiles” (fr. 83; Edmonds).20 Neméias, VII.26-27; VIII.17-37; Ístmicas, IV.35-42.21 Platão. Apologia, 41b.

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que “quando Odisseu naufragou, as armas foram parar na praia junto àtumba de Ájax”.22 Assim, a cumplicidade da natureza maravilhosamentereparava o imperdoável erro humano.

Pois, Ájax e Aquiles, marcos supremos de realização de excelênciaheróica, de areté guerreira, no cerco à cidadela troiana. Projeção paralelade valores heróicos que a tradição mitográfica pós-homérica conformouem genealogia, aparentando os dois heróis: de Éaco, filho de Zeus, porEndeis, nasceram Peleu e Télamon, e destes, Aquiles e Ájax.23 E equipara-ção e confronto de virtudes que ensejou ao erudito tardio, Libânio, aindaapegado às tradições dos clássicos helênicos pelo século IV de nossa era,desempenhos de exercício retórico a compor uma Comparação entre Ájaxe Aquiles.

Areté

Mas o que, no plano das representações e conceituações míticas domodo heróico de existência humana, se entende pela qualificação de ser omelhor?

Entre a existência humana e o ser divino, o estatuto da condiçãoheróica situa modo ambíguo de ser, tão bem divino quão humano: huma-no porque estigmatizado pelo fato da mortalidade, e divino porque distin-guido especialmente por honras privilegiadoras de grandeza excepcional.Heróis são os áristoi, categoria diferenciada de guerreiros avançados, osprómachoi, que combatem à dianteira, assim distinguidos e mesmodissociados da massa dos meros combatentes anônimos, que compõemexército apenas pela realidade coletiva do número. Qualificações de me-

22 Pausânias. Descrição da Grécia, I.35.4.23 Apolodoro. Biblioteca, III.12.6 (confiram-se as indicações da nota de Frazer a Apolodoro,

p. 57, bem como as considerações de Fleischer no Léxico de Roscher, s.v. Ájax).

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lhor e primeiro que definem a excepcionalidade da excelência, da areté, desua dignidade guerreira.

E o poeta, Homero, diz a areté distinguidora de cada nome heróicoidentificando dupla instância de determinação, por um lado circunstancial,por outro atributiva. Ser o melhor supõe a circunstância de uma dada ecerta comunidade, um círculo demarcado de associação humana em queum indivíduo, bem nomeado, se distingue como o melhor de todos eles. Eser o melhor supõe também a especificação de um dado e certo atributoou qualidade por cuja prática aquele indivíduo singular se distingue e pro-va superior. Assim, no país dos lícios, não havia melhor arqueiro do quePândaro.24 Em sua comunidade, Mérope mais do que ninguém conhecia aarte profética.25 Já na sua, era Euridamante quem primava no domínio detal competência de hermenêutica onírica.26 Como caçador, em sua terra,Escamândrio a todos superava, perito mateiro.27 Por artífice, o melhor detodos era Féreclo.28 Como coureiro, o mais exímio era Tíquio, quem justa-mente confeccionou o escudo-torre de Ájax.29 Na comunidade dos feácios,excelente aedo era Demódoco, e já em Ítaca, Fêmio, que como ninguémconhecia os cantos das gestas de heróis.

Similarmente se concebem as precípuas excelências que distinguemindividualmente cada herói congregado por essa singular comunidade dosguerreiros helênicos expedicionários contra Tróia. Por prudência sapientede conselhos e deliberações, bem condizente com veneranda velhice,excelem os préstimos de Nestor.30 Por arte de arremesso do dardo, conta-vam os gregos com a perícia de Ájax Oileu, primoroso lanceiro, e ainda

24 Ilíada, V.171-3.25 Ilíada, II.831-2.26 Ilíada, V.149.27 Ilíada, V.49-54.28 Ilíada, V.60.29 Ilíada, VII.220-1.30 Odisséia, III.243-5; Ilíada, I.247-9.

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velocista formidável. Destreza no manejo do arco destacava a figura deTêucro, sem que acarretasse prejuízo de valor guerreiro para o combate deperto.31 Em dignidade régia, rei maior em poderio, firmava Agamêmnonsua areté.32 Na ciência da disposição e arranjo dos carros de guerra orde-nados em formação de combate, sobressaía-se o ateniense Menesteu, comquem só Nestor rivalizava.33 Por manhas e recursos astuciosos, Odisseunão tinha igual.34 E guerreiro maior, por força, bravura, coragem e demaisqualidades de virilidade bélica, Aquiles.

Mas também Ájax Telamônio lá estava, nos plainos troianos, en-quanto guerreiro campeão. Então, que âmbito mais precípuo de realizaçãode heroicidade bélica especialmente assinala a areté de Ájax?

A torre

Do alto dos muros de Tróia, Príamo interroga Helena acerca da iden-tidade dos campeões aqueus. Bem reparara num deles, de nobre porte,cuja figura enorme se destacava proeminente entre todos os argivos, tantopela altura quanto pelos largos ombros. Esse, respondeu a heroína, é Ájax,um colosso, baluarte dos aqueus.35

Figura gigantesca excepcional, Ájax tem consoante armamento dis-tintivo: o escudo. Terrível arma de defesa, robusta, densa por sete camadasde couro taurino revestidas por oitava brônzea faiscante, obra monumentalde lavor primoroso confeccionada por exímio artesão coureiro – Tíquio –,que resiste incólume, apenas reboando, ao portentoso tiro de ingente pedra

31 Ilíada, XIII.313-4.32 Ilíada, I.277-281.33 Ilíada, II.553-555.34 Ilíada, III.200-202; Odisséia, XIII.291-301.35 Ilíada, III.226-9.

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negra desferido por Heitor.36 Sua forma é especialmente singular: semelho auma torre, ou bastião de uma muralha.37 Sob sua proteção se refugia Têucro,hábil arqueiro, quando em combate se associa ao irmão: espiona os adver-sários aproveitando os deslocamentos com que o move Ájax, e rápido alve-ja um, logo se recolhendo àquele abrigo como criança que afunda no regaçomaterno.38 Arma rara, inusitada, relíquia da memória poética.39

Pelo escudo bem se distingue e identifica Ájax.40 Então, pýrgos –torre, bastião – denomina tanto o escudo, quanto o guerreiro que o por-ta.41 Assim, pois, Homero diz do armamento e idiossincrasia de Ájax.

Firmeza de manutenção de posicionamento e solidez de resistênciaguerreira que defronta e barra, inabalável, tenaz, jamais cediço ou fatiga-do, os avanços inimigos. Quando Idomeneu pondera junto a Meríones oponto onde deveriam ambos adentrar o combate, que mais necessitadofosse de defesa face à furiosa arremetida troiana contra as naus aquéias,logo descarta aquele em que depara Ájax. E aprecia, então, a excelênciaguerreira que o distingue:

36 Ilíada, VII.219-24; 263-7.37 Ilíada, VII.219.38 Ilíada, VIII.266-72. Prudente modo de combate de um arqueiro, pois quando Têucro,

animado pelo rol de adversários assim mortalmente feridos, delongou-se fora da prote-ção do escudo, falhando já por duas vezes em alvejar cobiçado inimigo, Heitor mesmo,e insistiu em um terceiro disparo, o adversário acertou-o primeiro com portentosa pe-drada, baqueando-o por terra desarmado. Então, presa inerte do “cão raivoso”, aindao salvou o irmão, resguardando-o pela proteção de seu escudo brandido ao redor(Ilíada, XI.330-1).

39 O escudo-torre, retangular alongado a cobrir as pernas também joelho abaixo, é ape-nas atestado arqueologicamente por representações figuradas datáveis do século XVIa.C. (Courbin, Problèmes de la Guerre, p. 95).

40 Cebríones, combatendo como cocheiro ao lado de Heitor, adverte-o da carga furiosado avanço aqueu, logo apontando o guerreiro assassino que o comanda: “é ÁjaxTelamônio, bem o reconheço, pois largo em torno dos ombros tem o escudo” (Ilíada,XI.526-7).

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“O grande Ájax Telamônio não recuaria diante de um homemque mortal fosse, que o fruto de Deméter comesse,e que pelo bronze ou por enormes pedras vulnerável fosse.Nem mesmo a Aquiles rompedor cederiano corpo a corpo; mas este, pela corrida, jamais teria rival”.42

Não há poder guerreiro, desde que humano, que mova Ájax a cedersua defesa: não o conseguiria nem mesmo o maior herói, excelência supre-ma de potência guerreira ofensiva, Aquiles. Recuo de Ájax, a retroceder suadefesa guerreira, só é admissível se concebido por meio de expressa decisãodivina.

E é assim que Zeus o detém, infunde-lhe temor, e o obriga à retiradadando realização ao avanço troiano que acossa os aqueus junto às naus.Então ele retrocede, escudo lançado às costas, mas só bem vagarosamente,compassando volteios de furor apavorante com que contém seus persegui-dores. Acata o retrocesso imperioso e, todavia, não é a saraivada de golpescom que o atingem que o força, a eles obstinadamente indiferente. Pelocontrário, é ele quem comanda os movimentos, que determina quando equanto permite de avanço inimigo. Eis como, retrata Homero, Ájax recuavae, assim o fazendo, justamente “a todos impedia de se encaminharem paraas céleres naus”.43 Ambígua concepção poética do retrocesso de um baluar-te guerreiro que jamais, mesmo então, perde sua precípua potência de bar-ragem.

Ájax, pois, bem compõe paralelo heróico com Aquiles, marcando re-alizações extremas de excelência de potência guerreira no cerco de Tróia.Assim o figurou o aedo, ao expor a disposição das tendas dos heróis quealinhavam o acampamento aqueu: diz que eles ambos, “em sua coragemconfiantes e na força de seus braços, puxaram suas naus para os extremos”.44

41 Odisseu precisamente assim qualifica a figura de Ájax: ele é a torre dos aqueus (Odis-séia, XI.556).

42 Ilíada, XIII.321-5.43 Ilíada, XIII.569.44 Ilíada, VIII.224-6.

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Postando-se como baluartes terminais da formação aquéia, cada um por simesmo compondo a defesa daquelas posições singularmente diferenciadaspor destacado perigo guerreiro, os dois heróis proclamam a primazia de suasexcelências, ao afirmarem a autonomia da bravura precípua com que asfundam. Mas, simetria especular de excelência guerreira suprema45 por dis-tintos princípios de eficácia beligerante: com Aquiles, furor de agressão ofen-siva, com Ájax, baluarte de resistência defensiva. Suas armas distintivas sim-bolicamente os assinalam: a lança para Aquiles, o escudo para Ájax.46

A expedição troiana

Então, a plêiade de heróis que compõe o corpo expedicionário gregocontra Tróia configura mosaico completo de diversos recursos de competên-cias beligerantes, todos configurados no nível da excelência heróica, cujacomposição e soma é devidamente requerida e apropriada para o melhorêxito da campanha bélica. Cada areté assim reclamada destaca no empre-endimento beligerante conjunto a presença e efetividade de uma precípuafigura heróica, bem nomeada por consoante fama. Cada e todo herói, par-ticipante do esforço bélico contra Tróia, afirma justa excelência como condi-ção de sua presença e, pois, como princípio guerreiro do êxito aqueu ecomo causa da ruína de Tróia.

Plêiade de heróis, diz o mito, desde o princípio destinada para a guer-ra troiana, pois originariamente congregada como rol de pretendentes a dis-putarem a mão de Helena, tendo juramentado a obrigação de seu singularempenho guerreiro na defesa da união conjugal então consumada. Todosos heróis, menos um, Aquiles, naquela ocasião, diz o mito, ainda muitojovem para postular reclamos nupciais. Mas, assim que os aqueus decidirammover guerra contra Tróia, Calcas, sábio profeta, bem os advertiu: que fos-

45 P. Masqueray. 1922, p. 3-4.46 G. Méautis. 1957, p. 14-15.

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sem em busca também de Aquiles, pois, sem seu concurso guerreiro, a forta-leza jamais seria tomada.47

Então, assim completos, congregaram-se os heróis aqueus pelo em-preendimento guerreiro contra Tróia.

A chefiar inúmeras incursões fulminantes, Aquiles arrasa o país troiano,saqueia e pilha por todos os lados, multiplicando-se os nomes das cidadesvencidas em terra e por mar, acumulando-se os bens e valores tomadoscomo despojos.

O próprio herói, na cena da embaixada em que argumenta denun-ciando a ingratidão de Agamêmnon no comando régio da expedição, realçao alcance devastador de sua potência guerreira:

“Doze cidades dos homens com minhas naus devastei,

e por terra afirmo que foram onze, na fértil Tróade”.48

De muitas incursões memorizou-se apenas o nome da cidade arrui-nada, cujo registro meramente acrescia marcas à fama de Aquiles, eversorde cidades. Assim, Lesbos, Focéia, Cólofon, Esmirna, Clazômenas, Cime,Egíalo, Tenos, As Cem Cidades, Adramiteo, Side, Êndion, Colone, TebasHipoplácia, Lirnesso, Antandro, e ainda várias outras que, entretanto, amemória helênica não guardou o nome.49

E, também os príncipes troianos, filhos de Príamo, tombaram pelasmãos de Aquiles. Assim, Troilo, de quem se diz que só nominalmente era seufilho, pois Hécuba o gerara de Apolo. Uma profecia prognosticava ainvencibilidade de Tróia, caso esse príncipe chegasse aos vinte anos de ida-de. Mas Aquiles desfez as esperanças troianas, cortando-lhe antes o fio davida.50

47 Apolodoro. Biblioteca, III.10; Hesíodo, Catálogos 68.48 Ilíada, IX.328-9.49 Apolodoro. Epítome, III.33.50 Confiram-se as indicações dadas por Frazer em suas notas ao texto de Apolodoro, v. 2,

p. 202.

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E eram já decorridos dez anos de guerra incessante, plenos de devas-tações e mortes, sem que, nem assim, caísse a cidadela. Pois, o troiano, filhode Príamo, que primava por sua defesa era um não menos formidável herói,Heitor, de elmo flamejante, obstáculo inexpugnável a frustrar as pretensõesaquéias.51

Mas as tramas dos desígnios divinos enredaram em um episódio osdestinos dos dois magníficos heróis, antagônicos diante de Tróia, Heitor adefendê-la, e Aquiles a investi-la. Esse episódio, principiado apenas comomais uma das inúmeras partilhas de despojos troianos, mas que agora en-volvia a honra do poder apolíneo por meio da figura de seu venerandosacerdote, Crises, então aviltado por Agamêmnon, desdobrou-se pela ira deAquiles, desonrado por Agamêmnon que o privara de seu justo prêmio deguerra.

O retiro de Aquiles

Aquiles, alheio aos combates, isolado em sua tenda, em cisão contraos aqueus: paradoxal desenlace da opção de um destino guerreiro. Pois,após longos dez anos de extenuantes esforços belicosos, acumulando fei-tos e mais feitos a afirmar sua excelência heróica, obtinha Aquiles, comoresultado desse primor de viver guerreiro, a desonra! O episódio, portanto,frustra a opção heróica de Aquiles, já que os esforços e riscos guerreirosvalem pela contrapartida de honras que eles finalizam. Ora, Aquiles cum-

51 Estrabão (Geografia, XIII.1.27, 594c) conta uma anedota em que se dizia que quandoFímbria, o questor romano destacado para as operações na Ásia Menor por ocasião daPrimeira Guerra Mitridática, tomou de assalto, após um cerco de dez dias, a cidade deIlium, pôs-se exultante a gabar-se de seu feito, proclamando-o bem maior do que o deAgamêmnon, pois este, embora provido de milhares de navios mais tropas de toda aGrécia, levara dez anos para consumar com muitas dificuldades o que ele, pelo contrá-rio, realizara em apenas dez dias. Mas um dos habitantes da cidade logo replicou: “Sim,pois o campeão da cidade não era Heitor”.

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pre os trabalhos da guerra, mas deles não lhe advêm honras, pelo contrá-rio, é delas privado. É essa negação do sentido próprio de seu singulardestino, que ele, queixoso, lamenta perante sua mãe, Tétis:

“Mãe, já que me gerastes, todavia para breve existência,

honra, porém, a mim devia conceder o Olímpio,

Zeus trovejante. Mas, agora não me honra nem um pouco,

pois o Atrida Agamêmnon, poderoso senhor, me

desonrou: tomou e detém minha recompensa, que ele mesmo tirou”.52

Na prece que dirige à mãe, Aquiles, lamentando os dissabores de seudestino guerreiro, queixa-se, não diretamente contra Agamêmnon, que odesonrou expropriando-o de seu prêmio honorífico, mas, sim, contra Zeus,dado como o princípio de determinação responsável pelo devido cumpri-mento desse destino enquanto plenificação de honras.

O rogo de Aquiles fora, assim, muito bem endereçado. Pois não sóreclamava distinções honoríficas da devida instância de poder divino a quemjustamente competiam os favores de sua concessão, Zeus Olímpio, quanto,ainda, intermediava seu pedido pela pessoa de Tétis, a quem favores passa-dos, prestados ao tempo em que Zeus firmava seu poder soberano, obriga-vam o beneplácito do rei dos deuses.

Assim formulado por Tétis e anuído por Zeus, viabilizou-se o modopelo qual se realizaria o destino honorífico da existência guerreira de Aquiles.Ele, que só dissabores e desgostos colhia de seus empenhos guerreiros, reti-rava-se dos combates, inativo em sua tenda. Dada esta sua ausência guerreira,aguardava-se o êxito troiano a acrescer vitórias sobre vitórias, em avançoirresistível contra as naus aquéias. Os gregos, então, assim terrivelmente acos-sados pela derrota, a acumular-lhes mortes sobre mortes, ver-se-iam obriga-dos a admitir sua dependência para com a força guerreira de Aquiles, cujoretorno à atividade exigiria, agora, a plena satisfação de sua finalidadehonorífica, a cumulá-lo de bens e distinções.

52 Ilíada, I.352-6.

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Então, a efetivação do sentido honorífico do destino guerreiro porqueoptara o viver de Aquiles conformava, agora por sua ausência da guerra, amais profunda contradição: paradoxalmente, a honra do herói advém, nãoquando e porque ele guerreia, mas, sim, quando e porque se afasta doscombates, evita a guerra.

E a decisão de Zeus, atendendo à súplica de Tétis, se realiza. A ausên-cia de Aquiles enseja a reversão do sentido por que, até então, se direcionavamos esforços do confronto guerreiro: pela falta de Aquiles, cessa a agressão docerco aqueu que acuava os troianos na cidadela, dando lugar ao avanço dadefesa troiana, agora já configurada como ofensiva que rechaça mesmo osgregos contra suas naus acampadas na orla praiana, a ponto de ameaçarincendiá-las.53 Assim, os troianos avançam decididos, imbatíveis em suainvestida, comandados e insuflados por Heitor, e os gregos, embora deno-dadamente heróicos, recuam, retrocedem no campo de batalha e são em-purrados contra as naus.

Tempo paradoxal de guerra em que, agora, os gregos sitiantes deTróia são compelidos à defensiva, empurrados para o abrigo de seu acam-pamento, pelos sitiados, assim invertendo-se o sentido do cerco entre quaisguerreiros compõem seu sujeito e quais seu objeto. E os gregos, agora, atua-lizam uma diversa comunidade guerreira associada diante de Tróia: sem oconcurso da ação de Aquiles, entretanto inativo em sua tenda. Já os troia-nos, Heitor bem os comanda, insuflando furioso ataque. Então, pelo inter-

53 Ilíada, V.787-791 (vejam-se os comentários de M.E. Edwards, 1987, p. 86). Este, pois,décimo ano de guerra troiana situa o tempo heroicamente apropriado para a edificaçãodo muro de defesa do acampamento aqueu, cuja necessidade bélica supõe a ameaçados avanços agressores troianos em uma situação conjuntural de guerra que configurasua vitória a mesmo intentar expulsar a invasão aquéia. Tal conjuntura bélica, por suavez, supõe, no âmbito humano, a ausência de Aquiles – como poderiam os troianosagredirem e vencerem em combate se os gregos têm Aquiles em suas fileiras? –, e noâmbito divino, a decisão de Zeus. Justamente, o episódio da ira de Aquiles no ano finalda guerra consuma a conjunção dessas condições heróicas para a edificação do murode defesa aqueu em Tróia.

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regno desse tempo que a ira de Aquiles demarca, bem se realiza o primadodo princípio heróico precípuo da areté de Ájax, baluarte gigantesco e jamaiscediço de resistência defensiva, verdadeira torre a conter e deter as agres-sões comandadas por Heitor. E, assim, Ájax bem se distingue e prima, den-tre os aqueus todos, por enfrentar Heitor: duela gloriosamente com o cam-peão troiano e, depois, mais do que todos defende as naus aquéias do imi-nente incêndio com que as ameaça o troiano. Pelo tempo da ausência deAquiles, Ájax é certamente, dada a atualização desse justo sentido defensivodo empenho guerreiro helênico, “o melhor dos aqueus”.

E assim claramente o consignou o poeta, ao catalogar a comunidadeaquéia congregada no cerco, inquirindo a Musa a declarar-lhe justamenteessa questão:

“As éguas de longe melhores eram as Ferecíadas,

que Eumelo dirigia, velozes como pássaros,de mesmo pêlo, mesma idade e com dorsos nivelados.

Elas que, na Piéria, Apolo do arco argênteo criou,ambas fêmeas, portadoras do terror de Ares.

Dentre os guerreiros, de longe melhor era Ájax Telamônio,enquanto Aquiles esteve irado; pois ele era bem superior,e também seus cavalos, condutores do irrepreensível Pelida.

Mas, ele nos navios recurvos, cruza-mares,quedava, rancoroso contra Agamêmnon, pastor de povos,

o Atrida; e os guerreiros junto ao quebrante das ondasdivertiam-se com discos e com dardos a disparar,

mais setas; e os cavalos, cada um junto a seus carros,a pastar o lótus e a salsa dos pântanos

ficavam; e os carros, bem recobertos, permaneciam nas régiastendas; e eles, pelo comandante caro a Ares pesarosos

erravam pra cá e pra lá, por meio do acampamento sem combater”.54

A Musa, assim interpelada pelo aedo a declarar-lhe quem era, dentreos heróis aqueus sitiantes de Tróia, o melhor, distingue dois tempos. Uma

54 Ilíada, II.763-79.

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ação demarca essa dissociação temporal: Aquiles em ira contra Agamêm-non. Aquiles irado, rancoroso contra Agamêmnon, insubordinado à chefiada expedição, situa precípua inação guerreira. Retirado dos combates,quedava sua potência bélica inerte no acampamento. Ao seu redor, polari-zado solidariamente pela resolução régia soberana, o espaço demarcadopela comunidade dos Mirmídones é similarmente contaminado por anula-ção guerreira. Dos guerreiros, uns/ora, mais despreocupados, entretêm-secompondo os prazeres atléticos próprios da dignidade heróica do lazer guer-reiro; já outros/ora, tomados de pesar, vagueiam errantes por esse espaço,traçando percursos inúteis, cuja única ação consiste em dissipar o tempobeligerante. Idêntico destino de inação guerreira alcança seus precípuos re-cursos e agentes de mobilidade bélica, condutores do irrepreensível Pelida:carros recolhidos, abrigados por cobertas protetoras; e cavalos que apenaspastam, prolongando contínuo o tempo que, entretanto, assim teria sentidosó momentâneo, a alternar ações beligerantes enquanto revigoramento.

Então, na atualidade desse tempo da ira de Aquiles, “o melhor dosaqueus” é Ájax Telamônio, pois então anula-se, nega-se a areté de Aquiles.Se não, “o melhor dos aqueus” é Aquiles, pois bem superior era.

Odisseu

Mas então, Pátroclo, o brioso companheiro de Aquiles, não mais re-sistiu à aflição angustiante de permanecer assim inativo, excluído das realiza-ções guerreiras, especialmente quando sua atuação era mais reclamada.Rogou ao caro amigo que o liberasse para a luta. Aquiles, embora apreensi-vo, autorizou-o a retornar ao campo de batalha, e até mesmo lhe cedeu,emprestada, sua própria armadura. E a investida beligerante de Pátroclo foibrilhante, devastadora, a rechaçar o ataque troiano e, inclusive, a reverter asorte da batalha. Mas foi, também, o fim de Pátroclo, que então tomboumorto aos golpes de Heitor, a quem se associara o poder de Apolo.

A ira de Aquiles, assim, paradoxal e tragicamente, finaliza a morte dePátroclo. Agora o herói, furioso contra Heitor, assassino do querido amigo,

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encerra o rancor contra Agamêmnon, termina o tempo da ira, e retorna aoscombates. É o fim de Heitor. Mas, o fim de Heitor é também o princípio dofim de Aquiles.

Então, morto Aquiles, novo tempo principia, atualizando diversa co-munidade aquéia sitiante de Tróia: agora irremediavelmente privada deAquiles. Ação beligerante de cerco a uma cidadela agora também diversa-mente solicitada em seu empenho: não há mais Heitor a combater, o guardiãomagnífico que obstava o empreendimento de sua tomada, afastando dasmuralhas as pretensões de investidas invasoras. Pois, agora, o princípio deareté firmado por Aquiles já o removera.

Na atualidade bélica reclamada por este outro tempo, consubstanciadopor essa precisa ação beligerante de invasão e tomada da fortaleza, quem é,agora, “o melhor dos aqueus?”. Ájax e Odisseu postam pretensões a talhonra heróica. Mas Ájax é areté guerreira de potência mais precipuamentedefensiva55, bem apropriada para eficaz resistência contra avanços de forçasinimigas, cujo empenho, entretanto, não é mais agora decisivamente recla-mado.

Ora, o que é agora então precipuamente reclamado como efetividadeguerreira – penetrar cidadela, assim ultrapassando o obstáculo de tremen-das muralhas intransponíveis, obra de confecção divina em que se associa-ram os trabalhos e poderes de Posídon e Apolo, a tornar inexpugnável acidade por elas cercada56 –, requer recursos de excelência bélica que nem

55 S. Scully (Homer..., p. 120) comenta, de passagem, os limites com que a figura heróicade Ájax é retratada na Ilíada: “...diferentemente de Aquiles, ou mesmo de Diomedes, ofogo do agressor não queima dentro dele, e ele é o único herói aqueu sem uma aristéia”.

56 A Ilíada refere-se, por duas vezes (VII.452-3 e XXI.441-57), a esse episódio dos traba-lhos de construção das muralhas de Tróia por Posídon e Apolo assalariados por um anoa Laomedonte. Dualidade de ações divinas que fortalece a obra amuralhada consoan-te aos poderes precípuos das duas divindades, dotando-as Posídon de força e resistên-cia física por obra maciça, colossal, enquanto Apolo, pelos poderes encantatórios desua música, protege-as por auras de inviolabilidade mágica (confiram-se, nesse sentido,os comentários de S. Scully, Homer..., p. 32 e 51-2).

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força, nem coragem, nem bravura ou quaisquer outros modos de apenasvirilidade guerreira suficiente e apropriadamente contemplam: mesmo o heróique, entretanto, era por essas virtudes supremo de excelência, Aquiles, nãoconsumou tal feito militar, ainda que realizando desempenho guerreiro irre-preensível diante de Tróia. Após dez anos de extenuantes empenhos de sua,entretanto, terrível potência guerreira agressiva, permaneciam incólumes asmuralhas, inviolado o interior citadino troiano.57 Onde nível de força desco-munal é reclamado do herói, inalcançável mesmo para sua grandeza herói-ca, fica inviabilizada a força mesma como recurso de sua superação. Assim,adentar a cidadela supõe e requer tramas especiais, pois, para superar oadversário há que, paradoxalmente, contar com a própria cumplicidade davítima a viabilizar sua derrota.58 O feito heróico exitoso supõe agora outravia: a ação da inteligência astuciosa, a obra de métis.59

Ao eleger Odisseu, agora, o melhor dos aqueus, em ajuizando aprecípua efetividade ruinosa de seu princípio de excelência heróica para o

57 Assim também o entendeu a tradição mítica suposta pela glosa do escoliasta à passa-gem odisséica (VIII.73-82) alusiva a um dos cantos do aedo feácio, Demódoco, em quecelebrava a história da dissenção querelenta por que se hostilizaram Aquiles e Odisseu,supostamente ocorrida após a morte de Heitor: disputavam então qual o modo debeligerância apropriado para a tomada da cidadela troiana, cada herói propugnandopelo primado honroso de seu respectivo domínio de excelência heróica: se a força eviolência física defendida por Aquiles, se a inteligência engenhosa por Odisseu (confi-ram-se as indicações fornecidas por J. S. Clay, The Wrath of Athena).

58 Estes mesmos modos de trama dolosa estão supostos no episódio do Ájax sofocleanona cena em que o herói, ludibriado pela métis de Atena, acaba por confessar seus atoscriminosos contra os aqueus, assim fornecendo a Odisseu as provas que o incriminamdecisivamente (confiram-se nosso comentários no ensaio Ájax, Atena e os (des)caminhosda Métis). Similarmente ocorre no episódio da disputa agonística da corrida de carrosentre Menelau, e Antíloco (veja-se nosso outro ensaio Menelau, o Herói Segundo).

59 Confiram-se os preceitos com que Nestor ensina seu filho, Antíloco, a alcançar a vitóriaquando em situação de inferioridade de bíe (Ilíada, XXIII.304-348). Na Odisséia, asaventuras do herói reiteradamente afirmam esse princípio heróico, exemplarmente as-sinalado pelo episódio de seu defrontamento com Polifemo.

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destino da guerra, os aqueus reconheceram e consagraram a realidade damétis, da astúcia, como arte melhor apropriada para o êxito último de suasingular finalidade guerreira. Assim, ao tempo heróico do primado de Aquiles,apenas cindido pelo interregno do tempo heróico do primado de Ájax, suce-de o tempo heróico do primado de Odisseu. É o tempo da efetividadeastuciosa decisiva, emblematicamente atualizada pela métis do Cavalo dePau. É o princípio último do fim de Tróia. Odisseu, realização heróica desseprincípio, digno sucedâneo de Aquiles, é então bem justamente “o melhordos aqueus”.

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V. Menelau, o Herói Segundo

Quando jovens guerreiros partem de casa inaugurando trajetóriasheróicas, ouvem as preleções paternas. Uma recomendação, em especial,lhes dita o princípio fundante da ação heróica: “sempre distinguir-se e atodos sobrepujar”.1 Assim falaram Peleu a Aquiles e Hipóloco a Glauco, quan-do eles foram combater nos plainos de Tróia.

Heróis, indivíduos humanos que se distinguem no campo de batalha,compõem uma categoria diferenciada, um rol de guerreiros distinguidos, osprótoi, os primeiros, que combatem posicionados na dianteira, à frente doexército. Também ditos áristoi, os melhores.

Então, como uma categoria diferenciada, os áristoi, guerreiros avan-çados (prómachoi) que combatem na dianteira, também nomeados de osprimeiros (prõtoi), se distinguem bem dissociados da massa anônima quecompõe o exército. A areté, marca de excelência que os define, funda suasuperioridade distintiva, proclama sua dignidade heróica.

Mas, o preceito de sempre se distinguir e a todos sobrepujar, princí-pio mesmo de toda ação heróica, reclama âmbitos de distinção que nãoapenas esse, próprio da pertinência à categoria dos áristoi, como, ainda,níveis de distinções individuais entre eles mesmos, a permanentementerivalizarem, antagonizarem entre si, disputando a fama de ser o melhor, deser o primeiro.

Também Menelau é um herói. Que singular atributo virtuoso de ex-celência superlativa, a defini-lo como melhor, como primeiro, consagra a

1 Ilíada, VI.208; IX.785.

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específica heroicidade de Menelau? O episódio da corrida de carros nosjogos fúnebres de Pátroclo nos dá uma pista.

Abrindo os jogos fúnebres em honra de Pátroclo, Aquiles dispôsmagníficos prêmios com que seduzia os aqueus a disputarem a primeiraprova, a corrida de carros2: “uma mulher irrepreensível, perita trabalhado-ra, mais uma trípode alada de vinte e duas medidas para o primeiro colo-cado; uma égua de seis anos, indomada, prenhe de um mulo para o se-gundo; um caldeirão, de alvura ainda incólume ao fogo, belo, contendoquatro medidas para o terceiro; dois talentos de ouro para o quarto e umavasilha bialada incólume ao fogo para o quinto”.3

Cinco prêmios ofertados, cinco heróis apresentam-se desejosos deganhá-los. Levantam-se de seus lugares em ordem seqüencial de iniciativaque manifestava, dada a excelência respectiva de seus cavalos mais carroajustado, a correspondente prontidão de confiança maior que cada umdepositiva em sua vitória.4

O primeiro, Eumelo, filho amado de Admeto, primoroso na condu-ção de carros, que justo por essa arte distinguia sua excelência heróica(areté)5. E contava com cavalos preciosos, “duas éguas velozes como pás-saros, de mesmo pêlo, mesma idade e de dorsos nivelados”. Animais ex-cepcionalmente providos de zelos divinos, pois “cuidadas por Apolo” nosdomínios do rei de Feras quando o deus prestou seu ano de servidão tessália.

2 Para a interpretação deste episódio iliádico, vejam-se as análises de J. P. Vernant e M.Detienne inseridas na coletânea Les Ruses de l’Intelligence, Paris, 1975, p. 7-31. Vale-mo-nos igualmente das ricas indicações providas pelos comentários de N. Richardsonao texto iliádico.

3 Ilíada, XXIII.262-270.4 Ilíada, XXIII.285-286.5 Ilíada, XXIII.289; 536. Pela memória poética iliádica, todo destaque da presença guer-

reira de Eumelo nos plainos de Tróia reduz-se apenas a este feito da disputa de carrosnos jogos fúnebres de Pátroclo.

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Elas, as “Ferecíadas, eram de longe as melhores” dentre todos os corcéisgregos presentes em Tróia, tirante os cavalos de Aquiles.6

A seguir, Diomedes, de todos os cinco, herói superior.7 Concorria tam-bém com animais estupendos, pois possuía agora, ganhos em combate aEnéias8, os cavalos do troiano. Prole de raça divina, cria gerada do cruza-mento das éguas de Anquises com aqueles corcéis da casa real troiana queoriginariamente Zeus dera de presente a Trós em contrapartida compensa-tória pela perda de seu filho Ganimedes, raptado para destino glorioso decopeiro celeste junto ao rei dos deuses. Uma excelência valia outra: pelabeleza maior do filho dentre os mortais dava-lhe o Cronida “os melhores detodos os cavalos sob a aurora e o sol”.9

Depois, Menelau, também munido de excelente parelha, pois a Po-dargo, seu próprio garanhão, juntara Eta, a égua pertencente a Agamêm-non, fogosa corredora.10

O quarto competidor, Antíloco, que, embora jovem, conhecia bem aarte de condução do carro, mas inferiorizado por cavalos menos rápidos.11

6 Ilíada., II.763-767.7 Ilíada, XXIII.356-357.8 Ilíada, XXIII.290-292. Igualmente: Pausânias, Descrição da Grécia, 5.24.5 e Apolodoro,

Biblioteca, 2.37.9 Ilíada, V.265-272 e XX.232-235. Assim, dos cavalos de Aquiles – Xanto e Bálio –, pelos

de Eumelo até os de Diomedes configura-se um gradiente de excelência superior con-soante ao grau de contato divino que distingue respectivamente o ser desses animais:imortais os primeiros (presenteados por Posídon a Peleu, quando de seu casamentocom Tétis), que, crias da união da harpia Podarge com o Zéfiro em epifania eqüina, dospais herdaram a conjunção de essências de velocidades superlativas, dele porque omais rápido de todos os ventos, e dela porque funda em tal força e ímpeto de rajadaventosa as capacidades de sua ação raptora (Ilíada, XIX, 415-417 e XVI.149-152 comos comentários de Janko); de trato apolíneo os segundos, as éguas de Eumelo; e progê-nie cruzada de raça divina com mortal os terceiros, detidos por Diomedes.

10 Ilíada, XXIII.293-299.11 Ilíada,XXIII.309-312 e 301-304.

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E, por último, Meríones, não só, como Antíloco, desfavorecido porcorredores “os mais lentos”, quanto ainda prejudicado por certa imperíciatécnica nessa modalidade de competição.12

Conhecidos os competidores, um sorteio ordenou o alinhamento departida: primeiro posicionou seu carro Antíloco, a seguir Eumelo, depoisMenelau, e então Meríones, por fim Diomedes.13

O percurso, Aquiles o definiu apontando “a marca” de viragem eretorno, “ao longe na planície lisa”. Por lá se encontrava Fênix, venerávelancião, para que respondesse, como “observador”, pela “memória e relatoverídico dos fatos da corrida” por ele presenciados.14

Então partiram, compelindo os corcéis a tomarem a dianteira porviolentos estímulos físicos, em que se somavam efeitos similarmente com-plementares de golpes de rédeas sacudidas contra o pescoço dos cavalosmais gritos contundentes. Logo se manifesta, aos espectadores que ficam, lána partida-chegada no aguardo do desfecho, apenas a confusão da corrida,por competidores velozmente mais afastados das naus ganhando a planíciee visão então turvada por nuvens de poeira que pronto tomam a pista.15 E,ansiosos por antecipar a honra pessoal de conhecimento do resultado daprova, suscitam disputas de apostas, com Idomeneu externando surpresa aoparecer-lhe vislumbrar Diomedes à frente, contrariando os prognósticos quedavam Eumelo como pleno favorito, ao passo que Ájax Oileu contestava osdistúrbios desse seu discernimento, asseverando antes a normalidade previ-sível do resultado da corrida. Mas apostas inflamadas por trocas de desafiosinjuriantes, que por pouco não descambam em querelas mais violentas, nãofosse a intervenção autoritária de Aquiles, que sabiamente as reprimiu.16

12 Ilíada, XXIII.530-531 e 351.13 Ilíada, XXIII.352-357.14 Ilíada, XXIII.358-361.15 Ilíada, XXIII.362-372.16 Ilíada, XXIII.448-498.

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Dessa confusão, por fim, surgiu distinta a figura de Diomedes a con-duzir, incansável em seu ardor, furiosamente o carro, a quase voar pelapista, apenas deixando na areia tênue rastro indiciador de seus contatos.Depois, vislumbrou-se a acirrada disputa entre os carros de Antíloco e deMenelau, aquele à frente, mas este já praticamente o alcançando, quasetocando-lhe por trás: assim cruzaram a chegada. Mais distanciado – o al-cance de um arremesso de dardo – chegou Meríones.17

E, surpreendentemente em último, o entretanto a princípio favorito,Eumelo, que voltava em lamentável estado indiciador de desastroso aci-dente, por contusões de cotovelos, boca e nariz esfolados, mais ferimentosna testa e ainda carro quebrado. É que os deuses contenderam tambémseus poderes – Apolo contra, mas Atena por, Diomedes – a decisivamentedefinir o resultado da disputa de sua acirrada perseguição ao carro deEumelo, que tomara a dianteira: o deus, irado contra o filho de Tideu18,causara-lhe a queda do chicote a frustrar-lhe os desígnios de vitória, mas adeusa protegera seu favorito, não só restituindo-lhe o instrumento e insu-flando ardor em seus cavalos, como ainda quebrando o jugo da atrelagemde seu adversário! Então, pela sobreposição determinante dos jogoshonoríficos dos (des)afetos divinos para com os distintos heróis, viabilizou-se a ultrapassagem de Eumelo por Diomedes, que agora disparando àfrente ganhou a corrida.19

Apiedando-se pelo infortúnio do herói, Aquiles intentou reparar aaparente “injustiça” daquela reversão de resultado da prova, que relegavaao último lugar quem, entretanto, por fama de excelência nela seria antes o

17 Ilíada, XXIII.499-513 e 514-529.18 O desfavor de Diomedes junto a Apolo suscita a lembrança de desavenças em episódio

anterior, quando o herói em perseguição a Enéias atrevera-se a acossar o deus queinterviera a salvar o troiano da sanha assassina de seu adversário. Mas, também, ahonra apolínea intriga-se ainda mais no desfecho da corrida, a projetar a vitória daséguas de Eumelo, objeto de seus cuidados divinos.

19 Ilíada, XXIII.373-400 e 532-3

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primeiro, propondo então conceder a Eumelo pelo menos o segundo prê-mio: a égua cobiçada.20 Todavia, Antíloco, que ganhara este posto, protes-tou contrariado com aquela decisão, agora arrazoando objeções por quereclamava contra a indevida privação de honra de que assim seria vítima.Por um lado, sentenciou no acidente de Eumelo antes a “justiça” do desfavordivino para heróis que descuidam de conciliar por piedosas preces a prote-ção dos imortais para o melhor êxito de seus feitos. E, por outro, censurouainda a decisão do líder Pelida, acusando a impropriedade daquele seuoferecimento, que então dispunha de um bem que já não era seu: a éguavirtualmente pertencia agora às posses dele, Antíloco, pois fora por eleganha, de modo que se Aquiles desejasse, por sentimentos pessoais decompaixão e predileção benévola, compensar Eumelo, que realizasse seudesejo mas às custas de seu próprio tesouro, acumulado de prendas váriase inúmeras em sua tenda guerreira, indo lá colher qualquer outro prêmio.

Aquiles, então bem-humorado, acatou os protestos de Antíloco, des-tinando, pois, como prêmio a Eumelo valiosa couraça, que ele outroraarrebatara em combate a Asteropeu.21

Já Menelau, furioso, revoltou-se contra aquelas pretensões do filhode Nestor, decidido a contestar-lhe a suposta vitória. Pondo-se de pé, emmeio a todos, provido do cetro pelo arauto, tomou solene a palavra. Pri-meiro estigmatizou, na obra desonrosa daquele pretenso feito que deslus-trava a excelência heróica dele, Menelau, antes a perda da fama de sensa-tez até então prevalecente de seu jovem antagonista, ao assim ousar inver-ter a ordem dos devidos méritos em disputa naquela prova, pois dispunhade cavalos bem inferiores! Poderia, segundo logo aventou, fazer valer suacondição superior no quadro da chefia da expedição para impor, pura e

20 Richardson anota em seus comentários (p. 228) que o pronunciamento de Aquilesbem (cor)responde, pelo modo de concepção da honra heróica que sua figura míticapersonifica, a buscar sempre firmar o primado do reconhecimento dos méritos da exce-lência (areté) superior a sobrepor-se contra as desordens ocasionadas fortuitamente.

21 Ilíada, XXIII.533-565.

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simplesmente, por um ato de força – em tomando posse da égua – a rever-são do resultado que marcaria o fato de sua vitória em razão da denúnciaque então pronunciava. Mas, a este ato de violenta autoridade, que deixa-ria em suspenso a verdade do ocorrido por maldosa suspeita de qualquertrama mentirosa de sua parte, Menelau preferiu firmar a melhor justiça desuas reivindicações, obtendo igual objetivo por acatamento às suas devi-das regras formais de procedimento judicante. Assim, proclamou ritualmenteo ato acusatório finalizador de reta sentença: desafiou Antíloco a juízo,conclamando que, de pé diante dos animais e carro, portando o látegocondutor e mão deposta sobre os cavalos, prestasse juramento sob o sacropoder de Posídon de “que não entravara voluntariamente e por dolo” apassagem de seu carro.22

Assim, Menelau denunciava a ilegitimidade de uma vitória suspeita,reclamando apropriada justiça por contenda judicante. Especialmente, ale-gava o prejuízo de que fora vítima por uma manobra dolosa da parte deAntíloco.

Mas, afinal, o que se passara na corrida entre Antíloco e Menelau?

Tudo começou ainda antes da partida, pelos conselhos com queNestor instruiu seu filho para um melhor desempenho naquela disputa.

Com apurado descortino, o ancião precisou qual era a singular difi-culdade que a corrida antepunha a Antíloco. Não que este, embora jovem,ignorasse as técnicas de condução do carro, pois fora agraciado por donseducativos de Zeus e Posídon delas cientes. Sua grande desvantagem resi-dia na lentidão dos cavalos de que dispunha, corredores bem menos velo-zes que os de seus adversários. Assim, em tal condição desvantajosa,inferiorizado nas relações de força precípua reclamada para a vitória, só lherestava uma outra via de êxito: contrapor ao valor da força a ativação dosrecursos da “inteligência astuciosa” (métis), a qual sabe atinar idéias apro-

22 Ilíada, XXIII.566-585.

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priadas para superar as dificuldades antepostas ao sucesso do empreendi-mento. Esse, seu bom conselho: que o filho compusesse no espírito “enge-nhos variados”, modo por que finalizasse persistente o prêmio almejado!Pois,

“Por engenho carpinteiro é bem melhor do que por força;

Por engenho também piloto em mar vinhoso

navio veloz sacudido por ventos direciona;

e por engenho cocheiro sobrepuja cocheiro”.23

É que, ponderou Nestor, nas provas onde o emprego da força é atua-lizado, nem fica excluído o valor eficaz da idéia inteligente a governar esseemprego, como antes é pela superioridade desta capacidade mental que seafirma o predomínio na competição. Mesmo porque a superioridade apenasde força acaba por ter um efeito antes negativo, paradoxalmente também adiminuir as chances de vitória, já que, por demais confiante na vantagem dedispor dos melhores cavalos, o competidor descura a ação reflexiva, pelaqual se domina tecnicamente a realização da prova, e então perde o contro-le de sua condução, desvia e erra pela pista, arruinando a vitória. Pelo con-trário, quem parte em situação desvantajosa de força por dispor de cavalosinferiores, acrescenta valor inteligente a seu empenho na disputa, aumen-tando-lhe as chances. A ação astuciosa supõe, então, explorar inteligente-mente todas as manhas com que tirar vantagem de quais situações a provaenseje.

E destas situações e manhas, algumas são, já de princípio, conheci-das, previsivelmente dominadas pelas instruções do saber técnico precipua-mente reclamado. Nestor prodigamente aconselhou-as a seu filho, avivandoos preceitos de tal memória sapiente. Primeiro, na partida, ordenar o elã deavanço máximo dos cavalos, todavia regulado pela prioritária preservaçãodo controle diretivo dos animais: um justo domínio do jogo das rédeas.

23 Ilíada, XXIII.315-318.

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Assim, o cocheiro minora o destino inicial de retaguarda imposto por cava-los inferiores. Então, dupla atenção: por um lado no antagonista à frente, deoutro na marca de viragem. E esta segunda atenção, a decisiva. Nestor pro-picia, pois, ao filho todas as detalhadas indicações de manifestação visualpor que claramente a reconhecesse, de modo que não escapasse à sua aten-ção perceptiva: “tronco seco, carvalho ou pinheiro, a uma braça acima dochão, ladeado por duas pedras brancas”.24

Por que de toda essa atenção vigilante com a marca? É que lá, ad-verte Nestor, acontece o grande momento da prova: a viragem! Entende oancião que quem, com mestria de perito, executa à perfeição essa mano-bra em primeiro, não perde mais a corrida! Ali joga-se o domínio da vanta-gem decisiva, pois irreversível se define então a dianteira, toda perseguiçãoagora ficando condenada à frustração de seu intuito, mesmo aquela dota-da da excelência precipuamente eficaz de cavalos os mais velozes, de raçadivina, quer o de Adrasto – Árion, cria de Posídon presenteada ao rei porHéracles – quer os de Laomedonte. Então, as instruções técnicas de umperfeito contorno: exploração máxima da proximidade estreitíssima da vi-ragem junto à marca, regulável pela percepção de apenas aparente conta-to, o cubo da roda a roçá-la sem, entretanto, tocá-la; então, corpo ligeira-mente penso à esquerda, desse lado jogando a contribuição do peso parao êxito da manobra; jogo dissimétrico das rédeas, mais frouxas para ocavalo de fora em maior avanço também incitado por golpes de gritos eaguilhão, mais tensas para o de dentro a frear algo. Manobra crucial, tênuelimiar que arrisca perfeição contra ruína fatal de um toque desastroso namarca.25

Encetada a corrida, atualizam-se os destinos de dianteira e, de fato,Antíloco fica justo atrás de Menelau, que corria em segundo, pois Diomedes,favorecido pela arte de Atena, disparara à frente, com agora Eumelo já alijado

24 Ilíada, XXIII.326-333.25 Ilíada, XXIII.322-343.

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da disputa por uma “sorte” infausta. E, como bem o percebeu o filho deNestor, este fato antecipava já a glória do Tidida vencedor, não mais alcan-çável. Assim, tudo que Antíloco almejava era agora ultrapassar Menelau!

Assim, manteve atenta perseguição a seu adversário, explorando aomáximo as possibilidades de avanço de seus cavalos, incitando-os à aproxi-mação por todos os modos de estímulos acicatadores, quer de sua honra decorcéis ciosos da virilidade de machos, então ameaçada pela injúria de umaderrota para uma égua – Eta, guiada por Menelau –, quer de seus instintosmesmos de sobrevivência por advertências violentas de punição em caso dedesfecho desonroso. Isso exigia ele de seus corcéis, que não perdessem con-tato com o carro de Menelau. De si mesmo, de sua arte e de sua reflexão,também tiraria todo proveito, atento permanentemente a aguardar o ensejodo momento propício de fazê-las valer: esperava algum eventual estreitamentoda pista, ocasião que não deixaria escapar para deslizar à frente de seuadversário!26

E o kairós surgiu, pois à frente dos dois contendores eis que a pistaapareceu estreitada por um desbarrancamento causado pela torrente daságuas da chuva, que nela escavara uma fenda.27 Por lá enveredara já Menelau,cuidando por evitar o embate. De pronto, Antíloco, todavia tirando seuscavalos algo da estrada e inclinando de lado, emparelhou com o carro doAtrida, visando à ultrapassagem. Menelau, por medo acautelador contra orisco do choque, revoltou-se com a manobra do adversário, com ele gritan-do a que desistisse de seu intento, logo acusando seu desvario por(in)conseqüente desastre:

“Antíloco, loucamente diriges; antes contém os cavalos;

pois estreito o caminho, mas logo alargado para ultrapassagem.

Não assim nós ambos arruines contra o carro chocando”.28

26 Ilíada, XXIII.401-416.27 Ilíada, XXIII.418-421.28 Ilíada, XXIII.426-428.

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Mas Antíloco, como que surdo àquelas reprimendas e advertência,não desistiu, pelo contrário, forçou, ainda mais decidido, a ultrapassagem.Então, por boa distância – alcance do arremesso de um disco por jovemvigoroso – persistiram emparelhados os dois corredores. Quem cedeu emfreando seus cavalos, assim evitando o choque, mas assumindo ficar natraseira a permitir o avanço do adversário? Foi Menelau! E, todavia, nãoconteve sua revolta furiosa, primeiro injuriando Antíloco com vituperar-lhea excelência antes em espírito pernicioso, agora desmentindo a anteriorreputação de sensatez, e logo desafiando-o por duras ameaças com quelhe faria responder, sob juramento, por aquela manobra, garantindo frus-trar-lhe a obtenção do prêmio finalizado por uma tal suspeita ultrapassa-gem!29

Mesmo assim, o denodado Menelau não desistiu da disputa, antesainda mais incitou seus cavalos a empenharem a perseguição no alcance doadversário, pois contava com a maior resistência vigorosa de seus animais,não carentes de juventude como os de Antíloco. E pelo ardor excelente ago-ra aumentado de sua égua, Eta de belas crinas, foi progressivamente encur-tando a distância que os separava – de início igual à do arremesso de umdisco –, justamente o alcançando a colar seus cavalos na traseira do carro dojovem no ponto de chegada, e mesmo o ultrapassaria, fosse pouco maior opercurso!30

Certamente, portanto, que a vitória consumada por Antíloco contraMenelau valera-se da obra de uma ação astuciosa, envolvendo golpe dolosodesordenador das relações de superioridade dadas de início, como corre-tamente o acusou o Atrida por aquele desafio juramentado, com que con-testou a obtenção do prêmio ambicionado pelo jovem filho de Nestor.

E Antíloco não se dispôs ao juramento, antes dele desviou ponde-rando outras razões. Assim, reverente à autoridade de Menelau, respon-

29 Ilíada, XXIII.429-441.30 Ilíada, XXIII.442-447 e 514-527.

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deu-lhe por, todavia, sensatas palavras conciliatórias, conformando justassatisfações a ressarcir a honra de seu antagonista por ele ofendida. Logoapelou a que Menelau revelasse melhor espírito compreensivo e coraçãopaciente a dominar explosões de reações zangadas, apanágio de superio-ridade de homens maduros. Pois, justamente, todo o ocorrido não passarade inferiores arroubos de arrogância juvenil de sua parte. O jovem ousaimpetuoso, mas, para tanto, seu espírito é precipitado e, então, a manhaque concebe é frágil. Termos, pois, de uma proclamação restauradora daordem hierárquica transgredida. Daí, completou Antíloco as demais satis-fações dela ressarcidoras, não só restituindo de pronto o prêmio contesta-do, como ainda dispondo-se a reparar mais eventuais agravos por ele co-metidos, assim pagando quais outros reclamos honoríficos Menelau pre-tendesse. À toda ambição de vitória, por mais imperiosa que fosse para aostentação de sua honra heróica, o jovem filho de Nestor preferia declararo primado da boa ordem, a ele valiosa pela preservação tanto do afetohumano do Atrida quanto de sua reputação divina de piedosa inocência.31

Assim, Antíloco conformou uma resposta de reta justiça e, todavia,plena de ambivalências, pois, em reconhecendo, mas apenas subliminar-mente, os direitos reclamados por aquela acusação de insensatez e dolofraudulento que lhe dirigira Menelau, igualmente dissipou estas razões mes-mas, dando agora bem mostras de sua conduta, antes pautada pela melhorprudência e ética respeitosa!

Ao que (cor)respondeu similarmente a magnanimidade generosa deMenelau, o espírito já abrandado pelas satisfações a ele concedidas. Rigorde praxe, reiterou a primazia de sua honra, pela lição alto e bom som precei-tuada ao jovem: “uma segunda vez evita enganar superiores”.32 Daí, tam-bém deu mostras de grato reconhecimento: pelos muitos penares e sofri-mentos que não só ele mesmo, Antíloco, como ainda seu venerável pai,Nestor, mais seu irmão, enfrentavam, lá em Tróia, pela causa de sua honra,

31 Ilíada, XXIII.587-595.32 Ilíada, XXIII.605.

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Menelau proclamava que era ele quem, justo detentor do prêmio, o presen-teava a Antíloco! E, solene, proclamou a razão virtuosa por que assim agia,firmando a melhor fama de sua figura heróica, imune à arrogância e à infle-xibilidade. Da palavra passou ao ato, de modo que deu a égua a Antíloco,entregando-a nas mãos de seu companheiro Noémon; e, para si mesmo,tomou como prêmio o caldeirão reluzente.33

É que nesse jogo de concessão de dons, assim objetivamente trama-do por meio do ritual jurídico de reconciliação entre os dois contendoresheróicos, Menelau age novamente induzido pela manobra que a oferta deAntíloco implica. Pois, agora, o campo da disputa entre ambos deslocou-sedo domínio competitivo dos jogos para o âmbito dos afetos da amizadeque se regula consoante as normas de hospitalidade.34 O que situa a (re)açãode Menelau em um impasse, pois, se ele pretende (rea)firmar a superiori-dade hierárquica de sua condição suserana, cabe-lhe, pelo simbolismohonorífico dessa prática de concessão de dons, ser quem os dá, a marcarem quem os recebe o status de subordinado à sua generosidade régia.

Assim, tudo se resolveu por ritos de boa justiça com que Antílocovislumbrou dissolver os despropósitos intempestivos de um feito por elemesmo reconhecido como eivado das viciosidades arrogantes próprias desua natureza juvenil.

E, todavia, uma tal obra juvenil não comporta, intrigada pela narra-tiva homérica das concepções valorativas do mundo heróico, apenas essaapreciação negativa, viciosa, mas também outra, positiva, virtuosa igual-mente de heroicidade. Pois, consideremos ainda as implicações supostaspelo golpe de dolo astucioso praticado no curso da corrida por Antílococontra Menelau.

33 Ilíada, XXIII.606-612.34 Vejam-se os comentários de Redfield, 1975, p. 208-209.

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Quando Antíloco, em manobra espantosamente ousada, emparelhouseu carro por fora da pista estreitada com o de Menelau disputando a ultra-passagem, o Atrida, temeroso do entrechoque fatal, denunciou a loucuradaquele ato de seu antagonista, reprovando-o aos gritos:

“Antíloco, loucamente diriges; antes contém os cavalos;

pois estreito o caminho, mas logo alargado para ultrapassagem.

Não assim nós ambos arruines contra o carro chocando”.35

Nesses termos, Menelau intentara chamar Antíloco de volta à razão.Era desvairada a manobra, pois finalizaria pela ruína certa de ambos: aquelenão era ponto de disputa de ultrapassagem, pois pista estreita a viabilizarantes o choque. Assim, também manobra num sentido desleal, senão frau-dulenta, pois transgressora dos preceitos de boa conduta agonística, a reco-mendar tais disputas de ultrapassagem em trechos largos da pista. A sensatezmais a ética reclamadas pela prova condenavam tal manobra. E, todavia,consumada, impunha-se agora, como único modo de evitar o choque, queum dos disputantes freasse seus cavalos, cedesse passagem ao outro, poster-gando a ultrapassagem para local e ocasião apropriados.

Quem foi então sensato, prudente a evitar o choque? Menelau!Antíloco, pelo contrário, atentou sua determinação apenas no ato da ultra-passagem, incondicionando-o por quaisquer outras considerações ajuizadorasde suas (in)conseqüências. Assim, portou-se justamente pelo que são osmodos naturais de agir do jovem, o qual cuida apenas do que é presente,ignora as interações do momentâneo com a plena história do ato, as quaisantes reclamam ponderá-lo pelos preceitos do saber passado memorizado epelos vislumbres previsivos de desfecho futuro assim orientados.36

35 Ilíada, XXIII.426-428.36 J.P. Vernant, lembrando os termos de uma passagem da Ilíada (III.108-110), caracteriza

os modos de procedimento que opõem a prudência da velhice ao estouvamento dojovem: “A experiência do ancião lhe propicia, pelo contrário, uma visão mais ampla. Oespírito lastreado por todo o saber acumulado no curso dos anos, ele pode antecipada-

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E, todavia, que implicações teriam para Antíloco a alternativa da atua-ção sensata dele reclamada por Menelau? Este intentou persuadi-lodescortinando-lhe a possibilidade de ultrapassagem mais adiante! Mas seriamesmo esta uma possibilidade viável? Sua viabilização supunha então queos cavalos de Antíloco fossem mais velozes do que os de Menelau, a ultra-passá-los valendo-se apenas dessa capacidade precípua de corrida. Ora,mas quem dispunha de tais cavalos era ele, Menelau, e não Antíloco! Demodo que a sensatez da ética postulada por Menelau é também um princí-pio de redundância na determinação da disputa: define como ordem vence-dora de chegada o que é a ordem de partida, com Menelau à frente deAntíloco, por dispor de cavalos mais velozes, já que ambos eram igualmentedotados de perícia condutora!

A oferta de vitória, assim descortinada e oferecida por Menelau aAntíloco, era objetivamente enganosa, ludibriadora, pois, induzindo-lhe ovislumbre da vitória, efetuaria antes sua derrota! Então, a única chance devitória para Antíloco,chegando à frente de Menelau, consistia em efetuar aultrapassagem naquele preciso ponto, pois teria que contar com a paradoxalcumplicidade de Menelau nesse sentido: que ele freasse, diminuísse sua ve-locidade, caso contrário, jamais o faria, pois como poderia o menos velozultrapassar em velocidade o mais veloz? Assim, a surdez (in)sensata deAntíloco às objeções de Menelau, não se deixando seduzir por suas aparen-tes razões, era o único recurso mesmo de viabilizar seu objetivo de vitória:requeria, portanto, jogar tudo na ultrapassagem naquele ponto, sem nemconsiderações de razões sensatas nem tampouco permitir medos por estasensejados. Ou seja, a ação do jovem intempestivo. É essa ousadia, mesmoque temerária, que dá, paradoxalmente, a razão de seu ato, apesar de des-vairado! E que a disputa se resolvia decisivamente justo naquele ponto é oque também chancelou a narrativa do poeta, pois imaginou a perseguiçãoque Menelau moveu no encalço de Antíloco exatamente falta apenas de um

mente explorar as vias múltiplas do futuro, pesar os prós e os contras, e decidir comconhecimento de causa” (Vernant, 1975, p. 24).

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instante de corrida para ultrapassá-lo. Aquele, e só aquele, momento dacorrida oferecia a Antíloco o ensejo do kairós da vitória!

Objetivamente configura-se, assim, uma dupla vitória de Antíloco so-bre Menelau. Primeiro no decurso mesmo da corrida, em que o jovem pri-ma pelo desempenho preciso das artes da métis a superar a situação deforça maior de seu adversário, assim invertendo, pois, a ordem de (des)van-tagens disposta em princípio para a prova. Essa métis reclamou dele a(ir)racionalidade da juventude intempestiva. Depois, agora na já nas tramasda disputa judicante com Menelau, ao reconhecer manifestamente a inferio-ridade de sua condição juvenil perante a superioridade da condição madurade Menelau, assim ambiguamente firmando também sua sensatez e eticida-de, novamente operou objetivamente outra ação astuciosa, pois sua mag-nanimidade generosa acabou por induzir a de Menelau em contrapartida,de modo que o prêmio mesmo para o vitorioso da prova ficou de posse deAntíloco! Já Menelau, ficou com o prêmio seguinte, o de quem fora supera-do, apesar de nominalmente, por ordem hierárquica, ser ele o melhor! Epi-sódio heróico pleno de ambigüidades, em que por todas as manobras edisputas envolvidas configuram-se vias sinuosas de obrar desfechos rever-sos. Nas vicissitudes de tais contendas, então, Antíloco é reiteradamente pri-meiro e Menelau, segundo.

Mas não seria justamente esse o singular destino que assinala distin-tivamente a heroicidade das histórias de Menelau: secundar feitos por queoutros heróis primam?

Assim, Menelau é também um Atrida e, por essa titulação, comparti-lha as atribuições e os apanágios da chefia da expedição troiana. Mas eleassim se situa enquanto chefe-segundo, recolhido e protegido à sombra deAgamêmnon. Nesse âmbito de comando régio, seus respectivos estatutosespelham-se pela hierarquia simbólica projetada nos mantos próprios queeles trajam em reunião noturna – Agamêmnon, a pele de leão e Menelau, a

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pele de leopardo –, consoante as relações de supremacia consagradas noreino animal.37 Justamente por sua costumeira subordinação, até omissa, foiMenelau alvo de duras reprimendas da parte de Nestor, o venerável ancião,que francamente as dirigiu a Agamêmnon, recriminando o herói por subtra-ir-se aos encargos precípuos do comando, quedando inerte e deixando sóao irmão a faina desses trabalhos. Sim, concordou então parcialmente Aga-mêmnon, Menelau freqüentemente era omisso e indisposto a esforços, masnão porque fosse indolente ou por falta de inteligência, antes porque erazeloso de respeito e reverência pela autoridade do irmão, solicitamente prontosempre a aguardar primeiro o rumo de suas iniciativas, secundando-lhe en-tão solícito as ordens.38

Censuras de Nestor a Menelau, e ambíguas escusas justificantes deAgamêmnon, compõem, na memória iliádica, incrível ironia poética! Pois,justo naquela ocasião, fora mesmo Menelau quem, insone de preocupa-ções porque apreensivo com o destino guerreiro dos aqueus face à rever-são dos esforços de combate, por si próprio tomara iniciativas, dirigindo-se, em meio às trevas noturnas, à tenda de seu irmão, tencionando despertá-lo e, mesmo que um tanto oblíqua e timidamente, solicitá-lo a que orde-nasse uma expedição de espionagem ao acampamento troiano, o qualnaquela noite, pela primeira vez ao longo dos já dez anos de guerra,ousadamente postara-se armado fora dos muros da cidade!39 É, então,quando Menelau mostra independência de ações de comando e por elasdescortina objetivos bélicos, que o poeta lembra, todavia, a fama reversaque estigmatiza sua figura, antes marcada por tibiezas e passividades. Po-bre Menelau, que naquela ocasião até atinara a idéia da empresa guerreiraapropriada! Mas, os méritos e glórias do recomendável conselho, por queesta acabou sendo encetada, reiteraram novamente a fama de Nestor, que

37 Confiram-se as indicações dadas por J. S. Clay (The Wrath of Athena, p. 76) que reme-tem para o estudo de K. Reinhardt (Die Ilias und ihr Dichter).

38 Ilíada, X.114-118 e 120-124.39 Ilíada, X.25-41.

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a propôs cabalmente a seguir, a cuja sapiência, portanto, ainda outra vezse os creditou na narrativa poética daquele episódio da guerra troiana.40

Menelau figura honrosamente em empreendimentos de embaixa-da, ao lado de algum outro herói. Já quando da convocação dos aqueuspara a guerra, foi ele ter junto a Nestor em Pilos41, a Odisseu em Ítaca42, aAquiles em Ciros43, a Ciniras em Chipre44 ..., tendo estado inclusive naArcádia45.

Depois, é também ele quem, junto com Odisseu, é destacado para amissão da embaixada troiana, dirigida a Príamo no sentido de formalmentesolicitar a restituição de Helena e demais tesouros roubados. A memóriapoética homérica guardou lembranças deste episódio, especialmente dascenas da assembléia troiana, que deliberou acerca da solicitação aquéia. ÉAntenor, o troiano que naquela ocasião os abrigou hospitaleiro em sua cida-de, quem as narra.

Primeiro diz, comparando as aparências corpóreas de ambos, como,estando os dois de pé, Menelau sobrepujava seu companheiro pelos largosombros, ao passo que, sentados, destacava-se antes a imponência de Odisseu.Mas, diferença maior entre ambos logo se patenteou quando eles puseram-se a discursar, finalizando persuadir a assistência. Não que faltasse compe-tência retórica a Menelau: “ele discorria fluente, conciso, mas bem claro, poisnão prolífico”. Assim, Menelau figura modelo heróico de estilo lacônico defala. Todavia, quando chegou a vez de Odisseu, a impressão causada por

40 Ilíada, X.203-217.41 Cípria, fr. 1 (Proclo).42 Apolodoro. Epítome, III.7.43 Apolodoro. Biblioteca, III.13.44 Apolodoro. Epítome, III.9.45 Ainda à época de Pausânias (Descrição da Grécia, VIII.23) mostrava-se, junto à cidade

de Cáfias, o plátano plantado por Menelau junto a uma fonte por ocasião de suaembaixada à Arcádia.

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sua arte retórica não foi apenas de correção e justeza, antes extravasou taislimites por efeitos de maravilhamento: “quando do peito emitia a forte vozmais palavras semelhas a flocos de neve no inverno, então nenhum outromortal rivalizaria com Odisseu”. O episódio da embaixada, embora respeiteà causa pessoal da honra de Menelau ofendida pelo rapto de Helena porPáris, ressalta então antes o feito heróico do desempenho oratório de Odisseu,para o que a figura de Menelau serve antes como contraste em segundoplano.46

Curiosamente, até as distinções caracterizadoras do cavalo de Menelauparecem compartilhar os estigmas do destino heróico de seu dono. Com-põem a parelha de animais atrelada a seu carro quando da prova nos jogosde Pátroclo: Podargo, garanhão pertencente a ele, e Eta, égua fogosa depropriedade de seu irmão, Agamêmnon. Desde o princípio, entretanto, danarrativa homérica desse episódio agonístico, avulta a presença heróica deEta contra a obliteração da de Podargo. A égua possui história: presentecompensatório dado por Equépolo de Sicione a Agamêmnon, a saldar afalta de suas obrigações guerreiras para com o suserano na expedição troiana;já o garanhão é apenas um nome na memória iliádica.47 Quando, na corri-da, Antíloco busca por instigações exaltadas acicatar os brios de seus cavalosintentando a ultrapassagem do carro de Menelau, as projeções de valoreqüino, então por ele assinaladas para a dianteira da parelha do adversário,atribuem exclusivamente o êxito à excelência de Eta. Certamente que talprojeção bem responde pela circunstancialidade de retórica apropriada, queassim estigmatiza a vergonha de uma derrota de machos, no entanto, supe-rados por fêmea. Mas desequilíbrio radical de axiologias que alcança forosobjetivos na narrativa homérica quando o aedo relata por que o carro deMenelau, estando agora ele na situação inversa na corrida em perseguição a

46 Similarmente, na embaixada a Odisseu o feito heróico celebrado é de Palamedes, e naembaixada a Aquiles, de Odisseu.

47 Ilíada, XXIII.293-299.

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Antíloco, conseguira anular a dianteira daquele, quase que o ultrapassandona linha de chegada: “crescia ainda mais o ardor excelente da égua de Aga-mêmnon, Eta de bela crina”.48 Então, por Podargo e Eta, reitera-se a hierar-quia de destinos heróicos que associa os dois Atridas: o cavalo de Menelauapenas secunda o primado de excelência que distingue a égua de Agamêm-non.49

Entretanto, há certamente um episódio heróico em que Menelauprima como vencedor, sobrepujando todos os seus antagonistas: foi ele oeleito, dentre os mais reputados heróis que postularam-se como preten-dentes, para marido de Helena! A razão de excelência heróica, que entãodistinguiu sua preferência, contempla a realidade de seu poderio régio:ganhou “o belicoso Menelau porque a todos superara em presentesofertados”50

Tal é o princípio da história heróica de Menelau, determinado justopor esse casamento, que o define como o marido de Helena! Desde e peloprincípio, portanto, configura-se o destino segundo de Menelau, pois elederiva de outrem sua identidade consoante fórmula denominativa excep-cionalmente invertida: não é a mulher que é identificada pela referênciagenitiva do homem que é seu esposo, mas o contrário! E destino segundoque igualmente determina o modo por que finaliza sua história mítica:conta-se que Menelau obteve dos deuses a benesse da imortalização, des-locado o fato de sua morte pelo translado para a sede paradisíaca dosElíseos. Assim foi contemplado justamente porque era o marido de Hele-

48 Ilíada, XXIII.524-525.49 Na memória iliádica, também os cavalos de Aquiles, por um lado, e os de Nestor (utili-

zados por Antíloco na corrida), por outro, apresentam características próprias que ecoamas singularidades heróicas de seus donos: a velocidade de superlativa excelência paraos primeiros (Ilíada, II.770; XVI.140-151; XIX.415-416; XXIII.277-8), a lentidão deanimais já idosos para os segundos (Ilíada, XXIII.443-445, 309-310 e VIII.104).

50 Hesíodo. Catálogos, 68.102-104.

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na, a ele estendendo-se então o privilégio propriamente concedido pormérito, de excelência à filha de Zeus.51 Justa compensação de uma existên-cia heróica de delimitada honra secundária, que por reverente acatamentodesse destino finaliza-o em permanente bem-aventurança divina.

51 Homero. Odisséia, IV.561-569.

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VI. Édipo e (o enigma d)avisão das idades

O Prólogo do Édipo Rei de Sófocles parece colocar-nos um enigmahermenêutico. Ao longo de seu desdobramento, algumas alusões textuais(v. 9-10; 31-2; 58 e 147) sugerem a presença ativa de um só sacerdote emcena, o sacerdote de Zeus, que, justamente interpelado no início da peçapor Édipo, lhe expõe os motivos do afluxo dos tebanos suplicantes reunidosjunto aos altares do palácio. Entretanto, logo no começo desta sua exposi-ção, o sacerdote de Zeus, direcionando o olhar de Édipo para a visão dacomunidade ali presente diante dele, refere-se a sacerdotes, no plural! Tal ésua fala (v. 14-21):

“Bem, ó soberano Édipo de meu país,

vês-nos de que idades assentados

junto a teus altares: uns ainda não a longe

voar fortes, outros com a velhice pesados

– sacerdotes, eu de Zeus –, e estes dos jovens

seletos; já o resto do povo coroado

nas praças assenta, junto ao de Palas duplos

santuários e pelas de Ismeno oracular cinza”.1

1 “All’, o kratunon Oidipous choras emes, / horas men hemas helikoi prosemetha / bomoisitois sois, hoi men oudepo makran / ptesthai sthenontes, hoi de sun gera bareis / hieres,ego men Zenos; hoi de t’etheon / lektoi; to d’allo phulon exestemmenon / agoraisithakei, pros te Pallados diplois / naois, ep’Ismenou te manteia spodo”.

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Já em 1816, Bentley, que justamente acusara o impasse do enigma,intentou superar essa aparente divergência propondo corrigir-se o texto domanuscrito: ao invés de hiereis, forma plural atestada no verso 18, adotouhiereus, singular. Mais outros críticos seguiram a via exegética assimsolucionadora de um tal enigma supostamente disposto pela tradição ma-nuscrita. Outros críticos, todavia, dissentiram, recusando encaminhar seuentendimento por essa vertente exegética e antes optaram por confirmar alição do manuscrito mantendo a forma plural, agora decidida como hieres.2

Em 1925, Louis Roussel, reagindo contra a projeção, então já consa-grada e difundida pelos comentadores modernos, que percebe nessa cenainaugural a presença de uma multidão de suplicantes/figurantes, reclamou aconsideração do princípio hermenêutico por que dever-se-ia pautar a me-lhor apreciação crítica de um tal texto, dada sua precípua natureza teatral: oajuizamento das significações operado também pelas implicações de figura-ção cênica da arte dramatúrgica.3 Em sua revisão, logo acolheu a correçãoproposta por Bentley, a identificar, pois, apenas um sacerdote em cena, o deZeus. Daí, face ao contra-senso conseqüente a essa correção – hiereus, “sa-cerdote”, no singular, entretanto imediatamente antes aludido por bareis sungera, “velhos”, no plural – entendeu este último como plural de majestade, aassim eliminar da cena também a pluralidade de anciães. E, para firmar amelhor consistência lógica do texto 4 – com tanto Édipo quanto o sacerdotereferindo-se genericamente à coletividade dos suplicantes como “crianças”(paides, tekna) – haveria que identificar por esse único grupo etário a distin-

2 Vejam-se as indicações dadas por Bollack, Oedipe Roi, tomo 2, p. 17.3 “...a figuração da cena é bem diferente do que se imagina costumeiramente. Revere-

mos nossa opinião sobre muitos outros pontos além deste, caso desejarmos pensarespecialmente, no estudo das peças gregas, nas exigências do ofício e da realidade, enos lembrar que, para os dramaturgos gregos como para todos os dramaturgos, a figu-ração, tanto quanto a língua e a versificação, serve a fins exclusivamente artísticos”(Roussel, 1925, p. 170).

4 “Os treze primeiros versos tornam-se, com efeito, bem mais lógicos” (Roussel, 1925, p.168).

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ção dúplice por que o sacerdote inicialmente o descreve, ora dizendo-os“filhotes” (versos 16-17), ora “jovens seletos” (versos 18-19).

A figuração cênica comportaria, então, para Roussel, uma reduzidacomposição bipolar de um velho sacerdote de Zeus mais um grupo de crian-ças, dualidade quiasticamente estruturada primeiro a destacar sua contrapo-sição de idades (de um lado o muito idoso, de outro os bem jovens), depoissua distinção meritória (sacerdote eminente, filhos de nobres eleitos).5 Emdecorrência, mais outras tantas precisões positivas de percepção e de enten-dimento da cena: Édipo qualifica seus súditos como “crianças” não porqueseja um rei que se comporte paternalmente, mas simplesmente porque assimcabe a um homem de uns 45 anos tratar jovens adolescentes de 14; não éuma multidão, o populacho, que ousa dirigir-se ao rei, mas um grupo deelite; as crianças dispõem-se igualmente em torno dos dois altares palacianos,não muito grandes, provavelmente a comportar em cena apenas entre dozee vinte crianças mais ou menos.

O que Roussel cuidara em condicionar como apenas uma propostade versão francesa, equivalente em sentido à construção sintática dos versos18-19: “Tout se passe comme dans de vers français qui seraient: Je suis unserviteur de Zeus; eux sont des fils de nobles”6 fixou-se, com a edição doÉdipo sofocleano por Paul Mazon, em 1958, como fato mesmo de tradução:“O souverain de mon pays, Oedipe, tu vois l’âge de tous ces suppliants àgenoux devant tes autels. Les uns n’ont pas encore la force de voler bien loin,les autres sont accablés par la vieillesse; je suis, moi, prêtre de Zeus; ils forment,eux, un choix de jeunes gens”.7

A solução hermenêutica, assim equacionada pelos estudos de Roussele Mazon, veio a deparar-se, todavia, com as objeções levantadas por

5 A tradução dos versos 18-19 suporia (“Tout se passe comme dans des vers français quiseraient”) esta construção: “Je suis un serviteur de Zeus; eux sont des fils de nobles”(Roussel, 1925, p. 169; grifos meus).

6 Roussel, 1925, p. 169.7 Mazon, 1958, p.23.

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Kamerbeek. Em seu comentário global da tragédia sofocleana de 1967,Kamerbeek delineou uma refutação crítica à tese de Bentley, argumentan-do que esta, ao buscar resolver um problema concernente à melhor com-preensão do texto, acaba intrigando outros, talvez ainda mais embaraço-sos. E os assinalou pela simples leitura da tradução proposta por Mazonaos versos 16-19, que justamente adotara a correção de Bentley: “Les unsn’ont pas encore la force de voler bien loin, les autres sont accablés par lavieillesse; je suis, moi, prêtre de Zeus; ils forment, eux, un choix de jeunesgens”.8 Admitida tal tradução, arrazoa o crítico, como entender-se a refe-rência ao sacerdote no singular, se a referência primeira aos velhos está noplural? Haveria que supor, como já o admitira Roussel, um plural de ma-jestade para hoi bareis (os pesados pela velhice) do verso 17. E, por taltradução ainda, complica-se outra questão: os ethéon lektoi (os jovens se-letos), citados nos versos 19-20, referem a mesma classe de idade que ados oudepo sthenontes (os que ainda não têm forças para longe voar), dosversos 17-18, como o supõem tanto a tradução de Mazon quanto as aná-lises de Roussel, ou uma outra distinta? Agora, não se têm um problemasó, mas pelo menos dois! Então, conclui Kamerbeek, é preferível simples-mente aceitar a tradição manuscrita e conviver com o enigma original –posto pela efetividade dramatúrgica da singular presença do sacerdote deZeus, entretanto uma vez referida no plural –, bem empenhando-nos aomesmo tempo por descobrir sua melhor compreensão no que estiver aonosso alcance hermenêutico.

A. D. Fitton Brown, em um texto de 1952, também levantou ressal-vas contra o suposto entendimento do Prólogo sofocleano que realçasse adistinção de faixas etárias – little children, growing lads, and aged priests –na composição da comunidade dos tebanos suplicantes, argumentando,como já antes o fizera Roussel, contra a implausibilidade de se supor umvalor de afetividade paternal no modo de tratamento edipiano da mesmacomo “crianças” (tekna), especialmente considerando agora a incoerência

8 Kamerbeek, 1967, p. 35.

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assim acarretada pela outra referenciação dessa mesma comunidade porÉdipo, logo no verso inicial em que ele a destaca como nova: “Ó crianças,de Cadmo antigo nova trophe”. Tekna, crianças, deve ser entendido comoimplicando apenas a diferença de idade: the seniority of the speaker con-traposta à juventude dos suplicantes. Assim, o agrupamento de suplicantesque se dirige a Édipo seria composto por uma delegação predominante-mente jovem, com talvez três sacerdotes idosos. Então, bem se justificaria,sustenta Fitton Brown, a propriedade de sua referenciação edipiana tantopor tékna (crianças) quanto por néa (nova): Édipo assim os qualifica por-que eles, em geral, são mais jovens do que ele.

Alan S. Henry, em artigo datado de 1967, aprofundou o alcance dacrítica à interpretação tradicional que percebe uma tal conformação etáriatríplice na delegação suplicante: young children, aged priests and a chosenband of unmarried youths. Seus argumentos a divergir dessa interpretaçãoreclamam agora precisamente contra a estranheza da inserção do terceirogrupo – etheoi, os jovens adolescentes – em uma tal cena de súplica. As-sim, no restante do Prólogo, não se faz qualquer alusão à sua presença,pois paides, a denominação por que a comunidade suplicante é qualifica-da (versos 31-2 e 142-4), não pode recobrir tanto crianças quanto etheoi.Depois, etheoi, jovens não-casados, compõem membros apropriados aum contexto sacrificial, a requerer a pureza de seu status, como consisten-temente ocorre nas Fenícias de Eurípides, nos versos 944-5, em que Meneceué assim distinguido em oposição a Hemon. E ainda, admitida a existênciadesse terceiro grupo, o texto sofocleano seria falho em sua estruturaçãosintática, transgredindo a lei de articulação opositiva formulada pela cons-trução de partículas men ... de, dado que o men de ego men Zenos, con-trariamente à tese dos comentadores que seguem a análise de Jebb, nãopode ser aqui particularmente entendido como um caso de men solitarium.Observada essa lei sintática, uma primeira articulação men...de contrapõehoi men oudepo makran ptesthai sthenontes a hoi de sun gera bareis, e aseguinte articulação faz o segundo hoi de (t’eitheon) responder justamentea ego men Zenos.

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A mais plena coerência lógica de inteligibilidade da cena, pelo arra-zoado de Henry, impõe, então, uma exegese crítica mais drástica de trata-mento textual da tradição manuscrita: suprima-se a menção aos etheoi,“livremo-nos destes inoportunos jovens”! Corrija-se, pois, o texto em: “hieres,ego men Zenos, hoi de ton theon, lektoi”.9 De modo que as correlaçõesmen...de operariam duas contraposições: crianças/velhos (sacerdotes) naprimeira, eu (sacerdote) de Zeus/eles (sacerdotes) dos (outros) deuses pelasegunda. Concluindo, compõem a delegação suplicante apenas crianças esacerdotes, ambos esses grupos lektoi, seletos uns entre as crianças dasmais nobres famílias, os outros entre os mais importantes sacerdotes.

Arthur S. McDevitt, em artigo de 1973, corroborou a tese de Henry,ainda desdobrando outro argumento que mais autorizaria a emenda tex-tual operada por este crítico a eliminar da cena a referência aos etheoi, osjovens adolescentes, não-casados. Assim, postulou o princípio exegéticopor que a mesma se recomendaria: os aspectos de qualidade visual dapeça supostos pelas formulações imagéticas de sua narrativa atualizadasegundo uma concepção cênica do espetáculo teatral. Na cena do Prólo-go, Sófocles compõe uma imagem inicial da soberania de Édipo, em que odramaturgo procura destacar o poderio e a autonomia da atuação régia,tanto mais realçados quanto, em contraste, dispõe também um grupo desuplicantes que é antes figurado por uma imagética de passividade e de-pendência, em estado tal de desamparo, por que melhor se comoveriamas diligências do rei em seu favor. Tal configuração inaugural da soberaniaedipiana, então, entende McDevitt, responderia pela teleologia de ironiatrágica por que finaliza a peça sofocleana, a antes firmar a lição da engano-sa ilusão desse poderio, apenas aparentemente autônomo e auto-suficien-te. Por tais concepções imagéticas, bem se justificam as presenças quer dos

9 A uma tal cirurgia de amputação textual, a exegese de Henry faz seguir uma plásticafilológica que intenta imaginar as possíveis deformações corruptoras da transmissãotextual, que teriam desfigurado ton theon, primeiro em ten theon, depois em entheon,até virar eitheon, a reclamarem, então, sua devida correção restauradora.

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filhotes incapazes de voar longe quer dos anciães pesados com a idade,ambos desamparados e dependentes, uns por causa da infância, outrosem razão da velhice. Pelo contrário, o que poderia fazer aqui, em meio aestes suplicantes assim tão frágeis, a presença de um bando de robustosjovens? Toda a perícia da arte dramática sofocleana, que justamente aca-bara de tramar, por esse contraste cuidadosamente elaborado, efeitos cêni-cos de teleologia trágica, ficaria, então, negada, caso aceita aquela inserçãodos etheoi na cena do Prólogo.

Já R. D. Dawe, em seus estudos sobre o texto de Sófocles de 1973,depois retomados nos comentários condensados de sua edição crítica doÉdipo, de 1982, admitiu apenas a correção textual proposta por Bentley,consagrando, pois, a lição hiereus. E a melhor entender a passagemsofocleana, elaborou os termos da estruturação de pares polares, em quesupostamente fora expressa a composição da delegação dos suplicantes,desdobrando, assim, uma idéia já presente no artigo de Roussel. Para Dawe,a delegação é descrita primeiro por uma oposição dual young children/oldman, que compõe um par definido em termos de idade, e a seguir por umaoutra oposição dual the priest of Zeus/young acolytes, que compõe outropar, agora definido em termos de função.10

Por outro lado, William Calder III, num artigo escrito em 1959, aven-tou nova alternativa para solucionar o enigma desencadeado pelas consi-

10 Nos estudos de 1973, Dawe tende antes a assimilar os dois pares: “Os dois emparelha-mentos, por idade e depois por função, não referem necessariamente quatro categorias,mas apenas duas, cada uma considerada sob o aspecto primeiro de idade e depois defunção” (Dawe, 1973, p. 206). Já nos comentários de 1982, pelo contrário, afirmaantes sua dissociação: “dado que é bem implausível que os eitheon fossem considera-dos tão jovens de modo a poderem ser descritos como “ainda não fortes para voarlonge”, segue-se que este par de hiereus e eitheon lektoi, distinguido por papel e status,provavelmente não é idêntico com o par distinguido por idade, em 16-17. Os jovensseletos provavelmente não foram mencionados no primeiro par porque estariam nopalco, tão próximos ao sacerdote, de modo a formar um grupo singular oposto àscrianças” (Dawe, 1982, p. 88).

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derações críticas de Bentley. Assim, admitiu o problema cênico implicadopelo acolhimento da lição plural do manuscrito, sob a forma hieres, prefe-rindo contornar diversamente os impasses argumentativos implicados pelasuposta cena de “multidão” do Prólogo, especialmente complicada devidoa seus desdobramentos conseqüentes à saída dessa “multidão” e conco-mitante entrada em cena do Coro no Párodo. Calder III propõe que toda afala do sacerdote de Zeus, ao descrever a comunidade tebana suplicantediante de Édipo, vale-se da figuração constituída pela própria audiênciateatral, então devidamente apontada gestualmente. Assim, para a referên-cia alusiva aos sacerdotes (o controvertido hieres do verso 18), o ator re-correria facilmente ao gesto indicativo que os situaria pelas figuras dossacerdotes sentados nas fileiras frontais do teatro de Dioniso. A composi-ção do Prólogo dispensaria, pois, a inserção de uma “multidão” de figu-rantes: em cena estariam propriamente presentes, além de Édipo e o sa-cerdote de Zeus, apenas mais dois meninos “mudos”.

A tese de Calder III postulando um tal recurso teatral de audienceadress, entretanto, foi mais recentemente questionada, entre outros, por D.Bain, O. Taplin e D. Seale.11 Taplin, em particular, sugere que a problemá-tica cena de “multidão” do Prólogo do Édipo Tirano seja equacionada poroutro recurso de encenação, pelo qual sua entrada em cena se dê anterior-mente ao início da peça, esta se abrindo com “o quadro” dessa multidão jáconfigurado.12 Tese de que, todavia, Seale diverge, refutando um tal recur-so de “cancelled entry”, antes asseverando que não se trata de um “tableau”,mas sim de uma entrada inicial conformada ritualmente como uma procis-são mesma, a realçar seus aspectos suplicantes carentes e reclamantes desalvação. Mas, adverte ainda este último crítico, há que se ter cautela nestaordem de apreciações, pois, a delegação suplicante não deve ser concebi-da numericamente exagerada: “certamente não é maior do que o tama-

11 Vejam-se as indicações anotadas por Seale, p. 215.12 Veja-se: Taplin, 1978, p. 109.

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nho do Coro, que a seguir é apresentado como corpo representativo dopovo tebano”.13

Em 1990, Jean Bollack, por outro comentário monumental da tragé-dia sofocleana, corroborou a reflexão crítica já antes firmada por Kamerbeek,desdobrando mais razões para também refutar a tese de Bentley e seus par-tidários. Assim, articulou uma conjunção de três ordens de razões: primeiro,hoi bareis reclama a presença plural de velhos na cena; segundo, a faticidadeda ocorrência textual de hieres; e, terceiro, a distinção entre sacerdote deZeus e sacerdotes de outros deuses, implicada pela referenciação de hieresego men Zenos (sacerdotes, eu de Zeus). Conseqüentemente, admitiu oplural hieres, entendendo distinguir os etheon lektoi dos oudepo sthenontescomo duas classes etárias distintas.

Todavia, nesse mesmo ano de 1990, outros críticos – Hugh Lloyd-Jones e N.G. Wilson – percorriam a outra vertente da bifurcação exegéticaensejada para a solução desse singular enigma textual sofocleano. Assim,mantiveram a correção de Bentley, lendo, pois, hiereus no verso 18. Con-seqüentemente, identificaram aqueles dois grupos de idade numa mesmaclasse, e admitiram, sem maiores problemas, que o plural hoi bareis refere,mesmo, apenas o singular sacerdote de Zeus!

Ao longo desses quase dois séculos de exegese do enigma textualsofocleano, os críticos plenificaram, assim, atentos exames de questões filo-lógicas várias. Acumulou-se todo um nexo emaranhado de argumentaçõesque se, por um lado, bem discerniu todas as conseqüentes dificuldades queestorvam a mais plena inteligibilidade lógica da hermenêutica dessa passa-gem, por outro, complicou ainda mais o enredamento do enigma, obrandodesfecho paradoxal de um ciclo reiterado de divergências para, entretanto,tão competentes esforços eruditos na busca de uma almejada soluçãodecifradora.

A reflexão crítica, assim conduzida, centrou seu olhar antes primeira-mente sobre a figura sacerdotal – se singular ou plural – efetivamente pre-

13 Seale, 1982, p. 215 e notas 1 e 3 na p. 255.

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sente na cena, de princípio encerrando sua visão por um pressuposto epis-temológico, a saber, o de que há uma proposição de estrita coerência posi-tiva a ordenar continuamente as significações do texto em sua linearidadeconstitutiva de referenciações, coerência esta determinada pelas imposi-ções de identificação cênica precisa dos personagens distintamente defini-dos, que teriam sido criados pela arte dramatúrgica sofocleana. A seguir, areflexão crítica ampliou naturalmente o campo de sua percepção, agorapolarizando-a no sentindo de visualizar a (en)cena-(ção) teatral atualizadorada delegação dos tebanos suplicantes junto a seu rei Édipo. Visão assim,pois, deslocada, em termos da conceituação aristotélica, da ação trágicaenquanto mito, para a ação trágica enquanto espetáculo.

Gostaríamos, neste comentário, de desviar um tanto a mirada desseolhar crítico, situando-o não propriamente na nossa, da crítica moderna,visão da cena, mas sim orientando sua ótica antes para o foco mesmosobre o qual o apelo do sacerdote de Zeus voltou a atenção da visão deÉdipo: horas men hemas helikoi, tu nos vês de que idades assentados.

Para o melhor discernimento dessa visão destacou o sacerdote deZeus quais eram as imagens representativas da composição da comunida-de tebana suplicante diante de seu rei, justamente figuradas por suas res-pectivas definições etárias. Assim distinguiu:

1. hoi men oudepo makran ptesthai sthenontes: os que ainda nãosão fortes para longe voar, os filhotes, as criancinhas;

2. hoi de sun gera bareis, hieres, ego men Zenos: os com a velhicepesados, sacerdotes, “eu” de Zeus, ou seja, os velhos (assim velhos, os)sacerdotes, (como tal, sacerdote) “eu” de Zeus;

3. hoi de t’etheon lektoi: os jovens seletos.

Por uma primeira articulação narrativa de contraposição (hoi menoudepo makran ptesthai sthenontes, hoi de sun gera bareis) distingue duasclasses de idade de definições opostas: uns, as crianças, a apontar para oprincípio, outros, os velhos, a apontar para o fim da vida humana. Toda-via, também os associou por similitude caracterizadora de limiar de vida,

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dizendo as limitações do alcance de suas precípuas capacidades locomoto-ras, justamente assinalada pelas metáforas respectivas com que as qualifi-cou: para aqueles, a fragilidade de seres aos quais falta ainda a força dosmembros; para estes, também a fraqueza, mas agora por morosidade,porque (a)gravada pelo peso dos anos. Em ambos marca o estado limiar,para uns inicial, para outros final, de impotência de ação.

Depois, a estas duas classes juntou uma terceira, a dos jovens sele-tos, que, por sua condição própria de exuberante vigor distintivo, define-seem oposição às outras duas. Assim, caracteriza a idade limiar de ação,tempo privilegiado que demarca princípio de feitos heróicos.

Então, se irrelevado o pressuposto epistemológico daquela óticahermenêutica, que ambiciona preencher de indicações precisas e definidasos vazios e alusões que o texto mítico mesmo deixa ambiguamente indeter-minados, poder-se-ia apreciar a composição sofocleana desta cena inaugu-ral do desfecho trágico da história de Édipo antes pelo alcance próprio desuas significações metafóricas, concernentes aos estados da condição hu-mana. Se assim discernirmos a cena por esta outra perspectiva, o apelo dosacerdote de Zeus, a (co)mover a atenção do olhar e a diligência do espíritode Édipo pela percepção da comunidade (tebana) humana suplicante dian-te dele, ter-se-ia, na trama narrativa sofocleana do mito de seu destino, umaalusiva reiteração da contemplação do enigma da Esfinge: as imagens do serde quatro, três e dois pés!14 Consideração narrativa de um princípio enigmá-

14 Na bibliografia por nós consultada, encontramos uma menção a esta via de interpreta-ção do texto, dada em nota de rodapé na edição e tradução das tragédias sofocleanaspor Guido Paduano: “D’altro canto si è cercato di conferire significazione sistematica allacomposizione di questo gruppo, leggendovi una criptica allusione all’indovinello dellaSfinge e alle tre etá dell’uomo: non único caso in cui la presenza della Sfinge, funzioneantropologicamente affascinante e forse determinante nella formazione del mito di Edipo,è stata introdota a forza in un sistema drammatico al quale é sostanzialmente estranea”(Paduano, 1982). Não tivemos condições, entretanto, de melhor identificar a(s)referência(s) anônima(s) a que o comentador assim alude. Quanto à problemática daintegração da figura da Esfinge e do tema do enigma na tradição clássica do mito

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tico de consecução desse destino, que novamente defrontaria a distintivapotência heróica de Édipo – a excelência de sua ciência visual – com odesafio de uma reiterada ação salvadora comunitária.

E é justamente por um tom também de desafio da salvadora potên-cia régia-intelectiva de Édipo, que o sacerdote de Zeus conforma o rogosuplicante da comunidade tebana a reclamar a intervenção de seu rei.Assim, retomemos do início a evolução do arrazoamento por que segueessa fala sacerdotal.

Após o terrível flagelo, manifesto em Tebas pela presença monstruo-sa da Esfinge, outra desgraça dizimava novamente o país. Um mar desangue inunda a cidade, nau adernante batida por rubras ondas, em jáaflitivo esforço final de naufrágio, tão mais desesperado quanto impotente,por ainda erguer a cabeça acima, não submersa. Por todo o país alastra-sea morte. Tebas perece, pois não atualiza mais os princípios de restauração,renovação e geração de vida. A natureza toda, agora, é só esterilidade,impotencializada toda vida nascente. Fenece o alimento agrário, pois se-mentes e grãos ainda encapsulados, princípios recipientes de guarda devida vegetal, não mais germinam fecundantes do ventre térreo, antes em-botam e murcham sepultos no chão. Definham nos pastos os rebanhos,massas perdidas de alimento animal. E as mulheres abortam labores departo, assim infrutíferos, ficando, pois, negado o princípio de natividadeque as distingue.

Contágio pestilento de generalizada esterilização mortífera, nega-ção de todos os princípios de fertilidade e fecundidade natural, a impo-tencializar todos os modos de prolongamento e desdobramento de vida

edipiano, veja-se a excelente obra de Jean Marc Moret, Oedipe, la Sphinx et les Thébains,Genève, 1984. Já R. Garland (The Greek Way of Life, p.5) entende não haver dúvidasde que a passagem sofocleana componha uma referência ao enigma da Esfinge: “Althougthere is no explicit allusion in the play to the riddle which the sphinx had put to Oedipusand whose solution earned him the kingship – ‘What animal goes on four legs in themorning, two at mid-day and three in the evening?’ – the priest’s words here (ll. 15-19)are surely intended to be reminiscent of it”.

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terrena. Peste odienta por ação de deus ignífero que abate, devasta, des-povoa Tebas.15

Assim o olhar do sacerdote de Zeus diz a crise tebana.

A comunidade de Tebas, face aos terríveis males com que os desíg-nios divinos a arruinam, duplica uma só reação de enfrentamento da crise:piedosas súplicas. Por um lado, o povo coroado congrega-se nas praças ro-gando auxílios a deuses tutelares e divindades mânticas, Palas e Ismeno. Poroutro, uma delegação comunal alcança os altares do palácio dispondo-se alitodos assentados com suplicantes ramos coroados, a também buscar o so-corro de seu rei, Édipo. Modos de reação comunitária que plenificam a cida-de com a fumaça odorífera dos incensos e os sons de peãs e gemidos.16

Édipo, soberano zeloso de seu povo, de imediato corresponde pa-ternalmente aos sofrimentos dos filhos comunais, já por esses modos ma-nifestamente assinalados. Zelo extremado por que bem acolhe a delega-ção em pessoa, dispensando mensageiros que afastem o rei das vozes dossúditos. Logo intenta fortalecer a confiança da comunidade, lembrando-lhe a fama universal do nome Édipo. Logo proclama plena disposição desocorro, prova de régio condoimento paterno. Então, interpela entre ospresentes a pessoa do ancião, esta distinta figura que com propriedadepode por todos expor as razões de suas súplicas, neles anunciadas poraparências de pavores ou aflições.17

E o sacerdote de Zeus, a expor as razões inquiridas pelo rei, entãoapresenta, a (co)mover o olhar e o espírito de Édipo, a percepção da co-munidade presente diante dele, representada pelas distintas idades queconformam o destino da condição humana por seres crianças, jovens evelhos. E reforça essa percepção patética do povo tebano expondo as ce-nas por que o contágio pestilento consome sua existência. A casa de Cadmodespovoa contra o negro Hades enriquecido por gemidos e lamentos.

15 Sófocles. Édipo Rei, 22-30.16 Ibid. 1-21.17 Ibid. 1-13.

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Mas, ainda que mais razões, precipuamente face a tais desgraças,ensejariam à comunidade postar reverentes gestos suplicantes a seu rei nosaltares palacianos? Ou, pelo contrário, assim se projetam impropriedadesde confusão ímpia da figura régia com os modos da honra divina?

Não, logo adverte o venerável ancião, eles não têm Édipo por igualaos deuses, antes o consideram o primeiro dos homens nas vicissitudes davida e nos contatos divinos. Ponderação de entendimento sacerdotal queintenta deslindar o ambíguo paradoxo intrigado por aquela súplica à pes-soa de Édipo: sim, ela situa reverência piedosa, comovendo-o como a umser divino, e, todavia, nega-lhe tal estatuto.18

Assim, devidamente se reconhece o estatuto propriamente heróicodo rei, ambiguamente situando seu valor pelo domínio do divino e pelaesfera do humano. Por um lado, dizer Édipo não igual aos deuses afirma suainferioridade em relação ao divino, dissocia-o da pertinência a este âmbito,posiciona-o fora e abaixo dele e, portanto, localiza-o em meio aos humanos.E, por outro, formulando contraposição adversativa, assevera também aapreciação de que sua inferioridade é apenas essa, para com o ser divino,nível absoluto de grandeza superior. Ao reconhecer Édipo como o primeirodos homens, só inferior aos deuses, o entendimento sacerdotal também ad-mite que a superioridade de Édipo é de tal monta entre os humanos que é asuperioridade máxima por eles alcançável, a qual bem se aprecia medindo-a pelo seu contraponto à superioridade divina.

Pois, afirmar a inferioridade de Édipo para com o divino é verdadetautológica da condição humana, válida seja para Édipo, o primeiro doshomens, seja para qualquer outro, mesmo o mais insignificante, inferior-mente último em valor. A comunidade de um destino mortal define a hu-manitude de Édipo. Já afirmar Édipo como o primeiro dos homens supõea distinção de um só e único indivíduo, bem destacado acima de todos,

18 Ibid. 31-39. Para o comentário deste diálogo entre Édipo e o sacerdote de Zeus noPrólogo, vejam-se as análises de F. Marshall, 1996, cap. II (“Súplica e responsabilida-de”), p. 58-93.

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singularizado por precípua superioridade de valor. Assim, se diferencia am-biguamente o hierárquico estatuto heróico de Édipo no e do âmbito hu-mano: o herói nele se insere pelo fato genérico da condição mortal de seuser, mas dele também, em certo sentido, se dissocia, pois é situado tãoacima que se o projeta, agora pelo valor de suas ações, no seu limiar deli-mitador, quase fora dele, a tocar o divino.

Dizer Édipo o primeiro dos homens apenas inferior aos deuses, aolembrar a humanitude homogeneizadora de seu ser, assinala também aheroicidade diferenciadora da história de suas realizações. Édipo, o primei-ro dos homens, situa superioridade humana de valor tal que bem se estimasua grandeza inferirorizando-a apenas porque não divina.

A prova da Esfinge, aduz o sacerdote, firmara a fama da excelênciaheróica de Édipo. Por esse episódio bem se marca a contraposição quedistingue a individualidade excepcional do herói perante a comunidadehumana, genericamente referenciada na fala do sacerdote pelo nós e pelotodos que compõe Tebas. Naquela ocasião, nenhum dos cidadãos, mesmovivenciando a crise e dispondo dos recursos informativos e demais instru-ções humanas presumivelmente respeitantes à questão interrogada pelaEsfinge, decifrou seu enigma. Nas circunstâncias de sua chegada adventí-cia à cidade, a situação de Édipo diante da Esfinge era a mais precária,pois desprovida de todo e qualquer concurso de saber humano. E, toda-via, apesar de tal desfavor circunstancial de sua situação humana, deci-frou-o. Como entender razões que deslindem a intriga desse fato parado-xal? Tal façanha excepcional de decifração do enigma, reflete a fala sacer-dotal, assinala talvez para Édipo a graça do favor divino, pois auxílio hu-mano, qualquer um, certamente não foi: Édipo o enfrentou totalmenteexterior, estranho, ao lugar humano que dele estava inteirado. Assim, peloprivilégio do favor divino, se concebe o êxito heróico edipiano. Tal é, pelomenos, o entendimento consensual da comunidade: é o que se diz, é oque se acredita.19

19 Ibid. 31-39

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Então, justamente ecoando a antecedente lembrança alusiva da pro-clamação inicial de Édipo, também a voz da comunidade tebana reconhe-ce a excelência heróica de seu rei consumada pelo episódio da Esfinge,assim celebrando a fama de seu poder salvador.

Mas essa fama remonta a origem passada, feito encerrado. Agora, aatualidade presente reitera outra crise ruinosa em Tebas por contágio pesti-lento que igualmente a desgraça. O país necessita, outra vez, de um podersalvador que socorra seu povo em nova aflição. Daí, os imperativos exortativoscom que a comunidade, pela fala sacerdotal, suplica a Édipo, o melhor dosmortais, para que reerga a cidade, livre-a dos males que a submergem. Se apestilência maléfica, flagelo pavoroso, perde Tebas, então que seu justo po-der salvador, o rei Édipo, a salve! Ambíguos rogos de súplica, pois tantoassim o sacerdote apela a seu poder salvador, reverenciando-o confiante porsua exitosa prova passada, quanto também assim supõe cobranças, recla-mos à figura régia por suas responsabilidades de permanente benéfica atua-ção comunitária. Pois a crise manifesta a falha desse poder, agora carente deefetividade, assim pondo em suspenso sua fama.. Se a areté heróica dessapotência salvadora edipiana bem se proclama pela realização de seu feitopregresso exitoso diante da Esfinge, agora, assinalada sua falha,implicadamente se questiona, por recurso retórico de instigação acicatadora,a atualidade do poder salvador edipiano, desafiando-o à reiteração de umnovo feito. Que Édipo, então, seja sempre igual, ainda poder salvador.

Rogo e desafio do poder de Édipo a outra vez reerguer a cidade,salvar Tebas, dispondo benéfica ação comunal, é também concomitante-mente, lembra o sacerdote, superar reiterada prova heróica a, agora, res-guardar sua pessoal condição régia. Pois, sapiente advertência: se governa-rás esta terra, como dominas, com homens mais belo do que vazia é domi-nar, que nada é nem torre nem nau deserta de homens sem habitantes den-tro. Assim, reclama-se da realeza a obrigação de seu dever precípuo de atua-ção, que precisamente institui e funda a autoridade de sua soberania: apromoção do bem comunal. Para a figura de poder que Édipo consuma,presente soberano de Tebas, a permanência futura de sua suserania agora

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depende da persistência atual de sua potência salvadora. Nova prova situajusta confirmação de poder régio por consoante reiteração de excelênciavirtuosa. A história do destino régio de Édipo e a condizente memóriacelebradora de sua fama heróica deparam, pela pestilência que desgraçaTebas, o tempo crítico em que se decide ou sua unicidade salvadora ou, pelocontrário, sua dualidade primeiro salvadora de comunidade ereta e depoisruinosa dela tombada.20

Assim concebida a trama narrativa sofocleana do princípio do desfe-cho trágico da história de Édipo, a alusiva metáfora da condição humana alembrar o desafio da Esfinge situaria uma reiteração enigmática por que semove o destino do herói, por ele (con)fundindo os modos de concepçãomítica de princípio e fim do poder real.

20 Ibid. 40-57.

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VII. História e epopéia:os princípios da narrativa *

Já desde a abertura, conformada como prólogo, a historiografiahelênica, nascente com Heródoto e Tucídides, assinala nexos que a vincu-lam tributária da composição épica, similarmente encetada por um proêmio.1

Dessa tradição (dis)posta pela epopéia, ela herda, pois, as convenções deexposição inicial que enunciam os tópicos declarativos de sua identidadede memória narrativa de acontecimentos passados.2 Especialmente com

* O ensaio a seguir alinhava algumas orientações – quer por indicações textuais querbibliográficas, todavia longe de exaustivas – que mapeiam um conjunto de problemáti-cas constitutivo de nosso projeto de pesquisa maior, assim parcialmente expostorespeitante à emergência da narrativa historiográfica grega a partir das modalidadesmíticas, especialmente épicas, de memorização.

1 Vários estudos foram consagrados à análise dessa conexão; entre outros, vejam-se: J.L.Moles (Truth..., p. 90s), G. Nagy (Best...,p. 175), J. Marincola (Authority....p. 35), H.Lloyd-Jones (Justice..., p. 141), A.J. Woodman (Rhetoric..., p. 7-9) e D. Earl (Prologue-Form..., p. 842).

2 A questão foi já abordada por Romeo no que respeita à linhagem compositiva poética:“O proêmio é então o primeiro momento, ao mesmo tempo preparatório e sintético, deum canto composto kata\ moi/ran (Od VIII 496). Exórdio cerimonial, de rígidaformularidade, o proêmio da Ilíada torna-se paradigma, cânone... ‘Legem prooemiorumnon dico servavit, sed constituit’ (Quint. X.1.48): traçados os confins, eles delimitam oque se tornará, por costume, a tradição” (Romeo, 1985: 13). A também fundamentarsua apreciação, o crítico lembra o juízo dado por Quintiliano: “Nas poucas linhas comque ele (Homero) introduz ambos seus poemas épicos, não teria, não direi observado,

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Tucídides, essa norma compositiva revela plenitude de formulação siste-matizada, englobando e articulando, no corpo mesmo de um tal proêmio/prólogo, toda a gama de fundamentos que dispõem os princípiosordenadores de sua constituição narrativa.

Partindo da exposição do prólogo tucidideano identificamos quaissejam esses princípios, daí rastreando os passos intermediários de sua tra-jetória histórica a conformar o prólogo herodoteano, para, então, alcançarsua formulação originária no proêmio do épos homérico.

Distinguem-se como princípios constitutivos da narrativa:

1. um princípio axiológico que, identificando o critério determinanteda seletividade episódica da narrativa, apreende a dimensão de grandezaque a práxis humana comporta, especialmente relevando sua portentosi-dade trágica;

2. um princípio teleológico que, projetando valores a finalizar a con-secução das ações humanas enquanto bens valiosos, distingue quais utili-dades e valias a narrativa assim realiza, então especialmente enquadrandoa disputa entre a futilidade de sua fruição prazerosa e a perenidade de suamemória celebrante;

3. um princípio onomasiológico que, dizendo da realidade do nomea referenciar o autor da narrativa enquanto obra singularizada, aborda aquestão do sujeito;

4. um princípio metodológico que, arrazoando as concepções derealidade fatual do ocorrido, conforma os preceitos por meio dos quais sefundamenta a veracidade de sua composição narrativa;

mas de fato estabelecido a lei que governaria a composição do exórdio? Pois, por suainvocação das deusas, que se acreditava presidirem a poesia, ele ganha a boa disposi-ção do público, e por sua afirmação da grandeza de seus temas ele aviva sua atenção eos torna receptivos pela brevidade de seu sumário” (Instituições oratórias, X.1.48). Con-firam-se ainda as indicações dadas por Kirk (p. 52) e por Heubeck (p. 68) em seusrespectivos comentários aos proêmios iliádico e odisséico.

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5. um princípio arqueológico que, bem demarcando o início fatualdo episódio narrado, dá consentâneo começo à narrativa, de modo que anarrativa do início compõe o início da narrativa;

6. e um princípio etiológico que, desdobrando o princípio arqueoló-gico, apreende o início fatual do episódio como origem de que advém seudesencadeamento e, pois, como causa que dá sua razão de ser.

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1. Axiológico(a questão da grandeza)

“Tucídides de Atenas compôs a guerra dos peloponésios e atenienses comoeles combateram uns contra os outros. Começou imediatamente à suaeclosão na expectativa de que ela fosse grande e mais digna de relato doque as precedentes, pois verificava que, ao entrar em luta, ambos estavamno auge de todos os seus recursos, e observava também que o restante domundo helênico compunha-se com um dos dois lados, uns de imediato,outros pelo menos em projeto. De fato, esta comoção foi a maior já ocor-rida para os helenos e também para uma parcela dos bárbaros, podendo-se mesmo dizer, para a maioria da humanidade”.1

A declaração inaugural do Proêmio, concomitante à especificação daidentidade de seu sujeito narrativo, enuncia também a especificação com-plementar identificadora do objeto abordado na obra: a guerra que opôspeloponésios e atenienses na contemporaneidade mesma de Tucídides. Fica,pois, contemplado o âmbito da guerra como aquela esfera da prática hu-mana especialmente eleita pela narrativa da história.

De imediato, Tucídides expõe também a razão fundamentadora de taldistinção narrativa em declarando o critério justificador de sua seletividade:ela fosse “grande” e “mais digna de relato” do que as precedentes (“mégan”te kaì “axiologótaton”). Então, pelo atributo da grandeza por ela efetivada,essa guerra constitui dignidade discursiva em grau superlativo. Pois, medidapelo confronto por que se a opõe aos conflitos bélicos precedentes, a guerrados peloponésios e atenienses realiza a grandeza em tal expressão superiorque reclama excepcionalmente ser contemplada com o privilégio honoríficode uma obra narrativa.

1 A guerra dos peloponésios e atenienses, I.1.

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Mas, a eleição da prática da guerra enquanto tema privilegiado danarrativa da história, justamente porque esfera de realização da grandezahumana, fora posta já pelo Proêmio herodoteano:

“Heródoto de Túrio dá esta exposição de sua inquirição a fim de que nemas realizações humanas se desvaneçam com o tempo, e nem grandiosas emaravilhosas obras, realizadas sejam pelos helenos sejam pelos bárbaros,fiquem sem fama; e, entre outras, também por que causa eles guerrearamuns contra os outros”.2

Para a história herodoteana, dois atributos circunscrevem, no amplohorizonte das realizações humanas, a qualidade do que é “memorável”: a“grandiosidade” e o “maravilhoso” (“megála” te kaì “thomastá”). Então,feitos humanos em geral, que bem comportem grandeza e maravilhamento,são “historiáveis”. Assim, por meio da exposição que os torna publicamen-te manifestos (apódexis héde)3 enquanto narrativa, assegurando-lhes me-mória e fama, a história herodoteana justamente reconhece e respondepela grandeza já pelos feitos mesmos fatualmente realizada (érga megálaapodechthénta).

Mas, nem bem acabou de declarar a grandeza das obras como cons-titutiva do objeto digno da memória histórica, Heródoto logo polariza oespecial horizonte das ações humanas em que sua narrativa os busca: aguerra dos helenos contra os bárbaros.4

E, todavia, também o privilegiamento da guerra como campo temáticoespecial da narrativa, a história herda da tradição épica.5 Épos e guerra,

2 Histórias, I.1.3 “O que nós chamamos as Histórias é a apresentação pública (historíes apódeixis), a

mostra desta historíe” (F. Hartog. O espelho..., p. 17).4 Já J. L. Moles (1993: 92) destaca esse escalonamento da temática herodoteana – do

mais genérico e universalizante para o mais específico – configurado em seu Proêmio.5 A fixação da temática da guerra na tradição historiográfica, enquanto herança da épica,

é tratada por G. S. Shrimpton, History..., p. 98-99.

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associação imediata! Assim, Trigeu, personagem aristofânico ávido pela pazem plena Guerra do Peloponeso, não agüenta aquela criança que teimavaem declamar versos épicos e constantemente a interrompe recriminando-a,pois não queria nem ouvir falar de guerra.6

Episódios da Guerra de Tróia compõem os temas dos cantos homéri-cos, desde logo declarados em seus versos inaugurais. Assim, na Ilíada:

“A ira canta, Deusa, de Aquiles Pelíade...

E similarmente na Odisséia:

O homem diz-me, Musa, multívio7 que bem muito

vagou, desde que de Tróia a sacra cidadela arrasou”.

Épos

Mas, o que declara o épos mesmo como objeto de seu canto?

A bem cumprir a missão que lhe confiara Agamêmnon de uma em-baixada junto à tenda de Aquiles a solicitar-lhe o retorno aos combates, acomitiva aquéia alcança a tenda do herói.8 Os visitantes encontraram-no adeleitar a alma e encantar o coração com cantos acompanhados aos toquessonoros da lira. Diante dele, só Pátroclo, sentado, ouvindo silente, a aguar-dar que o dileto amigo encerrasse sua canção. E o que canta o herói –Aquiles – em sua tenda, entediado inativo no acampamento aqueu diantedos plainos de Tróia? Canta “kléa andron”, as “famas dos homens”.9 Pelos

6 Aristófanes. Paz, 1282ss.7 Adotamos a solução dada por Jaa Torrano para a tradução de polytropos por “multívio”.8 Comitiva de dois/três integrantes – Ájax, Odisseu, Fênix – compõe o insolúvel dilema

da hermenêutica dessa cena iliádica; confiram-se nossos comentários no ensaio finaldesta coletânea, Leões alados e círculos triangulares.

9 Ilíada, IX.182-192. Confiram-se também: Odisséia, VIII.73; Hino homérico a Selene, XXII.18.

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paradoxos desse retiro, pálida realização substitutiva para um destino herói-co de honra beligerante!

Em meio às festivas reuniões palacianas, alternando com tantos ou-tros ensejos prazerosos que deleitam os convivas (iguarias, danças, jogos),chega a vez dos cantos do aedo. Todos sentados ouvem-no em silêncio. Eletoma nas mãos a esplêndida lira, de límpido som, e põe-se a preludiar umbelo canto. E o que cantam os aedos – Demódoco em Esquéria, Fêmio emÍtaca – nas festivas reuniões palacianas de seus reis? Cantam “os feitos doshomens e dos deuses”.10

“Episódios de feitos divinos” por vezes pontuam a narrativa dos poe-mas homéricos. Assim, por Demódoco contam-se os amores furtivos de Arese Afrodite, amantes surpreendidos por Hefesto, o marido enganado, tãoperito nas artes dos laços e cadeias que aprisionam, quão objeto de riso edivertimento entre os deuses.11

Assim, Hefesto alude à sua queda dos céus, de lá arremessado por Zeussobre Lemnos quando, em impotente defesa da mãe, interpôs-se em uma dastantas rusgas com que se desentendiam os amores do casal celeste.12

Assim, Agamêmnon refere a queda de Áte (Erronia13), arremessadapor Zeus da convivência divina dos céus para o âmbito terreno dos mortais,quando o pai dos deuses reagiu furioso contra o poder desencaminhador dedesígnios dessa odiosa figura.14

Mitos exemplares de episódios das histórias divinas, por desígnios etio-lógicos15, que especialmente dizem dos princípios e fundamentos origináriosda ordem (im)posta pelo poder de Zeus.

10 Odisséia, I.153-155; 325-328; VIII.266.11 Odisséia, VIII.266-367.12 Ilíada, I.590-594.13 Adotamos a tradução para o português indicada por Jaa Torrano.14 Ilíada, XIX.91-133.15 J. Redfield (1975: 31).

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Especialmente os hinos teogônicos narram tais mitos a gloriar os en-tes divinos. Os hinos que compõem o épos cantam os deuses. Assim, asMusas, precipitando-se do ápice do Hélicon em procissões noturnas, hineiamZeus, Hera, Atena, Apolo, Ártemis, Posídon...16. Associados pela tradição aonome de Homero, preservaram-se trinta e três. Por seus hinos, diz Hesíodo,as Musas gloriam “o sagrado ser dos imortais sempre vivos”.17 Contando oevento de seus nascimentos e narrando suas demais ações18, dizem da es-sência de seus seres divinos e, pois, delineiam os âmbitos precípuos de seuspoderes. Especialmente, então, hineiam Zeus, “o mais forte dos deuses e omaior em poder”.19

A gloriar Zeus, o hino narra a história de seu poder: como venceu opai Cronos.20 E como, reinando no céu, instaura a ordem sagrada de seupoder: aos imortais bem distribui e indica cada honra.21 Partilha das honrasque justamente define as singulares essências de seus modos divinos deexistência.22 E, assim, gloria o sagrado ser dos imortais sempre vivos. Tal é aTeogonia hesiódica.

Elegendo a existência divina como tema de seu canto, os hinos épi-cos dizem acerca do poder, da soberania concebida como a grandeza ab-soluta.

Em conjunção com os feitos divinos, o épos canta também feitos hu-manos. Feitos que são ações extraordinárias, façanhas singulares, aconteci-mentos admiráveis a comporem histórias famosas. Histórias grandiosas do-tadas de kléos, cujas tramas bem se contam e ouvem reiteradamente portodos os lugares, a projetar a rede de sua fama em toda a extensão do espa-

16 Teogonia, 9-21.17 Teogonia, 105 (para a Teogonia usamos a tradução de Jaa Torrano).18 Thalmann (1984: 154).19 Teogonia, 49.20 Teogonia, 73.21 Teogonia, 73-4.22 Teogonia, 66-7.

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ço, alcançando as alturas celestes, espalhando-se pelo horizonte como a luzda aurora, difusão esta de fama que dá a justa medida de sua excepcionali-dade gloriosa.23

Narrando histórias famosas, o épos celebra, ao lado da existênciadivina, também a condição humana: “as famas dos antigos” e os venturososDeuses que têm o Olimpo compõem os hinos do cantor servo das Musas.24

Mas canta a condição humana apreciada pelo estatuto de sua “grandezaheróica”. Assim, saudando em despedida a Deusa, Selene, por ele primeirocelebrada em hino, o bardo anuncia então seu seqüente desígnio, a agoracantar as famas de mortais semidivinos, cujos feitos os aedos, servos dasMusas, gloriam por vozes adoráveis.25

Por hinos divinos mais humanas sagas heróicas transitam os cantosépicos.26

A retratar a grandeza heróica, a Ilíada homérica enuncia o episódioguerreiro distinguido por sua narrativa:

“A ira canta, deusa, de Aquiles Pelíade,

funesta, que inúmeros sofrimentos aos aqueus dispôs,

e muitas almas potentes ao Hades lançou

de heróis, deles fazendo presas de cães

e de aves todos – cumpria-se o conselho de Zeus –

desde que primeiro se apartaram brigados

o Atrida, rei de homens, e o divino Aquiles”. 27

23 Odisséia, VIII.74; Ilíada, VII.451; VIII.192. Para o conceito de kléos e sua tradução por“fama” veja-se J. Redfield, Nature..., p.30-5. Já G. Nagy (Best..., p. 16), baseando-sena análise da etimologia indo-européia (cognatos índico, sravas e eslavo, slava), optapela tradução por “glória”.

24 Teogonia, 99-101 (tradução de Jaa Torrano, todavia adotando “fama” para kléos, comoproposto por James Redfield).

25 Hino homérico a Selene, XXXII.17-20.26 J.S. Clay (1997: 20s).27 Ilíada, 1-7.

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Similarmente o declara o Proêmio da Odisséia:

“O homem diz-me, Musa, multívio que bem muito

vagou, depois que de Tróia a sacra cidadela arrasou;

de muitos homens viu as cidades e as concepções conheceu,

e muitas dores no mar sofreu em seu coração

batendo-se por sua vida e pelo retorno dos companheiros;

mas nem assim os companheiros salvou, mesmo querendo-o,

pois por estultícias deles mesmos pereceram,

néscios, que os bois de Hélio Hiperiônio bem

devoravam, mas ele os privou do dia do regresso.

De algum ponto, deusa, filha de Zeus, diz-nos também”.28

Da Ilíada para a Odisséia, por seus respectivos temas de canto – a irade Aquiles Pelíade, na primeira, o homem multívio, Odisseu, na segunda –, aaxiologia épica opera um deslocamento em sua agonística heróica.29

Já o próprio Homero diz dessa conceituação contrapositiva deheroicidades ao configurar as disposições das naus dos heróis aqueus acam-pados no litoral troiano: enquanto Aquiles e Ájax fixaram suas tendas nospontos extremos, lugar de maior risco e vulnerabilidade, Odisseu preferiu

28 Odisséia, I.1-9.29 “Está claro, desde a Antigüidade, que as primeiras palavras dos dois proêmios, menin e

andra, definem uma ampla oposição de conteúdo e de ethos, e está claro hoje que estecontraste é articulado por toda a construção dos dois poemas. A oposição refere primei-ramente o tema: o objeto da Ilíada é a ira de Aquiles, um acontecimento fatal em seudestino guerreiro, ao passo que o da Odisséia é um homem, um caráter, um bios. Toda-via, dado que a ira é um aspecto convencional, mesmo profissional do guerreiro heróico,e a ira de Aquiles se torna o ponto de inflexão em seu destino guerreiro, está claro quemenin e andra contrastam duas espécies diferentes de heróis ... Por outro lado, o termo‘ira’ no verso inicial da Ilíada é usado no poema apenas para os deuses e para Aquiles.Conseqüentemente, uma espécie de atitude divina é atribuída a Aquiles, ao mesmo tem-po que o texto menciona seu nome e o nome de seu pai humano. Os versos iniciais dosdois poemas compõem uma antítese e um quiasmo: a ira divina de um homem e umhomem possuindo poderes divinos” (P. Pucci, Song..., 12 e 23).

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situar a sua bem no meio, local mais protegido e seguro. Assim fizeram,aqueles dois primeiros heróis, porque, confiantes na plena suficiência desua valia guerreira, a dispensar todo concurso de auxílio de companheirosque lhe acusasse a falta; já Odisseu, usufruindo que dali melhor se podiafazer ouvir pelos demais os apelos de chamados para o esforço guerreiro.30

Aquiles, herói extremo, configura, por sua ira, o paroxismo de umaidentidade heróica de contigüidade divina. O herói aparece tão destaca-do e isolado em sua potência furiosa que assoma a estatura por demaissobre-humana, de modos afins aos divinos.31 Então, quando ele decidevingar a morte de Pátroclo pela de Heitor, o herói excepcionalmente podeaté mesmo dispensar a necessidade dos alimentos, todavia, item impres-cindível que a condição humana impõe para a reiteração de renovadovigor exigido para os empenhos beligerantes: nessa hora ele (com)partilhaos efeitos das virtudes divinas da ambrosia e néctar que Atena, por ordemde Zeus a promover sempre a melhor consecução de seu destino heróico,espalha por seu peito.32 Na matança furiosa a que ele se entrega em per-seguição assassina contra odiosos troianos a macular as águas doEscamandro, o herói atinge o limiar desse paroxismo de potência agressi-va33, apenas então contida pela força maior do Deus Rio, que ameaçareverter contra ele tal destino infausto, sendo deste apenas salvo graças aoconcurso de outra potestade divina, Hefesto. Aquiles bem combate só emmeio a deuses. E, assim, também conduz suas participações deliberantesem Tróia aos ensejos de sua ira, pois firma as pretensões de sua superio-ridade por renitente recusa em admitir valores heróicos maiores do que oseu, primeiro contra Agamêmnon, depois contra Heitor. O herói atende aconselhos e se submete, sim, a pedidos, mas antes por ordens e preceitos

30 Confiram-se nossas indicações dadas no ensaio “O melhor dos aqueus”.31 Vejam-se, entre outros: Austin, Archery..., p. 109; Thalmann, Convention..., p. 181;

Edwards, Homer..., p. 6; Finley Jr., Homer’s..., p. 49.32 Ilíada, XIX.338-355.33 Confiram-se os comentários de Scully (1990: 116-119).

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que emanam direto de Zeus, ou por intervenção mediadora de Atena oude Tétis, sua prestimosa mãe. Paroxismo de pretensões da ira de um heróique, pelo aviltamento injuriante do cadáver de Heitor, arrisca mesmo des-vios hibrísticos, logo advertidos por Apolo.34

Já Odisseu assinala uma heroicidade que especialmente prima pelaexcelência de sua métis. Assim o proclamam não só ele próprio em altivaidentificação pessoal a Alcino35, como também Helena em informe a Príamo36,e ainda mesmo Atena nele reconhecendo similar heróico de sua essênciadivina37. Herói de figura física por compleição antes propriamente humana,não excepcional, que pouco impressiona por uma portentosidade e belezamaior de estatura, mas que justamente por isso vale também como um seuoutro modo/recurso de ser astucioso, a induzir em engano os que, menos-prezando sua aparência, são assim por ela ruinosamente ludibriados, comobem duramente o aprendeu o ciclope Polifemo.38

É também um episódio da Guerra de Tróia que o poeta canta: oretorno (nóstos) de Odisseu, sua viagem de volta à pátria após a destruiçãoda cidadela troiana. Um atributo bem qualifica o herói de que trata a nar-rativa: multívio (polýtropos). Epíteto polêmico, cuja significação intrigou asdiscussões dos comentadores antigos. Justamente, epíteto ambivalente, poisdiz das múltiplas vias do percurso odisséico de retorno, sejam as vias en-quanto as inúmeras erranças e desvios de um reiterado episódio de via-gens, sejam as vias enquanto os variados modos de recursos e expedientesastuciosos de transitar por essas erranças, a delas interminavelmente sair e

34 J.S. Clay (1997: 67).35 Odisséia, IX.19-20.36 Ilíada, III.200-202.37 Odisséia, XIII.291-299.38 Odisséia, IX.507-516. Também no episódio iliádico, em que o troiano Antenor descreve

a compleição física de Odisseu, sugere-se a virtude dessa aparência enganosa que nãoindicia, antes dissimula enganosamente, um, todavia assim, estupendo e maravilhosoprimor de competência retórica.

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entrar.39 Desse herói, a Odisséia lembra pelos destaques de seu Proêmio, aserranças da viagem de retorno por múltiplos desvios por que ele constituisua sabedoria e conhecimento, entretanto auferidos aos ensejos de tantosmais sofrimentos padecidos em seu coração. Herói, então, também espe-cialmente assinalado por modo humano de (onis)ciência limitada, aos en-sejos de longa e variada experiência de vida, conhecendo as vicissitudes demúltiplas realidades.40 Odisseu, também heróico porque homem excepcio-nalmente sofrido. E herói também que singularmente evita, por cautelas depiedosa prudência, ecoar eventuais proclamações de uma superioridadeextrema, perigoso limiar hibrístico porque o humano arrisca pretensões derivalização divina.41 A heroicidade odisséica, assim, aponta para um para-

39 Vejam-se os comentários de Torrano, O sentido de Zeus, p. 95-6.40 Aristóteles na Retórica (III.3.4.1406b) refere o dito de Alcidamas de que a “Odisséia era

belo espelho da vida humana”. Similarmente o reiteraram S. Schein (“...a Odisséia tratado que significa ser humano”: Reading the Odyssey, p. 5) e P. Vidal-Naquet (“A Odisséiano seu todo é em certo sentido o retorno de Odisseu à normalidade, sua deliberadaaceitação da condição humana”: Land ..., p. 38-39).

41 Confira-se o cuidado com que Odisseu encerra a declaração rasgadamente elogiosa quelhe dirige Diomedes (“como poderei esquecer o divino Odisseu, que possui, no mais altograu o coração zeloso e a alma viril em todas as provações, e a quem ama Palas Atena?Com ele, até das chamas regressaríamos ambos, pois sabe pensar melhor do que todos”:Ilíada, X.243-247) ao selecioná-lo para seu companheiro na missão de espionagem no-turna junto ao acampamento troiano: “Filho de Tideu, não me louves tanto, nem mecensures. Eles já sabem isso, os argivos a quem te diriges”: Ilíada, X.249-250; ambas astraduções de Cascais Franco). G. Nagy (Best..., p. 34) entende que a resposta de Odisseu,integrada à tradição épica da Ilíada, compõe o reconhecimento de que, neste horizontecompositivo, Odisseu não pode pretender a um tal título de melhor dos aqueus. Parece-nos, entretanto, que a réplica do herói soa antes como cautela preceituada por sapiênciaprudente e piedosa de quem é consciente da implicância hibrística de uma tal modalida-de de proclamação de ser heróico superlativo, assim referenciada, no entanto, a umhumano. A recusa odisséica seria, então, análoga à que distingue o sábio piedoso aoafastar de sua pessoa as proclamações de uma tal pretensão, quer pela história da trípodeque teria circulado entre os Sete Sábios como prêmio ao maior de todos, quer pelahistória da entrevista de Sólon com Creso a definir quem fosse o mais próspero e feliz.Odisseu, assim, se indispõe a tais proclamações, ambiguamente aparentando situar-se

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doxal paroxismo de antes humanitude a marcar os modos de sua excelên-cia distintiva como meio e não extremo.42

Os dois poemas contrapõem também distintos desfechos por que vis-lumbram os destinos dos heróis por eles celebrados. Na Ilíada, pela heroicidadede Aquiles, antevêm-se os sombrios passamentos de heróis valorosos, toda-via tombados em terra estrangeira, a não mais rever o solo pátrio. Na Odis-séia, pela heroicidade de Odisseu, alude-se, pelo contrário, ao singular êxitodo retorno do rei de Ítaca ao lar.

Princípio e fim de uma trajetória heróica de contraste opositivo aosque definem a história de Aquiles, o herói jovem tombado em terras estran-geiras, obtendo fama imortal em contrapartida à perda do regresso. Já parao destino heróico de Odisseu, kléos e nóstos, fama e regresso, não foramtramados por imposições de um princípio excludente, em que a afirmaçãode um requer a negação do outro. Nessa trajetória heróica, a permanênciado tino inteligente de Odisseu, enfrentando reiteradas vicissitudes de morte,finaliza sempre a preservação da vida.43

como que fora da disputa por um tal título de ser o melhor, não porque esteja convicto deque sua valia heróica seja inferior à de Aquiles ou à de Ájax, mas porque, por prudênciapiedosa, deixa outros insensatamente usufruírem o suposto gozo desse apanágio, sobreeles consoantemente desviando-se os riscos de sua correspondente pretensão hibrística.

42 “O propriamente humano na Odisséia – e isto significa em grande medida Odisseu eÍtaca a que ele se empenha por retornar – define-se em oposição a ambos, o sub-humano e o sobre-humano. Ele aceita a necessidade da labuta, do sofrimento e damortalidade, mas também oferece a possibilidade da resistência, do heroísmo e tam-bém da justiça. O Odisseu de Homero...dá mostras de ser não apenas o melhor dosGregos. Ele finalmente incorpora as melhores possibilidades do humano em sua precá-ria posição entre deus e fera” (J. S. Clay, Wrath..., p. 132).

43 “...a alternativa mais sombria apresentada na Ilíada: a de nenhum retorno. Esta é aalternativa escolhida por Aquiles, e dá o fundamento de seu kleos imortal, sua glória.Como seria de esperar, a Odisséia faz de uma radical diferença de orientação a base deseu confronto deliberado com a Ilíada. ... Os dois textos confrontam-se um contra ooutro como se suas orientações para com o retorno e o kleos constituíssem a chave

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Odisséia e Ilíada, ao mesmo tempo em que firmam uma comunhãode identidade épica emblematizada pelo nome de seu mesmo aedo,Homero, também configuram contraposição agonística.44 Pelas metáforas45

de herói jovem que parte de casa para a guerra, contra herói maduro quedela retorna ao lar, a axiologia épica da Ilíada é contrastada pela da Odis-séia: enquanto aquela aponta o princípio da história do heróico, esta apon-ta o fim.46 E como, para os antigos, pelos atos se depreende o caráter dequem os pratica, a metáfora transpõe-se também confundida na figura dasuposta pessoa do aedo, sujeito humano de tais composições. Assim, para

temática para suas diferentes metafísicas, e de fato a noção de retorno envolveuma diferente economia de vida/morte em cada poema” (P. Pucci, Odysseus..., p.129). “O contraste entre a angústia de Aquiles, que está sempre a arriscar sua vida,e a angústia de Odisseu, em salvar sua vida, constitui a diferença existencial entreos dois poemas e não necessita ser comentado. A Ilíada é o poema da total dissipa-ção de vida e a Odisséia é o poema de uma economia controlada de vida” (P.Pucci, Song..., p. 15). “A mais importante posse e bem, sua vida, Odisseu nãoperde, apesar de perder no nóstos todos os demais bens. Assim, a narrativa deOdisseu e seu discurso de métis traz à luz o sucesso mesmo de sua sobrevivência, osmodos de ele ser para sua sobrevivência, sua desconfiança, seu isolamento, seutom específico de resignação e paciência. O triunfo da inteligência sobre o podersombrio da morte (P. Pucci, Odysseus..., p. 142). Vejam-se ainda os comentáriosde S. Schein (Reading ..., p. 8).

44 “O confronto entre Aquiles e Odisseu vincula um confronto entre a Ilíada e a Odisséia.Se a épica pode ser definida como poesia de louvor, então o louvor de Odisseu naOdisséia rivaliza com o louvor de Aquiles na Ilíada. Ao dispor seu herói como um igual– se não superior – a Aquiles, o poeta da Odisséia firma o mais elevado reclamo daexcelência de seu próprio poema” (J. S. Clay, Wrath..., p. 106).

45 No que respeita a esta formulação da metáfora das idades na apreciação interpretativados dois poemas, vejam-se as análises de John H. Finley Jr., Homer’s Odyssey,p. 46-53.

46 A tese de que a Odisséia, pela história do nóstos do herói, marca o fim da Idade Heróicaque assinala igualmente o de sua tradição poética, está já formulada nas reflexões de P.Pucci, Song..., p. 173-175.

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Longino, no Tratado do Sublime47, a Ilíada é a concepção épica do heroísmo(cor)respondente à permanência do vigor juvenil de Homero, ao passoque a da Odisséia o é de sua velhice.

*

Porém, também a axiologia épica, que conjuga em seus cantos histó-rias de deuses e de homens, reitera a devida hierarquia que os distingue,opondo a excelência da existência divina contra as misérias da condiçãohumana. No congraçamento do círculo dos deuses na morada olímpica deZeus, a presença de Apolo enceta de imediato o ensejo regozijante da lira edo canto, e as Musas, alternando vozes,

“Hineiam dos deuses os dons infindáveis e dos homens

os padecimentos, quantos lhes advêm pelos deuses imortais,

a viverem insensatos e indefesos, incapazes

de descobrir cura para a morte e recurso contra a velhice”.48

Dos sofrimentos heróicos, diz o Proêmio da Ilíada:

“A ira canta, deusa, de Aquiles Pelíade,funesta, que inúmeras dores aos aqueus dispôs,e muitas almas potentes ao Hades lançoude heróis, deles fazendo presas de cãese de aves todos – cumpria-se o conselho de Zeus,desde que primeiro se apartaram brigadoso Atrida, rei de homens, e o divino Aquiles”. 49

A Ilíada elege como tema de seu canto um episódio da Guerra deTróia: a Ira de Aquiles. A ira, ménis, entendida como “concepção objeti-

47 Longino. Do sublime, 9.11-14.48 Hino homérico a Apolo, III.190-193.49 Ilíada, 1-7.

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vante” de uma manifestação raivosa apropriadamente divina, a qual reagea “um atentado contra a ordem” de Zeus por “um seu vínculo rompido,uma sua hierarquia arruinada”, liberando, assim, conseqüente “poder cós-mico” de modo a prontamente restaurá-la.50 Ménis que é, assim, pela Ilíadaexcepcionalmente estendida à figura de Aquiles, cujo destino heróico al-cança similitude de potência divina. A essa especificação conceitual deidentidade temática, o poema logo aduz o atributo determinativo de suarelevância fatual: a ira funesta. Assim, ressalta sua efetividade precípua di-zendo da obra ruinosa que com ela advém: princípio de males, desenca-deamento de infortúnios. E o diz avaliando plenamente o episódio en-quanto portento ruinoso: seja pela extensão multiplicada de seu alcancedestrutivo, a miríade de dores sofridas pelos aqueus51; seja também pelosparadoxos manifestados por seu desfecho, quer a impotência, diante dodestino de morte, de heróis, entretanto, potentes52, quer o modo vergo-nhoso dessa morte, pois selada pela profanação dos cadáveres a maculara honra de suas identidades heróicas. Então, episódio espantosamenteruinoso, de âmbito trágico.53

Também dos sofrimentos heróicos, diz o Proêmio da Odisséia:

50 J. Redfield, Proem..., p. 97-98.51 Hermann Fränkel (Early..., p. 14-15) sublinha como, na definição do material te-

mático recomendável para celebração pelo canto épico, conjugam-se os requisitosde uma identidade pesarosa de infortúnios e sofrimentos – “somente o que é pesa-roso é digno de preservação pela epopéia” – com os de sua expressão de abundân-cia multiplicada.

52 Na seqüência imediata do desencadeamento da ira de Aquiles perecem, em meio aoscombates, Glauco, Sarpédon e Heitor entre os troianos, Pátroclo entre os aqueus; masdepois, ainda o próprio Aquiles, Antíloco e, por fim, Ájax. Nesse sentido, confiram-se oscomentários de Thalmann, Convention..., p. 45.

53 “O primeiro verso da Ilíada qualifica o herói em termos de sua raiva divina e de seu paihumano, e assim situa o herói entre a divindade e os homens. Este estatuto ambíguoconstitui a fonte de sua tragédia” (James Redfield, Proem..., p. 98).

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“O homem diz-me, Musa, multívio que bem muitovagou, desde que de Tróia a sacra cidadela arrasou;de muitos homens viu as cidades e as concepções conheceu,e muitas dores no mar sofreu em seu coraçãobatendo-se por sua vida e pelo retorno dos companheiros;mas nem assim os companheiros salvou, mesmo querendo-o,pois por estultícias deles mesmos pereceram,néscios, que os bois de Hélio Hiperiônio bemdevoravam, mas ele os privou do dia do regresso”.54

E é igualmente o aspecto lutuoso dos múltiplos sofrimentos pelas mortesexperienciadas que melhor aprecia a significância fatual da narrativa. Simi-larmente marca-se também o paradoxo da impotência heróica face a taisdestinos ruinosos, pois efetivados apesar de todo o valoroso empreendi-mento ético do herói – dedicado chefe a zelar pela sorte de seus compa-nheiros – o qual almejava justamente o desfecho contrário, de pleno salva-mento.

Em episódio nesse sentido exemplar55, atingindo níveis de paroxismopatético, Homero descreve o estado de impotência do herói, surpreendidopela captura de seis companheiros pelos assaltos de voracidade assassina deCila: totalmente pasmo, ele apenas contemplou o destino de vôo desgraça-do por sobre o navio daqueles homens, pés e mãos a agitarem-se convulsi-vamente e mais tantos gritos desesperados de apelo chamando pelo nomedo chefe, última esperança de que, assim, atualizassem a potência heróicaque os livrasse daquele desfecho ruinoso.56 As aflições pela perda dos com-panheiros, entretanto, compuseram a única (re)ação do herói, todavia bela-

54 Odisséia, I.1-9.55 Odisséia, XII.234-258. Confiram-se os primorosos comentários tecidos por K. Rheinhardt

sobre esse episódio odisséico (Adventures..., p. 74s).56 Confiram-se os comentários de C. Higbie (Heroes’ names, p. 17) sobre a concepção

que associa atualização de poder ao ato de nomeação, assim ironicamente configuradapor essa passagem odisséica.

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mente aureolando sua impotência por zelo extremoso de comandante afeitoa seus companheiros.

A grandeza humana, realizada em sua dimensão heróica, é conse-qüentemente trágica. A consecução dos feitos grandiosos que distingue osheróis, demarcando o domínio de honras adstrito à esfera de seu poder,comporta, entretanto, paralelamente a multiplicidade de males e sofrimen-tos conexos a tais feitos. A axiologia épica, assim, logo assinala, pelas lem-branças inaugurais de seus Proêmios, seu enviezamento trágico57, destacan-do o duplo aspecto portentoso que define a moira da grandeza heróica. Porum lado, então, o épos gloria a potência superlativa dos heróis, de aspiraçãodivina, a fundar-lhe seu destino privilegiado de honras distintivas, mas tam-bém, por outro, firma igualmente a humanidade de sua condição pela im-potência em evitar os males e sofrimentos com que os desígnios dos deusesdeterminam as vicissitudes desses feitos.58 Grandeza ambiguamente divinae humana, confluência de glórias e ruínas, princípio de nexo trágico quecaracteriza a moira do poder heróico.

História/Heródoto

“Heródoto de Túrio dá esta exposição de sua inquirição a fim de que nemas realizações humanas se desvaneçam com o tempo, e nem grandiosas emaravilhosas obras, realizadas sejam pelos helenos sejam pelos bárbaros,fiquem sem fama; e, entre outras, também por que causa eles guerrearamuns contra os outros”.59

57 Assim, já o assevera o comentário do escoliasta: “o poeta concebeu um proêmio trágicopara sua tragédias” (citado por Griffin, Homer..., p. 118, cujas análises enfatizam justa-mente a apreciação dessa definição trágica da épica iliádica em particular).

58 Confira-se Edwards. Homer’s..., p. 175.59 Histórias, I.1.

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Se a axiologia do épos transita suas histórias, ou pelas obras divinasou pelas sagas heróicas, a axiologia da história herodoteana, completando odeslocamento que já a Odisséia aponta em relação à Ilíada, situa as suasexclusivamente pela esfera dos homens: memoriza as realizações humanas.Assim, em consonância com o enunciado pelo Proêmio, Heródoto declara:

“Com efeito, até onde vai meu conhecimento Polícrates foi o primeiro doshelenos a aspirar ao domínio dos mares – deixando de lado Minos deCnossos e outros quaisquer que antes dele exerceram esse domínio –, oprimeiro, ao menos, da chamada raça dos homens”.60

A grandeza humana demarca a axiologia narrativa da história. A his-tória herodoteana diz apenas as realidades grandiosas precípuas do tempodos homens, dela, pois, exteriorizando-se quais outras ordens de grandiosi-dades que respeitem antes a uma (con)fusão com o divino por temporalida-des míticas primordiais. Nem sagas de heróis nem obras de deuses, masrealizações humanas.61

Pelo horizonte dessa axiologia humana, dois atributos definem a qua-lidade do historicamente memorável: o grandioso e o maravilhoso (megálate kaì thomastá).

60 Heródoto. Histórias, III.122 (tradução de Mário da Gama Kury).61 “As Histórias desistem da teologia. O mundo divino não pode ser objeto da inquirição,

diferentemente do dos homens. Situado na continuidade do primeiro, o mundo doshomens tornou-se-lhe heterogêneo, tanto que um mesmo discurso não pode dizer osdois ... A inquirição recusa-se a ver nos deuses um objeto de estudo. Ela se detém nalinha divisória entre o tempo dos deuses e o dos homens. Ela não remonta além. Estalinha é traçada pelo silêncio que recobre o período antecedente e pelo uso de discursostranspostos no estilo indireto para retratar as aventuras divinas ou heróicas, quandoestas se revelam indispensáveis à economia de um testemunho. A inquirição não seinteressa tampouco pelos cultos místicos nos quais os deuses arrancam os homens daordem humana e conturbam mais ou menos essa ordem. Os deuses determinam nega-tivamente a natureza do objeto da inquirição: a raça dos homens enquanto não é a dosdeuses” (C. Darbo-Pechanski, p. 38 e 97).

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Porque as guerras medas compõem especialmente o objeto digno desua celebração memorizadora, a história herodoteana realça as famas dosfeitos bélicos de melhor dignidade, honra e valia. Catálogos nomeadores deguerreiros de ambos os lados ressoam ecos homéricos iliádicos, mas com oscenários de Tróia agora deslocados pelos de Maratona, Termópilas, Salamina,Platéias e Micale.62 Similarmente às queixas por que Helena lamenta osmodos denigridores de suas histórias memorizadas pelos aedos para a fruiçãodos homens vindouros, também pela memorização da obra herodoteanadiz-se da infâmia guerreira do ato desonroso e indigno de Efialtes.63

Também maravilhas são memoráveis, pois assinalam fatos e realida-des excepcionais, singularidades extraordinárias, coisas raras, que assim es-capam ao horizonte nivelador comum do que é desprovido de grandezadistintiva. Histórias que são também relatos de viagens64 ressoam ecos ho-méricos odisséicos.

E não apenas o “qualitativamente extraordinário, mas também o quan-titativamente notável”65, configura o thomastá consagrado pelas históriasherodoteanas. Logo, o monumental situa um cerne do histórico memorável,

62 Confiram-se: VI.109-117; VII.96-99; 224-232; VIII.85-9; IX.71-75. No horizonte dessaaxiologia histórica de ambivalentes heranças heróicas emerge paralelamente a glorifica-ção do coletivo especialmente apreciado por sua forma políade, como o lembra F. Hartog(Espelho..., p. 19): “Muda a façanha, notadamente guerreira: a excelência torna-se cole-tiva. A ordem da cidade e a lei da falange impõem-se. É belo morrer, não mais na primei-ra fila, mas na sua própria fileira”.

63 “O narrador erige em seu lógos como que uma estela de infâmia que responde às inscri-ções gravadas em honra dos heróis tombados junto com Leônidas para a defesa dodesfiladeiro” (F. Hartog, Miroir..., p. 294). Confiram-se igualmente os comentários deImmerwahr, Ergon..., p. 270.

64 “O relato de viagem, se ele se pretende registro fiel, deve comportar uma rubrica: thoma,maravilhas, curiosidades. ... Bem grande beleza, excessiva raridade, são os constituintesdo thoma. ...O thoma apresenta-se como uma tradução da diferença: ele é uma transcri-ção possível da diferença” (F. Hartog, Miroir..., p.243-244).

65 “Mais freqüentemente o thoma exprime-se segundo a quantidade e a medida: ele setranscreve diretamente em números e medidas, como se o número e a medida constituís-sem o ser do thoma. ...A grandeza é agora mensurável” (F. Hartog, Miroir..., p. 248).

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sucedendo-se em Heródoto freqüentes descrições de monumentos grandio-sos, que glorificam especialmente os nomes das potestades régias a elesassociados.66 Obras portentosas, marcas estupendas no mundo terrenomanifestadoras da história de monarcas maiores, cujo poderio superior osleva a beirar limiares hibrísticos por pretensões de equiparação divinizante.

Ao, assim, celebrar as realizações da grandeza humana assegurando-lhes memorização de fama permanente, as Histórias herodoteanas apresen-tam-se como sucedâneas da epopéia, por agonística narrativa de ambiva-lente comprometimento por que desdobra/desloca seus valores instituintes.

Pois, agora é uma guerra maior que o historiador narra, pelo que sedepreende do, assim dito, segundo Prefácio (VII.20-21) das Histórias, no qualo autor ajuíza uma espécie de confronto agonístico em que contrapõe a gran-deza maior da guerra por ele narrada – mais especificamente, a expedição deXerxes contra a Hélade – a superar todas antecedentes: quer logo antes a deDario contra os citas; quer ainda antes a dos citas a perseguir os cimériosMédia adentro, à qual a de Dario respondera punitivo; quer ainda as maisantigas, de tempos primevos, como a guerra liderada pelos Atridas contraTróia ou ainda antes a invasão da Europa pelos mísios e têucros a subjugar ostrácios.

Por este arrazoado, o historiador decide a palma da vitória, ganhapela história herodoteana contra à epopéia homérica, que a detinha pelafama gloriosa da Guerra de Tróia:

66 Vejam-se, entre outras, as seguintes passagens: as estátuas de pedra de Sesóstris (II.110);os propileus do santuário de Hefesto, edificados por Rampsinito (II.121); o Labirinto dosDoze Reis junto ao Lago Moeris (II.148); as crateras de ouro de Giges (I.14); os canais ediques da Babilônia (II.185); o canal do Monte Atos por Xerxes (VII.24). Nesse sentido,confiram-se os comentários de Immerwahr (Ergon..., p. 265-266): “A celebração, pelaHistória de Heródoto, dos érga que são monumentos, reverbera a glorificação do nomea ele associado, manifestando, por meio de suas dimensões monumentais, a grandeza darealização desse indivíduo. O monumento figura um padrão de medida da grandeza dapotestade, que é responsável por sua edificação, no sentido de que assim manifestadimensionada a grandeza, entretanto, incomensurável dessa pessoa, grandeza então aquiespecialmente concebida por poderio e riqueza”.

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“Com efeito, essa foi de longe a expedição mais importante entre todas deque temos conhecimento, ... Todas essas expedições e quaisquer outrasrealizadas além dessas não merecem ser comparadas com esta única. Defato, que povo Xerxes não trouxe consigo da Ásia contra a Hélade? Quecurso d’água, à exceção dos grandes rios, os soldados sedentos não exau-riram durante essa expedição? Uns povos forneciam naus, outros tinhamsido incumbidos de contribuir com tropas de infantaria; a uns tinham sidopedidos contingentes de cavalaria; a outros, além de sua presença na ex-pedição, naus para o transporte de cavalos; alguns tinham recebido or-dens para fornecer naus longas destinadas à construção de pontes; outros,provisões e naus”.67

Aspectos de relevância trágica, enquanto princípio seletivo dos temascontemplados pela narrativa, ressoam difusos nas declarações do Proêmioda obra herodoteana. Assim, a ecoar justamente aqueles versos inauguraisda Odisséia, as Histórias proclamam também os variados percursos da in-quirição historiante:

“E prosseguirei em frente meu discurso, percorrendo igualmente sejam aspequenas sejam as grandes cidades dos homens. Pois, aquelas que eramoutrora grandes, em sua maioria pequenas ficaram; já aquelas que eramem minha época grandes, pequenas foram. Ciente de que a prosperidadehumana jamais permanece fixa, dedicarei menção a ambas igualmente.”68

A narrativa das Histórias, declara Heródoto, não se deixa comandarpelas manifestações atuais de grandeza, apresentadas pelas obras humanas,a ponto de as tomar como critério de relevância exclusiva. Cônscio da insta-bilidade da prosperidade humana, permanentemente sujeita às vicissitudese reviravoltas da fortuna, como bem o ensina o relato da estada de Sólon nacorte de Creso, o historiador interessa-se igualmente pela sorte de ambas,quer as grandiosas mesmas, quer também as modestas, mesmo porque tam-bém estas já foram grandes e aquelas pequenas. Então, por esse modo retóricode expressão, bem enfatiza que a História cuida não apenas de retratar a

67 Heródoto. Histórias, VII.20-21 (tradução de Mário da Gama Kury ).

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grandeza humana, mas também, mais ainda, de atentar para o fato da suafragilidade trágica.

Mas essa grandeza maior do objeto narrado pelas Histórias herodo-teanas assinala, dado seu caráter trágico, também a suprema portentosidaderuinosa associada ao confronto bélico. Pois, assim o comenta o historiadorao ensejo da menção do terremoto de Delos, ocorrido logo quando da pas-sagem por lá da frota de Datis em direção à Hélade:

“Delos foi sacudida por um terremoto, primeiro e último, ao que dizem osdélios, anteriormente ao meu tempo. Este portento foi enviado pelos céus,ao que suponho, como um presságio dos males que adviriam ao mundo.Pois, em três gerações, ou seja, na época de Dario, filho de Histaspes, deXerxes, filho de Dario e de Artaxerxes, filho de Xerxes, sobrevieram àHélade mais males do que nas vinte gerações antes de Dario; alguns pro-venientes dos persas, alguns das guerras por preeminência entre os líderesdas nações mesmas. Assim, não foi nada extraordinário que ocorresse umterremoto em Delos quando não houvera nenhum antes. Também existiaum oráculo concernente a Delos em que estava escrito: ‘Eu sacudirei Delos,embora estável antes’ ”.69

História/Tucídides

E se Heródoto rivaliza já com Homero pela história da Guerra deXerxes que supera em grandeza a de Tróia, Tucídides, por sua vez, amarraainda outro elo a esse encadeamento de agonística narrativa, agora alme-jando ofuscar pela grandeza superlativa da guerra dos peloponésios eatenienses as pretensões axiológicas em que, tanto a história herodoteanacom as guerras medas quanto a epopéia homérica com a Guerra de Tróia,firmavam as respectivas primazias de suas obras comemorativas.70

68 Histórias, I.5.69 Histórias, VI.98 (pela tradução inglesa da Loeb).70 Confiram-se, por exemplo, os comentário de J. L. Moles (Truth and Untruth..., p. 99-

100): “Tucídides, por certos modos, está seguindo nas pegadas de Heródoto, bem como

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Pois, logo na abertura de seu Proêmio, Tucídides já reclama para suaobra o primado no âmbito da narrativa: porque a guerra dos peloponésios eatenienses supera em grandeza todas as anteriores, ela se torna digna doregistro discursivo em grau superlativo (axiologótaton). Como já antes o fize-ra Heródoto para sua história, também Tucídides busca ancorar as preten-sões de sua axiologia pelas razões do domínio do lógos, atendendo à exi-gência de seu princípio constituinte, que impõe um arrazoado argumentati-vo como prova de suas declarações assertivas. Assim, à proclamação daexcelência maior da guerra dos peloponésios e atenienses, faz seguir de ime-diato as razões que a fundamentam:

“Tucídides de Atenas compôs a guerra dos peloponésios e atenienses comoeles combateram uns contra os outros. Começou imediatamente à suaeclosão na expectativa de que ela fosse grande e mais digna de relato doque as precedentes, pois verificava que, ao entrar em luta, ambos estavamno auge de todos os seus recursos, e observava também que o restante domundo helênico compunha-se com um dos dois lados, uns de imediato,outros pelo menos em projeto. De fato, esta comoção foi a maior já ocorri-da para os helenos e também para uma parcela dos bárbaros, podendo-semesmo dizer, para a maioria da humanidade”.71

Uma primeira reflexão infere a grandeza da guerra presente, conside-rando o tempo de sua efetivação: momento de culminação, ápice, da histó-ria estatal de concentração de recursos bélicos por ambas as cidadescontendoras. Tempo, pois, de potencialidade máxima para a atualização dofenômeno guerreiro.

Uma segunda reflexão argumenta essa grandeza constatando já a es-cala ou amplitude de sua manifestação: guerra que envolve no conflito beli-gerante não apenas peloponésios e atenienses, mas mesmo a totalidade do

Heródoto, por certos modos, seguira nas de Homero. Mas a insistência tucidideanaacerca da grandeza suprema de seu tema – seus superlativos tomam nossos ouvidos –implicitamente refuta Heródoto, justo como Heródoto refutara Homero”.

71 Tucídides. A guerra dos peloponésios e atenienses, I.1.

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mundo grego, devido às filiações de alianças com um ou outro lado, e aindaalém, extravasando por áreas bárbaras. Assim, sua dimensão espacial deocorrência engloba o domínio todo dos virtuais agentes da prática guerreira:a humanidade mesma, pois a guerra é fenômeno precipuamente humano.

Então, máxima potencialidade de efetivação mais escala máxima deatualização, a grandeza da guerra dos peloponésios e atenienses é supremaporque alcança o nível máximo de realização em termos absolutos.

Grandeza absolutamente máxima, porém, ainda não necessariamentesuperlativa, pois, se assim é afirmado que guerras maiores certamente nãohouveram, não implica, todavia, que guerras equiparáveis em grandeza nãotivessem já antes ocorrido. Há, então, que argumentar ainda que estas guer-ras, anteriores, comportaram menor grandeza, enquanto fenômeno guerreiro,do que a presente. E, assim, o primeiro movimento argumentativo da prova,que afirma positivamente a grandeza máxima da guerra presente, solicita edesdobra-se em um segundo movimento, complementar e agora negativo, anegar nível equivalente de grandeza às guerras anteriores, do passado.

É este segundo movimento argumentativo do discurso tucidideanodo Proêmio que compõe a unidade textual (capítulos 2 a 19 do livro I),tradicionalmente denominada de “Arqueologia” pela crítica moderna. E a“Arqueologia”, enquanto arrazoado discursivo reclamado pela axiologiatucidideana, finaliza provar a grandeza superior da Guerra do Peloponesoem argumentando as grandezas a ela inferiores dos tempos antecedentesda Hélade, quer da Guerra de Tróia cantada por Homero quer das guerrasmedas historiadas por Heródoto, com Tucídides assim pontuando as obrase autores rivais contra quem mede a excelência narrativa de sua história.

É próprio da poesia, afirma Tucídides, celebrar a grandeza superiordos acontecimentos e feitos por ela narrados, o que torna seu relato suspei-to e, em princípio inconfiável:

“Não é, portanto, plausível assim duvidar-se e nem preferentemente con-siderar as aparências das cidades aos seus poderios, mas sim entender

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que, se aquela expedição foi a maior dentre as anteriores, é entretantoinferior às de hoje, caso se deva também aqui dar algum crédito à poesiade Homero, a qual, como é natural por ser ele poeta, foi adornada emvista do engrandecimento; e, entretanto, também assim ela pareceria maispobre ainda”.72

A memória poética acerca da Guerra de Tróia, diz Tucídides, pecapor seus efeitos engrandecedores do episódio. Essa guerra não pode com-portar uma grandeza tal qual a que os poetas disseram. Antes de tudo, pelofato mesmo de ser memória poética, cuja proposição narrativa está com-prometida com uma precípua apresentação laudatória de engrandecimen-to. Qualquer avaliação, portanto, da grandeza daquela guerra a partir deseu relato poético, deve advertir, já de antemão, essa relativização que de-nuncia o empobrecimento a ser considerado quanto à imagem delaconstruída.

Consagrada a advertência, Tucídides põe-se a considerar o examedo relato homérico a nele indiciar antes sua portentosidade bélica inferior:

“De fato, ele [Homero] dá, dentre os 1.200 navios, como sendo de 120tripulantes os dos beócios, e de 50 os de Filoctetes, revelando assim, ao queme parece, quais eram os maiores e os menores; quanto aos outros, emtodo caso, não fez menção a respeito de seus portes no catálogo das naus.Mas que todos eram remeiros e combatentes, revelou-o quanto aos naviosde Filoctetes, pois deu como arqueiros todos os que manejavam remos; jáquanto a passageiros, não é verossímil que houvesse muitos a bordo, excetoos reis e os altos dignitários, principalmente porque iam atravessar o marcom seus equipamentos bélicos e nem dispunham de naus providas deconvés, mas sim à maneira antiga, construídas mais como as dos piratas.Considerando, portanto, um termo médio entre as naus maiores e as meno-res, não parece que eles partiram em grande número, dado que compu-nham uma expedição em comum vinda de toda a Hélade. A causa foi nãotanto a escassez de homens quanto a falta de recursos. Com efeito, porcarência de provisões, levaram um exército inferior, limitando-o ao que con-

72 A guerra dos peloponésios e atenienses, I.10.3.

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tavam sustentar por lá mesmo guerreando; mas, uma vez desembarcados evencido o combate (o que é evidente, pois, caso contrário, não teriam levan-tado a murada de defesa do acampamento), vê-se que nem então valeram-se de todo seu poderio, antes dedicaram-se a cultivar o Quersoneso e àpirataria devido à carência de provisões. Tanto mais que os troianos, devidoà dispersão daqueles, resistiram firmemente por dez anos, equalizados con-tra os que sempre eram lá deixados. Mas se tivessem vindo com reservas deprovisões, e se, ficando reunidos, por não se ocuparem de pirataria ou decultivo, conduzissem ininterruptamente a guerra, por serem superiores emcombate, facilmente tomariam a cidade, eles que, mesmo não reunidos,resistiam com apenas aquela fração que sempre lá permanecia. Já caso setivessem instalado para o assédio, teriam tomado Tróia em tempo menor emenos penosamente. Mas, se por falta de recursos, as empresas anteriores aesta foram insignificantes, também essa mesma, embora mais renomada doque as ocorridas anteriormente, revela-se pelos fatos como sendo inferior aoque proclama sua fama e a tradição firmada atualmente acerca dela pormeio dos poetas”.73

Tucídides expõe seu entendimento das razões que limitaram as di-mensões daquele empreendimento bélico. Pela leitura de Homero, Tucídidesinfere, dos informes da Ilíada que memorizavam as incursões marginais dosaqueus pela Tróade, as situações circunstanciais que determinaram o esfor-ço de guerra grego no assédio contra Tróia. Certamente que não se tratou deum empenho ininterrupto por tomar aquela fortaleza, antes entrecortadopor desvios bélicos a postergarem o pleno cumprimento do que era suaproposição guerreira mesma. Além desse informe das excursões paralelas,Tucídides leu também no texto homérico que os combatentes viram-se ain-da, em parte, obrigados a dedicarem-se a atividades de cultivo pela regiãodo Quersoneso. Então, da conjunção desses informes apreendidos por sualeitura indiciadora, deduz a razão que explica os extravios guerreiros dosaqueus na campanha contra Tróia: eles careciam de provisões para bemsustentar as tropas na operação de cerco.

73 A guerra dos peloponésios e atenienses, I.11.

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E, a melhor afirmar a plausibilidade de sua inferência assertiva, ar-gumenta dando esse fato como sendo a causa mesma do prolongamentodecenal do cerco. Pois, caso contrário, tivessem vindo os gregos com provi-sões suficientes para se dedicarem ininterrupta e exclusivamente ao assé-dio de Tróia, dado que eles eram superiores em combate, facilmente ateriam tomado: em tempo menor e menos penosamente.

De modo que, pela singular trama das inferências do indiciamentooperado pela leitura tucidideana do texto homérico, o dado que poderiaser afirmado como uma manifestação da grandeza daquela guerra – suaduração, estendendo-se por não menos de dez anos –, torna-se, ao contrá-rio, sinal de sua pobreza e limitações mesmas enquanto empreendimentoguerreiro: falta de provisões, carência de recursos.

Pelo outro pólo de sua agonística narrativa, Tucídides rivaliza comHeródoto. Rivalidade narrativa justamente finalizada com o encerramentodo seu Prólogo, em transição já para a exposição do princípio da guerramesma enquanto início e causa:

“Por duas batalhas no mar em em terra, a [guerra] meda teve rápida deci-são. Já esta guerra alcançou dimensões enormes, e comportou, em seudecorrer, sofrimentos para a Hélade como não houve outros em tempoigual”.74

A indiciar a grandeza bem inferior da guerra meda relativamente àdo Peloponeso, Tucídides assinala suas estritamente limitadas dimensõesenquanto fenômeno guerreiro, cujos embates reduziram-se a poucas bata-lhas – duas por mar e duas por terra – e, todavia, de rápida definição.

É antes com a Guerra do Peloponeso que se multiplicam e prolife-ram os sofrimentos de que os homens são objeto em tempo de guerra. Sea portentosidade ruinosa advinda para a Hélade com as guerras medas,assinalada como dado da grandeza maior do objeto narrativo herodoteano,

74 A guerra dos peloponésios e atenienses, I.23.

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superava a dos tempos anteriores porque nem vinte gerações destes acu-mularam tantos males e desastres quanto apenas gerações três daquelas,Tucídides reverte, então, contra Heródoto seu próprio argumento: tudoagora se passa no intervalo de apenas uma geração!

Veladamente a reflexão argumentativa tucidideana, a arrazoar a gran-deza superior da Guerra do Peloponeso relativamente à de Tróia e às persas,intriga também razões políticas a explicar o fato: antes, tempos passados,foram guerras a envolver helenos contra bárbaros – entidades nacionais decompetência guerreira desiguais, estes últimos facilmente batidos por aqueles–; agora, tempo presente, a guerra supõe equilíbrio de contendores, o quetanto mais a delonga. Com Tucídides, as impregnações axiológicas domundo da pólis chancelam a história.

Mas, também o Proêmio da História tucidideana proclamagrandiloqüente a relevância da presença do aspecto ruinoso associado àgrandiosidade da singular guerra distinguida por sua narrativa:

“Já esta guerra alcançou dimensões enormes, e comportou, em seu decor-rer, sofrimentos para a Hélade como não houve outros em tempo igual.Sim, jamais tantas cidades foram tomadas e despovoadas, sejam pelosbárbaros, sejam pelos beligerantes mesmos, havendo até aquelas que,capturadas, trocaram de habitantes; e jamais tantos exílios e massacres,uns em conformidade com o fato mesmo da guerra, já outros em razãodos conflitos de facções. Também aquelas coisas que outrora se falava porconta da tradição, mas que bem raramente se realizavam de fato, perde-ram a incredulidade: assim os terremotos, que ao mesmo tempo atingirama maioria das regiões e foram os mais violentos; os eclipses solares queocorreram mais freqüentes em relação àqueles de que se tinha memóriados tempos anteriores; grandes secas em certas regiões, mais a fome delasdecorrente, e ainda – o que foi causa de dano não menor e, em parte, dedestruição – o flagelo da peste. De fato, todas essas coisas se deflagraramconjuntamente no decorrer desta guerra”.75

75 A guerra dos peloponésios e atenienses, I.23.1-3.

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Já na abertura de seu Proêmio, Tucídides, ao afirmar a grandezamáxima, em termos de extensão de poderio e escala, alcançada pela guerrados peloponésios e atenienses, aludira vagamente ao aspecto pateticamenteruinoso especialmente associado ao fenômeno guerreiro: esta foi a “maiorcomoção” já ocorrida para os helenos.76 Comoção (kínesis) anuncia já porqual foco de apreciação a obra tucidideana percebe privilegiadamente ofenômeno da guerra: interessam-lhe sobremaneira “os distúrbios e subleva-ções, tantos efeitos destrutivos e desagregadores, quer em termos materiaisquer psicológicos”, próprios de uma sua sintomatologia. Razão por que sua“obra tem sido descrita como uma narrativa de desastres”.77 Agora, no finaldo Proêmio, a encerrar a argumentação justamente afirmadora dessa gran-deza superlativa da guerra por ele narrada, retoma a abordagem do aspectopatético, listando todo o rol de desastres e sofrimentos que conjugaram suasefetividades ruinosas na temporalidade mesma da guerra.

Então, associa como itens componentes de tal temporalidade bélicaruinosa uma seqüência de desastres e males de duas ordens: humanos enaturais. Das ações dos homens, em sua consecução destrutiva, dizem: asperdas das cidades apreciadas em termos da identidade de seus contingen-tes humanos, e as perdas dos homens apreciadas sejam em termos de suaidentidade cidadã, sejam em termos absolutos de existência mesma. Dascalamidades da natureza dizem: terremotos, eclipses, secas desdobradas emcarestias, mais o flagelo da peste. Catálogo de memorização de infortúnios edesgraças em tempos de guerra por tantos abalos da ordem cósmica, quernos domínios da natureza quer nos da sociedade humana. Vislumbres lutuososde uma história trágica.78

Destacando a associação de males a causar múltiplos sofrimentos quecom a guerra advêm, o Proêmio da História ecoa lembranças épicas, especial-

76 A guerra dos peloponésios e atenienses, I.1.77 Para estas considerações respeitantes à concepção tucidideana de kínesis, vejam-se os

comentários de T. J. Luce (The greek historians, p. 70).78 Na esteira da célebre interpretação de F. M. Cornford (Thucydides Mythistoricus, 1907)

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mente da Ilíada, cujo canto principia justamente singularizando o fato dessaconjunção. Bem o expressa a fala de Aquiles dirigida a Agamêmnon, na aber-tura da assembléia precipuamente convocada para deliberar essa questão:

“Atrida, creio que agora vamos, repelidos,

retornar para casa, caso escapemos à morte,

se assim a guerra e a peste dizimam os aqueus”.79

*

Então, os proêmios da história nascente com Heródoto e Tucídides,reiterando as convenções originariamente (im)postas pelo “épos” homérico,reafirmam o princípio axiológico que determina a eleição do episódiohistoriado dada a sua grandeza trágica.

Pela derivação axiológica porque define seu objeto, a história nas-cente é herdeira da tradição épica, particularmente homérica, especial-mente iliádica. Mas tal nexo, que assim vincula a história como desdobra-mento da epopéia, dispõe também um enviesamento conflitivo de rivali-dade narrativa, consoante a proclamada dignidade hierárquica superiorda guerra precipuamente celebrada.

Pela contraposição agonística que a Odisséia marca em relação àIlíada, a axiologia narrativa de memorização dos fatos da grandeza apontauma transição que leva do excepcional estatuto do heróico para o da co-munidade da condição humana. Por Heródoto, concebida já a heteroge-neidade dos tempos – primordial dos deuses, seqüente dos homens –, aaxiologia da história prende-se às realizações humanas, antes obliterando

que apreende na narrativa historiográfica tucidideana um padrão trágico de percepçãoe ordenação compositiva dos acontecimentos, em especial a assim entender o destinode Atenas na guerra, constitui-se uma tradição hermenêutica de abordagem desse tópi-co temático. Assim, confiram-se as indicações dadas por, entre outros: T. J. Luce (Thegreek historians, p. 92s); T. Rood (Thucydides narrative and explanation, p. 8-9).

79 Ilíada, I.59-61.

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quer as divinas quer as heróicas agora relegadas ao mítico. Por Tucídides,essa axiologia restringe ainda mais seu horizonte, agora afeito exclusiva-mente ao mundo da pólis.

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2. Teleológico(a questão do valor-utilidade)

Tucídides assim pondera por que fins de valor e utilidade responde osaber histórico que sua narrativa da guerra de peloponésios e ateniensesconstitui:

“E para o auditório talvez o seu caráter não mítico parecerá menos atraen-te; mas a quantos forem desejosos de observar o que há de claro nosacontecimentos ocorridos como também nos futuros, que algum dia denovo, em conformidade com a realidade humana, ocorrerão símiles ouanálogos, julgarem tais coisas úteis, será o bastante. Constituem uma aqui-sição para sempre antes do que uma peça para um auditório do momen-to”.1

A proposição de um saber respeitante às ações humanas, que bemapreenda as persistências temporais desse agir, dada essa sua precípuarealidade, privilegiado pela clarividência resultante de seus procedimentosconstitutivos, é o que a narrativa da história finaliza.

A memória projetada por esse saber que a narrativa da história de-canta institui a aquisição preciosa, valor duradouro – (ktema es aiei) – quedefine o seu fim (télos) enquanto bem. Porque esse saber permanece pormeio da temporalidade das ações humanas, alcança foros imortalizadores.

Nesses termos, Tucídides define o princípio teleológico da narrativa.

1 A guerra dos peloponésios e atenienses, I.22.4.

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E, ao fazê-lo, denuncia também os equívocos antes perpetrados pelasnarrativas acerca das ações humanas, quer por poetas quer por logógrafos:

“Assim negligenciada é a investigação da verdade pela maioria das pesso-as que se inclinam antes para a versão corrente. Com base nos indíciosque foram enunciados, não erraria quem julgasse os fatos, de modo geral,assim tais como eu os considerei, e não confiasse nem no que a seu respei-to os poetas celebraram tendo antes em vista adornos engrandecedores, enem no que os logógrafos compuseram tendo em vista antes o que é maisdo agrado do auditório ao que é mais verdadeiro, dado que eles sãoincomprováveis e, na sua maioria submetidos ao tempo, inconfiáveis emrazão do caráter mítico adquirido”.2

Mas já Heródoto dispusera a imortalização pela memória como afinalidade mesma de proposição da narrativa da história:

“Heródoto de Túrio dá esta exposição de sua inquirição a fim de que nemas realizações humanas se desvaneçam com o tempo, e nem grandiosas emaravilhosas obras, realizadas sejam pelos helenos sejam pelos bárbaros,fiquem sem fama”.3

E, todavia, esse télos de fama imortalizadora principia mesmo com oépos homérico. Pois ele canta os kléa andron, os feitos famosos dos heróis,como celebração imortalizadora de seus nomes, já que constituem tanto oobjeto temático do canto quanto a finalidade de sua memória narrativa.

Épos

Entre o humano e o divino, o estatuto heróico situa uma ambigüida-de, pois o herói tanto se distingue e diferencia como um indivíduo destaca-

2 A guerra dos peloponésios e atenienses, I.21.1.3 Histórias, I.1.

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do, e mesmo dissociado, da comunidade humana, quanto igualmente seidentifica como um membro pertinente a esse gênero, já que compartilha ofato humano universal da mortalidade.

Pois, em meio aos humanos, como se identifica a figura do herói? Épela excelência de valor de seus atos e pela superioridade de sua condição,por sempre distinguir-se e sobrepujar os demais, que se define a heroicidade.O conceito de areté, então, expressa essa realidade heróica. Por sua exce-lência o herói situa-se em plano superior, destacado, em relação ao doshomens comuns. O herói é quem, por determinada excelência, se distin-gue, se diferencia, se singulariza e, pois, se dissocia da massa homogênea eindistinta dos homens comuns, todos iguais uns aos outros. A determina-ção de um nome, que a memória dos aedos celebra, assinala tal identida-de individual diferenciada.

Mas se, por um lado, o herói se situa, por sua excelência, acima edissociado do plano meramente humano, por outro, por sua condição mes-ma de mortalidade, o herói compartilha o destino comum definidor do fatohumano genérico, o qual indiferencia todos os homens. O herói, porquehumano, é mortal, e tem no termo da morte seu fim necessário, inevitável,inescapável.

Precisamente porque são bem conscientes dessa sua comunidade decondição mortal, que os associa inelutavelmente ao gênero humano, os he-róis optam pelo viver guerreiro, por esse modo de existência buscando in-cansavelmente diferenciar-se, distinguir sua individualidade singular pelaexcelência de seus atos, a sempre afirmar sua superioridade. Assim incisiva-mente o diz, em meio aos acirrados combates troianos, Sarpédon aoconclamar Glauco, que com ele compartilhava a realeza dual entre os lícios,a um renovado esforço guerreiro:

“Glauco, por que somos ambos honrados especialmente

com lugares, porções de carne e taças repletas

na Lícia, e todos nos contemplam como deuses,

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e possuímos às margens do Xanto um grande domínio,

belo de pomares e de campos férteis de trigo?

Agora é preciso que, dispostos entre os primeiros lícios,

nos apresentemos a enfrentar acesa batalha,

para que assim diga um dos lícios bem couraçados:

não é sem fama que a Lícia governam

nossos reis, por alimentos tendo gordos carneiros

e melífluos vinhos selecionados; mas também seu vigor

é excelente, pois combatem entre os primeiros lícios.

Ah!, amigo, se de fato livres desta guerra

para sempre sem velhice e imortais viéssemos

a ficar, nem eu próprio combateria entre os primeiros,

e nem te levaria ao combate glorioso.

Mas, agora, pois de todo modo os destinos de morte sobrevêm

inúmeros, tais que um mortal não pode fugir nem evitar,

vamos, ou a um glória daremos, ou ele a nós”.4

A figura social da realeza distingue-se, afirma Sarpédon, por uma sé-rie de privilégios e prerrogativas de apanágios e primazias honoríficas: de-tenção, junto às terras da comunidade, de domínios pessoais valorizadospela exploração agrária (pomares e campos de trigo) e pastoril; quotas decarne e taças de vinho, mais lugares privilegiados, enquanto dignidades deprimazias distintivas de sua condição régia.

Em sua fala a Glauco, inquire então o herói, qual é a razão fundamen-tadora que torna socialmente legítima essa ordem hierárquica pela qual acomunidade conforma-se obediente ao privilégio de dominação de seusreis? Duas ordens de considerações equacionam as razões. Uma, de teorgenérico, é apenas aludida por Sarpédon: o estatuto divinizante da realeza,pois a comunidade assimila seus reis a deuses. A outra, mais específica eenfatizada, argumenta a identidade essencialmente guerreira dos encargossociais da realeza: é o fato da excelência guerreira dos reis que mais decidi-damente fundamenta a primazia senhorial que a define.

4 Homero. Ilíada, XII.310-328.

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Num sentido mais imediato, posto por esta última consideração, en-tende Sarpédon que é pelo fato de os reis serem guerreiros excelentes quedetêm seus privilégios distintivos. Assim, é o mérito da capacidade guerrei-ra que justifica a primazia social do rei. De modo que, para ser rei, é precisoser herói.

Mas, noutro sentido, pode-se igualmente entender na fala de Sarpé-don que é justamente dos reis que se reclama ser guerreiro heróico. Com-bater entre os primeiros é encargo social precípuo da realeza, configuran-do, portanto, uma sua outra honra distintiva. E honras todas justamenteconcedidas, pois o fato de assim postar-se à dianteira, argumenta aindaSarpédon, bem (com)prova o valor guerreiro dos reis, sendo tanto suamanifestação quanto sua condição mesma. Então, como bem o assinalouJ. P. Vernant, se para ser rei é preciso provar-se heróico, também pararealizar-se heroicamente é preciso ter nascido rei.5 De modo que o méritoda excelência guerreira é tanto condição quanto atributo da realeza. Então,privilégios de dominação régia e excelência guerreira heróica supõem-semutuamente, de maneira que usufruir aquela dignidade requer a opçãopor esta modalidade de existência.

Pois, argumenta ainda a reflexão de Sarpédon, a o que se reduz apotência humana em termos de opções de conformação de sua existên-cia? Há algo, de imediato admitido, para o que o homem é radicalmenteimpotente: escapar ao fato da morte. A existência permanente, isenta develhice e imortal, não está dada para o humano. Tal é o apanágio da con-dição divina. Não há, portanto, sentido, para o viver humano, em evitar osriscos mortais que envolvem a existência guerreira, já que sobre todos oshomens, fujam eles ou não às guerras, sobrepairam as divindades funestasdo destino, igualmente impende a morte. Só se fosse possível ao humanoalcançar as benesses próprias do divino – a ausência de velhice e a imorta-lidade – teria sentido paradoxalmente recear a morte, e valeria a penaevitar arriscá-la na guerra.

5 J. P. Vernant. Bela morte..., p. 39.

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Mas, já que os destinos de morte sobrepairam, inúmeros e inarredá-veis, pela trajetória de todos, coloca-se, para os mortais, a decisão que lhescompete enquanto opção de existência: o modo de viver com e pela honra,o ser rei guerreiro, ou seja, herói. O que é um modo, ou o modo humano, doviver divino. Pois, os reis heróis vivem e existem na comunidade como deu-ses, assim admirados e honrados por condizentes benesses. Então, o usu-fruir as honras próprias do poder divino compensa o guerreiro por seu per-manente arriscar a vida na guerra. Como os deuses, também os heróis sãodevidamente honrados.

*

Em Esquéria, na corte de Alcino, em Ítaca, na de Odisseu, ou emEsparta, na de Menelau, os homens que usufruem os privilégios da convi-vência palaciana passam o dia todo entregues a prazeres, encadeando vá-rias de suas modalidades, de modo a compor uma verdadeira jornada pra-zerosa. Assim, sucedem-se e alternam-se banquetes que associam os praze-res da mesa aos deleites dos cantos, e espetáculos de jogos e danças, porvezes também compostos com outros tantos cantos. Entre uns prazeres eoutros, entremeiam-se banhos quentes e trocas de roupa. Só o cair da impe-riosa noite escura, que obriga todos ao sono, encerra essa ininterrupta fruiçãoprazerosa. O que, então, de certo modo, a torna infindável, pois só se encer-ra finalizando mais outros prazeres, aqueles que o leito bem enseja: desejosamorosos, mais o doce sono repousante. Mesmo a (in)ação do dormir éação prazerosa.

Em pleno festim olímpico, está a ponto de estourar mais outra dasodientas rixas de marido e mulher entre Zeus e Hera, agora suscitada pelaatenção que o deus dera ao pedido de Tétis, mãe prestimosa a cuidar dasatisfação das honras devidas a seu filho, Aquiles. Ciumenta como sempre, adeusa ralhara com o marido. Este, logo furioso, ameaçou empregar já aviolência: arremessaria a deusa céu abaixo, e assim livrar-se-ia do incômodode uma esposa querelenta.

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Então, Hefesto, aflito com a briga dos pais, cuidou para que ela nãoperturbasse o prazer do festim divino. Aconselhou a mãe a que cedesse àvontade de Zeus, lembrando-lhe a força superior do pai dos deuses e doshomens. Depois, afoito e um tanto desajeitado, pôs-se Hefesto a servir aosdemais deuses taças de néctar, para que logo todos retomassem os praze-res próprios da festa, do banquete convivial.

Uma só foi a reação de todos os que assistiam a cena:

“E gargalhadas rebentaram entre os deuses venturosos,

ao verem Hefesto desvelar-se por meio do salão”.6

Em meio à mais perfeita plenitude de beleza física composta pelasdivindades olímpias, a figura de Hefesto diverge excepcionalmente por suadeformidade. Os epítetos que qualificam seu nome bem assinalam esseatributo caracterizador de sua identidade pessoal: Hefesto é dito coxo (cho-lós)7, cambaio ou pés tortos (kyllopodíon),8 enfermo ou frágil (epedanós)9

e ainda amphigyéeis, que os antigos entendiam como significando “ambaspernas tortas”.10 Assim, quando recebe Tétis em sua morada olímpia, odeus vai ao seu encontro amparando seus passos claudicantes por duasdaquelas estátuas maravilhosas, prodígios que sua perícia artesanal dota-va de vida.11

Mitos que contam a formidável queda dos céus sofrida pelo deushistoriavam a etiologia dessa deformidade. Homero refere-a, ambiguamen-te, como mal congênito, enfermidade de nascença.12 E conta a história de

6 Ilíada, I.599-600.7 Ilíada, XVIII.397; Odisséia, VIII.308.8 Ilíada, XVIII.371.9 Odisséia, VIII.311.10 Odisséia, VIII.300; Ilíada, I.607.11 Ilíada, XVIII.410ss.12 Odisséia, VIII.311.

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uma sua longa queda, atravessando toda a lonjura que separa o céu domar e dando-a como causada pela mãe, Hera, ao assim conceber ummodo de ocultamento do filho disforme.13 E conta também outra históriade igualmente prolongada queda do deus, durando o dia todo até o pôr-do-sol: quando ele, em mais outra briga dos pais, se interpusera em defesada mãe, Zeus despencou-o céu abaixo por portentoso arremesso, indoentão parar em Lemnos, onde os síntios o recolheram.14

O destino de aleijão estigmatiza o ser de Hefesto. Teorias interpretativaso explicam. Assim, lembram-se os episódios míticos constitutivos da históriada figura régia, com o recém-nascido – marcado por uma deformidade su-postamente maléfica – sendo dissociado do domínio palaciano em que foragerado, exposto a (e recolhido pela) natureza cósmica, a assim ser submeti-do à prova iniciática por que principia a trajetória de seu destino. E, assim,também destaca-se que a mutilação física do coxo emblematiza a excelên-cia do artesão ferreiro, metalúrgico, principiada mesmo pela tortura iniciáticaque a causa enquanto arte mágica e xamânica.15

E figura disforme de aleijão que enseja sua ridicularização cômica.Naquela cena do convivial banquete das divindades olímpias, ao invés dobelo escanção (ou Ganimedes ou Hebe), pleno de vigor juvenil, a graciosae firmemente servir a nectárea bebida dos deuses, tem-se toda a azáfamadesajeitada e periclitante de sua distribuição problemática de quedas porum afoito aleijão de passos cambaios. Espetáculo de riso a bem aliviar asindevidas tensões que ameaçavam a serenidade do festim divino.

Pois, tal é um dos apanágios da superioridade da existência dos deu-ses olímpios: a permanente fruição de bens que deleitam o viver. Sua convi-vência no Olimpo comporta dons e privilégios intermináveis, realiza apenasprazeres todos os dias. Assim, saboreiam as deliciosas iguarias divinas, néctar

13 Ilíada, XVIII.394ss.14 Ilíada I.590ss e XV.18-24; Apolodoro (Biblioteca, I.3.5).15 Vejam-se as considerações de Mircea Eliade (História das crenças..., p. 98) referindo os

estudos de M. Delcourt.

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e ambrosia; assim, regozijam o coração com os cantos das Musas acompa-nhados à lira apolínea e, assim terminam sua jornada festiva, subindo a seusleitos para, tendo, ao lado a consorte divina, usufruírem, por fim, o repousodo doce sono.16

Então, os banquetes palacianos em que se integram os cantos doaedo realizam, no âmbito da condição humana, o modo prazeroso de con-vivência, próprio da existência divina. Por seus prazeres associados, os ho-mens, então esquecidos dos pesares e das aflições que compõem sua exis-tência,17 alcançam, mesmo que apenas por efêmeros intervalos em seu pe-noso viver, status de divindades.

Desse modo, bem se define uma “teleologia do épos”. Vários de seuspersonagens mesmos o reconhecem e asseveram. Assim, Alcino, ao convo-car pelo arauto a presença do aedo no banquete palaciano, proclama aproposição precipuamente hedonista a que o seu canto finaliza:

“Demódoco, a quem, pois, especialmente a divindade deu o canto

para deleitar, seja como o espírito o incite a cantar”.18

Assim, também o afirma Telêmaco, ao repreender a inopinada inter-venção de Penélope no salão dos banquetes, quando ela lá viera a solicitara interrupção do canto do aedo, para ela, todavia, pesaroso:

“Minha mãe, por que recusas que o leal cantor

deleite como lhe mobiliza o espírito?”19

E ainda Eumeu, ao replicar a censura que o pretendente Antino lhedirigira de estar a trazer ociosos inúteis ao palácio, igualmente assevera que

16 Ilíada, I.601-11.17 Teogonia, 96-103.18 Odisséia, VIII.44-5.19 Odisséia, I.346-7.

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deleitar com seus cantos bem define o valor que o aedo realiza para a comu-nidade.20

Por fim, Odisseu mesmo, a quem, entretanto, já por duas vezes oscantos de Demódoco levaram ao choro aflitivo, resolutamente o afirmouperante Alcino:

“Poderoso Alcino, notável dentre todos os homens,

é, de fato, algo belo ouvir um cantor

qual este é, símile aos deuses pela voz.

Pois eu digo que não há qualquer realização mais agradável

do que quando o regozijo toma todo o povo,

e os convivas nos salões põem-se a ouvir o cantor,

sentados como convêm e tendo ao lado mesas repletas

de pão e carnes, e o vinho que da vasilha retira

o escanção, a levá-lo e vertê-lo pelas taças.

Isso, no meu entender, é belíssimo de se contemplar”.21

A fruição da convivência prazerosa, estado de alegre regozijo, quetoma plena e totalmente a assistência, bem define uma finalidade, o télos,a que canto do aedo atende.

*

Já ciente da morte de Pátroclo e nem bem conscientizara a inutilidadepessoal de sua opção heróica, obcecada pela satisfação da honra, Aquiles,longe de repudiar esse modo de seu destino guerreiro, atende, mais uma veze novamente, a seus reclamos, para ele sempre verdadeiros imperativos. Amorte de Pátroclo, mais a perda de sua armadura, igualmente o desonram.Pela ofensa cometida, então, Heitor deverá ressarci-la honorificamente porsua própria morte, a assim afirmar-se o primado heróico de Aquiles.

20 Odisséia, XVII.385.21 Odisséia, IX.2-11.

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Mas a mãe, Tétis, como último apelo aflito tencionando poupar maisinfortúnios ao filho querido, outra vez o advertiu. Caso Aquiles persistisseem seu intento declarado de matar Heitor, seria também sua própria ruína,pois a sucessão dos destinos fatais estava já delineada: à morte de Heitor,seguir-se-ia a sua própria.

Aquiles, entretanto, não se deixou abalar, assim ponderando, peran-te sua mãe, a reflexão por que fundamentava a opção heróica de suaexistência:

“Mas agora irei à busca do assassino da cara pessoa,Heitor. Já eu, o funesto, então aceitarei quandoZeus quiser finalizá-lo, bem como os deuses imortais.Pois nem mesmo a força de Héracles escapou ao funesto,embora fosse o mais querido pelo rei Zeus Cronida;e, todavia, o destino o domou, mais o rancor terrível de Hera.Assim, eu também, se me está preparado símile destino,jazerei ao morrer. Mas, agora, que eu nobre fama obtenha,e alguma das troianas e dardânias de funda cintura,com ambas as mãos as tenras facesa enxugar e a gemer longamente eu ponha,e saiba assim como eu há muito a guerra deixara.Embora me ames, não me retires da batalha: não me dissuadirás”.22

Ao mortal, sentencia Aquiles, não compete projetar o término de suaexistência. Tal determinação do destino humano escapa aos homens, poiscompõe um dos atributos do poder de Zeus e sua ordem divina. O humano,pelo contrário, é impotente face à inevitabilidade da morte. Não há potênciahumana, mesmo a heróica máxima – Héracles –, que fosse capaz de evitar oadvento da morte. Então, que a decisão efetivadora dessa ocasião perma-neça com Zeus. A ele, Aquiles, competem outras deliberações e desígnios.Pois, se o herói não sabe quando e como morre, tem certeza, no entanto, dopor que e como vive: sob o imperioso primado da honra. Esta agora, neste

22 Ilíada, XVIII.114-126.

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momento e situação precisa, dita-lhe qual é a ação condizente: o retorno aoscombates a dar morte a Heitor. E esse modo de existência – o herói guerreiro– define o destino de Aquiles.

Para o herói, só a existência plenificada pela honra assegura a con-quista da fama, do kléos. E, pelo kléos que sua história irradia universalmen-te, o herói inscreve seu nome na memória que o épos atualiza.23 A imperiosaconsecução de feitos gloriosos, a permanentemente (com)provar sua supe-rioridade distintiva pela excelência por eles consagrada e, assim, (con)firmara primazia de sua honra, conforma a teleologia da existência do guerreiroheróico. E, por essa teleologia, o heróico viabiliza o modo humano de serdivino. Primeiro, diviniza-se pelos modos de sua vida terrena, auferindo ashonrarias que reconhecem socialmente seu domínio senhorial. Depois,diviniza-se por certa existência pós-morte, pois a fama de seu nome persisteinscrito para sempre na memória que celebra os feitos de sua história.

Para essas divinizações, o épos contribui decisivamente, tanto por umateleologia ao modo efêmero, porque integrado como item de entretenimen-tos da vida prazerosa24, quanto por uma teleologia ao modo permanente,porque instituído como registro de memória histórica sob modalidade poé-tica.

Pelas honras que a teleologia épica consagra, heróis são assim divini-zados. Mas as honras que eles então alcançam como se fossem deuses fi-cam, entretanto, estigmatizadas por uma diferença. Para os deuses, honrassob a forma de bens constituem itens de sua existência fácil, plenamente

23 “Por meio do louvor glorificante, indefinidamente repetido, o épos assegura, para umapequena minoria de eleitos (que assim se distingue da massa ordinária dos mortaisdefinida como a multidão dos anônimos), a pemanência de seu nome, de sua fama edos feitos que ele realizou” (J. P. Vernant, Death..., p. 55).

24 Ver na Odisséia, XXII.34-9, a súplica de Fêmio a Odisseu, entre outras razões arguindoque quando o herói está a usufruir seus cantos é como um deus.

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prazerosa. Já para os heróis, porque humanos, honras advêm imersas em, ecomo produto de, trabalhos, esforços, penares. Assim, bem se conforma aambiguidade heróica. O herói participa da condição humana, já que viven-cia dores e sofrimentos, penares e trabalhos. Partilha, pois, do lote de males.Mas o herói, também partilha do lote de bens pelas honrarias com que se odistingue.

O épos, ao narrar as histórias de seus feitos, celebra o kléos imortaldos heróis, mas lembra consoantemente seus sofrimentos e trabalhos. Ora,mas também as histórias dos feitos heróicos recentes configura uma predile-ção dos gostos épicos, como o adverte Telêmaco a Penélope25. Tal (con)junçãode tempos – feito heróico e narrativa do épos – não deixa de intrigar osmodos da teleologia épica.

Nas cenas da Odisséia em que se representam os cantos e históriasheróicas por que também se alegram os banquetes palacianos, o fato cir-cunstancial da subjetividade pessoal (de Odisseu, ou de Penélope, ou deTelêmaco, ou de Pisístrato, ou de Menelau) implicada pelos acontecimentosda história narrada nos cantos do aedo dissocia, relativamente ao públicoouvinte objetivo, uma excepcional reação face aos cantos do aedo: bem aocontrário do agradável regozijo que anseia a perpetuidade prazerosa peloreiterado prosseguimento do canto, têm-se os choros aflitivos e angustiadosque não suportam as dores provocadas e, antes, reclamam seu cessar. Masessa aparente anomalia da teleologia propriamente hedonista, que defineum valor do canto, advém daquela (con)fusão de situações representadapelas histórias da Odisséia, como, aliás, bem o equacionou a sapiente refle-xão com que Alcino tencionou acalmar o espírito conturbado e sofrido deseu hóspede. Dirigiu-lhe, então, palavras consoladoras, entendendo que ossofrimentos, as desgraças, os trabalhos e os penares humanos constituemmesmo a norma temática do canto dos aedos, segundo os desígnios divinos.Pois, assim, ele inquiriu o herói naquela ocasião:

25 Odisséia, I.351-2.

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“Diga por que choras e gemes no fundo âmago,

ao ouvires os infortúnios dos argivos dânaos diante de Ílion.

Isso os deuses obraram, que teceram a ruína

aos homens, para que haja também aos vindouros um canto”.26

De modo que, pela trama divina dos destinos humanos, os infortúniospassados dos tempos heróicos finalizam-se pelos prazeres presentes dos can-tos do aedo. Então, por este princípio hedonista de sua teleologia, o épospreceitua uma axiologia trágica que bem lembra, em insistente paradoxo con-tra as aspirações divinizantes dos heróis, as misérias de sua condição humana.

História/Heródoto

“Heródoto de Túrio dá esta exposição de sua inquirição a fim de que nemas realizações humanas se desvaneçam com o tempo, e nem grandiosas emaravilhosas obras, realizadas sejam pelos helenos, sejam pelos bárbaros,fiquem sem fama”.27

As declarações do Proêmio herodoteano afirmam os valores que ins-tituem a obra narrativa da história. Esta efetua-se como um relato: ela conta,ela diz aqueles feitos e obras humanas dignos de serem assim discursadosexpositivamente. E esse discurso se propõe como memória: a efetividadeque ele almeja é evitar o cumprimento da efetividade do tempo contra ascriações humanas. As realidades devidas aos homens – seus feitos, obras,palavras e ações – estigmatizam-se pela futilidade e efemeridade de seu ser,constituindo o que de mais perecível há no mundo.28 As obras humanas sãopresas do tempo, passam com ele: a efetividade deste produz o seu esqueci-mento, desvanece a sua lembrança, esvai a sua existência.

26 Odisséia, VIII.577-80.27 Histórias, I.1.28 Para estas considerações, vejam-se os comentários de Hannah Arendt em seu ensaio

sobre “O conceito de história, antigo e moderno” (Entre o passado e o futuro, p. 69s)

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Então, o discurso narrativo que memoriza as obras e os feitos huma-nos constrói o monumento que, ao resgatá-los da ação do tempo por dissociá-los de sua eficácia deletéria, assegura-lhes permanência, desdobra um modode sua existência e, assim, os imortaliza.29

Mas as famas assim projetadas na memória histórica pelas Históriasherodoteanas – consoante a dialética de destinos ou brilhantemente glorio-sos ou funestamente negros dos feitos heróicos, consagrada desde a axiologiaépica e já conscientizada pelos queixumes de Helena a esse respeito –ensejaram uma assimetria de apologias contra denegrimentos no horizontedas cidades helênicas. Pois, nos empenhos beligerantes das guerras medassob a ameaça da escravização persa, Atenas era ressaltada magnificamentecomo a salvadora da Grécia, a campeã de sua liberdade. Já as póleismedizantes tinham a memória de suas participações obnubiladas por tonsmais ou menos carregados de infâmia. Sobre Argos pairavam nuvens desuspeitas. Sobre Corinto, os atenienses acusavam abertamente covardia pelafuga de sua esquadra em Salamina. Sobre Tebas mormente a mácula alcan-çava o paroxismo por histórias exemplares de manifestações persas que

29 Explorando a formulação literal do Proêmio herodoteano, F. Hartog (Espelho..., p. 19)nuança a diferença que a teleologia das Histórias assinala em relação à da epopéia:“Enquanto o aedo, com a segurança de um mestre do kléos que a Musa inspira, pro-mete uma glória que não se consome (áphthiton), o historiador, circunscrito num tem-po que é o dos homens, falando de coisas humanas, com seu saber e seu nome,entende que apenas luta contra o esquecimento. Por meio da exibição de sua historíe,ele quer que todas as marcas do fazer dos homens não se tornem privadas de kléos(akléa), não passem (exítela) como uma pintura que, pouco a pouco, o tempo apaga.No eco entre kléos e akléa, bem como na distância instaurada entre os dois, pareceque, de Homero a Heródoto, a promessa de imortalidade não mais se pode enunciar anão ser de modo negativo: em suma, sem ilusão”. Assim, o alcance aparentementemais modesto da teleologia histórica herodoteana, face à imortalidade que o éposdescortina, não responderia também pela formulação piedosa do primeiro historiador,que em sua obra circunscrita ao humano se apresenta como sucedâneo da piedadeheróica odisséica, que jamais aventa qualquer enunciação declarativa de equiparaçãodivinizante?

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menosprezavam, a tal ponto, o servilismo de seus cúmplices tebanos queestigmatizava neles, gregos, o destino histórico de escravos por natureza.30

Paralela a essa teleologia de memória imortalizadora, também a fruiçãode entretenimento prazeroso envolve por seus fins efêmeros a atualizaçãohistórica das Histórias herodoteanas. Contam-se anedotas dizendo das réci-tas públicas a que a composição das Histórias ensejara. Em Atenas, especial-mente: lá, no ano de 445/4 (pelas projeções inferidas da cronologia deEusébio), o Conselho concedera a Heródoto um prêmio pela leitura de suaobra. Diilo, um historiador ateniense do século IV, de boa reputação peloque informa a notícia dada por Plutarco, dissera que o prêmio montava adez talentos, tendo sido Anito quem propusera o decreto. Plutarco, no trata-do por ele composto com o propósito precípuo de denunciar as maledicên-cias das Histórias, assinala toda a infâmia do episódio, pois a vultosa recom-pensa em dinheiro desse prêmio (cor)respondia (in)justamente aos desíg-nios de seu texto, antes aduladores das vaidades atenienses. Inversamente,memorizaram-se também histórias de malfadadas récitas públicas herodo-teanas, agora pelas cidades por ele supostamente denegridas. Assim, diz-seque Heródoto reclamara contra a falta de pagamentos de sua leitura porCorinto. Também Tebas recusara-se a pagar-lhe tais emolumentos, tendo-oainda proibido de lá entrevistar-se e debater com os jovens cidadãos, deci-são esta que ambiguamente respondia tanto pelos zelos de evitar os efeitoscorruptores das Histórias quanto pelas mazelas de uma identidade tebana,antes rústica e avessa a realizações culturais. Já Luciano imaginou uma ou-tra história que compunha o teor dessas anedotas pela perspectiva dopanhelenismo que as guerras Medas herodoteanas também faziam aflorar:aos eventuais estorvos delongados e tediosos de reiteradas leituras por vá-rias cidades da Grécia – ora em Atenas, ora em Corinto, ora em Argos, orana Lacedemônia –, Heródoto planejara uma única récita pública, a realizar-se no centro e ocasião panhelênica por excelência, a celebração dos Jogos

30 Para estas histórias confiram-se:VII.152; VIII.94 e VII.233.

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Olímpicos. E lá teria, a tal ponto, encantado sua audiência que se o consa-grou como discípulo das Musas, atribuindo-se a cada um dos nove livros dasHistórias o nome de uma das filhas de Mnemosine. Tradições anedóticaslembram ainda que, em meio ao público assim empolgado com a históriaherodoteana, encontrava-se um jovem ateniense, então comovido às lágri-mas: ninguém menos do que seu sucedâneo historiográfico, Tucídides!

Mas, irônica anedota que, se assim assinalava uma suposta incipientevocação historiográfica tucidideana, o fazia em termos de um entusiasmojuvenil pela récita pública herodoteana, a qual, entretanto, seria, na maturi-dade, justamente o objeto de sua crítica aos logógrafos: por ela descuravama verdade em prol do divertimento de seus auditórios.

História/Tucídides

Em suas reflexões metodológicas, Tucídides adverte:

“As pessoas acolhem as tradições acerca das coisas passadas, mesmo nocaso em que elas sejam de sua própria terra, igualmente sem exame aquando as acolhem junto a outros”.31

E logo desqualifica acerbamente a falta por que assim o fazem, emtotalmente descuidando a apurada comprovação que, pelo contrário, de-veria comandar sua aceitação seletiva:

“Assim desleixada é a investigação da verdade pela maioria das pessoasque se inclina de preferência para a versão corrente”.32

As pessoas, adverte Tucídides, adotaram modos de lidar com as tra-dições dos tempos passados que pecam pela negligência do desleixo: nãose dão a qualquer trabalho, não empenham quaisquer esforços, em bem

31 A guerra dos peloponésios e atenienses, I.20.1.32 A guerra dos peloponésios e atenienses, I.20.3.

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averiguar a verdade do que elas dizem (atalaíporos). Antes, optam pelafácil solução de dar-lhes acolhimento imediato, aceitando-as como elasvêm dadas, já prontas e disponíveis (tà hetoima).

Certamente que há dificuldades inerentes a um tal exame apuradorda verdade das coisas ditas e afirmadas sobre os tempos passados, e que,pois, poderiam ensejar a automaticidade desse acolhimento generalizado.Nem sempre se dispõe de informes mais ou menos familiares que melhor oupior o (in)viabilizem. E, todavia, argumenta Tucídides, não é bem esse ocaso em consideração. Pois o fenômeno parece independer de uma tal pro-ximidade/facilidade, ou pelo contrário estranheza/dificuldade, das pessoaspara com as tradições acolhidas. Elas, assim, agem sempre indiferenciada-mente descuidosas, tanto quando as tradições lhes são familiares já quelocais, respeitantes à sua própria terra, quanto estranhas, recebidas de ou-tros povos. Não se trata, portanto, aqui de um impedimento objetivo darealidade mesma, que torne o exame da verdade, em si mesmo, fácil oudifícil, mas, sim, de uma falta subjetiva, própria da pessoalidade humana.

Tal é, por exemplo, bem o caso dos atenienses, cuja

“Massa do povo acredita que Hiparco era tirano quando foi morto porHarmódio e Aristogíton. Eles não sabem que era Hípias quem, por ser ofilho mais velho de Pisístrato, detinha o poder, ao passo que Hiparco eTéssalo eram seus irmãos”.33

E essa atitude de descuidos e desleixos das pessoas, quanto à aceita-ção de verdades não verificadas acerca das coisas antigas, é tão arraigada,prossegue Tucídides, que opera mesmo quando elas escaparam a todaação destrutiva do tempo:

“E acerca de muitas outras coisas, ainda mesmo atualmente vigentes enão deslembradas pelo tempo, também os demais helenos não concebemcorretamente, tal como a idéia de que os reis lacedemônios não dispõem

33 A guerra dos peloponésios e atenienses, I.20.2.

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de um voto cada um, mas de dois, ou a de que entre eles há um batalhãode Pitane, o qual nunca jamais existiu”.34

E, pelo que nós modernos podemos saber, dadas as lembranças eesquecimentos seletivos da memória histórica, pelo menos a obra de Heródotoficava assim implicada por essa denúncia tucidideana. Pois, ao indicar emsua narrativa os privilégios e prerrogativas com que eram distinguidos os reislacedemônios, conta o historiador que eles, tendo assento nas reuniões daGerúsia, dispunham excepcionalmente do direito a dois votos nas mesmas.35

Igualmente, Heródoto refere-se à existência do batalhão espartano doaldeamento de Pitane, atestando sua presença na batalha de Platéia (479a.C.).36

De modo que, mesmo quando não imperam as dificuldades maiores,a inviabilizarem a averiguação da verdade das coisas antigas, e sim, pelocontrário, quando estão dadas as possibilidades da inquirição informativa(seja pela familiaridade de origem local seja de contemporaneidade), mes-mo então as pessoas, argumenta Tucídides, desleixam o exame reclamado,preterindo-o pela mera aceitação das versões correntes. A total ausência,pois, de espírito crítico averiguador da verdade das tradições só pode serprimeiramente entendido como decorrente dessa propensão humana maisgeral de evitar esforços, recusar trabalhos, sempre que se lhe abre a via fácilque os dispensa. Fica, portanto, nelas acusada a leviandade da indolênciacomo modalidade consagrada de transmissão das tradições antigas.

Mas, há também uma outra razão que permite entender essa gene-ralizada atitude de acolhimento acrítico das tradições antigas, tendo agoraa ver com uma outra disposição dos seres humanos: a atração pelo fabulo-so. Pois, diz Tucídides encerrando seu arrazoado acerca dos tempos passa-dos:

34 A guerra dos peloponésios e atenienses, I.20.3.35 Histórias, VI.57.5.36 Histórias, IX.53.

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“Com base nos indícios enunciados, não se equivocaria quem julgasse osfatos, de modo geral, assim tais como eu abordei, e não confiasse antesnem no que a seu respeito os poetas celebraram tendo em vista adornosengrandecedores, e nem no que os logógrafos compuseram tendo antesem vista o que é mais do agrado do auditório ao que é mais verdadeiro”.37

Eis como são as práticas dos poetas e dos logógrafos, agentes de trans-missão das tradições antigas entre as pessoas a quem se as dirige: bem sa-bem e atendem ao que é do agrado delas. Ambos, quer poetas querlogógrafos, preterem os reclamos da questão da verdade acerca do que con-tam e afirmam as tradições por eles narradas. Não é um tal propósito decompor um saber distinguido pela primazia da verdade que finaliza, en-quanto princípio teleológico, a consecução de suas obras. Elas buscam rea-lizar outros fins: os prazeres dos entretenimentos de suas respectivas audiên-cias. Assim, os poetas conformam embelezamentos engrandecedores, a re-vestir de dignidade heróica a realidade dos acontecimentos celebrados emseus cantos. E os logógrafos bem narram o que é do agrado do auditório.Por ambos, poetas e logógrafos, o fabuloso (mythõdes) adere às coisas anti-gas.

Assim, as aporias respeitantes ao melhor conhecimento do passadotêm, aqui, a ver com a sobreposição do fabuloso (epì tò mythõdeseknenikekóta)38 por que as tradições o memorizam e transmitem ao pre-sente.

Então, as modalidades instituídas, tradicionais, de estabelecimento deconhecimento sobre o passado revelam uma norma generalizada de seuprocedimento constitutivo: “recolhem, de forma indiferenciadamente acrítica,as tradições transmitidas”.39 Meramente aceitam-se os relatos (dis)postos pelastradições, sem que se comprove, sem que se aprecie, a verdade por elas

37 A guerra dos peloponésios e atenienses, I.21.1.38 A guerra dos peloponésios e atenienses, I.21.1.39 A guerra dos peloponésios e atenienses, I.20.1.

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afirmada. Tais procedimentos, inerentes às práticas de poetas e de logógrafos,acolhem como verdade as versões dadas. O crédito que se dá a tais verda-des consiste, portanto, meramente de crença: é crédito imanente e imediata-mente cedido de princípio, e não constituído por qualquer operação media-dora de averiguação argumentadora de sua veracidade. Assim, denunciaTucídides, para a ingenuidade negligente e para a futilidade hedonística,não há maiores dificuldades em se promover o conhecimento do passado,pois este é situado, não no campo da razão, mas no da crença afeita aofabuloso.

Mas, completa Tucídides, a que ganho e valor preciso responde umsaber clarividente porque respeitante ao presente? De imediato, o historia-dor revela a precípua utilidade que ele projeta para a História, enquantoobra narrativa escrita:

“A quantos desejarem observar com clareza os acontecimentos ocorridos,e também os futuros que então novamente, conforme o que é humano,ocorrerão tais ou símiles, julgarem essas coisas úteis, será o bastante. Cons-tituem uma aquisição para sempre, antes do que uma peça para o auditó-rio do momento”.40

De modo que a História, enquanto obra narrativa, ao dissociar suafinalidade e seu valor daquela convencional proposição de atender aos pra-zeres efêmeros de fruição por um auditório ocasional, a que justamente po-etas e logógrafos submetiam as suas, pretende, sim, alcançar os foros imor-talizadores com que estes as proclamavam. Pois, as obras de poetas e delogógrafos – o épos homérico a narrar a Guerra de Tróia, e a História hero-doteana a narrar as guerras medas –, constituídas enquanto memória dascoisas antigas, afirmavam também seu valor pela efetividade imortalizadoraque a memória propicia. Mas, precisamente porque privilegiam o mítico,consagram a oralidade de sua manifestação narrativa: a declamação ou

40 A guerra dos peloponésios e atenienses, I.22.4.

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récita do aedo, a leitura pública do logógrafo. Portanto, manifestação levianae fútil por que consuma seu valor no e pelo momentâneo de sua fruiçãoprazerosa por um auditório. Já a História tucidideana, deslocando tais va-lores efêmeros próprios da axiologia e teleologia da narrativa mítica, realizaseu valor precipuamente enquanto obra escrita, a compor um saber que,primando pela clareza de sua objetivação, destina-se à fruição futura, quetranscende o meramente momentâneo graças ao saber que sua narrativados acontecimentos decanta.

A teleologia de um saber que prime pela certeza clarividente na apreen-são dos fatos da história humana, assim altivamente proclamada por Tucídi-des para sua obra narrativa da guerra de peloponésios e atenienses, deslocaa teleologia disposta pela tradição da epopéia ainda desdobrada pela dahistória herodoteana, a qual sacrificava a expressão da verdade pelos desíg-nios ou apologéticos de engrandecimentos heróicos ou fúteis de entreteni-mentos de auditórios ocasionais. Com Tucídides, o primado da verdade noconhecimento dos acontecimentos humanos é plenamente instituído comoimperativo absoluto da história, seu signo distintivo.41

41 Confiram-se, nesse sentido, os comentários de J. L. Moles (Truth..., p. 91-93 e 102):“Por um lado, ambos escritores [Heródoto e Tucídides] vêem-se como herdeiros datradição da narrativa épica, especialmente como ela é expressa por Homero na come-moração de uma grande guerra na Ilíada. ...Por outro lado, ambos escritores também sevêem empenhados em um projeto que é distinto do da tradição poética em sua tenta-tiva de estabelecer a verdade factual e distingui-la da mentira ou falsidade factual....Tucídides é mais explícito acerca da natureza e metodologia deste projeto do queHeródoto, e também acerca do tipo de história (isto é, primordialmente, história recen-te) em que este projeto pode ser levado a cabo efetivamente. De fato, especialmente aeste respeito, ele se apresenta como um crítico, e rival, de Heródoto bem como seusucessor. ...Há uma implicação geral de que ele [Heródoto] têm em consideração aquestão da verdade ... mas ele não enfatiza a verdade, o que constitui um contrastemarcante com seu predecessor imediato, Hecateu...A obra de Heródoto possui umvalor comemorativo (um reclamo historiográfico padronizado) mas a expressão evitarque os grandes feitos fiquem sem glória ecoa uma passagem famosa da Ilíada...Assim,o tema de Heródoto é a grandeza épica, e seu próprio papel é, talvez, correspondente-mente heróico...Diferentemente de Heródoto há em Tucídides uma renovada insistên-

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cia de que a história busca a verdade, verdade aqui claramente implicando verdadefactual”. Todavia, há que se considerar também a intriga de retórica agonística que asfomulações do proêmio tucidideano supõem, pois já Heródoto, ao anunciar seu relatoda história de Ciro (Histórias, I.95), opera uma similar proclamação de imperativo daverdade narrativa contra desvios apologéticos.

Para essa realização teleológica, todavia, o primado da verdade factualna consecução da narrativa impõe a condição cognitiva da presença aosacontecimentos como instância de derivação de seus informes e relatos.Por quais modos, assim, se dá, impõe considerar a questão do sujeito danarrativa, a definir seu princípio onomasiológico.

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3. Onomasiológico(a questão do sujeito)

“Tucídides de Atenas compôs a guerra dos peloponésios e atenienses comoeles combateram uns contra os outros”.1

A História, pelas declarações inaugurais do Proêmio, propõe-se comoobra discursiva: composição de um texto (syggrápho). Então, a declinaçãode um nome, bem determinado pela qualificação da cidadania, abre o dizerda obra. Por esse modo, a obra declara a primeira especificação de suaidentidade ao referir o sujeito que é o autor de seu discurso constitutivo. Arealidade suposta, pois, por um nome singulariza um certo indivíduo huma-no: Tucídides de Atenas, que compôs a guerra dos peloponésios e atenienses,

Por esse modo mesmo de declaração inicial, a obra tucidideana rei-tera a fórmula inaugural firmada já antes por Heródoto e por Hecateu.Assim, nas Histórias de Heródoto tem-se:

“Heródoto de Túrio dá aqui a exposição de sua inquirição”.2

E nas Genealogias de Hecateu lia-se:

“Hecateu de Mileto narra o seguinte”.3

Mas, no princípio mesmo da memória narrativa helênica com o épos, atradição poética fixara já a original fórmula enunciativa da obra, à qual a daHistória apenas responde. Assim, o verso inaugural da Ilíada homérica diz:

1 Tucídides. A guerra dos peloponésios e atenienses, I.1.2 Heródoto. Histórias, I.1.3 Jacoby, FGrH 1 F 1.

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“A ira canta, Deusa, de Aquiles Pelíade.4

E igualmente o da Odisséia:O homem dize-me, Musa, multívio”.5

Também nos poemas hesiódicos, é essa formular invocação às Musasque abre o canto. Assim, tem-se nos Érga:

“Musas Piérias, que gloriais com vossos cantos,vinde, dizei Zeus, vosso pai, hineando”.6

Também na Teogonia a encontramos, deslocada poema adentro7, umavez encerrada o louvor inicial que o aedo dirige a essas deusas mesmas, asMusas:

“Alegrai, filhas de Zeus, dai ardente canto,gloriai o sagrado ser dos imortais sempre vivos”.8

Fórmula inaugural do canto que também os hinos homéricos con-templaram:

“Hermes hineia, Musa, de Zeus e Maia filho;9

Musa, dize-me as obras da mui-dourada Afrodite;10

Ártemis hineia, Musa, irmã do Alveja-longe”.11

4 Ilíada, I.1.5 Odisséia, I.1.6 Trabalhos e dias, 1-2 (tradução de Mary Neves Lafer).7 Indicações respeitantes à maior complexidade da estruturação narrativa do Proêmio da

Teogonia em sua interação onomasiológica aedo/Hesíodo/Musas são apontadas por F.Hartog (Espelho..., p. 25-26).

8 Teogonia, 104-5 (tradução de Jaa Torrano)9 Hino a Hermes, IV.1.10 Hino a Afrodite, V.1.11 Hino a Ártemis, IX.1.

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Então, a declinação do nome que abre a narrativa da história (cor-responde à invocação das Musas que enceta a narrativa do épos. Pelonome, assim proclamado, define-se o sujeito a quem a narrativa mesmarefere a consecução do seu dizer. Nome genérico de uma categoria divina– Deusa, Musa, Musas –, quase que alusivamente “anônimo”, no âmbitodo épos, a praticamente diluir a questão da autoria. Nome individual ehumano – Tucídides de Atenas, Heródoto de Túrio – a precisamente cir-cunscrevê-la na da história.

Épos

Súbita, a voz do aedo rompe o silêncio, e irrompe em palavras emúsica um canto destinado a celebrar as obras dos deuses e os feitos herói-cos dos homens de outrora. Assim, disposto a atualizar uma dessas histó-rias na ambiência humana de uma dada comunidade de ouvintes, o bardologo ativa o contato com o ente divino de que provém seu conhecimento:um rogo, “pura prece” de apelo direto e autônomo graças a um excepcio-nal relacionamento íntimo com a divindade12, é dirigido à(s) Deusa(s),nomeada(s) Musa(s), filha(s) de Zeus e Mnemosine (Memória). Sob o modode uma interpelação formulada em termos imperativos13, o aedo reclamaa revelação presentificada do saber divino interrogado pelo teor do cantoque ele então atualiza entre os humanos.14

Na referenciação, portanto, do sujeito de sua narrativa, o épos for-mula um nexo entre aedo e Musa.15 Pelas representações que o épos dá

12 J. S. Clay. Wrath..., p. 9.13 Imperativo, aliás, a causar estranheza entre os antigos, pois como pode um humano dar

ordens a um ser divino? (G. Kirk, Commentaries..., p. 52).14 Vejam-se as considerações apontadas no estudo de W. Minton (Homer’s..., p. 293):

“...todas as invocações são essencialmente questões, apelos à Musa por informaçãoespecífica para a qual o poeta espera claramente uma resposta”.

15 Calame. Craft..., p. 53.

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acerca de seus próprios modos de emissão narrativa, elide-se a figura indi-vidual singular do aedo, sua voz (con)fundida com o dizer da Deusa, sendoele antes concebido como mera instância humana de mediação instru-mental comunicativa com a esfera da ciência divina dos cantos.16

Pois, o canto constitui dom divino, bem concedido pela divindade aagraciar aquele mortal que é particularmente distinguido como aedo.17 Oaedo, pois, é discípulo da Musa: é ela, filha de Zeus, quem lhe ensina oscantos.18 A excepcionalidade de uma conexão divina com as Musas entãobem distingue um indivíduo assim privilegiado para a arte do canto, que adomina por autodidata, pois não a aprende de qualquer outro humano, jáque discípulo apenas das Musas. Justo assim o assinalou, a dramática sú-plica que Fêmio dirigiu a Odisseu quando da matança dos pretendentes,rogando-lhe que poupasse sua vida:

“Abraço-te os joelhos, Odisseu, tu respeita-me e compadece-te de mim;a ti mesmo mais tarde o remorso virá, se um cantormatas, que aos deuses e homens eu canto,autodidata sou, a divindade em meu coração récitasvariadas fez nascer, e pareces-me ao cantar diante de ticomo um deus”.19

16 Idem, ibidem, p. 10. Confira-se, ainda, C. Calame (Craft..., p. 77): “a enunciação é carac-terizada pela projeção do ‘eu’ do narrador em uma autoridade superior, a figura dasMusas, autoridade dotada de poder e conhecimento poético. As Musas aparecem comogarantia da competência do poeta, que meramente empresta sua voz para o exercício desua onisciência”. Assim também Romeo: o aedo figura, no mundo humano em que écomunicado o canto, uma entidade singularizada, indivíduo que constitui “o meio narra-tivo entre a Musa e os ouvintes, a afirmar implicitamente uma prioridade de competênciae a sublinhar o caráter privilegiado e técnico de seu próprio papel” (Proemio..., p. 14).

17 Odisséia, VIII.44; Odisséia, VIII.64: “a Musa deu-lhe agradável canto”; Odisséia, VIII.498:“que a mercê de um deus te proveu o divino canto”.

18 Odisséia, VIII.481: “a ele a Musa ensinou récitas e ama a tribo dos cantores”; Odisséia,VIII.488: “ou a Musa filha de Zeus ou Apolo te ensinou”.

19 Odisséia, XXII.344-349 (tradução de Cascaes Franco). Ch. Segal (Singer..., p. 138-139) analisa esta cena especialmente sublinhando que “quando Fêmio se denomina

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Súplica de apropriada retórica persuasiva ao seduzir o interesse deOdisseu em poupá-lo, pois arrazoava o valor inestimável de sua pessoapara o palácio: aedo autodidata, sem igual, insubstituível por algum outroque pudesse ser formado por ensino de mestre humano; aedo assim ex-cepcionalmente privilegiado por dom divino, discípulo das Musas.20 A con-fluência de ambos os reclamos – autodidata e discípulo das Musas – obramconcordantes e complementares implicações significativas de uma estraté-gia persuasiva: Fêmio é tão singular e único por sua excelência poéticadevido a essas duas razões que, se não for poupado por Odisseu, jamaiseste conseguirá outro aedo que, como ele, por seus cantos desdobradosdiante do herói, propicie-lhe regozijos de experiência divinizante.

Assim, o aedo, ao encetar seu canto, então invoca essa presençadivina, conclamando-a a atualizar-lhe seu saber:

“Dizei-me agora, Musas, que tendes as moradas olímpias,pois vós sois deusas, presenciais, vistes tudo,mas nós a fama só ouvimos e não vimos nada:quem eram os comandantes e os soberanos dos dânaos;já a multidão eu não narraria e nem nomearia,nem se tivesse dez línguas, dez bocas,voz incessante e contivesse peito brônzeo,caso não as Musas Olimpíades, de Zeus egíferofilhas, memoriassem quantos sob Ílion vieram.Os comandantes das naus, então, digo, e as naus todas”.21

autodidata, ele quer significar que aprendeu as canções por si mesmo, ou seja, que elenão está apenas repetindo o que ele adquiriu de um específico mestre ou modelo hu-mano, mas é capaz de acrescer e aperfeiçoar elementos tradicionais. E, todavia, o termonão exclui a assistência divina: há um crescente consenso entre os críticos de que serautodidata e usufruir inspiração divina não são mutuamente excludentes”.

20 Confira-se igualmente a atribuição de nexo divino ao poder sapiencial de Édipo, oprimeiro dos homens, por que o sacerdote de Zeus entende a excepcionalidade de seufeito heróico ao decifrar o enigma da Esfinge (Édipo e o enigma da visão das idades).

21 Ilíada, II.484-493.

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A presença atuante da Musa no espírito do aedo define, portanto, oprincípio que move seu canto.22 Princípio constitutivo do canto com que adivindade instrui o aedo em sua plenitude: canto, aoidé, indistintamenteconcebido quer como a competência da arte ou ofício (téchne), quer comouma específica composição, quer como repertório de histórias famosas.23

22 Odisséia, VIII.73: “a Musa então o cantor moveu a cantar as famas dos homens”.Odisséia, VIII.44-45: “a quem, pois, bem a divindade deu o canto a deleitar, seja comoo espírito o incite a cantar”. Odisséia, VIII.499: “Assim disse, e ele impelido pelo deuscomeçou e fez ouvir o canto”. Confiram-se igualmente os comentários de P. Pucci(Song..., p. 40): “A cada ocasião que o poeta começa a cantar, as Musas dizem ouensinam-lhe, ou por fim liberam-lhe sua canção, assim como os deuses soltam o ménosdo herói no calor da batalha. ... A cada performance o poeta se sente conectado comas Musas...O texto da invocação também sugere que o canto das Musas ressoa nointerior do poeta: dize-me agora”.

23 “Quando os deuses fazem dos homens cantores, como Homero descreve o processo,eles lhes dão aoidé, canção, indiferentemente o produto da composição ou a compe-tência de cantar; entre um e outro não há estágios intermediários que possam serdistinguidos. Quando Demódoco perde a vista e recebe aoidé como compensação, eleparece receber a habilidade do cantor, uma arte ocupacional, mas quando ele executauma canção acerca da tomada de Tróia, aoidé representa uma peça particular em seurepertório. Estes dois aspectos de aoidé fundem-se a produzir um terceiro em um outrorelato do dom das Musas: o repertório de contos do poeta (oimai) é o que lhe conferehonra e constitui sua competência; aoidé é uma coleção de cantos dentre os quais ocantor escolhe uma canção quando recita. Em qualquer caso, sua habilidade é melhordescrita por, e talvez não deva ser distinguida de, seus produtos, pois pode-se dizer queuma canção existe sem um cantor” (Walsh, Varieties..., p. 9-10). Igualmente, Romeo:“A deusa dá o saber mas também o modo do canto, que é unívoco com o tema canta-do. ... a modalidade do canto, além de seu conteúdo, a técnica poética, a habilidade deexecução, são sinais de uma sapiência especial. ... O dom do canto é, por isto, unívococom a técnica. O saber poético revela-se na expressão total do canto”(Proemio..., p. 9-10); ou, ainda, Thalmann: “As Musas concedem, em primeiro lugar, a habilidade decantar. Mas o auxílio das Musas apenas começa assim. Tendo dado a um homem acapacidade de cantar, elas precisam ainda ajudá-lo a pô-la em prática a cada ocasião,dando-lhe conhecimento do particular tema que ele deve tratar. Seria tentador diferen-ciar-se...o alcançado humanamente e o inspirado divinamente como aspectos da arte

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Tantos aspectos solidários do canto das Musas que o configuram pelo nexocom a pessoa do aedo como memória.24

Vínculo privilegiado do aedo com as Musas, fundamento divino desua precípua excelência (poética), pelo qual ele alcança auras de sacralidade,25

e que assim o integra no horizonte de valores e honras do mundo heróicopor consoante nível hierárquico, como bem o assinalou o gesto de Odisseupor que reconheceu elogioso a distinção honorífica da areté do aedo:

“Demódoco, louvo-te acima de todos os mortais:

ou a Musa, filha de Zeus, ou Apolo te ensinou,

pois bem ordenado cantas o infortúnio dos aqueus,

quanto realizaram, o que sofreram e quanto suportaram os aqueus,

como se tivesses presenciado, ou de um outro o ouvisses.

Mas, vamos, muda e canta a trama do cavalo

de pau, que Epeio construiu com Atena,

e que então o divino Odisseu, doloso, levou para a fortaleza,preenchendo-o de guerreiros que Ílion saquearam.

poética...de modo que ao primeiro correspondesse a habilidade técnica, assim o domí-nio das fórmulas...ao passo que a contribuição das Musas, por outro lado, fosse oconhecimento das estórias, oimai. É, entretanto, duvidoso que a absorção da técnicaformular pelos poetas fosse um processo bem consciente de modo a permitir umadistinção entre forma e conteúdo”(Conventions..., p. 126).

24 “E a memória especial do aedo, como fundamental recurso de ofício, na sua práticavirtuosística faz parte do dom do canto: a função do canto se identifica mesmo com orecordar os feitos gloriosos dos heróis: lembrar, comemorar e cantar constitui um todounívoco na mentalidade arcaica” (Romeo, Proemio..., p. 11). “O deus que provê Fêmiode suas canções é a fluência própria do poeta oral exercida pelo meio tradicional (alinguagem dactílica com suas fórmulas ou padrões formulares). Fêmio não conseguever claramente esta tradição porque ele sente mais vivamente o que ele mesmo faz. Elenão consegue ver claramente a si mesmo como distinto de seu mestre divino porque elenão percebe sua tradição. Ela obra dentro dele onde não pode ser observada, umaforça mágica que garante que as palavras que ele escolhe serão sempre corretas” (Walsh,Varieties..., p. 13).

25 “O que torna theion (Odisséia, VIII.43) o cantor”, observa Romeo (Proemio..., p. 8-9).

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Se isso me discorreres com propriedade,logo declararei a todos os homens,que a mercê de um deus bem te concedeu o divino canto”.26

Por tal excelência distintiva de predileção divina cabia-lhe, pois, usu-fruir honras heróicas, e assim condignamente o consagrou Odisseu:

“Então ao arauto dirigiu-se o multiastuto Odisseu,após trinchar o lombo, mas uma parte maior reservando,de porco de dentes brancos, que tinha abundante gordura de ambos os lados”.

“Arauto, toma, leva esta carne para que comaa Demódoco; também eu o saudarei, embora aflito,pois entre todos os homens que andam sobre a terra, os cantoressão participantes de honra e de respeito, porque justamente a elea Musa ensinou récitas e ama a tribo dos cantores”.27

O apanágio de um nexo divino que propicia excelência heróica asse-gura ao aedo participações em prerrogativas honoríficas e condizentes de-monstrações de saudação respeitosa. Ele, assim, integra-se no festim pala-ciano, gozando iguarias tais como os nobres convivas que compõem o círcu-lo aristocrático da realeza. Tanto mais que esta sua inserção se dá consoantea uma correspondente ordem hierárquica, bem assinalada pelo gesto deOdisseu que, atento às propriedades distintivas dessa estratificação, distri-buiu desiguais valores emblemáticos pelos nacos de carne que então trin-chou, oferecendo bela posta para o aedo, mas reservando para si uma maior.

É que, diversamente dos aristocratas presentes ao festim a usufruíremociosamente suas benesses, o aedo recolhe as suas como contrapartida doserviço que então presta ao alegrar e entreter todos com seus cantos. É,assim, pelos trabalhos que disponibiliza para a comunidade que justamente

26 Odisséia, VIII.486-98.27 Odisséia, VIII.474-481.

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também se define sua valia, então associado, junto com arautos, médicos eoutros à categoria dos demiurgos.28 Ele ali se encontra, pois, por dupla deter-minação de inserção heróica, que o define ambiguamente tanto como con-viva quanto como servidor, a usufruir prazeres contra trabalhos.

Mas, também a Ilíada e a Odisséia, cantos de que o sujeito são asMusas, implicam a associação tradicional com um nome, Homero, a indivi-duar o aedo humano, agente presente que os atualiza. Homero, nome deaedo, similar a Demódoco e Fêmio. Com uma diferença: nome a que atradição atribui todo um nexo de circunstâncias biográficas, a projetar-lheidentidade pessoal. Tradições, todavia, de cunho marcadamente lendário,antes derivações de aspectos compositivos dos poemas espelhadosetiologicamente por situações e vicissitudes pessoais de uma suposta figuraautoral.29 E nome deslocado, exterior aos poemas, por eles obliterado justa-mente por meio dessa representação daquela entidade mítica denominadaMusas, a quem se remete a formulação narrativa dos mesmos.

Pois, pelos versos formulares de que se vale a epopéia homérica, ainvocação à(s) Musa(s) declara ou só a referência a esta(s) figura(s) divina(s),“A ira canta, deusa, de Aquiles Pelíade”30, ou também já expressamente

28 Odisséia, XVII.380-397. Seguimos aqui o entendimento de W. Thalmann (Conventions...,p. 131-132 e 145-146) que analisa a figura social do aedo pela confluência das signifi-cações por que Demódoco é distinguido em Ítaca, com as de sua categorização comodemiurgo na réplica que Eumeu dá a Antino nesta passagem da Odisséia. Diversamen-te o analisa Segal (Singer..., p. 144 a 162) que dissocia tais figuras, tendendo antes aaproximar a posição do aedo da do mendigo, o que, entretanto, é justamente contesta-do pela declaração de Eumeu.

29 Alguns críticos tendem a referenciar a historicidade desse nome Homero ao fato datranscrição dos poemas épicos orais em texto viabilizada pelo ressurgimento da escritana Grécia por meados do século VIII. Assim C. Calame, para quem tal transcriçãoatenderia antes a “desígnios rituais de consagração do texto em recinto sagrado do quede sua real publicação” (Craft..., p. 29).

30 Ilíada, I.1; cf. Hino Hermes, I.1 e Hino Ártemis, I.1.

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alude à pessoa do aedo, destinatário humano a quem o canto/hino é primeiropassado, “O homem dize-me, Musa, multívio”31. Mas pessoa do aedo que éambiguamente referenciada, a supor uma e nenhuma individualidade hu-mana, tanto figura subjetiva quanto objetiva de memorização do canto32. Pois,o “eu” do aedo por essa formulação convencional aparece desprovido denome próprio, de modo que pode ser adotado por qualquer um deles que, emtempos seqüentes, recite o poema.33 De modo que as vozes que emitem osepisódios do canto odisséico (con)fundem Demódoco ou Fêmio por Homero.

A cada récita num presente atualiza-se essa memória de um tempomítico há muito passado, um outrora falto de cronologia que só a consciênciahistórica inaugura34, essencialmente definido pela sua qualidade extraordiná-ria, mundo de (ir)realidades excepcionais, tempo de realização de grandezasuperior – divina e heróica –, em oposição a esses atuais presentes de uma

31 Odisséia, I.1. Similarmente: Ilíada II.484 (“Dizei-me agora, Musas, que tendes as mora-das olímpias”; também em XI.218, XIV.508 e XVI.112); Ilíada, II.760-1 (“Esses entãoeram os comandantes e os soberanos dos dânaos. Quem deles então era bem o me-lhor, dize-me tu, Musa”); e Hino Afrodite, I.1 (“Musa, dize-me as obras da mui douradaAfrodite”).

32 “Um ser puramente fictício, a Musa representa uma espécie de duplo do ‘eu’, umaprojeção não-subjetiva de uma pessoa subjetiva, para usar os termos de Benveniste”(C. Calame, Craft..., p. 53).

33 Calame, Craft..., p. 91. Confira-se igualmente o comentário de P. Pucci: “que a Odisséiaostente um ‘eu’ de autoria, um senhor subjetivo do texto, é evidente: ... E, todavia, estasubjetividade, enquanto presença de intenções de autoria, é ela mesma textual, ou seja,um momento do código textual, este ‘eu’ sendo o ‘eu’ de intermináveis preformancesliterárias. Este ‘eu’ é uma inscrição no texto, antes do que um agente único e singularcriando um texto exteriormente” (Odysseus..., p. 113).

34 “A narrativa humana ... refere-se ao que pessoas reais fazem ou fizeram em um enqua-dramento de tempo medido por gerações ou outras cronologias humanas, distintamen-te de um outro período, mais primevo ou ‘um era uma vez’ atemporal” (Edmunds,Practice..., p. 13). Também M. Finley chamara a atenção para esse fato: “Mas em Hesíodonão se encontra a mínima indicação de data ou de duração, assim como Homeroacerca da Guerra de Tróia não dá outras indicações além do: era uma vez” (O mun-do..., p.33).

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realidade meramente humana35. Figuração de um nexo aedo/Musas, filhas deZeus e Mnemosine (Memória), denomina, por paradoxal anonimato de cate-gorias genéricas, o fato social da memória poética que associa canto commúsica e dança36, saber objetivo por que se resolve a ambígua subjetividadede sua comunicação por meio da pessoa de um indivíduo humano.37

Pelo encadeamento de récitas, assim transmissoras dos informes de umsaber prodigioso38, pela memória reiterada que os cantos atualizam, relíquiasde (ir)realidades de tempos históricos diversos amalgamam-se (con)fundidospela representação épica de um passado heróico que os condensa. Por essadialética de (con)fusão de figuras de sujeito narrativo entre aedo e Musas,ensejada pelo anonimato da memória épica, cumplicia-se confusão de tem-poralidades, com os tempos míticos das origens divinas e dos feitos heróicospresentificados por essa modalidade mítica39 de memorização de um passadoheróico reiteradamente atualizado a cada performance poética.

35 M. Edwards (Homer..., p. 61) lembra a similitude que as epopéias antigas mantém,nesse sentido, com a moderna ficção científica: em oposição ao tempo histórico presen-te que delineia os modos da realidade possível, porque comum e ordinária, o tempo doheróico extraordinário que se passa em (impossível/irreal) mundo do fantasioso e ma-ravilhoso é situado no não-presente, seja o passado primevo pela epopéia antiga seja ofuturo vislumbrado pela ficção científica.

36 Para esta associação confira-se: Ch. Segal, Singer..., p. 117.37 “É a memória que sustenta o saber especial do aedo: memória dos fatos sugerida pela

Musa e memória também da arte de transmiti-los” (Romeo, Proemio..., p. 10). Igual-mente, P. Pucci: “...o canto das Musas é em si mesmo rememoração, mneme. Obvia-mente esta rememoração implica repetição, mas devemos assumir que é uma repetiçãodireta e imediata do que as Musas viram ou vêem” (Song..., p. 40).

38 Já apontado por Eustácio em seus comentários à passagem homérica da Ilíada (II.484:confira-se a indicação de W. Minton, Homer’s..., p. 293), e antes parodiado ironica-mente por Platão (Eutidemo 275d).

39 Confiram-se os comentários de P. Pucci: “A repetição, enquanto matriz da poesia épica,conforma não apenas as frases mas também a ideologia e as concepções poéticas. ... anoção de memória está intrinsicamente vinculada ao processo de repetição. A memó-ria-mneme das Musas é impensável sem a qualidade repetitiva, fixada, da linguagem

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Pelas realizações da epopéia hesiódica configura-se a transição ino-vadora40, pois já na Teogonia um nome próprio aparece inscrito no proêmiodo canto, emerge à superfície do texto, a identificar pessoalmente o aedoque o recebe das Musas e comunica aos humanos:

“Elas um dia a Hesíodo ensinaram belo canto

quando pastoreava ovelhas ao pé do Hélicon divino.

Esta palavra primeiro disseram-me as Deusas

Musas Olimpíades, virgens de Zeus porta-égide:

‘Pastores agrestes, vis infâmias e ventres só,

sabemos muitas mentiras dizer símeis aos fatos

e sabemos, se queremos, dar a ouvir revelações’.

Assim falaram as virgens do grande Zeus verídicas,

por cetro deram-me um ramo, a um loureiro viçoso

colhendo-o admirável, e inspiraram-me um canto

divino para que eu glorie o futuro e o passado,

impeliram-me a hinear o ser dos venturosos sempre vivos

e a elas primeiro e por último sempre cantar.

Mas por que me vem isto de carvalho e pedra?”41

É, ainda, a voz do cantor em sua performance presente que atualiza odizer das Musas, que veicula seu saber divino: “cópia humana do arquétipodivino da canção com que as Musas regozijam Zeus”.42

épica. O efeito de memória causado pela redundância do estilo épico é a verdadeiraMusa do épos. O texto épico menciona a mneme das Musas como origem e fonte doseu canto, assim elevando a memória (repetição e reciclagem) da linguagem épica aum princípio metafísico: a qualidade divina da mneme. Ao localizar a fonte do cantoépico na memória-voz original das Musas, a concepção épica facilmente explica o lon-go processo de elaboração poética tradicional por uma origem simples e singular. Estemodo de explicação das coisas é a quintessência do mito” (Odysseus..., p. 19-20).

40 O ponto é destacado por C. Calame, Craft..., p. 66.41 Teogonia, 22-35 (tradução de Jaa Torrano).42 “...a canão que as Musas capacitam Hesíodo a cantar é a mesma com que elas regozijam

Zeus; e isto significa que a performance de Hesíodo, que se tornará a Teogonia mesma, é

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Certas circunstâncias e elementos identificadores, formulados emambígua confluência de generalidade conceitual e especificidade singular,delineiam a figura individual de uma pessoa humana, nomeada Hesíodo,pastor pelos vales do Hélicon na Beócia, também sede consagrada às Musas,por quem ele é eleito cantor de seu canto divino. Só, pois, quem dentre oshumanos responde por esse nome assim situado o canta.

Também os Érga, outro poema épico associado ao nome de Hesíodo,incorporam, nos dizeres de seu canto, referenciações denominadoras quecircunscrevem situações de comunicação43 singularmente localizadas comosua destinação mesma. Assim, no proêmio desse poema aparece inscritoum outro nome, Perses, o da singular figura interpelada pelo aedo:

“Musas Piérias que gloriais com vossos cantos,vinde! Dizei Zeus vosso pai hineando.

Por ele mortais igualmente desafamados e afamados,notos e ignotos são, por graça do grande Zeus.Pois fácil torna forte e fácil o forte enfraquece,

fácil o brilhante obscurece e o obscuro abrilhanta,fácil o oblíquo apruma e o arrogante verga

Zeus altissonante que altíssimos palácios habita.Ouve, vê, compreende e com justiça endireita sentenças

Tu! Eu a Perses verdades quero contar”.44

O canto permanece atribuído à entidade mítica das Musas como seusujeito: elas dizem o poder de Zeus em hinos. Dizer do canto que logo assi-

a cópia humana do arquétipo divino sempre-repetido. ... O dom das Musas ao poetamortal, a própria Teogonia, é a realização humana da canção divina” (W. Thalmann,Conventions..., p. 136 e 139).

43 Derivamos esta formulação conceitual do estudo de C. Calame (Craft..., p. 70-71), porcujas reflexões orientamos nosso entendimento nesta questão.

44 Érga, 1-10 (para a tradução do texto dos Érga, versos 1 a 382, seguimos o trabalho deMary Neves Lafer).

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nala os modos desse poder: desconhece limites, todavia intransponíveis parahumanos, pois obra, por atributo divino de facilidade de realização, a rever-são de destinos antes impossível para esforços, mesmo os mais ingentes, desujeitos humanos que apenas os sofrem. A atualização do canto então recla-ma especialmente a efetividade justiceira desse poder que, por sua ciênciadas injustiças praticadas entre os homens, consoantemente as reverte emjustiça que endireita sentenças tortas. A invocação das Musas a induzir aatualização da efetividade do poder de Zeus responde, assim, às circunstân-cias de uma situação presente, a qual contrapõe o poeta a Perses, a quemele dirige, firmando agora já em seu nome, a condizente lição das verdadesque o canto propicia. Situação, pois, de um conflito judicante a opor o poetacontra Perses, por vaga alusão denunciando as mazelas de sua suposta reso-lução faltosa de melhor observância daquela justiça que fora (dis)posta pelopoder de Zeus aos humanos.

Então, ensinada a verdade do mito da dupla Éris (Luta), o poetaadverte Perses por condizente preceito:

“Ó Perses! Mete isto em teu ânimo:

a Luta malevolente teu peito do trabalho não afaste

para ouvir querelas na ágora e a elas dar ouvidos.

Pois pouco interesse há em disputas e discursos

para quem em casa abundante sustento não tem armazenado

na sua estação: o que a terra traz, o trigo de Deméter.

Fartado disto, fazer disputas e controvérsias

contra bens alheios poderias. Mas não haverá segunda vez

para assim agires. Decidamos aqui nossa disputa

com retas sentenças, que, de Zeus, são as melhores.

Já dividimos a herança e tu de muito mais te apoderando

levaste roubando e o fizeste também para seduzir reis

comedores-de-presentes, que este litígio querem julgar.

Néscios, não sabem quanto a metade vale mais que o todo

nem quanto proveito há na malva e no asfódelo”.45

45 Érga, 27-41.

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As circunstâncias do conflito jurídico agora precisam-se mais: umadisputa de bens concernente à partilha de uma herança, a pois indiciar opoeta e Perses como (supostamente) irmãos. Partilha cuja insatisfação é,então, denunciada pelo poeta, tanto por velada reclamação de sua partenela dada por prejudicada quanto, especialmente, a acusar a ganânciadesmedida de Perses, pois este, por ela injustamente beneficiado por meiode apropriações indébitas, almeja consolidar tais ganhos desdobrando outrasinjustiças ao aliciar e cumpliciar nessa expropriação também a cobiça dejuízes corruptos, aliás assim vislumbrada pelos desígnios rapaces de seusescusos interesses na partilha mesma. Contra a via contaminada da(in)justiça, praticada por reis corruptos nas querelas e debates da ágorapropugnada interesseiramente por Perses, o poeta reclama antes a resolu-ção da disputa pelos preceitos da justiça reparadora de Zeus – bem melhorpor retas sentenças – contra as tortas decisões daqueles reis que dela seafastam.

Assim, nova lição de verdades ensinadas a Perses, a agora adverti-locontra as ilusões da via injusta por que se pretende acumular bens e riquezasexpropriando-as em detrimento de outros: um dos itens constitutivos da con-dição humana, consoante a ordem cósmica imposta pelo poder de Zeus,afirma a necessidade do trabalho enquanto a via justa para a vida próspera.Então, dois mitos são contados a ilustrar e ensinar o preceito, primeiro o dePrometeu e Pandora, a seguir o das raças humanas.

E ainda por outro mito – a fábula do gavião com o rouxinol –, coroláriodos anteriores, o poeta proclama mais verdades a ensinar os fautores deinjustiças, primeiro expressamente as dirigindo por lição aos reis juízes, maslogo depois também novamente a Perses, sempre recomendando a obser-vância da justiça de Zeus contra o desvio de pretensões hibrísticas:

“Tu, ó Perses, escuta a Justiça e o Excesso não amplies!

O Excesso é mal ao homem fraco e nem o poderoso

facilmente pode sustentá-lo e sob seu peso desmorona

quando em desgraça cai; a rota a seguir pelo outro lado

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é preferível: leva ao justo; Justiça sobrepõe-se a Excesso

quando se chega ao final: o néscio aprende sofrendo”.46

Então, alinhavando conseqüentes preceitos por que um homem deveobrar por essa via justa com que almeja vida próspera, sentencia contra odesvio do ócio:

“Se nas entranhas riquezas desejar teu ânimo,

assim faze: trabalho sobre trabalho trabalha”.47

Que trabalhos compõem essa via, diuturnos ao longo dos anos, en-tão diz e revela didaticamente até encerrar o poema.

Em meio à recomendação dos trabalhos apropriados segundo asestações e tempos anuais, ao tratar das atividades concernentes às lides danavegação pelos mares, extravasa mais confissões pessoais em seu canto:

“Tu mesmo espera até que chegue a estação da navegação, e então puxateu navio veloz para o mar e acondiciona conveniente carregamento nele,de modo que possas trazer ganhos para casa, assim como teu pai e meu,tolo Perses, costumava navegar a bordo porque faltava-lhe suficiência deviveres. E um dia veio ter neste mesmo lugar por travessia de boa parte domar; ele deixou a Cime eólia fugindo, não de riquezas e propriedades,mas da miserável pobreza que Zeus dispõe aos homens, e ele se estabele-ceu junto ao Hélicon numa miserável aldeia, Ascra, péssima no inverno,sufocante no verão, em tempo algum propícia”. 48

A relação familiar de irmãos entre o poeta e Perses, que antes foraapenas vagamente aludida por suposição de direitos de partilha de herança,agora é firmada expressamente pelo canto, que então declara a história do

46 Érga, 213-218.47 Érga, 381-382.48 Érga, 630-640 (a partir da tradução inglesa de H. G. Evelyn-White para as edições

Loeb).

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pai, originário de Cime, dado ao comércio marítimo, porque veio estabele-cer-se em Ascra, aldeia junto ao Hélicon, de onde agora este canto emite avoz do poeta. Então, aedo inspirado pelas Musas, que têm sua sede noHélicon divino, em estreita similaridade com o Hesíodo nomeado cantorhumano da Teogonia.

Similaridade que logo a seguir implica identificação, pois então o poe-ta, a tecer os ensinamentos das lides do comércio marítimo, faz uma ressalvapor outra declaração pessoal a agora confessar sua mínima (in)familiaridadecom essa ordem de trabalhos:

“Eu te mostrarei as medidas do mar ressoante, embora eu não seja habili-tado na navegação pelos mares nem nos navios; pois jamais até agora euvelejei em navio por sobre o amplo mar, mas apenas a Eubéia desde Áulisonde os aqueus certa vez estacionaram devido a mau tempo quando sereuniram em grande exército da divina Hélade para Tróia, país de belasmulheres. Então eu atravessei para Cálcis, aos jogos do sábio Anfidamas,onde os filhos do herói magnânimo proclamaram e dispuseram prêmios.E lá gabo-me de ter ganho a vitória com uma canção, e levei uma trípodealada que dediquei às Musas do Hélicon, no lugar em que elas primeirome colocaram na via do canto cristalino. Tal é toda minha experiência dosnavios multicavilhados; todavia, eu te direi o desígnio de Zeus egífero; poisas Musas ensinaram-me a cantar maravilhosos cantos”. 49

Seção de instruções respeitantes às lides marítimas, a aproveitar o bomproprietário as oportunidades de ganhos mercantis abertas na apropriada es-tação, de tempo livre das fainas agrárias e pastoris. Do conhecimento assimreclamado, o poeta confessa sua inexperiência pessoal, lembrando seu únicocontato com a travessia do mar. Viagem antes de ecos heróicos, desde a par-tida em Áulis, pelos concursos poéticos das cerimônias fúnebres do nobre deCálcis então celebrado, à proclamação altiva da vitória obtida por que devida-mente reconheceu a graça de sua predileção divina junto às Musas do Hélicon.Ambígua intervenção textual biográfica por que o mundo da vivência pessoal

49 Idem, ibidem. v. 648-662.

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do poeta é lembrado apenas para melhor contrapor a derivação divina dasinstruções então reveladas, ainda outra vez canto das Musas.

O “eu” do aedo que canta os Érga então se identifica com o Hesíodonomeado cantor da Teogonia. E, se o canto premiado nos jogos de Anfidamascompor alusão à Teogonia, como o sugere argumentativamente C. Calame50,a situação de comunicação do poema épico alcança ainda mais definiçõesde singularidade episódica determinando um unívoco presente históricocronologizável por que se atualizam os cantos hesiódicos.

Movimento de afirmação do sujeito humano da obra discursiva quecaminha paralelo ao encadeamento de vínculos de rivalização crítica, comcada nova obra reclamando superar a antecedente contra a qual ela medesua excelência narrativa. E assim ocorre já desde os inícios por consoantecontextualização agonística com que esse encadeamento de rivalizações seinaugura. Então, Hesíodo diz nos Trabalhos e dias acerca da competiçãopoética de que participou nos festivais fúnebres em honra de Anfidamas. Eo Hino homérico a Apolo guarda a lembrança do rogo do poeta ao auditó-rio, a solicitar-lhe a palma da vitória nos festivais jônios de Delos.

Passagens da figura de um sujeito por onomasiologia transcendente,divina, para outra de imanente humanitude firmada pela marca de um nomeindividual que assume a responsabilização pelo dizer discursivo, assomammúltiplas nas manifestações criativas por que se dá a evolução do helenismoarcaico para o clássico51: na lírica pela convenção da sphragis a chancelar a

50 “Esta nova consciência das condições objetivas da confissão do poeta encontra nosÉrga uma descrição completa da ocasião em que a Teogonia foi provavelmente recita-da: a competição nos funerais de Anfidamas em que ele cantou seu hino, usualmenteidentificado com a Teogonia.. ...Executado o hino nas cerimônias fúnebres de Anfidamas,herói provavelmente morto na Guerra Lelantina (entretanto, provavelmente ritual),teríamos então uma precisa condição temporal para o hino. Assim, a situação de comu-nicação da Teogonia é não apenas completamente assumida pelo ‘eu’ como ela ésituada em um passado antes histórico do que lendário” (C. Calame, Craft..., p. 71).

51 Entre outros, analisa a emergência do ego autoral na tradição literária grega, dos iníciosarcaicos à maturação clássica do século V, G. E. R. Lloyd (Revolutions..., p. 54s).

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autoria do poema; nas artes visuais pela assinatura do pintor inscrita nascenas por ele figuradas nos vasos de cerâmica; na filosofia emergente, quercom Xenófanes e Heráclito quer com Empédocles e Parmênides, estes ain-da ecoando as representações épicas figuradas pela invocação às Musas52; eainda na música, nos tratados hipocráticos...e também na história por Heró-doto e Tucídides.

História/Heródoto

O proêmio das Genealogias assim professa sua proposição historiante:

“Hecateu de Mileto assim narra: isto redijo como me parece que seja verda-de, pois as histórias dos helenos são, no meu entender, múltiplas e ridícu-las”.53

Pelo nome firmado logo de início como sphragis que sela a obraidentificando-a por propriedade narrativa de um indivíduo precisamentequalificado por sua cidadania, a história iniciante proclama a autonomia deseu sujeito humano em alcançar a verdade (alethea) das histórias que entreos helenos se contam. Estas pecam por faltas de multiplicidade divergente ede leviandade inconsistente por que perdem a via una e grave de acesso àverdade. A ganhar esta rota, o historiador então corrige os desvios do per-curso constitutivo do lógos: à multiplicidade anônima das histórias vigentesdescuidosas da expressão da verdade, Hecateu a alcança fundando-a pelasrazões apreciadoras de um parecer pessoal. A obra do pronunciamento sub-jetivo singularmente nomeado produz a história ao decidir a verdade unívocacomo produto do ajuizamento de sua razão analítica.54

52 Confiram-se especialmente as considerações de G .E. R. Lloyd, (Revolutions..., p. 59-60).53 FGrH 1 F 1.54 C. Brillante (History..., p. 96) aprecia o alcance do fragmento de Hecateu, atribuindo-

lhe o significado de “nascimento da univocidade e seu conseqüente reclamo de racio-

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*

Também o proêmio das Histórias abre-se declarando o nome de seusujeito:

“Heródoto de Túrio dá esta exposição de sua inquirição a fim de que nemas realizações humanas se desvaneçam com o tempo, e nem grandiosas emaravilhosas obras, realizadas sejam pelos helenos sejam pelos bárbaros,fiquem sem fama; e, entre outras, também por que causa eles guerrearamuns contra os outros”.55

O nome do indivíduo humano, autor da obra, novamente inaugura anarrativa. Porém, comparada à finalidade pretendida por Hecateu, a histó-ria herodoteana silencia aqui o imperativo da verdade por que este último aconcebera, antes apenas dizendo de sua teleologia celebrante de memóriaperene. Heródoto, pelo contrário, defrontado com a problemática de relatosmúltiplos que apresentam versões divergentes dos fatos, expõe em sua obraa indecisão da verdade, subtraindo, assim, o pronunciamento de um pare-cer pessoal que a resolvesse, adotando como seu dever historiante antes aexposição das múltiplas divergências mesmas, predominantemente duais.56

nalidade”, que no seu entender, apoiando-se nos estudos de Jack Goody, deve-se àfacilitação da crítica das contradições dos mitos, ensejada pelo advento da escrita.

55 Histórias, I.1.56 Nesse sentido, confiram-se os comentários de G. Shrimpton (“Heródoto parece repu-

diar a auto-importância de Hecateu, quando ele declara como seu dever reportar oque as pessoas dizem, implicitamente suprimindo sua própria opinião, seja ou não queele acredite nelas”; History..., p. 169-170) e de C. Darbo-Pechanski (“As Histórias aban-donaram o artigo essencial do método de Hecateu, na abertura das Genealogias deque o indagador deve confiar em sua íntima convicção como um meio de separar overídico do falso. Nenhuma declaração deste tipo em Heródoto, e somente dois casosde opinião de veracidade, o que é muito pouco para fazer desta um instrumento meto-dológico importante. A doxa e a gnome desempenham um papel essencial na indaga-ção, mas que não é o de guiar no direcionamento da verdade. A opinião situa-se bemaquém da verdade. O indagador não reivindica o poder de dizer a verdade”; Dis-

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A história é obra de sujeito humano individual, produto de sua atividadeinquiridora, e, todavia, Heródoto mantém em suspenso ou reticente a pro-clamação autoral da verdade, assim racionalmente (in)alcançada. Pruridosde reservas comedidas que, para o humano, condizem com o espírito depiedade religiosa zeloso em evitar declarações de pretensões hibrísticas, poissó à competência do saber divino cabe apropriadamente (a)firmar a verda-de.57 Contraposição agonística com Hecateu acerca da excelência de umaobra historiante que aproxima Heródoto dos modos odisséicos deheroicização, assim similarmente plenos de prudência cautelosa em decla-rar-se publicamente como o melhor dos aqueus.58

E assim o fazendo, reverte contra Hecateu os termos de suas preten-sões historiantes. Por duas vezes o menciona expressamente59 nas Histó-rias. Primeiro, no lógos egípcio:

cours..., p. 169) Para as indicações concernentes a esta problemática, vejam-se as con-siderações da análise do princípio metodológico a seguir.

57 “A Heródoto repugna manifestar sem restrições que ele detém a verdade, e traduz suareserva apresentando seu julgamento como uma opinião ou atenuando cuidadosa-mente o vigor de sua expressão. ... Se o pesquisador não pode alcançar a alethéia porseus próprios meios de pesquisa, há seres que nisso detém plena e quase que exclusiva-mente o acesso: os deuses. ... Assim, ao passo que Hecateu situa a verdade ao alcanceda opinião, confiando a esta a enorme tarefa de depurar as tradições gregas de seusaspectos ridículos e racionalizá-las, Heródoto sublinha a distância que separa as duas.Ele não se refere à verdade a não ser com a maior prudência” (C. Darbo-Pechanski,Discours..., p. 169-170 e 187).

58 Confiram-se nossos comentários no capítulo respeitante ao princípio axiológico. Recen-temente tanto F. Hartog (Premières figures de l’Historien en grèce: Historicité et Histoire)quanto John Marincola (Odysseus and the historians) exploram a aproximação entre aemergência da figura do historiador com a de herói-aedo odisséica, o que já fora antesaventado por Hannah Arendt em seu ensaio sobre “O conceito de história, antigo emoderno” (Entre o passado e o futuro, p. 74-75.

59 Outras possíveis referências herodoteanas às obras de Hecateu talvez se encontrem naalusão aos “jônios” nas passagens do lógos egípcio em que o historiador denuncia seuserros geográficos (G. Shrimpton, History..., p. 172 e 174-5).

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“O historiador Hecateu esteve antes de mim em Tebas, onde traçou parasi mesmo uma genealogia que vinculava sua linhagem a um deus na déci-ma sexta geração de seus antepassados. Mas os sacerdotes de Zeus fize-ram para ele o mesmo que fizeram para mim, que não lhes havia apresen-tado a minha genealogia. Eles me levaram ao grande pátio interno dotemplo e lá me mostraram estátuas colossais de madeira, contando-as atéo número que já me haviam dado, pois cada sumo-sacerdote deixa láenquanto vivo uma estátua sua; contando-as e apontando para elas, ossacerdotes mostraram que cada um deles herdou a função sacerdotal deseu pai, e começando pela estátua do último sacerdote eles me fizerampassar diante de todas as estátuas. Então, quando Hecateu traçou suagenealogia e reivindicou para seu décimo-sexto antepassado a condiçãode um deus, os sacerdotes também traçaram uma genealogia de acordocom o seu método de computação, pois não se deixaram convencer dapossibilidade de um homem descender de um deus; eles traçam agenealogia ao longo da fileira completa de trezentos e quarenta e cincoestátuas colossais, chamando-as Píromis, filho de Píromis, mas sem associá-las com qualquer antepassado, deus ou herói (píromis em língua helênicasignifica ‘apenas um homem bom’). Assim eles mostraram que todas aque-las pessoas cujas estátuas se alinhavam lá haviam sido homens bons, masestavam muito longe de ser deuses. Antes desses homens, disseram ossacerdotes, os governantes do Egito eram deuses, mas nenhum deles ha-via sido contemporâneo dos sacerdotes, e o poder supremo pertencia sem-pre a um dos deuses; o último destes a governar o país foi Horus filhos deOsiris, chamado pelos helenos de Apolo. Ele destronou Tífon e foi o últimodos deuses a reinar sobre o Egito. Osiris é Dioniso na língua da Hélade”.60

Hecateu historiador, como muitos outros gregos ávidos de conheci-mentos, viajara também ao Egito, país fascinante, terra de sabedoria.61 Lávisitara Tebas, entrevistara-se com os sacerdotes de Zeus (Amon). Altivo,

60 Histórias, II.143-144 (tradução de M.G. Kury).61 Entende J. Marincola (Authority..., p. 67) que as (supostas) viagens de Hecateu a auferir

conhecimento integram-se no mesmo espírito inquiridor (talvez já antes dele tambémpresente em Scylax de Carianda) que a seguir Heródoto tornaria célebre conceituando-o como história.

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apresentara-lhes sua genealogia de arroubos heróicos: remontando à déci-ma sexta geração de seus antepassados, um deus por ascendente original.Mas os sacerdotes desmentiram sua história por maravilhoso modo de de-monstração replicante porque, elegante mas contundentemente, ensinarama implausibilidade da mesma. Mostraram-lhe a genealogia deles mesmos, láconcretamente presente na sala do templo pelo enfileiramento das estátuasque cada um deles consagrava em memória de seu ofício: Píramis, filho de... Píramis, filho de ...Píramis, filho de ....Píramis, com o que percorreram345 deles, todos homens, filhos de homens, assim justamente denomina-dos! Para alcançar deuses, só antes, tanto assim por 345 gerações distancia-dos. Era muito mais remoto, portanto, o tempo das origens em que deusesatuavam diretamente a perfazer todos os modos do mundo. E jamais ho-mens nascidos de deuses! Obras originais de deuses e histórias dos homenssupõem esferas de tempos de (atu)ações separadas.62 Para a reputação deHecateu, com nome firmado no proêmio de suas Genealogias como funda-mento pessoal de ajuizamento humano da verdade contra as “histórias múl-tiplas e ridículas dos gregos”, lição de atroz ironia ao assim parodiar63 aspretensões de seu “conhecimento” por denúncia da falsidade que ridiculari-zava a genealogia que mais lhe era familiar, a sua própria!

Depois, uma outra citação nas Histórias também nomeia Hecateu:

“Milcíades, filho de Címon, se tinha apoderado de Lemnos nas seguintescircunstâncias: os pelasgos tinham sido expulsos da Ática pelos atenienses,justamente ou injustamente, não posso ser categórico quanto a esse aspec-to; posso apenas relatar o que se conta: Hecateu filho de Hegesandro, emsuas Histórias, diz que foi injustamente. Quando os atenienses, diz Hecateu,viram o território situado no sopé do Monte Himeto, dado por eles aospelasgos para habitá-lo, em pagamento pela construção das muralhas ou-

62 Confiram-se os comentários de C. Darbo-Pechanski (Discours..., p. 26).63 “Certamente parece ser melhor ler esta passagem como uma anedota visando a colo-

car o presunçoso Hecateu em seu lugar, antes do que uma descrição sóbria de umsuposto acontecimento. Trata-se de uma caracterização humorada das Genealogias deHecateu mais do que uma menção séria à mesma” (G. Shrimpton, History..., p. 169).

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trora existentes em torno da acrópole, quando – repetimos – os ateniensesviram bem cultivado aquele território, anteriormente em más condições,passaram a cobiçá-lo e a querer recuperar aquelas terras; seus sentimentos,então, levaram-nos a expulsar de lá os pelasgos sem apresentar qualqueroutra razão. Mas, segundo dizem os próprios atenienses, eles os teriam ex-pulso justamente, pois os pelasgos, uma vez estabelecidos no sopé do Hi-meto, vinham de lá para ofendê-los, da maneira exposta a seguir: as filhasdos atenienses iam freqüentemente buscar água nas Nove Fontes (naquelaépoca eles ainda não tinham escravos, nem eles nem os outros helenos);todas as vezes que elas iam, os pelasgos as ultrajavam insolente e desdenho-samente. Como essa má conduta não bastasse, depois de algum tempo elestramaram um ataque à cidade, mas foram surpreendidos em flagrante. Nes-sa ocasião, os próprios atenienses se teriam comportado como homens muitomais generosos que os pelasgos; de fato, tendo o direito de matá-los, poisestes tinham sido surpreendidos em plena conspiração, os atenienses não ofizeram e apenas os intimaram a sair de seu território. Depois de sair assimda Ática os pelasgos ocuparam vários lugares, entre os quais Lemnos. Asprimeiras são as palavras de Hecateu e estas são as dos atenienses”.64

Para o nome de Hecateu, que proclamara nas Genealogias firmarpessoalmente a verdade una de sua história a superar as divergências múlti-plas de relatos dos gregos, nova ironia herodoteana: sua história (versão) daexpulsão dos pelasgos da Ática era tão verdade (mentira) quanto mentira(verdade) é a versão (história) dos atenienses que, entretanto, a contradita!

História/Tucídides

A firma de um nome também abre a história tucidideana:

“Tucídides de Atenas compôs a guerra dos peloponésios e atenienses, comoeles combateram uns contra os outros. Começou imediatamente à suaeclosão na expectativa de que ela fosse grande e mais digna de relato doque as precedentes, pois verificava que, ao entrar em luta, ambos estavam

64 Histórias, VI.137 (tradução de Mário da Gama Kury).

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no auge de todos os seus recursos, e observava também que o restante domundo helênico compunha-se com um dos dois lados: uns de imediato,outros pelo menos em projeto. De fato, esta comoção foi a maior já ocor-rida para os helenos e também para uma parcela dos bárbaros, podendo-se mesmo dizer para a maioria da humanidade”.65

A confluência de figuras proposta em uma equação declarativa enun-cia a obra. Por um membro dessa equação, ela afirma a subjetividade deuma composição discursiva bem identificando o indivíduo humano que éseu autor, Tucídides de Atenas. Por outro proclama, entretanto, que é narra-ção objetiva, a expor os acontecimentos mesmos: nela se fixa textualmente aguerra entre peloponésios e atenienses como eles combateram uns contra osoutros. Então, assim Tucídides postula para sua obra a qualidade deespelhamento dos acontecimentos sob forma discursiva, de modo que nestase apreende por palavras as imagens da visão daqueles. Atributo de objetivi-dade especular que a obra adquire ao ensejo de sua contemporaneidadedos fatos mesmos por ela narrados, a assim viabilizar seu fundamento narealidade da presença cognitiva. Pois, a ação que historia a guerra principiajunto com a própria manifestação dessa guerra, de modo que a consecuçãoda obra do historiador segue paralela ao desenrolar dos fatos, assim demar-cando um coincidentemente unívoco presente.

A denominada “Arqueologia”, plenamente realizando a proposiçãodo princípio axiológico a recomendar o atributo da grandeza para a consa-gração narrativa, abre-se pela proclamação de uma tese pessoal, bemdemarcada e assinalada como pronunciamento do sujeito singular quecompõe a obra:

“De fato, era impossível apreender com clareza as realidades anteriores e asainda mais antigas devido à extensão temporal; mas, pelos indícios a partirdos quais cheguei a uma convicção em um profundo exame, considero queelas não foram grandes, nem quanto às guerras, nem quanto ao demais”.66

65 A guerra dos peloponésios e atenienses, I.1.66 A guerra dos peloponésios e atenienses, I.1.2.

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As marcas dessa subjetividade, do “eu” ajuizante do historiador, fe-cham igualmente a argumentação:

“Então, tais foram os tempos antigos como os apreendi, dadas as dificulda-des que eles apresentam de se confiar em toda série de indícios. Pois aspessoas acolhem as tradições acerca dos acontecimentos passados, mesmono caso em que elas sejam de sua própria terra, igualmente sem exame aquando as acolhem junto a outros. ... Assim negligenciada é a investigaçãoda verdade pela maioria das pessoas que se inclinam antes para a versãocorrente. Com base nos indícios que foram enunciados, não erraria quemjulgasse os fatos, de modo geral, assim tais como eu os considerei, e nãoconfiasse nem no que a seu respeito os poetas celebraram, tendo antes emvista adornos engrandecedores, e nem no que os logógrafos compuseramtendo em vista antes o que é mais do agrado do auditório ao que é maisverdadeiro, dado que eles são incomprováveis e, na sua maioria, submeti-dos ao tempo, inconfiáveis em razão do caráter mítico adquirido. Entendo,todavia, com base no que são os sinais mais evidentes, em se tratando dostempos antigos, que foi suficientemente bem determinado”.67

E o estigma desta presença enunciativa do sujeito da obra pontuasistematicamente a exposição da “Arqueologia”, de tempos em temposcircunscrevendo suas proposições assertivas por meio de reiteradas expres-sões de manifestação de entendimento pessoal: ao que me parece (dokeide moi ou hos emoì dokei)68, cheguei a uma convicção (moi pisteúsaixymbaínei)69, julgo (nomízo)70 e penso (oimai)71.

A afirmação, portanto, de uma subjetividade última delimita todo oalcance assertivo da verdade apreensível concernente aos tempos passados.As convicções, as conjecturas, os entendimentos, as apreciações conclusivasde um sujeito singular, bem fundadas racionalmente pela logicidade de seus

67 A guerra dos peloponésios e atenienses, I.20-21.68 A guerra dos peloponésios e atenienses, I.3.2; 3.3; 9.1; 9.3; 10.4.69 A guerra dos peloponésios e atenienses, I.1.2.70 A guerra dos peloponésios e atenienses, I.1.2.71 A guerra dos peloponésios e atenienses, I.10.2.

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arrazoados argumentativos, circunscrevem a possibilidade de um discursocognitivo acerca do passado, assim apreendendo o que a esse historiador éo parecer de veracidade. Para o domínio do passado, a história tucidideana,então, realiza o que Hecateu propugnara, assim antagonizando contra aonomasiologia herodoteana.

Quando, entretanto, uma vez encerradas as considerações sobre ostempos antigos, a inviabilizarem a constituição de um saber que prime pelaclarividência e certeza de suas verdades, a reflexão tucidideana se volta parao tempo presente, tencionando igualmente por ele apreciar a questão dagrandeza bélica, são bem outras, antitéticas mesmo, as conclusões a quechega o historiador:

“Já quanto a esta guerra, se bem que as pessoas sempre julguem como amaior aquela em que presentemente combatem, mas, com o seu término,admirem sobretudo as do passado, ela se revelará, para quem observa apartir dos fatos mesmos, como sendo superior àquelas”.72

É comum, banal mesmo, reconhece Tucídides, que as pessoas apre-ciem de forma meramente subjetiva e passional a magnitude das guerras.Assim, são levadas sempre a considerar como a maior a guerra do presente,justamente porque nela estão envolvidas, a experienciar suas vicissitudes esofrimentos. Mas, uma vez aliviada dessa carga de passionalidade subjetivacom o término mesmo da guerra, a volubilidade de uma tal apreciação invertesuas preferências, e passa, então, a admirar sobretudo as do passado.

Ora, a conclusão, a que Tucídides chega, acaba caminhando no mes-mo sentido, pois afirma também a superioridade da magnitude da guerrapresente, por ele justamente experienciada, relativamente às guerras anti-gas. Reclama, entretanto, o historiador, que esta sua particular apreciaçãonão decorre desse extravasar banal de impressões subjetivas momentâneas,apenas circunstanciais ao tempo de efetivação das guerras. Pelo contrário,postula Tucídides que sua afirmação se respalda por uma constatação obje-tiva: imperando a observação dos acontecimentos mesmos (ap’ autõn tõn

72 A guerra dos peloponésios e atenienses, I.21.2.

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érgon skopousi), é a própria guerra quem evidencia (delóo) a sua grandezamaior. Esta grandeza, afirma o historiador, é atributo da guerra, não porqueresulte de uma subjetiva apreciação atribuidora, mas sim, pelo contrário,porque é uma manifestação imanente aos seus próprios acontecimentosconstitutivos: eles portam reveladoramente a grandeza que transparece emsua manifestação evidente. Apreender essa grandeza decorre, apenas e ex-clusivamente, do observar a evidência dos acontecimentos, considerá-losem si mesmos, não supõe nem deriva de um julgamento pessoal.

Assim, a proposição da História, enquanto um saber clarividente decertezas, privilegia a temporalidade presente como objeto de sua narrativa,justamente porque esta temporalidade não só atende aos reclamos do prin-cípio axiológico da grandeza distintiva, como sobretudo, ao viabilizar a con-dição da presença cognitiva que observa os acontecimentos em sua mani-festação mesma, enseja-lhe estatuto de objetividade.

Então, para o domínio de saber respeitante aos fatos humanos dopresente, a história tucidideana antagoniza sua excelência contra as históriasde seus antecessores. Contra a herodoteana especialmente, porque ela assimdiz da possibilidade de firmar a apreensão da verdade dos acontecimentosem âmbito de cognição humana, a qual alcança a univocidade do fato ape-sar da dialética conflitante de seus informes múltiplos, ao passo que a deHeródoto, rivalizando contra a história propugnada por Hecateu, deixavaretoricamente em suspenso essa resolução historiante da verdade, antes ex-pondo como dever do historiador a sua indecisão que expõe a multiplicida-de de versões divergentes. Ao reverter a tese herodoteana, a história deTucídides aproxima-se da de Hecateu contraditada por seu antecessor, mastambém a supera, porque a verdade assim alcançável pelo saber histórico, jáque concerne ao presente e não ao passado, não fica estigmatizada pelareferenciação de um parecer subjetivo que a personaliza73, antes pode afir-mar-se como a expressão narrativa da verdade transparente dos fatos.

73 “E Tucídides rejeita o individualismo de Hecateu explicitamente no livro I (22.2), ondeele diz que reportou as coisas não por um ‘informante de passagem’ e ‘certamente nãocomo me pareceram certas’ ” (G. Shrimpton, History..., p. 170).

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Por seu desígnio teleológico, de um saber que prime pela verdadeclarividente, igualmente ao já disposto por seu princípio axiológico de supe-rioridade de grandeza do fato bélico, tempo da narrativa e tempo dos acon-tecimentos são coincidentemente paralelos, e o historiador é contemporâ-neo dos fatos, integrada sua presença nessa unívoca temporalidade mesma.Então, proximidade temporal entre acontecimentos e relatos que os narramacaba por intrigar, como aliás já o indiciara a Odisséia, outras circunstâncias,justamente implicadas pelos envolvimentos das subjetividades pessoaisrespeitantes aos relatos que informam os acontecimentos. Por quais modos,então, tais aporias solicitam arrazoar os preceitos de uma reconstituição fatualdos acontecimentos, que alcance a certeza da verdade dos fatos, todaviaimersa na dialética das parcialidades de seus informes, define agora o princí-pio metodológico a viabilizar uma sua narração objetiva, conforme o procla-mara a declaração inaugural da história tucidideana.

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4. Metodológico(a questão da verdade)

Logo na abertura do Proêmio, Tucídides reclama para sua obra oprimado no âmbito da narrativa: porque a guerra dos peloponésios eatenienses supera em grandeza todas as anteriores, ela se torna digna dahonra do registro discursivo em grau superlativo. E, a justamente integraressa obra no domínio do lógos – o que reclama, como princípio constituin-te, o arrazoado argumentativo de fundamentação de suas declaraçõesassertivas –, expõe de imediato essas razões:

“Tucídides de Atenas compôs a guerra dos peloponésios e atenienses comoeles combateram uns contra os outros. Começou imediatamente à suaeclosão na expectativa de que ela seria grande e mais digna de relato doque as precedentes, pois verificava que, ao entrar em luta, ambos estavamno auge de todos os seus recursos, e observava também que o restante domundo helênico compunha-se com um dos dois lados: uns de imediato,outros pelo menos em projeto. De fato, esta comoção foi a maior já ocor-rida para os helenos e, pode-se mesmo dizer, para a maioria da humani-dade”.

Mas, uma tal demonstração argumentativa da inferioridade de gran-deza das guerras anteriores à do presente entre peloponésios e atenienses,impõe para a obra tucidideana considerar a oposição que dissocia as duascategorias da temporalidade assim implicadas:

“De fato, era impossível apreender, com clarividência, os acontecimentosanteriores e os ainda mais antigos devido à sua densidade temporal; mas,

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pelos indícios de cujo extenso exame cheguei a uma convicção, julgo queeles não foram grandes, nem quanto às guerras, nem quanto ao demais”.1

Dinstinguem-se duas temporalidades: há o tempo atual, constituídopelas ações que efetivam a guerra presente entre peloponésios e atenienses.Daí, demarcam-se os tempos antigos, referidos às ações constitutivas dasguerras precedentes. De modo que o presente demarca o passado.

Dada essa dicotomia da temporalidade, a justa apreciação da grande-za do fenômeno guerreiro impõe, então, a questão de examinarem-se ascondições de possibilidade cognitiva dos acontecimentos respeitantes a essasdistintas categorias. Já antecipadamente advertindo a aporia particularmen-te colocada para o conhecimento das realidades dos tempos antigos, Tucídidesenuncia, assim implicado pelas exigências discursivas da razão argumentati-va do lógos, a instituição do princípio metodológico, o qual é então plena-mente exposto ao encerrar-se a denominada “Arqueologia”:

“Então, tais foram os tempos antigos como os apreendi, dadas as dificulda-des que eles apresentam de se confiar em toda série de indícios. Pois aspessoas acolhem as tradições acerca dos acontecimentos passados, mes-mo no caso em que elas sejam de sua própria terra, igualmente sem exa-me a quando as acolhem junto a outros. Assim, a massa dos ateniensesacredita que Hiparco era tirano quando foi morto por Harmódio eAristogíton. Eles não sabem que era Hípias quem, por ser o filho maisvelho de Pisístrato, detinha o poder, ao passo que Hiparco e Téssalo eramseus irmãos. Ora, Harmódio e Aristogíton, tendo suspeitado que algo, na-quele mesmo dia à última hora, fora revelado pelos conspiradores ao pró-prio Hípias, dele se apartaram por recearem-no previnido. Mas, desejososde realizar algo antes de serem presos, mesmo que arriscado, mataramHiparco, que se encontrava junto ao denominado Leocórion a organizar aprocissão das Panatenéias. Já acerca de muitos outros fatos, ainda vigen-tes e não apagados pelo tempo, os outros helenos também fazem suposi-ções incorretas, tal como a de que cada um dos reis lacedemônios dispõenão de um voto, mas de dois; e a de que entre eles há um batalhão de

1 A guerra dos peloponésios e atenienses, I.1.2.

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Pitane, o qual nunca jamais existiu. Assim negligenciada é a investigaçãoda verdade pela maioria das pessoas que se inclinam antes para a versãocorrente. Com base nos indícios que foram enunciados, não erraria quemjulgasse os fatos, de modo geral, assim tais como eu os considerei, e nãoconfiasse nem no que a seu respeito os poetas celebraram tendo antes emvista adornos engrandecedores, e nem no que os logógrafos compuseram,tendo em vista antes o que é mais do agrado do auditório ao que é maisverdadeiro, dado que eles são incomprováveis e, na sua maioria submeti-dos ao tempo, inconfiáveis em razão do caráter mítico adquirido. Entendo,todavia, com base no que são os sinais mais evidentes em se tratando dostempos antigos, que foi suficientemente bem determinado. Já quanto aesta guerra, se bem que as pessoas sempre julguem como a maior aquelaem que presentemente combatem, mas com o seu término admirem so-bretudo as do passado, para quem observa a partir dos fatos mesmos elase revelará como sendo superior àquelas. Quanto respeita aos discursosque cada um dos lados pronunciou, quer nas vésperas da guerra quer jáno seu decorrer, era difícil relembrar a exatidão mesma das suas palavras,tanto para mim quando os ouvira pessoalmente quanto para os outrosquando eles me transmitiam os que eles tinham ouvido; então, foi assimcomo me pareceu quais seriam as coisas mais apropriadas que cada umdeles falaria acerca das situações presentes, mas procurando manter-me omais próximo da proposição global das falas emitidas, que eu os formulei.Já no que respeita às ações praticadas durante a guerra, preferi registrarnão com base no que me fora informado por qualquer um ocasionalmen-te, e nem como me parecia, mas sim por meio dos fatos que eu própriopresenciara, como também junto a outros pesquisando com quão possívelexatidão acerca de cada um deles. Penosamente os determinei, pela razãode que as pessoas presentes a cada um dos acontecimentos não diziam asmesmas coisas acerca deles, mas sim as diziam conforme a sua simpatiapara com alguma das duas partes ou a memória que tinham. E para oauditório talvez o seu caráter não mítico parecerá menos atraente; mas aquantos forem desejosos de observar o que há de claro nos acontecimen-tos ocorridos como também nos futuros, que algum dia de novo, em con-formidade com a realidade humana, ocorrerão similares ou análogos, jul-garem tais coisas úteis, será o bastante. Constituem uma aquisição parasempre antes do que uma peça para um auditório do momento”.2

2 A guerra dos peloponésios e atenienses, I.20-2.

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É, pois, acerca das condições de possibilidade, dos preceitos e pro-cedimentos, de estabelecimento de uma narrativa dos acontecimentos queprime pelo saber verdadeiro que discorre a metodologia. Assim (im)posta aquestão da verdade, condiciona-se a possibilidade de uma tal narrativa aofato da presença.

Nas Histórias herodoteanas fora posto já o reclamo da questão daverdade do relato. Não plena e expressamente formulado em sua sistemati-cidade mesma, como em Tucídides, mas apenas dispersamente aludido aolongo da narrativa por variados pronunciamentos.3

Assim, reiteradamente o historiador assinala, ao longo de seu per-curso inquiritivo, as fontes de derivação informativa com que ancora asrealidades de seu relato na condição da presença cognitiva, bem declaran-do ou que ele mesmo as viu, ou que reproduz o que contam outros que asviram.

E a expressamente advertir a questão da confiabilidade ou credibi-lidade quanto à verdade de seus relatos, insere vários modos de pro-nunciamento pessoal, assim externando graus diversos de asserção opi-nativa. Assim, por vezes, simplesmente declara sua descrença, denun-ciando a implausibilidade do informe, como quando narra o que os cal-deus lhe haviam contado a respeito do templo de Zeus Belo, na Babilô-nia: que lá, no ápice da última torre sobreposta em uma cadeia de oito,ficava o recinto a que apenas uma mortal tinha acesso, eleita do deusque com ela ali se deitava por uma noite.4 Por vezes, assim também se

3 Vários autores analisam os princípios metodológicos da historiografia herodoteana, sejapor exame apenas de compêndio sintético – assim C. Calame (Craft..., p.83-86) – sejapor extensiva análise detalhada. Especialmente F. Hartog, em Le miroir d’Hérodote,explorou a lógica retórica por que Heródoto, por meio de marcas de enunciação queassinalam a intromissão do historiador na narrativa, constrói a persuasão da veracida-de de seus relatos.

4 Histórias, I.182.1. Para indicações mais completas respeitantes a este e demais casosapontados a seguir veja-se a obra de F. Hartog, citada na nota anterior.

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pronuncia contra histórias inverossímeis, mas agora arrazoando argu-mentos que fundamentam seu parecer, como quando rechaça a acusa-ção infamante da traição medizante dos Alcmeônidas por ocasião daBatalha de Maratona.5

Outras vezes, deixa em suspenso a credibilidade dos informes, abs-tendo-se de emitir seu parecer de veracidade, antes limitando-se a trans-crever os relatos em sua obra e remetendo sua apreciação para o juízo doleitor. Um dos mais significativos pronunciamentos neste sentido encerra ológos egípcio:

“Façam bom uso dessas histórias egípcias as pessoas que acreditam nelas.Quanto a mim, meu objetivo ao longo de toda a obra é registrar tudo oque me foi dito tal como o ouvi de cada informante”.6

Outro, igualmente significativo, encerra seu relato concernente àpostura assumida por Argos face à invasão da Hélade por Xerxes:

“Não posso dizer com certeza se Xerxes enviou realmente a Argos umarauto que teria dito as palavras mencionadas por mim, nem se delegadosargivos teriam ido até Susa para interrogar Artaxerxes sobre a aliança, enão sustento aqui a respeito do curso dos acontecimentos qualquer opi-nião oposta à versão dos próprios argivos...Em verdade, minha obrigaçãoé expor o que se diz, mas não sou obrigado a acreditar em tudo (essaexpressão deve aplicar-se a toda a minha obra)”.7

E, todavia, as mesmas questões estavam já supostas pelo épos. Assimo declara cabalmente Homero ao encetar a narrativa catalogadora dasforças aquéias e troianas na Ilíada:

5 Histórias, VI.121-124.6 Histórias, II.123.7 Histórias, VII.152 (tradução de Mário da Gama Kury).

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“Dizei-me agora, Musas, que tendes a morada olímpia,

pois vós sois deusas, presenciais, vistes tudo,

mas nós, só a fama ouvimos, nada sabemos:

quais eram os chefes e soberanos dos dânaos.

Já a multidão eu não narraria e nem nomearia,

nem que tivesse dez línguas, dez bocas,

voz incessante e contivesse pulmão brônzeo,

caso não as Musas Olimpíades, de Zeus egífero

filhas, memoriassem quantos sob Ílion vieram.

Os comandantes das naus, então, digo, e as naus todas”.8

Também sobre a questão da verdade expressou-se exemplarmentea Teogonia hesiódica, logo nos inícios de seu Proêmio:

“Elas um dia ensinaram a Hesíodo um belo canto

quando pastoreava ovelhas ao pé do Hélicon divino.

Esta palavra primeiro disseram-me as Deusas

Musas Olimpíades, virgens de Zeus porta-égide:

‘Pastores agrestes, vis infâmias e ventres só,

sabemos muitas mentiras dizer símeis aos fatos

e sabemos, se queremos, dar a ouvir revelações’.

Assim falaram as virgens do grande Zeus verídicas,

por cetro deram-me um ramo, a um loureiro viçoso

colhendo-o admirável, e inspiraram-me um canto

divino para que eu glorie o futuro e o passado,

impeliram-me a hinear o ser dos venturosos sempre vivos

e a elas primeiro e por último sempre cantar.

Mas por que me vem isto de carvalho e de pedra?”9

8 Ilíada, II.484-93.9 Teogonia, 22-35 (tradução de Jaa Torrano).

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Épos

Procedimentos extraordinários, situados além do alcance dos atri-butos cognitivos meramente humanos, privilegiam a figura do aedo. As-sim, bem o afirma o elogio que Odisseu dirigiu a Demódoco.

“Demódoco, louvo-te acima de todos os mortais:

ou a Musa, filha de Zeus, ou Apolo te ensinou,pois bem em ordem cantas o infortúnios dos aqueus,quanto realizaram, o que sofreram e quanto suportaram os aqueus,como se tivesses presenciado, ou de um outro o ouvisses.Mas, vamos, muda e canta a trama do cavalode pau, que Epeio construiu com Atena,e que então o divino Odisseu, doloso, levou para a fortaleza,preenchendo-o de guerreiros que Ílion saquearam.Se isso me discorreres com propriedade,logo declararei a todos os homens,que a mercê de um deus bem te concedeu o divino canto”.10

Odisseu, por apropriada retórica com que exorta Demódoco a umnovo canto, proclama a excelência do aedo tecendo-lhe justo louvor. Afir-ma o herói que seu relato poético dos feitos cometidos e dos infortúniossofridos pelos aqueus diante de Ílion, prima pela conformação em ordem(katà kósmon) com que os reproduziu na narrativa.

Capacidade narrativa de correção, justeza e adequação ordenada eapropriada no relato de acontecimentos passados que, no âmbito do huma-no, exige a condição da presença cognitiva: poder expor os fatos ou por tê-los pessoalmente presenciado, ou por estar deles inteirado pelo informe deum outro que os presenciou. E, a condição da presença às manifestaçõesconsubstanciadoras do acontecimento, assim definida como requisito de suaderivação narrativa, impõe-se igualmente como critério de sua avaliação eaferição de justeza e adequação: porque ele, Odisseu, pessoalmente realizaesta exigência verificadora ao aludir ter participado daqueles episódios, pode,

10 Odisséia, VIII.486-98.

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então, asseverar, para o canto de Demódoco, a propriedade do fato daquelapresença. É assim, supõe a proclamação de Odisseu, que se constitui omodo humano de apreensão e conhecimento dos fatos passados.

E, todavia, bem o deu a entender Odisseu, não era precisamenteesse o caso de Demódoco. Não só o aedo era cego como, bem o sabia oherói, não estivera presente lá nos plainos de Tróia, na campanha aquéiade que ele mesmo participara. Então, se o primor de seu relato dos acon-tecimentos não derivava dessa possibilidade humana da presença cogni-tiva, uma inferência logo se impunha: ele os soube pelos deuses, seja aMusa seja Apolo quem lhe tenha ensinado o canto. Um modo excepcionalde acesso e participação na ciência divina distingue a excelência do aedoentre os mortais.

Assim, o saber que o aedo detém acerca dos fatos passados é cons-tituído por meios e vias extraordinárias, que não as comuns, ordinárias, dapercepção humana que, antes, privilegiam o alcance da visão física, en-quanto modo de apreensão da realidade fenomênica. Pelo contrário, émesmo a negação desta capacidade física visual, a cegueira, que marca afigura do aedo. É o que a Odisséia registra na pessoa de Demódoco:

“A quem, dentre todos, a Musa amou, e deu-lhe bem e mal:

dos olhos privou-o, mas concedeu-lhe agradável canto”.11

Aos mortais as divindades concedem, no máximo, bens misturados,associados a males, como um dos aspectos constitutivos de sua condiçãohumana, em oposição aos modos da existência divina, única a usufruir oprivilégio da exclusividade de bens e prazeres. Assim se passa com o aedo:dentre os mortais eles é caro aos deuses, que o agraciam especialmentecom o dom do canto. Esse o bem por que ele é singularmente contempla-do pela graça divina. Mas, porque mortal, a fortuna do bem se dá tendocomo contrapartida o infortúnio que igualmente é próprio de sua singula-ridade: a privação de visão física.

11 Odisséia, VIII.63-4.

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E, assim, se representa que a potência poética do cantar independeda capacidade humana da visão física, pois se constitui sem ela, apesar desua falta, não obstante sua privação. Então, o dom do canto pela contra-partida da cegueira física compõe a justa partilha definidora do destinoambiguamente heróico, precípuo da figura piedosa12 do bardo, sua moira.Também a tradição firmada pelo nome de Homero consagrou essa repre-sentação da cegueira do cantor13, provavelmente derivada daquela mes-ma memória odisséica, caracterizadora da persona de Demódoco.14

O domínio de um saber propriamente divino, definido por oposiçãoao modo precipuamente humano de constituir conhecimento privilegiada-mente derivado da visão física, distingue a figura do aedo. Ele, tal qual oprofeta – assim mormente Tirésias, mas também Finéias –, define-se como“visionário”, em quem a perda daquela capacidade orgânica se dá contrao dom da vidência intelectiva, a ponto mesmo de sua superação, precisa-mente porque apreende realidades inalcançáveis por aquela: “Cegos à luz,eles vêem o invisível...as realidades que escapam ao olhar humano...o queocorreu outrora, o que ainda não adveio”.15

Pelas representações mesmas que o épos tece, o aedo é, então, apre-sentado como o depositário humano de um saber que é originariamentedivino, o saber das Musas. Assim, se por um lado do equacionamentoafirmado pelo elogio de Odisseu a Demódoco, a justeza e correção danarrativa do aedo implica a atribuição de sua participação no divino, por

12 Negativamente o diz o mito de Tamiris, que por hybris de pretensões equiparadoras deseu canto com a arte divina, foi exemplarmente punido ao reverso do que constitui odom das Musas: nele a cegueira emblematiza a punição que ressarce a devida ordem,de modo que o ganho do dom do canto para ele reverte em perda, pois sua cegueira éjusto privação canora.

13 Hino homérico a Apolo, 172.14 J. S. Clay. Wrath..., p. 11; Stanford. Commentaries..., p. 332.15 J. P. Vernant. Mito e pensamento..., p. 304s.

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outro, é este reconhecimento de seu estatuto privilegiado que lhe ensejaaqueles atributos respeitantes à veracidade de seu canto. Pois, justamenteporque esse saber é constituído pela divindade, é um saber que pode,embora situado no âmbito do humano por meio da figura do aedo, alegarestar ainda ancorado no fato da presença, mesmo para aquelas tempora-lidades negadoras do tempo presente, os tempos passados, entretanto inal-cançáveis pela atualidade do estar presente suposto pelas limitações dacondição humana.

Assim, bem o proclamou Homero, ao encetar a narrativa do Catálo-go das Naus, na Ilíada:

“Dizei-me agora, Musas, que tendes as moradas olímpias,

pois vós sois deusas, presenciais, vistes tudo,

mas nós a fama só ouvimos e não vimos nada:

quem eram os comandantes e os soberanos dos dânaos;

já a multidão eu não narraria e nem nomearia,

nem se tivesse dez línguas, dez bocas,

voz incessante e contivesse peito brônzeo,

caso não as Musas Olimpíades, de Zeus egífero

filhas, memoriassem quantos sob Ílion vieram.

Os comandantes das naus, então, digo, e as naus todas”.16

A narrativa solicita do aedo o conhecimento do fato passado: quemeram os soberanos comandantes das forças aquéias beligerantes contraTróia? Mas também a potência cognitiva, entende o poeta, dissocia ho-mens e deuses. Os homens, porque situados e circunscritos ao tempo pre-sente por sua própria condição de mortalidade, não tendo presenciado osacontecimentos de outrora, quase nada sabem acerca deles, pois apenas adifusão atualizadora de sua notícia no tempo presente alcança seus ouvi-

16 Ilíada, II.484-493.

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dos, notícia assim ambiguamente entendida como rumores espalhadosanonimamente e como proclamações da fama que os celebra.17 Por com-partilhar genericamente essa ignorância, o aedo reconhece que pertence àcomunidade humana, sublinhada pelo nós porque a referencia em seusversos.

Já os deuses distinguem seu modo de existência também pelo fato dapresença transcendente.18 E onipresentes, onividentes, oniscientes. Pelo pri-vilégio do nexo por que ele contata as Musas, o aedo distingue sua excepcio-nalidade heróica em meios aos humanos ao ensejo de um acesso à ciênciadivina do dizer poético. Ao, pois, ecoar o dizer das Musas, o canto emitidopelo aedo atualiza a memória, que dispõe em palavras a direta e imediatapercepção visual dos acontecimentos. Emblematicamente, essa singularida-de distintiva do cantor é representada pelo estigma da cegueira, privação devisão orgânica, por metáfora paradoxalmente negativa de formulação deum saber que supera esse modo humano de cognição (de)limitado às mani-festações fenomênicas do tempo presente.

Então, contraposta a sapiência divina à ignorância humana, as repre-sentações afirmadas pela invocação às Musas revestem o canto de uma aurade sacralidade, que confere autoridade à narrativa do aedo. A referenciaçãodo sujeito da narrativa, pelo nexo do aedo com a figura das Musas, avaliza,garante, a verdade do relato dos fatos passados, mesmo que inapreensíveis

17 “Na linguagem homérica kléos têm o sentido neutro de ‘o que é ouvido, rumor’, e osentido marcado de ‘reputação, fama, glória’. kléos, pois, implica: 1) mero ouvir dizer,fontes de ignorância; 2) fala repetida acerca de algo, fonte de fama e, então, glória; 3)no plural, feitos de canções épicas. Todos os sentidos de kléos são aqui válidos emprincípio, mas o texto introduz indicadores que sustentam, contraditoriamente, ambosos sentidos de kléos como mero rumor humano e como fama divinamente inspirada”(P. Pucci, Song..., p. 37).

18 “Aquele que pode discorrer sobre o mundo, sobre deuses e sobre o passado e o futuropossui uma linguagem especial, memória, inspiração e poder. Todas estas posses po-dem ser sumarizadas em uma palavra: presença. Pois, graças às Musas, o poeta ganhaacesso às coisas mesmas em sua totalidade”(P. Pucci, Song..., p. 36).

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pela atual visão humana.19 A inabalável justeza do canto épico advém, pois,do princípio de que o seu dizer é o dizer das Musas. Verdade da narrativa eparticipação divina do aedo mutuamente se determinam, constituindo prin-cípio metodológico da narrativa mítica.

E porque a narrativa do aedo é apenas a transmissão humana me-diadora dessa palavra divina das Musas, sua verdade é inquestionável, seusaber autônomo20, como bem o teriam advertido elas mesmas, as Musas, aHesíodo:

“Elas um dia a Hesíodo ensinaram belo canto

quando pastoreava ovelhas ao pé do Hélicon divino.

Esta palavra primeiro disseram-me as deusas

Musas Olimpíades, virgens de Zeus porta-égide:

‘Pastores agrestes, vis infâmias e ventres só,

sabemos muitas mentiras dizer símeis aos fatos

e sabemos, se queremos, dar a ouvir revelações’ ”.21

Para os humanos, grosseiras e rudes criaturas, voltadas somente paraa resolução das necessidades mais elementares do viver, quais sejam aspreocupações alimentares da subsistência, a fala das Musas requer vôos de

19 A. Sauge (Épopée..., p. 255), que lembra os versos iniciais do Hino homérico a Selene:Musas...avalizadoras (da verdade) do canto (XXXII.1-2). Confiram-se igualmente oscomentários de P. Pucci (Song..., p. 36): “As Musas sabem e controlam todas as coisas,passadas, presentes e futuras, tanto afastadas quanto próximas; sua canção,consoantemente, manifesta as coisas como elas são, em sua verdade. A canção épicacelebra deuses e heróis em narrando a absoluta verdade sobre eles. Embora nem naIlíada nem na Odisséia encontremos uma afirmação explícita de que a canção dasMusas é verdade, ninguém pode pôr em dúvida a canção das Musas que vêem esabem tudo”.

20 J. S. Clay. Wrath..., p. 10.21 Teogonia, 22-8 (tradução de Jaa Torrano).

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elevação e sutileza espiritual inalcançáveis. A fala das Musas, para o ele-mentar viver humano, constitui o ambíguo e ambivalente trânsito ou blo-queio, de acesso ou distanciamento, das revelações ou das mentiras símeisaos fatos.

Trânsito e/ou bloqueio, acesso e/ou desvio, revelações e/ou mentiras,tudo depende do arbítrio das Musas, tudo depende de sua concessão, deseu ato de querer, bem decidido como exercício de poder, a conformar,assim, o princípio de dominação, que o modo mítico da memória efetua. Sequeremos, advertem as Musas, concedemos aléthea, revelações, verdades.Mas, também se queremos, prosseguem elas, pelo contrário, iludimos inelu-tavelmente, pois então damos pseudéa, mentiras, só que não mentirasidentificáveis enquanto tais, pois não as damos como mentiras, mas, sim,como mentiras semelhantes aos fatos, às realidades. Então, por causa dasimilitude aparente, pode o humano tomar como revelação verídica o que,pelo contrário, é mentira. As Musas, se elas assim o querem, e essa decisãoencerra-se plenamente em seu desígnio, bem ocultam a verdade ao huma-no quando a revelam nas manifestações aparentes de mentiras símeis aosfatos.

Não há, pois, para o humano, forma ou meio de poder distinguirrevelação de ocultamento no dizer das Musas, de modo a discernir verda-des ou mentiras. Precisamente porque uma tal capacidade de discerni-mento supõe, para o humano, a condição da presença cognitiva. E, toda-via, o canto do aedo constitui-se como e enquanto memória de feitos eacontecimentos para os quais toda capacidade humana possibilitadora dapresença está já totalmente excluída.22 Então, pelo discurso do mito dasMusas, só há uma possibilidade aberta para a certeza do saber humanodelas derivado enquanto memória: confiar que as Musas, por sua magnâ-nima superioridade, quiseram revelar verdades, por esse justo desígnio de

22 “Tendo o canto por objeto algo que ultrapassa a finitude humana – a saber, os desígniose as ações dos Deuses e a vida e os feitos dos heróis que outrora conviveram com osDeuses –, o segundo aspecto da dupla finalidade da invocação inicial é a garantia daverdade do canto” (Jaa Torrano. O que é mito..., p. 371).

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comunicação de sua ciência aos humanos definindo-se a teleologia de suasingular existência olímpica.

A verdade do mito, porque transcendentalmente derivada como odizer das Musas, constitui-se, assim, como atributo imanente a seu discursonarrativo. Aqui, na narrativa composta pelo mito das Musas, a verdade é(in)questionada.

Alcino, dirigindo-se ao herói Odisseu, que justamente acabara decontar várias aventuras passadas na viagem errante que o levara à ilha dosfeácios, tece apropriados comentários a louvar a excelência narrativa deseu hóspede:

“Odisseu, contemplando-te, certamente não julgamos, que semelho a algum

impostor e larápio sejas, desses muitos

homens de todos os lugares que a terra negra nutre,

artífices de mentiras, de que ninguém mesmo percebe.

Tu externas beleza nas palavras, e concebes nobres pensamentos.

Uma história, como se fosses cantor perito, contastes,

com os teus mesmos pesarosos infortúnios e os de todos os argivos.

Mas, vamos, diga-me isto, e verídico discorras,

se alguns dos divinos companheiros vistes, que junto contigo

para Ílion foram e seu destino alcançaram.

A noite será bem longa, inimaginável, e nem são horas

de ir dormir no palácio; antes, conte-me os maravilhosos feitos.

E mesmo até à diurna aurora eu agüentaria, enquanto a mim

te dispusesses no salão a narrar teus pesares”.23

A mais costumeira prudência bem recomenda, pondera Alcino, adesconfiança perante desconhecidos: por todos os lugares da terra vicejaminúmeros impostores e larápios, artífices de mentiras. E princípio de suspei-ta tanto mais necessário, dada a precariedade da situação de suas eventuais

23 Odisséia, XI.363-76.

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vítimas: as mentiras que tais desqualificados contam não são detetáveispor quem as ouve.

Todavia, excepcionalmente outro, assevera com firmeza Alcino, é ocaso de Odisseu. Já pela consideração do que sua pessoa mesma manifes-ta aparente assegura-se tal certeza de conhecimento: especialmente porsuas ações, bem se conciliam as virtudes da apropriada conformação dis-cursiva com as da devida nobreza de espírito.

E a certeza deste conhecimento Alcino firmara, permanentemente,ao longo de todo o tempo e de toda a presença atuante de seu hóspede. Aconfiança que depositava na honorabilidade de sua pessoa advinha pelaexecelência de todos os seus atos, manifestação cabal da nobreza de suacondição aristocrática, certamente um dos áristoi que se distinguem supe-riormente entre os homens. E, confiança tão plena da apreciação de suanobreza, que se dispusera a comprometer vínculos familiares, oferecendo-lhe mesmo a mão de sua filha.

Conhecimento da qualidade excepcional de Odisseu não apenas res-trito a Alcino, mas igualmente partilhado também por Arete, que igualmenteexternara já perante os nobres feácios sua melhor apreciação quanto à boafigura física e virtuosidade de espírito de seu hóspede. E, conhecimentoainda também amplamente difundido pela comunidade feácia, seja no nívelsuperior de suas autoridades conselheiras partícipes da vida palaciana, níveleste bem reapresentado pelas intervenções do ancião Equeneu, seja no âmbitomais genérico do povo, enquanto assistência de assembléias.

Assim, desde o princípio, gozava Odisseu da mais favoravelmentereceptiva disposição dos feácios todos. Precisamente, tal era a obra dagraça que Atena concedia à presença do herói em Ítaca. Obra da predile-ção do favor divino, que justamente finalizava propiciar-lhe a conquistadas devidas mercês honoríficas com que os feácios o agraciariam. E, assim,o respeito reverente destes pela honra do herói ensejaria também igualrespeito reverente da parte dos itacenses ao seu exitoso rei regressante.

Agora, ainda por esta outra ação – a narrativa de suas histórias –,dava igualmente Odisseu manifestação de suas excelências, pois revelava

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dominar com mestria também a ciência a ela apropriada: a arte dos aedos.Quando, então, Alcino comenta elogiosamente a excelência do desempe-nho narrativo do hóspede ao contar as histórias de sua viagem, a confian-ça na veracidade de suas palavras estava dada já desde o princípio. Suasrazões confluem e condensam-se pela progressiva consciência afirmadorada condição aristocrática e identidade heróica do estrangeiro: este princí-pio afiança aquela qualidade discursiva.

A certeza do pronunciamento de Alcino não advém, então, unilate-ralmente como descoberta de inferência especificamente respeitante à suaperícia narrativa. Há, aqui, que nuançar as magníficas interpretações deWalsh.24 Pois, diversamente do que supõe a argumentação deste crítico,não é absolutamente imperativo interpretar-se as colocações feitas por Alcinono sentido de que sua afirmação da veracidade do relato de Odisseu deri-ve, exclusiva e necessariamente, porque só assim se explica, da excelênciade sua performance narrativa. Ora, não só Alcino, como ainda toda acomunidade feácia, dispunha, sim, de um certo conhecimento aparenteda pessoa do estrangeiro, constituído por meio da apreciação do carátersapiencial que suas ações revelavam, e conhecimento que bem ensejavaprojetar confiança na veracidade de seus relatos. Então, a assertiva queafirma esta veracidade é também produto da apreciação de sua excelêncianarrativa justamente porque é sua condição mesma. Advém, tanto resul-tando singularmente desta excelência, quanto, por princípio e generica-mente, da excepcionalidade heróica global da apreciação da figura deOdisseu.

Uma questão, todavia, permanece ainda elidida por tais considera-ções analíticas: a disposição pessoal do herói comprometida com a veraci-dade de seu relato. Assim, sempre que Alcino o solicitou ao herói, bem oadvertiu a observar esse condigno preceito.25 E, novamente agora, nembem acabara de elogiar sua excelência narrativa, mais uma vez o reiterou,

24 G. B. Walsh. Varieties..., p.7s.25 Odisséia, VIII.388; 548.

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ao reclamar-lhe o prosseguimento de suas histórias: “Mas, vamos, diga-meisto e veridicamente discorras”.26

Ter-se-ia Odisseu disposto a narrar a verdade? Que imperativos ocomprometiam a um tal dever de dignidade honorífica reclamado por Alcino?

Pelo que bem insistem as advertências de Alcino, ficavam implica-dos os imperativos de dever requeridos pela reciprocidade dos nexos dahospitalidade. O acolhimento hospitaleiro que Alcino dispensa ao heróiprima pela magnanimidade generosa. Assim, então, igualmente a reclamado hóspede. Tal magnanimidade de disposição benévola ao firmar víncu-los de hospitalidade compõe também a honorabilidade dos que são áristoi,quer Alcino, quer Odisseu.

E, todavia, esse reclamo objetivo posto pelos deveres dos nexos hos-pitaleiros supõe a subjetividade com que ambos os seus pólos estimam edecidem o modo por que atualizam sua benevolência. Assim, admitemtambém a mentira, como tal benesse apreciada. É bem o que fez Odisseuao assumir nobremente para si a reprimenda com que Alcino censurara afilha, por não ter devidamente cumprido seu dever de hospitalidade.

Em última instância, a questão da verdade da história narrada noâmbito do discurso mítico, aqui apreciada enquanto narrativa do herói,remete para o arbítrio do sujeito que a narra, em conformidade com aordem total de seus deveres de honorabilidade nobilitadora.

O ser aparente, manifestado pelas ações de Odisseu, afirma Alcino,compõe, em geral, a forma apropriada das palavras externadas com anobreza devida dos pensamentos por ele concebidos.27 Assim, também,em sua performance narrativa:

26 Odisséia, XI.370.27 Confiram-se os comentários de N. Austin (Archery..., p.199-200) a esta passagem odisséica:

“Alcino igualmente cumprimenta o poeta substituto, e a ênfase é posta novamente tantono espírito interior quanto na aparência física exterior: não és um daqueles furtivos em-busteiros que costuram mentiras. Há em tuas palavras uma forma (morphe: compare-seo dito mesmo de Odisseu sobre a capacidade das palavras de conferirem morphe: VIII.170)

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“Uma história, como se fosses cantor perito, contastes,

com os teus mesmos pesarosos infortúnios e os de todos os argivos”.

O relato de Odisseu é similar, por suas virtudes, aos cantos narrativosdos aedos: dotado igualmente de perita ciência, epistamenós.28 Assim, co-menta Walsh, se “descreve a competência do cantor: narra com conhecimen-to porque diz a verdade, e com perícia porque a diz com perceptível beleza”.29

A duplicidade de denotações que epistamenós supõe, então, bem qualificaapropriadamente a excelência narrativa do cantor: a arte formal da composi-ção poética, mais a veracidade do conhecimento factual. E tanto mais queesta ciência do fato narrado, no caso do aedo, não deriva da sua presençacognitiva.30 De modo que o aedo, embora não presente aos acontecimentos,bem os conhece, como o herói que deles participa e, por isso mesmo bempode afiançar sua veracidade. E, assim, o aedo, dispondo também do conhe-cimento que é próprio do herói, compõe ambas aquelas virtudes.

Na Odisséia, os relatos das histórias contadas pelo próprio persona-gem heróico – Odisseu – comparecem (e se atualizam poeticamente) iden-tificados com as narrações do canto do aedo, de modo que as vozes deuma figura se tomam (e confundem) pelas da outra.31 Odisseu, figura em

e teus phrenes interiormente são bons”. O mesmo autor lembra ainda que, similarmentea esse louvor da figura de Odisseu, enquanto contador de histórias, por que se harmoni-zam em plena congruência a beleza da forma exterior das palavras com a correção moralde seus pensamentos e desígnios interiores, também Arete assim tece loas ao herói, porsua vez apontando essa mesma congruência harmônica de sua beleza física exterior coma moralidade de seu espírito interior: XI.336.

28 Além de Alcino na presente passagem, também Eumeu louva a excelência poética dashistórias odisséicas, equiparando o herói pela competência do aedo: confiram-se XVII.518e XXI.404.

29 Walsh. Varieties..., p. 7.30 Vejam-se os comentários respeitantes ao elogio que Odisseu dirige a Demódoco.31 Stanford, em seus comentários ao elogio de Odisseu por Alcino (à p. 395), sugere que

“Homero pode ter pretendido aqui dar um toque de furtivo humor, pois que é de fato ele,um aedo, que está contando a história de Odisseu”.

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que se enfeixam herói-ação e narrador-memória da Odisséia, é tambémaedo de sua história.32

Transferida, entretanto, esta apreciação do aedo para Odisseu, umadiferença de imediato se afirma: necessariamente tem ele ciência do fatonarrado, justamente porque a ele presente enquanto seu participante. Pois,o que o herói “conta são os seus mesmos pesarosos infortúnios”. De modoque a possibilidade da narrativa verídica está dada por princípio para orelato do herói. Então, mais especialmente, elogia Alcino na excelência nar-rativa de Odisseu a virtude que é antes singularmente própria do aedo, aarte formal da composição poética. E, assim, o herói, dispondo também daarte que é própria do aedo, compõe ambas aquelas virtudes.

Então, no enfático louvor que Alcino tece das récitas de Odisseu aoasseverar a verdade de suas histórias, o rei tanto mais aprecia a excelência

32 Observa H. Fränkel (Poetry..., p. 9-10), tendo por referência a cena da embaixada aAquiles, quando os enviados de Agamêmnon encontram Aquiles a cantar em sua ten-da as famas dos heróis, que na Ilíada os aedos nunca são mencionados, e são ospróprios heróis que contam as histórias de seus feitos ou dos de seus antepassados, oque de certa forma indicaria que tais relatos ou narrativas teriam constituído como queos estágios preliminares da canção épica. De certa forma, a Ilíada retrataria essa tempo-ralidade antiga, onde a categoria do aedo ainda não se constituíra socialmente. Por umlado, é bem certo que a figuração do herói que conta (e vangloria-se pelas) as históriasde seus feitos é consoante com um modo de fundamentação afirmativa de sua identi-dade, a assim proclamar distintiva excelência superior. Por outro lado, a temática ence-nada pela Ilíada não parece ensejar as lembranças da figura do aedo, como pelo contrá-rio o propicia a Odisséia. Pois, o que faria um aedo em um contexto de acampamentode guerra? Outras categorias demiúrgicas ainda comparecem nesse cenário beligeran-te, pelos reclamos precípuos de seus serviços especiais, tais como os médicos, os profe-tas-áugures, os arautos ... e mesmo peritos carpinteiros (não seria tal Epeio que comAtena construiu o cavalo de pau?) Nos cenários e situações supostas pela Ilíada aindase projeta a imagem, ou aparência (dis)simulada, de um profeta – Calcas (Posídon) – acombater como guerreiro, mesmo assim ambiguamente apreciada essa sua presençano campo de combate porque totalmente paradoxal e inusitada. Mas seria assim simi-larmente concebível lá situar um aedo, tanto mais cego?

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do herói quanto este a consuma verídica apesar dos ensejos usuais daquelasituação narrativa por que indivíduos inescrupulosos as exploram dissemi-nando antes só falsidades:

“Odisseu, contemplando-te, certamente não julgamos que semelho a algum

impostor e larápio sejas, desses muitoshomens de todos os lugares que a terra negra nutre,artífices de mentiras, de que ninguém mesmo percebe”.

Se irrelevada por um momento a contextualização ética por que Alcinoconcebe esse ajuizamento, não há como assinalarem-se melhor as ambíguasironias de uma memória poética odisséica tanto mais intrigantes porquantose trata de herói distinguido precisamente pelo primor da excelência astuciosa,de que a composição de histórias mentirosas compõe um dos recursosludibriadores. Um herói que bem perpetra mentiras por irônicas declaraçõesafiançadoras de verdades.33 Um herói de quem o poeta, por vezes, asseveramesmo que, quando já de retorno a Ítaca, a por em ações dissimuladas osdesígnios de sua reconquista régia, mente quando conta histórias falsas desuas viagens.34

Odisseu, aedo de suas histórias, compõe palavra poética similar aodizer das Musas, ambígua e ambivalentemente revelando/ocultando ver-dades e/ou mentiras.

33 Vejam-se os comentários de Higbie (Heroes’..., p. 72): “Odisseu mente mesmo quandoassegura a seu ouvinte que ele está-lhe dizendo tudo: por exemplo a Eumeu (14.192),a Laertes (24.303). Compare-se a asserção de verdade que a deusa Demeter utilizaquando ela se dá um nome e história falsos ao ser interrogada em Elêusis (Hino 120-134). Também Hermes reclama não saber como contar mentiras em um discurso aZeus (Hino 368-9; confira-se Higbie, Heroes’ 103, n. 12).

34 Vejam-se a fala e história contada por Odisseu quando de seu desembarque em Ítaca(13.254), mais as mentiras/verdades odisséicas especialmente na história cretense con-tada a Penélope com os comentários de Higbie (Heroes’..., p. 72 e 83).

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História

Estobeu, nos Florilégios35, guardou uma máxima anedótica atribuí-da a Tales de Mileto, em que o filósofo, inquirido sobre qual era a distânciaexistente entre a verdade e a mentira, teria respondido:

“Tão grande quanto a distância entre o olho e o ouvido”.

Máxima de formulação evidentemente ambígua36, pois, se aparente-mente figura tal distância como fisicamente mínima, dada a proximidadefacial entre olhos e ouvidos, afirma, efetivamente, essa distância comoepistemologicamente máxima, ao opor radicalmente esses dois órgãos agentesda percepção humana enquanto fontes alternativas constituidoras de co-nhecimento: o desvio mínimo na opção e identificação de uma dessas fon-tes – a preterição do ver pelo ouvir –, acarreta, abre o abismo que perdeinelutavelmente a verdade, afastada precisamente por sua negação, a men-tira.

A máxima anedótica aponta, assim, a confiança epistemológica dológos helênico na percepção visual da manifestação fenomênica captadapelo olhar, contra a desconfiança na transmissão memorizada recebida peloouvir, enquanto fonte de derivação do saber, e o saber autorizado pelo atri-buto da verdade. Contra a intervenção de um outrem implicada pelo ouvir– o que submete a verdade do relato ao arbítrio dessa mediação, e delimitaa passividade da operação de constituição do conhecimento –, a máxima deTales reage, consagrando a plena autonomia do sujeito que apreende a ver-dade como ação: pela e na imediatez de sua própria manifestação fenomênica,captada pela ação visual perceptiva do sujeito.

Máxima que define uma constante epistemológica do lógos helênico.Assim, em Xenófanes de Cólofon, ao asseverar que “para saber é precisoter visto”, afirma-se a percepção visual como condição necessária para a

35 III.12.14.36 Hartog. Le miroir d’ Hérodote, p. 273.

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derivação do conhecimento. Igualmente em Heráclito de Éfeso, quandosentencia que “os olhos são testemunhas mais exatas que os ouvidos”. Emáxima que alcança formulação axiomática pela filosofia aristotélica, aoabrir-se a Metafísica:

“Todos os homens, por natureza, desejam conhecer. Sinal disso é o prazerque nos proporcionam os nossos sentidos ... e, acima de todos os outros,o sentido da visão. Com efeito, não só com o intento de agir, mas atéquando não nos propomos fazer nada, pode-se dizer que preferimos ver atudo o mais. O motivo disto é que, entre todos os sentidos, é a visão quepõe em evidência e nos leva a conhecer maior número de diferenças entreas coisas”.37

História/Tucídides

A obra da história tucidideana, ao compor sua narrativa finalizandoalcançar um saber sobre as ações humanas, depara-se, de imediato, comuma oposição que distingue duas categorias temporais: há o presente, con-substanciado pelas ações que efetivam a guerra atual, a opor peloponésios eatenienses; e, por ele conseqüentemente demarcado, há também o passado,que comporta, portanto, toda a anterioridade temporal suposta pelo pre-sente da guerra.

Ora, o passado é, por essência, o domínio do tempo, que nele secondensa. E o passado comporta diferenciações temporais conforme sualongevidade, sua extensão de anterioridade: há realidades que são mera-mente anteriores às do presente, e há realidades que são ainda mais antigas.

Que razão precisa, entretanto, melhor fundamenta essa afirmação tu-cidideana acerca do impedimento de constituição de um saber clarividenteque pesa sobre tais realidades passadas, o estilo elíptico de sua escrita nãorevela expressamente. Uma primeira razão, todavia, fica já implicada pelas

37 Metafísica, I.1.980a.

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declarações antecedentes, logo na abertura do Proêmio, as quais vinculam opresente da guerra dos peloponésios e atenienses à contemporaneidadepessoal do sujeito da narrativa, Tucídides de Atenas: ele a começou logo àsua eclosão. De modo que o presente bem se define pela condição da pre-sença: o poder estar presente e, pois, presenciar os fatos. O passado, então,pelo contrário, fica estigmatizado justamente pela inviabilidade dessa pre-sença cognitiva e, pois, pela impossibilidade de derivar seu saber a partir deuma visão direta, transparente, iluminada pela clareza mesma da manifesta-ção fenomênica dos acontecimentos. Um tal impedimento cognitivo é, por-tanto, intrínseco ao passado, o domínio temporal demarcado pela impossi-bilidade da presença.

Mas, dada a sugestão daquela significação cumulativa a contrastartempos anteriores e tempos ainda mais antigos, é especialmente pela sobre-carga de temporalidade deposta sobre as realidades passadas, que melhorse compreende outra razão a ampliar o alcance de uma tal assertiva acercado impedimento de constituição de um seu conhecimento cristalino, queprime pela clarividência de suas certezas.

Acerca dos tempos passados, esse domínio da inviabilidade cognitivafundada na condição atual da presença experienciadora, sabe-se apenaspelas tradições (akoaí) que os memorizam: histórias populares que bem seouvem e contam, a difundir seu conhecimento pela sucessão das geraçõeshumanas, em cadeia de transmissão que alcança o tempo presente.

Então, singulares dificuldades cercam, e comprometem, o conheci-mento do passado.

Antes de tudo, tal fato tem a ver com a intrínseca efetividade deletériado tempo, cuja ação prejudica a percepção dos tempos passados, similar-mente ao modo como ela também desbasta as formas das coisas antigas,apagando seus contornos e traços figuradores, desfazendo a precisa identi-dade de suas imagens. Diz Heródoto que as obras dos homens, suas ações efeitos, realidades consumadas em tempos passados, tornam-se esmaecidas

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com o tempo (tõ chróno exítela génetai).38 Obnubila-se sua concepção namedida em que se esvai, desvanece, a lembrança de sua manifestação. Poressa razão mesma, a obra da História herodoteana propõe-se, justamente,como aquela modalidade de memória, monumento público, que finalizasuperar tal adversidade.

Também Tucídides reconhece a fragilidade da memória humana. Ede suas limitações e impotências no âmbito da capacidade mnemônica indi-vidual, ele as diz já mesmo no que respeita às realidades presentes, recém-ocorridas e presenciadas. Assim, bem admite as dificuldades de reconstituirem sua narrativa as ações consumadas na guerra contemporânea – quer osdiscursos pronunciados, quer os atos praticados –, pois, em princípio, de-pendentes da memória das pessoas que as presenciaram.39

Todavia, não é propriamente por este aspecto das razões limitadorasde uma (in)capacidade mnemônica, que Tucídides alerta as aporias espe-cialmente pendentes sobre o conhecimento do passado. Mesmo porque es-tas o cercam igualmente quando as coisas do passado têm ainda atualidadee não tiveram sua memória apagada pela ação do tempo.40 A questão tem,aqui, bem mais a ver com os modos positivos de sua memorização, do quecom as vicissitudes negativas de seu esquecimento, antes com as significa-ções que com o tempo se aderem à memória, do que com as perdas que porele advém. Ou melhor, tem, aqui, a ver com esta negatividade apenas en-quanto condição daquela positividade.

Logo na abertura da denominada “Arqueologia”, Tucídides começoupor advertir a impossibilidade de constituição de um saber sobre os fatos dopassado que primasse pela clareza e certeza de suas verdades:

“De fato, era impossível apreender com clareza as realidades anteriores eas ainda mais antigas”.41

38 Histórias, I.1.39 A guerra dos peloponésios e atenienses, I.22.40 A guerra dos peloponésios e atenienses, I.20.3.41 A guerra dos peloponésios e atenienses, I.1.2.

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Ao encerrar essa mesma “Arqueologia” apontou agora as dificulda-des que, se não inviabilizam a consecução narrativa desse saber, pelo menoso desaconselham:

“Então, tais foram os tempos antigos como eu os apreendi, dadas as difi-culdades que eles apresentam de confiar-se em todo seqüente indício. ...Com base nos indícios enunciados, não se equivocaria quem julgasse osfatos de modo geral, assim tais como eu os abordei, e não confiasse antesnem no que a seu respeito os poetas celebraram tendo em vista adornosengrandecedores, e nem no que os logógrafos compuseram tendo antesem vista o que é mais do agrado do auditório ao que é mais verdadeiro,dado que eles são incomprováveis e a maioria deles, sob a ação do tempo,não sendo de se confiar em vista do caráter fabuloso por eles ganho; entre-tanto, penso que ficou suficientemente apreendido a partir do que são ossinais mais evidentes em se tratando das coisas antigas”.42

A emissão de um pronunciamento pessoal delimita, pois, a possibili-dade de um discurso cognitivo que pretenda apreender o passado. Essaapreensão não pode almejar a certeza de verdade da visão transparente.Seu poder de afirmação consiste de convicção: ato de atribuição de crédito,de confiança (pisteúo). A convicção, por sua vez, não é arbitrária nem cons-titui crença, pois se sustenta e deriva da mediação de um exame arrazoadoroperado por indiciamentos (tekmería).

Mas o passado, porque domínio do tempo, reveste-se de fabuloso(mythõdes), o que o torna inerentemente in-confiável, não merecedor decrédito (á-pistos). O passado é in-comprovável (an-exélegkta). Sobre o pas-sado, campo de negatividades, emitem-se entendimentos de julgamentopessoal (nomízo), tecem-se pronunciamentos alicerçados em operaçõesindiciadoras da verdade. Constituindo-as, então, sucedaneamente comoprovas, na medida possível de evidência que os tempos antigos permitem(ek tõn epiphanestáton semeíon hos palaià einai), define-se individualmen-

42 A guerra dos peloponésios e atenienses, I.20.1-.21.1.

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te, como manifestação do “eu” referenciador do sujeito do discurso cognitivodo passado, uma decisão, um pronunciamento declarativo de sua verdadeconfiável.

Então, porque o saber possível sobre o passado aspira no máximo àconvicção, é preferível confiar na razão, do que meramente instaurar cren-ças. É preferível, afirma expressamente Tucídides, fiar-se única e exclusiva-mente nos pronunciamentos singulares, por ele mesmo emitidos sobre opassado, afiançados pelos ditames da razão apuradora da verdade, a acredi-tar nas histórias fabulosas transmitidas por poetas e logógrafos. Porque estasnão passam de crenças. O hinear dos poetas atende à preocupação laudató-ria do engrandecimento heroicizante. A narrativa dos logógrafos contemplaapenas o propósito hedonístico de entretenimento ditado por seu auditório.A seus respectivos propósitos, ambos, quer poetas quer logógrafos, sacrifi-cam a expressão da verdade, deslocando-a e tomando-a pelo fabuloso. Pelocontrário, o julgamento tucidideano distingue sua diferença firmando seucomprometimento com a investigação averiguadora da verdade (he zétesistes aletheías). Toda a fonte e dependência de confiabilidade desse julgamen-to consiste da constituição desse campo de racionalidade argumentativa es-tendido sobre o passado.

Mas uma tal rede de racionalidade projetada sobre o passado tece pro-nunciamentos singulares que, justamente, encerram a investigação dessa tem-poralidade, estimando a sua suficiência (heuresthai dè hegesámenos ek tõnepiphanestáton semeíon hos palaià einai apochróntos): eles abrangem e fe-cham todo o conhecimento racionalmente confiável possível sobre o passado.De modo que a “Arqueologia”, antes do que propor o princípio de um saberrespeitante ao passado, tenciona, pelo contrário, demarcar o seu fim.43

Logo na abertura da denominada “Arqueologia”, Tucídides adverti-ra as aporias que pesam sobre o conhecimento do passado:

43 F. Hartog (Miroir..., p. 276) comenta o irônico paradoxo instaurado pelo resgate dasconcepções metodológicas tucidideanas pela historiografia moderna: “Thucydide, pour

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“De fato, era impossível apreender com clareza os tempos anteriores e osainda mais antigos devido à extensão temporal; mas, pelos indícios a partirdos quais cheguei a uma convicção em um profundo exame, considero queeles não foram grandes, nem quanto às guerras nem quanto aos demais”.44

O passado é, por essência, o domínio do tempo. Então, porque aplenitude temporal o singulariza inviabilizando a condição da presença cog-nitiva, pesa uma aporia sobre o seu conhecimento: é impossível a apreensãocristalina, transparente de clareza (saphõs heurein). A percepção do passadofica, portanto, limitada à intervenção de um julgamento (nomízo) por deci-são de um entendimento pessoal, expressão das considerações do exameargumentativo do sujeito investigador. Assim, a emissão de um pronuncia-mento pessoal delimita a possibilidade de um discurso que tencione apreen-der o passado. Essa apreensão não pode almejar a certeza da visão transpa-rente. Seu poder de afirmação consiste de convicção: ato de atribuição decrédito, de confiança (pisteúo).

Assim, se sobre as realidades passadas não é possível alcançar umsaber cristalino de certezas, abre-se, entretanto, substitutivamente para o su-jeito da narrativa, a possibilidade de firmar convicções, tecer entendimen-tos, que se qualificam antes pela confiabilidade (pisteusai). E, como não sedispõe dos fatos derivados da presença, parte-se substitutivamente de ou-tros elementos: os indícios (tekméria) a essas realidades respeitantes. Poreles, então, o sujeito da narrativa fundamenta as convicções de seus espe-cíficos pronunciamentos assertivos. O que requer, de sua parte, uma extensaoperação examinadora (epì makrótaton skopounti).

qui seule l’histoire contemporaine esta faisable, va, de manière paradoxale, être promuau tout premier rang des historiens de l’Antiquité (au XIXe siècle), par des hommes,pour qui l’histoire ne peut se faire qu’au passé: Thucydide historien du present devientun modèle pour des gens, les historiens positivistes, qui, par histoire, entendent histoiredu passé”.

44 A guerra dos peloponésios e atenienses, I.1.2.

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Quando denuncia as faltas, próprias aos modos tradicionais de me-morização do passado, um conceito bem expressa, por suas significaçõesmetafóricas, o escopo dos reclamos metodológicos tucidideanos: (a)basanístos.Assim, se para que o ouro metálico revele a (im)pureza de sua composição,há que testá-lo por sua pedra-de-toque, o basalto (básanos), e se, para queo escravo mentiroso confesse a verdade, há que se submetê-lo à torturaimperiosa, também para que as tradições sobre os tempos passados firmemsuas verdades, há que se cuidar da investigação que, bem as indiciando pormeio de um exame apurado, possa obrigar seus pronunciamentos mesmosa delatarem suas próprias falsidades. Só as tradições que passam e resistema uma tal averiguação indiciadora das verdades por elas proclamadas po-dem ser acolhidas como genuíno conhecimento.

Então, para a História, concebida como modalidade narrativa dasações humanas comandada pelos reclamos da verdade do relato, a justaapreciação dos tempos antigos requer, assevera Tucídides, a mediação deum exame investigador, a apurar e depurar as tradições que os memorizam.Um tal exame compõe-se essencialmente de operações de indiciamento,constituição de indícios (tekméria):

“Mas pelos indícios a partir dos quais cheguei a uma convicção em umprofundo exame, considero ... ;45

então, tais foram os tempos antigos como eu os apreendi, dadas as dificul-dades de se confiar em todo seqüente indício46;

com base nos indícios enunciados não se equivocaria quem julgasse osfatos, de modo geral, assim tais como eu abordei”.47

A proclamar a grandeza superior da Guerra do Peloponeso relativa-mente às anteriores, Tucídides postula a objetividade de um tal pro-

45 A guerra dos peloponésios e atenienses, I.1.2.46 A guerra dos peloponésios e atenienses, I.20.1.47 A guerra dos peloponésios e atenienses, I.21.1.

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nunciamento: ele advém determinado não pelas subjetividades com que aspessoas apreciam a magnitude das guerras, mas, sim, pelas evidências domero exame observador dos acontecimentos mesmos.48

Daí, a melhor informar o que entende por um tal exame a partir daobservação dos acontecimentos mesmos, Tucídides expõe os princípios dométodo por que os reconstituiu em sua narrativa. Distingue, então, duasmodalidades de acontecimentos: os discursos pronunciados e as ações pra-ticadas.

Bipolaridade esta, contrastiva e complementar, de palavras e ações,enquanto categorização permanente do pensamento helênico, que enseja aTucídides ordenar quiasticamente a trama de suas considerações metodoló-gicas49, bem compondo figuras discursivas de antítese e inversão.

Começa pelos discursos:

“E quanto aos discursos que cada uma das partes pronunciou, quer àsvésperas da guerra, quer já no seu decorrer, era difícil rememorar a exati-dão mesma das coisas ditas, tanto para mim, quando os ouvira pessoal-mente, quanto para os que, por sua vez, me informavam. Foi assim comome pareceu quais seriam as coisas especialmente apropriadas que cadauma das partes discorreria acerca de cada uma das situações presentes,que os formulei, mantendo-me o mais próximo da proposição total dascoisas efetivamente ditas”.50

Ponto inicial das considerações, uma constatação objetiva: a dificul-dade da reprodução memorizada dos discursos, se regulada pela exigênciada exatidão (chalepòn tèn akríbeian autèn tõn lechthénton diamnemoneusai).Objetiva porque genérica, ocorrendo com todas as pessoas que, tendo escu-tado os discursos, poderiam reproduzi-los de memória: seja o historiador,

48 A guerra dos peloponésios e atenienses, I.21.49 A. L. A. Prado, p. 18ss.50 A guerra dos peloponésios e atenienses, I.22.1.

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para os discursos a que ele mesmo esteve presente, sejam seus informantes,para aqueles discursos que, dada sua ausência, junto a aqueles, que os pre-senciaram, se inteirara. Assim, se por um lado, o princípio fundante da pre-sença cognitiva enquanto fonte derivadora do informe do ocorrido é plena-mente atendido, por outro, o preceito da reprodução exata das coisas ditasnão pode ser acolhido, dadas as limitações da capacidade mnemônica hu-mana. O relato mesmo dos discursos fica, portanto, prescindido enquantoprocedimento de sua reconstituição narrativa, dado tal impedimento de exa-tidão de sua memória.

Então, “perda” de objetividade na performance narrativa tucididea-na que a crítica moderna, projetando a identidade da excelência de suaautoridade historiográfica, reluta em admitir.51 Uns, praticamente ignorandoo que Tucídides mesmo literalmente expressara (ater-se-ia próximo apenasda proposição geral efetivamente pronunciada), apegaram-se à tese de queele, em sua reconstituição dos discursos, buscara, e mesmo empenhara-se,em reproduzir mais ou menos exatamente os discursos do modo mesmocomo tinham sido efetivamente pronunciados, a ponto, inclusive, de tomá-los como fatos empíricos da história por ele narrada.52 Já outros, algo maisconcessivos às evidências críticas mais contundentes do texto tucidideano,tentaram salvar pelos menos algum grau maior de reprodução original pre-sente na narrativa do historiador, provavelmente os argumentos mesmosempregues pelos oradores em seus discursos, assim eliminando concomi-tantemente outro grau de extensão narrativa de extravazamento criativo doautor.53

51 Para estas considerações, confiram-se os comentários de Woodman, Rhetoric .... p. 11ss.52 Woodman (p. 11) refere-se às interpretações de Gomme e de Dover e, em especial

menção, aos trabalhos de D. Kagan.53 Confiram-se as referências de Woodman (p. 12 e nota 59 à p. 53), sobretudo no que

respeita à posição sustentada por Dover. Essa mesma preocupação em salvar a objeti-vidade da performance narrativa tucidideana em sua reconstituição dos discursostransparece nítida e enfaticamente no artigo de Swain (p. 42ss); a mesma inquietaçãomove também as análises de Proctor (pp. l50ss), polarizadas em firmar uma outra lição

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Mas preocupação esta de salvar a “objetividade” historiográfica tuci-dideana que parece entender por tal categoria a elisão da presença e daação do sujeito em sua narrativa. Tese algo ingrata de ser defendida namedida mesma em que o expresso pronunciamento tucidideano afirma aobjetividade reclamada como produto da ação intelectiva do singular sujeitoda obra, Tucídides de Atenas, que na reconstituição dos discursos valeu-sedo entendimento tecido por seu particular parecer.

Os supostos ancoradores, e mesmo aprisionadores, dessa relutânciada crítica moderna em admitir a narrativa dos discursos como criação tucidi-deana, foram bem apontados por Woodman: a reprodução do discurso lite-ral comporia seu ideal historiográfico de reconstituição narrativa e, pois, de-finiria seu padrão de objetividade concernente a essa modalidade de acon-tecimento. E que se trata de um suposto arraigado na crítica moderna, econdicionado por suas concepções de objetividade, pode ainda ser aprecia-do pelo fato de que, para os antigos, a perspectiva do elemento de criaçãotucidideana não causava maior espanto ou rejeição, pelo contrário, enten-dendo mesmo a história como gênero literário, cabalmente afirmavam osdiscursos tucidideanos como “invenções”. Assim, Dionísio de Halicarnasso,em seu tratado crítico sobre Tucídides.

Mas, pergunta-se ainda Woodman, seria mesmo esse o ideal de exati-dão dos historiadores antigos? Quantos deles consagraram, em suas narrati-vas de caráter historiográfico, as reproduções, literais e completas, dos discur-sos historiados? Deteta, apenas, o caso de Catão que, nas Origens, inseriucópias de seus próprios discursos. Exceção altamente significativa, dada a ex-cepcionalidade de suas condições possibilitadoras. Assim, conclui Woodman,“discursos literais e historiografia clássica são termos contraditórios”.54

E, todavia, mesmo que não constituísse propriamente seu ideal dereconstituição narrativa historiográfica, a questão, senão o reclamo, da re-

de leitura do manuscrito tucidideano (tõn alethõs “legónton” em vez de tõn alethõs“lechthénton”).

54 Woodman. Rhetoric..., p. 13.

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produção exata do discurso efetivamente pronunciado colocava-se, de prin-cípio, para a história de Tucídides, pois ele faz partir suas considerações aesse respeito justamente da impossibilidade de realizá-lo. De alguma instân-cia, e de algum sujeito, o reclamo era postulado. Assim, os preceitos dasteorizações retóricas da sofística contemporânea, com Antifonte mesmo,mestre admirado e exaltado por Tucídides, o proclamam.55 E já Heródoto,ao introduzir sua exposição narrativa dos discursos dos três persas que deba-teram, à sucessão de Cambises após o massacre dos magos usurpadores, omelhor regime político a ser adotado, reclama enfaticamente a realidadefatual dos mesmos, apesar da incredulidade de alguns helenos.56

Seja como for, ideal ou não, a história tucidideana prescindiu um talmodo de reconstituição narrativa dos discursos. Porque era insuperável adificuldade posta pelo impedimento das limitações da capacidade mnemônicahumana, Tucídides descortina um modo outro de reconstituição dos discur-sos que a contorna e, assim, sela, desde o início para a historiografia antiga,a sua dissociação desse reclamo de objetividade.

Pelo modo proposto por Tucídides, permanece a condição fundanteda presença cognitiva que informa o ocorrido. Permanece também o pre-ceito, porém não o ditame, da precisão de reprodução das coisas efetiva-mente ditas nos discursos, só que, agora, reduzido apenas ao âmbito desua proposição discursiva global em termos de máxima proximidade pos-sível. Assim, enquanto dados de informe para a reconstituição narrativa, ohistoriador dispõe do que foram, para cada e todos os discursos presencia-dos, suas precípuas proposições gerais, formuladas pelo discurso como umtodo, em sua globalidade discursiva (tes xympáses gnómes tõn alethõs le-chthénton).57

55 Confira-se Antilogias, IV.1.56 Histórias, III.80.57 Para o entendimento de “tes xympáses gnómes” vejam-se: os comentários de Woodman,

referindo as análises de De Ste Croix, às p. 11ss; e as críticas a essas mesmas análisespor Swain (p.42ss) e por Proctor (p.151ss.).

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A partir dessa supostamente dada proposição ou desígnio geral decada particular performance discursiva (gnóme), o historiador, então, irácompor um parecer (dokeúo), pelo qual aprecia quais seriam as coisas espe-cialmente apropriadas que cada uma das partes discorreria acerca de cadauma das situações presentes, mantendo-se o mais próximo da proposiçãototal das coisas efetivamente ditas. Assim, a composição tucidideana desseparecer (re)constitui, então, em sua história, sucedaneamente o discurso efe-tivamente pronunciado.

Mas, o que entender por as coisas especialmente apropriadas (tà déontamálist’ eipein) para uma dada performance discursiva?

John Finley Jr., em um de seus estudos sobre o historiador58, formu-la o entendimento de que as concepções tucidideanas respeitantes à re-constituição dos discursos, efetivadas em sua narrativa, estejam impreg-nadas pelas orientações político-retóricas da prática discursiva sofística.Particularmente, assevera que tà déonta admite uma especial conotação,imbricadamente política e retórica: dá conta da estimativa e avaliaçãoconjectural que o orador particular, proponente de uma singular moçãopolítica individual por meio de uma dada performance discursiva, devetecer do quadro contextual circunstanciado – forças e elementos sociais eindividuais em jogo, princípios e orientações políticas em confronto,caracteres e comportamentos humanos envolvidos –, o qual bem cir-cunscreve o campo fatual objetivo de determinação histórica dessa pro-posição política individual. Assim, o orador, concatenando esse exameconjectural do específico contexto político-retórico em que se insere eintegra seu discurso, tenciona conformar sua força argumentativa segundoos melhores preceitos de êxito persuasório. É esse desígnio que o sabersofístico contempla: a retórica como instrumento de atualização de umpensamento analítico, embasador de uma política individual.

Então, na prática oratória sofística, a composição do discurso, en-quanto formulação discursivo-persuasória de uma definida proposição polí-tica (gnóme) individual, deriva conformativamente desse exame analítico

58 Finley Jr. (l947), p. 95-102.

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apreciador das coisas por sua situação contextual reclamadas, apropriadas,de serem ditas (tà déonta), tendo justamente em vista finalizar aquela propo-sição. De modo que, em princípio, esta singular gnóme de uma política indi-vidual bem responda pela apreciação analítica daquelas déonta.

Ora, a (re)constituição tucidideana dos discursos apresentados emsua narrativa parece supor essa mesma concepção sofística, apenas apre-sentando-a no seu sentido inverso de derivação, como, de resto, bem cabe àsua específica condição de reconstituição discursiva: dada a gnóme efetiva-da pelo discurso particular pronunciado, o que circunscreve uma certa pro-posição política individual bem definida (tal orador em tal ocasião), estimar,por uma análise retórica conjectural, os reclamos discursivos apropriados àssuas circunstâncias contextuais, ou seja, as déonta a que aquela gnóme res-ponde. Assim, deslindadas as interações que determinam a gnóme, dada eposta pelo discurso particular enquanto produto das déonta inferidas anali-ticamente, a narrativa do historiador (re)constitui as falas do discurso quepotencialmente atualizam tais interações.

Poder-se-ia, então, entender que o modo tucidideano de (re)cons-titui-ção dos discursos opera por meio de uma conformação de similaridade desituação discursiva, em que o historiador projeta o análogo movimento analí-tico de composição do discurso pelo orador original. Assim, ambos, quer ora-dor quer historiador, dispõem do que seja a particular e subjetiva proposiçãopolítica (gnóme) que o discurso almeja configurar retoricamente. Ambos, igual-mente, tecem uma percepção analítica do que seriam as condições objetivasdo contexto político específico a que essa proposição responde. Daí, definidoo fim ou propósito político do discurso, e determinadas suas condições depropriedade discursiva, o lógos retórico enquadra quais são as formulações delinguagem que a consecução daquele fim exige pelo nexo destas condições.59

É, portanto, no horizonte de uma apreciação analítica destas interaçõesentre a subjetividade de cada proposição política discursiva singular e a ob-

59 Confira-se, igualmente, a expressiva interpretação dada por Jaa Torrano para esta ques-tão: O sentido de Zeus, p. 160.

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jetividade de sua determinação contextual precípua, que Tucídides situa seuprincípio metodológico de reconstituição narrativa dessa particular modali-dade de acontecimento fatual.

A seguir, passa ao exame da reconstituição das ações:

“Já quanto às ações praticadas na guerra, preferi registrar não a partir deinformações casuais, e nem por minha apreciação, mas sim aquelas queeu próprio presenciara e também junto aos outros inquirindo a respeito decada uma com a exatidão que fosse possível. As apreendi penosamenteporque os que estiverem presentes a cada um dos acontecimentos nãodiziam as mesmas coisas acerca dos mesmos fatos, mas sim conformefosse sua inclinação por cada um dos lados, ou a sua memória”.60

A reconstituição narrativa das ações praticadas reclama, entendeTucídides, uma decisão axiológica (exíosa gráphein) que define a preferên-cia do procedimento adotado. Há procedimentos que são, de imediato, des-cartados, recusados. Por um lado, não consagrou o imediato acolhimentode notícias ou informes casuais vindos de quaisquer outros, que alcançam onarrador ao sabor do acaso (ouk ek tou paratychóntos pynthanómenos). E,por outro, não recorreu também à composição de um seu parecer pessoal(hos emoì edókei).

Antes, derivou as informações por duas vias, como aliás já o fizeratambém para a reconstituição dos discursos. Por um lado, para os aconteci-mentos por ele mesmo presenciados (hois te autòs paren), dispôs de suaobservação direta. Por outro, para aqueles a que não esteve presente, bus-cou, inquiriu,61 junto a outros (parà tõn állon epexelthón), que os haviampresenciado, seus relatos.

60 A guerra dos peloponésios e atenienses, I.22.2-3.61 Tucídides expressa essa sua ação de inteirar-se dos informes pelo verbo epexérchomai,

assim dotando-a da conotação, tanto própria do contexto guerreiro quanto judiciário,de “ir em perseguição”, daí nossa tradução por “inquirir”.

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De modo que, também para a reconstituição narrativa das ações,similarmente à reconstituição dos discursos, afirma Tucídides o princípiodo primado da presença cognitiva: o provimento dos informes é condicio-nado ao imperativo desse critério fundante.

Mas, nem bem afirmado o princípio fundante da reconstituição nar-rativa, logo decorre uma aporia resultante do reclamo da exatidão, en-quanto atributo qualificador dos relatos acolhidos.

Primeira questão: sobre quais informes incide tal reclamo? Algunscríticos entendem que, sobre todos, tanto os relatos de outros quanto asobservações dele mesmo, Tucídides.62 Tese esta, entretanto, cuja melhorpropriedade interpretativa solicita a correção do texto: hekatéron porhekástou; e ainda desfavorecida porque afrouxa a estreita conexão quiásticaarticuladora da reflexão tucidideana.63 Assim, reclamo antes incidente so-bre os relatos de outros, como de resto bem o circunscreve o campo mes-mo da expressão tucidideana (kaì parà tõn állon hóson dynatòn akribeíaperì hekástou epexelthón).

Segunda questão: qual o conteúdo desse reclamo, que modalidadede precisão instaura? Uns supõem tratarem-se apenas de vagos imperati-vos subjetivos, antes respeitantes aos zelos de acuidade informativa dohistoriador, sempre preocupado com a questão da verdade.64 Outros jáafirmam a vigência do preceito de exatidão fatual, o mesmo antes reclama-do no exame das tradições antigas ou no da reconstituição dos discursos.65

E outros ainda, imaginam operações detalhadas de “checagem informati-va dos relatos, ponto por ponto, testando-os” pelas mais variadas realida-des do conhecimento tucidideano.66

62 Vejam-se: Gomme, p. 142-3; Swain, p. 41.63 J. de Romilly, p. 15, nota 1; Woodman, p. 52.64 Vejam-se os comentários de Woodman, p. 13.65 Veja-se Edmunds, p. 156.66 Veja-se Connor, p. 28.

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Todavia, Tucídides mesmo revela apenas, não as soluções propostas,mas, antes, as dificuldades encontradas.67 Assim, logo afirma a restriçãolimitadora com que se depara tal reclamo de precisão informativa: inquiriu arespeito de cada ação junto a outros com a exatidão que fosse possível. Hálimites de possibilidade a circunscrever o atendimento dessa exigência. E, amelhor consubstanciar esse reconhecimento das dificuldades, expõe a parti-cular aporia implicada: os que estiveram presentes a cada um dos aconteci-mentos não diziam as mesmas coisas acerca dos mesmos fatos, mas, sim,conforme fosse a sua inclinação por cada um dos dois lados, ou a sua me-mória.

Tucídides aponta como aporia informativa básica o fato da diversida-de discordante de relatos concernentes a uma unicidade fatual: sobre osmesmos fatos, pessoas diferentes apresentam relatos divergentes. Para essefenômeno deteta duas razões limitadoras da precisão informativa. Uma limi-tação tem a ver com as disparidades de capacidade mnemônica das pessoasinformantes dos acontecimentos, vicissitude a que já aludira também no querespeita à reprodução memorizada dos discursos, e insuficiência genérica,própria da condição humana.

Já a outra limitação advém, mais intrinsicamente, do fato mesmo dapresença cognitiva, imposta como condição informativa. Pois as pessoasque presenciaram os acontecimentos, os presenciaram porque deles partici-pavam. E deles participavam porque compunham um dos dois lados envol-vidos no conflito bélico. Assim, viram os acontecimentos segundo as precípuasinclinações definidas por essa participação. Então, sua percepção e relatodos mesmos são determinados por essa parcialidade comprometedora, nãoapenas enquanto subjetividades diversas, mas, sobretudo, porque inerente-mente divergentes, conflitantes em sua visão dos fatos.

Defrontado pelas aporias implicadas pelo princípio da presença cog-nitiva, no que respeita à reconstituição narrativa das ações praticadas na

67 Já Woodman, p. 16, chamou a atenção para este entendimento do texto.

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guerra, o historiador, de nome Tucídides, declara tê-las superado: “penosa-mente as apreendi”.

Como as superou, por quais procedimentos e operações analíticas,Tucídides não diz. Aqui, mais do que tudo, imperam os silêncios do estiloelíptico tucidideano. Mas, tal é mesmo a intriga tramada pela arquitetura delinguagem e pensamento desta sua reflexão metodológica, toda ela coman-dada por uma formulacão quiástica. Para a reconstituição dos discursos,principiara declarando a dificuldade, posta pelo reclamo da exatidão, paraque pudesse acolher o procedimento da reprodução dos informes dos rela-tos. Então, contornou-a, firmando nominalmente a composição dos mes-mos, segundo seu parecer pessoal. Passando à reconstituição das ações,inverteu os procedimentos. Agora, dispensou este justo ato nominal de emis-são de parecer pessoal, preferindo, ao invés, acolher os relatos. E bem osacolhendo, firmou agora o reclamo da exatidão. Daí, terminou por declararas dificuldades.68

68 Esta problemática será retomada no ensaio seguinte “A retórica do método”.

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5. Arqueológico (a questão do início) eEtiológico (a questão da causa)

“Começaram-na atenienses e peloponésios com o rompimento do Tratadodos Trinta Anos, por eles firmado após a captura da Eubéia. A expor porque razão o romperam, discorro antecipadamente em primeiro lugar so-bre as causas e as divergências, de modo que não venha alguém a in-vestigar de onde surgiu uma tal guerra para os helenos. Pois, entendo quea causa mais verdadeira, embora menos manifesta nas declarações, foique os atenienses, tornando-se poderosos, inspiraram temor aoslacedemônios forçando-os à guerra. Mas são as seguintes as causas mani-festamente declaradas pelos dois lados, a partir das quais eles romperam otratado e realizaram a guerra”.1

A obra da História tucidideana, uma vez seletivamente distinguido ofato que define seu objeto temático – a guerra dos peloponésios e atenienses–, bem fundamentado em seus princípios axiológicos, e já também arrazoa-dos os princípios metodológicos que firmam a sua verdade a atender aosprincípios teleológicos, pode então ser mesmo iniciada pelo autor em seudesempenho propriamente narrativo. Por onde começar? Pelo começo mes-mo. Iniciemos do princípio, dirão depois os filósofos a formular o início desuas obras. De modo que o início da narrativa do fato é posto pela narrativado início fatual que o principia. Assim se determina a arché da narrativa aformular o princípio arqueológico.

Mas, posta a questão do início do fato, enquanto as ações que mani-festam seu principiar, de imediato impõe-se a narrativa da sua causa (aitía)

1 A guerra dos peloponésios e atenienses, I.23.4.

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de determinação: aquele princípio fatual a partir do qual, e pelo qual, sedesencadeia a efetivação do fato. Então, o princípio arqueológico implicada-mente desdobra-se no princípio etiológico, de modo que a narrativa princi-pia, antes de tudo e em primeiro lugar, narrando a questão da causa.

Assim também o consagrou o Proêmio herodoteano das Histórias:

“Heródoto de Túrio faz esta exposição de sua inquirição a fim de que nemas criações humanas se desvaneçam com o tempo, e nem grandiosas emaravilhosas obras realizadas, sejam pelos helenos sejam pelos bárbaros,fiquem sem fama; e, entre outras, também por que causa eles guerrearamuns contra os outros”.2

Mas, ainda uma vez, fora também já o épos que inaugurara a impo-sição narrativa de tais princípios, como bem o revela a Ilíada:

“A ira canta, deusa, de Aquiles Pelíade,funesta, que inumeráveis sofrimentos aos aqueus trouxe,e muitas almas potentes ao Hades precipitoude heróis, deles fazendo presas de cãese de aves todos, e cumpriu-se o conselho de Zeus,desde que primeiro se apartaram brigadoso Atrida, rei de homens, e o divino Aquiles.Quem então dos deuses mesmos em discórdia os moveu a contender?O filho de Zeus e Leto. Pois, ele, com o rei irado,maligna pestilência no exército lançou, e pereciam os guerreirosporque a Crises, o sacerdote, desonrara o Atrida”.3

Uma vez identificado, pela devida Invocação à Musa, o fato a sernarrado por seu canto – a Ira de Aquiles –, o aedo especifica também o inícioepisódico por que esse fato começa: a dissensão querelenta entre Agamêm-non e Aquiles. Assim se demarca o princípio arqueológico que determina a

2 Histórias, I.1.3 Ilíada, I.1-12.

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arché do canto, de modo que o início da narrativa é composto pela narrativado início.

Mas logo o poeta se interroga por nomear qual intervenção divinadesencadeou os acontecimentos, movendo aqueles heróis à ação? Essa in-tervenção foi o grassar da peste apolínea a dizimar as hostes aquéias. Mani-festação fenomênica da ira divina que, por sua vez, tem sua causa originadoraem outro episódio: fora a desonra cometida por Agamêmnon contra Crises,seu sacerdote, que mobilizara o furor colérico de Apolo contra os gregossitiantes de Tróia.

Assim, o Proêmio da Ilíada, por suas declarações enunciativas, teceum encadeamento regressivo de acontecimentos a alcançar a origem dofato a ser narrado por seu canto singular: a Ira de Aquiles começa peladissensão entre o Pelida e Agamêmnon, episódio este desencadeado pelapeste de Apolo, por sua vez originada pela desonra de Crises pelo Atrida. Demodo que, então, o princípio arqueológico, ao dizer a arché enquanto inícioda narrativa, implica e se desdobra em princípio etiológico, a também dizer aaitía enquanto causa que identifica sua origem fatual.

Alcançada a origem por tal encadeamento regressivo tecido peloProêmio, este termina e pode bem começar a narrativa mesma, segundo aprogressiva sucessão dos acontecimentos que compõe o fato narrado. E,assim, Homero conta como Crises veio ter ao acampamento aqueu a resga-tar sua filha; como foi ultrajantemente rechaçado por Agamêmnon; comoentão suplicou o sacerdote a Apolo, reclamando a vingança divina; como aira do Deus atendeu às suas súplicas, fazendo por suas setas grassar a pesteentre os aqueus; como Hera, preocupada com a causa helênica, moveuAquiles a convocar a assembléia dos aqueus; e como, então, lá dissentiramem discórdia o Pelida Aquiles e o Atrida Agamêmnon, a conflitarem quantoà devida afirmação da honra heróica, consoante à preeminência ou prima-do de suas respectivas figuras régias.

E, ao assim narrar o princípio arqueológico, que diz a arché enquantoorigem e causa, o poeta discorre sobre a questão da arché enquanto poder,

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imbricação conceitual que similarmente o Proêmio tucidideano consagra aonarrar a causa original da guerra entre peloponésios e atenienses como oadvento do império de Atenas.

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VIII. A retórica do método *

(Tucídides I.22 e II.35)

Ao encerrar, no Proêmio de sua obra histórica, aquelas declaraçõesde princípios narrativos que, nós modernos, entendemos tradicionalmentepor “metodológicas”1, Tucídides tece uma reflexão final de alcance umtanto intrigante. Como já o fizera logo antes, no tocante à reconstituiçãodos discursos pronunciados durante a guerra, também para as ações pra-ticadas o historiador firmou a autópsia 2 como princípio de derivação e,pois, fundamentação, informativa de sua história. Ora, mas justamente ofato da presença aos acontecimentos, assim imposta como condição infor-mativa de seu relato, implicou um impasse para a devida reconstituiçãodos mesmos pelo historiador, pois:

* Originariamente publicado em português na Revista de História, 138 (1998): 9-16; umaversão em inglês publicada por The ancient history bulletin, 12.3 (1998): 106-112.

1 A abordagem mais sistemática dos princípios da narrativa – onomasiológico (a questãodo sujeito), axiológico (a questão da grandeza), metodológico (a questão da verdade),teleológico (a questão da utilidade), arqueológico (a questão do início) e etiológico (aquestão da causa) –, que as histórias herodoteana e tucidideana ambivalentementeherdam da epopéia homérica, tanto os desdobrando quanto deslocando em sua obras,encontra-se em Murari Pires (1995, p. 6-20).

2 Para a problemática da autópsia, como princípio de fundamentação informativa dahistoriografia grega, vejam-se o artigo de Nenci e, mais recentemente, a obra de Schepense dois ensaios de F. Hartog (L’ oeil de Thucydide e o prefácio da edição de 1991 doMiroir d’Hérodote), todos citados na bibliografia.

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“Os que estiveram presentes a cada um dos acontecimentos não diziam asmesmas coisas acerca dos mesmos fatos, mas sim conforme fosse ou a suainclinação por um dos lados ou a sua memória” (A guerra dos peloponésiose atenienses, I.22.3).

O historiador acusa, aqui, como aporia informativa básica para asua narração dos acontecimentos bélicos, o dilema posto pela diversidadediscordante de relatos entretanto concernentes a uma unicidade fatual: sobreos mesmos fatos, distintos observadores dão informes divergentes3.

O impasse maior, assim detetado, é propriamente inerente às deter-minações da situação mesma de presença cognitiva à ocorrência dos acon-tecimentos. Pois, as pessoas que presenciaram os acontecimentos, os pre-senciaram porque participavam de suas ações. E eram partícipes porqueengajados por algum dos lados, diversamente envolvidos nas disputas doconflito beligerante. Então, ao ensejo determinante dessa sua participação,viram os fatos (pre)dispostos por suas inclinações pessoais e, assim, conso-ante a ótica contaminada de seu engajamento. De modo que sua percepçãodos fatos, e seu condizente relato, compromete-se por essa parcialidade deseu olhar, não apenas e tanto, porque se tratem de subjetividades diversas,mas, sobretudo, porque, devido a engajamentos antagônicos, respeitam aenfoques inerentemente conflitantes de constatação informativa dos aconte-cimentos presenciados.

E, todavia, assim advertidos, nós leitores, de tais aporias e impasses,constatamos – um tanto perplexos, algo decepcionados, ou por vezes mes-mo incrédulos, senão desconfiados4 – que pouco, se quantificado pelo totalda obra, dessa dialética dos informes fatuais comparece expressamente ins-crito na narrativa tucidideana dos eventos bélicos, não mais que uma deze-na de passagens.

3 Veja-se Parry, 1988, p. 103.4 Confiram-se: Westlake, 1977, p. 34; Woodman, 1988, p.16; Hornblower, 1987, p. 22;

Cogan, 1981, p. 12-13.

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Assim, por duas vezes, Tucídides adverte a existência de relatosconflitantes dos acontecimentos então narrados.

Há o registro (Ibid., II.5) da dicotomia de versões – dos tebanos, deum lado, e dos platenses, de outro – quanto aos termos que uns e outrosalegavam ter acertado entre si para a soltura dos guerreiros aprisionadospelos últimos – entretanto por eles no fim massacrados –, com aqueles acu-sando a transgressão do juramento comprometido pelos platenses, contraestes negando terminantemente que tivessem prometido libertá-los de ime-diato e mesmo que o tivessem formalmente prestado.

Há o apontamento (Ibid., VIII.87) da dificuldade de conhecer-se overdadeiro motivo do deslocamento de Tissafernes a Aspendo, face aoscomprometimentos bélicos de sua aliança com os lacedemônios: suposta-mente lá ele reuniria a frota fenícia para utilizá-la, compondo o esforço deguerra espartano, propósito, todavia, assim não consumado naquela oca-sião! Por um lado, conheciam-se as razões declarativas atribuídas ao pró-prio Tissafernes, mas, de outro, denunciava-se a falsidade das mesmas,segundo algumas versões que especulavam diversamente seus reais in-tuitos.

Mais algumas outras vezes, Tucídides declara não poder precisar aplena reconstituição do acontecimento narrado, ou porque provido ape-nas por dados suspeitos ou mesmo porque deles carente.

Há a admissão (Ibid., V.68) do desconhecimento dos montantes nu-méricos exatos dos contingentes que se enfrentaram na Batalha de Mantinéia,falha informativa aqui devida a que, por um lado, os próprios lacedemôniosocultavam os seus, justamente porque antes obnubilavam os segredos desuas realidades institucionais; já, de outro, ocorria o inverso, por dados for-necidos suspeitos, com a gabolice dos homens exagerando as coisas quelhes diziam respeito. Conseqüentemente, Tucídides (Ibid., V.74) aponta ain-da a dificuldade de verdadeiramente precisar o número de espartanos mor-tos naquele combate, atendo-se, pois, ao montante de baixas de que entãose falava.

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Há a censura crítica tucidideana (Ibid., III.113), que recusou informaro número de ambraciotas mortos na campanha de Anfilóquia, assim afas-tando de sua obra tais suspeitas de relato inverídico, pois era totalmenteinacreditável o montante que lhe fora apresentado, se avaliado contra apopulação total da cidade.

Há a alegação tucidideana (Ibid., VII.44) da dificuldade de discerniras vicissitudes do assalto desastroso, cometido pelos atenienses contra asfortificações siracusanas das Epípolas, nem as tropas agressoras nem as de-fensoras podendo relatá-las com clareza, justamente porque turvada suavisão pelas trevas noturnas do combate.

Há a confissão tucidideana (Ibid., VI.60) da ignorância generalizadaquanto aos verdadeiros culpados da mutilação dos Hermas de Atenas àsvésperas da expedição siracusana, pois, pelo processo mesmo que ajuizarao caso, não se pudera ter certeza de que as revelações, então obtidas pelasdenúncias de um dos próprios acusados, fossem verídicas ou, pelo contrá-rio, falsas.

Há a observação tucidideana (Ibid., VII.87) da dificuldade de preci-sar o total de atenienses que caiu prisioneiro, em Siracusa, o historiadorpodendo apenas afirmar que não fora inferior a sete mil.

E há a constatação tucidideana (Ibid., III.87) do desconhecimento donúmero de atenienses – que não hoplitas ou cavaleiros – abatidos pelo re-crudescimento do surto de peste na cidade no terceiro ano da guerra.

Diversamente de Heródoto5, a narrativa historiográfica tucidideananão faz aflorar a dialética de suas fontes informativas, e tampouco revela os

5 “...ao passo que Heródoto associa freqüentemente o leitor a suas investigações, lhedesvenda as origens e lhe dá a conhecer sua próprias reflexões e arrazoados, Tucídideslimita-se, manifestamente, a descrever de uma vez por todas seu método histórico-crítico, e a expor, para o restante, o resultado de suas pesquisas” (Schepens, 1980, p.96). “...Tucídides difere de Heródoto ainda a outro respeito. Heródoto freqüentementenos informa sobre as versões conflitantes de suas fontes. Nós podemos ver os dilemasque ele enfrentou ao escolher entre elas e os critérios que ele adotou ao ajuizar seu

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procedimentos de sua metodologia crítica porque derivou a reconstituiçãodos fatos consagrados na redação de sua história.6 “Na narração propria-mente dita”, observa Butti de Lima (1996, p. 96), “o historiador, enquantohistoriador, está ausente”, e nela deparamos antes “a apresentação diretados fatos”. O discurso narrativo tucidideano é predominantemente, senãoavassaladoramente, composto por impressões de apenas resultados fatuais,quaisquer que sejam as identificações dos informantes e quaisquer que se-jam as operações analíticas de uma sua suposta crítica averiguadora de ve-racidade.7

Perpassa, assim, pela obra um certo silêncio metodológico operadopor um ocultamento do historiador8, o qual, antes do que integrar a dialética

valor. Ocasionalmente, ele confessa dúvidas pessoais quanto à verdade de um ato oude uma história. Outras vezes, ele deixa o leitor decidir no que acreditar, dispondo-seapenas a um papel de repórter. O método de Tucídides é bem diferente. O que Tucídidesapresenta são as conclusões que ele alcançou. Ele, raramente, sequer identifica suasfontes ou especifica pontos em que elas concordavam ou discordavam; nem expõe oscritérios que ele usou para ajuizar a verdade ou para expressar quaisquer dúvidas quepossa ter tido (uma passagem como 8.44 é incomum). ... O resultado, então, é queTucídides nos apresenta a fachada de um edifício tão completamente acabado que nóspodemos apenas conjecturar em que alicerces ele se apóia e qual é a estrutura interiorque suporta o exterior por nós visto” (T. J. Luce, Greek..., p. 71).

6 Razão por que, mais recentemente, as projeções da crítica moderna de reconhecimentode sua identidade historiográfica nos historiadores antigos andaram saudando a “melhorcientificidade metodológica” herodoteana, em prejuízo da mais afamada tucidideana,veleidade esta de ajuizamento, entretanto, não imune a certos percalços, pois, nem sem-pre “os princípios que levaram Heródoto a indicar suas fontes correspondem certamenteàqueles que hoje se definem como científicos” (Butti de Lima, 1996, p. 102).

7 “A fórmula sucinta do diz-se que (légetai) basta para transpor a narração do nível dosfatos ao da história” (Butti de Lima, 1996. p. 96). “Mas, quando a história se tornapesquisa da verdade, o narrador não tem outra coisa a fazer que retirar-se ... Ele é estenarrador ausente, que deixa falar os fatos: objetivo” (Hartog, 1982, p. 26).

8 Orwin (1994, p. 5) lembra, em epígrafe à sua obra, o elogio que Rousseau dirige aTucídides no Emílio: “Longe de interpor-se entre os acontecimentos e seus leitores, elese oculta. O leitor não mais acredita que lê; ele acredita que vê”.

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de sua heurística, a oblitera, e antes do que expor quais sejam as determina-das regras e preceitos de sua crítica, dá esta apenas por pressuposta e realiza-da. Pois, tudo o que Tucídides revela nesse sentido reduz-se à mínima decla-ração programática de seu dito capítulo “metodológico”: na reconstituçãodos acontecimentos o historiador almejou sempre alcançar a precisão, acribia9.

Diante de uma tal idiossincrasia de silêncio metodológico, podemos– nós, crítica moderna –, envidar esforços pela (re)descoberta dessa meto-dologia tucidideana não bem revelada e, entretanto, consumada por suaobra historiográfica, assim melhor identificando por quais regras e precei-tos, ou que demais critérios, de crítica de veracidade Tucídides analitica-mente operou o ajuizamento dos relatos informativos, então coletados demodo a superar os impasses que, para tanto, haviam sido pelo historiadorexpressamente denunciados.10

Podemos, então, assinalar que Tucídides, muito provavelmentepolemizando contra Helânico11, propugna por um item fundamental daconsciência metodológica historiográfica (pelo menos, certamente para nós

9 Para a questão do entendimento da concepção tucidideana de acribia como precisãoveja-se, por último, o minucioso estudo de Crane, 1996, p. 50-65. As reflexões de G. S.Shrimpton, todavia, advertem contra a (con)fusão de conceitos, que também nestaquestão pode estar operando a crítica moderna: “Direi que os olhos de um historiadorantigo não são os de um empirista que experiencia, testa e verifica, mas os de umatestemunha que viu e lembra. Os historiadores antigos preservavam a memória antesdo que praticavam a história como ela é feita hoje em dia. Assim, eles não mensuravama precisão histórica por padrões empíricos” (History..., p. 52). Confira-se, por fim, orecente artigo deste último crítico na The ancient history bulletin, 1998,3 (Accuracy inThucydides).

10 Nesse sentido veja-se, por último e sempre, apuradamente equilibrado em suas apre-ciações críticas, o estudo de Butti de Lima, L’ inchiesta e la prova, 1996.

11 As passagens tucidideanas que referenciam a problemática cronológica, e nela indiciama polêmica com Helânico, são: 1.97 e 5.20. Nesse sentido, confira-se o estudo de J. D.Smart citado na bibliografia; S. Hornblower (1994: 25), todavia, insiste em que tam-bém neste caso a crítica de Tucídides visa às imprecisões da historiografia herodoteana.

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modernos) ao ordenar sua narrativa por meio de um sistema cronológicoque, no seu entender, melhor atende aos reclamos de precisão, já que situaa seqüência dos acontecimentos consoante os ritmos temporais impostospelas realidades dos fatos mesmos: as estações precípuas das campanhasbélicas cindidas por verões e invernos.12

Podemos, ainda, imaginar o historiador Tucídides a, zelosa e persis-tentemente, colher mesmo os relatos divergentes, de ambos os lados, paraconfrontá-los, visando a alcançar sua veracidade fatual unitária.13 Pode-mos, ainda, projetar que também para a reconstituição dos acontecimen-tos do tempo presente da Guerra do Peloponeso, Tucídides fez valer osmesmos preceitos de crítica fatual, já antes por ele mesmo reclamadospara o exame das tradições antigas, dos tempos passados.14 Neste caso,em especial, toda a reconstituição fatual da obra tucidideana responderia

12 No âmbito dessa problemática confiram-se as considerações de Virginia Hunter (Pastand process in Herodotus and Thucydides, p. 36-38; 43-49; 222-225; 237-258; 316-319) a respeito da concepção tucidideana, alertando especialmente que a mesma impli-ca categorias de temporalidade e noções de acontecimento histórico, que não são idên-ticos aos supostos pela moderna reflexão historiográfica. E, embora por seu reclamo demaior precisão, o sistema tucidideano desloque o tradicional, que cronologiza os acon-tecimentos pela identificação do ano oficial (arcontado, eforato etc.), é antes este últimoque melhor se adequa à ordenação dos dados pela nossa moderna referenciaçãocronologizante dos fatos históricos antigos. Por outro lado, parece que a cronologiatucidideana, a qual opera pela distinção das categorias temporais de verões/invernos,dado que tais são os tempos mesmos que definem os ritmos de efetivação das açõesbeligerantes (campanha contra inatividade), lembra antes a “cronologia” suposta pelaIlíada homérica de dias/noites a ritmar a sucessão dos enfrentamentos bélicos troianos.Ainda sobre a problemática do sistema cronológico tucidideano, veja-se a propostainterpretativa de G.S. Shrimpton (Time, memory and narrative in Thucydides), enqua-drando-o em termos de uma história memorativa.

13 Confira-se Proctor, 1980, p. 16.14 Confiram-se: Connor, 1984, p. 27-28; Plant, 1988, p. 202; Loraux, 1984, p. 148 e 152;

Edmunds, 1975, p. 156; Butti de Lima, 1996 p. 116 e p. 127-170 (especialmente, p.148-151).

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pelos procedimentos de crítica de veracidade demonstrados pelo historia-dor quando entendeu precisar a melhor correção do conhecimento históri-co dos fatos da tirania dos Pisistrátidas em Atenas, primeiro aludidos nadita seção metodológica (1.20) e depois, mais detalhadamente, expostosna narrativa dos episódios inaugurais da expedição ateniense à Sicília (6.54-59). E podemos, ainda, especular operações detalhadas de verdadeiraschecagens informativas dos relatos, ponto por ponto, testando-os por meiodas mais variadas ordens de realidades englobadas pelo conhecimentotucidideano.15

E, todavia, por todas estas três vias de entendimento, de uma (re)des-coberta da metodologia historiográfica tucidideana de reconstituição fatual,não estaríamos antes assim projetando-lhe a nossa moderna? Gordon S.Shrimpton situou primorosamente essa intriga epistemológica:

“Os teóricos modernos enfatizam a coleta, a verificação e a análise dasevidências documentais. Os antigos concentravam-se no estilo e nas idéiasgerais em torno das quais a narrativa histórica era organizada. Isso podeser tomado como uma evidência prima facie de que faltava-lhes qualquernoção de investigação histórica no sentido moderno. O problema é queDionísio Halicarnássio, Cícero e suas fontes podem não ter entendido Tu-cídides. Seria possível que Tucídides tenha sido não meramente um gênio,mas um ‘super-cérebro’ incompreendido por todos os antigos que o leram,um inventor de um verdadeiro método histórico, um espírito moderno emtodos os seus aspectos, muito avançado em relação a seu tempo para quesuas realizações fossem entendidas por ou que tivessem algum efeito nospensadores de sua época? A maioria dos leitores contemporâneos corrediretamente para as famosas considerações de I.22, uma passagem que é,geralmente, considerada como uma revelação consciente dos procedimen-tos de investigação do historiador. Minha argumentação será no sentidode que isto não é o estabelecimento de um método de investigação, mas adescrição tucidideana de seus métodos e objetivos literários...As afirma-ções de Tucídides soam como as do moderno racionalismo, mas o racio-

15 Confiram-se: Connor, 1984, p. 27-28; Cogan, 1981, p. 12-13.

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nalismo de Tucídides não deve nos levar a pensar nele como um teóricodo método histórico, um pesquisador de documentos moderno, um Leo-pold Ranke antes de seu tempo. Considero Tucídides um historiador me-morativo, e não um historiador empírico científico, apesar da aparentemodernidade de seu estilo e apresentação”.16

Nos fluxos e refluxos desses estudos, assim, mais ou menos diversa-mente, tendo por pano de fundo as vicissitudes das projeções modernas deidentificação da obra discursiva tucidideana bipolarizada pela contraposiçãode categorias “ciência” versus “arte”17, delineia-se, mais recentemente, umacerta tendência interpretativa que envida ressaltar no “silêncio metodológi-co” tucidideano respeitante à reconstituição dos acontecimentos bélicos aeficácia de uma retórica da objetividade.18

E, todavia, assim resgatando dos silêncios da obra o método por elasuposto, desviamos os ajuizamentos de nossa avaliação, de modo que aca-bamos antes por tomar em consideração justamente aqueles argumentosque não são os expressamente declarados pelo próprio Tucídides

para a apreciação daquelas aporias destacadas por sua reflexão decrítica metodológica. Assim, lembramos a proposta do sistema cronológicotucidideano, que certamente atende a um reclamo de acribia narrativa, po-rém não é essa proclamada virtude historiográfica de sua obra que Tucídidesmesmo então alega. Ou, assim, projetamos para a temporalidade do pre-sente a metodologia crítica que Tucídides, entretanto, avoca expressamentepara o exame do tempo passado, de cuja reconstituição sua história antes se

16 G. S. Shrimpton. History..., p. 42 e 46.17 Vejam-se os apontamentos gerais dados por Connor, 1984, p. 4-6, mais Dover, 1983,

T. J. Luce (Greek..., p. 80) e também por Orwin, 1994, p. 7-8.18 Vejam-se, por exemplo: Hartog, Oeil..., 1982, p. 26; Loraux, 1984; Woodman, 1988,

p. 23; Crane, 1996, p. 27-29; Butti de Lima, 1996, p. 97-98 e 126. Tendência, entretan-to, que suscita já algumas advertências críticas: Butti de Lima, 1996, p. 116s e 126-128;Desideri, 1996, p. 973-974.

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dissocia. Então, por tais argüições nós, críticos modernos, por um lado, ouirrelevamos ou preterimos certas declarações por que Tucídides mesmo ex-pressamente diz quais são suas advertências de crítica metodológica, firman-do-as no lugar de arrazoado discursivo, assim precipuamente por ele consa-grado (1.20-22); para, por outro lado, buscarmos preencher os vazios, assimdecorrentes, com considerações outras que essa reflexão metodológica, en-tretanto, ou apenas diz antes exteriormente à sua precípua argumentaçãodiscursiva ou até mesmo contraria.

Pois, Tucídides mesmo, em seu texto, revela apenas e tão somente,não as soluções por ele precipuamente alcançadas, mas antes as dificulda-des por ele “metodologicamente” advertidas. Como as superou, por quaiseventuais procedimentos e operações analíticas, Tucídides não diz. Aqui,mais do que tudo, imperam os silêncios do estilo elíptico tucidideano.

Não haveria, então, ainda lugar para interrogarmos também justa-mente outras razões desse silêncio, e inquirir por algum seu sentido na tramamesma do discurso “metodológico” tucidideano? Pois, tal silêncio e elisãonão é tanto algo a ser estranhado, pelo contrário, eles condizem mesmo coma intriga tecida pela própria arquitetura retórica de formulação de pensa-mento dessa sua reflexão metodológica, toda ela comandada por uma orde-nação de natureza quiástica, plena de figuras de antíteses e de reversõesassertivas.19

Pois, inicialmente, quando tratava da reconstituição dos discursos,Tucídides principiou suas considerações declarando quais eram as dificulda-des, justamente postas por um reclamo de acribia, dificuldades estas de talmonta que inviabilizaram o procedimento narrativo de simples reproduçãodos relatos recolhidos junto aos informantes. Então, postas tais dificuldades,o historiador contornou esse primeiro impasse firmando que ele mesmo,

19 Para T. J. Luce “a antítese é o aspecto mais característico da escrita tucidideana” (Greek...,p. 72). Nesse sentido, entre outros, vejam-se os estudos de Hammond, 1952; Ellis,1991; Woodman, 1988; Almeida Prado, 1972; e Murari Pires, 1995.

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nominalmente, apreenderia, por seu parecer, a realidade dos discursos, fun-dando-a a partir da gnóme efetivada por cada um e pautando-se pela acribiapossível de aproximação do que fora realmente dito. Depois, passando ago-ra à questão da reconstituição das ações, ou seja, dessa categoria de aconte-cimentos contrapositiva aos discursos, Tucídides reverteu os procedimentosadotados. Agora, ao revés do que fez para os discursos, dispensou seu atonominal de emissão de um parecer pessoal enquanto sujeito da narrativa,preferindo, ao invés, acolher os relatos dos informantes, justamente dispen-sados no caso dos discursos. E, assim, bem os acolhendo, lembrou nova-mente, como para os discursos, que também sobre eles imperava o reclamoda acribia. Daí, terminou por declarar quais eram então as dificuldades.20

Em síntese, para os discursos aludiu às dificuldades para apresentar as solu-ções; já para as ações, aludiu às soluções para bem realçar, pelo contrário, asdificuldades.

Ora, mas uma análoga intriga retórica tramada pela obra narrativatucidideana encontra-se também no Proêmio do célebre “Discurso Fúne-bre”, atribuído a Péricles.21 Nesse seu pronunciamento de abertura, o dis-curso marca, em relação à própria prática institutional da Oração Fúnebreem honra dos guerreiros que tombaram pela cidade, uma reivindicação deoriginalidade crítica22. Assim, ele começa contestando e, pois, por princípio,divergindo frontalmente do que se declara ser a praxe de iniciar a OraçãoFúnebre tecendo louvores ao legislador que instituiu tal prática:

“A maioria dos oradores que me precedeu neste lugar louva aquele queintroduziu esta alocução no cerimonial de costume, considerando como

20 Já Woodman chamou a atenção para este ponto: “Observe-se que a ênfase é total-mente colocada sobre a dificuldade do processo antes do que sobre os resultados al-cançados” (1988, p. 16).

21 Entre outros, vejam-se os comentários de Gaiser, 1975, p. 24-27; Parry, 1981, p. 160 e,especialmente, de Loraux, 1981, p. 232-241.

22 Já destacado por Orwin, 1994, p. 16.

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belo que, no momento de seu enterro, as vítimas da guerra sejam assimcelebradas. De meu lado, estimaria suficiente que, para homens cujo valortraduziu-se em atos, fossem prestadas homenagens igualmente por atos,como vedes que se faz hoje nas medidas oficiais aqui tomadas para seusepultamento. Os méritos de todo um grupo não dependeriam de um únicoindivíduo, cujo talento maior ou menor lhes coloca em causa o crédito. Poisé difícil adotar um tom justo, num assunto em que a simples apreciação daverdade encontra penosamente bases seguras: bem informado e bem dis-posto, o ouvinte pode muito bem julgar a exposição inferior ao que eledeseja ou sabe; mal informado, pode, por inveja, estimá-lo exagerado, quandoaquilo que ele ouve ultrapassa suas próprias capacidades; pois não se tolerailimitadamente elogios pronunciados a respeito de um terceiro, cada um ofazendo na medida em que se acredita capaz de realizar, ele mesmo, osfeitos que ouve relatar; além disto, com a inveja, nasce a incredulidade.23

O discurso inaugura-se, pois, contestando por princípio a praxe que,pelo louvor que ela presta ao instituidor da oração fúnebre, aceita inquestio-nadamente a propriedade da mesma. Ele, pelo contrário, assinala sua singu-laridade denunciando-a duplamente. Antes de mais nada, a instituição énão só desnecessária quanto equivocada. Desnecessária porque bastam ospróprios atos constituintes do cerimonial de sepultamento para manifestar oreconhecimento do valor das ações e feitos dos guerreiros mortos. E equivo-cada porque, ao colocar esse reconhecimento do valor guerreiro consuma-do em atos na dependência do talento retórico do orador que os celebra,corre-se o risco de, paradoxalmente, não se reconhecer tal valor, mas simcolocá-lo sob suspeição.

E, mais ainda, a instituição é totalmente inadequada por si mesma,dada a aporia insolúvel, própria do empreendimento que ela, todavia, sepropõe, pois a arte da fala, a techné discursiva, não comporta habilidadesuficiente para superá-la: qual o tom justo a ser empregado enquanto elogio,de forma que este elogio seja apreciado como a adequada manifestaçãodiscursiva de reconhecimento daquele valor consumado em feitos? Como

23 II.35.1-2. A partir da tradução francesa de Jacqueline de Romilly, 1962, p. 2

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encontrar a medida de elogio que responde com justeza pelo valor dos feitoscumpridos? Ora, descortina-se um horizonte de possibilidades alternativaspara o orador que são antes impossibilidades, pois o coloca num impasse,dado que ele fica inelutavelmente condenado a desagradar seus ouvintes:ou se acusa a insuficiência do elogio, quando este desgosta aqueles que,justamente conhecedores dos feitos guerreiros realizados, dispõem-se e es-peram que o discurso não inferiorize seu valor; ou, pelo contrário, se acusa oexagero do elogio, quando este desgosta aqueles que, exatamente por des-conhecerem os feitos, medem a plausibilidade destes segundo e por suaprópria (in)capacidade de realizá-los. De modo que, neste caso, por inveja,estimam exagerada a apreciação que refere feitos que os ultrapassam,astuciosamente escamoteando na verdade os seus limites pessoais. E o re-sultado, então, é que sempre o orador será desacreditado por seu público,quer acusado de errar por falta quer, pelo contrário, por excesso laudatório.24

E, assim, a apresentação do “Discurso Fúnebre” pericleano principiadesqualificando totalmente a prática mesma de modalidade discursiva emque ele, entretanto, se integra. E de forma aparentemente radical, pois de-nuncia qual é a sua inconsistência intrínseca: a apreciação que descortinasuas possibilidades alternativas a projeta antes como impossível! E, todavia,o “Discurso Fúnebre” de Péricles a desacredita, e, entretanto, paradoxal-mente, logo a seguir, antes a enceta e cumpre, efetivando-a enquanto tal.Daí, um seu preciso sentido e finalidade retórica embutido por este seu pro-cedimento convencional de captatio benevolentiae 25: se ele realiza o, toda-

24 Considere-se, paralelamente, a similar intriga retórica figurada pelo discurso de Otanes,no célebre “Debate Persa” herodoteano (III.80), ao denunciar a irracionalidade da in-veja, e inconseqüência das calúnias, da figura do tirano nas relações com seus súditos,o qual nas cortesias moderadas que estes lhe dirigem acusa falta de adulação, mas nasadulações exageradas, vil bajulamento.

25 Vejam-se as obras citadas logo acima de Gaiser e de Loraux; por outro lado, conside-rem-se as justas advertências ponderadas por Hornblower (1987, p. 101s) acerca doalcance dos ajuizamentos que apontam para as relações entre a obra discursiva tucidi-deana e a sistematização teorizante da arte retórica.

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26 Odisséia, VIII.486-498 e XI.363-376.27 Uma similar reflexão metodológica, que opera por retórica ambivalente, comparece

também na crítica tucidideana respeitante à veracidade dos fatos do passado, em que o

via, impossível enquanto proposição discursiva, algo que não há fórmularetórica que viabilize, tanto melhor se pode apreciar a excelência e o méritosingularmente excepcional do orador que, assim mesmo e todavia, o reali-zou! E, para realizar essa modalidade discursiva de elogio, não há qualquersolução determinada, imperam apenas as impossibilidades postas pelas difi-culdades, pelas aporias claramente afirmadas.

Ora, mas ocorre, com esta projeção tucidideana da excelência retóri-ca pericleana, consagrada por esse seu suposto desempenho ao iniciar-se aGuerra do Peloponeso, algo similar ao que se passa, no texto da Odisséia,com os elogios firmadores da excelência no domínio das artes do canto enarração das gestas heróicas, quer aquele com que Odisseu distingueDemódoco, quer o outro em que é Alcino quem antes assim honra o heróimesmo26: os ecos de ambos alcançam e ressoam sua projeção valorativa nafigura do sujeito poético que os memorizou, tradicionalmente representadopelo nome de Homero. Igualmente, o modo discursivo por que o historiadorreconhece, e consagra na memória histórica, a perícia retórica de Péricles,proclama, pela sutil inteligência de um mesmo belo silenciamento de si mes-mo, antes a sua própria, pessoal, arte retórica, deste sujeito historiante daguerra, cujo nome chancela o texto desde sua abertura: Tucídides de Ate-nas!

E, não poderíamos ainda reconhecer homólogos procedimentos dearrazoado retórico nesse outro Proêmio discursivo da obra tucidideana, oqual insere no seu bojo a apreciação da suposta questão metodológica dereconstituição dos acontecimentos bélicos? Aqui também, Tucídides apontaincontestáveis dificuldades de realização, porém não tendo por finalidadefundamentar uma argumentação de sua desistência e renúncia, pois ele obrajustamente o contrário27, consumando, a seguir, a realização narrativa que,

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paradoxalmente, as supera. E as supera justamente aparentando apenaspressupor uma solução determinada, mesmo porque solução assim sugeri-da como indeterminável. A finalidade retórica é apenas firmar as dificulda-des, e não anunciar suas soluções. Assim, tanto mais se aprecia a capaci-dade historiográfica de quem, entretanto, transpõe, não regras metodológi-cas descobertas, mas sim, pela obra narrativa de fato consumada, os impassesentão declarados, pois, das dificuldades e aporias, a guerra dos peloponésiose atenienses não revela mais os traços, a não ser por algumas ínfimas alusõesesparsas. E capacidade historiográfica por tal excelência distintiva que confi-gura a autoridade de seu sujeito humano em padrões heroicizantes.28

Examinada, então, esta problemática no âmbito da convencionalmenteintitulada seção metodológica da obra tucidideana, dada sua intrínseca con-formação retórica ordenadora, a questão dos procedimentos analíticos deobjetivação dos relatos na reconstituição das ações praticadas na guerra,não tenha, nem seja para ter, solução, quer apenas não declarada, quer nem

historiador tanto firma categoricamente um princípio metodológico, denunciador dainconfiabilidade de certos informes (as narrativas poéticas e as tradições orais), quanto,todavia, a seguir deles se vale (das narrativas homéricas na dita “Arqueologia”, dastradições orais nas correções acerca da tirania dos Pisistratidas) para compor o arrazoa-do comprovador de suas teses. Devemos em particular a lembrança destas considera-ções (além de outras) aos apontamentos críticos por que nosso artigo foi ajuizado pelocorpo editoral da The ancient history bulletin.

28 Por aquela figuração retórica da apreensão da verdade do fato, elipticamente projetadacomo um justo meio pelo “Discurso Fúnebre” poder-se-ia, então, delimitar os parâme-tros da reflexão “metodológica” tucidideana como questão da excelência distintiva deum sujeito que o define como “autoridade”, aproximando-a contrastivamente, por umlado, da categoria do “homem prudente” aristotélico nos termos de sua análise por P.Aubenque (La prudence..., p. 33-53) e, por outro, da categoria do “histor” homérico eherodoteano nos termos de sua análise por A. Sauge (De l’epopée..., p. 101-113) e seudesdobramento por F. Hartog (Espelho..., p. 21-26). O horizonte heróico de delinea-mento da obra historiográfica também se assinala pela ambiguidade por que assim sesitua essa obra pela projeção de uma excelência tal que a aproxima de foros divinizantescontra o estigma de sua penosa consecução a lembrar o fato de sua humanitude: (asações praticadas no curso da guerra), “penosamente as apreendi” (I.22.3).

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mesmo determinada, ou, quem sabe, sequer almejada.

Então, a suposta problemática dos vazios do “silêncio metodológico”tucidideano, considerada no âmbito mais precípuo de sua formulação noProêmio (capítulo 22 do livro I), não poderia ser também apreciada pelasolução que Aristóteles deu ao equívoco enigma da realidade histórica daAtlântida? Pois, pondera o filósofo, ocorre com a Atlântida o mesmo quecom o muro de defesa edificado pelos gregos em Tróia: o poeta que o cons-truiu foi também quem igualmente o destruiu, fazendo-o desaparecer dahistória para sempre.

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IX. Memórias tucidideanas

ACASOS E ANOMALIAS DA GUERRA

Pilos e Esfactéria

Nos sucessos da campanha de Pilos, Tucídides assinala especialmentea obra do acaso.1

Desde o princípio. Assim, até mesmo que houvesse uma campanhaem Pilos, fora a interferência do acaso que decidira. Pois, a frota de quarentanavios expedida de Atenas partira com destino bem definido: a Sicília. Ate-nas atendia a uma solicitação de reforços da parte de seus aliados naquelailha em confronto com Siracusa. No comando da mesma iam os estrategosregularmente nomeados – Eurimedonte e Sófocles – os quais juntar-se-iama Pitodoro, que os precedera e já lá se encontrava. Como missão, a aprovei-tar sua passagem por Corcira, estava prevista uma intervenção das forçasatenienses nas lutas que assolavam esta ilha em auxílio da facção da cidade,a qual se via fustigada pelas investidas de seus adversários acantonados nasmontanhas. Aliás, a situação ali agravara-se para os partidários de Atenas,pois, além da fome, já grassando pela cidade, tinha-se a informação de que

1 O mérito, no âmbito da tradição historiográfica moderna, por destacar na narrativatucidideana a relevância da interferência do acaso nos acontecimentos da campanhade Pilos remonta ao estudo de Cornford, Thucydides mythistoricus (1907), a quem setributa condizente homenagem.

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uma frota peloponésia de sessenta navios dirigia-se para lá em auxílio dafacção oligárquica. Tal era, pelo que relata Tucídides, a destinação de princí-pio declarada para a frota, que então deixava Atenas.2

A essa destinação clara e precisa, o informe tucidideano acresce ain-da um outro propósito descortinado para a expedição, aludindo a umaeventual possibilidade de emprego da frota, apenas vaga e indefinidamen-te prevista pela decisão da assembléia de Atenas. Demóstenes que, lembraTucídides, “não detinha qualquer cargo desde seu retorno da Acarnânia”3,fora, a seu próprio pedido, integrado ao comando com a expressa autori-zação de “dispor da frota como bem entendesse durante o percurso decontorno do Peloponeso”.4

Ora, quando a frota ateniense navegava ao largo da Lacônia5 foraminformados de que a frota peloponésia já se encontrava em Corcira. Sófoclese Eurimedonte pressionavam por que se dirigissem para lá o mais rápidopossível. Demóstenes, porém, ordenava:

2 A guerra dos peloponésios e atenienses, IV.2 e III.115.3 O texto grego diz literalmente “Demosthénei dè ónti idióthe” (“Demóstenes que era um

cidadão particular...”), comumente entendido como “desprovido de cargo oficial” (ve-jam-se os comentários de Gomme, 1956: 437-8; Hornblower, 1996: 152). Gomme(1956: 470) lembra que, também para Cleonte, quando da segunda assembléia quedecidiu o envio do reforço ateniense a Pilos, a participação no comando não parecesupor definição institucional como estratego. Assim, os zelos da crítica historiográficamoderna em precisar positivamente a definição dessas questões, particularmente noque respeita ao estatuto oficial da participação de Demóstenes na campanha de Pilos(se estratego eleito e desde que momento atuando sob essa autoridade), supõem pro-jeções de reclamos de rigidez de modos constitucionais a que a assembléia de Atenasmesma não observava tão sistematicamente.

4 IV.2.4.5 Assim o informa literalmente o texto tucidideano. Wilson (1979: 47), entretanto, ambi-

cionando derivar dos informes tucidideanos todas as determinações precisas de(ir)realidades históricas do acontecimento, reclama que Lacônia deve ser entendido,aqui, no sentido político, e não estritamente geográfico, a incluir, portanto, a Messênia.Mas, o enigma maior aqui intrigado pelo relato tucidideano respeita antes ao como e dequem a frota ateniense, em plena viagem, obteve aquela notícia?

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“Que, primeiro, eles se detivessem em Pilos e, realizadas as (tarefas) quelhes cumpriam, então prosseguissem com a expedição”.6

Os dois estrategos, entretanto, objetaram. Foi nesse preciso momen-to que, continua Tucídides, o acaso resolveu o impasse no comando:

“Por acaso sobreveio uma tempestade que arrastou as naus para Pilos”.7

Já aportados em Pilos, desdobraram-se mais dissidências a paralisa-rem o comando da expedição. Demóstenes instava por fortificar-se de ime-diato o local, pois fora por isso que ele se associara à frota. E intentava persu-adir os estrategos, apontando as inúmeras facilidades que teriam: disponibi-lidade plena de madeiras e pedras, local naturalmente fortificado, e área de-serta (não só aquele ponto mesmo, como também grande parte da região).Aliás, esta última característica do lugar, logo esclarecida pela observaçãotucidideana, a precisar em quatrocentos estádios a distância que separavaPilos de Esparta, parecia constituir uma razão vantajosa de sua escolha.8

Mas os estrategos relutavam, agora procurando desqualificar os(des)propósitos daquele empreendimento, ironicamente denunciando suatotal inutilidade e inconveniência. Disseram a Demóstenes que não falta-vam promontórios desertos no Peloponeso, caso ele desejasse, por umaocupação, que a cidade tivesse despesas.9 Objeção argumentativa que obri-

6 IV.3.1.7 IV.3.1.8 IV.3.2.9 A razão dada para a renitente recusa dos estrategos em encampar o projeto de empre-

endimento guerreiro vislumbrado por Demóstenes, nos termos em que a memorizouTucídides (“...que a cidade tivesse despesas...”; as atribulações financeiras do Estadoateniense por ocasião da campanha de Pilos, são análisadas por D. M. Lewis, 1992, p.385 e 420), lembra as reações de inibição preventiva dos estrategos atenienses emcampanha, por vezes temerosos dos furores punitivos da assembléia popular suscita-dos pelos revezes bélicos devido às inciativas temerárias de seus mandatários. A essa

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gou Demóstenes a revelar mais claramente quais eram seus desígnios, jáapontando as particularidades que distinguiam especialmente Pilos comobase estratégica de operações:

“Um porto próximo, mais o fato de que os messênios, familiarizados coma região desde tempos primevos e falando o mesmo dialeto doslacedemônios, poderiam causar graves danos tomando-a como base, eainda serem seus guardiães confiáveis”.10

O plano de Demóstenes supunha, portanto, a ocupação permanentede Pilos como base de incursões contra os domínios lacedemônios na área,visando, assim, gerar distúrbios para o Estado espartano, em desestabilizandouma de suas fontes básicas de sustentação material: as terras agrárias e oscontingentes hilotas da Messênia. Para tanto, Demóstenes projetava umacomposição com elementos messênios, certamente hostis à dominaçãolacedemônia. Desdobrando, pois, o alcance da estratégia pericleana de en-frentamento de Esparta, Demóstenes procurava alicerçar a contrapartidaateniense à política lacedemônia de pilhagens sistemáticas ao território daÁtica, sendo de notar que sua iniciativa coincidia precisamente, e pratica-mente respondia à renovação anual dessas incursões espartanas.11

O empenho argumentativo de Demóstenes, todavia, não conseguiupersuadir o assentimento dos estrategos, nem tampouco o encampamentode seu projeto pela tropa em geral.12 De modo que, assim neutralizada a

postura de uma passividade militar de prudência pessoal se contrapõem, as virtudes deaudácia inovadora e consoante autonomia de operações, que a figura demostênica decomando sugere.

10 IV.3.3.11 Para as questões concernentes aos aspectos da estratégia guerreira de enfrentamento de

Esparta, inicialmente previstos por Péricles, e seu desdobramento efetivado no episódiode Pilos agora supondo o epiteichismos, vejam-se: D. M. Lewis (1992: 381 e 386-388)e J. Roisman (1993: 34).

12 A frase tucidideana (“hós dè ouk épeithen oúte toùs strategoùs oúte toùs stratiótas hústeronkaì tois taxiárchois koinósas”: “como não persuadia nem os estrategos nem os solda-

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atuação de Demóstenes, permaneciam todos inativos em Pilos, pois im-possibilitados de prosseguirem a navegação. Foi então, diz Tucídides, que:

“Os próprios soldados ociosos impulsivamente dispuseram-se a circundaro local com uma muralha e, pondo mãos à obra, levantaram-na. Nãodispunham de ferramentas para talhar as pedras, recolhendo as mais apro-priadas e rejuntando-as da melhor maneira possível. Quando tinham deusar argamassa, por falta de recipientes, a carregavam às costas, curvan-do-se para que a carga se mantivesse tanto quanto possível no lugar, ecruzando os braços para trás a fim de impedi-la de escorregar”.13

Assim, por um lado devido à interferência ocasional de uma tem-pestade e, por outro, em razão da não menos desconcertante iniciativadecisória, tão súbita quanto impulsiva, da massa dos comandados – sóporque tediosos –, determinou-se levar a cabo a fortificação ateniense emPilos. Empresa bélica, pois, carente de melhor planejamento previsivo, comoo revelam os trabalhos mesmos de fortificação, totalmente eivados de pre-

dos, e posteriormente tendo também se comunicado com os taxiarcas”; IV.4.1) ensejouintrincada exegese filológica e hermenêutica, alguns críticos suspeitando corrupção dotexto a reclamar emenda (assim Gomme, 1956: 440), já outros imaginando especula-ções que preservem sua integridade (ver: R. Weil, 1988), sem que nenhuma das alter-nativas de soluções vislumbradas pelos modernos tenha, entretanto, se imposto pe-remptoriamente (confiram-se, por um lado, os comentários de Wilson, 1979, p. 62-64,e de Roisman, 1993, p. 34-35; por outro, os de Hornblower, 1996, p. 155-6). O dilemasupõe, entre outras aporias, resolver também que plausibilidade pode haver emDemóstenes envidar persuadir ou os taxiarcas ou os guerreiros ordinários no sentido deviabilizar a execução de seu plano, como que, assim subversivamente, intentando umaespécie de rebelião contra o comando oficial! E, todavia, a intriga desse incidente con-tribui também para a fixação do sentido do episódio como obra determinante do acaso,pois, por ele, a narrativa situa o total isolamento (e, assim, impedimento) de Demóstenesenquanto o único sujeito a planejar e desejar a consecução daquele empreendimentobélico.

13 IV.4.1-2. Gomme (1956: 439) lembra, em contraponto, “os cuidadosos preparativostomados para a expedição contra Mégara, logo a seguir à campanha de Pilos” (IV.69.2).

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cariedade e despreparo. Então, acontecimento marcado pelo caráter for-tuito, imprevisto.

Por essa percepção narrativa decorre singular paradoxo, pois ela apre-senta Demóstenes desprovido de qualquer poder decisório enquanto sujeitodeterminante dos rumos da expedição14, os quais, entretanto, realizam-se defato segundo os objetivos mesmos previamente concebidos em seus planos:a ocupação e a fortificação de Pilos. De modo que o acontecimento efetiva-do é justamente o previsto e planejado pelo agente que, todavia, é dadocomo desprovido de poder de decisão, contrariamente ao que dispusera aordem da assembléia ateniense. Assim, pelo jogo de paradoxos compostopela narrativa, a determinação dos acontecimentos aparece dissociada docampo da direção previsiva e deposta na obra imprevisível do acaso.

Uma outra conjunção de acontecimentos fortuitos favoreceu igual-mente a ocupação ateniense de Pilos, pois, observa Tucídides, retardou oreforço lacedemônio em defesa do local. Informa o historiador que osatenienses empenhavam-se por concluir o mais rapidamente possível ostrabalhos de fortificação, preocupados que estavam com a eventualidadede os mesmos serem prejudicados pela chegada dos lacedemônios.

Estes, todavia, não partiram imediatamente em socorro de Pilos.Pois, narra Tucídides, aconteceu desse episódio coincidir precisamente coma celebração de um festival em Esparta, então não interrompido.15 Alémdo mais, eles pouco se afligiram com a notícia da ocupação ateniense, poisestavam confiantes em, assim que entrassem em campanha, poderem fa-cilmente desalojar os invasores. Também, em certa medida, acrescenta ainda

14 Em descompasso, portanto, com as ordens decididas pela assembléia, que dispunhamo emprego da frota por Demóstenes “como ele bem entendesse durante o percurso decontorno do Peloponeso”.

15 Qual fosse precisamente, não se sabe. Hornblower (1996, p. 156) aventa não tratar-sede um festival de maior importância e duração, pois não impedira a realização dacampanha guerreira de invasão da Ática daquele ano. Assim, igualmente o entendemHolladay e Goodmann (1986: 159).

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Tucídides, contribuiu o fato de seu exército encontrar-se, naquela ocasião,na Ática, em sua campanha anual de devastação das terras inimigas. To-dos esses fatores somados retiveram os lacedemônios, que não intervie-ram assim com a prontidão que tanto preocupava os atenienses.16

Desse modo, a narrativa tucidideana apreende outras explicações parao acontecimento, agora circunscrevendo o horizonte conjuntural de sua de-terminação. Duas ordens de realidades o compõem: as razões que expres-sam propriamente os motivos e os interesses inerentes à atuação dos agen-tes participantes do acontecimento, mais as circunstâncias ocasionais queconstituem o momento de sua efetivação. As determinações de ambas essasordens de realidade se somam, pois direcionam o acontecimento para ummesmo fim, no caso, o retardamento da intervenção lacedemônia em defe-sa de Pilos. Tanto contribuiu a desconsideração e irrelevância com que aótica lacedemônia teria tratado a ocupação de Pilos17, quanto influíram asimposições que a interferência do acaso dispõe imprevisivelmente em jogo.

De modo que, conta o historiador, os trabalhos da fortificação dura-ram seis dias sem quaisquer estorvos lacedemônios, dando-se então apartida do grosso da frota ateniense, que retomava agora o rumo de Corcirae da Sicília, deixando Demóstenes com cinco navios de guarda no local.

16 IV.4.3-5.1.17 Transparece aqui o tema da fama do exército espartano: força guerreira que, por ser tal

a confiança depositada em seu poderio, não se apressou em impedir, ou nem mesmoem logo dificultar, a ocupação do local, pois acreditava que de lá desalojaria os invaso-res assim que a isso se dispusesse. Bastaria que se encerrassem as festividades queentão os ocupavam prioritariamente – a desimportância do ataque ateniense não recla-mava sua interrupção –, ou quando muito bastaria que aguardassem a volta das forçasestacionadas na Ática, pois, uma vez em marcha para lá, ou já os próprios ateniensesapavorados abandonariam a fortificação, ou, senão, eles facilmente a tomariam deassalto. Confiança de um poder de tal superioridade a tornar fácil qualquer sua empresaque raia por pretensões de apanágios divinos, em representações conceituais trágicasque antes dizem do erro de cegueira (áte) de uma visão assim ofuscada em sua presun-ção de força superlativa!

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Todavia, logo a seguir na narrativa, Tucídides informa quais foramos procedimentos espartanos então adotados para a defesa de Pilos. Oexército lacedemônio que se encontrava estacionado na Ática, nem bemfora notificado da ocupação, retornou velozmente para o Peloponeso, pois:

“Os lacedemônios, com seu rei Ágis, consideravam que o episódio dePilos lhes concernia particularmente. Tanto mais que, como a invasão foraprematura, com o trigo ainda verde, faltavam alimentos para a maioria; esobreveio um frio extremo, excepcional para a estação, que oprimiu oexército. De forma que ocorreram vários fatores a apressarem a sua retira-da, com esta invasão tornando-se a mais curta de todas, pois permanece-ram na Ática por quinze dias”.18

Tucídides opera aqui o mesmo esquema narrativo de explicar o acon-tecimento pela identificação do leque de suas instâncias de determinação, oqual compõe em sua trama as motivações deliberadas dos agentesentrelaçadas com a interferência de fatores objetivos ocasionais e circunstan-ciais. Agora Tucídides lembra a ocorrência de um frio extemporâneo, maisas dificuldades de alimentação devido à incursão prematura, ambos estesfatores pesando para a desistência lacedemônia. E, assim, a composiçãonarrativa atenua a percepção da gravidade com que Ágis e os lacedemôniosconsideraram o episódio, pois, tomados de viva inquietação, decidiram opronto regresso ao Peloponeso.

Mas, pelas implicações indiciadas pelos informes do próprio textotucidideano, depreende-se que Esparta preocupou-se seriamente com aquelainvestida ateniense contra seus domínios, pois tomou várias medidas emcontrapartida. Não só chamou de volta o exército em campanha na Ática,quanto despachou de imediato as forças espartanas mais os contingentesperiecos vizinhos19 para Pilos, ao passo que os demais lacedemônios demo-

18 IV.6.1-2.19 Hornblower (1996, p. 158) ajuíza que “periecos vizinhos” deve ser entendido como

referência, não aos de Esparta, mas aos das cercanias de Pilos, provavelmente os deMethone e Kyparissia.

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raram um pouco mais a pôr-se em marcha, dado que estavam acabando devoltar de uma outra campanha. E ainda, Esparta difundiu convocações portodo o Peloponeso no sentido de que se enviassem socorros a Pilos o maisrápido possível, além de ordenar o envio, também para lá, da frota peloponésiade sessenta navios, ancorada em Corcira.20

A frota peloponésia retornou então em direção a Pilos, atravessandoem sua rota pelo diolkos do estreito de Lêucade, e passando despercebidaà frota ateniense estacionada em Zacinto.21 Demóstenes, de seu lado, des-pachara duas naus a enviar uma mensagem a Eurimedonte, no comandoda frota estacionada em Zacinto: “que eles se apresentassem, dado que apraça corria perigo. As naus, assim, navegavam velozmente, em conformi-dade com as ordens de Demóstenes”.22

Por aqui, então, ficamos sabendo que a frota ateniense não forapara Corcira, que seria seu destino precípuo, como o dissera inicialmente orelato tucidideano. Não, detivera-se em Zacinto!23 E, desta altura em dian-te, a narrativa tucidideana da campanha de Pilos configura inequivoca-mente o comando absoluto de Demóstenes, sem mais quaisquer traçosdaquela apresentação de seu confronto de autoridade com os dois

20 IV.8.1-2.21 Das, todavia elípticas, informações dadas por Tucídides, Wilson (1979, p. 67-69)

conjectura uma reconstituição da rota marítima pela qual a frota peloponésia teria tidosucesso em esquivar-se à vigilância da frota ateniense que, sediada em Zacinto, lá dis-pusera-se a interceptar sua passagem (veja-se, logo abaixo, a nota 21). Mas, os silênciosinformativos que a narrativa tucidideana deixa não poderiam mais uma vez estar com-pondo a sugestão de outra vicissitude do acaso nesse episódio?

22 IV.8.2-4.23 Parada que não parece ter sido meramente ocasional, segundo as análises de Wilson

(Pylos, p. 67-69), estimando que desde sua partida de Pilos, até a chegada das duasnaus mensageiras, ter-se-iam decorrido pelo menos cinco dias, ao passo que bastariamdois, no máximo três dias, para que elas cobrissem a distância que separa Zacinto dePilos (cerca de 70 milhas). Assim, entende este crítico, a estada da frota em Zacintorespondia por um objetivo tático da campanha: exercer a vigilância contra o retorno dafrota peloponésia em socorro de Pilos.

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estrategos, antes ressaltado no início do texto. Agora, pois, em total conso-nância com o informe tucidideano acerca da decisão mesma da assem-bléia ateniense que ordenara a campanha: concedera plenos poderes aDemóstenes para dispor da frota como bem entendesse.

A seguir, Tucídides passa a expor os planos de ação de ambos oslados, primeiro o do ataque lacedemônio à fortificação de Pilos, e depois ode sua defesa, concebido por Demóstenes.

Os lacedemônios, em uma ação combinada das forças terrestres enavais, concentrariam seus esforços decididamente no sentido de desalo-jar os atenienses da fortificação. Observa Tucídides que eles confiavamconsegui-lo com certa facilidade, pois tratava-se de uma construção feita àspressas e contando com poucos defensores. Porém, caso não tivessem êxi-to antes da chegada do reforço da frota ateniense de Zacinto, previramcomo neutralizá-la, de forma a que ela não viesse a prejudicar o prossegui-mento do cerco contra Pilos:

“Eles tencionavam barrar as entradas do porto, a fim de impedir que osatenienses nele abordassem”.24

O que, explica Tucídides, era perfeitamente factível, pois a Ilha deEsfactéria protege toda a extensão do porto, deixando apenas duas estrei-tas entradas em suas extremidades:

“Por uma, do lado da fortificação ateniense e de Pilos, passam dois na-vios; pela outra, na direção da parte restante do continente, oito ou nove”.25

24 IV.8.5.25 IV.8.6. A crítica moderna entregou-se aqui a uma insolúvel polêmica, que dura já mais

de um século e meio, a arguir a melhor veracidade dos informes de medidas dados porTucídides. As tentativas dos críticos de encontrar nas imediações de Pilos um outrocenário topográfico, que não propriamente a moderna Baía de Navarino, que melhorse ajustasse aos “erros/acertos” da descrição tucidideana, foram descartadas pelas crí-ticas de W. Kendrick Pritchett (1994: 150). Confiram-se ainda nossos comentáriosexternados no ensaio final desta coletânea, “Leões alados e círculos triangulares”.

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Assim, os lacedemônios tencionavam bloquear totalmente o acessonaval a Pilos, perfilando compactamente suas naus junto às entradas doporto, com as proas voltadas contra o inimigo. E, como medida comple-mentar, além de postar guerreiros pela orla continental do porto fariam aocupação da ilha fronteiriça, Esfactéria, pois eles “receavam não viessemos atenienses a guerreá-los tomando-a por base”.26

O plano lacedemônio previa, portanto, um cerco cerrado à fortifica-ção ateniense de Pilos, isolando-a completamente de sua frota, de formaque esta, comenta Tucídides, “veria contra si tanto a ilha quanto o continen-te” e, assim, não teria nem mesmo onde “abordar, pois a área de Pilos quefica para além da entrada, do lado do mar, era desprovida de portos”.27 Aprudência estratégica do plano lacedemônio residia, portanto, em evitar oenfrentamento com o poderio naval ateniense. Assim, estima Tucídides, “oslacedemônios, sem combate naval nem riscos, provavelmente reduziriam apraça pelo cerco, estando ela desprovida de víveres e ocupada sem maiorespreparativos”.28

Tal era o plano lacedemônio, pelo que relata Tucídides. E, de imedia-to, guarneceram Esfactéria com um contingente hoplita, constituído por guer-reiros sorteados dentre todas as companhias, os quais assim revezavam-senesse encargo.

Demóstenes, de seu lado, planejou a defesa de Pilos minuciosa-mente. Antes de tudo, recolheu as trirremes que tinham permanecido comele, protegendo-as junto à fortificação.29 Armou precariamente sua tripu-lação:

26 IV.8.7-8.27 IV.8.8.28 IV.8.8.29 Wilson (1979, p. 57-58) aborda detalhadamente os intrincados problemas da precisa

identificação desta manobra, bem como das demais disposições de defesa tomadas porDemóstenes, consoante aquela epistemologia de determinismo de inspiração positivis-ta, que conforma uma vertente de tradição historiográfica da Antigüidade Clássica.

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“Com escudos ridículos, a maior parte de vime, pois não havia comoprover armas numa região deserta. E mesmo essas, obtiveram-nas de umanau pirata de trinta remos e de uma embarcação leve, (naus) de messêniosque ocasionalmente (por lá) apareceram, nas quais havia cerca de qua-renta hoplitas, (então) empregues junto com os demais”.30

A narrativa tucidideana marca, assim novamente, como a precarie-dade e o despreparo da expedição ateniense foram, entretanto, bem favo-recidos pela obra do acaso.

Demóstenes dispôs, a seguir, suas forças, de modo a enfrentar o ata-que lacedemônio em suas duas frentes, terrestre e naval. Colocou a maiorparte delas nos pontos melhor fortificados e seguros, a fim de repelir asinvestidas da parte do continente. Quanto ao ataque marítimo, concentrou adefesa num ponto único – fora das muralhas, junto ao mar –, onde conjectu-rava que o mesmo se efetuaria. E logo Tucídides expõe as razões que leva-vam Demóstenes a esse prognóstico:

“Era um terreno difícil e rochoso, que dava para o mar aberto, mas comolá a muralha era mais fraca, ele achava que eles seriam tentados a atacarali. Com efeito, os atenienses sequer esperavam que fossem ficarinferiorizados no mar, não amuralhando fortemente esse ponto. E, caso oinimigo forçasse o desembarque, o local seria facilmente tomado”.31

Então, descendo com suas tropas – sessenta hoplitas selecionadosmais alguns arqueiros – à beira-mar, Demóstenes exortou-as ao combatepronunciando um discurso, o qual a narrativa tucidideana (re)constitui,projetando quais fossem as considerações e pronunciamentos que mais

30 IV.9.1. Tanto esta, como as demais notas tucidideanas respeitantes à participação demessênios nos acontecimentos de Pilos, são apreciadas pela crítica moderna comopreviamente planejadas por Demóstenes, antes do que ocasionais e fortuitas como oassevera Tucídides.

31 IV.9.2-3.

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apropriadamente respondiam por aquela situação, segundo o supõem seuspróprios princípios metodológicos.32

Seu discurso inicia por uma forte advertência, fundada na conside-ração e exame da situação crítica em que se encontravam as forçasatenienses:

“Soldados que compartilhais os presentes riscos, que nenhum de vós, noimperioso desta situação, queira dar mostras de inteligente, calculandotudo que nos envolve de temível, em vez de lançar-se decididamente es-perançoso contra o inimigo, de modo que, mesmo nestas circunstâncias,haja salvação”.33

A fala ajuíza a situação em que se deparam os atenienses: é tãoarriscada, periclitante e temerosa que é desesperadora, não propiciandoela mesma qualquer ânimo esperançoso de salvação. Esta, então, só podeprovir de sua própria cegueira, da mais total ignorância de qualquer cons-ciência analítica; pelo contrário, uma tal análise fica inclusive interditada.Pois, apotegmatiza a fala de Demóstenes, sempre que a necessidade seimpõe, como agora, não se permitem absolutamente cálculos, exige-se ar-riscar tudo na hora.

O movimento seguinte da peroração demostênica, entretanto, elabo-ra justamente a reflexão analítica que sua advertência aos comandados aca-bara de dissuadir.34 Num exercício sofístico de reverter o lado inferior do

32 Confiram-se as formulações do dito capítulo metodológico tucidideano, particularmen-te no que respeita à reconstituição dos discursos (I.22.1). Se tais discursos exortativos,com que comandantes insuflam ardor belicoso em suas tropas, referem fatos mesmos(como o supõe a maioria dos estudiosos) ou antes apenas ficções compositivastucidideanas (tese de V. Hansen, todavia recusada pelos críticos; confiram-se os comen-tários de Hornblower, Commentary, 1996, p. 82-83), não importa considerar aqui, esim que realidade de percepção do panorama militar da batalha eles figuram no âmbitoda trama narrativa por que Tucídides projeta sua inteligibilidade do fato.

33 IV.10.1.34 Sobre tais idiossincrasias de uma retórica ambivalente de afirmações de teor negativo a

inviabilizar procedimentos discursivos, entretanto logo revertidas pelo discurso então

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consumado, vejam-se as considerações lembradas no ensaio “A retórica do método”.Mas que a massa dos soldados comuns não deva tecer uma tal análise intelectiva, antesapropriada para o sujeito que detém o comando, compõe suposto ideológico de condi-zente retórica.

35 IV.9.2-3.

exame da questão no superior, e vice-versa, Demóstenes procura convencerseus guerreiros das vantagens que a situação oferecia mais a eles do que aosadversários. Para tanto, exigia-se dos atenienses duas condições de postura:a firme e inquebrantável resolução de manter seu posicionamento, evitandoo desembarque dos lacedemônios, mais o não se deixar impressionar eamedrontar pela superioridade numérica dos adversários.

Assim agindo, disporiam de duas vantagens. Primeiro, o próprio lo-cal, dada a sua inacessibilidade: mantendo-nos firmes, ele será nosso aliado.Mas, a firmeza de um posicionamento não cediço é condição indispensável,essencial, pois é ela, e não a inacessibilidade em si, que torna-lhes o localvantajoso, já que, pelo contrário, em caso de recuo, se bem que fosse peno-so, (o local) não apresentará dificuldades se ninguém o obstruir. Portanto,conjectura Demóstenes, se for permitido o desembarque e avanço espartano,o jogo de (des)vantagens se inverte, pois, seriam agora os adversários queusufruiriam tal vantagem, oferecida pela inacessibilidade do local desde queeles sim mantivessem a firmeza de sua posição: tendo o local impérvio àretaguarda, o combatente torna-se mais temível, pois sabe que por ele aretirada não é fácil. Toda vantagem ateniense advém, portanto, da manu-tenção do posicionamento, pois em seus navios é fácil rechaçá-los, porém,se desembarcarem, a vantagem desaparece, e a igualdade se instaura.35

Segundo, a superioridade numérica dos adversários, por outrolado, não constituía propriamente uma vantagem, dado que, argumen-ta o discurso de Demóstenes, eles combateriam em pequenos grupospor vez, devido às dificuldades da abordagem. Desde que os ateniensesmantivessem firmemente sua posição, impedindo o desembarque doslacedemônios, estes combateriam em situação desvantajosa – sobreseus navios, na dependência de uma série de fatores favoráveis –, en-

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frentando todas as dificuldades próprias de um desembarque diante doinimigo.36

E, assim, a narrativa tucidideana, pela exposição que traça dos planosde combate de ambos os contendores, projeta uma percepção de suas respec-tivas situações, estimando conseqüentemente as perspectivas de sucesso decada lado. Do lado lacedemônio, ela distingue certeza e segurança: previsãode facilidade de efetuar o cerco à fortificação ateniense dada a precariedadeda mesma, ancorada ainda em estratégia complementar que assegurava oprosseguimento do cerco até mesmo com a chegada da frota ateniense. Já dolado ateniense, percebe riscos, perigos e desesperança, além de despreparo,precariedade e imprevistos: fortificação feita às pressas e sem os recursos ne-cessários, armamentos medíocres, e posição ainda vulnerável porque equivo-cara-se em sua previsão de que não fossem ficar inferiorizados no mar, o queobriga a correr riscos totais como sua única possibilidade de sucesso.

A descrição tucidideana do ataque lançado pelos lacedemônios a Pilosvem, entretanto, confirmar singularmente as conjecturas calculadas porDemóstenes, tanto no que diz respeito ao provável local onde aqueles tenta-riam o desembarque, quanto acerca do fracionamento das forças inimigasface às dificuldades que o local lhes oporia:

“Trasimélidas, o navarca espartano, lançou o ataque contra o ponto preci-samente esperado por Demóstenes. Os atenienses resistiam em ambas asfrentes, em terra e no mar. Os lacedemônios dividiram seus navios empequenos grupos – porque não lhes era possível abordar em maior núme-ro –, os quais avançavam e se detinham por turnos”.37

E, por mais outro paradoxo dos tantos com que Tucídides narrou acampanha de Pilos, aqui na descrição do combate, são os lacedemôniosque aparecem enfrentando mais duramente as dificuldades impostas pelolocal, e vendo-se na situação de ter que arriscar tudo. Pois essa foi a exorta-

36 IV.10.4-5.37 IV.9.2-3.

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ção que, em reprimenda, Brásidas dirigiu à frota peloponésia, quando acu-sou a hesitação de seus trierarcas e pilotos, os quais, receando arruinar seusnavios, não punham todo o empenho em tentar o desembarque:

“Ele gritava que era inadmissível que, para poupar pranchas38, ficassem acontemplar os inimigos a fortificarem o local e, pelo contrário, ordenava-lhes que destruíssem seus navios, forçando o desembarque; quanto aosaliados, nada de hesitações: em retribuição a tantos benefícios, que elessacrificassem suas naus pelos lacedemônios nessa ocasião, aportando-as epor todos os meios efetuando o desembarque, a fim de apoderarem-sedos homens e do local”.39

E Brásidas mesmo dava o exemplo fazendo avançar seu navio, jápreparando-se para o desembarque. Porém, foram em vão a diligência e abravura heróica do espartano, pois, “rechaçado e bem ferido pelos atenienses,perdeu os sentidos e tombou junto à toleteira40, enquanto o escudo se solta-va de seus braços e caía no mar”.41 E ineficazes foram todos os avanços doslacedemônios, pois, apesar de todo o seu ardor, “não lhes foi possível de-

38 A exortação, assim, dita, conformada em figura de metonímia – pranchas por naus –,ressalta a excepcionalidade da bravura de Brásidas, por modos guerreiros que rompemas estritas normas de comportamento tipicamente espartano: dado o alto custo deconstrução das naus que exigiam madeiras próprias, e o fato de que fosse rara a exis-tência de uma frota espartana (confiram-se os comentários de Hornblower, Commentary,1996, p. 164-165), entende-se a cautela maior com que os outros trierarcas cuidassempor não destruí-las na abordagem.

39 IV.11.4.40 O entendimento de parexeiresía por toleteira é precisado por Hornblower em seus

comentários (1996, p. 165-166): “a estrutura construída a projetar-se para fora datrirreme destinada a ajustar os toletes da fileira superior de remadores”.

41 Pelo retrato heróico, com ecos de linguajar homéricos (Hornblower, Commentary, 1996,p. 43-47), que a narrativa tucidideana dá do feito valoroso de Brásidas, que apenas(não) cede quando alijado do combate por “ferimentos inúmeros mais desmaio”, diz-seainda que o escudo do espartano, arrastado até a praia, foi depois recolhido pelosatenienses, que dele se valeram para erigir seu troféu de vitória (IV.12.1). A figuraçãoheroicizante de Brásidas, a lembrar os modelos homéricos, fixou-se enfaticamente na

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sembarcar por causa das dificuldades do local, e porque os atenienses man-tinham-se firmes sem recuar”.42

E, no remate final da descrição da investida peloponésia, Tucídidesapresenta um novo traço caracterizador do episódio de Pilos, a tambémcompor o quadro de inteligibilidade de sua percepção do mesmo: o máximode um paradoxo totalmente inusitado. Novamente, produto da obra do acaso:

“O acaso assim invertera as situações que, enquanto os atenienses, emterra e país lacônio, rechaçavam aqueles que avançavam por mar, oslacedemônios, de seus navios, tentavam desembarcar em sua própria ter-ra, que lhes era inimiga; com efeito, o que mais do que tudo constituía suafama nessa ocasião era, para uns, serem eles continentais, poderosos porseus exércitos terrestres, e para os outros, serem marítimos, superiores so-bretudo por sua frota naval”.43

Em Pilos, pelos jogos retóricos antitéticos caros à narrativa tucididea-na, os acontecimentos levaram a situações tão inusitadas a ponto de operar-se uma total inversão das disposições. Atenas combatia como Esparta: adefesa, por exército terrestre, de área lacônia. E Esparta guerreava comoAtenas: o ataque, por frota naval, de um ponto peloponésio. O que, conside-rando a fama guerreira de ambos naquela ocasião, negava-lhes as respecti-vas identidades, tanto a continental lacedemônia que primava pela defesapor poderio terrestre, quanto a marítima ateniense que se distinguia pelaagressão por força naval.

Todas as investidas lacedemônias, ao longo daquele dia mais partedo seguinte, foram infrutíferas. Resolveram, então, inverter a estratégia deseu ataque, pretendendo agora lançá-lo contra o ponto que estimavam estar

memória grega, pelo que o assinala uma passagem de um diálogo platônico (Banque-te, 221c) em que Alcibíades elege Brásidas como padrão de heroicidade guerreira con-tra o qual mede a excelência de Aquiles!

42 IV.12.1-2.43 IV.12.3.

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melhor defendido, porém cuja área de desembarque não oferecia maioresdificuldades. Para isso, enviaram navios a Asine em busca de madeiras comque construir máquinas de assédio.44

Nesse meio tempo, surge a frota ateniense, composta, informaTucídides, por quarenta navios, agora reforçada por naus guardiãs de Nau-pacto mais quatro navios de Quios45. Mas os atenienses não encontraramponto onde ancorar, pois o porto estava dominado pela frota adversária, etanto o continente como Esfactéria estavam guarnecidos com hoplitas inimi-gos. Foram, então, nesse dia aportar em Prote, uma ilhota a pequena distân-cia dali. Retornaram no dia seguinte, decididos ao combate, fosse em maraberto, caso os lacedemônios o aceitassem, fosse, caso contrário, no próprioporto, quando tomariam a iniciativa do ataque.

Os lacedemônios, de seu lado, não se dispuseram a enfrentar a frotaateniense em mar aberto e, estranhamente pelo que dá a entender a narra-tiva tucidideana, não executaram também a medida planejada para impedira entrada da frota inimiga no porto. Eles simplesmente não tomaram qual-quer iniciativa:

44 Provavelmente algo de rudimentar, aríetes e escadas de assalto, ao que conjecturam oscomentadores modernos (Gomme, 1956, p. 450; Hornblower, 1996, p. 167).

45 IV.13.2. “Quarenta” é a leitura dada pelos manuscritos. Os críticos modernos (Gomme,1956, p. 450; de Romilly, p. 20 e 177-178; Hornblower, 1996, p. 167) acusam um errode transmissão do texto, pois tal montante da frota ateniense contradiz o conjunto dosdemais dados tucidideanos a esse respeito. Assim, pelo que informa o historiador, dafrota inicial que partira de Atenas – quarenta navios –, descontados os três remanescen-tes com Demóstenes (os cinco originais menos os dois mensageiros a Zacinto), massomados os reforços agregados pelas naus guardiãs de Naupacto mais os quatro deQuios, obtem-se um total superior a quarenta e um! Como, mais adiante, Tucídides dizque a frota ateniense, incluídos já os reforços de vinte navios vindos posteriormente(IV.23.2), montava a setenta navios, optou-se por corrigir o texto, assim nele lendocinqüenta ao invés de quarenta. Wilson (1979, p. 93), entretanto, arrazoa outrasconjecturas a defender a plausibilidade do informe tucidideano, mantendo, portanto, aleitura original.

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“Eles não se antepuseram no mar, nem aconteceu de bloquearem as en-tradas, como haviam planejado. Contentaram-se com tripular e prepararas naus, (estacionadas) em terra, e caso algum (navio ateniense) adentrasse,travariam combate no porto, que não era pequeno”.46

A não execução do bloqueio do porto aparece, assim, na narrativatucidideana como um acontecimento um tanto enigmático: algo imprevisto,inesperado, que contrariava a estratégia planejada, não se atinando comclareza as razões que o justificariam.47 A narrativa lembra sucintamente aalegação de terem os lacedemônios reconhecido haver espaço suficiente nopróprio porto para lá mesmo travarem o combate, caso as naus atenienses oadentrassem. Ora, mas esta consideração acerca da largura do porto nãoinvalidava aquela estratégia inicial de bloqueio do mesmo, de forma a reco-mendar sua desistência. Ela não fora planejada prevendo o enfrentamentonaval das forças atenienses. Pelo contrário, isso era o que ela justamente sepropunha evitar por meio do bloqueio das entradas. E, estratégia esta deboa prudência, pois, comentara-o já Tucídides, por ela os espartanos evita-

46 IV.13.4.47 Seria falacioso o informe mesmo da existência do plano? Ou os espartanos teriam sido

surpreendidos por uma manobra de diligência rápida da frota adversária? Ou deram-seos espartanos conta de sua inviabilidade, face aos equívocos quanto à suposta estreite-za das passagens, especialmente a meridional? Ou os espartanos ter-se-iam enganadoquanto à retirada da frota ateniense que tomara o mar largo ao constatar que elesdominavam os locais de aportagem, assim entendendo que não era mais necessáriaaquela manobra de barragem face à desistência do ataque inimigo? E, neste caso, nãoteria havido uma dissimulação astuciosa da parte da frota ateniense nessa sua retiradado porto em direção a Prote? Assim, os comentadores modernos (vejam-se, entre ou-tros, as minuciosas discussões encetadas por Wilson, p. 75-84) interrogam-se especu-lando soluções para esse enigma histórico informado pela narrativa tucidideana. Mas,preencher de (nossas) razões os vazios dos silêncios tucidideanos, além de extraviar aanálise por certa viciosidade de hermenêutica perfunctória já acusada especialmentepor W. Kendrick Pritchett para os estudos tucidideanos de Westlake (1994: 146) ou emtermos mais genéricos por D. M. Lewis (1992: 380), contraria justo a teleologia datrama narrativa, cujo sentido enfatiza mesmo as irracionalidades que tomaram o desen-rolar dos acontecimentos da campanha de Pilos.

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vam os riscos de se defrontarem com o superior poderio naval de seu adver-sário.

Quer dizer, pela apreensão com que Tucídides narra a não execuçãodo bloqueio pelos lacedemônios, ele surge como um acontecimentoinexplicável, ou melhor, que somente pode ser entendido como meramenteum acontecimento: simplesmente ocorreu isso, os lacedemônios não execu-taram a estratégia previamente arquitetada!

O quão sabiamente prudente era aquela supostamente alegada estra-tégia, e o quão desastrosa se revelou a sua não execução, é induzido pelanarrativa a seguir. O ataque da frota ateniense foi fulminante. Pôs em fuga amaior parte da frota inimiga que ganhara as águas para enfrentá-la e, apro-veitando a curta distância do local, perseguiu-a causando estragos em váriosde seus navios e apossando-se de cinco, dos quais um com toda a sua tripu-lação. Quanto às naus que ainda se encontravam em terra, umas eles des-truíram, e outras rebocaram vazias após a fuga de suas tripulações.48

Os lacedemônios agora foram tomados por aflições desesperadas,pois vislumbravam já o alcance do desastre: a perda da frota isolava seuscompanheiros em Esfactéria. Assim, empenharam-se furiosamente em sal-var as naus que ainda lhes restavam, travando-se junto às mesmas umatumultuada disputa:

“Adentrando armados no mar, atracavam-se às naus e puxavam, comcada homem achando que o combate emperrava onde ele mesmo nãoestivesse presente.49 Instaurou-se uma enorme confusão, invertendo-se,na disputa pelas naus, os modos (de combate) de ambos. Com efeito, oslacedemônios, por ardor aterrorizado, como que travavam, por assim di-zer, um verdadeiro combate naval no solo, enquanto os atenienses, supe-riores e desejosos de explorar ao máximo o acaso das circunstâncias, tra-vavam um combate terrestre do alto dos navios”.50

48 IV.14.1.49 Adotamos aqui o entendimento de tradução proposto por Hornblower (1996, p. 168).50 IV.14.2-3. Gomme (1956, p. 452) acusa a artificialidade forçada do retrato tucidideano,

que ressalta a inversão dos modos de combate de infantaria espartano com a naval

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E a percepção e inteligibilidade dos acontecimentos de Pilos, assimconstruídos pela narrativa tucidideana, projetam mais uma vez a interferênciada obra do acaso, que agora novamente se efetiva por essa anômala e esdrúxulainversão das formas tradicionais de combate de ambos os contendores. Espar-ta, que sempre se apresentava no campo de guerra confiante na fama de suafalange hoplita, agora tirava seu ardor do pânico que a tomava, pondo todoseu desesperado empenho em salvar sua frota, e numa posição altamentedesfavorável, pois como que travava um combate naval em terra. Atenas, aocontrário, explorava ao máximo a ocasional superioridade de sua posiçãovitoriosa, entregando-se a um combate terrestre do alto de seus navios.

Ambos os lados, termina Tucídides, sofreram danos consideráveis. E,embora os lacedemônios alcançassem êxito em seu intento de salvar as nausque lhes restavam, foram os atenienses que bem proclamaram a vitória,elevando um troféu. De imediato, iniciaram o cerco naval de Esfactéria,cruzando com seus navios ao redor da ilha. E, assim, esse excepcionalmenteinusitado combate naval, pleno de acontecimentos fortuitos e paradoxais,acabou por definir o destino singularmente inesperado que selou a campa-nha de Pilos: as forças espartanas, que vieram para render pelo cerco afortificação ateniense em seu território, viam-se agora na situação exata-mente inversa, isoladas e cercadas na Ilha de Esfactéria pela frota inimiga.

ateniense, ajuizando que o episódio nada tinha de excepcional, antes supunha a manei-ra trivial porque, em águas junto à praia, guerreiros tentam tomar as naus dos inimigosdelas expulsos, enquanto estes lutam ainda desesperadamente por impedi-los! E, assim,apontadas suas razões, o crítico desqualifica a tal ponto a narrativa tucidideana, quepreferiria não tivesse ela tal identidade denominadora (“I should be glad to believe thatThucydides did not write this”). Sem enveredar pela discussão de tal ajuizamento darealidade factual episódica, assim suposta pela crítica de Gomme (e, todavia, veja-se,nesse sentido, a réplica observada por J. de Romilly em nota à sua tradução desta passa-gem, p. 10), o sentido maior da composição narrativa tucidideana melhor se apreciapelo teor geral da singular inteligibilidade que mais esse retrato projeta em sua percepçãoda campanha de Pilos. Então, ganha relevo o contraste dramaticamente irônico de umacena em que soldados espartanos aferram-se a salvar navios quando, pouco antes, Brásidasa todos exortara no sentido contrário de que se os sacrificasse, gritando-lhes que não seapegassem a meras pranchas!

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Assim que, em Esparta, as autoridades foram notificadas dos episó-dios de Pilos, resolveram, estimando a gravidade desastrosa dos mesmos,ir examinar no próprio local a situação dos lacedemônios, para melhordecidir a respeito. Esta avaliação, informa Tucídides, não foi nem um pou-co animadora:

“Percebendo que era impossível socorrer os guerreiros, e não querendocorrer riscos – ou que eles padecessem pela fome, ou que fossem forçadosa submeter-se por (uma tropa mais) numerosa –, decidiram propor aosestrategos atenienses, caso estes acedessem, a conclusão de uma tréguarespeitante a Pilos, e enviar embaixadores a Atenas tendo em vista umtratado, esforçando-se, assim, por resgatar os seus companheiros o maisrápido possível”.51

O armistício foi concluído nas seguintes condições, todas arroladaspor Tucídides. Os lacedemônios entregariam a sua frota em penhor aosatenienses, tanto as naus com que haviam combatido em Pilos quanto asque estivessem na Lacônia, comprometendo-se ainda a não atacar a fortifi-cação ateniense, nem por terra nem por mar. Em troca, os atenienses permi-tiriam que fosse enviada aos guerreiros isolados em Esfactéria uma quantiaestipulada de “massa de pão: duas quênices áticas de farinha de cevada por

51 IV.15.2. Westlake (citado por Hornblower, 1996, p. 168) aponta a inconsistência destaapreciação desastrosa com que os oficiais avaliaram o panorama bélico lacedemônioem Pilos, entendendo-a não condizente com o que a narrativa tucidideana informaraimediatamente antes (capítulo 14), a qual não ensejaria nem permitiria tal extremo depessimismo, como se a frota peloponésia tivesse sido virtualmente aniquilada. Já Wil-son e Beardsworth (igualmente citados por Hornblower) ponderam no sentido contrá-rio, considerando que de fato as chances espartanas de furar o bloqueio fossem baixas,a acautelar-lhes contra qualquer empreendimento de maior risco, como o relata Tucídides.Todavia, divergências polemizantes estas que supõem antes vícios de laivos críticos datradição erudita moderna entregue a jogos especulativos de imaginações hipotéticas, aconjecturar eventuais razões que supostamente teriam mobilizado os atos dos persona-gens históricos (veja-se, por exemplo, o estudo que Wilson, Pylos, 1979, p. 91-92,consagra a essa “problemática”).

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guerreiro, mais dois cótilos de vinho e carne (para os auxiliares, a metadedesses montantes)”.52 Ficava também acertado que tais envios far-se-iamsob inspeção dos atenienses, ficando os espartanos comprometidos a nãoremetê-los às ocultas. Os atenienses, de seu lado, comprometiam-se a nãooperar nenhum desembarque na ilha, nem dirigir qualquer ataque contra oacampamento lacedemônio, seja por terra seja por mar. O acordo previa,finalmente, que quaisquer que fossem as infrações cometidas contra essestermos, a trégua estaria rompida. Ela estender-se-ia, complementa ainda oinforme tucidideano, até o retorno dos embaixadores espartanos, quandoentão os atenienses restituiriam os navios lacedemônios.53

Entretanto, prossegue Tucídides, fracassadas as negociações de pazem Atenas54, encerra-se a trégua. Os lacedemônios reclamam já a restituiçãode sua frota naval, entregue aos atenienses em Pilos como garantia avalizadorado armistício. Porém, estes recusam-se a fazê-lo, alegando não terem aque-les respeitado cláusulas estipuladas para a trégua: um suposto ataquelacedemônio contra a fortificação, mais outras transgressões menores. Fun-damentando-se no termo do acordo que previa, no caso de violação datrégua por um lado, que o outro ficava desobrigado de seu cumprimento, osatenienses retiveram a posse das naus lacedemônias. Foram inúteis os pro-testos espartanos acusando a injustiça do procedimento ateniense.55

52 É o próprio texto dado por Tucídides que consagra a incoerência verbal apondo, alémde álphita (farinha de cevada), também vinho e carne como itens subsumidos por sitonmemagménon (farinha amassada). Nesse sentido, confiram-se os comentários de Gomme(1956, p. 453), que avalia a ração diária de alimentos, assim dispensada aos guerreirosespartanos como consideravelmente generosa, se comparada com as similares conce-didas às refeições palacianas dos reis espartanos quando ausentes das sissítias – “duasquênices de farinha de cevada mais um cótilo de vinho” (Heródoto, VI.57) –, ou com asusuais reclamadas minimamente para a subsistência de guerreiros ordinários em cam-panha – “uma quênice de trigo” (Heródoto, VII.187).

53 IV.16.1-2.54 A análise da narrativa das assembléias atenienses concernentes à campanha de Pilos

será objeto de nosso ensaio seguinte “Péricles e Cleonte, democracia e demagogia”.55 IV.23.1.

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Ambos os lados retomaram, então, as hostilidades. Os atenienses con-centraram seus esforços na vigilância do cerco naval a Esfactéria, agora re-forçado pela chegada de mais vinte navios vindos de Atenas, perfazendoassim setenta. Permanentemente, durante o dia, duas naus percorriam, emsentido contrário, seu contorno. À noite, a frota, na sua totalidade, ancoravaao redor da ilha, evitando somente o lado do mar aberto quando haviavento. Já os lacedemônios limitavam-se a ataques contra a fortificaçãoateniense em Pilos, aguardando uma oportunidade para tentar salvar o con-tingente isolado em Esfactéria.56

Quando Tucídides retoma a narrativa dos acontecimentos de Pilos,secionada pelo relato dos eventos simultâneos da Sicília57, o cerco de Esfac-téria estendia-se já por um bom tempo. Numa frase tensamente condensada,Tucídides marca o cenário inalterado do empenho bélico: de um lado, per-sistia o bloqueio da ilha pelos atenienses e, de outro, os lacedemônios per-maneciam ocupando suas posições no continente. A idéia de prolongamen-to inconcludente do cerco que a frase compõe dá início ao retrato do pano-rama de perplexidade que esse prolongamento suscita. Tucídides passa, en-tão, a examinar circunstanciadamente o quadro contextual do desenrolardos acontecimentos em Pilos nesse lapso de tempo, assim intentando expli-car por quais razões assim se passara.

Ocorrera uma inversão total nas situações de (des)favorecimento oca-sional no jogo de forças entre os exércitos em confronto. Pois, por ocasião daembaixada espartana que viera a Atenas solicitar a paz, era Esparta quem seencontrava em posição extremamente delicada, senão crítica. As autorida-des lacedemônias que, naquela oportunidade, haviam examinado a situa-ção em Pilos, não vislumbraram qualquer possibilidade de represálias quelhes propiciasse o resgate do destacamento isolado em Esfactéria. A sortedeste, por sua vez, era sombria, devido à gravidade com que se colocava aquestão de sua subsistência: o local era desabitado, não oferecia recursos

56 IV.23.2.57 IV.24-25.

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alimentares, e era precário o suprimento de água, dado existir lá somenteuma fonte salobra. Os riscos do prosseguimento do cerco, estimados pelasautoridades lacedemônias, eram altíssimos: ou as agruras e infortúnios dafome, ou a rendição. Foi precisamente por reconhecer a situação crítica de-parada por suas forças em Esfactéria que Esparta viera a Atenas solicitar apaz, sujeitando-se, inclusive, a uma trégua acertada em termos altamentedesfavoráveis a ela.58

Agora, com o prolongamento inconcludente do cerco, não só não searruinara a sorte do contingente lacedemônio, inicialmente conjecturada,como ainda, pelo contrário, a situação se revertera contra Atenas. Era elaquem agora estava às voltas com a premência de suprimento de alimentos.É que, esclarece Tucídides, as mesmas circunstâncias altamente desfavorá-veis e precárias de campanha naquela região, que de início oprimiram osespartanos em Esfactéria, operavam agora também contra os atenienses emPilos. Havia dificuldades de aprovisionamento de víveres, sendo especial-mente angustiante o abastecimento de água:

“A única fonte existente, na própria acrópole de Pilos, não era copiosa,tendo assim a maioria que escavar os pedregulhos na praia para beberalgo que se assemelhasse a água”.59

Somavam-se ainda as desvantagens que o local da fortificaçãoateniense em Pilos apresentava: estreiteza da área de acampamento, maisa falta de boas aportagens. O que lhes causava transtornos, levando atripulação da frota a parceladamente alternar-se em terra para a alimenta-ção, permanecendo o restante ancorada ao largo.

Assim, a narrativa tucidideana compõe o retrato da nova peripéciaque a aventura de Pilos reservara: a reversão das situações agora atingia osatenienses que se viam nessa paradoxal posição muito mais de sitiados doque de sitiantes.

58 Confiram-se os comentários de Hornblower (1996, p. 170).59 IV.26.2.

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E essa peripécia frustrava agora as expectativas dos atenienses, quan-do antes frustrara as dos lacedemônios. Estes, ao iniciarem o cerco à forti-ficação ateniense de Pilos, esperavam terminá-lo rapidamente. Tambémos atenienses, observa Tucídides, alimentavam tais esperanças quando blo-quearam Esfactéria:

“Eles presumiam que o cerco duraria poucos dias, (por ser) em uma ilhadeserta e onde os guerreiros disporiam somente de água salobra”.60

E, todavia, o cerco se prolongava, contrariando os cálculos previs-tos. Tanto maior o desânimo dos atenienses que não conseguiam atinarcomo que os lacedemônios, nas precárias condições em que se encontra-vam, resistiam ao bloqueio? Especialmente, como conseguiam eles proversua subsistência por todo esse tempo de duração do cerco?

O enigma, assim tecido pela narrativa, é então desfeito pelas infor-mações etiológicas de que o historiador dispõe. Os lacedemônios, dá aentender o relato tucidideano, valeram-se de medidas excepcionais, deoperações espetaculares de elevadíssimo risco, por manobras mirabolan-tes, para prover de gêneros o contingente bloqueado em Esfactéria. Antesde tudo, Esparta, como que reconhecendo as dificuldades extraordináriasdo empreendimento, tentou sua realização por meio de consideráveis atra-tivos: ofereceu, em proclamação aos voluntários que se arriscassem a trans-portar provisões (trigo moído, vinho, queijo e outros) para a ilha, boasrecompensas em dinheiro, assim como a liberdade para o caso de hilotasse candidatarem. Os riscos e perigos eram de tal monta, que era particular-mente pela condição inferior destes últimos que se ousava assumi-los. Deduas maneiras conseguiam eles fazer chegar os gêneros. Ou navegando ànoite, sendo obrigados a aguardar que soprasse o vento do lado do maraberto, o que tornava impraticável a vigilância ateniense ao redor de Es-factéria. Mas, eram tão dificultosas e arriscadas as operações dessa nave-

60 IV.26.4.

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gação, que os hilotas, não tendo como aportar com segurança na ilha,arremessavam suas naus contra a costa, não receando perdê-las, tendo oslacedemônios se comprometido a ressarcir-lhes os prejuízos. E que essa eraa única maneira dos navios hilotas alcançarem Esfactéria, prova-o o fatode que aqueles que se aventuraram em tempo calmo foram capturados.Ou, segunda possibilidade, “mergulhadores submersos” atravessavam oporto ”a nado, rebocando por uma corda alimentos condicionados emsacos de couro (sementes de papoula embebidas em mel e sementes delinho piladas)”.61

Os procedimentos e os meios de que os lacedemônios assim se vale-ram para enfrentar a situação crítica do abastecimento de seus companhei-ros isolados em Esfactéria, lembram o aforisma expresso por Demóstenesquando se vira em situação igualmente precária: quando todas as circuns-tâncias são desfavoráveis a ponto de não admitir o cálculo analítico-previsivodos acontecimentos, exige-se a extrema ousadia de quem tudo cegamentearrisca sem pestanejar.

E, todavia, as informações que Tucídides acolhe para desfazer o enig-ma são tão ou mais enigmáticas do que o enigma por elas desfeito. Poisforam incríveis, mirabolantes mesmo, os esforços e expedientes de que sevaleram os espartanos para prover a subsistência de seus companheiros. Ocometimento exigia nada menos do que atravessar a nado o porto por umaextensão de cerca de 6,5 km, e ainda submersos e rebocando o recipientecom alimentos! Outra aporia, já na dependência de soprarem os ventosfavoráveis à noite, exigia, por sua vez, navios para efetuar a travessia. A frotalacedemônia, naquele momento, pelo que se depreende das informaçõestucidideanas, estava de posse dos atenienses. E foram, todavia, hilotas quemdispuseram de seus próprios navios! E dispor plenamente, pois a aportagemem Esfactéria exigia o sacrifício dos mesmos. Tucídides esclarece que Espar-ta comprometera-se a ressarcir-lhes o valor antecipadamente estipulado. Nãoexplica, entretanto, como conseguiriam eles retornar da ilha, já que não po-

61 IV.26.5-8.

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diam contar mais com suas naus? Ou permaneciam eles na ilha, agravandoainda mais o problema da carência de alimentos?62 E, em ambas aporias,tinham ainda que vencer a vigilância da frota ateniense, por permanentevigia de duas naus, das setenta que a compunham, dedicada exclusiva-mente a essa tarefa! Todavia, foi graças a esses mirabolantes expedientesclandestinos que, segundo o narra Tucídides, o contingente lacedemônioconseguiu resolver suas dificuldades alimentares por um longo período dequase dois meses63!

62 Esta interrogação é levantada já por Gomme em seus comentários (1956, p. 467).63 Os aspectos informativos do relato tucidideano lembram antes modos conceituais

mitificantes de memorização de acontecimentos. A solução da travessia a nado submersocompõe a única (in)viabilidade solucionadora intrigada pelos impasses da situação.Assim, similarmente se concebe, ao modo reverso, a resolução inteligente da fuga deDédalo da aporia de sua prisão em Creta por duplo cerco, não apenas a pelo dosrecintos amuralhados palacianos mas também pelo da frota minóica que guardava ascostas litorâneas: para escapar restava apenas a única espacialidade de via disponível,o vôo pelos ares! Já o despacho dos hoplitas sugere mais ritos desesperados de sacrifí-cios propiciatórios de uma crise insuperável por outros modos, assim apropriadamentesituada pela figura dessa categoria social no Estado espartano. Também, os itens ali-mentares sugerem determinações conceituais. As sementes de papoula embebidas emmel mais as sementes piladas de linho, por seus efeitos de virtudes precípuas, parecemdizer que “alimentos” são os mais apropriados para suportar as agruras da fome e dasede, antes do que prover mesmo sua subsistência! Assim, o esclareceu a nota doescoliasta: “a papoula é uma espécie de erva de que a seiva, ao que se diz, é letal, masa polpa é dulcíssima e capaz de, misturada com mel, afastar a fome; a semente piladade linho cura a sede por um pouco tempo, razão por que é ministrada aos febris pelosmédicos” (confira-se o texto em Gomme, 1954: 467). Similarmente, os mitos dizem dasuspensão temporária de consciência do estado penoso por efeito de torpor ou de sono(o atendimento que os deuses deram à prece de Odisseu na Ilha de Hélios), ou debebida (vinho, oblívio de males), ou de droga (nepenthes de Helena). Os aspectosconstitutivos da (ir)realidade do acontecimento, espécie de limiar factual em que faceiamplausibilidade e implausibilidade a compor sua (ir)realidade extraordinária, sugerem osmodos trágicos de composição das ações míticas teorizados por Aristóteles na Poética:a caracterização de suas determinações deriva dos atos praticados por consoantes ne-xos porque o caráter do agente determina a ação.

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E o impasse do cerco ateniense a Esfactéria permanecia sem qual-quer perspectiva de solução, até que ainda uma vez ocorreu outra interfe-rência de um acaso providencial!

Ao que narra Tucídides, Demóstenes, em Pilos, estava agora firme-mente resolvido a desfechar o ataque contra Esfactéria.64 Duas ordens derazões, cujos efeitos se somam, impeliam-no a tal decisão. Primeiro, a pró-pria disposição dos guerreiros que, já impacientes e incomodados com aquelasituação antes de cercados do que de sitiadores, pressionavam-no a arriscaro ataque. E, segundo, mais outro fortuito golpe do acaso dos tantos da cam-panha de Pilos: acidentalmente alastrou-se um incêndio que destruiu a co-bertura de matas de Esfactéria. Aconteceu, com efeito, que, quando umdestacamento ateniense vira-se obrigado a ancorar na ilha para realizar suasrefeições, um de seus soldados “ateou acidentalmente fogo a um pequenotrecho de bosque e, vindo depois a soprar um vento, o incêndio tomou amaior parte da mata sem que fosse percebido”.65

Mais uma vez a narrativa tucidideana ressalta a interferência decisivaque teve o acaso na determinação dos sucessos da campanha de Pilos. Pois,explica o historiador, Demóstenes, que já tinha experienciado em sua derro-ta anterior na Etólia66 os empecilhos inviabilizadores de ataques militares em

64 Roisman (1993: 33) supõe que o retardamento da execução do plano de Demóstenes,em efetuar o ataque contra o contingente lacedemônio em Esfactéria, era devido tam-bém em parte a cautelosos receios de incidir nas desastrosas perdas de combatentesatenienses, já por ele experienciadas na campanha da Etólia face a similares riscos deincursões em áreas florestais.

65 IV.30.2.66 Confira-se III.97-98. George Cawkwell (1977: 73-74) é cético quanto à suposta expe-

riência militar de Demóstenes para incursões em áreas de floresta, especialmente refe-rencida ao plano de ataque ao contingente espartano em Esfactéria, assim intentandodesacreditar a descrição tucidideana que projeta naquele general ateniense virtudes decapacidade estratégica previsiva. Tal, entretanto, não é o entendimento de Joseph Rois-man, que examinou criticamente todos os episódios guerreiros de sua trajetória histó-

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áreas florestais, não se animava a empreendê-lo. Ele avaliava que a mata,associada à ausência de caminhos, pois a ilha era inabitada, favorecia osocupantes contra os invasores. De um lado, porque ela ocultaria sejam asdisposições sejam os deslocamentos dos primeiros, de modo que os segun-dos, incapazes de localizar os adversários, ficariam à mercê de suas iniciati-vas indetectáveis. De outro, porque, caso ele forçasse o ataque na mata, aprópria superioridade numérica67 de suas tropas reverter-se-ia em desvanta-gem, devido à natureza intransitável do terreno: ela entravaria a movimenta-ção conjunta do exército grande, ao passo que a tropa menor ainda viabilizariaseu avanço porque, já familiarizada com a área, criaria seus próprios cami-nhos.

E o incêndio ainda, prossegue Tucídides, propiciou a Demóstenesmais outro favor, ensejando-lhe a justa apreciação do contingente numéricolacedemônio: “era superior, já que ele inicialmente suspeitara que o númerode soldados para os quais eram mandados víveres fosse menor que o decla-rado”.68

rica como comandante narrados por Tucídides, assim apreciando, com melhor ponde-ração, tanto os primores (“engenhosidade, habilidade tática, acuidade diplomática, dis-cernimento previsivo planejador”) quanto os limites (humanos) da areté de inteligênciaestrategista demostênica. Suas ponderações delineiam, então, com melhor precisão oalcance da experiência militar de Demóstenes, especialmente no que concerne às pos-sibilidades de seu planejamento do desembarque em Esfactéria (confiram-se suas aná-lises às páginas 38-39).

67 Para as estimativas dos totais de contingentes guerreiros ateniense (800 hoplitas, 800arqueiros, 800 peltastas e cerca de 500 messênios e outros combatentes, além de 8.030tripulantes dos navios) e lacedemônio (cerca de 1.000 combatentes, dos quais 420hoplitas) nos combates finais em Esfactéria vejam-se as análises de Wilson (1979: 105-106).

68 IV.30.3. Wilson (1979: 100) insiste ainda em outro ponto, não expressamente destaca-do pela narrativa tucidideana: agora Demóstenes podia descortinar qual era a disposi-ção estratégica de defesa das tropas espartanas, sediadas em três pontos de guarnição,pela qual ele ordenaria a tática de sua investida invasora. Assim também o entendeRoisman (1993: 39).

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Assim, o incêndio na mata de Esfactéria, memorizado como acidentefortuito pela narrativa tucidideana, foi providencial para viabilizar o ataqueateniense. E tanto mais que esse incidente reverteu maravilhosamente ojogo de vantagens contra entraves que a topografia de Esfactériadisponibilizava para o enfrentamento dos dois exércitos. Sob o ocultamentoda cobertura boscosa eram as tropas lacedemônias que contavam com suadupla ordem de favores: de um lado, a capacidade de iniciativa bélicaagressora contra o desnorteamento de um adversário apenas reduzido amero alvo; de outro, a melhor exploração do terreno intransitável queinviabilizava a movimentação conjunta do exército em avanço agressor. Jus-tamente essas duas ordens de vantagens militares, uma vez destruída a capade mata, viriam a atuar decisivamente instrumentalizando a vitória campalateniense!69

Então, consoante com o teor geral do relato tucidideano da campa-nha de Pilos (des)entendida como obra do acaso, a efetividade deste modode acontecimento consuma justamente a teleologia guerreira almejada pelaempresa bélica ateniense, de modo a ensejar iniciativas militares deDemóstenes tais como se ele mesmo as tivesse planejado intencionalmente!Bela história de uma ocorrência fatual conformada, ao que diria Aristóteles,em termos narrativos pelos melhores padrões de tragicidade poética! Já paranós, historiadores modernos, afeitos a um senso crítico incrédulo, sempredesconfiado contra inverdades textuais, resta-nos apenas suspeitar o acúmulode tais coincidências fortuitas70, pois prisioneiros da teia de (des)informaçõesde sua memorização tucidideana exclusiva.

Principiado ao ensejo do fogo acidental, o desembarque atenienseem Esfactéria, dando início à resolução do cerco, prosseguiu então com a

69 Veja-se, logo a seguir, a descrição narrativa do combate junto ao posto central de defesalacedemônio em Esfactéria.

70 Vejam-se, nesse sentido, os dilemas inconcludentes postos pelos comentáriosespeculativos de Wilson (1979, p. 103), e as reticências de Hornblower (1996, p. 189).

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batalha campal, lá travada contra as forças lacedemônias. Também esta com-põe derradeira anomalia, agora vitimando a fama guerreira espartana.

A fama espartana

Tucídides finaliza sua narrativa da campanha de Pilos apontando aperplexidade geral que tomou conta dos gregos face a seu desfecho:

“Dos eventos da guerra, esse foi, ao ver dos gregos, o mais inesperado”.71

Até Esfactéria, Esparta gozava fama guerreira impoluta entre os gre-gos, a qual projetava em sua falange hoplita a aura de força imbatível.Fama imperante ao abrir-se a Guerra do Peloponeso. Assim, a estratégiapericleana contra Esparta tinha por princípio evitar cabalmente qualquerenfrentamento campal em que tivesse de medir forças com a falange hoplitalacedemônia.

Fama atuante no desenrolar dos episódios mesmos da campanha dePilos. Assim, nas deliberações da assembléia que conferiu a Cleonte o co-mando da expedição de reforço às tropas atenienses acantonadas em Pilos,essa fama guerreira foi presumivelmente explorada (pelo que dá a supor oestilo elíptico da narrativa tucidideana) como argumento dissuasivo do pros-seguimento daquele esforço bélico pelos interesses inclinados a promove-rem a paz com Esparta, tanto que Cleonte, mobilizado no sentido contrário,teve que desafiá-la para viabilizar o êxito de sua proposição bélica agressiva:afirmou, como uma de suas bravatas estigmatizadas pelo texto de Tucídides,que não temia os espartanos.72

E fama aterrorizadora que os atenienses, no combate decisivo emEsfactéria, tiveram que superar, o que só se deu já durante o desenrolar do

71 IV.40.1.72 IV.28.4.

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mesmo, quando os atenienses ganharam confiança devido ao ocasional fra-casso da temida potência ofensiva do exército espartano. Pois, conta Tucídides,de início as forças atenienses restringiram-se a fustigar de longe a falangelacedemônia. Só depois ousaram avançar seu ataque, agora encorajados,não tanto por sua superioridade numérica, quanto especialmente porque:

“Já se haviam habituado mais a que o inimigo não lhes parecesse tãotemível, pois este não lhes infligira os danos que esperavam sofrer (inicial-mente, quando desembarcaram, a idéia de ter de combater os lacedemôniosos paralisava)”.73

Fama alicerçada na excelência da consecução espartana da modali-dade de combate da falange hoplita, comprovada nos campos de batalhajá no decorrer do século VI e ao longo do V.74

Surpreendentemente em Esfactéria, contrariando a expectativa detodos fundada na fama distinguidora do combatente espartano, estes tinham-se rendido. O impossível ocorrera. Pois, como bem proclamava essa fama, adignidade guerreira de Esparta jamais admitia, mesmo nas situações maisforçosas (nem fome, nem qualquer outra necessidade) a entrega das armasao inimigo. Antes, o espartano preferia a morte como horizonte admissívelpara a derrota: com seu escudo, ou sobre ele, tal era o preceito exigido deseu retorno do campo de batalha.75 Eis que agora, resultado bélico desse

73 IV.34.1.74 Confiram-se as indicações de Cartledge (1977: 11).75 Assim uma mãe espartana (Plutarco. Moralia, 241F16), sucedânea lacedemônia da

figura homérica do pai conselheiro, que recomenda os preceitos de areté guerreira a seufilho quando este parte de casa inaugurando sua história heróica (“sempre distinguir-see a todos sobrepujar”; cf. Ilíada VI.208 e IX.785), teria recomendado ao seu, agorahoplita. Areté homérica que firma heroicidade individual, de campeão guerreiro dedistinção superior singular, precisamente assinalada por nomes pessoais (Aquiles, Glauco),agora transposta para o anonimato do valor coletivista homegeneizado do hoplitaespartano indiferenciado por sua generalidade mesma. E de Arquíloco, poeta que can-

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episódio, Atenas passava a exibir os troféus de sua vitória sobre a falange deEsparta, a assinalar as máculas de sua desonra. Lá estavam em Atenas oshoplitas epartíatas vivos, prisioneiros por rendição! Lá estavam também,altivamente consagrados em exposição na Stoa Poikile, os signos dessa hu-milhação guerreira do tradicional adversário: escudos de bronze – untadosde pez para melhor assegurar pela eternidade aquela glória em os preser-vando contra os efeitos deletérios do tempo e corrosão – que, diziam osatenienses, tinham sido tomados aos espartanos aprisionados em Esfactéria!Pausânias ainda lá os viu por meados do século II de nossa era.76

E fama gloriosa de não rendição dos hoplitas espartanos, apenas im-posta sob morte, que especialmente a memória histórica das Termópilassedimentara, então recentemente avivada pela narrativa herodoteana con-temporânea dos inícios da Guerra do Peloponeso. Mas também esta memó-ria ficava agora ofuscada em seu brilho por aquele revés espartano. Justa-mente Tucídides, ao relatar a rendição do destacamento lacedemônio emEsfactéria, entendeu assinalar o paralelismo deste evento para com o episó-dio das Termópilas.

Conta o historiador que as forças lacedemônias, desnorteadas e to-talmente acuadas no enfrentamento ocorrido junto ao posto central dedefesa, por eles armado na ilha, cerraram suas fileiras e, recuando do cam-po de batalha, conseguiram ganhar o último de tais postos. Lá puderam,então, defender-se com relativa facilidade, dada a vantajosa localizaçãonatural de sua fortificação, a qual tornava impraticáveis as investidas

tara zombeteiro uma outra eticidade guerreira não tão zelosa desse preceito – “Meuescudo compraz algum saio, bela arma que abandonei junto à moita, mas a vida salvei.Que me importa aquele escudo? Que se vá; um outro adquiro não pior” –, conta-seuma anedota de que, nem bem pusera os pés em território lacedemônio em certaocasião, de imediato foi de lá expulso (Plutarco. Moralia 239B34).

76 Descrição da Grécia, I.15.4. Até nós chegou um desses espécimes, que não se sabe aocerto como fora parar numa cisterna por volta de 300 a.C., portando a inscrição: “Osatenienses (tomaram) dos lacedemônios de Pilos”.

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atenienses que tencionassem galgá-la lateralmente, ficando eles assim re-duzidos ao ataque frontal. Todos os esforços dos atenienses empreendidosnesse sentido foram infrutíferos, tendo sido rechaçados todos os seus ata-ques.77

Foi então que o comandante messênio78, cujas forças auxiliavam osatenienses, argumentou com Cleonte e Demóstenes ser perda de tempo ainsistência naquelas investidas frontais, conseguindo, assim, autorização etropas para encontrar algum caminho por onde surpreender os espartanospela retaguarda. E, embora não sem grandes dificuldades e esforços, reali-zou seu intento sem ser percebido, pois os lacedemônios, confiantes na defe-sa natural daquele lado do forte, não se preocuparam em guarnecê-lo.79

O episódio chamava o paralelismo com as Termópilas. E Tucídidesassim o lembrou:

“Os lacedemônios, alvejados agora de ambos os lados, encontravam-sena mesma situação desesperada que nas Termópilas, considerando noque o acontecimento menor se assemelha ao maior, pois, lá eles foramexterminados quando os persas os contornaram graças a uma trilha; aquieles igualmente encontravam-se circundados, sem ter mais como resistir:antes, como eram poucos lutando contra muitos, e fisicamente debilitadosdevido à falta de víveres, cederam terreno”.80

Com as forças atenienses já senhoras dos acessos à fortificaçãolacedemônia, Cleonte e Demóstenes suspenderam o ataque a fim de evitaro extermínio do contingente espartano, que eles, ao contrário, desejavam

77 IV.35.78 Pausânias (Descrição da Grécia, IV.26.2) acresce ao informe tucidideano o nome desse

comandante messênio – Cómon –, dele narrando a história posterior ao fim da Guerrado Peloponeso (a migração para as costas líbias, os sonhos oraculares e o retorno àMessênia, quando da restauração promovida por Epaminondas após Lêuctra).

79 IV.36.1-3.80 IV.36.3.

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levar vivo a Atenas. Proclamaram, então, pelo arauto, a que se rendessementregando suas armas aos atenienses, os quais decidiriam de sua sorte.81

Como a maioria dos lacedemônios se mostrasse favorável, concluiu-se uma trégua e iniciaram-se entendimentos visando à rendição. Estifonte –sobre quem recaíra agora o comando da tropa lacedemônia (Epitadas mor-rera, e o segundo na ordem de chefia, Hipagretas, fora dado como morto)82

– reclamou ter de consultar os espartanos no continente quanto à decisão aser tomada. Esta era extremamente delicada, tanto que, após duas ou trêsconsultas, a resposta daqueles mandatários definiu, com certeza cristalina,apenas e tão somente a sua desresponsabilização pela mesma:

“Os lacedemônios conclamam-vos a decidirdes vós mesmos a vosso pró-prio respeito, sem que façais nada de desonroso”.83

Por um lado, a resposta à consulta circunscrevia a decisão ao âmbitode arbítrio dos próprios guerreiros, como que, suposta e presumivelmente,reconhecendo-a como direito que justamente lhes cabia, pois respeitante asuas próprias pessoas e sortes. Por esse viés, a decisão era-lhes colocadacomo opção em aberto.

Mas, por outro lado, a recomendação de advertência por que elaterminava – que tal decisão não colidisse com nem arranhasse a fama dahonra espartana – retirava-lhes uma tal opção de direito pessoal de indiví-duos, definindo-a, pelo contrário, como dever, como obrigação: o que,pela preservação da honra de Esparta, lhes competia fazer. Mas isto, decerta forma, era ainda ambíguo. Pois, o que recomendava substantiva-mente esta honra?

A resolução da ambiguidade reclamava alusivamente a atualizaçãoda memória daquela identidade espartana. E esta exigia a submissão do

81 IV.37.1-2.82 IV.38.1.83 IV.38.3.

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particular e pessoal ao coletivo, com a afirmação da pólis Esparta exigindoaté mesmo a negação da individualidade cidadã. E, apreciada ainda a famadistinguidora de sua honra guerreira – o espartano opõe a morte à rendição–, aquela suposta ordem dos mandatários induzia o sacrifício dos guerreirosvencidos em Esfactéria. Por essa ótica, assim traduzida sua proposta pelasconotações da honra e fama guerreira espartana, a definição da sorte da-queles espartíatas estava já fechada desde o princípio, pois que, difusa eambiguamente, formulada por aquela espécie de pronunciamento oracularditado por seus mandatários precipuamente consultados.

E, todavia, uma tal decisão de sacrifício não era nem um poucosimples, nem fácil, nem tranqüila, tanto assim que não tiveram firmezaresoluta nem mesmo as autoridades que a sugeriram. Não a emitiram comoordem direta, sem abrir aquele suposto campo de opção a ensejar a deci-são no sentido contrário. Antes, preferiram contornar sua responsabilidadepor meio daquele expediente oracular de sua indução indireta. Não ousa-ram, pois, assumir os comprometimentos implicados por essa decisão, oque justamente lhes era reclamado pela solicitação de Estifonte. Tal jogo dedesresponsabilização pelo destino do contingente espartano cercado emEsfactéria, assim encetado por seus comandantes e mandatários, indicia jáa gravidade dessa decisão, pois implicava a baixa crítica de um montantesignificativo de força guerreira no quadro militar espartano.

Pode-se certamente entender que o desenrolar de ambos os aconte-cimentos bélicos – Termópilas e Esfactéria – comportasse incidentes preci-sos a ensejar a identificação de situações, com justeza apontados pela nar-rativa tucidideana: um contingente espartano, isolado por forças inimigasem local de difícil acesso e naturalmente fortificado, defende-se com êxito,sendo, todavia, vencido porque é envolvido pela retaguarda graças à ines-perada, porém decisiva, utilização de uma trilha que viabiliza a investidaque toma o ponto fortificado. Assim, a intervenção de Cómon em Esfacté-ria corresponde exatamente à de Efialtes nas Termópilas.

Porém, essa identificação circunstancial termina aí, consiste somentedesse incidente. O que o paralelismo operado por Tucídides, todavia, não

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lembra, é a diferença crucial que dissocia as duas situações. Lá, nasTermópilas, o contingente espartano foi efetivamente massacrado, lutandovalorosamente até à morte ao que proclamava sua fama, sem se render.Entretanto, nessa ocasião, não lhe foi oferecida esta alternativa opcional derendição, o que, bem pelo contrário, marcou o episódio de Esfactéria.

E, no campo aberto por esta opção, o que estava em jogo para adecisão – ou de sacrifício ou de rendição –, não era só, de um lado, a famae honra guerreira espartanas contra, de outro, a sorte pessoal e individualde cada combatente. Agora, algo especialmente grave e crítico impendiasobre tal decisão, dada a especificidade histórica do contexto bélico espartanoimplicado por todo o episódio de Pilos: haveria que considerar a relevân-cia da preservação daquela expressão de força militar que o contingentehoplita, cercado em Esfactéria, representava para Esparta.84

Mas Tucídides, na perspectiva global de sua narrativa, conformou apercepção do acontecimento – a rendição espartana em Esfactéria, assimencerrando a campanha de Pilos – pelos parâmetros da ótica da preserva-ção da fama guerreira de Esparta. Pois, mais ainda do que surpresa e estu-pefação, prossegue Tucídides, o sucesso da iniciativa de Cleonte suscitou atémesmo incredulidade. De fato, o impossível ocorrera em Pilos: Esparta co-nhecera a derrota campal e, todavia, seus hoplitas permaneciam vivos, cap-turados pelos atenienses! Chegou-se então a pôr sob suspeição o valor dosguerreiros capturados: possuíam mesmo eles, “que haviam cedido suas ar-mas, a qualidade de seus companheiros mortos?”85. Estes haviam afirmadoaquela fama consagrada, ao passo que aqueles a negaram.

E, assim, a comprovar estas suas considerações finais, Tucídides rela-ta uma anedota, procedimento bem pouco usual em sua narrativa86, de cujaleitura apreendeu justamente a reação de incredulidade a que supostamenteo êxito de Cleonte levara:

84 Confiram-se os comentários de Hornblower (1996: 194).85 IV.40.2.86 Veja-se o comentário de Gomme (1956: 480).

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“Posteriormente, quando alguém, dentre os aliados de Atenas, perguntoumaldosamente a um dos capturados na ilha se seus companheiros mortoseram bravos e valorosos, o outro retrucou-lhe que seria inestimável essefuso (querendo referir a flecha) caso distinguisse os bravos, desejandomanifestar que as pedras e setas matavam aqueles que elas ao acaso atin-giam”.87

A pergunta do aliado ateniense era bem venenosa. Capciosamenteinterrogava o valor guerreiro espartano, ironicamente localizando suasuspeição só nos combatentes mortos, sucumbidos no combate. Mas aresposta do espartano bem atinou a perspicácia enviesada dos alvos visa-dos: o quanto ela atingia em cheio igualmente a honra deles mesmos, quehaviam sido capturados vivos. A contraposição que pergunta e respostacompunham, a opor guerreiro tombado em combate e guerreiro que serendera, supunha aquela fama distinguidora do espartano, aliás aludidapelo comentário tucidideano. Pois, porque Tucídides entende a anedotapela ótica dessa precípua fama guerreira de Esparta, ele apreende nela aprova da suspeita incrédula quanto ao valor dos guerreiros capturadosvivos.

E, assim, percebido o êxito do empreendimento de Cleonte peloshorizontes dessa ótica, ele se torna (in)compreensível, pois, para ser enten-dido e assimilado é preciso recusar-se a acreditar em seu próprio feito: não,Cleonte não pode ter derrotado e aprisionado verdadeiros espartanos!

Mas, afinal, por quais modos se desenrolou o combate decisivo emEsfactéria, assim menosprezados pelo dito anedótico do guerreiro espartano?

Os espartanos haviam guarnecido três pontos da ilha: um, pelo extre-mo sul, com uns trinta hoplitas; outro, central, com o grosso do contingentesob o comando de Epitadas, que defendia a fonte de suprimento de água; eo último, na extremidade setentrional para o lado de Pilos, que ocupava

87 IV.40.2.

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uma antiga fortificação naturalmente protegida, prevista como refúgio emcaso de retirada.88

O primeiro ataque voltou-se contra o posto meridional. Nele foramenvolvidas todas as forças hoplitas atenienses, num total de cerca de 800guerreiros. A bem dissimular sua investida, o ataque foi realizado aindanoite, com toda a tropa sendo embarcada em poucos navios, a aparentarque se tratava de mais uma das costumeiras ancoragens noturnas atenienses.Assalto fulminante, posto espartano pego de surpresa, massacre total!89

Depois, já dia, Demóstenes reuniu todas as suas tropas para a inves-tida contra o posto central. Seu plano previa uma estratégia de combatepolarizada pelo emprego das forças ligeiras. Primeiro, ele posicionou desta-camentos de uns duzentos homens, alguns mais outros menos, todos arti-lheiros armados de pedras, a ocupar os pontos elevados do terreno, de for-ma a que desnorteassem os lacedemônios, assim circundados, quanto àsfrentes de combate que lhes eram oferecidas, pois, caso estes se decidissema “atacar aos da frente, fossem alvejados pelos detrás, e se aos dos flancos,pelos dispostos do outro lado”.90 Conjugada a esse desnorteamento de fal-sas frentes de batalha, Demóstenes previa uma estratégia de ataques deescaramuças pelas tropas ligeiras, sempre a fustigar os espartanos pela reta-guarda, conformando, assim, verdadeiro paradoxo de uma frente de bata-lha todavia reversa, agredindo por trás! Aqui, comenta o historiador, residiaa dificuldade maior para o exército hoplita espartano, pois como combaterforças que agrediam sempre à distância por projéteis arremessados (setas,dardos, pedras e fundas) e que, ligeiras por excelência, graças a seus arma-

88 IV.31.2.89 IV.31-32.1. Tanto Gomme (1956, p. 473) quanto Hornblower (1966, p. 189) apontam

a similaridade dessa manobra de ataque de surpresa com a da investida astuciosaempregue por Demóstenes na campanha da Etólia (III.112.3), em que a frente de com-batentes messênios obra a dissimulação dolosa do ataque ateniense.

90 IV.32.3. Wilson (1979, p. 113) lembra a vulnerabilidade da falange espartana face aataques de artilharia pelos flancos e retaguarda, toda a proteção defensiva de seusarmamentos sendo adequada a agressões frontais.

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mentos leves, jamais se prestavam ao entrechoque almejado pelo pesadoexército lacedemônio, antes dele sempre escapavam por momentânea fuga,quando o adversário avançava, para então, quando este se retraía, nova-mente o fustigarem?91

O plano estratégico arquitetado por Demóstenes associava, portanto,a atuação dos corpos de tropas que funcionavam como artilharia – seu ob-jetivo resumia-se primordialmente em paralisar os ataques inimigos, desnor-teando e inibindo suas movimentações pelo escamoteamento das frentes decombate antepostas – com as movimentações de escaramuças rápidas dastropas ligeiras que, alternando cargas e recuos fugazes, atacariam sempre àdistância. Quer dizer, Demóstenes concebera um modo de combate contrao exército hoplita espartano em que suas forças monopolizariam todas asiniciativas de agressão, ficando os adversários totalmente acuados e pratica-mente indefesos contra seus ataques a distância!92

Narrativa tucidideana que expõe o plano estratégico de Demóstenes,e seqüente relato da batalha mesma, praticamente reiteram-se, a menos dealguns detalhamentos, todavia significativos.

Os espartanos haviam disposto suas tropas segundo a boa ordem deformação cerrada da tática de combate da falange hoplita: posicionaram-nas defronte ao contingente hoplita ateniense, contra o qual pretendiamavançar.93 Mas, logo que se puseram em marcha, viram frustrados os seusintentos e neutralizada toda sua excelência nessa modalidade de combate.Por um lado, porque Demóstenes lá postara os seus hoplitas somente paraludibriar os adversários por uma falsa frente de luta, dado que aquele contin-gente não correspondeu à iniciativa de avanço encetada pelos espartanos,antes permaneceu inerte. De outro lado, porque foram só as tropas ligeiras

91 IV.32.3-4.92 Remetemo-nos às considerações feitas acima em que apontamos a reversão miraculosa

no jogo de vantagens contra entraves, suscitada pelo acidente fortuito do incêndio damata.

93 Gomme (1956, p. 475) chama a atenção para a similaridade relativamente à estratégiade combate arquitetada por Brásidas no enfrentamento de Mégara (IV.73.1-3).

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atenienses que entraram em ação, fustigando o exército lacedemônio pordisparos de ambos os lados, como que paralisando-o imantado a apenasdefender-se ao ritmo das repetidas investidas e recuos daquelas, sem sequerpoder persegui-las em suas manobras de fuga.

A movimentação do exército espartano se complicara sobremaneiraporque Demóstenes explorou magnificamente as dificuldades e entraves queo terreno lhe apresentava, bem acidentado naturalmente, o que agravavaespecialmente o ataque em bloco da falange hoplita. Era um combate total-mente inusitado: a falange espartana era enfrentada em terra, porém em umterreno impróprio, a inviabilizar a eficácia da tática hoplita. Um combate emque toda a ordem de valores, normas mais preceitos militares supostos pelamodalidade de guerra hoplita eram desrespeitados. O campo em que ele setravava não elegera área plana, de amplo trânsito desimpedido, adequadaao avanço do bloco coeso da falange, como os locais férteis de planície, paraa defesa e domínio dos quais essa tática de combate se constituíra historica-mente.94

Em suas investidas, os atenienses valiam-se de todos os tipos de re-cursos de agressão guerreira, semeando confusão e pânico entre osespartanos. Saraivadas de setas, dardos, pedras e que mais projéteis lhescaíam nas mãos, eram acompanhados por gritaria medonha. A tudo soma-vam-se ainda nuvens de pó de cinzas do recente incêndio a turvar qualquerdiscernimento dos ataques agressores, com os lacedemônios, assim, torna-dos alvos indefesos. E defesas agora já inúteis, pois não só desmontada aformação de sua falange, porque a gritaria dos adversários ensurdecia asordens de comando do movimento organizado, como ainda começava arevelar-se a inadequação de seus elmos de feltro95, que falhavam na prote-

94 IV.33.1-2.95 Há dúvidas entre os comentadores quanto à precisa identificação do que fossem os

piloi mencionados pelo texto tucidideano, uns entendendo que se tratem de couraças,outros de capacetes (ou de aço, segundo Gomme, 1956, p. 475, ou de feltro, segundoWilson, 1979, p.114, corroborado por Hornblower, 1996, p. 190), dado que o escoliastaa esta passagem informa essa dupla possibilidade.

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ção contra tais projéteis. Peripécias de um combate hoplita inusitado queprogrediu sempre a aterrorizar e fragilizar os lacedemônios na medida mes-ma em que encorajava e fortalecia os atenienses, agora cada vez mais con-fiantes em uma, a princípio inacreditável, vitória contra a temida falangeespartana!

Então os lacedemônios, envoltos por perigos de todos os lados, agru-param-se em retirada a buscar refúgio na fortificação do último posto poreles guarnecido em Esfactéria, deixando pelo caminho algumas perdas deguerreiros atingidos pelos atenienses que os perseguiam.96

Os paradoxos que esse inusitado e desordenado combate revela pelanarrativa tucidideana advém da ótica hoplita de sua percepção, que os apre-ende subordinado ao horizonte dos valores e preceitos dessa modalidadeguerreira.97 O que, aliás, aquela anedota com que Tucídides encerra suanarrativa, respeitante ao guerreiro espartano capturado em Esfactéria, ex-pressa cristalinamente:

“Posteriormente, quando alguém, dentre os Aliados de Atenas, perguntoumaldosamente a um dos capturados na ilha se seus companheiros mortoseram bravos e valorosos, o outro retrucou-lhe que seria inestimável essefuso (querendo referir a flecha) caso distinguisse os bravos, desejando ma-nifestar que as pedras e setas matavam aqueles que ao acaso atingiam”.98

A leitura tucidideana da anedota, mais o entendimento que por elaconstrói em sua narrativa, apreendeu, como vimos, seu significadoenviesando aquela ótica da fama guerreira espartana – que preceituava ointerdito da rendição – por meio de uma singular apreciação desacreditadoradas capacidades da figura de Cleonte, o demagogo. Entendimento, toda-

96 IV.34-35.97 Assim o entenderam já Gomme (1956, p. 475), Wilson (1979, p. 108) e Hornblower

(1996, p. 190).98 IV.40.2.

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via, extremamente redutor, dada a riqueza de significações que a anedotacondensa.

Assim, a referência à malignidade do aliado ateniense comportaambiguidade de sentido, em conformidade com o entendimento daconotação da referência feita à Aliança de Atenas.99 Se esta supõe a ani-mosidade do aliado para com a dominação ateniense, a frustração de suaexpectativa em relação à campanha de Pilos, desejosa da derrota de Ate-nas, manifesta mais fortemente aquela malignidade como descarga deamargor e raiva, contra aqueles que ela particularmente responsabiliza peladerrota de Esparta. Se a pergunta do aliado não for marcada pelo pesodessa conotação específica, aquela malignidade se manifesta mais propri-amente como escárnio e zombaria. E, neste caso, o sentido da anedota seenriquece particularmente, pois ganha intensidade a contraposiçãoateniense/espartano na agonística pela fama de valor guerreiro.

É precisamente por esta última via de entendimento que caminha aresposta do prisioneiro. Pois ela reafirma altivamente o valor guerreiroespartano (tanto dos mortos em combate quanto dos capturados vivos) pelomenosprezo com que nega o mérito militar da vitória ateniense. Pois,interrogada pela sua (des)apreciação, de que modalidade de combate sevalera Atenas para alcançá-la? Empregou armas que mais parecem coisasde mulheres, essas flechas-fusos, antes instrumentos próprios de tecelãs doque de guerreiros.100 E o que assinala essa forma ateniense de guerrear,prossegue a resposta do espartano, é a cegueira (e, portanto, a nulidade)

99 Já Gomme (1956: 480) explora a dualidade de significações que a anedota registradapor Tucídides comporta.

100 Já na memória poética iliádica (XI.368-400), ao narrar o episódio do ferimento deDiomedes, alvejado por seta disparada por Páris, fixa-se uma imagem altamentedenigridora da modalidade de (pretenso) combatente que o arqueiro representa. Ali, àvanglória com que o troiano tencionava assinalar seu feito glorioso, o filho de Tideu,altivamente impávido, replicou por uma pletora de insultos desaforados com quevilependiou seu adversário, desqualificando seus modos guerreiros: estes assinalam ape-nas covardia de quem antes evita e se recusa à luta, agredindo à distância, e não bravura

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valorativa de sua eficácia: indistingue bravos de covardes, pois seus projéteisatingem indiscriminadamente tanto uns quanto outros. Daí que o combateem Esfactéria, (des)apreciado pela ótica do hoplita, não só não discrimina ovalor dos guerreiros espartanos de modo a arruinar a sua fama, como tam-bém não expressa qualquer valor militar da parte dos atenienses, pois estes,pela forma com que combateram, valem na guerra tanto quanto mulhe-res!101

de quem corajosamente se atraca no corpo a corpo com o inimigo; ser desprovido dequalquer valentia, aparência mentirosa de homem, cujos atos guerreiros o revelam de-nunciando antes sua natureza feminina. Delineamento de traços de modalidades e tiposde guerreiro diversamente apreciados por valorações heróicas, que se desdobramsedimentadas pela oposição que a emergência da figura do hoplita instaura na memóriahistórica da pólis clássica, especialmente figurado em textos trágicos (confiram-se asindicações dadas por Lissarrague, L’autre guerrier, 1990, p. 13-34). E oposição hoplita/arqueiro, assim polarizada pelas valorações da ótica do primeiro, que, em particular,destaca a identidade guerreira espartíata como modelo de excelência nesse modo decombate. Nesse sentido, a anedota memorizada por Tucídides é ecoada por outra, estaa nós guardada por Plutarco, que a conta por duas vezes (Moralia 234e; Vida de Aristides,17): de Calicrates, em sua época tido como o mais belo espartíata, conta-se, a celebrarseu único (ambíguo) feito heróico digno de memória, que, alvejado mortalmente poruma seta dos persas ainda antes mesmo de iniciar-se o combate em Platéia, teria procla-mado que o infortúnio que então afligia sua consciência última de vida não era o fato damorte, mesmo porque esse destino definia a teleologia guerreira espartana, mas simporque morte inglória que inviabilizava-lhe a fama de um feito heróico maior. Ambíguomodo porque, em reconhecendo a desvalia de sua heroicidade, todavia a realizou posi-tivamente pelo dito que a negava. E sinonímia entre excelência guerreira hoplita e iden-tidade espartíata que outra memória celebrou (Xenofonte. Memoráveis, III.9.2) ao lem-brar a reflexão socrática que afirmava ambiguamente ser a coragem virtude passível deaprendizado e instrução, pois, se por um lado ela se fortalecia pela exercitação e prática,todavia ficava condicionada à específica natureza guerreira em causa, pois, jamais umcita ou um trácio, todavia bem armados de arco ou de pelta, teria coragem com queousasse enfrentar lacedemônios em combate de escudo e lança.

101 Mas essas mesmas memórias helênicas, que assim negam toda valia guerreira ao ar-queiro, dizem também recessivamente o contrário, deixando entrever-se a realidade deseu valor e eficácia guerreira, já desde o retrato do episódio homérico do confronto

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Ora, a recusa implicada por esse desacreditar operado pela narrativatucidideana é consoante com o teor similarmente negativo de uma formula-ção antecedente: o descrédito com que ela compõe o traço essencial de seuretrato da participação de Cleonte nesse episódio. No horizonte desta per-cepção, o êxito da iniciativa de Cleonte torna-se tanto mais (in)compreensível,porque seu entendimento fica já amarrado pela depreciação que Tucídidestece da própria promessa com que Cleonte descortinara e planejara seuempreendimento desde o princípio, durante as deliberações da assembléiaque o discutiu. No entender do historiador, essa promessa era totalmenteinsensata, estapafúrdia mesmo:

“Os atenienses e os peloponésios com suas tropas deixaram então Pilos,cada lado retornando às suas casas. E a promessa de Cleonte, se bem quemaluca, realizou-se: no prazo de vinte dias ele trouxe os homens, comoprometera”.102

Por um lado, a narrativa tucidideana expressamente afirma a realiza-ção da promessa de Cleonte, e nos termos precisos em que este a formulara.Mas, por outro, ela continua a marcar a irracionalidade da mesma: sim, apromessa foi cumprida, mas era maluca! Quer dizer, nem pelo fato de ter-serealizado, deixou de ser o que inelutavelmente era desde o nascedouro:insensata, estapafúrdia. De modo que, num sentido, a narrativa tucidideana

entre Diomedes e Páris: foi a seta disparada pela figura menosprezada deste “guerrei-ro-mulher”, que deteve a aristéia entretanto incontida do filho de Tideu, levando-o,vencido agora pelas dores atrozes desse ferimento, a abandonar o campo de combate.Concepção da memória poética heróica com que o aedo resolve o impasse de imagi-nar como um guerreiro de excelência heróica superior pode, todavia, ser vencido emcombate sem que sua retirada implique minoração de seu valor guerreiro: vítima dacovardia traiçoeira de vil e desprezível arqueiro, simulacro de guerreiro. Assim, se con-cebem as possibilidades dos retratos heróicos da morte de heróis maiores, padrões degrandeza superlativa, como Aquiles letalmente ferido pela seta de Páris, ou similar-mente Héracles, desgraçado por outro modo de agressão astuciosa de cumplicidadefeminina.

102 IV.39.3.

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rende-se à evidência do acontecido. E, todavia por outro, nem por isso reco-nhece e admite seu resultado como feito de Cleonte, como produto de seumérito.

É que esta apreciação negativa da promessa de Cleonte fora já pre-viamente elaborada pela narrativa tucidideana. Ela estava dada de ante-mão, independia da consideração do resultado e desfecho daquele empreen-dimento, encetado graças às suas iniciativas. Pela percepção construída pelorelato de Tucídides, a identidade (des)qualificadora dessa promessa cristali-zara-se já desde seu princípio, assim que o demagogo a pronunciou na as-sembléia: ela era tão ridícula e leviana que provocou a hilariedade geral.103

Então, o mérito de Cleonte, apreciado como a instância responsávele determinante do feito (e, portanto, igualmente como instância de inteligi-bilidade e compreensão do acontecimento), é a visada interditada pelacomposição dessa percepção tucidideana daquele líder ateniense. Apreen-dido o acontecimento pelo estigma da irracionalidade da promessa, ele setorna (in)compreensível, (in)inteligível, suscita (in)credulidade, enquantocoisa estapafúrdia mesmo.104

103 Abordaremos esta questão no ensaio seguinte, particularmente em “As reviravoltas dademagogia”.

104 Os comentadores modernos tendem a assinalar, não sem certa dose de ambigüidade, aparcialidade porque Tucídides distorce seu ajuizamento da atuação de Cleonte na cam-panha de Pilos, especialmente ao acusar que sua iniciativa guerreira, apesar de exitosa,era mesmo maluca (maniódes). Assim, tanto Gomme (1956, p. 478-479) quantoHornblower (1996, p. 194) intentam harmonizar um melhor entendimento interpretativodo comentário ajuizante tucidideano que, se não salvar o crédito de excelência objetivade sua fama de competência historiográfica, pelo menos minore a incidência com queesta parcialidade distorcedora de sua narrativa a compromete. Gomme procura ressal-var a justeza do ajuizamento tucidideano apontando que, de fato mesmo, lá no âmbitoda assembléia, pelas promessas estapafúrdias feitas por Cleonte, ela era maluca! EHornblower (apoiando-se em teses de Schneider e de Howie) procura nuançar a impli-cância intrigada pelo ajuizamento tucidideano entendendo que maniódes comporta osentido de parecer maluco: “It would have been fairer to Thucydides to say that the

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promise seemed mad, and it is possible that with the suffix –wdhj the word has thisnuance (‘like madness’). Quer-nos parecer que, ainda aqui, por tais comentários bus-quem os críticos modernos conciliar padrões de excelência historiográfica todavia diver-gentes, o antigo tucidideano e o moderno cientificista, pois toda a inteligibilidade minu-ciosa e permanentemente empenhada pela narrativa tucidideana é a de apontarfactualmente que a campanha de Pilos, em todos os seus aspectos factuais, escapoumesmo a toda possibilidade de direcionamento racional previsivo, esteve fora do campode determinação, agenciado pela razão humana. Nesse sentido, buscar uma melhorjustiça historiográfica de seu ajuizamento de Cleonte requer entendê-lo no sentido deuma interpretação contraditória com esse sentido geral de inteligibilidade da narrativa.

Mas uma tal inteligibilidade do fato construída pela percepção tuci-dideana, a enfatizar o estigma da irracionalidade que define o sentido daseqüência dos acontecimentos singulares decanta-se globalmente ao nar-rar assim, por um lado, o episódio de Pilos-Esfactéria como obra do acasoplena de anomalias, e, também por outro, as assembléias que deliberaramos episódios como dominadas pelos desvarios passionais das práticas dademagogia, a outra instância de irracionalidades estigmatizadoras dessefato da Guerra do Peloponeso.

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PÉRICLES E CLEONTE,DEMOCRACIA E DEMAGOGIA

Os modos da liderança

O primado do domínio público preconizado pela pólis define, emAtenas, a assembléia como lugar privilegiado de decisão política. Na práticada assembléia constitui-se, como sua instância determinante, a resolução doquerer coletivo da cidadania. A elaboração persuasiva desse querer dá-sepelo diálogo que com ele tecem as ações discursivas da cidadania individu-almente destacada. Assim, definem-se que ações e que sujeitos conformama prática política: de um lado, o querer coletivo da cidadania pela prerroga-tiva de decisão da assembléia; de outro, os discursos individuais da cidada-nia pela capacidade retórico-persuasiva dos líderes.

Acerca precisamente desse diálogo do coletivo com o individualconformador do processo institucional de decisão política, que ensinamentoso saber tramado pela narrativa tucidideana retira da trajetória (e do destinohistórico) de Atenas na guerra contra Esparta?

Essa questão é implicada pela narrativa assim que ela acabou de refe-rir a morte de Péricles.1 Tecendo uma apreciação sobre as qualidades daliderança política pericleana, Tucídides elabora também uma reflexão queapreende as razões da derrota de Atenas. Identifica pelo menos duas razõesinterdependentes associadas às reversões causadas em Atenas pelos líderesque se sucederam a Péricles: a perda da dissociação público/privado na

1 A guerra dos peloponésios e atenienses, II.65. Todas as indicações textuais que se se-guem, a não ser expressamente referidas em caso contrário, remetem para o texto daguerra dos peloponésios e atenienses.

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determinação da prática política; e a perda do comando da razão no domí-nio da assembléia. Perdas, portanto, de princípios que fundam o conceito depólis. Assim, a reflexão de Tucídides, pelo saber político que a sua narrativados acontecimentos da guerra sedimenta ao explicar as razões da derrota deAtenas, tece na memória histórica o tema da ruína da pólis, distinguindo eopondo duas modalidades de liderança política, cujas respectivas atuaçõesconstroem os dois tempos da pólis: Atenas sob a liderança pericleana ou ocomando da razão, tempo da grandeza da pólis; e Atenas sob a liderança deseus sucessores ou o império das paixões, tempo da ruína da pólis.

Polarizam a narrativa tucidideana duas elaborações conceituais querespondem respectivamente por essa dupla modalidade de liderança políti-ca: democracia, para a liderança pericleana, e demagogia, para a de seussucessores. Que princípios de conformação e que modos de atuação políticadefinem um e outro conceito?

A célebre passagem do “Discurso Fúnebre” coloca a questão dademocracia:

“Desfrutamos um regime político que nada inveja as leis de nossos vizi-nhos; antes somos nós mesmos muito mais modelo para uns do que imi-tamos outros. Pelo nome, em razão da administração estar voltada nãopara poucos mas para a maioria, chama-se democracia; agora, pelo quecabe efetivamente a cada cidadão: em conformidade com as leis, há igual-dade para todos no tocante aos litígios privados; mas, em conformidadecom o apreço, na medida em que cada um obtenha boa reputação poralgo, não é pela classe mais do que por mérito que se dá preferência paraos cargos públicos, e nem, inversamente, pela pobreza que alguém, entre-tanto capaz de fazer algo de bom para a cidade, é impedido pela obscuri-dade de sua condição”.2

O “Discurso Fúnebre”, afirma especialmente sua originalidadecontestadora proclamando expor esclarecimentos e tecer ensinamentos so-

2 II.37.

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bre os princípios fundadores da forma de regime – democracia – consagradaem Atenas pela liderança pericleana. Primeiro tópico a esclarecer sobre ademocracia: que entendimentos de seu conteúdo ela própria, enquanto de-nominação, designa? O “Discurso” não propõe como tal o entendimentoimediato, propriamente literal, posto pela mera composição dos conceitosconstituintes da denominação: democracia não é, pelo ”Discurso”, afirmadacomo o krátos do demos, como a forma que consagra o exercício do poderpelo povo. Esse, o primeiro equívoco a desfazer: Péricles entendia comoconteúdo designado por democracia, não a afirmação do poder popular,mas somente a consecução da administração pública voltada para a maio-ria, e não para poucos. A denominação de democracia, pelo discursopericleano, assevera que, nessa forma de politeía, “demos aparece sim comobeneficiário, e não como soberano”3.

Esse o conteúdo de democracia que o entendimento do discursopericleano afirma em termos da própria denominação. O entendimento seamplia e precisa, apreendido agora em termos do que a prática da democra-cia efetivamente consolida como direitos com que ela contempla cada cida-dão. De pronto, coloca-se a questão da igualdade. E o “Discurso” concede:há igualdade na democracia. Porém, a ressalva restritiva: no âmbito do pri-vado, em que as leis conferem um tratamento indistinto, indiferenciado, atodos os cidadãos no tocante a seus litígios particulares. Assim, o “Discurso”como que “rechaça a eficácia dos nómoi no instituir a igualdade para odomínio do privado, retirando toda a significação à noção de isonomia,tornada irreconhecível e caduca”4.

Mas a igualdade afirmada pela democracia pára aí. No domínio pú-blico, no que concerne aos princípios que definem os privilégios para o aces-so à direção da coisa pública, a democracia afirma plenamente o império dadesigualdade. Aqui, a instância que determina tais princípios é a axíosis: oapreço, a consideração social atribuída a cada cidadão pela coletividade, na

3 N. Loraux. L’ invention d’Athènes, p. 185.4 N. Loraux. L’ invention d’Athènes, p. 186-187.

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medida mesma em que cada cidadão se distingue, se diferencia dos demaispela boa reputação que o seu viver político constrói. O que implica privile-giar a excelência, a areté, como princípio definidor do acesso à direção esta-tal. Ou seja, na democracia predomina, para a definição da direção estatal,a identidade qualitativa que diferencia singularmente cada indivíduo, nãopodendo, pois, a identidade da pertinência à categoria social sobrepor-se aela. Assim, desde que satisfeito o requisito que aprecia a participação docidadão como benéfica para a cidade, não é a pobreza que impede, pelaobscuridade mesma dessa condição social, tal acesso. Mas isto implica tam-bém dizer, como a outra face da mesma afirmação, que também não é ariqueza que o assegura, pois, se o ser pobre, por si, não impede nem des-qualifica, também o ser rico, por si, não garante nem recomenda.

Assim, a narrativa tucidideana dissolve o conceito de democracia,implicando, por essa operação de dissolução, novamente a questão da lide-rança e suas relações com o querer coletivo da cidadania. Mas também paraTucídides, as manifestações desse querer coletivo da multidão cidadã situama presença e o estigma da irracionalidade. Porque o ímpeto das paixões ascomanda, as resoluções do querer coletivo perdem a direção da razãoprevisiva que planeja a política. Perdida a consciência da razão diretora,apagada da memória pelo assalto das paixões circunstanciais, uma singularanomalia de reversão tipifica a miopia da percepção política da multidão.Diz Tucídides:

“Quando ele [Péricles] percebia-os despropositadamente confiantes pelaarrogância, sua fala abalava-os tendo em vista amedrontá-los, e quandoirracionalmente temerosos, opunha-se-lhes novamente tendo em vistatorná-los confiantes”.5

A irracionalidade (alógos) e o despropósito (parà kairón) que domi-nam as manifestações da multidão deformam, por reversão, sua percep-

5 II.65.9.

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ção política, pois enxergam tudo às avessas: quando a situação recomen-da prudência, extravasam arrogância; quando, pelo contrário, a confiançase faz necessária, paralisam-se de medo.

Mas não só as marcas da volubilidade inconsistente e do despropósitoestigmatizam a irracionalidade da atuação passional das massas, no entenderde Tucídides. A negação do portar-se racional manifesta-se também no modopolítico, de herança mítica, com que a multidão reage face às crises em que sedepara. Assim, os atenienses, exaltados com a visão de seus campos devasta-dos pelas tropas peloponésias, voltaram sua cólera contra Péricles, acusando-o como o agente responsável por aquele estado de coisas, pois, sendo estratego,deixava-os inativos, não os conduzia ao combate, encargo precípuo daestrategia. Apreciação de motivo justificador que nada mais é, dá a entenderTucídides, do que a manifestação catártica dos infortúnios populares que loca-liza assim na figura do comando e no exercício da arché a causa geral de seusmales.6 Igualmente quando se viram vitimados pela conjunção das calamida-des de nova incursão devastadora dos peloponésios e do grassar da peste emAtenas, a mesma patologia típica da reação coletiva diante de adversidadesveio à tona: furiosos, passaram a atacar Péricles, entendendo que, por suacausa – ele que os persuadira à guerra –, desgraças lhes abatiam. Justificaçãode seu proceder acusatório que responde mais uma vez, observa Tucídides,pela descarga catártica dos infortúnios populares contra um bode-expiatório.7

As cóleras das convulsões populares que os infortúnios coletivos suscitam de-tectam nos distúrbios a crise que implica a culpa do comando e, portanto, afalha do agente identificado com o poder, com a arché, instância supostamen-te produtora e asseguradora da boa ordem.8

Perante a negação da razão, que o portar-se político das massassitua, a narrativa tucidideana identifica dois modos opostos de lidar com as

6 II.21.7 II.59.8 Confiram-se nossos comentários ao texto sofocleano do Édipo Rei no ensaio “Édipo e

(o enigma d)a visão das idades”.

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paixões populares, definindo duas modalidades de comando político: deum lado, o promovido e personificado por Péricles; de outro, o inaugura-do e tipificado por seus sucessores:

“Péricles, poderoso pela reputação e pela inteligência, e mais do que to-dos de uma integridade translúcida em questões de dinheiro, detinha asmassas com liberdade, e antes do que ser conduzido por elas, ele as con-duzia, pela razão de que, não derivando o poder que possuía de recursosimpróprios, não discorria tendo em vista o que as agradava, pelo contrá-rio, detendo-o pela reputação, antepunha-se contra sua cólera. Quandoele os percebia despropositadamente confiantes pela arrogância, sua falaabalava-os tendo em vista amedrontá-los, e quando irracionalmente te-merosos, opunha-se-lhes novamente tendo em vista torná-los confiantes.Era, pelo nome, democracia, mas, pelas ações, o comando pelo primeirodos cidadãos. Já aqueles que vieram depois, antes iguais uns aos outros,mas ansiosos cada um deles por tornar-se o primeiro, dispuseram-se aconceder os cometimentos ao agrado popular”.9

Além de dois modos de caráter público – o espírito público (philópolis)e a probidade (a resistência ao dinheiro: chremáton kreisson) –, duas mo-dalidades de capacidade intelectiva compõem a figura de liderançapericleana: a inteligência de percepção política (gnóme), mais o entendi-mento discursivo (hermeneusai).10 A modalidade de liderança pericleanaconsagra o comando da razão: a inteligência perceptiva que atina as açõesapropriadas às necessidades do momento, e a inteligência previsiva quedirige a política pelas determinações do cálculo. A lógica, então, do co-mando da razão na atuação da liderança reclama a inversão das proposi-ções emanadas da multidão, o que supõe a reversão das disposições deânimo das massas. O posicionamento político da liderança é, pois,univocamente conformado como a ação que se dá contra as disposiçõesdas paixões populares, que as enfrenta, dobra e abala. O domínio da po-

9 II.65.8-9.10 II.60.5.

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lítica pelo comando da razão dá-se pela ação da liderança que contraria oquerer da multidão.

Já na modalidade de liderança tipificada pelos sucessores de Péricles,a carência de autoridade que o total vazio de excelência, mas a cabal am-bição pessoal de destaque, suscita, promove uma atuação da liderançaconcessiva ao agrado popular: a direção da política torna-se subserviênciaao querer das massas, acolhimento e satisfação de suas inclinações. Aqui,o domínio da política pelo império das paixões dá-se pela ação da lideran-ça que favorece o querer da multidão.

É especialmente a narrativa tucidideana da campanha de Pilos, porsuas duas assembléias – a primeira que debateu a proposta de paz lacede-mônia, e especialmente a segunda que deliberou o prosseguimento do cer-co ao contingente espartano isolado em Esfactéria –, que constrói uma talpercepção conceitual da demagogia como essa modalidade de liderançapolítica que se define pela remessa da direção política à multidão, com odemagogo aparecendo como o servo obediente que se curva ao seu querer.Em todo o seu relato do episódio, desde o estabelecimento da fortificaçãoateniense em Pilos até seu desfecho final com o aprisionamento dos guerrei-ros espartanos, Tucídides marca as determinações das irracionalidades quecomandam a efetivação dos acontecimentos.

Reviravoltas da demagogia

Assim que terminou de expor quais eram os termos da trégua, entãofirmada pelos comandantes atenienses e lacedemônios em Pilos11, Tucídidesdesloca o cenário de sua narrativa do local de campanha para Atenas,passando a relatar a sessão da assembléia que discutiu a proposta de pazlacedemônia. Terminada a reconstituição do longo discurso pronunciadopelos legados (todavia espartanos), Tucídides aponta quais as razões em

11 Confira-se o ensaio antecedente.

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que eles baseavam sua expectativa de acolhimento favorável para sua pro-posta:

“Como outrora os atenienses desejavam concluir o tratado, e não o conse-guiram porque os espartanos se opuseram, estes presumiam que, fosse-lhesoferecida a paz, de bom grado a acolheriam e entregariam os guerreiros.12

Mas a assembléia contrariou as expectativas lacedemônias. Ela nãose contentou, comenta Tucídides, com a oferta de paz, pois entendia queagora, com o cerco do contingente espartano em Esfactéria, Atenas detin-ha um importante trunfo em suas mãos, o que colocava a conclusão dapaz à disposição de seu exclusivo arbítrio. Ela agora ambicionava mais. E,por trás dessa ambição dos atenienses, Tucídides discerne a persuasão di-retora do demagogo:

“Quem sobretudo conduziu a assembléia foi Cleonte, filho de Cleêneto,um indivíduo demagogo naquela época, sendo também quem mais per-suasão desfrutava junto às massas”.13

Assim, Tucídides identifica conceitualmente a prática política deCleonte: demagogia, a condução das massas na assembléia. Mais ainda,Cleonte personifica singularmente a excelência dessa prática: a persuasãosuperlativa junto a elas. E, na ocasião, a demagogia de Cleonte fomenta aambição dos atenienses.

E é precisamente essa ambição que Tucídides responsabilizará, maisadiante na narrativa, pela recusa ateniense da conclusão de paz solicitadapor Esparta.

E, por fim, como é que a narrativa tucidideana constrói as percepçõesdo erro da demagogia que fomentara a ambição dos atenienses, memori-zando-a como a instância responsável pelo fracasso das negociações com

12 IV.21.1.13 IV.21.3.

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Esparta? Percepção essa que supõe memorizar esse fracasso como a recusada paz por Atenas.

Ao referir inicialmente as expectativas dos lacedemônios em que ba-seavam o êxito da atual proposta de paz, a narrativa lembra que outroraAtenas manifestara disposição favorável nesse sentido, tanto que solicitara apaz com Esparta, não a tendo concluído somente porque esta se opusera.Assim, a consideração, pela narrativa, dessas expectativas lacedemônias pro-jeta a permanência dessa disposição de Atenas do momento anterior para ode agora, o da situação presente dos acontecimentos de Pilos. Assim, instau-ra-se na narrativa a percepção que configura o tratado de paz como objetodas solicitações de Atenas, como expressão do seu querer, como seu ganhonas negociações. Então, o fato de os atenienses não se contentarem com oganho da paz ao exigirem condições para firmá-la, pode, por sua vez, serpercebido, e denunciado, como ganho a mais, como expressão de ambição.Quer dizer, a ambição das massas, insuflada pela demagogia, não tem medi-das: ela não se satisfaz com os ganhos que elas mesmas almejam, antes quersempre mais.

Mas, que ocasião foi essa, anterior a Pilos, em que Atenas desejou aconclusão da paz com Esparta, tendo esta recusado? É provável que a alu-são tucidideana refira-se aos episódios ocorridos em Atenas em decorrênciada segunda incursão lacedemônia de devastação da Ática, o que daria, en-tão, cinco anos antes de Pilos. Nessa ocasião, conta Tucídides, operaramuma daquelas suas costumeiras inversões de disposição: vítimas tanto dasdevastações lacedemônias quanto da peste que então grassava em Atenas,mudaram de ânimo. Localizando a responsabilidade de seus infortúnios napolítica pericleana de guerra contra Esparta, passaram a ansiosamente dese-jar um tratado de paz com os lacedemônios, chegando inclusive a enviar-lhes emissários com esse propósito. Porém, nada obtiveram.14

Assim, é claro, naquela ocasião de inícios da guerra, marcada pelasituação crítica em que Atenas se defrontava, o tratado de paz com Esparta

14 II.59.

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constituía efetivamente o interesse dos atenienses que o solicitavam,ensejando, pois, sua percepção como ganho de Atenas. Porém, agora, nonovo contexto bélico, marcado pela inversão no jogo de forças da guerra (éEsparta quem se encontra inferiorizada e, por isso, solicita a paz), o tratadonão responde mais pelo interesse primeiro de Atenas, e sim pelo de Esparta:por ele, esta busca salvar o contingente de suas forças cercadas em Esfacté-ria. Esse o ganho de Esparta: o resgate de suas tropas.

Mas, e o ganho de Atenas? Pela proposta espartana, é a própria con-clusão da paz que é apresentada como a contrapartida de ganho por Ate-nas. Mas, entendem os atenienses e com eles Cleonte, a conclusão da pazem si não configura o objeto que define o ganho de Atenas, pois, para tanto,seria preciso que isso fosse o que Esparta lhe ofertasse como sua concessãoefetiva. Ora, mas o trunfo do decidir a conclusão da paz e, portanto, ofertaro tratado como concessão, não está mais nas mãos de Esparta, e sim nas deAtenas. Pela conclusão da paz em si, os atenienses, liderados por Cleonte,entendem que nada ganham de Esparta, na medida mesma em que issoeles já detêm.

Atenas atuava, assim, segundo uma lógica própria à realidade belige-rante, a qual concebe a guerra como jogo em que os ganhos e perdas sãocorrespondentemente unilaterais, um constituindo necessariamente a con-trapartida do outro. Atenas pretendia, pois, auferir os ganhos ensejados pe-las circunstâncias de superioridade que o contexto bélico lhe propiciava.Ditou, então, para Esparta, quais eram os seus termos para a conclusão dapaz. Tais termos, que pela ótica da memória configurada na narrativa tucidi-deana são apreendidos como a recusa da paz por Atenas, constituem, nohorizonte dessa lógica de concepção da guerra, as condições atenienses deaceitação da paz.

Mas, afinal, que termos eram esses? Foi Cleonte quem, prossegueTucídides, aconselhou os atenienses quanto às exigências a serem feitas aoslacedemônios. Antes de mais nada, eles deveriam aceder à rendição docontingente espartano em Esfactéria aos atenienses, os quais o trariam paraAtenas. Contra a restituição dos mesmos seria firmado o tratado que defini-

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ria, como contrapartida, a devolução pelos lacedemônios de Niséia, Pegas,Trezena e Acaia em proveito de Atenas.

Certamente, os termos atenienses do acordo não eram amenos paraEsparta. Consistiam de duas ordens de exigências. A primeira: que Espartadesse por fato consumado sua derrota em Esfactéria, quando esta efetiva-mente ainda não tivera seu desfecho, e era só uma virtualidade. Quer dizer,Esparta tinha que publicamente admitir e reconhecer sua condição de der-rotada pela rendição do destacamento em Esfactéria. Seguramente um durogolpe a abalar sua consagrada fama guerreira, que tanto aterrorizava seuscontendores e que tão viva se mostrava no decorrer da guerra: ainvencibilidade de Esparta, aureolada pela inadmissibilidade da rendição.

Segunda exigência: as restituições territoriais. Quanto a estas, Tucídidesesclarece que não se tratavam de posses espartanas adquiridas na presenteguerra, mas sim de áreas cedidas por Atenas anteriormente, devido a umtratado que ela firmara com Esparta face a circunstâncias ruinosas em que,naquela outra ocasião, se encontrava, o que lhe tornava, então, imperiosa aconclusão da paz.

Os legados espartanos, prossegue o relato de Tucídides, evitaram com-prometer uma decisão acerca dessa proposta ateniense, dispondo-se, toda-via, a entabular negociações quanto a todos os pontos da mesma, solicitan-do, pois, da parte de Atenas, a constituição de uma comissão específicanesse sentido. Porém, mais uma vez, adverte Tucídides, Cleonte opôs-se àspretensões lacedemônias:

“Ele afirmava que já se dera conta antes de nada terem de justo as inten-ções dos espartanos; mas agora isso se tornava patente, entre outrascoisas pelo fato de eles se recusarem a debater diante da multidão, pre-tendendo antes fazê-lo por meio de uma comissão de poucos membros.Fossem honestas suas intenções, interpelou-os, que as expusessem a to-dos”.15

15 IV.22.2

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À contra-argumentação de Cleonte, que indignadamente denuncia-va e desqualificava a sugestão lacedemônia, Tucídides contrapõe quaisteriam sido as razões que, para os espartanos, não recomendavam o trata-mento público da questão:

“Eles não podiam debater diante da multidão, pois mesmo no caso emque, face a seu infortúnio, se dispusessem a alguma concessão e, em de-batendo, não obtivessem êxito, ver-se-iam mal com seus aliados. E, poroutro lado, os lacedemônios percebiam também que os atenienses não sepautariam com moderação quanto ao que eles lhes propunham”.16

Diante desse impasse, termina Tucídides, os espartanos deixaramAtenas, sem qualquer resultado.

Assim, a narrativa tucidideana compõe uma percepção do desenten-dimento das negociações de paz entre Esparta e Atenas, ressaltando doisaspectos. Primeiro, ela opõe, à disposição lacedemônia às negociações, arígida intransigência do posicionamento de Cleonte que emperra, entrava, oandamento das mesmas. Segundo, aspecto este que se soma complemen-tarmente ao primeiro, ela novamente acusa na ambição, ou imoderação,dos atenienses o obstáculo que impede a conclusão da paz. Por esta ótica da(i)moderação, amarram-se os fatos e percepções que memorizam a(ir)responsabilidade da demagogia, personificada em Cleonte, como instân-cia determinante da recusa da paz.

Ora, mas a própria narrativa tucidideana aponta elementos que per-mitem, pelo contrário, vislumbrar que a determinação do impasse e insu-cesso das negociações não é assim tão unilateral e localizada quanto elaexpressamente apreende.

Assim, tanto lacedemônios, de um lado, quanto Cleonte, de outro,identificavam (in)conveniências quanto à forma de encaminhamento dasnegociações, para a qual o lugar institucional de sua efetivação constituiria a

16 IV.22.3.

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instância determinante. Os lacedemônios propõem a comissão como o lu-gar adequado, deslocando as negociações do campo da assembléia. Cleonte,pelo contrário, senão receia, seguramente não deseja confiar o encaminha-mento da questão à deliberação da comissão, preferindo forçar sua efetiva-ção na assembléia.

A argumentação com que, então, responde à sugestão lacedemônia,fundamenta-se no princípio de que é o público que confere legitimidade aolugar de deliberação, donde esta só deve ser admissível no espaço configu-rado pela assembléia, que precisamente o concretiza. Se a propostalacedemônia evita o lugar público, assevera Cleonte, fica de imediatodesqualificada, porque denunciam-se interesses que negam o interesse geralinstituído pela e na assembléia. Assim, o princípio alegado pela argumenta-ção de Cleonte acusa, na transposição do público da assembléia para osecreto da comissão pretendida pelos lacedemônios, o prejuízo do interessecomum pelo particular. E o princípio comporta forte apelo popular, porquenomeia e identifica a multidão como expressão desse interesse público, opon-do-o à promoção de interesses privados que a comissão oculta e camufla.

E a narrativa tucidideana, quando revela as razões lacedemônias querecomendavam tal transposição, admite plenamente que o encaminhamen-to da questão pela via da comissão opera efetivamente um ocultamento.Não se trata propriamente do ocultamento denunciado por Cleonte, poiseste opõe, pelas técnicas discursivas de persuasão da assembléia, público eprivado pelo ângulo dos interesses das massas atenienses. Já naquelas ra-zões, é o ângulo dos interesses de Esparta que é propriamente referido. Nocampo das razões deste ângulo, o secreto da comissão resguardaria, contra opúblico da assembléia, um específico interesse de Esparta: sua posição noâmbito da Simaquia do Peloponeso. É que, imposta a deliberação na as-sembléia, efetiva-se uma dissociação entre um interesse particular de Espar-ta – o resgate do contingente lacedemônio em Esfactéria – e seu outro inte-resse na composição da Simaquia do Peloponeso. Então, o que as condi-ções e exigências atenienses de conclusão da paz supunham era circunscre-ver o horizonte da opção espartana pelo primeiro interesse por meio da

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preterição do segundo: o ganho do resgate era colocado contra a perda naSimaquia.

E a proposta ateniense trabalhava em um campo fértil, o da brechaque o episódio de Pilos abria entre Esparta e seus aliados. A própria narrati-va tucidideana vislumbra a latência dessa brecha em vários momentos: quan-do da notificação do exército peloponésio de que ocorrera a ocupação ate-niense de Pilos, quando da convocação das forças peloponésias para quesocorressem Pilos, ou quando da investida naval contra o local não fortifica-do da ocupação ateniense. Em todos esses momentos, a narrativa tucidi-deana dá a entender que o episódio de Pilos era uma questão mais particu-larmente espartana, como que lhe concernia exclusivamente, com seus alia-dos não se animando em arriscar por ela a Simaquia.

Assim, o alcance das exigências atenienses é captado por Esparta: ocomprometimento da hegemonia lacedemônia no Peloponeso. Mas, ao in-teresse da hegemonia, Esparta não se dispõe a ceder. Prefere arriscar a sortedo contingente em Esfactéria.

Mas então, cerca de um mês depois do fracasso das negociações depaz, mensageiros vindos de Pilos traziam a Atenas notícias da campanha:“chegam alimentos ao contingente espartano bloqueado na ilha e o exércitoateniense enfrenta adversidades”.17

O anúncio dessas novas, diz Tucídides, desencadeou na assembléiauma progressão de reações e estados de ânimo.

Primeiro, perplexidade: os atenienses ficaram atônitos com o prolon-gamento inconcluso do cerco a Esfactéria, totalmente fora de suas expecta-tivas.

Logo foram tomados de receios de que, com a chegada do inverno asurpreender as tropas ainda presas à mera vigilância naval da ilha, a campa-nha de Pilos estivesse ruinosamente comprometida, dado que o agrava-

17 IV.27.

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mento das condições de navegação agora inviabilizariam tanto o envio dossuprimentos reclamados pela frota – problemáticos desde o início, pois aregião era inabitada, o que os tornava totalmente dependentes dos com-boios navais que circundavam o Peloponeso, aliás já insuficientes inclusiveno verão – quanto a persistência do bloqueio mesmo naquela região des-provida de portos. Vislumbravam já o fracasso do empreendimento de Pilos-Esfactéria, frustradas suas ambições de aprisionar os espartanos, os quaiscertamente escapariam da ilha de um modo ou de outro, seja devido aoafrouxamento da vigilância ateniense seja porque aproveitassem uma “opor-tunidade de fuga utilizando as embarcações que clandestinamente lhes tra-ziam vívere”.18

Medos desdobrados em um alarmado sentimento de insegurança aoconjecturarem o destino da guerra: presumiam que, se os espartanos nãomais lhes enviavam legações (a propor a paz), era porque tinham algumarazão de fortalecimento.

E essa progressão negativa e desalentadora por que seguiu o ânimoda assembléia dos atenienses redundou finalmente em arrependimento pornão terem concluído a paz com Esparta, quando esta a solicitara cerca deum mês antes.

Fecha-se aqui um andamento da narrativa tucidideana. Da primeiraassembléia, suscitada pelos episódios da campanha de Pilos, para esta se-gunda, a inversão fora total: agora, era Atenas quem se encontrava em si-tuação crítica e delicada, e quem, insegura e receosa, desejava a paz. Pelocontrário, Esparta agora dava mostras de firmeza e confiança.

Reconstituído o clima popular que dominara a abertura da assem-bléia, Tucídides põe logo em cena a atuação do demagogo:

18 Confira-se a tradução do texto tucidideano (A guerra dos peloponésios e atenienses,IV.27-28), acompanhada de comentários analíticos de seu entendimento, por J. B.Wilson, 1979, p. 27s e 96s.

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“Cleonte, apreendendo a suspeição dos atenienses para com ele em virtu-de de sua obstrução ao tratado, declarou que o relato dos mensageirosnão era verídico”.19

Pelo arrependimento, as massas reconhecem o erro de sua decisãoanterior. De imediato, porém, elas identificam e localizam o culpado queresponsabilizam por ter incorrido em tal erro: Cleonte, que impedira a con-clusão do tratado. Contra ele, então, dirigem sua desconfiança e voltamsua animosidade. O demagogo, de seu lado, é sensível no captar as incli-nações momentâneas dos ânimos populares. Ele percebe, de pronto, odesfavor de sua posição perante as massas: elas estão agastadas com ele.Procura safar-se. Toma imediatamente a ofensiva como estratégia de des-vio do rumo pessoal adverso que os debates iam tomando. Desloca, assim,sua posição de acuado, assumindo a de acusador: denuncia inverdades norelato dos mensageiros que informava o estado de coisas em Pilos.

Os mensageiros, atingidos pela manobra desse contra-ataque, sãoreduzidos à defesa: sugerem que, caso não se confiasse neles, fossem envi-ados alguns observadores, a fim de se apurar a verdade de seu relato. Aassembléia acolhe tal proposta, e decide já indicando os observadores: opróprio Cleonte mais Teágenes20. Dessa proposta, encampada pela assem-bléia, resulta novamente a reversão do jogo de acusação e defesa que lá setrava: outra vez é Cleonte quem está acuado. A decisão volta contra ele suaprópria astúcia: ele é pego por sua própria armadilha, vítima de sua pró-pria artimanha. Pois:

19 IV.27.3.20 Há dúvidas quanto à precisa leitura do nome: ou Teágenes (adotado por Gomme, p.

468) ou Teógenes (adotado por Hornblower, p. 186), provavelmente o mesmo queaparece como um dos atenienses signatários do Tratado de Paz de Nícias, em 421(V.19.2).

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“Cleonte, compreendendo que seria forçado ou a confirmar a fala dos queele caluniava ou revelar-se um mentiroso em os contradizendo, exortou osatenienses, já percebendo neles uma disposição algo mais propensa a umaexpedição: se lhes parecessem verdadeiras as notícias, não se devia enviarobservadores e nem delongar mais a perder a ocasião, mas despacharuma frota contra os adversários”.21

O demagogo prontamente compreende a enrascada em que se me-teu, pois o apurar a verdade é fatal para sua forma de atuação política: ela arevela ou como pura calúnia ou pura mentira! Mas, astúcias de desvencilha-mento e faro popular apurado é o que não lhe faltam. Rapidamente, Cleonteopera a articulação eficiente dessas capacidades. Já captou a alteração dosventos que sopram da multidão, e arma sua nova proposta nessa direção.Sustenta, agora, o envio imediato de reforços bélicos a Pilos.

Assim, a reconstituição tucidideana dos debates inaugurais da assem-bléia tece o retrato com que desqualifica a atuação do demagogo, denunci-ando sua particular inconsistência: opera essencialmente recorrendo a calú-nias mentirosas e infundadas. Para Tucídides, não pairam dúvidas: a suspeiçãoda verdade do relato dos mensageiros, que Cleonte lhes assacara, não temqualquer fundamento, não passa de estratagema inventado pelo demagogopara safar-se da situação mal parada em que se encontrava. E a certezadessa apreciação de que a conduta política do demagogo consiste de men-tiras infundadas (e, assim, caluniosas), é fundamental para consolidar a per-cepção historiográfica de que são exclusivamente interesses pessoais – suaprópria sorte – que mobilizam os atos do demagogo.

Mas, prossegue a narrativa tucidideana, a estratégia com queCleonte buscava escapar aos enroscos em que sua própria astúcia o colo-cava, continua a valer-se do mesmo recurso de, em adotando uma posturade ataque acusatório, localizar em outros sujeitos a incômoda posição deacuado:

21 IV.27.4.

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“E, numa alusão a Nícias, filho de Nicérato, então estratego e seu inimigo,recriminava que, apenas fossem homens os estrategos, seria fácil com tro-pas embarcar e capturar os (guerreiros) na ilha; ele mesmo, estivesse nocomando, o faria”.22

Portanto, sugere Tucídides, estratégia imbuída de maligno interesse,pois o alvo por ela escolhido – Nícias, naquela ocasião estratego – era seuadversário político. E novamente o procedimento de acusação do dema-gogo é o mesmo: joga no ar uma denúncia infamante a acusar na covardiados estrategos o fracasso da empresa bélica. Então, aleivosia de uma pro-posta de desdobramento do esforço guerreiro de finalização do cerco aEsfactéria, pois conformada pela retórica de um desafio totalmente incon-seqüente: assevera o demagogo que o empreendimento não apresentavaqualquer dificuldade, bastando que os atenienses preparassem uma expe-dição com tropas de reforço para facilmente levá-la a cabo. E as levianda-des que estigmatizam as maneiras demagógicas atingem por fim as raiasda mais ridícula jactância: Cleonte firmava pessoalmente a consistência desua proposta, dando como garantia sua própria capacidade de comandomilitar para realizar o empreendimento desafiado.

A assembléia, então algo tumultuada pela bazófia do demagogo,volta contra ele seu vozerio: “porque não embarcava imediatamente, jáque lhe parecia fácil”.23

Mais uma vez a intervenção das massas resulta no enredamento dodemagogo nas malhas de sua própria artimanha: ela a desarma, devolven-do-lhe seu próprio desafio.

Movimento da assembléia que Nícias, o principal alvo da provoca-ção de Cleonte, alimenta, armando concomitante sua própria defesa. Fa-lando em nome dos estrategos, colocou em cheque o desafio de Cleonte,ao dispor-se a liberar-lhe o comando das forças que ele bem pretendesse:

22 IV.27.5.23 IV.28.1.

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“Nícias, ao perceber-se assim recriminado, incitou-o a tomar as forças quequisesse, pois, no que dependesse deles, que realizasse ele o empreendi-mento.24

Cleonte, de início, imaginando que tal oferta não passasse de retórica,mostrou-se disposto. Assim, porém, que se deu conta do equívoco, ao com-preender que se tratava de uma concessão de fato, prontamente recuou,alegando que não era ele o estratego, e sim Nícias. Mas este voltou à carga:agora, já tomando a assembléia como testemunha, dispôs-se a entregar seucomando de Pilos, novamente incitando Cleonte a assumi-lo.

Na verdade, observa ainda Tucídides em apontando as razões inte-riores que supostamente afligiam Cleonte, a última argumentação do dema-gogo dissimulava tão só o medo que dele já se apossara, pois toda a segu-rança de sua vanglória repousava unicamente numa aposta na inefetividadedo oferecimento de Nícias: ele supunha que este jamais ousaria ceder a ele ocomando. Assim, dá a entender a narrativa tucidideana, uma vez efetivadano domínio da assembléia a conseqüência concreta da atuação política dodemagogo, desfaz-se de imediato toda sua (in)segurança e (in)consistência,cuja bazófia consiste unicamente em blefe.

A essa altura, a proposta de Nícias ganhou intensa acolhida da as-sembléia, e isto, ironiza Tucídides, devido àquela malignidade de atuaçãoque caracteriza as massas, seu modo predileto de portar-se em assembléia:

“Quanto mais Cleonte esquivava-se da expedição e recuava de sua pro-posta, tanto mais eles pressionavam Nícias a ceder seu cargo, berrandocom Cleonte que embarcasse”.25

A vanglória pedante de Cleonte, sugere a narrativa tucidideana, exas-perou a assembléia. Sua indignação para com a audácia do demagogodesrecalcou-se pelo prazer de enredá-lo em sua própria armadilha. Então,esgotada sua astúcia e irremediavelmente acuado, o demagogo não tem

24 IV.28.1.25 IV.28.3.

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mais saídas: sem ter como desvencilhar-se de sua proposta, assumiu a expe-dição. Avançando perante a assembléia, emitiu este pronunciamento:

“Não temia os lacedemônios. Embarcaria, sem tomar ninguém da cidade,e sim os lêmnios e os ímbrios que lá se encontravam, mais os peltastasauxiliares, vindos de Enos, e quatrocentos arqueiros de outros lugares.Dispondo dessas tropas, junto às que estavam em Pilos, afirmou que den-tro de vinte dias ou traria os lacedemônios vivos, ou os exterminaria”.26

E, assim, continuam as gabolices do demagogo. Outra não podia sera reação da assembléia: desatou a rir com tais leviandades. E não foi só amultidão que se divertiu. A estapafúrdia proposta de Cleonte provocou,igualmente, “contentamentos nos cidadãos sensatos, pois eles calculavamque ocorreria uma ou outra de duas boas coisas: ou se livrariam de Cleonte(com o que mais contavam), ou então, frustradas essas expectativas, teriamos lacedemônios em suas mãos”.27

Na caracterização tucidideana das atuações que efetivam a assem-bléia, distinguem-se três sujeitos: a multidão, o demagogo e os seus antago-nistas. Estes últimos – a fala dos mensageiros inicialmente, Nícias em nomedos estrategos a seguir – aparecem apenas em segundo plano, um tanto àsombra das ações dos outros. Em contraposição aos comportamentos dosdois primeiros sujeitos, a participação dos opositores do demagogo é marcadapela sobriedade e justeza de suas colocações. Ambos aparecem como víti-mas das acusações caluniosas do demagogo, a cujas provocações suas inter-venções e propostas meramente respondem. De forma que a narrativa apre-ende uma percepção da assembléia a compor duas imagens. Uma que cap-ta a assembléia conformada às práticas dos tribunais populares, empolgan-do-se a multidão por sua definição de juiz diante do jogo de acusação edefesa que os dois outros protagonistas tecem. A outra imagem enfoca o

26 IV.28.4.27 IV.28.5.

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movimento ativo e determinante do direcionamento da assembléia, no diá-logo que se trava entre a multidão e o demagogo.

Na atuação da multidão, a narrativa desnuda a irracionalidade daspaixões impulsivas que a comandam. Daí, a volubilidade que marca suasdecisões, sujeitas às reviravoltas do ânimo popular. Segundo os caprichosdos momentos, ora manifestam uma propensão (almejam a paz), ora incli-nam-se pelo oposto (promovem a guerra). Ora, confiantes e decididas, exultamcom uma decisão, ora, confusas e receosas, arrependem-se da mesma, reco-nhecendo-a errônea. Irresponsáveis, as massas não admitem o erro comodecisão sua, antes, de imediato identificam o culpado e contra ele voltam suaanimosidade catártica: o demagogo que as induziu ao erro. Então, irritadas eagastadas, dão vazão à descompostura tumultuada de seu vozerio e berros.Mas, para elas, a assembléia é também divertimento, em que o demagogo éseu palhaço: compraz-se em encurralá-lo, hilaria-se com suas gabolices.

O pólo complementar das massas, o demagogo. Mobiliza-o exclusiva-mente seu horizonte de interesses pessoais, sua promoção individual é aúnica preocupação de sua participação. Não pauta sua conduta por qual-quer ética: inescrupuloso, a mentira e a calúnia constituem seu modo habi-tual de debate. Porque orienta-se exclusivamente por sua promoção pes-soal, não pondera e reflete suas propostas. Estas são levianas, inconseqüen-tes, estapafúrdias, carentes de toda moderação. A audácia de suas assertivasnada mais é do que jactância inconsistente e vazia, que desmorona em medoassim que, frustrada sua manobra de blefe, elas ganham realidade efetiva.Palhaço e bobo das massas, adula e satisfaz seus caprichos, pois suas pro-postas não resultam de sua iniciativa própria e autônoma, mas simplesmen-te ecoam as inclinações impulsivas da multidão.

A memorização tucidideana dos modos e procedimentos que carac-terizam o desempenho político demagógico de Cleonte na assembléiaateniense lembra uma similar cena poética, pela qual Homero compõe afigura de Tersites, fazendo-o intervir na ágora aquéia congregada diante deTróia para deliberar a resolução do cerco à cidadela de Príamo.

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Por esse nome – Tersites, figuração da temeridade – o poeta estigma-tizou o que seja o extremo negativo, o mais baixo e vil, de pretensão políticada parte de um agente que intenta participar do processo comunal de deci-são deliberativa. Antes de tudo, já por suas maneiras de desempenho oratório,“falador desmedido, a vociferar só injúrias por berros estridentes”28, mani-festa-se sua descompostura, seu desregramento, a ignorar os modos formaisda melhor dignidade discursiva. Suas intervenções compõem sempre omesmo unívoco sentido rixento contra os superiores, reis e comandantes.Contra eles querela palavras de desordem, ou porque intente assim agradaro povo aqueu, valendo-se de tudo o que entendesse servir para motivar-lhesrisos e divertimentos às custas daqueles, ou porque, ainda servil ao agradodas disposições populares, ecoa furioso seus atuais ressentimentos e cólerascontra os chefes.29 Ser tão injuriento a desfazer os méritos e valores dosheróis quanto pretensioso em declarações de guerreiro de feitos primorosos,jactando-se como se fosse Aquiles, porém apenas por mimetismo discursivoda linguagem do Pelida, mero arremedo de grotesca paródia heróica.30 Falapomposa, todavia, que não passa de peroração falaz, a dissimular, pelo con-trário, sua natureza covarde, a aproveitar qualquer ensejo para fugir aosencargos guerreiros porque primam heróis.31

28 Homero. Ilíada, II.212-216 (para todas estas passagens do texto iliádico valemo-nos datradução de Cascaes Franco).

29 Este fora justamente o caso da intervenção memorizada pela Ilíada homérica, pois nes-sa ocasião “era contra o divino Agamêmnon que, numa voz aguda, ele expelia injúrias;era, na verdade, pelo seu chefe que os aqueus sentiam extrema aversão, bastante irrita-dos em seu peito”.

30 Assim proclama, ufano de si mesmo, Tersites: “As tuas barracas estão cheias de bronze;também muitas mulheres se acham dentro delas, mulheres seletas que nós os aqueus, tedamos, a ti antes de qualquer outro, quando conquistamos uma cidade. Queres aindao ouro que talvez te traga algum troiano domador de cavalos, de Ílion, como resgate doseu filho, amarrado e conduzido para aqui por mim ou por outro aqueu?”.

31 É assim que Odisseu desmascarou a manobra capciosa da intervenção de Tersites:“Tersites, palrador inconsiderado, se bem que sejas orador de voz clara, retém-te, e não

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Em Tersites, natureza de caráter e de aparência se reiteram. Viciosida-des e vilezas de um modo indigno de atuação deliberativa espelham-se porimagem monstruosa de sua figura física, síntese de defeituosidades corpóreas:“Ele era o mais feio dos homens que tinham vindo postar-se em frente deÍlion: vesgo, coxo de uma perna, peito encovado entre ombros arqueados;em cima uma cabeça bicuda, onde vegetava rala penugem”.32 Naturezaassim deformada de ser humano que indicia exaustivamente baixeza. Nomeidentificador de individualidade apenas para assinalar realização negativade paradoxal excelência: Tersites denomina um indivíduo que se distingueda massa anônima (a, portanto, assegurar um nome na memória poética)por contraditória areté de inferioridade, reverso antitético de virtuosidadesheróicas que dele fazem o superlativo da baixeza, em tudo e por tudo, omais inferior dos aqueus.

Então, Tersites homérico figura o conceito mnemônico do bufão, en-quanto ser abjeto no âmbito da política. As similaridades confluentes de seustraços constitutivos aparecem, assim, igualmente na caracterização tucidi-deana do demagogo ateniense33, a projetar um análogo padrão de inteligi-

pretendas, sozinho, envolver-te em querela com os reis. Não há, afirmo-o eu, piormortal do que tu, entre todos os que vieram a Ílion com o Atrida. Poderias, assim, evitarandar sempre com o nome dos reis na boca, proferir contra eles ultrajes, só pensar noregresso! Pois tal fora a proposta então assacada por Tersites, outra vez a papaguearAquiles: Ó seres moles, vis objetos de opróbrios, aquéias e já não aqueus, voltemos,pois, a nossas casas com as nossas naus, e deixemos este homem aqui, na Tróade, asaborear as suas recompensas, a fim de que ele veja se lhe somos de alguma utilidadeou não”.

32 Ilíada, II.216-220.33 A (des)caracterização da baixa extração social de Cleonte, silenciada pela narrativa

tucidideana, compõe o estigma do personagem na representação cômica dos Cavalei-ros de Aristófanes. Pois, na comédia, sentencia Aristóteles, imitam-se ações de seresinferiores, por modos de agir e figuras de caráter que mutuamente se determinam. Ocaráter (e o pensamento), teoriza o filósofo, compõe uma causa natural determinantedas ações, precisamente porque é segundo as diferenças de caráter (e pensamento)

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bilidade de sua narrativa do acontecimento histórico, de modo a desqualifi-car os propósitos e fins da intervenção de Cleonte na assembléia, privando-a de todo e qualquer mérito, antes nela acusando apenas vícios, mazelas edemais descomposturas injuriosas.

Os paradoxos da narrativa e os registros da memória

E todavia, esta percepção do demagogo como marionete manipula-da ao ritmo dos ímpetos de ira ou de divertimento das massas e que simples-mente propõe o que os desejos destas descortinam, nega a própria concei-tuação tucidideana de demagogia: o demagogo como agente de persuasãoe condução das massas.34 Assim, na narrativa da primeira assembléia, ins-taurada para a discussão da proposta de paz lacedemônia, as práticas entãoefetivadas por Cleonte afirmam justamente aquelas que são subsumidaspelo conceito: as massas decidem convencidas pela orientação política exor-tada pelo demagogo. Já no relato da segunda assembléia, a interação de-magogo-massas aparece invertida: são as paixões das massas que criam aproposta política, o demagogo meramente as expressa enquanto tal, e só

que se qualificam as ações. Assim, nas comédias imitam-se ações baixas e vis, porquepraticadas por agentes de caráter inferior. Mas, acresce ainda Aristóteles, na mímesisdramática “não agem os personagens para imitar caracteres, mas assumem caracterespara efetuar certas ações”. Então, na e para a efetivação fenomênica de cada ação,prima o aspecto em que o caráter aparece como determinante da ação; já na e para aefetivação mimética, na composição do mito poético, prima o aspecto em que a açãodetermina o caráter, na medida em que a composição deste deriva da composiçãodaquela. Para uma análise crítica na abordagem dessa problemática e de seus ecoamentostemáticos na memorização historiográfica moderna veja-se o trabalho de Luís Otáviode Magalhães. Curtumeiros e salsicheiros. A representação cômica da demagogia emCavaleiros de Aristófanes. USP, 1996.

34 Vejam-se, nesse sentido, já os comentários de Gomme, 1956, à p. 468: There was noquestion of Kleon’s leading the people or opposing them; he observed which way thewind was blowing before making his proposal.

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efetivamente a assume por imposição das massas quando, totalmente acua-do por elas, não tem mais por onde fugir e desobrigar-se.

É significativo observar-se que essas duas assembléias configuram, naapreciação com que as avalia a narrativa tucidideana, decisões de alcanceinverso na condução da política ateniense: a decisão da primeira foi memo-rizada como erro de que as próprias massas depois se arrependeram, aopasso que a decisão da segunda, que embora levasse ao êxito do empreen-dimento de Cleonte, foi memorizada como maluca. Assim, a narrativa daprimeira assembléia, a qual afirma o estatuto de sujeito diretor do dema-gogo na prática deliberante da assembléia, aprecia negativamente a figurade Cleonte, porque capta a sua atuação nessa assembléia pela ótica traba-lhada pelos debates da assembléia seguinte, a segunda, a qual memoriza aresponsabilidade do demagogo como agente determinante do erro cometi-do na primeira. Já a narrativa da segunda assembléia aprecia igualmente deforma negativa a figura de Cleonte, iluminando agora antes o estatuto dodemagogo como objeto manipulado pelas paixões populares, cuja partici-pação na decisão da assembléia não pode ser creditada pelo mérito do su-cesso do empreendimento dela resultante, mesmo porque apreciada essaempresa como inconseqüência das leviandades estapafúrdias porque age odemagogo.

Mas, se os dissociarmos por um momento (analítico) do horizonte deinteligibilidade das concepções da demagogia, em que a historiografia tuci-dideana os circunscreve e (des)entende, que tópicos constituíam a propostafirmada pessoalmente por Cleonte na assembléia?

Seu pronunciamento começa, pelo relato que dele dá Tucídides, poruma declaração de destemor, de impavidez – não temia os lacedemônios –,a qual, pelo conteúdo de sua referência à fama guerreira aterrorizadora dosespartanos, é um tanto inesperada, desconexa, considerando-se o contextoda evolução dos debates exposto pela própria narrativa tucidideana. Refe-rência que, entretanto, ganha melhor sentido se entendida no quadro da

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divisão de orientações políticas em debate naquela assembléia, e já atuantedesde o princípio da campanha de Pilos. Pois, desde então, a campanhacontou com oposições entre os próprios atenienses, mais especificamente naesfera do seu comando, a entravar sua consecução. No horizonte desse con-texto de divisão política, a aparentemente desconexa proclamação de destemorfirmada pessoalmente por Cleonte, ganharia inteligibilidade como réplica aargumentos retóricos de dissuasão do empenho guerreiro de Atenas em Pilos-Esfactéria, os quais atuavam no curso dos debates dessa campanha, semprebasicamente infundindo desalento e temores no ânimo popular.

A seguir, Cleonte define qual seria a composição das tropas de refor-ço ao exército ateniense sediado em Pilos: ela opera uma dissociação entrecontingentes guerreiros cidadãos, poupados ou excluídos da convocação, econtingentes guerreiros de procedência não-ateniense (de Ímbros, Lemnos,Enos e outros lugares). O móbil que enseja a convocação de uns – lêmniose ímbrios – parece ser sua ocasional presença em Atenas (os lêmnios e osímbrios que lá se encontravam). Já a convocação de outros – Enos e de-mais – obedece a critérios seletivos respeitantes à sua funcionalidade guer-reira: peltastas e arqueiros.

E o pronunciamento termina pela promessa que estipulava o prazoem que Cleonte, de uma forma ou de outra, levaria a cabo o cerco, aliáscondizente com a argumentação de urgência por ele então arrazoada: den-tro de vinte dias, ou traria os lacedemônios vivos, ou os exterminaria.

Por último, Cleonte, finalizando a assembléia que votara nele para ocomando da expedição, decidiu associar a si, dentre os estrategos destaca-dos para a campanha de Pilos, apenas Demóstenes, pois, acresce o relatotucidideano, ele estava inteirado de que este planejava um desembarqueimediato na ilha a atacar o contingente lacedemônio. Então, preparou ur-gente sua partida.35

Aqui, neste relato do desfecho da assembléia, transparecem, se bemque ofuscados pela figuração contrária dominante no corpo maior do tex-

35 IV.29.1-2.

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to tucidideano, relances de um Cleonte surpreendente: antes audaz do quetemeroso, resoluto do que esquivo, informado do que leviano, ciente doque inconseqüente, e diligente do que passivo.

Então, como o atesta o relato da batalha final em Esfactéria, foi preci-samente aquela inusitada (como o apreende a narrativa tucidideana polari-zada por essa ótica hoplita de percepção do fato) composição de tipos guer-reiros, estranha aos modos de combate próprios da tática de falange, quedefiniu o fator decisivo da vitória ateniense.36 Mais ainda, essa composiçãosupunha uma estratégia de combate definida previamente por Demóstenes,cujo conhecimento das vantagens e eficácia ele já experienciara em suascampanhas anteriores. De modo que, paradoxalmente, a proposição deCleonte, no sentido de enviar aquela singular composição de guerreirosobjetivando a conclusão do cerco de Esfactéria, entretanto desqualificadacomo estapafúrdia e maluca pela narrativa tucidideana37, coadunava-seperfeitamente com os planos traçados por Demóstenes justo nesse sentido,alcançando inclusive a vitória graças a uma apropriada exploração das con-dições de combate terrestre no local de Esfactéria. Que não se trata, portan-to, de proposição inconseqüente e desvairada de um demagogo levianocomo o dá a (des)entender o relato de Tucídides, ainda melhor se indiciapelo detalhe de que o próprio historiador diz que Cleonte estava inteiradodos propósitos de Demóstenes de efetuar o desembarque e dar combate aoshoplitas espartanos.38

36 Confiram-se os comentários de ensaio anterior.37 Nesse sentido, a desqualificação da loucura da proposta de Cleonte, ecoada por Tucídides

em sua narrativa, conforma-se com o teor de desespero derrotista daquela nebulosaótica, que já na assembléia mesma projetava as “razões” da inviabilidade do prossegui-mento da campanha.

38 Confira-se o informe dado em IV.29.2. E, dada a ambigüidade de formulação de umaoutra passagem tucidideana (IV.30.4: “Cleonte enviara um mensageiro a Demóstenespara anunciar sua chegada, e agora alcançava Pilos com as forças que ele originaria-mente requisitara)”, em que o sujeito aludido como quem requisita as tropas de reforçoà campanha de Pilos pode referir seja Cleonte seja Demóstenes (vejam-se os comentá-rios de Hornblower), a proposição feita por Cleonte na assembléia poderia então res-

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Vencida a batalha e terminado com êxito o cerco da fortificação últi-ma em que se recolhera o contingente lacedemônio, então aprisionado,Cleonte retornou a Atenas esplendidamente triunfante, trazendo consigo ostroféus de sua campanha vitoriosa: os escudos tomados ao inimigo39, maisos guerreiros capturados vivos, num total de 292, dos quais cerca de 120espartíatas. Cumprira, pois, o que prometera na assembléia, tendo, no prazoestipulado dos vinte dias, trazido capturados os tão temidos espartanos!

Então, o paradoxo, senão a contradição, implicada pela narrativa tu-cidideana consiste precisamente no fato de que: o desfecho da participaçãodo demagogo na assembléia – a ordem de comandar por aquela estratégiade combate o renovado esforço bélico de Atenas –, que a narrativa tucidi-deana apresenta como o cometimento que Cleonte envidou todos os esfor-ços no sentido de dele desobrigar-se, só o tendo assumido a contragosto porobediência às imposições da multidão, é justamente não só o meio eficazquanto o resultado precípuo de proposição política que se coaduna perfeita-mente com a sua linha característica de atuação e liderança no Estadoateniense.40 De forma que a atuação do demagogo na assembléia aparecepela narrativa tucidideana como o ato de submissão ao querer das massas,o qual, todavia, atende precisamente o que as iniciativas da política do de-magogo previamente almeja!

Poder-se-ia, assim, equacionar tais paradoxos entendendo que, ocul-ta recessivamente sob a memória dominante41 do fenômeno da demagogia,

ponder pela solicitação feita por Demóstenes a partir de sua avaliação estratégica dascondições de combate em Esfactéria. Sobre essa questão confiram-se os comentáriosde Gomme (p. 469, p. 471 e p. 473) e Hornblower (p. 188-189).

39 Vejam-se os apontamentos feitos em nosso ensaio anterior.40 Connor (1971: 134) sintetiza os tópicos centrais da linha de atuação política de Cleonte

em Atenas: “mão forte sobre o império, nenhuma concessão aos peloponésios e de-mocracia popular em Atenas”.

41 Derivamos, livremente e sem maior rigor epistemológico, as idéias de memória domi-nante/recessiva das reflexões trabalhadas por Paul-Laurent Assoun em Marx e a repe-tição histórica.

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destacada pela narrativa tucidideana da assembléia, que o representa comobufonaria das massas, ter-se-ia um outro registro de memorização que anteso supõe como obra da inteligência astuciosa, pelos gregos conceituada comométis. Então, mais propriamente do que o querer das massas criar autono-mamente, segundo os caprichos de seus ímpetos passionais momentâneos,os (des)propósitos da política, não seria antes a multidão que é inoculadapelos temas e orientações inteligentemente disseminados na assembléia pelaatuação dissimuladora do demagogo, que operaria por uma lógica de decla-rações negativas que dá por seus posicionamentos o reverso do que eles defato são? A astúcia da demagogia não consistiria justamente da singularhabilidade de transferir para o seio da multidão as sementes de uma suaproposição política que, por contrariar os ânimos inicialmente exaltados damultidão revoltada, que nela projeta a causa de seus males atuais, poucaschances teria de vingar como decisão da assembléia se encaminhada pelodemagogo no contexto primeiro dessa animosidade hostil para com ele? Demodo que, quando esta proposição manifestamente se constituir na assem-bléia, ela possa aparecer antes como a expressão do querer das massas, jádiluída a percepção de seu sujeito proponente?42

Assim, a atuação do demagogo na assembléia, antes do que ser con-duzida ao sabor das vicissitudes da irracionalidade das paixões populares,

42 No paralelo shakespeareano do célebre “Discurso Fúnebre” de Marco Antônio em hon-ra de César toda a manobra de reversão das (in)disposições furiosas da plebe é condu-zida por reiteradas declarações em que o orador assevera não se dispor a fazer o quefato efetivamente faz: (não) elogiar César, (não) contestar a honorabilidade de Bruto,(não) contraditar a acusação conspiratória acerca da ambição de César, (não) comovera afeição popular por César, (não) pretender rebelar a plebe, espicaçando-a contra osconspiradores, (não) ler o testamento de César. Por este último passo, respeitante àleitura do testamento, de poder sedutor especialmente irresistível uma vez que despertana plebe o apelo de seus interesses materiais mais imediatos, o círculo do jogo dissimulantedo orador se fecha, pois agora é por insistente e inflamada solicitação, ordem mesmo,da plebe que se autoriza o demagogo a consumar aqueles atos, aos quais ele protestavase indispor de início, agora só os perpetrando por estrita obediência às manifestaçõesimperativas do querer da plebe.

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conduziria o movimento destas por essa modalidade de ação inteligente,conceituada como métis.

Nesses termos, poder-se-ia, então, entender ainda na operaçãoastuciosa com que o demagogo, Cleonte, conduz a reversão dos ânimosda assembléia, a eficácia de uma manobra dolosa.43 A lógica que comandatal modo de ação inteligente opera pela criação de aparência dissimuladora,em que a intenção que se dá na ação, a intenção que é apresentada comotal, realiza a identidade oposta do que originalmente é sua identidade mes-ma. A eficácia dolosa da operação de métis dá-se, então, por essa ação deprodução de aparência dissimuladora que oculta a sua identidade pela ena ação mesma de desvendar-se. De modo que o outro desse jogo dolosono caso da demagogia, ou seja, a multidão congregada em assembléia,atua iludida pela aparência simuladora da ação demagógica, sem se darconta do engano, do engodo, de que foi efetivamente objeto, antes do quesujeito.

E por esse jogo doloso da métis demagógica fecha-se, no movi-mento mesmo das decisões da assembléia, o ciclo da total irresponsabili-dade da política assim conformada: não há agentes responsáveis, ou seja,que respondam pelas decisões adotadas. De um lado porque, quandouma decisão da assembléia é reconhecida como errônea, a multidão nãoa assume como responsabilidade sua, descomprometendo-se pelo proce-der acusatório que inculpa o agente de persuasão – o demagogo – que ainduziu ao erro no processo deliberativo de tomada de decisão. Mas, tam-bém do outro lado, do lado do demagogo, fica ambíguo imputar-lhe aresponsabilidade pelas decisões tomadas, porque ele antecipadamente,no processo mesmo dos debates, já se descomprometera dela ao atuar demodo a aparecer como quem obedece às ordens que a multidão ditacomo decisão da assembléia. Fecha-se, assim, o ciclo da total irresponsa-

43 O entendimento dos vínculos conceituais que articulam métis e dólos encontra-se naanálise de Jaa Torrano, O sentido de Zeus, especialmente no capítulo “O doloso senti-do de dólos”, p. 95-103.

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bilidade política que marca a demagogia: a atuação do demagogo naassembléia a constitui antecipadamente em seu princípio, ao passo que aatuação da multidão a sela retroativamente em seu fim.

Então, pela inteligência da métis dolosa, a modalidade de liderançademagógica operada por Cleonte, como a modalidade de liderança de-mocrática, consagrada pela narrativa tucidideana na figura de Péricles, re-verte as disposições de ânimo da multidão, só que pelo modo oposto deatuação: não pela contraposição e enfrentamento positivo e declarado,como na representação da liderança pericleana, mas sim pelo acolhimentoe favorecimento negativamente aparentado. De modo que, a modalidadede liderança política que a demagogia constitui, só aparece como expres-são do império das paixões pela percepção dominante que a obra da me-mória histórica tucidideana decanta, a qual, entretanto, assim se constituiporque elide, oculta como recessiva, a percepção que nela aprecia a açãoda razão astuciosa.

E, todavia, mesmo essa percepção do desenrolar dos acontecimentosna assembléia, pela inteligibilidade projetada pelo conceito de métis dolosa,não alcança ainda um outro registro de memorização presente no relatotucidideano tanto mais recessivo. Pois, nem tudo na ação demagógica deCleonte é necessariamente (dis)simulação de aparência enganosa. Pelo con-trário, suas réplicas aos antagonistas primam pela logicidade positiva de jus-ta argumentação arrazoadora, com que ele então desfaz e liquida as obje-ções que colocam em impasse o encaminhamento de sua proposta políticano curso da deliberação.

Assim, a acusação que ele dirige contra os estrategos, segundo o en-tendimento que dela constrói a narrativa tucidideana, visava especialmentea atingir Nícias, sendo, pois, dotada de malignidade política interessada emarruinar a autoridade de seu adversário. Mas, mesmo que tivesse ela essealcance especioso, nem por isso é desprovida de consistência argumentati-va, pois, de fato, o estratego naquela ocasião era mesmo Nícias, a quem,portanto, competia regular e oficialmente, os deveres do encargo de coman-

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do militar então reclamados para a expedição.44 Assim, a acusação queCleonte dirige aos estrategos estabelece o nexo que identifica nestes um focopromotor daquele clima de desânimo e desistência, a desrecomendar quais-quer esforços de prosseguimento da campanha bélica, e antes induzir a as-sembléia até mesmo no sentido de concluir já a paz com Esparta.

Assim, quando os mensageiros vindos de Pilos propuseram o enviode uma delegação de observadores a averiguar a veracidade de seu relato, acontra-proposta descortinada por Cleonte primou pelo tirocínio justo e pers-picaz de suas razões, as quais voltaram contra aquela proposta dos mensa-geiros os elementos de sua própria argumentação. Pois, em sua réplica,Cleonte deslocou o debate do campo em que a proposta dos mensageiros ofixara – a verdade/mentira do relato –, para situá-lo no da questão maiorporque se solucionaria o cerco de Esfactéria. Para tanto, Cleonte acedeu quese admitisse hipoteticamente a verdade das notícias transmitidas, a supor-seque as forças atenienses deparassem mesmo adversidades para terminar ocerco e concluir a campanha. Só que, a partir daí, inverteu, contra aquelapercepção negativa e desalentadora que de início tomara conta das proje-ções deliberantes da assembléia que a induziam à desistência do cerco, suaprópria lógica fundamentadora: nesse caso de situação, assim tão critica-mente grave, impor-se-ia ainda mais urgentemente intensificar o esforço bélicode Atenas no sentido de concluir o cerco o quanto antes, e não – o queCleonte denunciava como decorrência intrigada pela proposta dos mensa-geiros – delongá-lo ainda mais, prolongando-o a estender-se inverno aden-tro, decidindo-se apenas pelo envio de observadores! Mas a narrativa tucidi-deana, porque enquadra a contra-proposta de Cleonte pelo ângulodesqualificador da demagogia leviana e apenas diligente, em termos de seusinteresses pessoais, turva a percepção do alcance certeiro e incisivo do tirodesferido pela argumentação de Cleonte. Aqui, mesmo a percepção da inte-ligência astuciosa da manobra do demagogo perde a transparência de suaracionalidade positiva.

44 Confira-se já o comentário de Gomme (1956: 468).

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Mais ainda, a argumentação de Cleonte implicitamente acusa ummovimento de persuasão da assembléia no sentido de levá-la a desistir docerco. Tal movimento aparece na narrativa tucidideana registrado como umaprogressiva cadeia de reações negativas, suscitadas no ânimo da assembléiaem decorrência de projeções tiradas das notícias transmitidas pelos mensa-geiros: confusão e perplexidade que dão lugar a preocupações e incertezasquanto às perspectivas de prosseguimento do cerco, cujo êxito se acredita jáirremediavelmente comprometido, antevendo-se mesmo seu fracasso, deforma a gerar receios e inseguranças tais que terminam em arrependimento,logo desafogado em hostilidade contra a política bélica agressiva propugna-da pela liderança de Cleonte.

Ora, no contexto mesmo da percepção apreendida dominantementepela narrativa tucidideana, é paradoxal o aparecimento totalmente inespe-rado de uma disposição de ânimo já belicoso na assembléia, à qual a pro-posta de Cleonte, nesse sentido apenas ecoaria, pois fôra até então exata-mente o seu oposto o clima popular que dominara na assembléia desde oprincípio. Como, e por quais razões, operou-se essa mutação no querer daassembléia, que agora passava a dispor os atenienses já no sentido favorávelà continuação do esforço bélico reclamado pela campanha de Pilos, o textode Tucídides silencia um tanto enigmaticamente. Fica-se com a impressãode tratar-se de mais outra das costumeiras reviravoltas que, no entender dohistoriador, tipificam o comportamento passionalmente ocasional das mas-sas: num momento propendem numa direção, no momento seguinte deci-dem o inverso! Ora, mas é intrigante que essa nova propensão da assem-bléia responda exatamente pela teleologia de orientação beligerante e pos-tura agressiva, que distinguem as iniciativas da linha de atuação políticapromovida por Cleonte no cenário ateniense da guerra arquidâmica.

Para tal desencadeamento do pânico pessimista porque principiou adeliberação da assembléia a desembocar em sua animosidade irada contraCleonte, o relato dos mensageiros foi peça fundamental em termos de suarazão fundamentadora. Pelo que dá a entender a narrativa tucidideana, nãohá dúvidas de que esse relato fosse verídico, pois ela declaradamente de-

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nuncia como calúnia infundada a acusação de Cleonte que o desqualificavacomo mentiroso! Para a memorização historiográfica conformada pela nar-rativa tucidideana, trata-se mesmo de um fato: a situação militar real vigenteem Pilos!

Ora, mas como a narrativa tucidideana constrói essa sua certeza?

Ressaltam dois momentos do texto. O primeiro é constituído peloquadro que o historiador traça do desenrolar do cerco de Pilos-Esfactéria,referindo os acontecimentos passados após o fracasso das negociações depaz. E a composição desse quadro antecede, na narrativa, imediatamente orelato da sessão da assembléia. Fica-se, assim, desde esse momento, inteira-do de que a guarnição lacedemônia na ilha sustentava sua posição (conhe-cimento este ancorado na exposição dos expedientes empregues pelosespartanos no sentido de remeter-lhes os alimentos), como também fica-seinteirado de que as forças atenienses enfrentavam dificuldades. E o relato dasessão da assembléia, por sua vez, abre-se precisamente pelo registro desseduplo conhecimento fatual, apresentado pelas notícias trazidas pelos mensa-geiros vindos de Pilos: “chegam alimentos ao contingente espartano blo-queado na ilha e o exército ateniense enfrenta adversidades”.45

Portanto, antes mesmo de iniciar a narrativa do relato dos mensagei-ros na assembléia, a veracidade de seu conteúdo está antecipadamente as-segurada pelas asseverações do historiador então, apresentadas como fatos.Sua verdade é posta de princípio.

O segundo momento do texto, em que Tucídides afirma a certeza daverdade do relato dos mensageiros, denuncia expressamente, pelo contrá-rio, a mentira de Cleonte. E por um artifício narrativo. Pois o historiador tece,então, um comentário em que apreende as razões motivadoras da manobrado demagogo, como que perscrutando o diálogo mudo que se travava naconsciência deste.46 E esse diálogo dissipa persuasivamente quaisquer incer-

45 IV.27.1.46 Os comentadores modernos acusam uma certa impropriedade no procedimento

tucidideano de assim projetar as motivações secretas dos pensamentos de Cleonte, que

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tezas, pois por ele se dá que Cleonte tem a mais absoluta ciência de que estámentindo!

Então, pelo primeiro momento da narrativa, é o tempo posterior desua composição pelo historiador que constrói a certeza de sua apreciaçãodenunciadora da mentira de Cleonte, alicerçando-a pela lógica da tramados fatos e informes que a compõe. Pelo segundo momento, e graças àqueleartifício narrativo, essa certeza é ancorada (retroativamente projetada) notempo mesmo da assembléia.

Mas, por um lado, o debate que se seguiu na assembléia ao relato dosmensageiros e que antecedeu a intervenção de Cleonte, compunha, basea-do no duplo conteúdo de seus informes, um retrato altamente negativo,todo pessimista, quanto ao prosseguimento do cerco, retrato este, todavia,no mínimo questionável. Pois um de seus pontos básicos – o receio de que o

o historiador jamais poderia ter conhecido (confiram-se as observações de Hornblower,1987: 78). O historiador antigo, entretanto, não raro opera a dialética dos nexos dedeterminações entre a composição da figura de caráter e os atos praticados por umdado personagem, como uma espécie de instância de mútua veracidade, como bem oaponta G. S. Shrimpton (“a caracterização, seja de povos ou de políticos e estadistasindividuais, compunha uma justificação para a escrita da história – em muitos casos – ebem regularmente uma fonte de verificação para a narrativa. Isto implica que a narra-tiva tendia a constituir um argumento para a caracterização, que por sua vez verificavaa narrativa”; History..., p. 22; confiram-se igualmente as considerações externadas nap. 115: “os historiadores desde Tucídides usavam o caráter éthos em suas narrativaspara verificá-las. O êxito do lógos construído tendo por base o éthos retroage positiva-mente sobre o éthos. Assim, lógos e éthos existem paralelamente em uma relação demútua confirmação”). Assim, Heródoto (Histórias, VI.123) recusa a verdade da históriaque denunciava o medismo dos Alcmeônidas por ocasião de Maratona, figurando aidentidade de sua defesa da causa da liberdade por permanente combate à tirania.Assim, Aristóteles (Athenaíon Politeía, VI.3) igualmente denuncia a falsidade da históriaque acusava o envolvimento pessoal de Sólon na falcatrua tramada por seu círculo deamigos a explorar os benefícios da sisactia. E, assim, ainda Aristóteles compõe as figu-ras de caráter dos Pisistrátidas memorizadas consoante a fama de seus atos (AthenaíonPoliteía, XVIII.1-2; confiram-se nossos comentários ao texto aristotélico, p. 189-190,nota 2).

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inverno viesse a surpreendê-los, agravando ainda mais as dificuldades deaprovisionamento de víveres das forças atenienses – especulava com a vin-da da má estação quando havia ainda três meses de época normal de cam-panha, sendo que um mês e meio de verão!47

E, por outro lado, o tempo da assembléia é o tempo da indetermina-ção. Lá, a fala dos mensageiros é questionada na sua veracidade. Ora, nesselugar institucional das práticas da assembléia, como pode uma fala firmar acerteza de sua verdade? Na assembléia, dá a entender o próprio Tucídides,a (in)definição da verdade fica submetida à confiança e convencimentomomentâneos da multidão, persuadida pelas falas em debate. Ambos, men-sageiros e Cleonte, reconhecem-no expressamente. Os primeiros, quandoadmitem que a assembléia coloque em suspensão (e, portanto, sob suspeição)a verdade de seu relato, caso não depositasse confiança neles. O segundo,quando concede que a assembléia possa, pelo contrário, acolher tal relato,caso lhe parecesse verdadeiro. Aqui, no tempo da assembléia, verdade oumentira do relato não é tanto uma questão de fato em si, mas de manobrapolítica porque se persuade ou dissuade tal ou qual proposição deliberativa.Pode, lá, ficar mesmo irrelevantemente em suspenso ou sob suspeição.

Assim, a manobra de Cleonte, que acusava a inveracidade do relatodos mensageiros, é politicamente tão (in)consistente no âmbito das práticasda assembléia quanto a dos mensageiros que asseverava, pelo contrário,sua veracidade. Se apreciada apenas como manobra astuciosamente calu-niosa, como o faz Tucídides, perde-se outra vez a percepção de sua coerên-cia de racionalidade positiva.

*

Foi especialmente com a obra de Francis M. Cornford – Thucydidesmythhistoricus, datada de 1907 – que se firmou na tradição historiográficamoderna a consciência da obra do acaso na determinação dos aconteci-mentos da campanha de Pilos-Esfactéria. Concebida nos horizontes episte-

47 Confiram-se as estimativas calculadas por Gomme (1956: 478).

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mológicos do círculo que se convencionou denominar os “Ritualistas deCambridge”, a leitura tucidideana de Cornford fazia emergir a persistênciados componentes de irracionalidade no âmbito do pensamento clássicohelênico, e mesmo em um de seus supostamente expoentes máximos deidentidade historiográfica racionalizante, Tucídides.

A crise dos paradigmas epistemológicos da historiografia cientificistano decorrer do nosso século, especialmente por seu ideal de alcançar umaobjetividade analítica que desse conta da expressão dos acontecimentos his-tóricos em sua pura realidade fatual, tendeu, por sua vez, a reverter o sentidodos ajuizamentos hermenêuticos da historiografia tucidideana: onde antesprimava a figura do historiador antigo de máxima competência científica,acuradamente objetivo e preciso, a dominar a verdade dos fatos da Guerrado Peloponeso, começou a ganhar vulto antes seu fantasma reverso, a agoradestacar-se, ou inclusive acusar-se, suas imprecisões, seus erros, suas falhase até suas subjetividades narrativas, mesmo as mais passionalmente com-prometedoras no caso de sua apreciação histórica das atuações de Cleonte,a ponto de, por ela, prejudicar sua perspectiva de toda a campanha de Pilos.Por uma espécie de tendência pendular da crítica moderna, onde Tucídidesfirmara na narrativa dos acontecimentos a interferência imprevisiva do acaso,agora passaram-se a corrigir tais equívocos resgatando antes as projeções deracionalidade previsiva da inteligência humana planejadora dos aconteci-mentos que teria sido obliterada pela análise tucidideana.48 Assim, por exem-plo, o concurso da presença dos messênios nessa campanha: Demóstenes aintegrara antecipadamente em seus planos ao ensejo de seus contatos ante-riores com os messênios de Naupacto, de modo que aquele inesperado apa-recimento dos barcos messênios pelas águas de Pilos teria sido previamenteconcertado pelo comandante ateniense. Ou, assim, o incêndio da mata deEsfactéria, ateado não acidentalmente por um guerreiro negligente, mas tam-

48 “Em grande parte porque Tucídides superestima o papel da sorte em seu relato dacampanha de Pilos, os críticos reagiram dispondo que muito do que acontecera emEsfactéria fora o resultado de cuidadoso planejamento” (Roisman, 1993: 40).

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bém planejado racionalmente por Demóstenes, como mais outro de seusinteligentes recursos de estratégia militar, especialmente aprendidos nas cam-panhas pela Etólia e Acarnânia, no ano anterior.

E, todavia, como aponta judiciosamente Joseph Roisman, em seuestudo – The general Demosthenes and his use of military surprise (1993) –um tal resgate a universalizar os aspectos de determinação dos acontecimen-tos pela obra da razão humana previsiva acarreta, por sua vez, a necessida-de de obliterar os aspectos fatuais, informados por Tucídides, que a ela nãose adequam. Pois, se Demóstenes antecipadamente acertara a vinda dosmessênios a Pilos, assim planejando sua participação, fica ainda maisestarrecedor que ele não tivesse confiado seus planos também aos estrategosda frota, Eurimedonte e Sófocles: porque teria ele então sido zeloso no sigiloreceando quebras junto a estes seus colegas, mas não da parte daquelesseus assistentes messênios?49 E se preparara ele o favor desse concurso, porque não previra também mais outros preparativos que facilitassem o em-preendimento, antes entregando-se às vicissitudes daquelas precárias e inu-sitadas obras de fortificação de Pilos?

A reversão interpretativa, respeitante ao episódio do incêndio namata de Esfactéria, assim tramada pela leitura da crítica moderna, igual-mente acusada pela análise de Roisman que aponta as diferenças estraté-gicas do mesmo em relação ao similar incêndio da mata nas campanhasda Acarnânia50, adquire também implicações surpreendentemente enig-máticas. Pois, pelo que conta Tucídides, para que o incêndio favorecesse aexecução do plano de desembarque de Demóstenes fora fundamental nãosó o ato de que tivesse sido ateado, mas mais ainda que coincidisse comum forte vento, então soprado, que o alastrara por toda a ilha! Assim,Demóstenes teria então que ter também previsto esta manifestação atmos-

49 Confiram-se as objeções de Roisman (1993: 34) às conjecturas de Strassler acerca deum suposto receio demostênico de quebra do sigilo de seu plano de operações emPilos, como razão explicativa para a ignorância do mesmo pelos estrategos oficiais.

50 Roisman (1993: 38).

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férica coincidente com a hora da refeição daquele grupo de guerreirosatenienses!51

Se, pela leitura tucidideana, predomina a impressão da obra do acasona determinação fatual dos acontecimentos de Pilos assim obliterando oalcance da razão previsiva humana, por esta reversão hermenêutica porparte da crítica moderna maximiza-se a tal ponto essa capacidade de inteli-gência humana previsiva, obliterando o alcance do acaso, que antes se aassemelha a virtudes de potências divinas.52 Se a razão historiográfica tucidi-deana deslocara a presença do divino pela categoria do acaso, a da críticamoderna, agora desloca a do acaso por uma razão humana de representa-ção antes divinizante.

51 Na batalha naval travada nas águas do golfo de Corinto, logo no segundo ano deguerra, Fórmion, o comandante da frota ateniense, explorou inteligentemente, em prolde sua tática de combate, a previsão da ocorrência de um vento que acabou por arrui-nar a formação da frota peloponésia e, conseqüentemente, ensejar sua própria vitória.Pelo que informa Tucídides, tal fora possível porque aquele vento soprava regularmen-te, sempre provindo do golfo e ao romper da aurora. No caso do vento de Esfactéria,entretanto, o historiador assinala antes a manifestação ocasional do vento que soproupela ilha. A especular-se, pelo contrário, que Tucídides assim desconhecia uma regula-ridade no regime de ventos no local, o que então poderia ter ensejado a Demóstenesuma previsão similar à de que se valera Fórmion, incorre-se, todavia, em uma interpre-tação inconsistente, pois neste caso tal suposição conflita com o fato de que o empreen-dimento do desembarque ateniense em Esfactéria tivesse se retardado por cerca de ummês, dado que aquela suposta regularidade, e sua ciência previsiva por Demóstenes, oensejasse mais imediatamente (remetemo-nos aqui às considerações que faremos emnosso ensaio final – “Leões alados e círculos triangulares” – no que concerne a taishipóteses especulativas tendentes a acertar os erros ou as inconsistências que arrazoa-mos detetar nos textos antigos).

52 “Mas afirmar que Demóstenes podia prever todos estes desenvolvimentos é dotar-lhes depoderes sobre-humanos de pronoia” (Roisman, 1993: 35). Ainda, Roisman dá a enten-der a operação de uma certa teleologia hermenêutica da crítica moderna, nessa suainclinação por identificar plenitude previsiva em todos os movimentos do comandanteateniense na campanha de Pilos: “Quando não se assume que os resultados devamespelhar intenções, ou que Demóstenes fosse um mestre planejador, permanece a possi-bilidade de que ele tivesse sorte” (p. 38).

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Para a apreciação hermenêutica da atuação demagógica de Cleonteo mesmo nexo de categorias atua no jogo das projeções figurativas que osregistros de memorização ensejam.

Pela memória dominante do texto tucidideano, o demagogo aparececomo o bobo das massas, marionete manipulada ao (des)compasso de seuscaprichos e divertimentos, papel a que ele mesmo se presta acumpliciadoem vista da inescrupulosidade de suas exclusivas motivações pessoais inte-resseiras. Então, à futilidade dos propósitos das massas na assembléia ele(cor)responde pela leviandade de sua atuação política. Por esta memoriza-ção, a métis do demagogo aparece rebaixada a seu nível ínfimo de espertezaa mais rudimentar, assim confinando com a sua caracterização já caricata,presente nas comédias aristofânicas em que se a degrada por tons exacerba-dos de escárnio aviltador.

A essa memória pode-se contrapor a figuração recessiva, que igual-mente transparece como leitura possível da narrativa tucidideana, especial-mente se apreciada à luz da inspiração shakespeariana. Aqui, inverte-se adialética do jogo astucioso entre massas e demagogo, esses ambíguos par-ceiros e disputantes que a demagogia articula. Pois, a figura caricata de estu-pidez palerma, vítima grosseiramente insciente de ludíbrios e engodos, ficaagora concentrada nas massas, o demagogo sendo antes apreciado pelainteligência mais refinada de sua arte astuciosa que opera pela dissimulaçãodiscursiva, formulada por negação de identidade. Mas, apreensão esta damétis dolosa do demagogo que, se levada ao alcance extremo de sua expla-nação dos fatos de modo a entender a totalidade das manobras do dema-gogo como atos de dissimulação dolosa, implicaria supor em sua pessoavirtudes de planejamento de razão previsiva por domínio pleno do desenro-lar dos acontecimentos, especialmente dos modos de reação tanto das mas-sas quanto de seus oponentes na assembléia, que beira as projeções darepresentação dos poderes dos entes divinos. E sobre ela paira a nebulosida-de de uma teleologia hermenêutica na operação de nossa leitura, pois nãoestaríamos caindo, então, na figuração sarcástica denunciada já por um an-tigo comediógrafo, anonimamente referido por Luciano, ao dar, da suposta

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métis de Cleonte, a seguinte definição por paradoxal ironia: “um Prometeuapós os acontecimentos”.53

A essas memorizações que (con)figuram a métis do demagogo, sejaem seus registros mais rebaixados de esperteza seja nos mais elevados deprimorosa inteligência, contrapõe-se o terceiro registro, também recessivono texto tucidideano, que apreende antes a atuação de Cleonte determina-da pela soluções que a lógica da razão positiva descortina consoante àscircunstâncias, também imponderáveis, do jogo a cada momento atualizadopela evolução dos debates na assembléia.54

Intentar dirimir, na figuração da demagogia de Cleonte, a (ir)realidadedessas distintas contraposições perceptivas enreda-nos, então, nas teias ema-ranhadas de seus registros de memorização, com efeitos especialmente rui-nosos se ou as ajuizarmos pelos reclamos de um princípio de criteriosidademutuamente excludente a impor a positividade homogeneizante da razão esentido exclusivo de um deles contra a eliminação das razões e sentidos dosoutros ou os compusermos em uma pretensa interpretação unívoca, queamalgame consistentemente suas razões e sentidos.55

53 Confiram-se as indicações dadas por Gomme (1956: 479).54 Deparamo-nos com uma problemática similar a esta no que respeita às memorizações

históricas da figura de liderança política de Terâmenes no cenário político ateniense,igualmente oscilando entre sua percepção pelos delineamentos ou da atuação astuciosadissimiladora, como na comédia aristofânica, ou da conduta pautada por princípiospositivos de legalidade cívica, como na narrativa aristotélica da Athenaíon Politeía (con-firam-se os comentários nesse sentido tecidos na nota 9 do capítulo XXVIII de nossatradução desta obra).

55 Talvez se possa aproximar esta problemática epistemológica respeitante aos registrosalternativos da memorização tucidideana da demagogia de Cleonte dos delineamentosda categoria de complementaridade, propostos no âmbito filosófico das teorias da Me-cânica Quântica, mormente elaborada por Niels Bohr. Confira-se, nesse sentido, a aná-lise interpretativa dessa categoria por Max Jammer (The philosophy..., p. 104), que delapropôs esta axiomatização caracterizadora: “uma dada teoria admite uma interpreta-ção de complementaridade se as seguintes condições forem satisfeitas: 1) a teoria con-tém (pelo menos) duas descrições do objeto em questão; 2) essas descrições referem-se

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Tanto mais que, nessas obras de memorização histórica da demago-gia de Cleonte, o jogo das interpretações oscila também por um sutil deslo-camento conceitual, este registrado por uma tradição comentada por Plutarcona coletânea de seus tratados éticos, intitulada Moralia:

“Cleonte, quando primeiro decidiu participar da vida política, reuniu seusamigos e renunciou à sua amizade como algo que freqüentemente enfra-quece e perverte o que é a alternativa correta e justa de orientação na vidapolítica. Mas ele teria feito melhor se tivesse banido de sua alma a cobiçae o pendor querelento e se purificado da inveja e da malignidade; pois acidade necessita não de homens que não tenham amigos ou companhei-ros, mas homens valiosos e sensatos. Do modo que se deu, ele afastouseus amigos. Mas um bando de serpentes aduladoras enrolou-se nele,como diz o poeta cômico; e ao ser áspero e duro para com os notáveis, porsua vez sujeitou-se à multidão a fim de ganhar seu favor – o gerontagogo,doador de salários reiterados – que fez dos mais despretensiosos e medío-cres seus associados contra os melhores cidadãos”.56

O princípio de teleologia política, consagrado pelo gesto de renúnciade Cleonte em relação a seu círculo de amizades, firma-se em termos doprimado de uma ética de correção e justiça formulada em sua universalida-de e autonomia de propósitos, a precisamente desvencilhá-lo dos compro-metimentos arruinadores que os nexos da philia pessoal implicava. Lampejosdessa postura aparecem na memorização do texto tucidideano, quer nasausteras denúncias com que Cleonte liquida a proposta espartana de reme-

ao mesmo universo de discurso; 3) nem uma nem outra dessas descrições, se conside-rada isoladamente, dá conta exaustivamente de todos os fenômenos desse universo; 4)essas descrições são mutuamente exclusivas no sentido de que sua combinação emuma descrição singular levaria a contradições lógicas”. E a referendar sua análise, lem-brou então Jammer, entre outros, os ditos do próprio Bohr (“na Física Quântica, aevidência acerca dos objetos atômicos por meio de diferentes arranjosexperimentais...manifesta-se contraditório quando se tenta uma combinação em umaapresentação singular”) mais o de Born que neste termos sintetizou a questão: “não háuma imagem única de nosso mundo total de experiência”.

56 Plutarco. Moralia, 806F-807A, segundo a tradução proposta por Connor (1971: 93).

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ter a discussão do tratado de paz para o âmbito secreto de uma comissão,quer naquelas argumentadas contra a postergação ou mesmo desistênciado cerco de Esfactéria. De imediato, entretanto, Plutarco desloca essaconceitualização preterindo-a por uma sua face reversa, a qual a (des)entendepela implicância de uma opção contrária a sujeitar o demagogo aos com-prometimentos dos agrados populares. O que aparenta ser uma implicânciatão sutil quanto óbvia, pois uma tal ética que reclama imparcialidade deposicionamentos a exigir o rompimento dos vínculos e nexos sociais queantes os comprometeriam, bem pode firmar, ou (com)provar, essa sua im-parcialidade, induzido a defender o lado oposto a esse círculo de amizades!57

E, todavia, o que o princípio ético de Cleonte reclamava era antes a inde-pendência de vinculações deformadoras de sua conduta política, o que exi-gia dele romper os laços que pessoalmente o implicavam, no caso, seu círcu-lo de amizades entre os cidadãos prestigiosos. Não supunha necessariamen-te, portanto, a definição comprometedora “populista” a que não só Plutarco,mas igualmente já Tucídides e Aristófanes, estigmatizam. A independênciade conduta, firmada pela universalidade de um princípio de justiça e corre-ção, enseja então a Cleonte igualmente aparecer como quem confronta tam-bém as massas na assembléia, e mesmo as critica, assim denunciando inclu-sive os equívocos de suas afeições pelos espetáculos sofísticos, lá na assem-bléia insidiosamente tramados pelos opositores da democracia.58

57 Confiram-se os similares reclamos da ética historiográfica preceituada por Políbio (I.14.4-5): “Em outras espécies de relacionamento na vida talvez não devamos excluir total-mente esse tipo de favoritismo, pois um homem bom deve amar seus amigos e suapátria, e deve compartilhar as aversões e as simpatias dos amigos; mas quem se revestedo caráter de historiador deve ignorar tudo isso, e muitas vezes, se for compelido pelasações de seus inimigos, deve falar bem deles e distingui-los com os maiores elogios,enquanto lhe compete criticar e até condenar severamente seus amigos mais íntimos,se seus erros de conduta lhe impõem esse dever” (tradução de Mário da Gama Kury).

58 Enveredamos aqui pelas implicações historiográficas da análise do célebre discursotucidideano, que figura a atuação de Cleonte no episódio da revolta de Mitilene, o quereclamaria um outro estudo (nesse sentido, veja-se o artigo de James A. Andrews.Cleon’s ethopoetics, The classical quarterly, 44, 1994: 26-39).

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X. Leituras daAthenaíon Politeía

PERDA E REDESCOBERTA

Politeíai em fragmentos

Finalizando as reflexões que compõem o tratado por nós conhecidosob o título de Ética Nicomaquéia (X.1179b31-1181b22), Aristóteles tececonsiderações adicionais que, desdobrando a ética em política, anunciamcomo que um programa de estudos voltados para o exame das questõesconcernentes à ação legisladora (nomothesía), empreendimento este, obser-va o filósofo, que fora deixado inexplorado pelos antecessores.

Tal exame, associado em termos mais gerais à abordagem dos tópicose problemas respeitantes à estruturação do regime político da cidade (politeía),distingue e prevê dois momentos de operações analíticas diferenciadas. Emprimeiro lugar, haveria que passar em revista tudo o que de valioso já foracolocado pelos que, precedentemente, se tinham dedicado a essas questões.E depois, já anunciando as proposições finais do novo estudo, haveria quebuscar a apreensão teórica (theoresai) de quais coisas preservam e quaisarruinam as cidades, bem como cada um de seus distintos regimes, mais aapreensão teórica de por quais causas umas são bem governadas e outrasnão.

Tal programa de estudos do Liceu, como é bem sabido, compõe boaparte da obra por nós conhecida como Política. Mas este segundo momento,pondera o filósofo, derivaria (da consideração) dos regimes colecionados(ek ton synegmenon politeion).

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Tais são as colocações com que o próprio Aristóteles enuncia a exis-tência de um repertório de textos dando conta dos diversos regimes já efeti-vamente experienciados, repertório este destinado a dispor as informaçõesque melhor fundamentariam as teorias políticas do Liceu.

Nas Listas de Obras atribuídas na Antigüidade à autoria de Aristótelesconsigna-se um item respeitante justamente a uma coletânea de Politeíai.Diógenes Laércio, mais Hesíquio, referem um total de 158, de que se apro-xima o testemunho de 171, presente na versão árabe de Usaibia.1 Já outrostextos aludem a 250, dentre eles passagens de Amônio, Olimpiodoro e Elias,bem como de algumas Vitae Aristotelis (Vulgata e Latina).2 Informe este,entretanto, equivocadamente exagerado, pelo que argumentam as análisesexegéticas dos críticos modernos, antes corroborando unânimes aquele pri-meiro montante.3 Nessa coletânea incluíam-se as exposições dos regimespolíticos de inúmeras cidades e povos helênicos (Atenas, Egina, Delfos, Samos,Siracusa, Corinto, Lacedemônios, Etólios, Acarnânios, Tessálios, ... 4) e aoque parece também de alguns bárbaros, pois assim o diz não apenas otestemunho de Cícero – (De Fin 5.4.11) –, mas também o de Fócio, que serefere a uma Politeía dos Lícios, sendo ainda plausível admitir-se que o exa-me da Politeía de Cartago, constante da Política, derivasse de um tratadosimilar.5

E vários autores antigos, já helenísticos mas de forma mais decisiva apartir de meados do séc. I antes da nossa era, ancoram muitas vezes osrelatos de suas narrativas por informes alegadamente retirados dos textosdas Politeíai de Aristóteles.

Assim, Políbio, bem como presumivelmente Timeu por ele justamen-te criticado, deve ter-se valido da Politeía da Lócrida Epizeféria, pois baseia-

1 Diógenes Laércio. Vida dos filósofos, V.27; Hesíquio, 135; Usaibia, 86.2 P. J. Rhodes. Historical commentary..., p. 2.3 J. E. Sandys. Aristotle’s..., p. 26; R. Weil. Aristote..., p. 98; Rhodes, idem, p. 2.4 Lista completa em Sandys, obra citada, 27.5 Ver a discussão de R. Weil a esses respeito em Aristote et l’histoire, p. 100.

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se em informes aristotélicos para melhor fundamentar essa sua crítica aohistoriador siciliano.6

Estrabão, por inícios da era cristã, refere-se a pelo menos quatro de-las: a dos Acarnanianos, a dos Opúntios, a dos Megarenses e a dos Leucádios.

Plutarco, já em fins do séc. I da nossa era, por várias vezes cita Aristótelescomo sua fonte a fundamentar informações respeitantes a várias figuras dahistória ateniense (Teseu, Sólon, Temístocles, Címon, Péricles e Nícias).

Zenóbio, sofista grego que viveu no reinado de Adriano na primeirametade do séc. II, faz também referência a várias delas, mencionando tantoas de Corcira, Samos, Delfos e Metone, quanto ainda a de Atenas.

Já Ateneu, por inícios do séc. III, cita outras tantas.

Também Clemente de Alexandria, panegirista cristão da primeirametade do séc. III, menciona algumas Politeíai.

Harpocrácion, gramático grego de Alexandria, talvez do séc. II oumais provavelmente do IV7, atribui não menos de cinqüenta passagens doseu léxico a informações retiradas da Politeía dos atenienses, de Aristóteles.

Hesíquio, lexicógrafo de Alexandria emfins do séc. IV, referencia ain-da seus verbetes a informes derivados desses textos aristotélicos.

Sopater, sofista de Apamea, provavelmente identificável com o retóricoque por volta do ano 500 d.C. compôs o Comentário de Hermógenes, incluiexcertos das Politeíai no livro XII de suas Coletâneas Históricas.8

Fócion, o patriarca de Constantinopla, que orientou o renascimentobizantino em fins do séc. IX com uma renovação do interesse pelos tratadosde Aristóteles, faz expressa menção à Politeía dos atenienses.

Pselo, teólogo e estadista bizantino de meados do séc. XI, que lide-rou a reversão contra a crescente predominância do pensamento aristotélico

6 A análise primorosa de Sandys (p. 28 a 39) passa em revista os testemunhos que ates-tam o conhecimento das Politeíai, e em particular da AP, entre os autores antigos.

7 Sandys, p. 36.8 Sandys, p. 37.

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em favor do platônico, parece igualmente ter conhecido esta obra deAristóteles.

Já no séc. XII, Tzetzes, poeta e erudito bizantino, e Eustáquio, arce-bispo de Tessalonica, atestam ainda algum conhecimento das Politeíaiaristotélicas.

Assim, as memórias do conhecimento antigo das Politeíai de Aristótelesseguem uma trajetória histórica que parece deslocá-las de seu centro culturalromano, por meados do séc. I a C., localizando-as intermediariamente emAlexandria com o declínio do Império do Ocidente, e as depositando emBizâncio, já avançados os tempos medievais. Na medievalidade cristã oci-dental, seu conhecimento recai para a marginalidade anônima dos escólios,a glosarem antigüidades aludidas nos manuscritos dos autores clássicos, es-pecialmente nos de Aristófanes.9

Nessa trajetória, entretanto, os textos mesmos constitutivos das Politeíaiacabam finalmente por desaparecer, perdidos com o decorrer do própriotempo em que se formava a tradição do corpus aristotélico.10 Ao encerrar-sea Idade Média, desses textos subsistiam apenas os fragmentos recolhidos poroutros manuscritos.

Ainda em pleno Renascimento na Itália, Francesco Patrizzi, se bemque animado por sentimentos hostis contra a autoridade aristotélica, passajá a investigar as fontes de informação antigas sobre as obras perdidas deAristóteles, tendo mesmo publicado, em Veneza, em 1571, suas Discussionesperipateticae, nas quais pela primeira vez tentava reunir os restos fragmentá-rios dessas obras.

Mas foi especialmente a dedicação antiquária dos eruditos do séc.XIX que se entregou mais eficazmente a esse laborioso empreendimento de

9 Sandys, p. 38.10 Uma narrativa primorosa de acompanhamento indiciador das trajetórias históricas pe-

las quais se perderam/redescobriram os textos aristotélicos (e, pois, a Athenaíon Politeía)encontra-se na obra de Luciano Canfora, A biblioteca desaparecida.

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coletar em obra tais fragmentos. Em 1827, C. F. Neumann reunia já 59fragmentos da Ateniense, que aumentaram para 74 com a publicação deCarl Müller, em 1848, chegando a 91 na terceira edição de Valentine Rose,datável de 1886.

Então, tais eram as obras do zelo apaixonado da erudição clássicaque consumavam, no dizer de Sir John Edwin Sandys apropriadamentereproduzindo versos de Milton, a dedicação incansável daqueles “amigos daverdade” a desse modo atualizarem “a cuidadosa procura que Ísis encetarapelo corpo mutilado de Osíris, indo e vindo a reunir membro, a membrocomo pudessem eles ainda encontrá-los”.

Assim, por volta de 1890, o que mais de perto se aproximava de umconhecimento acerca do texto da Athenaíon Politeía provinha indiretamentede manuscritos que registravam uma certa Epítome de Heraclides acercados regimes políticos. Do texto mesmo, restava agora somente um magroconjunto de fragmentos excepcionalmente salvos por um papiro, provenien-te do Fayum e adquirido pelo Museu Egípcio de Berlim, em 1879, inicial-mente publicados por F. Blaas e, ao longo da década, identificados comoderivados do texto da Athenaíon Politeía (em primeiro lugar por T. Bergk).Nele incluíam-se versos de um poema de Sólon, uma passagem sobre oarcontado de Damásias, um relato das Reformas de Clístenes, referência aosostracismos de Mégacles e de Xantipo, além de uma menção às minas deMaronéia.11

Por aquela época, entretanto, manifestara-se uma consciência dolo-rosa da perda do corpo do texto que apenas se cicatrizava dissimulada nasevera assertiva de um daqueles “amigos da verdade” a que se refere Sandys,Emil Heitz, que, ainda em 1865, denunciara a loucura de manter qualqueresperança de recuperá-lo na sua íntegra.12

11 Sandys, p. 41-43 ; Rhodes, p. 2-3.12 Sandys, p. 43.

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O papiro

Na manhã de uma segunda-feira, 19 de janeiro de 1891, os leitoresdo afamado jornal londrino The Times foram surpreendidos por uma agra-dável notícia: dentre as recentes aquisições feitas pelo Museu Britânico emuma certa localidade do Egito – cuja mais precisa identificação ficava pre-servada pela tradição da elegante discrição britânica – “a source in Egyptwhich, for obvious reasons, it is not expedient to specify too particularly” –,os especialistas daquela prestigiosa instituição haviam se deparado com al-guns rolos de papiro contendo, no seu abalizado entendimento, uma cópiado tratado atribuído pelos antigos a Aristóteles, sob o título de AthenaíonPoliteía.

Onze dias depois, a 30 de janeiro, Sir Frederic G. Kenyon editoravaa primeira publicação do texto.

O papiro consistia, originalmente de quatro rolos, revelando as mãosde, pelos menos, quatro escribas diferentes. Na sua face frontal fora utilizadopara registrar as contas de receitas e despesas de uma propriedade privadareferentes ao décimo-primeiro ano de Vespasiano (agosto de 78 a junho de79 d.C.). Passada a utilidade precípua desse registro, foi reaproveitado emsua face reversa para a transcrição do argumento de um discurso deDemóstenes, o Contra Mídias. Mas, depois, esta transcrição foi riscada, opapiro revirado de cabeça para baixo, e copiado um novo texto, nele preser-vado em bom estado de conservação, apresentando falhas maiores apenasem suas partes inicial e final. A data desta cópia não seria muito posterior aodo registro das contas, pois nela se reconhece o modo pessoal de escrita, jáempregado naquele (formas das letras e abreviações). A cópia do texto da-taria, assim, de fins do séc. I ou início do II da nossa era.13

Cotejado seu conteúdo com os dos fragmentos das Politeíai, atribuí-das na Antigüidade a Aristóteles, resulta: dos 56 fragmentos em que a

13 The classical review, 1891, p. 71.

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Athenaíon Politeía é expressamente mencionada, 53 comparecem no ma-nuscrito, e dos três restantes um deve ter pertencido à parte inicial perdida,um à final mutilada, e um revela-se, por seus desacordos com o manuscrito,uma transcrição imprecisa; dos 35 fragmentos em que Aristóteles é nomea-do, mas não a obra, 25 comparecem no manuscrito; dos restantes fragmen-tos, três devem ter pertencido ao início perdido, sete provavelmente nãoderivam da Athenaíon Politeía, um pode, possivelmente, provir da partefinal mutilada e um trata-se de citação equivocada do texto.14

Agora, resgatado de seu oblívio milenar pelas diligências eruditas dozelo clássico britânico, ressurgia à luz o texto da Athenaíon Politeía aristotélica.

Positivismos

A notícia da obtenção do manuscrito, e sua imediata publicação porKenyon, causou o maior alvoroço entre os homens letrados, tanto maisagradavelmente excitante quanto seu regozijo fosse plenamente justificá-vel, senão invejável mesmo: experienciava-se em 1891 a ventura antesprópria de um homem do Renascimento, a (re)descoberta da Antigüidade.E, excepcionalmente, fortuna ainda maior, proclamava Newman15, poiseles agora conheciam um texto antigo, entretanto “inédito”, há bons sécu-los perdido na sua íntegra, apenas memorizado em míseros fragmentos.Assim, bem se justificava o júbilo reverente da acolhida daquela quase quemiraculosa epifania erudita, como a saudaram Kaibel e Wilamowitz emsua edição berlinense do texto: “O que ninguém poderia aguardar nemousava esperar acaba de se realizar pelo mais afortunado dos acasos: viu-se voltar à luz e sair das trevas da sepultura o que julgávamos perdido parasempre, a obra de Aristóteles sobre a Constituição de Atenas, tão notávelpela importância do assunto quanto recomendada pelo ilustre nome de

14 Sandys, p. 64-6515 The classical review, V (1891), p. 155.

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seu autor”.16 Nesses primeiros tempos, comenta Mathieu17, parecia haveruma unânime concordância regozijante com a afortunada revelação.

E esse entusiasmo febril, que empolgou o mundo erudito europeu,nasceu sob o estigma do antiquário. Munidos pelo instrumental das regrasda crítica metodológica de inspiração positivista, cujos preceitos de boa dili-gência recomendavam uma postura prévia de atenta desconfiança para nãose deixar enganar pelas inverdades do texto, os eruditos-antiquários passa-ram a submeter a obra a uma intensa leitura exegética, ansiosos que esta-vam por confrontar as informações históricas transmitidas pelo texto com assuas correlatas já conhecidas por intermédio de outras fontes antigas, e assimdeterminar as condições de aceitação/recusa das mesmas. O documentocomeçou, então, a ser submetido a uma verdadeira autópsia analítica, quedissecava seu corpo textual em órgãos e átomos históricos fatuais.

Logo nos primeiros meses uma onda de artigos inundou o universoletrado europeu. Com a publicação do fac-símile do manuscrito, procedeu-se de imediato à uma acirrada crítica filológica, e não apenas no âmbito dosperiódicos especializados no estudo da Antigüidade Clássica, como tambémna esfera mais ampla dos jornais diários: proliferaram notas de correções eemendas a aprimorar a leitura do texto, exploraram-se conjecturas a supriras lacunas de seus estragos e perdas, confrontaram-se seus informes com osconhecimentos já constituídos de outras fontes antigas, e assim desenca-deou-se verdadeira avalanche exegética de estudos, de que se pode ter umaboa idéia compulsando os números da Classical review, desse mesmo anode 1891. Entusiasmo tanto mais produtivo porquanto ensejou rápida suces-são de novas edições e traduções, a disponibilizar o conhecimento do textopor vários países e línguas européias, contando-se já em 1891 não menosde duas dezenas. Só a editio princeps de Kenyon, primeiro publicada em

16 Apud Mathieu, 1915 p. I.17 Mathieu, 1915: I.

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março de 1891, logo conheceu mais três outras reedições, a segunda aindanesse mesmo ano, a terceira em 1892, e a quarta em 1893.18

Principiara, pois, sobre o manuscrito a obra da crítica erudita. E esta,já então segura de seus métodos de análise, próprios da postura hiper-crítica de inspiração positivista, bem preceituava calibrar a justa empolgaçãoheurística por solerte atenção, sempre desconfiada contra eventuais falsea-mentos de sua melhor identidade documental histórica. Nesse sentido,Newman19 recomendou qual era a boa prudência para aquela acolhida:“Quando a Constituição de Atenas aparece revisitando ‘os olhares da lua’,devemos recebê-la com a mesma mistura de curiosidade e respeito comque o Fantasma foi recebido em Hamlet. Devemos colocar-lhe as questõesque, sabemos de suas próprias páginas, eram colocadas ao arconte novoem Atenas: quem é teu pai e de que demos, e quem é tua mãe?”.

Mas, suspeitas de fraude maior a forjar o próprio documento logoforam afastadas. Por certo que seriam cabíveis, dado que o papiro fora apre-sentado aos peritos sem se revelar nem qual era sua declarada procedência,a não ser por aquela vaga e imprecisa alusão à uma localidade egípcia, cujaidentificação, por razões óbvias, não convinha expor muito detalhadamente.Por um lado, a autoridade institucional do Museu Britânico bem respaldavaa melhor seriedade do caso, e todos corporativamente compreenderam eaceitaram as boas razões de seu silêncio, cujos segredos de comprometimen-to de interesses ficavam apropriadamente salvaguardados.20 E, por outrolado, a primeira acareação de seu conteúdo pelos confronto dos testemu-nhos dos fragmentos reconhecidos da obra atestava tratar-se mesmo de tex-to autêntico, certamente aquele que os autores antigos referiam como aAthenaíon Politeía, por eles associada ao nome de Aristóteles.

18 Confira-se a listagem fornecida por Rhodes, p. 739s, bem como as indicações selecio-nadas por Montanari (Cresci-Piccirilli 1993, p. 3).

19 Classical Review, 1891, p. 157.20 Vejam-se, por exemplo, os comentários feitos nesse sentido pelas resenhas de Newman

para a Classical review e de Bérard para a Révue historique.

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As suspeitas começaram, todavia, a ganhar corpo por outras razões,antes afloradas paradoxalmente pelas novidades mesmas que o texto entãorevelava, algumas um tanto desconcertantes, outras até incômodas, senãoperturbadoras, pois envolviam a fama do nome de seu suposto autor,Aristóteles. Eis que a obra dizia de realidades históricas totalmente estranhasaos conhecimentos firmados pela Política aristotélica. Neste tratado teórico,o filósofo asseverara que Sólon, ao estruturar sua proposição de regimepolítico em Atenas, não alterara o modo de nomeação dos oficiais, entãodefinido por eleição, preservando-o inalterado. Já o novo texto dizia quefora ele quem instituíra o método do sorteio, a partir de uma eleição préviade candidatos! Também na Política Aristóteles distinguira dois casos de atua-ção legisladora caso comportassem ou não a conformação de uma politeía,citando expressamente neste último a obra de Drácon em Atenas, de alcan-ce apenas codificador. Mas o novo texto incluía, em seu capítulo IV, umaPoliteía Draconiana! Ainda na Política, o filósofo identificara Efialtes e Périclescomo os agentes responsáveis pela reforma institucional que reduzira ospoderes do Areópago após as guerras medas, transferindo-os em parte paraa assembléia, em parte para o Conselho. Agora, no novo texto, emerge afigura de Temístocles como o companheiro de Efialtes nessa empresa polí-tica!

As suspeitas foram de imediato dirigidas contra o novo texto, poiseram flagrantes suas incorreções, senão mesmo suas contradições. Ele incidiaem erros históricos até grosseiros. Assim, quando Efialtes promoveu suareforma democrática, Temístocles nem mesmo se encontrava em Atenas,exilado há já mais de dez anos. A pretensa Politeía Draconiana da épocaarcaica vinha, entretanto, eivada de anacronismos, a denunciá-la antes comodocumento panfletário comprometido com as orientações oligárquicas nasdisputas políticas que tumultuaram Atenas dois séculos mais tarde, por finsdo V. Erros ainda mais calamitosos porquanto associados a anomalias nar-rativas igualmente graves. Assim, ao arrolar em síntese, no capítulo XLI, asucessão das mutações de regime político operadas em Atenas ao longo desua história, afirmava-as expressamente em número de onze, mas incluía

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doze, pois enunciava também a draconiana, sem, entretanto, enumerá-la.E, ao narrar a história das vicissitudes do estabelecimento da tirania dePisístrato em Atenas, primeiro – capítulos XIV e XV – implicara que ele este-ve afastado em exílio por 21 anos (11 do primeiro mais 10 do segundo),mas, depois (capítulo XVII), deu a entender que foram só 14, pois agoraafirmava que ele, dos seus 33 anos de vida desde o estabelecimento datirania, passara no poder efetivamente só 19, estando exilado os restantes.

Poderiam mesmo ser de Aristóteles tais erros?

Os críticos, de início, recusaram-se a admiti-lo. Fr. Cauer desapontou-se com os desempenhos altamente deficientes daquele autor, especialmenteno domínio dos princípios do método de crítica historiográfica, acusando naobra a falta dos procedimentos que seriam de esperar de um historiador deprimeira ordem, nela encontrando-se antes defeitos reveladores de indiví-duos de inferior capacidade.21 Assim, também se pronunciou Th. Reinach, aquem três passagens da obra em particular escandalizaram a apreciaçãocrítica: a Politeía Draconiana do capítulo 4, o Sistema eleitoral Soloniano docapítulo 8 e a Atuação de Temístocles no ataque aos poderes do Areópagono 25. Então, foi categórico: “É fácil demonstrar que nenhum destes trêstrechos é conforme com a verdade histórica e que nenhum pode ter saído dapena de Aristóteles”.22 Haveria que buscar outro personagem para a autoriade tais despropósitos históricos, passível de descambar por parcialidades efalsificações assim tão monstruosas. E Reinach o encontrou na figura deCrítias, o líder máximo do golpe oligárquico de 404, em Atenas: “Crítias nãoera um historiador imparcial à maneira de Tucídides e de Aristóteles, apega-do à verdade, escrevendo sine ira et studio”.23

Então, Reinach expurgou da Athenaíon Politeía, supostamente deAristóteles, tais escórias que, por pouco honrar seu senso crítico, maculavam

21 Apud Kenyon. Classical review, 1891, 332.22 Reinach. Révue des études grecques, 1981, 143.23 Reinach. Révue des études grecques, 1891, 157.

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a melhor fama e prestígio de seu nome: não eram passagens devido àsreflexões do renomado filósofo, e sim interpolações indevidamente enxerta-das em sua obra, derivadas, pois, de algum panfleto partidário lançado poraquele inescrupuloso político de fins do séc. V.

Já outros intérpretes optaram por condenar a obra toda, apenas acei-tando suas patentes inferioridades se deslocada a autoria da obra para osdescuidos de uma mente consoantemente assim incapacitada, provavelmentealgum discípulo do grande filósofo. Assim, se pronunciaram Whibley, Cauere Rühl.24

Para as pretensas soluções da problemática da autoria, assim aventa-das, fazia efeito ainda, na obra da crítica, a persistência do pressupostodogmático da autoridade aristotélica, de velha herança escolástica medie-val, a postular a infalibilidade do filósofo, mente superior estranha a erros eequívocos mais grosseiros de desempenho intelectivo.

Descontados os destemperos mais intempestivos das reações primei-ras, assim estupefatas pelas embaraçosas novidades, nada positivas, que otexto comportava, desdobrou-se a análise da problemática, então suscitadapor abordagens todavia mais serenas de ajuizamento analítico.

Desde o início a crítica empenhara-se em atacar a questão da autoria.Inventários de termos e frases “não-aristotélicas” consignados no texto, assimdetetadas pelo que se podia depreender do cotejo com o léxico consagradono corpus reconhecido, chamavam a atenção para o problema, alimentan-do as desconfianças.25 Paralelamente a tais meras constatações lexicais, in-vestigou-se insistentemente a questão do estilo narrativo, também confron-tando-o com o das obras reconhecidas de Aristóteles constantes do corpustradicional.

Newman entendia que o exame do estilo era inconclusivo para deter-minar a questão da autoria. Pois, as divergências assim constatadas – aliás

24 Apud Mathieu 1915, II.25 Classical review, 1891: p. 122-3 e 184-5.

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de modo surpreendentemente positivo, pois o estilo do novo texto era atra-ente e agradável, claro e preciso, embora despojado, livre das formulaçõesambíguas e irregulares que usualmente entravam os relatos do corpus– provavelmente eram devidas à diversa proposição da obra, antes voltadapara a divulgação externa ao Liceu do que ao seu ensino interno, a recla-mar, portanto, os cuidados mais aprimorados no uso da linguagem, taiscomo uma marcada preocupação em evitar o hiato. Já a apreciação doinventário lexical poderia levar a resultados mais definidos, a negar a autoriaaristotélica, dado que termos de emprego comum presentes neste texto sãoestranhos ao corpus.26

Whibley aventou a mesma conclusão de Newman, igualmente postu-lando a recusa da autoria aristotélica, mas por uma argumentação todaviacontraditória com a daquele primeiro crítico, inclusive por ele citado, pois,na sua opinião, “o estilo era tão diferente do das outras obras atribuídas aAristóteles, que, como afirma Mr. Newman, ‘há muitas chances contra oparecer de que o tratado seja de sua pena’ ”.27

Já Headlam, embora concordando integralmente com Newman naapreciação do estilo cuidado da narrativa – de que a evitação do hiato eraa melhor prova, assim concebido para fins de publicação a zelar pela repu-tação de seu autor –, daí tirava a conclusão oposta, sendo de parecer queno texto “havia evidências bem consideráveis de que ele fosse devido àmão do próprio Aristóteles, pois o uso a este respeito era bem aproximada-mente o mesmo do de algumas de suas obras de melhor autenticidade”.28

Gomperz, por seu lado, discordou frontalmente de seus colegas bri-tânicos, cuidosos de negarem a autoria aristotélica pelo exame dos aspec-tos da linguagem (estilo e vocabulário) consignados no texto, a ponto, in-clusive, de acusar a insensatez de seus arrazoados. Crítica, entretanto, logoreplicada por Richards, solidariamente intentando preservar a validade e

26 Classical review, 1891: 161.27 Classical review, 1891: 223.28 Classical review, 1891: 271.

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consistência da abordagem de exegese lingüística para a resolução dessaproblemática. Reiteração metodológica de análise, todavia, já mitigada emsuas convicções, pois agora levando apenas a conclusões antes hipotéticasque assertivas: “Não concluo, portanto, que é certo que Aristóteles não é oautor por tal argumentação acerca do estilo, como também não o façoexclusivamente a partir do exame do emprego dos termos e frases; masuma dúvida considerável é assim ensejada quanto à autoria”.29

Paralelamente, abordou-se também a problemática da crítica de de-terminação da autoria pelo cotejo do ideário político, suposto pelo texto como firmado na Política aristotélica. Newman logo chamara a atenção paradivergências nesse âmbito, detetando na Athenaíon Politeía um autor decla-radamente adverso à democracia, a censurá-la abertamente, bem distinto,pois, nesse sentido, daquele Aristóteles mais prudente e reservado da Polí-tica30, reticente a declarar-se opositor do regime político consagrado na cida-de em que vivia como meteco estagirita. Diferenças de postura política tantomais incompreensivelmente surpreendentes, a assim fundar suspeitas, poisseria de esperar-se o posicionamento inverso, que aconselharia reservas naexposição do tratado destinado ao público ateniense em geral e firmar con-vicções antes no texto esotérico do Liceu perante o círculo restrito dos alunosde confiança.

Por essa via analítica seguiu também a crítica de Fr. Cauer, todaviaarrazoando a interpretação reversa da de Newman. A coloração política deambos os textos era certamente divergente, mas justamente porque o autorda Athenaíon Politeía se revelava um panegirista da democracia ateniense, alouvar a excelência de suas disposições institucionais, especialmente no to-cante à determinação dos tribunais populares como órgão estatal hegemônico,superior aos colegiados oligárquicos, que por sua composição restrita os

29 Classical review, 1891, 333-4.30 Newman exclui aqui de sua apreciação o capítulo final do livro II que justamente con-

signa críticas à democracia ateniense, naquela época sob suspeita de atribuiçãoaristotélica.

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tornava precipuamente corruptíveis, tese esta que o capítulo XLI do novotratado avalizava irrefutavelmente.31

Este outro enfoque de abordagem, entretanto, descaiu pelos mesmosdesvios de reduções subjetivas de arrazoamentos apenas redutoramenteembasados em leituras fragmentadas de passagens distintas do texto, tam-bém patentes já na apreciação da problemática da linguagem e do estilo. G.Mathieu o denunciou exemplarmente ao apontar a incrível diversidade, porvezes mesmo contraditória, das teses interpretativas dos críticos modernosnessa sua pretensão de identificar a tendência política firmada pela AthenaíonPoliteía. Assim, para Wilamowitz, a obra, era “um manifesto a favor dasidéias moderadamente conservadoras de “Isócrates”; para Diels, “nitidamentearistocrática”; para Nissen, “contra a política particularista de Demóstenes”;para Cauer e Reinach, “prudentemente” democrática respondendo às rea-ções democráticas seguintes ao episódio de Harpalo”.32

Em meio aos fluxos e refluxos desorientadores desse inconstante marhermenêutico por que se fazia navegar a leitura da Athenaíon Politeía, aobra de Sir John Edward Sandys, Aristotle’s Constitution of Athens33, publi-cada já em 1893, primorosa de rigor e acuidade erudita exemplares porvariados tópicos de estudo textual, projetou horizontes bem mais comedidosde interpretação, sem perder o rumo desnorteado por aquele dogmatismoda autoridade aristotélica infalível. Retomou, para argüir detida e profunda-mente, arrazoando com ponderação equilibrada as teses alternativas, o exa-me da consistência e do alcance de suas precípuas proposições analíticas,averiguando a problemática da determinação da autoria ajuizada tanto pelaabordagem do ideário quanto da linguagem, aristotélicos ou não, consuma-dos pelo novo texto.

31 Referimos as teses de Cauer apenas por conhecimento indireto, a partir das críticas deoutros autores: Kenyon (CR 1891, 132) e Mathieu 1915, III-VII).

32 Mathieu 1915, III-VII.33 Londres, 1893; 2. ed. em 1912.

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O campo de análise da questão foi balizado com propriedade. A me-mória histórica da Antigüidade fôra unânime em assumir a autoria aristotélica,e o texto ora descoberto revelava essa precisa contemporaneidade, situandorealidades dos últimos anos de vida do filósofo. Então, ajuizou Sandys, “de-vemos necessariamente aceitar a obra como de Aristóteles, a menos que aevidência interna seja conclusiva no sentido contrário. A consideração destaevidência volta-se em parte para questões de estilo, em parte para as rela-ções subsistentes entre a Athenaíon Politeía e a Política”.34

Começou abordando a problemática do cotejo das formulações ela-boradas em ambas essas obras, por ele constatando que, apesar da existên-cia de aparentes discrepâncias de pensamento, que alguns críticos denuncia-vam a implicar a diversidade de autoria (a politeía draconiana, a cronologiada tirania pisistrátida, a atuação de Temístocles na redução dos poderes doAreópago), predominam na Athenaíon Politeía passagens que “seja pelopensamento seja pela linguagem eram tão estreitamente paralelas às da Po-lítica de modo a sugerir sua autoria comum”. Assim, as coincidências maisgerais de pensamento: a mesma inclinação política avalizadora antes da formaaristocrática de regime; exposições das obras de Pisístrato e de Terâmenesna AP harmônicas com os conhecimentos expostos na Política, o mesmoocorrendo com a descrição da instituição do ostracismo em ambas as obras;e, ainda mais decisivamente significativo, um notável exemplo de identidadede pensamento e linguagem nas duas obras, a saber, a reflexão sobre apolítica do tirano, Pisístrato, no compor o modo apropriado de, em favore-cendo as empresas agrárias da população, dispersar pela área rural as poten-ciais ameaças de animosidade política contra o regime.35

Na apreciação da problemática da linguagem, logo descartou a consi-deração das singularidades e estranhezas “não-aristotélicas” denunciadasno vocabulário consagrado pela AP, argumentando a impropriedade de suasrazões para decidir a recusa de uma tal autoria. Tais idiossincrasias lexicaiseram plenamente compreensíveis e aceitáveis, dado que muitas referem

34 Sandys, p. 50.35 Sandys, p. 50-57.

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expressões técnicas ou termos reclamados pela matéria dos assuntos trata-dos, outras derivam das fontes de documentação que informam o texto, emais outras divergências seriam antes cabíveis, do que impróprias, pois con-soantes à diversidade da proposição precípua da AP, composta por lingua-gem melhor trabalhada em vista de divulgação ao público em geral. Tam-bém a averiguação do estilo é inconclusiva, pois mesmo sua formulaçãoaprimorada não é irreconciliável com a autoria aristotélica, como já o afir-mava a memória da Antigüidade a esse respeito: Sandys lembra aqui umaapreciação exarada por Simplício que chama justamente a atenção para alucidez do estilo de Aristóteles em suas genuínas Politeíai, bem como nosTopica e nos Meteorologica. E ainda mais inócua é a consideração lingüísti-ca do preceito de evitação do hiato, pois tanto, por um lado, ela bem podeser justificada por sua devida apropriação ao caráter singular da obra, quan-to, por outro, ser igualmente arrazoada inconclusivamente seja a favor sejacontra a autoria aristotélica.36

Não há como nem por que negar, conclui Sandys em sua avaliaçãocrítica, que o texto da AP comporte certas particularidades de desempenhointelectivo divergentes do que seria de se esperar do prestígio impecável deuma autoria aristotélica: há negligências de tratamento historiográfico, espe-cialmente no tocante à cronologia, e há mesmo por vezes uma certa falta deforça e vigor intelectual. Certamente que se pode atribuir tais deficiênciasantes a mentes inferiores que não a do grande filósofo, talvez algum discí-pulo menos dotado intelectualmente, compondo o presente texto com ousem a orientação do mestre. Mas, que alcance maior se pode tirar de taloperação que desloca a autoria de Aristóteles para o âmbito mais amplo eanônimo do Liceu, pergunta-se Sandys? Mesmo para as obrasinquestionavelmente aceitas como de Aristóteles é extremamente difícil de-terminar o quanto elas foram, de fato, compostas por ele na forma em quechegaram até nós, quanto elas são meramente apontamentos de seus ensi-namentos orais.

36 Sandys, 57-60.

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E quanto às anomalias e erros, de ordem vária, incidentes na obra,não há porque conferir-lhes maior implicância no tocante à autoria, dadoque por sua própria natureza propositiva, compondo na narração uma mis-celânea de conteúdos continuamente em aberto para a melhor ou pior inte-gração de novos informes, o texto era peculiarmente passível de interpolaçõese alterações, quer aristotélicas mesmas ou não. E, admitidos e reconhecidostais equívocos e inconsistências narrativas, é apenas o acolhimento pela crí-tica do imperativo dogmático da infalibilidade aristotélica que assim os de-sentende pela recusa de sua atribuição a Aristóteles. Pois, a alternativa justa-mente inversa de ajuizamento da questão é igualmente possível, como oassevera Sandys, lembrando o parecer já firmado antes por J. H. Wright:“colocados entre as duas alternativas, dever-se-ia preferir modificar as con-cepções acerca de Aristóteles do que rejeitar o seu tratado”.37

Em síntese, as evidências de crítica textual interna, assim reexaminadasdetida e ponderadamente por Sandys, não permitem ajuizar taxativamenteque o texto não seja de Aristóteles, entendendo-se por este nome não ape-nas a exclusiva figura de uma pessoa individual, mas nele também presenteo complexo de realidades compositivas próprio das práticas de ensino filosó-fico do Liceu similarmente pressuposto pelas demais obras constituintes docorpus tradicional. A questão da autoria aristotélica da AP é, pois, insolúvelse almejarmos implicar nela, pelo nome de Aristóteles, a figura de uma pes-soa enquanto sujeito unívoco dessa obra. Por que, então, assim obsessiva-mente buscar descartar a memória da tradição antiga da autoria aristotélicadas Politeíai, ensejando em seu lugar uma discussão sem fim que só falsa-mente se resolve por operações de teses subjetivas redutoras, comportandoboa dose de arbitrariedade? E que o texto a nós redescoberto da AthenaíonPoliteía seja mesmo o que essa memória histórica sedimentou sob a fama donome de Aristóteles, é justamente a única tese inquestionável, objetivamen-te irrefutável de toda essa história de exegese crítica. E foi lembrando a rea-lidade desse fato, claramente manifesta no cotejo das passagens do texto

37 Sandys, 62-64.

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com as dos fragmentos de sua referenciação pelos autores antigos, que Sandysbrilhantemente concluiu sua perspicaz e competente análise da malfadadaproblemática da autoria, aristotélica ou não, da Athenaíon Politeía.

Quando, pela segunda década do presente século, G. Mathieu apre-senta os resultados de seu estudo sobre a Athenaíon Politeía – primeiro sob aforma de uma tese específica, Aristote, Constitution d’Athènes. Essai sur laméthode suivie par Aristote dans la discussion de textes, depois sintetizadaem sua introdução à edição do texto pela Belles Lettres em 1922 –, havia jáalgum tempo que o mar acalmara. O dogma, de herança escolástica medie-val, da infalibilidade aristotélica fora dado por definitivamente sepultado,podendo o crítico agora conviver com e refletir sobre a confluência de erros,deficiências e equívocos entretanto transmitidos e atribuídos ao prestigiosonome do afamado filósofo. A reação ante o nome de Aristóteles não eramais, registra Mathieu, a da devoção supersticiosa, e a equivocada suspeitadenunciadora da autoria era já inquietação do passado, totalmente supera-da, pois agora “unanimemente reconhecida a origem aristotélica da AthenaionPoliteía”.38

A crítica livrava, assim, seu olhar das viseiras que a impediam demelhor apreciar a realidade dessa singular obra aristotélica. E a questão queagora Mathieu se colocava era mesmo entender as razões das falhas deAristóteles, bem identificando os procedimentos e operações por que erraraa composição de sua narrativa. Como trabalhara ele os informes derivadosde suas fontes, por quais razões assim os selecionara, como confrontara seus

38 Mathieu 1915, 3. Confira-se, igualmente, no texto de 1922 (p. 3): “De même le textesemble nous avoir áté transmis dans état assez pur: nous ne rejetons plus comme interpoléstous les passages embarrasants; et, tandis qu’en 1891 M. Th. Reinach croyait à l’intrusiondans le texte primitif de développements très longs, nous considérons qu’Aristote a punous transmettre une tradition différente des autres historiens, ou même desrenseignements erronés. L’éxamen de l’oeuvre ne nous révèle rien qui ne puisse avoirété écrit par lui, et ce sont précisément ces nouveautés qui en font en partie le caractèreoriginal et intéressant”.

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testemunhos superando suas divergências, e por quais princípios os compu-sera asseverando-as como verdades em seu relato? Em suma, qual fora seumétodo histórico de discussão documental?

Mas, que fontes eram essas, de que documentos dispunha Aristóteles?Duas situações documentais distintas, argumenta Mathieu, haveriam queser consideradas: de um lado, a precariedade, senão mesmo falta, deles paraos períodos mais primitivos da história ateniense, de épocas pré-solonianasaos tempos míticos da realeza; de outro, uma relativa abundância para ostempos históricos solonianos e seguintes, vindo até a contemporaneidadedo filósofo.

Para a primeira situação, um método se impôs quase que obrigatoria-mente, sem maior possibilidade de escolha para Aristóteles: reconstituir asrealidades institucionais primitivas do Estado ateniense, inferindo-as a partirde suas subsistências históricas posteriores, assim valorizadas como indícios(tekméria), ou testemunhos (marturia) ou provas (semeia) daquela sua rea-lidade passada.39 Embora, por vezes, assim incidindo em inferências errô-neas, método louvável, entende Mathieu, imbuído do melhor propósitocognitivo: “Aristóteles tentara assim inaugurar uma pesquisa verdadeiramentecientífica da evolução política de Atenas”.40

Já para a narração a partir da obra soloniana, a situação se invertia,dispondo agora Aristóteles de uma relativa abundância de fontes documen-tais. Em parte mesmo abundância devido aos zelos de seu empenhoheurístico, preocupado em fundamentar seu relato apoiando-o em informesderivados de documentos originais. Assim, refletiu sobre a obra solonianabaseando-se nos textos de seus poemas; por vezes, integrou na narrativapassagens de decretos e leis; e, ainda, deu guarida em sua obra a descriçõesde configurações históricas da politeía ateniense que justamente mereceramsua confiança por aparentarem documentos oficiais, insciente de que eramde fato falsificações de panfletagem política (a politeía draconiana e as politéias

39 Mathieu 1915, 2; 1922, 9.40 Mathieu 1922, 9.

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oligárquicas de 411).41 Peripécias trágicas da inauguração de bom preceitodo método historiográfico, todavia ainda incerto de alcance crítico: “Taissão, portanto, os erros mesmos de Aristóteles que nos testemunham seuapego à documentação precisa em detrimento da tradição autêntica”.42

Mas, perante a multiplicidade de fontes documentais provendo dis-tintos e variados informes, Aristóteles, na maioria dos casos não dispondode elementos de crítica que melhor lhe possibilitasse ajuizar suas precípuasveracidades, adotou sistematicamente a resolução de compor, e mesmo con-ciliar, todos os dados assim acolhidos. E novamente, assim decidiu imbuídodos mais recomendáveis propósitos de metodologia historiográfica: “É que,utilizando panfletos políticos, percebeu sua parcialidade e desconfiou deles;viu que cada um deles procurava explorar a história de Atenas para maiorglória de seu partido e, influenciado talvez por sua doutrina do ‘justo meio’,acreditou encontrar em cada um uma parte de verdade, deformada peloespírito sectário, mas que ele esperava, entretanto, poder recuperar.43

Dessa operação metodológica, insistentemente efetivada parareconstituir a evolução histórica da politeía ateniense, resultou, todavia eparadoxalmente, a maior parte dos erros, disparates, contradições e equívo-cos perpetrados pelo texto da AP, precisamente ocasionados pela contami-nação de materiais provenientes de fontes heterogêneas. Excepcionalmentetais impropriedades metodológicas de reconstituição histórica foram parcial-mente amenizadas por um trabalho das fontes mais habilidoso e crítico daparte de Aristóteles, como no caso da abordagem da obra soloniana, para aapreciação da qual Aristóteles dispunha de uma orientação balizadora, poiselaborara uma percepção pessoal ajuizante de seu significado político, assima entendendo pela ótica conceitual da moderação, bem corroborada peladevida consideração dos próprios poemas solonianos.44

41 Mathieu 1922, 6-9.42 Mathieu 1922, 9.43 Mathieu 1922, 9-10.44 Mathieu 1915, 27.

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No geral, entretanto, a operação desse método compositivo levouantes a resultados mais ou menos desastrosos, especialmente na narraçãoda história da tirania de Pisístrato e seus filhos em Atenas. Assim, emboranesses capítulos Aristóteles tenha dado nítidas mostras de uma devida preo-cupação em precisar as datas dos eventos históricos por ele relatados, acontaminação de dados de fontes distintas – aqui Heródoto, de um lado,que lhe forneceu a duração do segundo exílio de Pisístrato (dez anos), e umaAtthis, de outro, que lhe municiou as demais datas – operada por sua meto-dologia acabou conformando uma cronologia não apenas divergente datradição suposta pela Política como ainda incoerente em si mesma45 e designificações resultantes desvirtuadas por interferência das confusões de in-formes assim causada.46

Paradoxalmente, dá a entender a análise de Mathieu, as melhorespreocupações e cuidados de acerto historiográfico acabaram levandoAristóteles, entretanto, a cometer erros e falhas gritantes. Assim, trágica peri-pécia de uma metodologia de composição documental que, justamente im-buída de zelo imparcial altamente louvável ao preferir fundir teorias diversasa confiar em apenas uma, foi igualmente consumadora de equívocos e con-tradições ao intentar somar como fatos históricos informes de fontes entre-tanto inconciliáveis, mesmo porque contaminadas por colorações políticasadversas, oligárquicas e democráticas. Metodologia de efetividade tanto maiscatastrófica quanto arruinou não apenas a consistência propriamente histó-rica de suas assertivas, quanto ainda prejudicou fortemente a coerência desuas próprias expressões, dando azo a formulações narrativas canhestraspor lacunas espantosas, por implicações contraditórias em corroborandoteses que intentava combater, e por abusivas extrapolações de sentidos deuma versão dos fatos imprópria para as significações da outra.47

45 Ora a AP admite a soma de 21 anos dos dois exílios de Pisístrato (capítulos 14 e 15), oraimplica apenas 14 da diferença entre o total de anos de reinado (33) menos os 19 deexercício efetivo do poder (capítulo 17).

46 Mathieu 1915, 29-33.47 Mathieu 1915, 124.

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Descartada a falsa solução de atribuir tais incompetências e falhasrecorrendo ao expediente que rechaça a autoria do texto para a obra de umdiscípulo menos qualificado intelectivamente, Mathieu encontra outra saídaalternativa para os impasses desse paradoxo de uma obra de inferior quali-dade de realização historiográfica, entretanto produto de metodologia imbu-ída dos melhores preceitos e associada a filósofo tão reconhecidamente su-perior. Como os dados internos do texto revelam datas da década final devida de Aristóteles, talvez mesmo, acredita Mathieu, apontando para os anosentre 325 e 322, este autor supõe que se trata de uma obra inacabada, cujaelaboração última o filósofo não tivera tempo suficiente para revisar de modoa sanar todas os seus defeitos. A morte o surpreendera antes que tivessepodido aperfeiçoar devidamente mais outro de seus textos pelos padrões desua notória competência.48

48 Mathieu 1915, 126-7. Igualmente, no texto de 1922 (p. 13): “Podemos, portanto, julgarque Aristóteles, após ter dirigido o trabalho de documentação de seus discípulos e apóster feito uma primeira redação de sua obra, foi interrompido em sua revisão última daparte histórica por seu exílio em Cálcis, e depois pela morte”.

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Estruturalismos(J. J. Keaney)

1963

A autoridade de Wilamowitz, desde cedo, sentenciara: “Aristóteles nãoera um historiador”. À negatividade desta apreciação já Jacoby respondera,ao apontar o equivocado deslocamento de identidade que a ensejava, poisAristóteles, sendo um “filósofo, poucas intenções tinha de ser um historia-dor”.1

Todavia, proclama Keaney, é esta cisão mesma, que dissocia umAristóteles filósofo de um Aristóteles historiador, a limitação a ser superada.Pois, já na elaboração da Política, Aristóteles, embora realizando então umaobra primordialmente filosófica de teoria política, fôra também historiador,não só porque lidara com fatos históricos, mas ainda porque fundamentaraseus pensamentos em uma pesquisa histórica. Assim, a História está presen-te em sua Filosofia Política. Por que, então, pergunta Keaney, não estariatambém a Filosofia presente em sua História Política, nas Politeíai? Tantomais que, pela declaração expressa da Ética Nicomaquéia, é a consecuçãodaquela Filosofia Política que define o fim e o sentido investigador que moveo trabalho de coletânea das Politeíai. Aristóteles, que já “por cerca de trintaanos vinha operando com os princípios e métodos da Filosofia antes de darinício a seus esforços de composição histórica”, só muito inverossimilmentepoderia ter-se divorciado desses “seus modos filosóficos de pensamento”para e porque agora viesse a empreender um trabalho de historiador.2

Então, a apreensão da plena inteligibilidade do sentido precípuo daAthenaíon Politeía enquanto uma obra discursiva singular reclama, asseve-

1 Keaney, 1963: 116.2 Keaney, 1963: 115-6.

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ra Keaney, enfocar a determinação de sua composição a partir da ótica dopensamento filosófico aristotélico que mais especialmente a polariza.

Que teoria filosófica aristotélica, em especial, informa e conforma acomposição da Athenaíon Politeía?

O que com Wilamowitz fora apenas alusão metafórica, e o que comJacoby era já sugestão propositiva de entendimento3, agora, com a obra deKeaney, adquiria alcance analítico: uma percepção teleológica, familiar àfilosofia aristotélica, orienta a sua investigação histórica sobre a politeíaateniense e, assim, ordena a estruturação discursiva da AP. Pois, Aristótelesnão era um historiador cronista como os Atidógrafos, que compunham me-ros relatos analísticos, cujo único princípio de ordenação e composição nar-rativa era o simples registro dos fatos em seu seqüenciamento cronológico. Acompreensão da realidade da politeía, como de todo objeto histórico, supõediscernir qual foi seu processo de constituição progressiva, de modo aentendender essa realidade como o resultado final, como télos, desse pro-cesso mesmo. A filosofia aristotélica reclama, pois, perceber a teleologia dapoliteía ateniense. Então, pela teleologia conforma-se o princípio narrativode composição da AP.4

3 Confiram-se as citações que Keaney faz à nota 15, p. 142, começando por Jacoby(“esse filósofo, de acordo com a natureza geral de seu pensamento, reconhecera que adescrição da forma existente de um Estado nada nos ensina a menos que seja mostra-do ao mesmo tempo como a forma do Estado em questão atingiu a sua phýsis, porassim dizer”), e concluindo com Wilamowitz (“a eschate demokratía cada vez maisrealizou sua phýsis, para o expressarmos na linguagem da Política”).

4 “Como veremos, Aristóteles consentaneamente concebeu sua tarefa não apenas comosendo dar uma descrição factual dos vários desenvolvimentos históricos da constitui-ção de Atenas, à maneira dos Atidógrafos, mas ir além de seus relatos analísticos einterpretar os fatos da história constitucional ateniense por referência à democraciacontemporânea: traçar uma espécie de gráfico da progressão, com eventuais regres-sões, da constituição de Atenas em direção à sua culminação na democracia radical defins do século V e do século IV. Assim, ele tinha que explicar como esta última forma degoverno veio a se constituir, e ele enquadrou este desenvolvimento por uma esquema-tização teleológica” (Keaney, 1963: 117).

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Esse modo aristotélico teleológico de pensamento filosófico, por suavez, conforma um certo padrão genérico de progressão, o qual distingue trêstempos: “um início bastante modesto, ínfimo e sem importância, mas profí-cuo em sua potencialidade; um longo e gradual desenvolvimento e expan-são; e, como seu fim resultante, a consecução de algo de significativa gran-deza”.5

Primeiro bem se define o télos, o estágio final resultante da progres-são histórica de constituição da politeía ateniense: a democracia vigenteem Atenas à época mesma de composição da AP (último terço do séc. IV).Logo se identifica conceitualmente que espécie de politeía era essa: demo-cracia radical, aquela forma de estruturação política em que os órgãos dedecisão popular, especialmente os tribunais, alcançam tal ampliação depoderes que se definem como instância dominante de governo.6

Assim se conforma uma primeira seção ou unidade estrutural da AP,especificamente dedicada à exposição sistemática, descritiva, dessa politeía.E assim, consentaneamente com sua identidade política conceitualizada,se ordena o modo mesmo dessa descrição:

“Tomando por base estes fatos, podemos já ver o efeito que o uso dopadrão teve na estrutura da AthPol. Refiro-me aos capítulos de conclusãoda obra, 63-69, os quais dão uma descrição detalhada do modo de opera-ção dos tribunais. Tanto o posicionamento destes capítulos no final dotratado, e sua exposição particularmente detalhada, que não tem paralelono resto da AthPol, sugere que Aristóteles despendeu mais tempo e esfor-ço nestes capítulos do que em qualquer outro. A explicação para estaexposição detalhada deve seguramente residir no fato de que se trata deuma derivação necessária da lógica do padrão. (...) Para Aristóteles ostribunais representavam o elemento fundamental, e a força, da democra-cia ateniense. Como Aristóteles, via o desenvolvimento total da democra-

5 Keaney adota basicamente o esquema originariamente proposto e reconstituído por G.Else em seu estudo sobre a Poética aristotélica.

6 Keaney refere por democracia radical a formulação proposta por Aristóteles na Política,IV.4.1292a29ss, e pressuposta pelo comentário exarado na AP, 41.2.

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cia ateniense em termos do crescimento do poder dos tribunais populares,na medida mesma em que considerava a história constitucional atenienseem seu todo em termos do desenvolvimento da democracia, não é surpre-endente que ele tenha devotado uma parte importante de seu tratado àdescrição destes tribunais”.7

Identificado o télos, então demarca-se a arché, o princípio. E o princí-pio dessa democracia radical, em seu télos definido de primado dos tribu-nais populares na direção do Estado ateniense, pode ser localizado na obrade instituição e origem histórica dos mesmos com Sólon, “o fundador aci-dental da democracia”.8 Deste princípio, apenas acidental e ínfimo, entãoresultou aquele fim, para o qual se direcionou a progressão histórica dastransformações constitucionais passadas pela politeía ateniense desde Sólonaté à restauração democrática (de fins do séc. V), quando aquele primadopassa a se cristalizar definitivamente conformando a democracia radical con-temporânea de Aristóteles.

Assim, se determina uma outra unidade estrutural conformando acomposição narrativa da AP, a qual se propõe retratar essa progressão histó-rica da politeía ateniense demarcada por tais princípio e fim. Distinguindo, econcomitantemente conectando, esta segunda unidade estrutural com aquelaoutra – conceitualmente primeira, que descreve a democracia radical –, tem-se um capítulo de transição, o XLI, tanto compêndio resumidor a concluir anarrativa da progressão histórica quanto anúncio a iniciar a descrição siste-mática do seu télos resultante.9

7 Keaney, 1963: 121-2.8 “Dado que, dos três aspectos das reformas de Sólon que eram os mais populares,

Aristóteles conferiu posição de maior importância lógica ao terceiro e último, que foimencionado acima, podemos corretamente ver nas reformas dos tribunais por Sólon oque Aristóteles concebia como sendo a característica não apenas a mais significativa dademocracia evoluída, mas também o germe daquele elemento que deveria ser a suaconditio sine qua non” (Keaney, 1963: 121).

9 “Podemos distinguir duas seções distintas e auto-coerentes da AthPol: a primeira, naqual o padrão esquemático é mais aparente, que cobre a evolução da democracia

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A lógica imposta por tal modo teleológico de pensamento, então, de-rivou a elaboração discursiva da parte narrativa por determinação da partedescritiva. Assim, assevera Keaney, Aristóteles não apenas “iniciou a com-posição da sua obra pela parte sistemática – a descrição da constituição doséc. IV – e daí voltou para trabalhar a parte histórica”10, como ainda empre-gou-a inclusive como critério de relevância fatual, a selecionar que aconteci-mentos e realidades institucionais seriam contemplados na reconstituiçãonarrativa de sua progressão histórica.11

Daí, a apreciação do regime soloniano tecida pelo filósofo, destacan-do a instituição dos tribunais populares como sua reforma de cunho maisdemocrático. E daí, também, a razão mesma de ser do capítulo imediata-mente antecedente à narrativa do regime soloniano, o III. Como, com oregime soloniano tem-se o princípio da progressão democrática do Estadoateniense, justamente viabilizado pela contemplação de um espaço institu-cional de atuação popular no processo de decisão estatal, haveria que bemcaracterizar, por contrapartida, o regime imediatamente antecedente a esseprincípio incipiente da democracia. Tal é o regime pré-soloniano, oligárquico,descrito no cap. 3, que justamente se caracteriza pela total desconsideração

desde o seu início germinal com Sólon até à sua estabilização final po fins do séc. V etermina com um breve sumário desta evolução; a segunda constitui um relato da demo-cracia em sua forma final e conclui com uma descrição detalhada do elemento singularmais poderoso na democracia, os tribunais populares” (Keaney, 1963: 129).

10 Keaney, 1963: 117.11 “Fiz menção ao fato de que o método aristotélico de enfoque em seu estudo da consti-

tuição ateniense, de ir amarrando a história de Atenas por meio do fio democrático,não determinou apenas o modo como ele interpretou os fatos dessa história, mas tam-bém – o que constitui só um outro aspecto do mesmo processo – determinou tambémque fatos ele selecionou e enfatizou como relevantes. Vimos como ele enfatizou a im-portância dos tribunais, mas devemos ainda continuar por esta mesma linha e investi-gar como outras áreas do tratado foram também afetadas pelo padrão. Por este enfo-que arguirei que Aristóteles realmente selecionou apenas certos fatos para discussão, eque este princípio de seleção é consistente com a lógica do padrão” (Keaney, 1963:122).

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de qualquer participação popular, a compor assim uma das razões dos re-clamos dirigidos pela massa dos excluídos, que, acusavam o revoltante esta-do de subjugação por esse regime consagrado.

Então, por similaridade estilística de composição discursiva e em con-formidade com a lógica do padrão teleológico de abordagem da politeíaateniense, o cap. III configura, do mesmo modo que o cap. XLI, um resumo,texto de transição que tanto distingue quanto ao mesmo tempo interconectaduas unidades estruturais, uma narrando a progressão da definição demo-crática do regime ateniense a partir de seu princípio com Sólon, e a outraagora subsumindo a evolução política antecedente a esse princípio, de épo-ca pré-soloniana.

Assim, projetando retrospectivamente a logicidade do modo de pen-samento aristotélico determinante da composição da AP, Keaney propõeinclusive qual seja o sentido até mesmo da parte inicial do texto, entretan-to, perdida, não preservada, para nós pelo manuscrito de Londres: esseinício compõe uma espécie de “introdução, seja às reformas de Sólon, sejaao surgimento da democracia”.12 Mais ainda, seguindo estritamente a de-finição dessa logicidade como critério seletivo de relevância fatual, Aristótelesteria justamente composto o conteúdo informativo que caracteriza esseregime oligárquico, deliberadamente reduzindo-o apenas à descrição dasatribuições judiciárias dos arcontes.13

12 “Uma vez que a cisão deliberada entre estas duas partes foi modelada por meio de umcapítulo de resumo, era estilisticamente apropriado que o mesmo dispositivo fosse usa-do para assinalar o início de uma nova seção do tratado com as reformas de Sólon, como que a democracia realmente começa. Aristóteles usou este dispositivo no cap. 3, e asduas – talvez três – referências explícitas a Sólon nos cap. 2 e 3 autorizam-nos a conside-rar o início da AthPol ou uma introdução às reformas de Sólon ou uma introdução aosurgimento da democracia” (Keaney, 1963: 129).

13 “Em seu aspecto estático, também, Aristóteles assim dispôs o cap. 3 de modo a quetivesse alguma relevância para com seu padrão. Lembre-se que, no seu entender, oprincipal fator no desenvolvimento da democracia era a gradual aquisição pelo demosde funções judiciárias no Estado: a democracia se desenvolve pari-passo com os pode-

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Bem demarcados o princípio e o fim para o qual se orienta a progres-são democrática delineada pelas mutações da politeía ateniense, então me-lhor se apreende o significado histórico preciso, essencialmente político, des-sa progressão mesma:

“O demos, à medida que alcança o poder, só pode fazê-lo apropriando-sede funções originariamente desempenhadas por outros elementos no es-tado. Os três órgãos cuja autoridade o demos tem que sobrepujar sãorespectivamente o colégio dos arcontes, o Areópago, e o Conselho dosQuinhentos”.14

O que configura, conclui Keaney, na conformação estrutural da AP adefinição do elemento médio de sua composição discursiva: o tratamentodado por Aristóteles ao Areópago, especialmente centralizado no períododos dezessete anos seguintes, às guerras medas, que marca, o predomíniode sua liderança na direção do Estado ateniense.15

Esse tratamento combina os dois aspectos inversos da aplicação dopadrão: um positivo, caracterizando o crescimento e expansão do demos,firmando-se agora estavelmente sua atuação no âmbito governamental, e ooutro negativo, caracterizando o declínio gradual da influência, mais especi-almente então, do Areópago, que com as reformas de Efialtes veio a perderseus poderes e atribuições para outros órgãos estatais, em parte para o Con-selho dos Quinhentos e em parte para os Tribunais populares.

res sempre crescentes ganhos pelos tribunais. À vista disto, não é de se admirar queAristóteles, no cap. 3, mencione uma e apenas uma função dos arcontes, e essa sejaespecificamente a judiciária. (...) Dado que Aristóteles distingue explicitamente entreesta função dos arcontes como ela era anteriormente a Sólon e no período de desenvol-vimento da democracia, parece que foi deliberado de sua parte mencionar apenas estafunção judiciária” (Keaney, 1963: 129).

14 Keaney, 1963: 130-1.15 “Com o tratamento aristotélico do Areópago, chegamos aos elementos médios do pa-

drão e à sua aplicação na AthPol” (Keaney, 1963: 131).

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A centralidade composicional desse elemento médio do padrão foi atal ponto deliberada da parte de Aristóteles, que o filósofo a teria inclusivegraficamente consagrado pela estruturação de uma simetria textual, por trêsmodos assinalada na redação da AP:

“Os elementos médios do padrão estão centrados em torno do Areópago;o Areópago é o segundo dos três órgãos – arcontes, Areópago, boule –que opõem-se ao demos; no cap. 41, o estágio constitucional representa-do pela liderança do Areópago posiciona-se no meio da série, com cincometabolaí o precedendo e cinco o seguindo. Aristóteles emprega aqui ain-da um outro dispositivo estilístico. Fora seu uso técnico, méchri ocorreapenas três vezes, e cada vez esse termo é usado para assinalar o trata-mento de um tópico importante: méchri Sólonos (2.2), antes da discussãode Sólon; méchri toútou (23.1), antes da discussão do Areópago; e méchrites nyn (41.2), antes da discussão da constituição contemporânea”.16

Assim, entende Keaney, resulta na composição aristotélica da AP umaconformação textual que a estrutura em três unidades distintas:

“A AthPol de Aristóteles está dividida em três seções maiores, que tratamrespectivamente do período pré-soloniano, do período desde Sólon até oestabelecimento final da democracia radical por fins do séc. V, e, finalmente,da descrição sistemática desta democracia tal como ela existia no séc. IV”.17

E, todavia, há algo que não vai bem com a teleologia da AP. Já suaformulação por Keaney apresenta uma certa duplicidade, senão ambiguidademesmo, na medida em que comporte, ou não, o pleno alcance filosófico quetal conceitualização aristotélica implica. Assim, seu propositor logo adverteque o padrão teleológico por ele discernido na composição da obra é maiscertamente estilístico do que propriamente filosófico:

16 Keaney, 1963: 145, nota 36.17 Keaney, 1963: 136.

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“Mal seria necessário dizer que, no que respeita à AthPol, não há evidên-cias de um verdadeiro processo teleológico; nada tal como uma força na-tural constituindo-se em direção de um resultado determinado pela natu-reza. Como ele é aqui usado por Aristóteles, o padrão é tão literário quan-to mental. Mas o processo mental que subjaz à esquematização literária,embora influenciada pelas concepções teleológicas de Aristóteles, é, an-tes, retrospectiva e analítica em sua operação. É algo mais próximo daphýsis entendida como fim ou como pleno desenvolvimento (Phys.II.1.193a30), do que dela concebida como o processo de desenvolvimen-to (193b12)”.18

Não se trata, então, efetivamente da teoria teleológica que Aristótelesformulou acerca da natureza, mas sim, antes, de “uma concepção de umdesenvolvimento em direção a um fim que está de algum modo com elavinculada”.19 Este padrão presente na AP é mais, e somente, um modo depensamento e expressão que ordena sua operação de investigação analíti-ca, quase propriamente uma sua viciosidade, condicionada por aquela teo-ria básica de sua filosofia.20

O nó que enlaça a duplicidade do enquadramento teleológico pro-posto por Keaney para o melhor entendimento da AP, tanto presente emseu texto quanto dele ausente, assim veiculando uma certa indecisão aoidentificar sua composição ora como mais plenamente comandada poruma proposição filosófica, ora apenas como literária e estilisticamente con-formada em seu padrão estrutural, reside essencialmente na questão daimplicação, ou não, do desenvolvimento da democracia ateniense ordena-do pela AP ser pensado em termos do conceito aristotélico de physis. Daíque, fechando essas suas advertências conceituais, Keaney chegue a umaformulação conclusiva que antes retorna ao ponto de partida de sua refle-xão, ao mencionar os comentários de Jacoby e, ainda antes, de

18 Keaney, 1963: 119.19 Keaney, 1963: 119.20 Keaney, 1963: 119-20.

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Wilamowitz21, os quais já haviam prenunciado, e mesmo sugerido, tal en-tendimento teleológico da AP:

“Embora seja necessário usarmos várias vias de enfoque a fim de adequa-damente visualizarmos o padrão em operação, pode ser aconselhavel ini-ciarmos novamente focalizando a linguagem de Aristóteles. Em 404/3 a.C.,quando, para Aristóteles, a democracia ateniense ésche tèn hautes phýsin,por assim dizer ...”.22

Então, parece sugerir Keaney, se a AP, em sua estrutura discursiva,não chega propriamente a ser formulada expressamente por Aristóteles emtermos de sua filosofia teleológica, certamente, pelo menos, assim o foi en-quanto pré-concepção literário-estilística subjacente a esse especial modo depensamento aristotélico.

1992

Em um artigo publicado em 196923, Keaney retoma e desdobra asproposições inaugurais de sua leitura da AP. A questão da teleologia aindapermanece: constitui o princípio ordenador da estruturação narrativa da obrano seu todo, conforme à argumentação já desenvolvida no texto de 1963.Porém, agora, ela fica mais marcada como procedimento literário de narra-ção, como padrão estilístico, e passa para segundo plano. O crítico, que ain-da acusa as limitações de apreciação redutora causadas pelo império doenfoque historiográfico, já não reclama mais, como em 1963, a falta, quecausa a falha na leitura, do enfoque filosófico. Ou, antes, foi este enfoquefilosófico subsumido – e, pois, elidido – pelo reclamo do enfoque literário.24

21 Vejam-se nossas considerações a p. 218, especialmente na nota 3.22 Keaney, 120.23 Ring composition in Aristotle’s “Athenaíon Politeía”. American Journal of Philology, XC.4

(1969): 406-23.24 “Desde a publicação do papiro de Londres, em 1891, a AthPol de Aristóteles tem sido

enfocada primordialmente como uma fonte documental para os historiadores das cons-

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Keaney volta então todo o cuidado de seu olhar analítico para destacara percepção de um outro padrão estilístico que igualmente conforma a com-posição narrativa da AP, o qual combina um duplo procedimento de narração:a repetição e a composição em anel. Este padrão, entende Keaney, enseja aAristóteles arquitetar amarrações mais parciais, conectando seções discretasdo texto, de modo a melhor marcar o alcance e o sentido preciso que “cadaetapa do desenvolvimento histórico da politeía ateniense teve enquanto con-tribuição para a progressiva constituição da democracia radical”.25

Assim, o olhar atento de Keaney visualiza os laços e as malhas textuaisque desenham a rede tramada por um tal padrão estilístico, devidamentearrolando-os em seu artigo. Percebido agora o texto aristotélico sob as lentesda composição em anel, começamos a enxergar na AP a técnica narrativade seu autor, e a melhor apreciar o teor artístico, a qualidade literária daobra. Por não a terem percebido, os críticos anteriores – inclusive, dentreeles, Kaibel mesmo, entretanto um solitário precursor do enfoque estilístico –equivocadamente acusaram como falhas, deficiências, de Aristóteles, o que,de fato, uma vez corrigida essa miopia do enfoque não-literário do texto, sãoantes os recursos de sua arte narrativa.26

A orientação que ganhara relevância no artigo de 1969, agora, nolivro de 199227, impera avassaladora, operando sua proposição analítica já

tituições. Esta ênfase é bastante natural, mas ela foi, acredito, parcialmente responsávelpor um relativo negligenciamento de outros aspectos da obra, em particular de umponto de vista literário” (Keaney, 1969: 406).

25 Keaney, 1969: 422-3.26 “Muitas das deficiências estilísticas discutidas por Kaibel e por outros são mais aparentes

do que reais. Em alguns casos, uma suspeita desnecessária para com o texto e julga-mentos equivocados acerca das capacidades de Aristóteles enquanto historiador foramdevidos a uma falha em perceber que Aristóteles usa a repetição, particularmente sob aforma da composição em anel, como um dispositivo estrutural maior tanto na partehistórica (cap. 1-41) quanto na parte sistemática da AthPol” (Keaney, 1969: 406).

27 The composition of Aristotle’s “Athenaíon Politeía”. Observation and Explanation. NovaIorque / Oxford: Oxford University Press, 1992.

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liberada dos entraves das outras abordagens mais tradicionalmente consa-gradas de leitura da AP, sejam historiográficas sejam filosóficas, que distorciama devida apreciação do sentido e do valor dessa composição aristotélica.

A justificação erudita que instiga a leitura, de aspirações inovadoras,se não revolucionárias, de Keaney, retoma o mesmo ponto de partida de seupercurso inaugural, trinta anos antes: a recusa da leitura pelo enfoque histo-riográfico, que trata a obra redutoramente como documentação histórica,aferindo sua dimensão de fonte textual para a reconstituição da história fatualdo Estado ateniense, mais particularmente de sua evolução institucional. Daprojeção desse enfoque de leitura da AP, e mais especialmente do desencan-to com o desempenho historiográfico de seu autor a denunciar a sua in-competência nesse domínio, resulta o repúdio do reconhecimento da auto-ria aristotélica, assim (des)apreciada como indigna de figurar sob o prestígiodesse nome. Crítica da insuficiência do enfoque historiográfico que Keaneyestende para o seu corolário, o não enfoque filosófico. Pois, se os historiado-res, que reconheceram a AP como texto especialmente pertinente ao seuobjeto de estudos, a ele dedicando intensos e amplos esforços analíticos, osfilósofos, pelo contrário, dele descuidaram, o negligenciaram mesmo,irrelevando-lhe qualquer alcance filosófico.28 Por ambos os lados, quer daHistória quer da Filosofia, e por modos aparentemente reversos, a AP éassim dissociada do nome de Aristóteles, em razão, entretanto, de uma simi-lar desapreciação de sua qualidade precípua, seja como historiografia sejacomo reflexão filosófica.

28 “A Athenaíon Politeía de Aristóteles, desde a sua descoberta há um século atrás, temsido tratada como um documento histórico e muito utilizada por estudantes de históriaantiga. Este enfoque continua a criar dificuldades. Alguns acharam a obra tão pobreenquanto história que ela deve ter sido o produto de uma mente inferior à de Aristóteles;uma outra versão desta crença é que a obra é tão diferente do restante subsistente davolumosa produção de Aristóteles, o corpus Aristotelicum, que ela deve ter sido com-posta por outra pessoa. Pelo menos em parte por causa da dominância do enfoque‘histórico’, a obra tem sido amplamente ignorada pelos estudiosos da filosofia antiga”.(Keaney, 1992: XI).

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Mas, o retoma apenas em parte, pois a propugnação da leitura peloenfoque da filosofia aristotélica, expressamente reclamada em 1963, agora,em 1992, é também desrecomendada paralelamente ao enfoque historio-gráfico. Firma-se, na leitura de Keaney, o primado exclusivo do enfoqueliterário. O sentido e o valor da obra determina-se, não pela projeção deuma identidade exteriormente derivada, seja historiográfica seja filosófica,carreando indevidas desqualificações da obra porque associada ao nome deAristóteles, mas determina-se, sim, interiormente a ela mesma, enquantounidade discursiva diferenciada e autônoma, a conformar uma estruturaçãosingular e específica de entendimento.29

Então, das teorias particulares da filosofia aristotélica, enquanto enfo-que teórico que comande o sentido composicional da AP, não há mais traçona abordagem de Keaney. A teleologia, em especial, é expressamente afas-tada, bem se advertindo a impropriedade de equacionar a evolução histó-rica de progressão da constituição ateniense, entretanto direcionada para aconsecução do fim específico da forma de governo que consagra a sobera-nia dos órgãos populares, como um processo natural.30 Da filosofia aristotélica

29 “Está claro que não é ilegítimo usar a AthPol como fonte histórica – por vezes trata-se dafons unicus – nem ninguém negaria que ela e outras politeiai tenham alguma conexãonecessária com a filosofia política de Aristóteles, mas tirar conclusões acerca da autoriaou acerca da natureza da obra baseando-se em critérios da historiografia grega ou dafilosofia de Aristóteles é ignorar uma terceira possibilidade, a saber, que a AthPol nãotenha sido projetada nem como uma peça de escrita histórica nem tenha sido plena-mente concebida como um suporte para outras obras, seja a Política ou algum outroprojeto. Eu antes proporia examinar-se a obra em si e por si mesma, sem o estorvodestes óculos acadêmicos, por meio de um enfoque literário”. (Keaney, 1992: XI).

30 “Já foi observado em um outro contexto que os termos phýsis e télos em seu significadoteleológico estão ausentes da AthPol. E, todavia, Wilamowitz afirmou ‘die eschatedemokratía erfülte immer mehr ihre phýsis in der sprache der Politik zu reden’ (a demo-cracia final cada vez mais realizou sua phýsis, para falarmos a linguagem da Política). Aafirmação é equivocada por mais de uma razão. Para Aristóteles, democracia é umaparékbasis ou uma politeía parekbebekuia, uma forma desviada. Embora possa ser ditoque toda sociedade advêm e existe por natureza, phýsei, isto não é verdade para toda

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resta agora, ainda presente na leitura de Keaney, apenas um tímido traço, derelevância ínfima, em alusão à teoria da distinção das modalidades de cau-sas, com o corpus documental de informações históricas dispondo a causamaterial de composição da obra que têm na politeía sua causa formal.31

Já ao padrão de concepção do desenvolvimento histórico por umaprogressão que distingue três estágios – começo ínfimo, crescimento e ex-pansão e fim portentoso –, originariamente proposto por Else em seu estu-do da Poética, Keaney permanece fiel. Mas, agora, ele deixa de ser consi-derado como um modo filosófico precipuamente aristotélico de pensamento,para configurar antes a essência distintiva de uma espécie do gênero daHistória Cultural, qual seja, a politeía.32 Assim, o gênero estaria tambémrepresentado em duas outras obras do contexto peripatético mais imedia-tamente próximo de Aristóteles, similarmente conformadas em sua com-posição em consonância com os tópicos definidores daquele padrão. É ocaso tanto de Dicearco, que em sua Bíos Héllados traça os estágios históri-cos do desenvolvimento da civilização humana a partir de seu estado natu-ral, passando pelo pastoreio, depois criando a agricultura, até alcançar atua-lidade civilizatória, quanto de Teofrasto, que no tratado Perì Eusebeías dis-tingue a progressão dos modos de configuração dos sacrifícios religiosos,

sociedade que se caracterize por uma particular ordenação política. Na medida em queas formas políticas possam ser boas (realeza, aristocracia, politeía) ou más (tirania,oligarquia, democracia), apenas as três primeiras são katà phýsin em termos do hori-zonte moral de Aristóteles; as três últimas são parà phýsin. (Keaney, 1992: 24).

31 “Para usarmos uma analogia, são os dados históricos mediados por meio de fontessecundárias que formam a matéria ou causa material de que a politeía escrita é a formaou a causa formal. Se for verdade que termos como estes foram explorados porAristóteles, isto faz com que os conteúdos da AthPol tomem um aspecto bem diferentedo que teriam caso se restringissem ao enfoque básico da historiografia”. (Keaney,1992: 4-5).

32 “Há uma outra abordagem da questão do gênero que consiste em tratar a AthPol comouma espécie de Kulturgeschichte. A justificação inicial para esta abordagem será o usode uma linguagem similar nas obras de Aristóteles e em outras obras que mais clara-mente pertencem ao gênero da história cultural”. (Keaney, 1992: 20).

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inicialmente dedicando como oferendas a relva-capim, depois as folhas,então a cevada etc.

E o padrão tanto mais permanece quanto se complica, a ponto de(Keaney) imaginar a operação de tramas um tanto intrincadas de manobrascomposicionais, supostamente aristotélicas. Primeiro, porque não se tratamais do desenvolvimento histórico de um fenômeno singular, concernente auma única e distinta entidade, como o era a constituição ateniense ou ademocracia radical, assim retratada na leitura de 1963. Agora têm-se trêsentidades: a democracia, a pólis e a multidão (plethos). E tampouco se tratade um processo de desenvolvimento uno em sua homogeneidade, mas an-tes de um processo heteróclito em que os estágios são (um tanto nebulosa-mente) referidos diversamente a cada entidade, de modo que no princípiotrata-se da democracia, depois na expansão trata-se da pólis e da democra-cia e depois (ainda?) na expansão da multidão.33 Complexidade ainda maisacentuada porque entrecruzam-se também no processo dois aspectosevolutivos, um que compõe um movimento progressivo (forward), entretan-to interrompido, e outro antes regressivo (backward). Por fim, verdadeirasfórmulas de linguagem – katà mikrón, auxán e éti kaì nyn –, precipuamenteassim concebidas pela composição da AP, apõem conectivos estruturais es-pecialmente dotados de funcionalidade semântica.

Então, para Keaney uma estruturação, não mais tríplice como no textode 1963, mas quadripartite conforma a composição da AP, em precisa cor-respondência com o processo progressivo de constituição do primado políti-co dos órgãos populares, especialmente os tribunais, na definição do Estadoateniense:

33 Como não temos melhor certeza de termos bem compreendido a obscura formulaçãodo pensamento de Keaney, aqui o citaremos em sua expressão original: “The languageshows that Else’s pattern is operative, but it will be seen that Aristotle has manipulated itin various and unique ways. First, the phenomenon of development is not applied to asingle, a separable entity but, in order, to demokratía (arché), pólis and demokratía(aúxesis) and plethos (aúxesis)”. Logo adiante Keaney conceitualiza sua formulaçãodizendo: “the shifting referents of the pattern” (os referentes deslocantes/moventes dopadrão?) (Keaney, 1992: 22-3).

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– a I parte, desde o início (perdido) da obra até o cap. 3, retratando aredução dos poderes do colegiado dos arcontes;

– a II parte, do cap. 5 ao 41, enfocando a perda dos poderes doAreópago;

– a III parte, desde o cap. 42 até o 62, caracterizando a redução dospoderes do Conselho dos Quinhentos;

– a IV parte, do cap. 62 até o fim, descrevendo os modos de operaçãodos tribunais populares.34

O que configura, certamente, uma interpretação heterodoxa no âm-bito das vertentes modernas de leitura da AP, rompendo com aquele enten-dimento tradicional, desde o princípio consagrado (e, ainda, expressamenteformulado pelo próprio texto aristotélico no cap. 41), que identifica antesuma estruturação dúplice da obra, com uma primeira parte de narrativahistórica traçando a progressão da politeía ateniense, e uma segunda pro-priamente descritiva de sua morfologia institucional à época de Aristóteles.Esta dualidade, argumenta Keaney, embora presente no texto, respeita ape-nas a uma sua mais simplista ordenação narrativa em termos cronológicos,ao passo que é aquela estruturação quadripartite, de maior complexidade,que melhor expressa a concepção mais precisa com que Aristóteles aprecia-ra a evolução da Constituição Ateniense.35

34 Há uma ligeira divergência entre a segmentação proposta por Keaney para identificartal estrutura quadripartite na p. 44 relativamente à inicialmente apresentada na p. 12: aI parte estende-se apenas até o cap. 1, e não até o 3, e a II parte começa no cap. 2, enão no 5.

35 “É uma concepção tradicional de que a AthPol comporta uma divisão básica em duaspartes, com os capítulos 1 a 41 contendo uma história narrativa da constituição deAtenas, e os capítulos 42 a 69 descrevendo a constituição na forma existente quandoAristóteles redigiu a obra por volta de 334-1. A simplicidade desta concepção possuiuma satisfação abstrata, e é uma concepção que apresenta algum ligeiro suporte textual.Todavia, tanto a linguagem quanto à estrutura da obra sugerem uma interpretaçãomais complexa, a saber, de que esta divisão da obra é quase que inteiramente cronoló-gica, e de que a relação mais importante entre as partes da obra é propriamente de

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E, todavia, reconhece o próprio Keaney, uma tal estruturação maiscomplexa de composição narrativa não é expressamente declarada porAristóteles em seu texto mesmo. Ela antes nele subjaz/sobrepaira por meioalusões e de verdadeiros artifícios conectivos de uma metodologia estru-tural.36

Um princípio básico fundamenta essa metodologia estrutural: rompercom a tradicional hermenêutica da contextualidade imediata, que nãodiscerne o sentido maior do texto e nem, pois, a mais relevante intenciona-lidade de seu autor, devido à miopia mesma do enfoque redutor por elaprivilegiado, em prol da inter/supracontextualidade, que justamente alcançatais sentidos e intenções atentando para a imantação semântica das cone-xões tramadas pela obra.37 Aqui, afirma Keaney, o artifício narrativo que

conexão antes do que de divisão. (...) Esta interpretação de parte do capítulo 41 tencio-na fundamentar a sugestão de que os segmentos estruturais maiores da AP devem servistos como mutuamente integrados antes do que como nitidamente demarcados umdo outro. Esta consideração estrutural reflete a concepção de Aristóteles – inferida domodo pelo qual ele conformou seu material – no sentido de que, embora a história daconstituição de Atenas possa ser dividida em segmentos discretos para proposições deanálise, essa história constitui ao mesmo tempo o registro de um processo de continui-dade. Neste capítulo, proponho a argumentação de que a divisão mais precisa da obraé quadripartite, I (do início perdido ao capítulo 1), II (2-41), III (42-62), e IV (63-69)”(Keaney, 1992: 43-4).

36 “Sobrepondo-se e controlando todos estes textos está uma tese, a saber, de que a histó-ria da política ateniense é o desenvolvimento da constituição em direção à democraciado século IV, e de que este desenvolvimento constitui a história do demos de Atenasalcançando o poder em se apropriando de funções que originariamente pertenciam aoutros órgãos da sociedade. Aristóteles nunca articula esta tese seja em termos geraisseja em pontos específicos, mas ele a desenvolve progressivamente. Aspectos impor-tantes de seu método são as alusões verbais, como já vimos, e a estrutura” (Keaney,1992: 47).

37 “(...) um princípio básico de interpretação pode ser-lhes aplicado, a saber, de que enfocá-los apenas em seu contexto inicial e imediato constitui uma abordagem limitada, elimitante, e que não responde adequadamente pelas intenções de Aristóteles” (Keaney,1992: 50).

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opera a trama referencial de construção do sentido (e, pois, de decantaçãodas intenções do autor) é essencialmente “a repetição, seja formal, por meiode estrutura, seja em termos de conteúdo, por meio de padrão ou tema”.38

Então, a formulação teorizante que sintetiza a idiossincrasia metodo-lógica, de pretensões revolucionárias, vislumbrada pela (trans)visão herme-nêutica de Keaney:

“Meu emprego de termos tais como padrão, tema/temático, e, em poucaspalavras, subtexto e paratexto provém de um modo diferente de enfocar otexto em relação àquele que tem sido seguido em praticamente quasetodos os tratamentos anteriores da obra. Esta interpretação tenciona suge-rir que um importante método de comunicação na obra se efetiva peloque pode ser chamado de extra-referencialidade. Utilizo este termo horro-roso para expressar uma noção relativamente simples, a saber, de quemuitas colocações na AthPol não são para serem lidas nelas e por elasmesmas em seu contexto imediato, mas estão relacionadas e mais plena-mente compreendidas à luz de outras passagens, seja interiormente sejaexteriormente à obra. Esta noção envolve três dispositivos de composição:I. estrutura, que discuto no próximo capítulo; II. fórmula, padrão, e tema,que discuto ao longo da obra; e III. subtexto e paratexto”.39

Por subtexto, Keaney designa a presença ou interferência discursivada manipulação aristotélica no emprego das fontes textuais que informarama composição de sua narrativa, assim carreando para a AP, mais ou menoselíptica e subliminarmente, seus precípuos sentidos e proposições originais.Por paratexto, designa as interações entre passagens textuais, expressamen-te tramadas na narrativa por suas marcas de repetição, quer de linguagemquer de conteúdo temático, com a finalidade de melhor clarificá-las.

Como dispositivos narrativos de estruturação composicional Keaneydiscerne, ao longo de todo o texto da AP, duas modalidades. Um, a com-posição em anel, comportando tipos simples e complexos, por vezes apre-

38 Keaney, 1992: 51.39 Keaney, 1992: 56

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sentando variantes, a arquitetar sua estrutura vertical. O outro, o chiasmus,a dispor sua estrutura horizontal.40

E, por fórmulas Keaney distingue algumas expressões idiomáticas,verdadeiras idiossincrasias lingüísticas, compostas precipuamente porAristóteles para e pela narrativa da AP. Assim, tem-se, por exemplo, umafórmula dokein que, veiculando a oposição entre aparência e realidade, apre-senta a função de tecer na narrativa apreciações de figuras de relevância nahistória constitucional ateniense em consonância com as respectivas reputa-ções prévias que as mesmas gozavam no cenário político da cidade. Emúltima instância, essa fórmula está polarizada pela preocupação aristotélicade bem resguardar o prestígio e a fama política da liderança terameniana.41

Ou, outro exemplo, a dita fórmula constitucional, cujo emprego implica nanarrativa a sobreposição de uma ironia aristotélica, pois a fórmula afirmaque os casos de instituição de regimes não-democráticos na história atenienseresultaram, paradoxalmente, de processos institucionais mais caracteristica-mente democráticos.42 E, ainda, uma fórmula compósita, nela confluindojustamente essas duas outras: oudeni dogmati, assim configurando emdogmati “um soberbo exemplo de paranomásia”.43

Paradoxos

Agora, justamente desvendada pela investigação analítica de Keaney,emerge toda a arte composicional conformadora do texto da AP. Recursosestilísticos a dotam admiravelmente em termos literários, indo desde simplesrepetições e ecoamentos verbais, por vezes compondo já verdadeiras fór-mulas de linguagem idiossincrásicas; passando por jogos de paralelos tex-

40 Confiram-se, respectivamente, os capítulos 8 (Vertical structure: ring composition) e 9(Horizontal structure: chiasmus).

41 Confira-se o capítulo 11 (The dokein formula).42 Confira-se o capítulo 12 (A constitutional formula).43 Keaney, 1992: 124.

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tuais, por vezes de longo alcance discursivo, a deslindarem os sentidos maio-res das assertivas da obra por meio de uma verdadeira rede de interferênciassemânticas intercontextuais meticulosamente tramadas; e incluindo atéestruturações mais elaboradas de exposição discursiva, empregando dispo-sitivos tais como as composições em anel e os quiasmos, ora mais simplesora mais complexos, por vezes arquitetando articulações estruturais altamenteintrincadas. E recursos técnico-artísticos de composição discursiva que vei-culam comunicativamente as intenções e proposições maiores do autor,estruturando a exposição de seu pensamento consoante suas razões de coe-rência e consistência.

A AP, assim, não é obra menor, inferior, eivada de erros e estigmatizadapor supostas inconsistências: tais pretensas falhas denunciam, proclama Keaney,não a incompetência de seu autor, mas antes a miopia de seus leitores moder-nos, deformada pelos padrões redutores de sua ótica historiográfica positivis-ta. Repetições, fórmulas, padrões, e estruturas, bem categorizadas comosubtextos, paratextos, anéis, quiasmos, interreferencialidades, paranomásias... ,revelam a metodologia do autor. Este autor, de uma tal obra assim artistica-mente elaborada, a conformar um pensamento sistematicamente coerente, ébem condizente com o prestígio filosófico implicado pelo nome de Aristóteles.A AP expressa, pois, a obra de um Aristóteles estruturalista!

Mas, o Aristóteles estruturalista da AP é descoberta individual exclusi-va de Keaney, mais de dois milênios depois de sua composição, e apósquase um século de esforços hermenêuticos modernos de seu melhor enten-dimento. E descoberta apenas plenamente configurada só ao final de nãomenos de três décadas de intensos e minuciosos estudos de investigação dasverdades do texto, a manipulá-lo e revirá-lo por múltiplos e intrincados per-cursos de leitura, tão sutis quanto labirínticos. Por toda essa longa históriamilenar, a revelação da identidade estrutural da obra permaneceu ignorada.E, entretanto, era ela, entende Keaney, que Aristóteles antes tencionava sig-nificar e comunicar em, e por, seu texto mesmo!

Paradoxal modo de comunicação textual, que antes oculta cifradassuas significações, do que manifestamente as declara; e que antes se expres-

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sa, não propriamente pelo que cabalmente diz e afirma sua redação efetiva,mas sim pelo que, pelo contrário, não diz taxativamente, mas apenas proje-ta, espécies de auras ou de icebergs textuais, ambos igualmente invisíveis,por meio de subtextos ou paratextos, padrões e estruturas, inter-referenciali-dades e paranomásias. Comunicação textual, pois, antes incomunicada atodos, menos a Keaney! E, talvez, até mesmo incomunicável, inclusive porKeaney: das obscuridades, das argumentações fragmentadas, elípticas, edesconjuntadas, e das especulações tão mirabolantes e intrincadas quantofrágeis, já outros críticos falaram.44 E falaram também do artificialismo dasinterpretações, de seu exagero e mesmo de sua desnecessidade hermenêu-tica, como ainda da viciosidade metodológica de sua tese.

Pela ótica do Aristóteles estruturalista de Keaney, muito mais suacriação do que descoberta, a inteligibilidade histórica da AP assim antes setrava aprisionada em um tal emaranhado labiríntico de explanações dosziguezagues de suas mensagens textuais, supostamente decifradas por um(des)entendimento que mais a hermetiza do que a desvenda. Espécie dequebra-cabeças de jogo de montagem antes reversa, que opera desmon-tando a unidade de seu sentido textual, entretanto já inicialmente dada,para recortar peças fragmentárias a serem (des)ordenadas em(re)configurações de outras mensagens, todavia não ditas. Recriação mons-truosa do texto, por hibridismo composicional de membros heteróclitosdesconectados de sua original conformação orgânica.

Na construção dessa sua ótica estrutural de percepção da AP, Keaneysegue firme e resoluto a via hermenêutica por ele descortinada. E a segue,não só dissociando-se da tradição de quase um século de leituras da obra,apenas escassamente presente em sua bibliografia. A proposição de suainterpretação alcança mesmo pretensões revolucionárias, já devidamenteapontadas pelos críticos, a discordar, questionar e reverter os enfoquestradicionais. O principal deles, que denunciando a incompetência historio-

44 Confiram-se as resenhas de S. C. Todd na Classical review, XLIV.1 (1994): 24-5, e deR.W. Wallace no Americam Journal of Philology.

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gráfica de seu autor, recusava à AP a admissão da autoria aristotélica, rele-gando sua composição antes a um discípulo menor, menos intelectual-mente bem dotado do que o grande mestre. Keaney, pelo contrário, afirmaplenamente sua identidade aristotélica, agora não mais apenas a dandocomo fato admitido de princípio (como no seu texto inicial, de 1963), mascuidando de argumentar sua verdade, assim configurando uma tese desua obra analítica, desde logo exarada já em seu primeiro capítulo.45

De todo o texto da AP, então, Keaney expurga apenas como não-aristotélico o célebre capítulo IV, descritivo do regime draconiano, que desdeo início mesmo das leituras da crítica moderna já fora denunciado comouma interpolação de data posterior. Também não-aristotélicos seriam aque-les mínimos ajustes redacionais no corpo do texto que pretensamente finali-zavam nele harmonizar o dado intruso acarretado por essa interpolação.46

Em última instância, um pré-conceito sustenta esta condenação da determi-nação espúria da politeía draconiana no caso de Keaney: se a inserção dapoliteía draconiana no texto da AP for de algum modo admitida comoaristotélica, sua anômala integração arruina catastroficamente toda a tesekeaneyana de uma obra meticulosamente planejada em sua arquitetura es-trutural de pensamento e reflexão. A politeía draconiana indiciaria, e denun-ciaria, a incompetência de estruturalista do autor da AP.47 Assim, para Keaney,

45 “The origin and authorship of the Politeiai”, p. 3-19.46 “Admito duas suposições acerca de questões controversas, reservando discussões maiores

para outra ocasião: (a) que o cap. 4, a Constituição de Drácon, junto com as suasreferências textuais, 3.1, 7.3 e 41.2, constitui uma interpolação não perpetrada porAristóteles; (b) que Pol. II.12 foi redigida antes da AP, e Pol IV-VI depois dela (Keaney,1963: 141, nota 1). Drerup argumenta que Aristóteles fez certas adições e nota margi-nais em seu texto e que estas foram canhestramente inseridas no texto por um editortardio. Sua argumentação baseia-se amplamente em AP 4, a constituição de Drácon:poucos negariam que se trata de uma interpolação (embora eu negaria que Aristótelesfosse o responsável por ela) e que sua inserção causou outras inserções a serem feitasno texto (3.1, 7.3 e 41.2)” (Keaney, 1970: 327, nota 8).

47 Confira-se a nota 4 à p. 155, onde Keaney argumenta a favor da tese de que o cap. 4seja uma interpolação: “No que respeita a (b), provar que o capítulo 4 constitui uma

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não pode ser de Aristóteles, que dominava magistralmente a arte da lingua-gem arquitetonicamente trabalhada em estruturas de pensamento.

Ora, mas não é esta modalidade de procedimento expurgativo quejustamente caracteriza a tradição inaugural de interpretação da AP, de for-mação historiográfica positivista, obcecada em dela depurar intrusões não-aristotélicas? Agora, com Keaney, o mesmo pressuposto analítico reapare-ce, só que operando ao inverso: projeção de excelente qualidade literária ede mestria de pensamento, confirmam que se trata de Aristóteles mesmo.Ao revolucionar a tradição, buscando reverter suas proposições e verda-des, a obra de Keaney não teria sido vítima do que já Hannah Arendt,dialogando com autores de maior envergadura filosófica como Nietzche,Kierkegaard e Marx, sugeriu como sendo a vingança da tradição. É que,para reverter as assertivas da tradição, o revolucionário acaba por operarsua argumentação nos e pelos quadros conceituais dessa mesma tradição,assim, acabando por antes os reproduzir do que definitivamente os liqui-dar.48

interpolação, não há necessidade de nos voltarmos para a falta de valor histórico deseus conteúdos: referências à estrutura e à tradição são suficientes. Quanto à primeira,o posicionamento do capítulo é incompatível com a estrutura em anel dos capítulos 2,3 e 5 ...” (Keaney, 1992: 155).

48 Hannah Arendt. “A Tradição e a época moderna”. Entre o passado e o futuro, 1972,(1954), p. 43-68.

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XI. Leões alados ecírculos triangulares

Sopesadas as sortes guerreiras de aqueus e de troianos, a destesascendera ao alto contra a daqueles baixada a tocar as regiões inferiores.Assim, o avanço vencedor troiano ameaça as naus e acampamento aqueu,agora já ao alcance de sua agressão incendiária. Os aqueus, apenas pou-pados naquele dia pelo cair da noite encerrando a jornada de combates,afligem-se quase desesperados por tal reversão a frustrar sua obra heróica.Conscientizam a urgência do retorno de Aquiles, única potência capaz delivrá-los daquelas ameaças, então ausente do confronto bélico porque ira-do contra Agamêmnon e seus comandados. O próprio Agamêmnon reco-nhece os erros de sua ofensa que causara a ira do herói salvador, e sedispõe, agora, a ressarcir devidamente a honra do Pelida, oferecendo-lheirrepreensível acúmulo de presentes régios em reparação. Cumpria-se odesígnio de Zeus

Então, Nestor, aplaudindo a principesca recompensa com que tenta-riam persuadir o retorno salvador de Aquiles aos combates, aconselhou to-dos os modos de conformar aquela embaixada ao herói. Assim, logo desig-nou quem seriam os apropriados emissários para os desempenhos que sereclamavam de uma tal missão:

“Fênix primeiro, amado de Zeus; ele que conduza a embaixada; depois ogrande Ájax e o divino Odisseu; e entre os arautos, sejam Ódio e Euríbatesa acompanhá-los”.1

1 Homero. Ilíada, IX.168-170 (tradução de Cascais Franco).

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Portanto, três emissários (além dos dois arautos), distintamente no-meados: Fênix, Ájax e Odisseu, sob a condução do primeiro.

E lá se foi a embaixada a caminho da tenda do Pelida, então láretirado ausente da guerra troiana!

Todavia, ao prosseguir Homero seu relato do episódio, eis que co-meçam a surgir na narrativa formas duais de referenciação aos enviados!

Pois, logo, ao descrever a marcha em caminho para o acampa-mento guerreiro de Aquiles, diz o poeta que “eles dois seguiam ao longoda beira do mar ressoante” 2, a dirigir preces a Posídon, a fim que o deuslhes viabilizasse dons persuasivos para aquela sua fala à alma orgulhosado Pelida.

Depois, a narrar agora a chegada à tenda do irado herói, o poetavale-se novamente do emprego da forma dual:

“Os dois avançaram, primeiro o divino Odisseu, e detiveram-se diantedele”.3

E ainda a dizer os termos da saudação em cumprimento que lhesdirigiu Aquiles:

“Salve; sois decerto bem-vindos. Sem dúvida que vos traz uma necessida-de. Apesar de minha ira, sois os aqueus que eu mais estimo”.4

Agora, então, a formulação poética da narrativa enseja antes umamemorização que diz também de um grupo destacado de apenas doisemissários, assim anonimamente referidos pela forma dual.

Afinal, quantos enviados compõem a embaixada: dois ou três? Nãohá incoerência ou contradição no texto homérico? Seriam, quem sabe,

2 Ilíada, IX.182.3 Ilíada, IX.192-193.4 Ilíada, IX.197-198.

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resquícios de versões diferentes do mesmo episódio, assim canhestramentemescladas, ou indevidamente interpoladas, pela singular performance poé-tica que, registrada em texto escrito, compôs a tradição a nós transmitidada Ilíada homérica?5

Gregory Nagy, em sua importante obra The best of the achaeans6,certamente de aportes e contribuições altamente renovadores, além de exem-plar por suas análises textuais de acuidade formal minuciosa, retomou aabordagem dessa já clássica questão homérica, de persistência pelo menossecular na tradição da crítica filológica moderna, propondo uma sua novaresolução, cuja trama argumentativa agora passamos a expor, reproduzin-do-a quase que na íntegra, modo mesmo porque intentamos reconhecerdesde já a inteligência de sua consecução crítica.

De início, Nagy constata, já no informe inicial a identificar nominal-mente a composição da embaixada que Nestor indicara, o registro de umaprimeira formulação temática, pela qual o poeta apresenta Fênix, o vene-rando ancião tão caro a Aquiles, no papel de destaque, a liderar a condu-ção da mesma junto à tenda do irado herói.7

Todavia, logo a seguir na narrativa, e agora divergindo dessa primeiraproposição, a Ilíada envereda por outra variante temática, marcando antesnitidamente o primado odisséico na atualização desse papel de liderança. Ejá assim o faz, ao mencionar o modo por que, em despedida aos enviados,o próprio Nestor induzira-lhes a recomendação no sentido de empenharem

5 M. Edwards (Homer..., p. 219) lista as principais teses interpretativas que intentaramsolucionar esse dilema textual.

6 G. Nagy. The best of the achaeans. Baltimore/London: Johns Hopkins University Press,1979, p. 42-58. Confira-se igualmente o texto de Nagy (Mythological exemplum inHomer) incluído na coletânea Innovations of Antiquity, editada por R. Hexter e D.Selden, p. 311-331, agora já respondendo a algumas críticas recebidas.

7 Ilíada, IX.167-170.

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seu melhor zelo naquela missão persuasiva: “a dar sinais com os olhos acada um, especialmente a Odisseu”.8 Primado que se desdobra por maisoutros atos de Odisseu, o qual assume todas as iniciativas na execução daembaixada, postando-se à frente de seus companheiros já na marcha deida9, e também depois, agora encerrada a refeição com que hospitaleiro osbrindou o Pelida, ao tomar a palavra encetando o discurso por que comuni-cou a mensagem da oferta magnífica de presentes feita por Agamêmnon aAquiles, quando Ájax, entretanto, dera silencioso sinal a Fênix para que esteassim o fizesse!10 E primado de uma liderança odisséica ainda completadopela descrição final do episódio: é ele, Odisseu, quem, com a retenção deFênix junto a Aquiles uma vez frustrada a embaixada, comanda também avolta, encarregando-se da fala em que expôs aos chefes aqueus a recusa deAquiles.11

Assim se configura, pelo desdobramento narrativo do episódio naIlíada, um padrão temático que assinala a “auto-afirmação heróica deOdisseu”, o qual, entende Nagy, é “o reflexo em particular de um de seusmuitos papéis, o de trickster”.12

Pois, prossegue Nagy, é pela eficácia astuciosa dessa sua singular-mente distintiva modalidade de excelência heróica que Odisseu assume oencargo de obrar a persuasão discursiva com que intenta seduzir o retornode Aquiles aos combates. Então, a melhor efetuar um tal desempenho decompetência astuciosa, Odisseu opera um ajuste significativo de modo amanipular a formulação original da mensagem dita por Agamêmnon. Poisnesta, o Atrida fizera expressa questão de que, a encerrar todo o informedos tantos e esplêndidos presentes por ele agora ofertados como repara-

8 Ilíada, IX.179-181.9 Ilíada, IX.192.10 Ilíada, IX.223-225.11 Ilíada, IX.656-657 e 673s.12 “This pattern of self-assertion on the part of Odysseus reflects in particular on one of his

many traditional roles, that of the trickster” (p. 51).

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ção honorífica pela ofensa antes por ele cometida, fosse dito também aAquiles que “se submetesse a ele, Agamêmnon, na medida mesma emque era mais rei do que Aquiles, e na medida em que gabava-se de ser omais velho”.13 Assim, Agamêmnon reiterava sua superioridade pessoalabsoluta no campo aqueu, a cuja suserania inconteste Aquiles deveriasubmeter-se. Já Odisseu, ao reproduzir esta mensagem, obliterou, supri-miu, este seu recado final. Ora, argumenta Nagy em parte corroborandoum comentário de Cedric Whitman, caso Odisseu tivesse tido êxito em,por tal expediente discursivo astucioso, obter a anuência de Aquiles nosentido de que ele retomasse os esforços bélicos, então “este herói teriasua estatura abortada na Ilíada, de modo a que o herói malograria em suaprópria épica”.14

Mas Aquiles, comenta Nagy, não se deixou suadir, pelo contrário,suspeitoso, replicou duros, porém não menos justos, termos com que “pe-remptório rejeitou o discurso de Odisseu”: “pois a mim é tão odioso quantoos portais do Hades quem oculta uma coisa em seus pensamentos e dizoutra”.15

E já antes, em outra passagem, acredita Nagy, a Ilíada dera a enten-der como as reações de Aquiles supõem essa sua animosidade contra afigura de Odisseu, a considerá-lo odioso, inimigo (ekhthrós). Pois, argumen-ta o crítico, em que termos saudara ele a vinda dos enviados, assim que osdiscerniu a aproximarem-se de sua tenda? Eis a tradução de Nagy (todaviavertida um tanto literalmente em português): “Salve vós dois: vós viestescomo amigos, eu bem vos necessito, vós dois que sois os mais caros a mim

13 Ilíada, IX.160-161.14 “...the acceptance of such compromised terms by Achilles would thus have aborted his

heroic stature in the Iliad. The success of Odysseus in the Embassy would have entailedthe failure of Achilles in his own epic” (Best..., p. 51-52). E, no texto posterior: “It may beargued further that the potential ulterior motive of Odysseus, to undermine the heroicstature of Achilles, is understood by Achilles” (Mythological..., p. 324).

15 Ilíada, IX.312-313.

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dentre os aqueus, ainda agora quando estou zangado”.16 Pelas fórmulasduais compostas na saudação em cumprimento feita por Aquiles, quem se-riam então os apenas dois enviados assim aludidos? Ora, o herói confessaserem eles “os mais queridos” à sua pessoa dentre os aqueus todos. Se,depois na réplica ao discurso, Odisseu é, pelo contrário, claramente definidopor Aquiles mesmo como odioso, segundo termos violentos que bem seaplicam “ao comportamento épico” do herói falso por excelência em suasdeclarações “a continuamente dizer uma coisa para significar outra”, entãohá que se concluir que, por tais referências duais, sejam Ájax e Fênix osamigos assim referidos, na saudação, portanto, dela ficando excluído o aqueuque lhe é antes odioso inimigo, Odisseu!

Eis, pois, a chave da interpretação descoberta por Nagy: os duaissupõem a indicação mais precisa que identifica as figuras associadas de Ájaxe Fênix como sendo os grandes afetos de amizade aquéia de Aquiles, contraOdisseu, personagem épico do “consumado hipócrita”17, a ele odioso pelamétis de ludíbrios dissimulantes de pensamento de suas falas.

A atualização formal de linguagem, assim implicada na composiçãopoética do episódio pelo emprego da fórmula dual, ao que conjectura Nagy,supõe, então, uma disjunção de duas configurações temáticas constantesdo repertório de conteúdos disponíveis na memória da tradição épicahomérica. Uma contava a Embaixada de Ájax e Fênix a Aquiles. Outralembrava histórias de uma inimizade entre Odisseu e Aquiles, mormenteregistradas por uma passagem da Odisséia que diz da rivalidade conflituo-sa, querelenta, entre esses dois heróis aqueus na campanha troiana comosendo um dos temas componentes do repertório épico do aedo, ali figura-do pelo nome do feácio Demódoco.18 É a tradição do primeiro tema quecomporta propriamente o recurso às formas duais, enquanto o segundo

16 “Hail to the two of you: you have come as friends. I need you very much, you two whoare the dearest to me among the Achaeans, even now whwn I am angry” (p. 52).

17 Best..., p. 58.18 Odisséia, VIII.72-82.

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importa para dar ao episódio uma concepção artística inovadora, consu-mada por verdadeiro “golpe de mestre do poeta”, nele integrando a pro-blemática da rivalidade tradicional implicada pelos (des)encontros daque-les dois heróis.19

Então, finaliza a artesanal crítica textual de Nagy, “a cena da Embai-xada, no estado em que a dispomos, não é um canhestro remendo detextos mutuamente irreconciliáveis, mas antes uma orquestração artísticade variantes de tradições narrativas”.20

E, todavia, mesmo esta, assim (re)descoberta, refinada arte homéricade composição poética do episódio, nos termos em que a desvenda a exegesecrítica de Nagy, não deixa de apresentar, ela mesma, implicações parado-xais, senão mesmo contraditórias, em sua teleologia hermenêutica.

Assim, se “a suspeita de Aquiles ao ouvir o discurso de Odisseu pare-ce justificada”, com o Pelida o rejeitando peremptoriamente em duros ter-mos acusatórios contra sua falsidade astuciosa, e se esta manobra astuciosa

19 “If, in turn, the insertion of Odysseus into the Embassy story carries with it the traditionaltheme of an enmity between him and Achilles, then the narrative of Iliad IX may allowthe retention of duals referring to the pair of Ajax and Phoinix when the time comes fosAchilles to greet the Embassy. For an audience familiar with another version of the storywhere Achilles had only two emissaries to greet, the retention of the dual greeting whenOdysseus is included in the Embassy surely amounts to an artistic masterstroke in thenarrative” (p. 54).

20 Best..., p. 49. Um similar projeto de crítica epistemológica, a reverter o sentido das tesesda abordagem mais tradicional de inspiração positivista, finalizando revelar as cuidado-sas, e mesmo primorosamente intrincadas, arquiteturas de composição artística elabo-rada naquelas passagens dos textos antigos, em que justamente aqueles primeiros críti-cos acusavam antes contradições e demais anomalias compositivas de uma sua elabo-ração assim primária, senão grosseira, de erros, pode ser constatado ainda como umatendência hermenêutica na apreensão crítica quer do texto tucidideano – veja-se espe-cialmente a obra de Hunter R. Rawlings III, The structure of Thucydides’ History, de1981, quer do aristotélico da Athenaíon Politeía, especialmente na trajetória analíticaporque seguiu a obra de John J. Keaney (confira-se nosso ensaio antecedente).

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odisséica é especialmente operada no discurso pela manipulação com que oherói ajustou os termos da mensagem de Agamêmnon, eliminando sua par-te final, então a denúncia de odiosidade pronunciada por Aquiles contraquem oculta seus reais pensamentos a expor falsos propósitos – assim deri-vada consoantemente como resposta conseqüente que Aquiles dá aos ter-mos da proposta, que lhe acabara de ser comunicada por Odisseu – só emsegundo plano poderia se reportar à figura de Odisseu, pobre vítima expiatóriade sua missão transmissora de notícias odiosas. Pois, Aquiles desconhecequal era o teor da fala e mensagem original completa de Agamêmnon, sen-do dela apenas inteirado como tal pela formulação apresentada por Odisseu,já obliterada de sua parte final! Se a astúcia, que é o objeto da denúncia deodiosidade que lhe vota Aquiles, é a manobra obliterante operada no corpoda mensagem veiculadora da proposta, então o alvo dessa odiosidade temque ser voltada mormente contra Agamêmnon como seu sujeito proponen-te (ao que a Aquiles é dado entender21), antes do que contra Odisseu, queaparece diante do Pelida apenas como seu mensageiro portador. De modoque a projeção, operada pelo crítico moderno, de mais determinaçõeshermenêuticas com que ele intenta harmonizar os sentidos do texto supe-rando certas anomalias acaba, todavia, por desencadear outras, tanto oumais contraditórias que as primeiras!

Ainda mais, pelo arrazoado de Nagy opera-se uma irônica peripéciacontra sua trama aferidora da inteligência artística homérica. Se a tradiçãoépica, então atualizada por Homero na consecução inovadora do episódioda Embaixada, comporta a integração do sentido da violenta animosidadeentre Aquiles e Odisseu, seria então consistente que o poeta assim concebes-se ser Odisseu, entretanto inimigo odioso a Aquiles, um apropriado agentepersuasivo para induzir, por sua presença pessoal na embaixada, os melho-res apelos com que se viabilizaria o retorno do herói aos combates, acalman-

21 Justamente como tal o acusa Aquiles mais adiante (v. 375-6); quanto à particpação deOdisseu no episódio, considere-se também sua correlata atitude no canto XIX (v. 172-183), em contrapartida às acusações que Aquiles levanta na cena da Embaixada.

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do sua ira furiosamente agastada justo contra os aqueus sectários de Aga-mêmnon? E assim o poeta o teria concebido como tendo sido uma iniciativaapropriada para os desempenhos de sempre prudente e perspicaz conselhodo exemplarmente sábio Nestor? Excluir Odisseu do círculo dos aqueus maiscaros a Aquiles, almejando desse modo solucionar a anomalia textual daforma dual iliádica, não se faz sem percalços, pois conserta-se um equívocoàs custas de outro, e salva-se a arte do poeta arruinando-a!

*

Sétimo ano da Guerra do Peloponeso (425/4 a.C.), primavera, algoantes do pleno amadurecimento do trigo, quando os espartanos iniciavammais outra campanha anual de devastação dos campos da Ática, eis que osatenienses ocuparam a localidade de Pilos, um promontório ao norte dascostas da Messênia, ali estabelecendo uma fortificação.

Esparta, reconhecendo a gravidade do ocorrido que ameaçava deses-tabilizar uma área de fundamental importância para o Estado lacedemônio –sede de exploração de terras agrárias e suprimento de trabalho servil hilota –,dispôs-se a obstar aquele empreendimento bélico. Armou uma expedição vi-sando a desalojar os invasores. Para tanto, haveria que impedir o eventualreforço que a frota ateniense, reconhecidamente superior à peloponésia, pu-desse prestar aos incômodos ocupantes.

Defronte ao promontório de Pilos, estendendo-se ao longo de toda aárea de porto que se abria ao sul, ficava a Ilha de Esfactéria, dispondo comoque uma barreira natural que reduzia os acessos navais a apenas duas entra-das, uma ao norte outra ao sul, pelos canais formados entre os extremos dailha e as costas continentais. Os espartanos tencionavam bloquear, por meiode um enfileiramento cerrado de seus navios com as proas voltadas para omar largo, essas duas passagens, obstando assim a aproximação da frotaateniense. O projeto bélico, diz Tucídides, era plenamente factível, dada aestreiteza daquelas duas únicas passagens, pois, pela norte não cruzavammais do que dois navios, e pela sul no máximo oito ou nove (IV.8).

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Por toda a Antigüidade jamais se conscientizou qualquer advertênciacrítica que apontasse, no relato tucidideano, algum tipo de erro ou equívococometido pelo célebre historiador. Em particular, mesmo os geógrafos anti-gos que descreveram os locais que foram cenário daquele episódio bélico,nada registraram a contestar os informes dados por Tucídides. 22

Bem, a ilha ainda por lá se encontra, ao que se supõe exatamente nomesmo lugar, não constando da tradição clássica que Esfactéria fosse umadessas ilhas maravilhosas de que falam mitos e lendas, a flutuar vagantesdaqui para lá sem ancorar-se em ponto fixo. E lá estão também os doiscanais, norte e sul. Ora, por inícios do século XIX, os viajantes modernosque examinaram a topografia das costas da Moréia em missões militares –assim o coronel Leake a serviço de sua Majestade britânica pela primeiradécada desse século –, também imbuídos do melhor espírito antiquário crí-tico, não descuidaram em ajuizar a melhor precisão historiográfica do relatotucidideano. Então, efetuadas as medidas das duas passagens, constatou-seque ambos os canais são mais largos do que o suposto pelo informe dohistoriador: pelos cerca de 137 metros do norte passam mais do que duasnaus antigas, e pelos 1.280 metros do sul, mais do que oito ou nove.23

Tucídides se equivocara! Erro de imprecisão no informe de realidadefatual imperdoável para historiador cujo preceito metodológico maior, justa-mente celebrado, era o exame de acribia a que submetera seus dadoshistoriográficos. Arruina-se, então, a fama secular de sua competência, mo-delar de objetividade e precisão fatual. Ou, talvez, ainda não! Pois, a salvar omelhor crédito do historiador antigo pode-se conjecturar uma correção emseu texto de modo a conciliar a positividade do relato: leia-se, referenciadonaquela sua passagem, não navios, mas sim estádios. Adotando-se para

22 Assim, confiram-se as indicações dadas por W. Kendrick Pritchett (1994: 158) respeitantesaos relatos de Estrabão e de Pausânias; igualmente já o apontara Gomme (1956: 486).

23 Confiram-se as indicações dadas por S. Hornblower (A commentary on Thucydides. V.2, Clarendon Press, 1996, p. 159-160).

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este padrão de medida seus valores mínimos, entre 130 a 150 metros, har-monizam-se ambas as ordens de realidades – constatações de medidasempíricas modernas e informes historiográficos tucidideanos –, pois doisestádios para o canal norte dá entre 260 a 300 metros, contra os 137 metrosmedidos, e oito e nove para o sul dá entre 1.040 a 1.200 metros, contra os1.280 metros medidos.24

E, todavia, por essa zelosa intervenção da crítica moderna, em seuafan de depurar as inconsistências do texto tucidideano, compõe-se irônicaperipécia a produzir resultado justamente contrário ao desígnio almejado.Pois, assim entendendo que Tucídides teria referido estádios e não navios, ahermenêutica daquela passagem diria que o célebre historiador, querendosignificar que era pela estreiteza daquelas duas únicas passagens que seviabilizava a consecução do plano espartano de sua barragem, o fazia, en-tretanto, especificando-a por referenciação às medidas mais largas. Em suma,o célebre historiador, pretendendo afirmar a estreiteza, informava a largue-za! Ao tentarmos, assim, salvar a consistência positiva dos dados por queprima a competência historiográfica de Tucídides, arruinamos, em contra-partida, sua melhor inteligência.

*

24 A emenda no texto tucidideano a incluir a leitura stadíon referenciada especialmente àpassagem meridional foi proposta por um artigo de R. A. Bauslaugh, a seguir acolhidocomo “solução” para o impasse do assumir-se o “erro topográfico” tucidideano por W.Kendrick Pritchett (1994: 167-176) e por S. Hornblower (1996: 159-160). Assim se pro-nunciou Pritchett: “R. A. Bauslaugh, The Text of Thucydides IV 8.6 and the South Channelat Pylos, JHS 99 (1979) 1-6, offered a solution which seems to us highly preferable to anuassumption that the historian erred in na account so detailed and one bespeaking autopsy”(p. 167). E assim Honrblower: “R. A. Bauslaugh...offers an ingenious solution which wouldsave Th.’s credit: he suggests that the text is at fault and the word “stadíon” has droppedout after oktò è ennéa. That is, what Th. meant was that the distance across the southchannel was ‘eight or nine stades’. Bauslaugh’s theory was endorsed by Pritchett in 1994,EGH 167-175, and I accept it as the best way out” (p. 159).

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Já Robert B. Strassler propôs uma reconstituição das etapas ini-ciais da Campanha de Pilos, precisando-a por operações de crítica textualpróprias da metodologia historiográfica a que submeteu a narrativa tu-cidideana, deslindando assim toda a trama dos planejamentos milita-res que enredaram a factualidade histórica desse episódio da Guerrado Peloponeso.

Por boas razões de ordem militar (segurança mais efeito surpresa),Demóstenes, que planejara o estabelecimento da fortificação ateniense emPilos, intentou manter secreto o empreendimento, não o revelando nemmesmo aos estrategos que iam no comando da frota ateniense, Sófocles eEurimedonte. E levou a tal extremo seu intento que acabou por inviabilizaro comprometimento destes no mesmo. A prioridade da missão, objetarameles contra a proposta de Demóstenes, era levar o quanto antes socorroaos partidários atenienses em Corcira, o que era tanto mais urgente por-quanto acabavam de saber que a frota peloponésia já lá se encontrava asustentar a facção adversária.

Mas então adveio a tempestade, a frota ateniense foi arrastada aabrigar-se justo em Pilos, o mau tempo a obrigando a ali demorar uns dias.Demóstenes voltou à carga, agora já descortinando a que objetivos estra-tégicos respondia aquela fortificação, de modo a assim melhor persuadir aanuência dos dois estrategos. Tudo em vão, pois estes permaneceram fir-mes em sua decisão anterior, a recusar qualquer iniciativa de construçãodo forte que arruinasse a urgência de sua missão junto a Corcira. Nemmesmo os guerreiros comuns da frota, para os quais voltou-se entãoDemóstenes em sua manobra persuasora de cumpliciamento com aquelaempresa, dispuseram-se a seu lado. Mas persistia o mau tempo, os guerrei-ros entendiavam-se com tal inatividade, e então puseram mãos à obra, econstruíram o forte, mesmo que precário, em seis dias!

Mas, inquire Strassler, seria esta uma descrição ou explanação plau-sível dos fatos, ao assim asseverar que a tropa de guerreiros atuara comosujeito, e o tédio da inatividade como instância mobilizadora, determinan-

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te do acontecimento? Há aqui, aponta o crítico, algumas inconsistências,senão mesmo contradições no relato tucidideano.

Pois, “se os estrategos haviam recusado o plano de Demóstenes defortificação de Pilos por meio de importantes considerações políticas e mi-litares, dificilmente poderiam agora, pouco depois, permitir que um capri-cho ou impulso de guerreiros comuns passasse por cima de sua decisão”.A não ser que se tratasse de um motim revoltoso da tropa guerreira contraa autoridade de seus comandantes, hipótese esta, entretanto, implausível,seja porque assim concebe acontecimento todavia inédito na “história mi-litar ateniense”, seja porque é contradito pela posterior cooperação queaqueles estrategos viriam a dar ao desdobramento do plano da fortificaçãoateniense.

Não, conclui Strassler, a decisão que consumou os trabalhos de forti-ficação não veio da tropa, mas sim do comando mesmo, dos dois estrategos!Uma tal primeira conclusão então supõe mais outra, conseqüente, pois, seeles eram de início peremptoriamente contrários àquela fortificação, devemter depois mudado de opinião, assim alterando sua decisão primeira que erade recusa. E o fato, pelos esclarecimentos do arrazoado crítico que vai assimajuizando a (in)consistência da narrativa tucidideana, começa a ganharmaiores precisões por acréscimos de determinações positivas de sua confi-guração.

Assim, argumenta Strassler, pode-se entender que os estrategos nãoeram lá tão incondiconal e absolutamente contrários à empresa planejadapor Demóstenes. Na réplica que eles então dirigiram a este último – nãofaltavam promontórios desertos no Peloponeso, caso ele desejasse por umaocupação que a cidade tivesse despesas – percebe o crítico, irrelevada aironia aludida pelos “gastos inúteis”, uma velada promessa da parte dosestrategos de, após o retorno da frota uma vez cumprida sua missão emCorcira, realizarem o plano demostênico de estabelecimento de uma basefortificada ateniense no Peloponeso. E a melhor fundamentar esta sua in-terpretação um tanto heterodoxa da frase tucidideana, Strassler arrazoa osseguintes argumentos:

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“A recusa dos estrategos em permitir o início dos trabalhos de fortificaçãoenquanto a tempestade os mantinha parados em Pilos é usualmente en-tendido como uma indicação de sua oposição ao plano de Demóstenes,mas pode também ser visto como consistente com a intenção da partedeles de posteriormente retornar e fortificar Pilos.

Eles sabiam que os espartanos reconheceriam as intenções de Demóstenestão logo as fortificações começassem, e poderiam atacar a estrutura antesde que ela estivesse completada e fosse defensável. Estava claro, portanto,que uma vez iniciados os trabalhos de fortificação eles teriam que ser com-pletados o mais rápido possível.

Mas esta exigência óbvia conflitava com a própria determinação deles denavegar para Corcira assim que o tempo permitisse. Se os trabalhos defortificação fossem interrompidos pela partida da frota para Corcira, oplano de Demóstenes estaria irremediavelmente arruinado, porque osespartanos, então alertados, jamais permitiriam que os ateniensesretornassem para completar e ocupar as obras sem oposição.

De fato, a única via de reconciliar a prioridade de Corcira com uma futurapossibilidade de fortificação de Pilos era no sentido de que os ateniensespostergassem a construção até que ela pudesse ser completada sem inter-rupção, e evitar todas as demais ações que pudessem prematuramenterevelar o projeto ao inimigo”.

Por tal arrazoado, então conclui: “This is sound military logic”.25

E, todavia, não fica muito claro por qual imposição lógica toda estaprojeção reconstitutiva do pretenso arrazoado por que os dois estrategosteriam supostamente embasado aquela sua recusa ao projeto demostênicode imediata fortificação de Pilos, assim dada por Strassler como válida parao momento da ida da frota para Corcira, não o fosse similarmente tambémpara desrecomendá-lo igualmente na volta porque inviabilizado pelas mes-mas razões que o teria sido na ida? Por que então não atuariam os mesmosfatores de avaliação da logicidade militar problemática da empresa suposta-

25 R.B. Strassler. The opening of the Pylos campaign. Journal of Hellenic Studies, XC(1990): 110-125.

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mente apontados pelo crítico? Pois, também depois quando estivessem devolta de Corcira, pode-se entender que “os espartanos reconheceriam asintenções de Demóstenes tão logo as fortificações começassem, e poderiamatacar a estrutura antes de que ela estivesse completada e fosse defensável.Estava claro, portanto, que uma vez iniciados os trabalhos de fortificaçãoeles teriam que ser completados o mais rápido possível”. Por qual misteriosarazão só na volta poderiam “evitar todas as demais ações que pudessemprematuramente revelar o projeto ao inimigo”?

Então, para supostamente sanar a inconsistência de sua interpreta-ção, Strassler é levado a fazer novas conjecturas hermenêuticas, a agoraaventar uma cadeia de mensagens que teria alcançado a frota atenienseestacionada em Pilos.

Assim, por que razão, entende Strassler, teriam os estrategos mudadode opinião, de modo a autorizar, ainda antes da partida para Corcira, oinício da fortificação de Pilos? Eis como o crítico imagina o que então sepassara:

“Concluo, portanto, que foram os estrategos que mudaram de opinião eordenaram o início da fortificação de Pilos, mas isto não em razão dequalquer argumentação da parte de Demóstenes. Talvez nunca possamossaber o que os levou a esta reviravolta, mas há uma possibilidade que é amais simples e defensável: se os atenienses em Pilos ficaram sabendo quea frota peloponésia deixara Corcira, esta informação teria removido aameaça e/ou a oportunidade que motivara a decisão dos estrategos denavegar diretamente para lá, e os teria deixado sem outra razão para retar-dar mais ainda a construção do forte. Em IV.8, Tucídides diz que os espar-tanos haviam já mandado uma mensagem chamando de volta a frota emCorcira quando Ágis e seus exércitos chegaram da Ática. Obviamente, sea frota deixou Corcira a tempo de que notícias de sua partida fossem leva-das a Pilos e lá disparassem a decisão de construir o forte ali, então osespartanos devem tê-la chamado de volta em resposta a uma outra ocorrên-cia bem anterior. O único acontecimento anterior que poderia possivelmen-te ter causado que os espartanos chamassem de volta sua frota é a partidamesma do Pireu da expedição ateniense para a Sicília. A distância de Atenas

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a Corcira via Corinto e Patras é de aproximadamente de 300 milhas. Trirre-mes e postos de muda de mensageiros a cavalo podiam provavelmentecobrir 100 milhas em doze horas diurnas e ainda mais caso viajassem ànoite. Sinais luminosos de fogo podem provavelmente transmitir mensa-gens simples, previamente definidas, a 50 milhas por hora. Assim as notíciasda partida da frota ateniense teriam certamente alcançado Corcira em doisou no máximo três dias, a tempo de permitir a retirada segura da frotapeloponésia de Corcira para Cilene, o mais próximo porto peloponésio.Assim que os espartanos em Corcira ficaram sabendo da vinda da frotaateniense, sua conduta a mais conservadora e característica teria sido nave-gar de volta para casa o mais breve possível. Sua partida teria sido rapida-mente seguida por aquela de um segundo barco de mensagem (o primeirofora despachado por agentes atenienses em Corcira anunciando à frota ate-niense cruzando pela altura da Lacônia a chegada dos navios peloponésios(4.3) em Corcira. Mais informações acerca dos movimentos da frota inimigapodem ter vindo de agentes pro-atenienses em vigília nas costas peloponé-sias junto à saída do golfo de Patras que podem ter observado a frota pelo-ponésia quando ela navegava para o sul desde Lêucade, despachando en-tão um barco para levar a notícia do que vira a Zacinto e de lá a Pilos........”26.

E, todavia, o que diz Tucídides a esse respeito é que os estrategos,quando foram detidos pela tempestade em Pilos, haviam acabado de serinformados, pouco antes quando a frota navegava à altura da Lacônia, jus-tamente da notícia contrária à aventada por Strassler, ou seja, de que aesquadra peloponésia já se encontrava em Corcira! Então, Strassler tem quesupor, para manter a coerência lógica de sua crítica, que uma outra mensa-gem tivesse então alcançado os atenienses em Pilos, a qual agora informavaque a frota peloponésia já deixara Corcira!

Outra (in)conseqüência intrigante da interpretação especulativa deStrassler: como é que esta notícia da partida da frota peloponésia de volta deCorcira chegara aos atenienses em Pilos27 antes do que a frota peloponésia

26 Idem, p. 114-116.27 Assim, ensejando aos estrategos atenienses mudarem de opinião de modo a agora

autorizarem a fortificação, pois passara a urgência da missão em Corcira.

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mesmo, que de lá partira certamente antes do que partira a mensagem aosatenienses? O que supõe, para Strassler, aventar outras conjecturas.

De modo que uma primeira pretensa solução de um suposto proble-ma de crítica textual de determinação fatual arrazoada por Strassler desen-cadeia, entretanto, já alguns outros a, por sua vez, reclamarem outras tantasespeculações, as quais visam a agora harmonizar soluções outras, prolife-rando então mais e mais encadeamentos de conjecturas, tanto de dadosinformativos todavia silenciados pelo texto tucidideano quanto de projeçõeshermenêuticas a desvendar os dados últimos de realidade fatual. Assim, ocrítico desanda a estimar quer velocidades de trirremes quer dias gastos deviagens por determinados percursos de modo a conciliar uma ordenaçãocronológica condizente para o seqüenciamento de todos os episódios, o querequer, por sua vez, mais outras conjecturas e suposições sincronizadoras, aagora fazer (supostamente) a tempestade chover sobre Pilos por pelo menosquatro dias até que chegasse aquela notícia e os estrategos mudassem deopinião; e a fazer (supostamente) desviar o destino da frota peloponésia devolta de Corcira, imaginando que ela não fosse ela de imediato em socorrode Pilos a impedir os trabalhos da fortificação ateniense, mas sim para Cilene;e a conceber um curioso mecanismo de transmissão de ordens do Estado,quer espartano quer ateniense, em que as mesmas não advêm nem passampor seu centro institucional de decisão, mas comunicam-se diretamente entreos diversos palcos de guerra; e a imaginar a existência de redes de agentes,pró-atenienses e pró-peloponésios, espalhadas por vários locais a agilizarum sistema de transmissão de informações que mais lembra a Guerra Friado que a do Peloponeso!

Certa vez Karl Rheinhardt, deparando-se com similares procedimen-tos de análise crítica da Odisséia, apontou primorosamente as mazelas detais tipos de concertos exegéticos: “as pessoas recusam insetos apenas paraacolher elefantes em suas reconstruções épicas”.28

28 “People balk at insects only to accept elephants in reconstructed epics” (The adventures...,p. 111. Confira-se uma similar crítica a certos desvios de hermenêutica exegética apon-

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Por ensejos narrativos vários Tucídides incorpora em sua obra inúme-ros dados de medidas de distâncias: de Olinto a Potidéia, 60 estádios (1.63.2);de Pilos a Esparta, 400 (4.3.2); de Colono a Atenas, 10 (8.67), de Cromiona Corinto, 120 (4.45.1), de Mégara a Niséia, 8. Seriam precisos tais informesrecolhidos pelo célebre historiador antigo, interroga-se Simon Hornblower29,um de seus mais recentes comentaristas críticos, tencionando assim ajuizaros méritos do prestígio excepcional projetado, desde o século XIX, para acompetência historiográfica tucidideana, a alcançar mesmo foros decientificidade metodológica modelar por seus princípios de crítica fatual?Seriam, portanto, consoantemente precisos àqueles dados de realidade his-tórica tucidideanos? Correspondem, com boa exatidão, os valores numéri-cos de suas medidas em estádios aos valores empíricos das respectivas me-didas modernas em metros?

Se admitirmos que Tucídides, por coerência com seu ideal de preci-são/akribia, enquanto princípio de depuração de realidade fatual, ordenassesua narrativa supondo um valor fixo ou padrão unívoco de estádio, qual eraele? O mais usual, tradicional para os tempos antigos, em particular o dosgeógrafos, de cerca de 185 metros, pelo que revelam as estimativas dosestudos críticos modernos? Se assim for, feitas as verificações comparativas,resulta que os dados numéricos de seus informes são, por maiores ou meno-res desvios da exata medida moderna, se não errôneos mesmo, certamenteimprecisos. Mas, pondera Hornblower, as verificações apresentam resulta-dos tão díspares que melhor se os ajuíza admitindo, pelo contrário, que orelato tucidideano não tenha suposto um tal padrão de valor fixo, unívoco, e

tados por Christine Sourvinou-Inwood (Reading greek death, p. 13): “There is no evidencewhatsoever in favour of such hypotheses, which are simply projections of what appearsto some scholars to be the logical way of making sense of frgamentary data, a perceptioninevitably dependent on culturally determined implicit assumptions”.

29 S. Hornblower (ed.). Greek historiography. Oxford: Clarendon Press, 1994, p. 26-27.

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sim, antes, tenha apenas reproduzido as diversas medidas informadas emconsonância com padrões de valor flutuante, talvez de uso regional, implici-tamente canalizados para sua obra pelas notícias de seus informantes. Mas,admitida agora esta hipótese, resultam, todavia, padrões de estádio de va-lores tão divergentes que “causaria enjôo nos crentes fundamentalistas” darenomada competência historiográfica tucidideana, com o célebre historia-dor jamais empregando, para informar seus dados de medida, duas vezessequer o mesmo valor de sua unidade padrão! Bem, podemos ainda, pros-segue Hornblower, preservar aquela fama, e deslocar tal acusaçãodesqualificadora de falta ou negligência de precisão crítica do nome deTucídides para o anonimato de seus informantes: era o estádio destes quevariava, e não o conhecido por ele, propriamente tucidideano. Mas, nestecaso, teria ele então aceito tais dados imprecisos sem verificação, sem ajuizarsua veracidade por testes de argüição crítica? E o círculo de impasses sefecha: ou a metodologia crítica tucidideana falha porque ignore padrõesprecisos de aferição de dados que melhor a qualificaria enquanto tal, ouporque negligencie seu, entretanto, princípio maior de exame de veracidadefatual.

E, todavia, um tal arrazoado argumentativo do crítico moderno a outravez apontar as inconsistências, ou mesmo os defeitos, da metodologia tuci-dideana, não peca, ele mesmo, por certa viciosidade tautológica de seu pro-cedimento hermenêutico? Pois, no ponto de partida dessa discussão situa-sea projeção sobre a competência historiográfica tucidideana de um modernoideal de precisão disposto pelo nosso espírito de cientificidade, consoanteaos nossos métodos de mensuração, os quais justamente supõem um pa-drão de medida linear fixo, de aspiração universal e de extrema precisão,apurado progressivamente a incertezas historicamente cada vez maisinfinitesimais. Assim se conclui, então, ser imprecisa a prática historiográfica– ou informativa ou crítica – tucidideana porque falta de padrões de precisãopropriamente modernos, supondo-se que os devesse ter de princípio, toda-via ele, historiador antigo. Mas quem atribui que assim os devesse ter é acrítica moderna, em conformidade com os padrões de seu espírito de

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cientificidade, o qual justamente elege um tal padrão de medida como re-quisito de precisão empírica de dados.

Na compreensão da suposta metodologia tucidideana, alcançamos,assim, um melhor entendimento de sua concepção do preceito de akribia,reduzido aos termos de nossa categoria de precisão empírica?

*

Segundo ano de guerra, logo no início do verão, poucos dias seguin-tes à incursão do exército peloponésio para sua campanha anual de devas-tação do país, Atenas foi atingida também por outra calamidade, uma irrupçãode pestilência terrível, que vinda de bem mais longe – originária da Etiópia,de onde inicialmente se propagara pelo Egito, Líbia e reino persa – adentrarapelo porto do Pireu indo então alcançar a cidade. O historiador Tucídides,que se dispusera a narrar o fato, logo descarta cuidar do exame especulativoque atinasse a causalidade do fenômeno, preocupado antes por relatar ossintomas mesmos de sua manifestação portentosa, atenção descritiva estacom que almejava legar aos vindouros o conhecimento informativo que lhescapacitasse reconhecer no futuro um eventual novo surto daquela desgraçaque atrozmente surpreendera seus contemporâneos. Relato de autoridadecognitiva tanto melhor fundamentada na experiência observadora, porquenão só ele mesmo fora uma sua vítima como contemplara os efeitos em seusconterrâneos.

Assim, diz que ela irrompia subitamente por calores febris violentosna cabeça, vermelhidão e inflamação dos olhos e logo abaixo sanguinolênciae bafo fétido que tomavam garganta e língua. Daí, sucediam-se ataques deespirros e rouquidão, após o que as dores alcançavam o peito com fortetosse. Tomado o coração, desarranjos por defluxos de bile (de todos os tiposconhecidos pelos médicos) acompanhados de intenso sofrimento, a que seseguiam, na maioria dos casos, anseios de vômito inconclusos, mas causan-do violentos espasmos durando mais ou menos dias. Externamente, o corponão aparentava estar muito quente ao toque, nem palidez, antes avermelhado

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com irrupções de pequenas pústulas e úlceras. Porém, internamente, a sen-sação de abrasamento era tal que não se suportava sobre o corpo qualquerveste por mais leve que fosse, a mesmo ficarem nus, e a desejarem apenasatirarem-se em tanques de água fria em suas agonias de uma sede, todavia,inextinguível. Desconfortos e sofrimentos que assim atormentavam conti-nuamente sem qualquer alívio de repouso ou sono. No ápice dessas crisesabrasadoras internas, sucumbia-se, em geral, em sete ou oito dias, sem,contudo, terem-se dissipado ainda todo os vigores do corpo. Mas, caso supe-rassem esse estágio e a doença descesse para os intestinos, úlceras violentasacompanhadas de fortes diarréias causavam uma fraqueza agora fatal. Poisque os distúrbios primeiro se localizavam na cabeça, daí percorriam portodo o corpo, e mesmo quando não letais, deixavam suas marcas nas extre-midades – partes pudendas, dedos e artelhos – com muitos escapando damorte mas privados de seu uso, alguns mesmo dos olhos; já outros eramtomados de amnésia (II.48-49).

Por tal complexo sintomático de manifestações corpóreas, Tucídidespretendeu orientar os prognósticos que reconhecessem as eventuais reinci-dências futuras da peste de Atenas. Entretanto, por tanto mais enigmáticaironia a frustrar os propósitos do célebre historiador, desse quadro de pes-tilência tucidideano não se teve mais notícia na História, excetuadas aslembranças de composições literárias que por ele antes modelavam suasdescrições de outras irrupções de epidemias pestilentas.

Há já cinco séculos que os críticos modernos intentam decifrar o enig-ma da peste tucidideana, nesse período sucedendo-se mais de 200 artigos elivros por centenas de eruditos, a proporem não menos do que umas 30doenças diferentes.30 Especialmente no último meio século, contando agoracom os progressos acumulados do conhecimento científico dos fatos epidê-micos, médicos e filólogos associaram esforços por resolver o mistério daidentificação da peste de Atenas por meio do catálogo de suas categorias

30 Morens e Littman, 1992: 271.

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modernas. Na roda das conjecturas a dança evoluiu de sarampo (Shrewsbery1950 e Page 1953) para tifo (MacArthur 1954 e Gomme 1956), ergotismo(Salway e Dell 1955), peste bubônica (Williams 1957 e Hooker 1958), mormo(Eby e Evjen 1962), catapora (Littman e Littman 1969), leptospirose outulaeremia (Wylie e Stubbs 1983), influenza (Langmuir e outros 1985), febrede Rift Valley (Morens e Chu 1986), Marburg-Ebola (Scarrow 1988), cata-pora (Sallares 1991), tifo ou catapora (Morens e Littman 1992), febre Lassa(Hopper 1992), e ebola (Olson e outros 1996).

Todavia, cadeia inconclusa de especulações alternativas, apenas par-cialmente enquadrando identificações de alguns sintomas contra, entretan-to, a arbitrariedade da desconsideração de outros divergentes. E, ainda, pro-jeções viciosas de identificação, a por vezes derivar, já pelos dados patológi-cos modernos de identificação das epidemias, as traduções dos, entretanto,“imprecisos” termos dos complexos sintomáticos presentes no textotucidideano. Assim, que “phluktainais refira ou pústulas ou manchas-urticá-rias, implicando doença exantematosa por lesões de pele ou rasas ou intu-mescidas”, antes advém da projeção identificadora a privilegiar, “se pústula,a escarlatina, ou, se lesões, as glândulas inflamadas de peste bubônica”31. Jádeslocando-se o valor semântico médio-passivo de steriskomenoi (ser pri-vado de, perder o uso de) pelo valor ativo (secionar, cortar), (des)entende-sea inutilização do órgão (ficar cego) como amputação (ter o olho tirado fora),a agora privilegiar a identificação por doenças gangrenosas, tais tifo ouergotismo, ou influenza com agravamento de infecção estafilocócica.32

Deparamo-nos aqui, adverte Morgan33, com uma dissociação de qua-dros conceituais de teorias médicas – o antigo e o moderno – que, por suas

31 Morgan 1994: 202-203.32 Idem, ibidem, 203. Considerem-se, similarmente, as análises de Hooker [1958] a inten-

tar razões por que a referenciação do texto tucidideano – hélke – devesse ser equacionadopor boubón.

33 Também já antes teceram advertências a acusar a inviabilidade de tais projeçõesidentificadoras da epidemia antiga pelas modernas Poole e Holladay (1979), Morgans eLittman (1992) e Pearcy (1992). Confira-se também o artigo de Bellemore e Plant, 1994.

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diferenças de padrões de precisão na definição de seus termos denominado-res dos sintomas patológicos, inviabiliza a identificação de um pelo outro.Tanto mais que (cor)respondem, um e outro, a teleologias cognitivas díspares,a medicina científica moderna de fundamentação ontológica oupatofisiológica, ao passo que a antiga hipocrática orienta-se antes pelo prin-cípio do desequilíbrio-desbalanceamento dos humores corporais comoetiologia da doença. Assim, advertiram já Poole e Holladay, nessa nossabusca talvez estejamos a perseguir um fogo-fátuo!34

Morgan acresce ainda outra observação a fornecer mais razões para ofracasso das ambições modernas de projeções de identificação categóricada peste ateniense. Lembra ele, que é fato ordinário nas tradições do apren-dizado médico que o estudante neófito, defrontado com a tarefa de compli-cados problemas de diagnósticos, preocupe-se com atenção desdobrada emapresentar a seu instrutor um relatório o mais detalhado e completo dossintomas levantados, assim precavendo-se contra eventuais falhas e omis-sões comprometedoras. Assim, “a fim de não perder nada e organizar ossintomas e sinais coerentemente, o estudante recorre a um catálogo de sin-tomas da cabeça aos dedos dos pés”, pelo qual apresenta seu relatório.

Seja ou não precisamente esse procedimento de formação médicaque determine também especificamente os modos da descrição-relatóriotucidideano, ele aponta para uma consideração relevante: os padrões con-ceituais de ordenação dos modos de memorização da percepção e descri-ção do corpo, claramente sobrepondo um esquema de olhar direcionadoverticalmente de cima para baixo, do alto da cabeça aos dedos dos pés.Tucídides assim procede em sua narrativa, falando primeiro dos sintomas dacabeça pelos olhos para a língua e garganta, passando ao peito e daí cora-ção, descendo depois aos intestinos, e mesmo terminando essa sua descri-ção a assinalar esse eixo do percurso corpóreo dos sintomas: “pois os distúr-bios estabeleciam-se primeiro na cabeça e daí percorriam todo o corpo, emesmo quando não eram fatais, deixavam ainda suas marcas nas extremi-

34 Poole e Holladay 1984: 485.

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dades, estabelecendo-se nas partes pudendas, nos dedos e nos artelhos,sendo que muitos escapavam com a perda destes, e alguns também com asdos olhos”.35

Mas talvez esse não seja o único padrão conceitual de ordenação damemorização narrativa tucidideana. Uma outra aproximação textual podecontribuir para o encaminhamento da questão. Pois, também as tradiçõeshistóricas que noticiaram a morte de Alexandre Magno suscitaram similaresembaraços às iniciativas de análise da crítica moderna que almejavam iden-tificar sua etiologia patológica. Pelo que contam os informes derivados dasEfemérides do rei macedônio, Alexandre fora vitimado por um quadro febrilde degenerescência progressiva que o levou à morte em dez dias de evolu-ção. As alternativas etiológicas, especuladas aqui, foram de crise violenta depaludismo, ou de malária ou de alguma outra doença tropical, talvez contra-ída quando de uma inspeção dos canais de irrigação da Babilônia, até,quem sabe, mesmo envenenamento por estriquinina ou por arsênico emestado natural.36

Não é a resolução desta identificação de uma realidade positiva queaqui nos interessa especialmente, mas antes o princípio narrativo que orde-na sua memorização histórica naqueles registros das Efemérides, que chega-ram até nós por meio especialmente da obra de Arriano e de Plutarco. Peloretrato evolutivo da febre, que esses registros traçam, a doença foi paralisan-do em sucessão gradativa de etapas todas as capacidades ativas do rei. Deinício, ele não podia mais andar, tendo que ser transportado em algum leitopara que cumprisse ainda seus encargos régios, num primeiro momentoainda transferido para uma liteira, mas depois no colchão mesmo, já nãopodendo mais nem mesmo ser sequer deslocado deste colchão para aquelaliteira de transporte; a seguir, agora já quedando para sempre no leito, pri-meiro ainda tomava decisões, mas depois sua fala foi afetada, e já então nãoemitia nem mesmo instruções a seus comandados, agora já reduzido a ape-

35 A guerra dos peloponésios e atenienses, II.49 (a partir da tradução inglesa de P. J.Rhodes).

36 “A causa da morte de Alexandre permanece um mistério” (W. Heckel, 1997: 283).

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nas manifestar alguns sinais de consciência ainda por olhares e meneios decabeça, ações de movimentos mínimos de bem reduzido alcance comunica-tivo por que reconhecia grato e saudava em despedida seus oficiais enfileiradospara vê-lo pela última vez; no fim, com o agravamento desesperador porque desistia-se já dos recursos a uma terapia piedosa de apelo de cura divinano templo de Serápis, ao entardecer do dia deu o último suspiro, cessandoagora essa mais ínfima dose de energia ou vigor por que ainda se mantém oderradeiro resquício de vida. Assim, os sintomas ordenam-se seqüencialmentepela gradação crescente do processo de incapacitação das atividades físicas,em consoante ritmo de exaurimento dos vigores e alentos vitais até seu ter-mo final absoluto.

Ora, na narrativa tucidideana um tanto obliquamente se alude à in-terferência de também esse padrão de ordenação do relatório dos sinto-mas37, pelo qual Tucídides distingue basicamente dois estágios de evoluçãoda doença: no primeiro, sediada ainda no peito e coração, as inflamaçõesinternas abrasadoras causam já a morte em sete ou oito dias, sem todaviaexaurir totalmente as forças vitais da vítima; já no segundo, superada a pri-meira crise e descendo a infecção para os intestinos, atacam-se e conso-mem-se aquelas derradeiras reservas de energia vital. Mesmo para as víti-mas não fatais da doença, que escapam à morte, o término da patologiaparece refletir similar padrão conceitual de incapacitação física pelas seqüe-las que deixa nas extremidades do corpo, quer inutilizando ações dos mem-bros, sejam sexuais sejam de manipulação ou de locomoção, quer atingindoos órgãos de ação visual ou de capacidade mnemônica.

*

Na hermenêutica do texto historiográfico tucidideano, ou talvez mes-mo na dos autores clássicos em geral, a apreciação das intervenções críticas

37 G. E. R. Lloyd (Revolution..., p. 22-3), comentando os relatos hipocráticos dasintomatologia da loucura, constata que os mesmos supõem um padrão epidemiológicohomogêneo de descrição consoante eixos de gradação contínua a ordenar a sucessãodas manifestações patológicas.

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do intérprete moderno, almejando esclarecer e precisar ou seus informes derealidade ou seus princípios e regras de metodologia crítica, quer concertan-do seus erros quer plenificando suas ambigüidades, termina, todavia, porintrigar outras imprecisões, senão mesmo acarretar outras incoerências tan-to mais danosas à melhor inteligência da obra.38

Já outros analistas advertiram contra “os abusos”39 dessa transferên-cia de conceitos e práticas, a confundir as realizações historiográficas anti-gas pelas modernas, cobrando das formulações de crítica daquelas os im-perativos reclamados destas. Nicole Loraux sentenciou: “Thucydide n’estpas un collègue”. Claude Calame, desdobrando o alcance dessa advertên-cia, que denuncia ainda as miopias de hermenêuticas burocráticasrotuladoras de fragmentações do saber em impérios de disciplinas setorizadaspor seus distintos conceitos e métodos – história, filosofia, crítica literária,drama, ... – ponderou como, na narrativa historiográfica herodoteana, ofato histórico Batalha de Maratona não responde propriamente por umadescrição de referenciação empírica das realidades fatuais do acontecimento,mas antes o faz enquanto o percebe e memoriza conceitualmente comoordem de batalha hoplita conformada por “coreografia ao modo épico demovimentos bem equilibrados, dignos das mais belas performances decoros trágicos na Orquestra do Teatro de Atenas”40.

38 Considerem-se também, por exemplo, as indicações dadas em nosso ensaio anteriorsobre “Édipo e (o enigma d)a visão das idades”.

39 A expressão foi por nós derivada das reflexões de Heisenberg respeitantes às implicaçõesdas relações de incerteza: “De um ponto de vista muito geral, não há maneira alguma dese descrever o que acontece entre duas observações consecutivas. É, certamente, tenta-dor dizer-se que o elétron deve ter estado em algum lugar, no intervalo de tempo entreessas duas observações e que, portanto, o elétron deveria ter descrito algum tipo detrajetória ou órbita, mesmo que seja impossível saber-se qual. Esse seria um argumentorazoável em física clássica. Em teoria quântica, porém, teria sido um abuso de linguagemque, como veremos depois, não pode ser justificado” (Física e Filosofia, p. 21)

40 C. Calame. The craft os poetic speech in ancient greece. Ithaca/London: Cornell UniversityPress, 1995, p. 94-95.

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Em termos mais gerais, Gordon S. Shrimpton41 advertiu contra osdesvios epistemológicos da crítica historiográfica moderna em relação àsua similar antiga, ao projetar na avaliação desta os paradigmas e padrõesde cientificidade, já agora obsoletos, de um princípio de objetividadeestruturado por pobre imitação do empirismo de Francis Bacon e doexperimentalismo de Robert Boyle. Buscar na narrativa historiográficaconceitualizada dos antigos as precisões realistas daquela descrição empíricadesvirtua a inteligibilidade do texto por afans de crítica tanto mais inócuosem seus esforços identificadores quanto tanto mais reiteradas suas empre-sas assim eternamente inconclusivas.

Hannah Arendt, logo no prólogo de A condição humana42, situa comoum dos dilemas sobrepostos para o homem moderno um certo descompas-so de linguagens com que ele se defronta face aos feitos e êxitos do sabercientífico realizado por tantas, e vertiginosas, conquistas tecnológicas:

“Embora tais possibilidades pertençam ainda a um futuro muito remoto,os primeiros efeitos colaterais dos grandes triunfos da ciência já se fizeramsentir sob a forma de uma crise dentro das próprias ciências naturais. Oproblema tem a ver com o fato de que as verdades da moderna visãocientífica do mundo, embora possam ser demonstradas em fórmulas ma-temáticas e comprovadas pela tecnologia, já não se prestam à expressãonormal da fala e do raciocínio. Quem quer que procure falar conceitual ecoerentemente dessas verdades, emitirá frases que serão talvez não tãodesprovidas de significado como um círculo triangular, mas muito maisabsurdas que um leão alado” (Erwin Schrödinger).

E desse descompasso de inteligibilidade conseqüente a confusõesde linguagens conceituais e consoantes formas de pensamento diz tam-

41 Confiram-se suas considerações em History and memory in ancient greece nas p. 7-8;19-20; 41-42; 50-52 e 80.

42 H. Arendt. A condição humana. Trad. R. Raposo. Rio de Janeiro: Forense, 1981,p. 11.

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bém outras advertências epistemológicas, agora emergentes no âmbito dasteorias inaugurais da Mecânica Quântica.

Uma fórmula matemática bem simples define o Princípio da Incerte-za, primeiramente formulado por Werner Heisenberg em 1927:

∆x.∆p h/2π

Assim, exposta pela apenas aridez de sua mera formulação matemá-tica, o Princípio afirma que o produto da incerteza na determinação da po-sição de uma partícula pela incerteza na determinação de seu momentoconjugado (e, pois, velocidade) é sempre igual ou maior do que o valor deuma dada razão da constante de Planck. Implica, portanto, que ao se au-mentar indefinidamente a precisão ou certeza na determinação do conheci-mento de uma dessas duas quantidades ou variáveis, explode de incerteza eimprecisão a determinação do conhecimento da outra. O Princípio interdita,pois, a determinação precisa do conhecimento de ambas as variáveis simul-taneamente, um deles atualizando-se apenas às custas do outro.

Henrique Fleming, em um aparentemente despretensioso artigo dedivulgação desse mesmo Princípio43, desvendou, entretanto, toda a belezaepistemológica magnificamente condensada naquilo que aparentava nãoser muito mais do que uma fórmula matemática, aliás das mais simples.

Pois, aquela interdição comportava uma intrigante implicância: noâmbito atômico, concebendo-se como movimentos de suas partículas cons-tituintes, “era impossível calcular a trajetória pela razão de que não existiatrajetória!”. Sim, porque apesar de estarmos a discorrer acerca seja da posi-ção seja da velocidade (momento conjugado) de uma tal partícula, nãopodemos determinar com precisão o conhecimento de ambos simultane-maente, de modo que fica inviabilizada qualquer aspiração de apreender-sesua trajetória, essa percepção espacialmente visualizada que interconectacontinuamente os estados sucessivos de seu movimento. Então, na Mecâ-

43 O Estado de S. Paulo. Suplemento Cultural. Ano II, n. 68, p. 6.

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nica Quântica, elabora-se um discurso cognitivo teórico de uma cinemáticadas partículas onde, entretanto, não tem apropriado e justo sentido pensá-la, em termos de um de seus conceitos básicos, trajetória! A inteligibilidadedessa outra cinemática supõe, assim, o deslocamento, quem sabe mesmo ainutilização, de modalidades conceituais clássicas de descrição do movimen-to, agora não propriamente operacionáveis em termos de visualização detrajetórias. Exigia-se, aqui, na Mecânica Quântica, uma outra “sensatez”,que não propriamente aquela vislumbrada pela Mecânica Clássica, a assu-mir como “natural tentar obter os espectros atômicos sem falar em trajetó-rias, nem mesmo, na verdade, supor a existência de trajetórias”. O impassecognitivo, portanto, vinha disposto pelas pré-suposições, pré-conceitos, trans-feridos de outros domínios do saber, que, por mais óbvios, intuitivos, evi-dentes e consagrados que fossem neste, não se impunham naquele.44

Então, dentre outras implicações filosóficas suscitadas pelo Princípio –ou epistemológicas (a asseverar “a impossibilidade de se ignorar a interaçãoobervador-sistema observado...uma vez que o distúrbio causado pela obser-vação é comparável aos próprios fenômenos que estão sendo observados”)ou até metafísicas (a almejar saber “se a Natureza é inerentemente indeter-minista, ou se o determinismo é rompido pelo ato de observação”) –, tam-

44 R. Omnès (Quantum Philosophy, p. 152), ao assinalar esta implicância de que “não hátrajetória” assim impossibilitando a visualização do fenômeno atômico concebido comomovimento de partícula, alude de passagem à crise de racionalidade acarretada noparadigma cognitivo herdado dos gregos antigos, e especialmente fundamentado nafilosofia aristotélica de que o conhecimento humano principia pela fixação na mente doque a visão apreende: “The apparent irrationality of atoms may be told with someclumsy couplet, such as: formal science makes blind, unreal with a fool’s mind”. É aconcepção de partícula e sua noções conceituais associadas, assim supostas para osfenômenos atômicos, lembra ainda R. Omnès (Understanding Quantum Mechanics, p.47-48), que se torna problemática: “The most important consequence of the uncertaintyrelations for interpretation is their incompatibility with an intuitive representation of aparticle as being a point in space. The idea of a space trajectory is also excluded becauseit woul mean simultaneously precise values for position and velocity. The ‘concept’ ofparticle becomes obviously much poorer”.

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bém uma de, para nós críticos clássicos, sugestiva advertência diretiva naconsecução do saber humano: “...não faz sentido penetrar em uma escalamuito mais profunda do que a do elétron...e realmente há um domínio alémdessa escala...que o homem, com suas presentes limitações, não está emcondições de penetrar”.

Estaríamos nós, críticos modernos, em nossos afãs de investigar critica-mente os sentidos dos textos antigos, imbuídos de algum paradigma de preci-são positiva em nossa pretensão de apreender a plena realidade histórica poresses textos referenciada?45 Ao ou “acertar” ou “concertar” os supostos “er-ros” que as razões de nossa crítica neles contesta a inadmissibilidade, nãoestaríamos justamente a impor-lhes padrões de inteligibilidade que, se por umlado propiciam supostamente maior precisão no conhecimento de certos as-pectos ou itens dessa realidade, por outro, explodem em indeterminações detantas mais incongruências cumulativas deles decorrentes?

E, dado que a investigação cognitiva opera por esse nexo em queinteragem sujeito e objeto, haveria naquela escala do que é pequeno emtermos de precisão e certeza nos objetos cognitivos da textualidade clássicaantiga algum ponto de “justo meio” de sua abordagem, com que se ideali-zasse os aportes hermenêuticos projetados por ambos esses pólos, ou quepelo menos minorasse os excessos dos distúrbios subjetivos da análise masque também não recaísse nas faltas de uma leitura objetivante suposta-mente inerte ou passiva?

45 C. Sourvinou-Inwood, que sistematicamente adverte em sua obra contra a interferên-cia de pressupostos culturalmente determinados enviesando as interpretações do críticomoderno, tece algumas considerações em sua reflexão conclusiva acerca dos parâme-tros constitutivos do conceito de physis contextualizado em sua existência no Hadesregistrados pelos poemas homéricos que se aproximam das questões aqui por nóslevantadas: “Thus, we conclude that in the assumptions that shaped the parametersdetermining the poet’s creativity there was probably some uncertainty and ambivalenceas to the precise nature of the shades” (Reading greek death, p. 83).

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Todavia, o ponto preciso do “justo meio”, para nós humanos, talvezseja objetivo inalcançável! Assim, pelo menos, o entende a história bíblicado Êxodo que, ao narrar o episódio da travessia do deserto pelo povo deIsrael libertado do cativeiro egípcio, a ele alude como prerrogativa da trans-cendente sapiência divina. Pois Jeová instrui-lhe devidamente como ele oalimentaria:

“Eis o que o Senhor vos mandou: ‘recolhei a quantia que cada um de vósnecessita para comer, quatro litros e meio por cabeça, de acordo com onúmero de pessoas; cada um recolherá para os que moram em sua ten-da’.

Assim fizeram os israelitas, recolhendo uns mais, outros menos. Mas aomedirem depois as quantias, não sobrava a quem tinha recolhido mais,nem faltava a quem tinha recolhido menos”. 46

46 Êxodo, 16.16-18 (tradução por Ludovico Garmus). Bíblia Sagrada. Petrópolis: Vozes,1995, p. 98-99.

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Divulgação Humanitas Livraria – FFLCH/USP

Ilustração da capa Museu Arqueológico Nacional de Atenas –Perseu e As Graias

Mancha 11,5 x 19 cm

Formato 16 x 23 cm

Tipologia Souvenir Lt Bt 11 e 17

Papel miolo: off-set 75 g/m2

capa: Supremo 250g/m2

Impressão e acabamento Bartira Gráfica e Editora S.A.

Número de páginas 476

Tiragem 500 exemplares

Ficha técnica