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Mito e Memória na Jornada de África e sua reescrita Patrimónios da palavra: narrativas, discursos e literatura em língua portuguesa Ana Sofia Neno Leite – Abril 2011 1 “Batalha de Alcácer-Quibir”, Tapeçaria de Paula Rego, feita por costureiras da Ericeira, 6,5x2,5m, 197? “Os acontecimentos são poeira; eles atravessam a história como breves lampejos; mal nascem e já retornaram à noite e amiúde ao esquecimento.” Fernand Braudel 1 Resumo A memória colectiva produzida na sequência de eventos marcantes para a construção da história nacional é frequentemente projectada em narrativas que encerram nelas próprias não apenas uma cronologia factual, mas todo um sistema complexo de valores simbólicos e produções de mitos. Alcácer Quibir é no imaginário português um destes mitos, talvez o de maior difusão – passando mesmo as fronteiras de além-mar 2 – e gerador de inúmeras narrativas, revelando o lugar ocupado por África no imaginário ocidental e a sua importância para a formação do próprio Ocidente. A batalha de Alcácer Quibir também designada por batalha dos Três Reis ou batalha de Wad al-Makhâzin é um momento crucial do império português, um momento histórico decisivo para o futuro do reino e por isso também um momento gerador de angústias, mitos, medos, lutos, esquecimentos, silêncios e memórias. A primeira narrativa em língua portuguesa deste mito fundador da nação é da autoria de Jerónimo Mendonça que acompanhou D. Sebastião na sua Jornada de África, que tendo ficado cativo após a derrota, regressa posteriormente ao reino e em 1607, 29 anos após a data histórica, e escreve o relato desta jornada. Este relato visa, acima de tudo, esclarecer a verdade dos factos, segundo a memória dos acontecimentos vividos pelo autor, para que não restem dúvidas sobre o que realmente ocorreu. Após o longo luto de quase três décadas, impera o dever de memória para transmitir a história da batalha às gerações futuras. 1 Fernand Braudel, La Méditerranée et le Monde méditerranéen à l’époque de Philippe II, Paris, Collin, 1966, 2 vols. 2 O mito messiânico é evocado no Brasil por Padre António Vieira por volta do ano de 1640 num dos seus sermões. Também em Goa, em 1680, um frade teatino questiona o regresso de D. Sebastião no seu sermão, entre outras manifestações populares.

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Mito e Memória na Jornada de África e sua reescrita

Patrimónios da palavra: narrativas, discursos e literatura em língua portuguesa

Ana Sofia Neno Leite – Abril 2011

1

“Batalha de Alcácer-Quibir”, Tapeçaria de Paula Rego, feita por costureiras da Ericeira, 6,5x2,5m, 197?

“Os acontecimentos são poeira; eles atravessam a história como breves lampejos; mal nascem e já

retornaram à noite e amiúde ao esquecimento.” Fernand Braudel1

Resumo

A memória colectiva produzida na sequência de eventos marcantes para a construção da

história nacional é frequentemente projectada em narrativas que encerram nelas próprias não

apenas uma cronologia factual, mas todo um sistema complexo de valores simbólicos e

produções de mitos. Alcácer Quibir é no imaginário português um destes mitos, talvez o de

maior difusão – passando mesmo as fronteiras de além-mar2 – e gerador de inúmeras

narrativas, revelando o lugar ocupado por África no imaginário ocidental e a sua importância

para a formação do próprio Ocidente. A batalha de Alcácer Quibir também designada por

batalha dos Três Reis ou batalha de Wad al-Makhâzin é um momento crucial do império

português, um momento histórico decisivo para o futuro do reino e por isso também um

momento gerador de angústias, mitos, medos, lutos, esquecimentos, silêncios e memórias.

A primeira narrativa em língua portuguesa deste mito fundador da nação é da autoria de

Jerónimo Mendonça que acompanhou D. Sebastião na sua Jornada de África, que tendo ficado

cativo após a derrota, regressa posteriormente ao reino e em 1607, 29 anos após a data

histórica, e escreve o relato desta jornada. Este relato visa, acima de tudo, esclarecer a

verdade dos factos, segundo a memória dos acontecimentos vividos pelo autor, para que não

restem dúvidas sobre o que realmente ocorreu. Após o longo luto de quase três décadas,

impera o dever de memória para transmitir a história da batalha às gerações futuras.

1 Fernand Braudel, La Méditerranée et le Monde méditerranéen à l’époque de Philippe II, Paris, Collin, 1966, 2 vols.

2 O mito messiânico é evocado no Brasil por Padre António Vieira por volta do ano de 1640 num dos seus sermões.

Também em Goa, em 1680, um frade teatino questiona o regresso de D. Sebastião no seu sermão, entre outras

manifestações populares.

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Ao longo da história, a batalha foi reescrita inúmeras vezes e transmitida por várias vozes

que tomaram frequentemente esta obra de Jerónimo de Mendonça como matriz outras

narrativas. Passados quatro séculos, Manuel Alegre toma também para si esta matriz para

contar uma nova história, a história da derradeira batalha do império, a guerra colonial em

Angola. A retrospectiva é fundamental na sua narrativa, mas a intenção de introdução de

objectivos futuros no seu discurso é bastante clara. Analisaremos, ao longo deste texto, como

se processa a reescrita de um património literário de tão grande valor para a história e

definição da nação portuguesa, bem como a dimensão atribuída ao acontecimento histórico

da batalha para perceber como se relacionam as duas narrativas da Jornada de África e como

se metamorfoseou o mito e a memória nos impérios imaginados e na sua impossibilidade.

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“A cidade de El Ksar El Kebir, ‘o grande palácio’, ignora quanto é famosa. Provavelmente nenhum

habitante sabe que o nome da terra, corrompido em Alcácer-Quibir, foi servir de pesadelo a um povo do

outro lado do mar. É certo que a batalha não foi exactamente ali onde é a cidade. Os exércitos

defrontaram-se 16km mais a norte, em campo aberto. Estranha coisa: a persistente imaginação

lusitana, e o filme de Oliveira, colocaram-na no deserto, quando o deserto dista centos de quilómetros

daqui. Toda a metade do norte de Marrocos é verde, bem mais verde do que o nosso, esse sim desértico

Alentejo.” Fernando Venâncio3

A dimensão de Alcácer Quibir e da Batalha dos Três Reis

A 4 de Agosto de 1578 teve lugar, em Alcácer Quibir, um dos momentos mais marcantes

da história de Portugal, que permaneceu impresso particularmente na memória colectiva dos

portugueses que o registaram em narrativas sucessivas. Nas palavras de David Lopes: “Muito

se tem escrito entre nós sobre esta página dolorosa da história de Portugal; certos escritores

têm defendido e exaltado a ideia e o plano de D. Sebastião. Os que assim pensam julgam ter

sido possível criar um império português em Marrocos, sem considerarem que muito podia D.

Manuel e não o pôde fazer. […] Outros condenam o soberano português; estamos com estes,

porque é a conclusão lógica de tudo o que expusemos precedentemente. Marrocos estava

perdido desde que D. João III, o rei Piedoso, não pode mais guardá-lo: o edifício desconjuntava-

se todo e caía em ruínas. A fé ardente de D. Sebastião não era bastante para reerguê-lo.”4

Porém, esta “fé ardente” de Dom Sebastião não se deixou demover pelas advertências dos

3 Fernando Venâncio, Quem inventou Marrocos – Diários de viagem, V.N. Gaia, Editora Ausência, 2004, p.39

4 David Lopes, A expansão em Marrocos, Lisboa, Teorema, 1989, p. 81

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seus contemporâneos. Toda a resistência a esta empresa predestinada à desgraça alimentou

ainda mais o carácter messiânico deste mal necessário para a regeneração do reino. A verdade

é que apesar de todas as dificuldades que já faziam prever um desfecho trágico, a intenção de

constituir um império no Norte de África era bem real. Perceber a sucessão dos

acontecimentos que levaram à batalha e a forma como esta decorreu é essencial para

compreender o lugar que esta ocupa na memória colectiva e a dimensão simbólica que

alimentou o mito Sebastianista.

D. Sebastião, que tinha subido ao trono com apenas catorze anos, em 1568, sem conhecer

pai nem mãe, mantinha vivo um espírito de cruzada, pela sua devoção absoluta a Deus e ao

seu fascínio pelas armas. Por esta altura, os portugueses estendiam o seu império de Goa ao

Brasil, mas em Marrocos tinham já perdido ou abandonado várias praças. O domínio de

Marrocos estava longe do seu apogeu. Apenas restavam as praças de Ceuta, Tanger, Arzila e

Mazagão. A dinastia Sádida, como dinastia Xarifiana5 que era, tinha expulso os invasores

ibéricos das praças do Sul através de uma jihad, consolidando assim o seu poder e legitimando

o seu domínio do Reino de Marrocos.

O grande momento decisivo que levou a que a batalha tivesse lugar nesta época foi a

disputa pela sucessão ao trono da dinastia Sádida. Muhammad al-Mutawakkil, outro dos

protagonistas desta batalha, – o segundo dos três reis – disputava a sucessão ao trono de

Marrocos com o seu tio ‘Abd al-Malik (Mulei Maluco) – o terceiro dos reis – após a morte do

sultão, seu pai. ‘Abd al-Malik o legítimo herdeiro do trono, expulsou o seu sobrinho, após um

breve reinado de dois anos, com o apoio dos Turcos Otomanos e fez-se aclamar em Fez e

Marrakech, em 1576. O príncipe destronado, ignorado por D. Filipe II, em Castela, recorreu a

D. Sebastião para tentar recuperar o poder perdido. Este foi então o pretexto tão desejado

pelo rei português para justificar a sua empresa numa nova cruzada. Castelhanos, Alemães,

Italianos, juntaram-se aos Portugueses e aos homens de al-Mutawakkil para combater ‘Abd al-

Malik e o seu irmão Ahmad, designado após a batalha como o al-Mansur.6 As embarcações

saíram de Lisboa a 24 Junho para travar uma batalha impossível em África, no pico do Verão. A

4 de Agosto de 1578 confrontavam-se em Alcácer Quibir, junto ao rio al-Makhâzin, as duas

frentes rivais.

5 Os Xarifes são todos aqueles que integram os clãs designados como descendentes do profeta Maomé. Mais tarde

veio a comprovar-se que os Sádidas não eram de facto descendentes directos do Profeta, embora na época esse

dado fosse ignorado e por isso não tem relevância para este trabalho.

6 Al-Mansur – o vencedor, foi o vocábulo agregado ao nome do soberano que lhe serviria como título honorífico,

como reconhecimento do seu papel decisivo na batalha de Alcácer Quibir.

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Após uma breve vantagem dos portugueses, o líder Sádida ‘Abd al-Malik sucumbia a uma

doença, previamente diagnosticada como mortal, e que o atormentava desde antes de iniciada

a batalha. Foi o seu irmão Ahmad al-Mansur que levou finalmente os marroquinos à vitória,

consagrando-se o novo Sultão Sádida, em pleno campo de batalha. Portugal perdia também o

seu rei durante a batalha, com consequências desastrosas, e al-Mutawakkil afogava-se no rio

al-Makhâzin ao tentar escapar a um destino trágico. “É tudo fútil discorrer sobre o que podia

acontecer se um bambúrrio da sorte lhe desse a vitória, porque seria uma vantagem efémera,

que logo se desvaneceria como um sonho. […] não se dá vida a um moribundo!”7 A dimensão

onírica do império está presente em muitos dos discursos que se fazem ouvir sobre este

episódio, por vezes alimentando uma esperança imperial e por vezes acusando a

predestinação da tragédia, mas o sonho não se desvaneceu na mente dos portugueses, e, a

batalha, ainda que perdida e de consequências irremediáveis, continuou a inspirar o sonho

desse império que não foi, mas que ainda poderia ser.

O império português, moribundo neste Norte de África, era assim o cenário de três

trágicas mortes, os três reis que tornariam famoso o campo de Alcácer Quibir e que davam o

nome à Batalha dos Três Reis. A importância histórica da batalha de Alcácer Quibir não deve

ser subestimada pois o seu desfecho pôs termo às ambições imperiais sobre o Norte de África

e garantiu a Marrocos o prestígio que necessitava para demonstrar aos Otomanos que teriam

que renunciar ao seu controlo. Pelas palavras do médico judeu de ‘Abd al-Malik vemos a

importância histórica e simbólica que foi conferida aos acontecimentos pelo lado marroquino:

“É um grande segredo divino que tenham morrido, no espaço de uma hora, três reis dos quais

dois eram tão poderosos. E é ainda maior milagre e quase verdadeiro prodígio que um rei

morto tenha vencido, em tão pouco tempo, um rei de Portugal. Todos os cavaleiros

portugueses, desde o filho do Duque de Bragança até ao escudeiro, foram mortos ou

aprisionados. Foi uma coisa espantosa e jamais vista.”8

Do lado português, os mortos e os cativos contavam-se aos milhares e muito poucos

conseguiram escapar e refugiar-se em Arzila. A notícia chegou a Lisboa passados alguns dias da

batalha, mas um silêncio oficial foi imposto, na esperança que tudo não passasse apenas de

um rumor. As consequências da empresa portuguesa nesta batalha foram de tal dimensão que

7 David Lopes, A expansão em Marrocos, Lisboa, Teorema, 1989, p. 81

8 Autor anónimo, mas presumivelmente o médico judeu do rei ‘Abd al-Malik e que o acompanhou

durante a batalha in Lucette Valensi, Fábulas da memória – A gloriosa batalha dos três reis, Lisboa, Edições Asa,

1996, p.62

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provavelmente não haveria ninguém em Lisboa que não lamentasse a perda de algum familiar

nesta desastrosa derrota, que seria confirmada oficialmente apenas a 22 de Agosto. O silêncio

prolongou-se no luto inconformado e a primeira narrativa em língua portuguesa deste mito

fundador da nação surgia apenas em 1607, 29 anos depois da data histórica, numa crónica da

autoria de Jerónimo Mendonça, um dos homens que acompanhou D. Sebastião na sua Jornada

de África, um dos cativos após a derrota e que mais tarde voltaria ao reino.

Alcácer Quibir: Reconhecimento do cadáver de D. Sebastião. ca. 1888,

óleo sobre cartão, 225x335 mm, Museu Nacional Soares dos Reis, Porto, Portugal.

Apesar do reconhecimento do corpo D. Sebastião, por cativos da batalha, das exéquias

fúnebres realizadas, do envio do corpo para Lisboa, muitas narrativas deixaram em suspenso o

desfecho da morte de D. Sebastião e o enigma transformou-se em mito permanecendo até

hoje no imaginário português. Mais do que certezas sobre o que teria acontecido, muitas das

narrativas sugerem hipóteses sobre a morte ou desaparecimento do rei D. Sebastião. Esta

atitude revela a incapacidade no reconhecimento da derrota e das suas consequências. A

dificuldade em fazer o luto sobre a batalha alimentou assim esta dúvida da morte do rei. que

desaparecia certamente, mas sem a afirmação segura da sua morte. A dúvida persistiu em

Portugal ao longo dos séculos que se sucederam. Passados duzentos anos do seu

desaparecimento em Alcácer Quibir, D. Pedro II faz novamente a exumação dos restos de D.

Sebastião para os trasladar para um novo túmulo monumental colocando o seguinte epitáfio:

“Se é vera a fama, aqui jaz Sebastião,

Vida nas plagas de África ceifada.

Não duvideis de que ele é vivo, não!

A morte deu-lhe vida ilimitada”9

9 Afonso Lopes Vieira, Em demanda do Graal, Lisboa, 1922 in Lucette Valensi, Fábulas da memória – A gloriosa

batalha dos três reis, Lisboa, Edições Asa, 1996, p.49

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Foi o sentimento de imortalidade de D. Sebastião que permaneceu no imaginário

português e que ultrapassou as fronteiras da razão. Ainda que indubitavelmente morto, é a

incredibilidade e a rejeição que dominam o desfecho trágico. A batalha foi recordada de forma

lendária, em Portugal e para além das suas fronteiras, e serviu como matéria para a criação de

novas narrativas e evocações na literatura escrita, na oralidade, na historiografia como

elemento constituinte da memória da nação. A grande epopeia portuguesa d’Os Lusíadas é

dedicada ao Rei D. Sebastião nos versos de Camões. A grande batalha histórica e o seu

protagonista transformam-se assim em símbolos intemporais constantemente revisitados

quando é necessário imaginar a nação.

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“The one duty we owe to history is to rewrite it.” Oscar Wild10

Conceito de reescrita de um património literário

As situações paradigmáticas, como é irredutivelmente o exemplo da batalha de Alcácer-

Quibir, são sempre potenciadoras de fenómenos de reescritas. A reescrita literária é a

reconquista de um sentido de um património e a prova irrefutável de que este continua vivo.

“A memória, lembra Michel de Certeau, «é feita de fragmentos particulares». Ora esses

fragmentos têm a capacidade de se dispersar até bem longe e de reaparecer à superfície aí

onde se não espera já encontrá-los.”11 Um texto histórico, como o de Jerónimo Mendonça,

contém sempre elementos potenciais de lenda que são posteriormente retomados em outras

narrativas. Vários autores, nos séculos seguintes até aos nossos dias, revisitaram o tema da

batalha de Alcácer Quibir e a figura do rei D. Sebastião, em toda a sua dimensão histórica,

simbólica e mítica. Manuel Alegre, ao reescrever a Jornada de África, propõe-se a trabalhar o

conceito de memória nacional de forma subversiva. O autor reintegra a mitologia de Alcácer

Quibir e a memória nacional na história da guerra colonial para justificar o patriotismo oficial

necessário. “This adaptation and use of national memory as a call to arms fused comfortably

with the symbolic system in power at the time of the colonial war, in that it recovered the

ideological matrix that was to cast military action actually taking place as thought it were a

memorialist exercise of self representation of the nation’s imperial identity.”12

10

[O único dever que temos perante a história é o de reescrevê-la.]

11 Lucette Valensi, Fábulas da memória – A gloriosa batalha dos três reis, Lisboa, Edições Asa, 1996, p.8

12 Margarida Calafate Ribeiro, Revising Alcácer Quibir: History, Myth and War in Manuel Alegre’s Jornada de África,

extract from Portuguese Studies, Volume 14, London, W.S. Maney & Son Ltd., 1998, p. 249 [Esta adaptação e uso da

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Os factos são repetidos e o passado emerge na narrativa do presente. Ao mesmo tempo

que o autor reescreve Alcácer Quibir, fazendo a sua leitura moderna, enquadra o momento

histórico na experiência contemporânea da guerra colonial. Alegre retoma a crónica histórica

para a sua imagem ficcional da batalha na jornada do alferes Sebastião. A nova Jornada de

África situa o seu discurso num contexto pós-moderno, no sentido em que não é permitido ao

leitor ignorar as lições do passado, para construir um presente histórico através de

personagens históricas que são instrumentalizadas na ficção. O autor encarrega-se de

contextualizar a sua narrativa através de uma construção ou reconstrução histórica. Linda

Hutcheon analisa as características deste tipo de narrativas, em que a história serve de

ferramenta para problematizar o presente, e em que o pós-moderno “(…) reinstalls historical

context as significant and even determining, but in so doing, it problematizes the entire notion

of historical knowledge. This is another of the paradoxes that characterize all postmodern

discourses today.”13 O contexto histórico é portanto uma ferramenta utilizada pelo autor para

questionar valores concretos do momento presente. As referências históricas que povoam a

narrativa quebram a unidade discursiva tradicional, tornando-a instável e fragmentada. A

história passa a ser lida de forma crítica e interventiva, perante a impossibilidade pós-moderna

de um discurso isento e deixando o passado para se instalar na ficção contemporânea. O

próprio acto da escrita revela desde logo uma necessidade de expressão e transmissão de

valores e construções simbólicas. Podemos considerar, no entanto, que esta necessidade é

válida tanto para o texto histórico original como para a sua reescrita. A diferença está no

entendimento que é produzido sobre os acontecimentos. O regresso à história, à batalha de

Alcácer Quibir, não é uma necessidade nostálgica ou revivalista, mas sim uma reconstrução

imaginativa ficcionada que problematiza os símbolos da batalha atribuindo-lhes novos valores.

Mais importante do que dar conta da ocorrência de centos de acontecimentos que fizeram

parte da batalha no passado é o intuito de determinar o que estes episódios podem significar

no contexto dos objectivos nacionais do presente e como podem constituir uma visão para o

memória nacional como um apelo às armas fundiu-se confortavelmente com o sistema simbólico no poder, na

altura da guerra colonial, na medida em que recuperou a matriz ideológica que iria moldar a acção militar que de

facto acontecia como pensada, como exercício memorialista de auto-representação da identidade imperial da

nação.]

13 Linda Hutcheon, The Postmodern Problematizing of History in English Studies in Canada 14.4, 1988, p.367

[reinstala o contexto histórico como significante e até determinante, mas ao fazê-lo, problematiza inteiramente a

noção de conhecimento histórico. Este é outro dos paradoxos que caracteriza todos os discursos pós-modernistas

de hoje.]

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futuro de Portugal. Na reescrita da Jornada de África de Manuel Alegre encontramos então, de

forma bastante clara, uma textualização dos vestígios históricos da batalha. Os eventos que

tiveram lugar no passado são cuidadosamente seleccionados e nomeados na ficção que ocorre

no momento da guerra colonial em Angola.

O texto da reescrita marca o fim do discurso nacionalista, questionando a brutalidade de

uma guerra inglória, alertando para as responsabilidades individuais, questionando as

identidades. Para além da nomeação dos acontecimentos, também aos personagens é

conferida uma dimensão histórica e simbólica importante. O protagonista da narrativa, ele

próprio, constata uma espantosa coincidência nos nomes dos homens da guerra colonial e os

nomes de Alcácer. “Coincidência, acaso? Kairos, dizem os gregos.”14 A nomeação dos

personagens é destacada de forma determinante em ambas as narrativas. Não será

certamente uma casualidade. É necessário atribuir rostos a estas guerras, as tragédias

precisam dos seus heróis para comprovar e justificar a história. Estes nomes são imortalizados

em lendas de resistência, os fantasmas que povoam a memória do império e que encarnam

séculos mais tarde outra guerra impossível. A crónica do passado mistura-se com a crónica do

presente numa justaposição dos nomes, do tempo e do espaço de Alcácer Quibir com o da

guerra colonial. “Há um tempo parado no tempo que voa | Porque um fantasma é rei de

Portugal”15

Ao longo de todo o discurso narrativo de Manuel Alegre sentimos a intencionalidade

simbólica e moralizadora desta fusão dos dois tempos. Também o cheiro de África à chegada a

Luanda do alferes Sebastião é talvez o mesmo cheiro de 4 de Agosto de 1578, segundo o autor.

Os paralelos, as comparações, as metáforas que nos reenviam a Alcácer estão presentes ao

longo dos trinta e cinco capítulos do romance de amor e morte do alferes Sebastião. A

transposição e apropriação de uma história a outra temporalidade e a outra África, cria

também um discurso de continuidade da história imperial de Portugal: “Há cinco séculos que

estão a chegar aqui, traz dentro dele todas as viagens e todos os naufrágios, é um pedaço de

História Trágico-Marítima em carne viva, não vem a descer de um avião, está a saltar de um

14

Manuel Alegre, Jornada de África – Romance de Amor e Morte do Alferes Sebastião, Lisboa, Publicações D.

Quixote, 1989, Capítulo II, p.27

15 Manuel Alegre, Explicação de Alcácer Quibir in O Canto e as Armas, 30 Anos de Poesia, Lisboa, Publicações D.

Quixote, 1995, p.64

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verso de Camões para esta terra violada e virgem (…)”16 É a mesma obsessão imperial que é

exaltada nos dois momentos e que vence as barreiras do tempo, pela imortalidade que lhe foi

conferida nos versos de Camões legitimando o discurso da inevitabilidade dos acontecimentos.

Os barcos partiram outrora, agora são os aviões, os cavalos cavalgaram outrora no campo de

batalha onde agora segue a coluna de jipes, rufavam tambores e fazem-se agora paradas

militares. Mas a guerra, essa, será sempre uma guerra perdida, irremediavelmente

predestinada a um cenário apocalíptico. Sebastião será sempre o desejado, o desaparecido no

campo de batalha alimentando a dúvida do futuro nacional. Mas onde encontrávamos uma

exaltação dos valores universais, encontramos agora uma crítica e a necessidade de dar voz

aos vários personagens, ao próprio Sebastião e aos opositores, individualizando os discursos.

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“Estamos em Marrocos. Tivesse eu saído do carro, e ele acolhia-me com um braço pelos ombros.

«Monsieur», digo, «je cherche la gare de El Makhazen.» «La guerre?» «Non, monsieur, la gare.» «Mais

oui, la guerre, la bataille.» O parvo, afinal, sou eu. Solícito, ele indica-me o «feu-rouge» onde devo virar à

esquerda.

Como é que uma estação de caminho de ferro o informou da minha exacta busca, havia eu de

compreendê-lo quando chegasse ao sítio: ninguém procuraria, naquele lugarejo, senão exactamente

isso.” Fernando Venâncio17

A Jornada de África. De Jerónimo Mendonça a Manuel Alegre

Estava o exército português preparado para a batalha de Alcácer Quibir? E para a guerra

colonial em Angola? O desastre era já pressentido? Estas são algumas das questões que nos

perseguem ao longo da leitura das nossas Jornadas de África, tão distantes no tempo e na

geografia. As narrativas elencam as escolhas que se revelaram fatais e tentam fundamentar as

orientações que levaram à tragédia.

Jerónimo Mendonça, um dos homens que escapou com vida à batalha, produziu o seu

texto em forma de crónica, contando as suas memórias sobre a batalha de Alcácer Quibir e

intitulando a sua obra: A Jornada de África. O silêncio prolongado até esta primeira narrativa e

o recalcamento fazem igualmente parte do processo histórico e da formação da memória. A

obra de Jerónimo Mendonça vem dar voz aos que não regressaram e justificar essa jornada

impossível iniciando assim o prólogo do seu testemunho:

16

Manuel Alegre, Jornada de África – Romance de Amor e Morte do Alferes Sebastião, Lisboa, Publicações D.

Quixote, 1989, Capítulo III, p.32

17 Fernando Venâncio, Quem inventou Marrocos – Diários de viagem, V.N. Gaia, Editora Ausência, 2004, p.40

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“Posto que nunca esqueçam grandes males, nem erros passados possam deixar de ser,

pode todavia a malícia humana acrescentar ambas estas coisas de maneira, que pereça a

verdade totalmente, e venham a ser maiores os danos da mentira, que quantos sucederam por

Divino juízo ou culpas nossas, pelo que apesar do sentimento com que nos ameaça a

lamentável história, me pareceu muito justo tratar desta jornada: e ainda que quando tomei

esta empresa foi meu destino logo de não tocar na infeliz batalha, senão muito brevemente,

assim por não caírem muitos males de um só golpe, como por me não julgar capaz de

semelhante empresa: Vendo porém depois o modo com que alguns estrangeiros como

Jerónimo Franqui, e frei António de S. Romão tratam dela, acrescentando às faltas, e misérias

outras muito maiores, como senão bastaram as que na verdade aconteceram, e que nosso

descuido podia acreditar seus erros, vendo os que depois vierem que ninguém os contradisse,

sendo tão manifestos; me pareceu razão não passar em silêncio coisa alguma, porque se saiba

em todo o tempo o que aconteceu na verdade, apontando alguns lugares nos quais se verá

claramente aquilo de que estes autores deviam ter errada informação: não como Escritor (por

certo) que não há razão que tal se cuide de mim, mas como quem viu, e passam toda esta

jornada, darei somente meu testemunho: posto que por outra parte me corro tanto de não

haver em Portugal quem com outro estilo, e diferente lição quisesse ate agora tratar desta

história, tirando-a com razão à verdadeira luz, que não quisera algum modo falar nisto, por

não acrescentar também mais dano a dano com meu fraco entendimento.”18

Após o longo silêncio há então um momento em que se torna imprescindível recordar e

transmitir estas recordações. Jerónimo de Mendonça estava bem ciente da necessidade do

luto e do silêncio sobre a batalha, bem como de uma necessidade de trabalhar a memória. O

nosso narrador pretende ilibar o rei, a nobreza, a Igreja e toda a empresa, admitindo porém

alguns erros, mas exaltando a heroicidade do rei, um cristão devoto, ao serviço da fé. Este

texto serviu de matriz a muitos dos relatos da batalha que se sucederam. Passados quase

quatro séculos deste testemunho, Manuel Alegre reescreve a Jornada de África. Desta vez a

batalha passa-se em Angola e o protagonista, um novo Sebastião, é um alferes anti-colonialista

que se vê envolvido numa guerra que não é sua e na quarta queda do império. O protagonista

do romance confessa esta frustração: “Estamos a perder tempo e vidas para nada. Não basta

ganhar terreno, é preciso ganhar a população. E não está a ser assim. Toda a gente sabe.”19

18

Jerónimo Mendonça, Jornada de África, Lisboa, Pedro Crasbeek, 1607, prólogo

19 Manuel Alegre, Jornada de África – Romance de Amor e Morte do Alferes Sebastião, Lisboa, Publicações D.

Quixote, 1989, Capítulo XIII, p.104

Mito e Memória na Jornada de África e sua reescrita

Patrimónios da palavra: narrativas, discursos e literatura em língua portuguesa

Ana Sofia Neno Leite – Abril 2011

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Este fim do império que culmina com a guerra colonial mais longa da história europeia,

reanima todos os traumas do fantasma de Alcácer Quibir que contaminam a narrativa de

Manuel Alegre na sua nova Jornada de África. Esta reescrita transpõem para um novo tempo e

um novo espaço toda a loucura do empreendimento dessa Jornada de África, de Marrocos a

Angola, de Alcácer Quibir a Luanda, a Nambuangongo.

A história do alferes Sebastião começa num dia cinzento, molhado por uma chuva

miudinha e com o olhar triste sobre o Rio Mondego. Este primeiro capítulo fala-nos de uma

ideia de sacrifício necessário, de saudade, de uma auto-ternura da derrota e de quem é este

Sebastião. “Há sempre uma mulher ausente em cada mulher presente, é essa que eu quero, a

que não há”20É precisamente um desejo impossível que motiva o protagonista, tal como o

motivara o rei para a cruzada de Marrocos em busca do seu império ausente, o império que

não há.

O alferes Sebastião é visto pelos que o rodeiam, ainda antes de partir para a guerra, como

alguém “irremediavelmente individualista. Por temperamento, por origem de classe, embora

ele não aceite o princípio de que é esta que determina a consciência. (…) Do que ele gosta é da

acção, da aventura, do lado heróico e romântico da intervenção histórica. (…) Há em Sebastião

um impulso revolucionário que cedo ou tarde o trará ao bom caminho”.21 Esta caracterização

do personagem vai ao encontro das descrições de Jerónimo Mendonça do seu rei, este era

alguém que não desistia de modo nenhum da sua determinação, apesar de todos os conselhos

dos que o rodeavam. Mas o alferes contém no seu personagem uma possibilidade de salvação

pessoal que acontecerá mais tarde ou mais cedo, enquanto D. Sebastião, apesar de todos os

seus esforços valorosos e nobres sofrerá as consequências da sua desmedida determinação. D.

Sebastião vem redimir o reino e não a si mesmo na crónica de Jerónimo Mendonça, enquanto

para Manuel Alegre o valor do indivíduo sobrepõe-se ao da nação. O alferes que combate em

Angola tem ideias próprias, embora lute pela pátria, a sua determinação revela valores

individuais distintos.

Ao iniciar a jornada da guerra colonial, os vestígios históricos da batalha de Alcácer Quibir

começam a ser alvo de uma arqueologia narrativa. A descoberta destes vestígios indicam as

escolhas de Manuel Alegre sobre o que é que deve ou não ser retido da batalha e valorizado.

20

Manuel Alegre, Jornada de África – Romance de Amor e Morte do Alferes Sebastião, Lisboa, Publicações D.

Quixote, 1989, Capítulo II, p.22

21 Manuel Alegre, Jornada de África – Romance de Amor e Morte do Alferes Sebastião, Lisboa, Publicações D.

Quixote, 1989, Capítulo III, p.22-3

Mito e Memória na Jornada de África e sua reescrita

Patrimónios da palavra: narrativas, discursos e literatura em língua portuguesa

Ana Sofia Neno Leite – Abril 2011

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Ao colocar o leitor face a um Kairos que se revela desde o início da sua ficção, surge a

problematização de qual o sentido que será dado à batalha face ao destino colectivo. “A que

novos desastres, ai que gaita, a que novos desastres determinas de levar este reino e estas

gentes”22

Cada um dos autores se situa perante o acontecimento de forma distinta. A salvação da

dignidade nacional é conduzida na narrativa de Manuel Alegre para um despertar de

consciência do indivíduo, como vimos. O sentimento de nostalgia e melancolia das palavras de

Jerónimo Mendonça chegam até Manuel Alegre, numa postura crítica em que, nestes impérios

em ruptura, a desgraça é uma constante no espírito, mas os personagens podem salvar-se e

tomar as suas próprias opções. A técnica da nomeação nas obras que temos vindo a analisar é

muito importante no sentido em que Marx afirmava “A raiz do homem é o próprio homem”.

Existe uma busca da essência simbólica da batalha através da matéria-prima que molda essa

mesma batalha, a massa humana, homens identificados, nomeados. A identidade é um

processo de significação, usado de forma estratégica por Manuel Alegre na identificação

ideológica dos seus personagens, protagonistas da nova guerra, impulsionadores de um outro

império. Também na obra matriz, Jerónimo Mendonça nomeia todos aqueles que combatiam

ao lado de D. Sebastião, inventariando sucessivamente as suas mortes em África. As guerras

que são relatadas são guerras concretas com nomes e modos de morrer precisos: “A guerra

nuclear é demasiado abstracta para quem tem que viver com a morte concreta, a morte com

nomes, rostos, tiques, gestos pessoais, únicos, irrepetíveis.”23

Na nova Jornada de África surge ainda um outro elemento. Ao adversário é dada voz e

surgem personagens que se situam do lado do opositor expressando um discurso e opiniões

distintas que contribuem para a narrativa da guerra colonial. Ao lado d’Os Lusíadas o narrador

coloca os poemas de Agostinho Neto, os poemas do inimigo. A voz da oposição é colocada ao

máximo nível de importância, ao nível do grande épico da nacionalidade portuguesa. Os

personagens Domingos da Luta, como encarnação da resistência no campo de batalha do

MPLA, e Bárbara, que trava a resistência no campo ideológico e se remete ao exílio, são a voz

dos opositores angolanos ao regime colonial. Mas esta oposição é também a manifestação da

necessidade de combater a opressão interna. Os diálogos entre Sebastião e Bárbara passam ao

22

Manuel Alegre, Jornada de África – Romance de Amor e Morte do Alferes Sebastião, Lisboa, Publicações D.

Quixote, 1989, Capítulo II, p.26

23 Manuel Alegre, Jornada de África – Romance de Amor e Morte do Alferes Sebastião, Lisboa, Publicações D.

Quixote, 1989, Capítulo XVIII, p.141

Mito e Memória na Jornada de África e sua reescrita

Patrimónios da palavra: narrativas, discursos e literatura em língua portuguesa

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leitor esta ideia de que a luta em Angola não é independente da luta pela independência

ideológica em Portugal: “ – Eu sou angolana e a liberdade de Angola será conquistada pelos

angolanos. – Eu sou português e digo-lhe que não haverá liberdade em Angola enquanto não

houver liberdade em Portugal.”24

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"Haverá sempre em nós um rei perdido | Por seu excesso de saudade e ânsia | Um ser de ainda não

ser ou já ter sido | Outro tempo no tempo outra distância | A nossa pátria é sempre outro lugar | E

quando alguém voltar Ninguém Ninguém | Haverá sempre um não chegar | E D. Sebastião é quem”

Manuel Alegre25

Silêncio e memória

Metamorfoses da reescrita, o distanciamento e a reutilização do mito

O que interessa reflectir não é o acontecimento histórico per si, mas sim como a história é

interpretada e como pode ser retomada em narrativas cronologicamente tão distantes. As

memórias destes acontecimentos são traduzidos na literatura procurando moralizar, de certa

forma, tudo o que se passou, produzindo um sentido necessário e utilitário ao seu contexto. O

eco da batalha chega até nós em discursos sucessivos. É a mesma história, contada de maneira

distinta. Não é certamente a mesma batalha a de D. Sebastião e a do alferes da guerra

colonial, nem são os mesmos homens que a protagonizam, mas é a essência da matriz

histórica que os narradores utilizam que nos pretende transmitir a mesma história que se

repete numa outra temporalidade significados divergentes. Lucette Valensi designa por

mnemotécnica os “meios de produção e transmissão das recordações. Textos ou acções

colectivas, rituais cívicos ou religiosos, meios sonoros ou iconografia”26. A batalha de Alcácer

Quibir foi um dos acontecimentos históricos de Portugal em que a mnemotécnica foi

francamente expressiva quer pela quantidade de relatos e a sua polifonia27, quer pela

dimensão de expansão geográfica e cronológica do mito sebastianista. Podemos atribuir à

memória colectiva a responsabilidade do grande impulsionador do mito. “Memória delirante,

24

Manuel Alegre, Jornada de África – Romance de Amor e Morte do Alferes Sebastião, Lisboa, Publicações D.

Quixote, 1989, Capítulo XXI, p.162

25 Manuel Alegre, D. Sebastião in Atlântico, 30 Anos de Poesia, Lisboa, Publicações D. Quixote, 1995, p.572

26 Lucette Valensi, Fábulas da memória – A gloriosa batalha dos três reis, Lisboa, Edições Asa, 1996, p.19

27 Ver os conceitos fundamentais associados à obra de Mikhail Bakhtin (1895-1975) que incluem o dialogismo, a

Polifonia (linguística), a heteroglossia e o carnavalesco. Esthétique et Théorie du Roman.

Mito e Memória na Jornada de África e sua reescrita

Patrimónios da palavra: narrativas, discursos e literatura em língua portuguesa

Ana Sofia Neno Leite – Abril 2011

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furioso trabalho de efabulação à volta da desgraça nacional. Que querem dizer todos estes

sinais? Eles, pelo seu número e pela sua ubiquidade, constituem a prova dificilmente refutável

de que Deus quis a derrota portuguesa. A batalha e o desenlace de uma tragédia inelutável. Se

esses sinais fazem surgir nova pergunta: - porque razão Deus quis isso? – eles dão-lhe resposta:

para castigar Portugal. A ficar-se por estes dados, o caso reduz-se então a uma parábola. Os

portugueses não têm mais que se culpar a si mesmos, que se arrependerem, que se

corrigirem.”28 O acontecimento é invocado recorrentemente ao longo da história sempre que a

realidade vivida se demonstra insatisfatória e se sente uma necessidade de corrigir essa

mesma realidade, como a guerra colonial ou o Portugal reprimido de Manuel Alegre. François

Dosse caracteriza a memória colectiva distinguindo-a da história. Para F. Dosse, a memória

colectiva apresenta-se sob a forma de uma linha contínua, como um rio cujo leito se vai

alargando ao longo do seu curso, enquanto que a história recorta, isola períodos e privilegia as

diferenças, as mudanças e outras descontinuidades. A memória é feita de fragmentos e de

pluralidade de vozes, sem fronteiras claramente definidas, uma linha contínua que se alarga e

se desmembra, enquanto a história tem uma voz única. Mas existe um momento em que as

narrativas exigem um reposicionamento do olhar conferindo um valor interpretativo à história

como define Pierre Nora: “La voie est ouverte à une tout autre histoire: non plus les

déterminants, mais leurs effets; non plus les actions mémorisées ni même commémorées, mais

la trace de ces actions et le jeu de ces commémorations; pas les événements pour eux-mêmes,

mais leur construction dans le temps, l’effacement et la résurgence de leurs significations; non

le passé tel qu’il s’est passé, mais ses réemplois successifs ; pas la tradition, mais la manière

dont elle s’est constituée et transmise.“29

Ao falar da memória não podemos também, de forma alguma, ignorar os silêncios, os

esquecimentos de um passado traumático que contribuíram de forma inequívoca para a

criação da nação. Constatamos em várias situações, em que nos confrontamos com casos

históricos indesejados, atitudes de fuga, de ocultação consciente ou inconsciente e mesmo a

negação destes momentos traumáticos. A memória passa a ser portanto uma forma de

selecção histórica e interpretativa do momento, uma construção imaginada. Se por um lado

podemos falar de um sentimento de luto da memória traumática, por outro lado impera ainda

28

Lucette Valensi, Fábulas da memória – A gloriosa batalha dos três reis, Lisboa, Edições Asa, 1996, p.170-1

29 Pierre Nora, Comment on écrit l’histoire de France? in François Dosse, Historiser les traces mémorielles -

Conférence prononcée à Tallin en Novembre 2005, p.3

Mito e Memória na Jornada de África e sua reescrita

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o dever de memória, de clarificação, ainda que contaminada pela subjectividade e pela

pluralidade das vozes que narram esta mesma história.

Para Linda Hutcheon a literatura contemporânea pós-modernista ganhou uma nova

dimensão ao compreender a necessidade de entender a história como uma questão cultural,

atribuindo-lhe valores e reformulando significados: “There seems to be a new desire to think

historically, but to think historically these days is to think critically and contextually.”30 O

pensamento histórico que encontramos na narrativa de Manuel Alegre tem subjacente uma

intenção crítica clara, uma mensagem declarada ao contexto social e político que se vivia

durante o período da guerra colonial. O passado não está encerrado, a Jornada de África é de

facto uma longa jornada que se reescreve até ao presente através da construção de discursos

sejam eles históricos ou ficcionais. A metamorfose dos acontecimentos, a sua transmutação

para um novo espaço geográfico e temporal, é o resultado da leitura do momento histórico

pelo autor na nova narrativa conferindo uma hierarquia simbólica aos acontecimentos do

passado, destacando ou omitindo sequências temporais que constituem a sua opção crítica

para a constituição do seu próprio sistema de significação. Seguindo ainda a lógica da narrativa

pós-moderna, seja ela histórica ou literária, de Linda Hutcheon, percebemos como é

importante a compreensão dos sistemas de significação em cada um dos autores: “What the

postmodern writing of both history and literature has taught us is that both history and fiction

are discourses, that both constitute systems of significantion by which we make sense of the

past ("exertions of the shaping, ordering imagination"). In other words, the meaning and shape

are not in the events, but in the systems which make those events into historical facts. This is

not a "dishonest refuge from truth," but an acknowledgement of the meaning-making function

of human constructs.”31 Ambos os discursos, sejam eles de carácter histórico, como a crónica

de Jerónimo Mendonça, ou ficcional, como o romance de Manuel Alegre integram uma carga

simbólica que pretende atribuir significados aos acontecimentos passados, mas a possibilidade

de distanciamento face ao acontecimento da batalha de Alcácer Quibir torna possível e

30

Linda Hutcheon, The Postmodern Problematizing of History in English Studies in Canada 14.4, 1988, p.366 [Parece

haver uma nova vontade de pensar historicamente, mas pensar historicamente hoje em dia é pensar critica e

contextualmente.]

31 Linda Hutcheon, The Postmodern Problematizing of History in English Studies in Canada 14.4, 1988, p.367 [O que

a escrita pós-modernista da história ou da literature nos ensinou é que tanto a história como a ficção são discursos,

que ambos constituem sistemas de significação pelos quais damos um sentido ao passado (“esforços de definição,

ordenando a imaginação”). Por outras palavras, o significado e a forma não estão nos acontecimentos, mas nos

sistemas que transformam esses acontecimentos em factos históricos. Isto não é um “refúgio desonesto da

verdade”, mas um reconhecimento da função de produção de significado das construções humanas.]

Mito e Memória na Jornada de África e sua reescrita

Patrimónios da palavra: narrativas, discursos e literatura em língua portuguesa

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imperativa a instituição de uma nova ordem de valores à narrativa da batalha, ou seja, a

construção de novos sentidos face aos factos históricos e a sua compreensão crítica e

interpretativa. “The semiotic awareness that all signs change meaning with time is what

prevents nostalgia and antiquarianism.”32 O contexto pós-colonial pós-moderno em que a

narrativa de Manuel Alegre se integra vai reflectir precisamente esta construção de novos

significados e valores, para um mesmo símbolo, que é o da construção da ideia imperial, do

mito sebastianista.

A mitologia da batalha de Alcácer Quibir, não teve apenas repercussões exclusivamente na

memória colectiva dos portugueses. A construção de sistemas de valores e a produção de

significados para o acontecimento histórico de Alcácer Quibir produziu discursos também do

lado do opositor. O mito Sebastianista não foi o único mito gerado por este evento marcante.

Para a mitologia marroquina, esta batalha é equiparada à batalha de Badr, que faz parte do

património da memória colectiva muçulmana como a primeira vitória do Islão combatente

sobre os infiéis, um dos momentos capitais da vida do profeta Maomé. A batalha para os

marroquinos assume também um carácter divino como confirma al Nâsirî: “A morte dos três

príncipes e a subida ao trono de um único é um verdadeiro símbolo que significa a derrota da

Trindade e o triunfo do monoteísmo durante aquela jornada. Mas o Altíssimo é quem melhor

sabe todas essas coisas.33” A vitória marroquina não ficou apenas na memória, mas continuou

a ser invocada como um símbolo da vitória do Islão sobre a Cristandade. O acontecimento

histórico, devido à sua importância na determinação do futuro de ambas as nações, foi um

importante potenciador de mitos, constantemente reutilizados. Em cada ano, no dia 4 de

Agosto, sobretudo desde a independência de Marrocos, face ao protectorado francês, a

imprensa nacional marroquina, através do jornal Le Matin du Sahara, reconstitui a batalha de

Wad al-Makhâzin, relembrando a importância para a formação da nação marroquina.

Celebrações à vitória de Al-Mansur são produzidas pelas entidades locais e o mito da batalha é

assim reutilizado, construído, reconstruido e reinterpretado sucessivamente por vencidos e

vencedores.

32

Linda Hutcheon, The Postmodern Problematizing of History in English Studies in Canada 14.4, 1988, p.368 [A

consciência semiótica de que todos os símbolos mudam de significado com o tempo é o que previne a nostalgia e o

antiquarianismo.]

33 Al Nâsirî in Lucette Valensi, Fábulas da memória – A gloriosa batalha dos três reis, Lisboa, Edições Asa, 1996,

p.109

Mito e Memória na Jornada de África e sua reescrita

Patrimónios da palavra: narrativas, discursos e literatura em língua portuguesa

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Ahmad al-Mansur nos pictogramas do filme Les chevaux de feu, de 1990, realizado por Suheil Ben Barka

D. Sebastião nos pictogramas do filme «Non» ou a vã glória de mandar, de 1990, realizado por Manoel de Oliveira

O romance de Manuel Alegre carrega esta condição pós-moderna no sentido em que não

tem uma identidade fixa, sendo uma transformação. Segundo Jean François Lyotard, na sua

teoria da condição pós-moderna, o “saber narrativo”34 é identificado com a tradição. Quando

alguém de uma sociedade narra um mito, a própria tradição legitima o ouvinte integrante da

sociedade a narrá-lo posteriormente. O ouvinte transforma-se então em narrador, transmissor

do mito com a devida autoridade. Este fenómeno repete-se ao longo de várias gerações, em

que o narrador transmite não apenas o mito mas também a legitimidade para que outros o

contem. Não importa se o novo narrador se distancia do mito. Ele pode contá-lo simplesmente

porque antes ouviu, podendo mesmo contá-lo de maneira diferente da que ouviu, porque a

autoridade de ter ouvido é superior à de saber a exacta verdade do mito. A preocupação com

o que é verdadeiro e falso está numa dimensão diferente, não entra no processo de

transmissão do mito. O mito tem um significado flutuante e por isso eminentemente político

ou politizado. Um universo de possibilidades pode ser assim activado despoletando a

plurivocalidade ou polifonia como uma forma de transgressão da história, conotada como uma

voz única, irrefutável, pela irredutibilidade dos factos. A memória, como o mito, oferece então

um conjunto de variáveis que são activadas, ou não, de acordo com os diferentes contextos e

temporalidades como opções de discurso, produzindo símbolos e significados distintos. A

especificidade do império português está, segundo Margarida Calafate Ribeiro, no seu carácter

precário e deambulatório. Segundo a autora “O Tratado de Tordesilhas pode ter sido um

34

Jean-François Lyotard, The Postmodern Condition (1979) publ. Manchester University Press, 1984

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delírio, mas sustentava-se na realidade do Mundo daquele tempo; a política africana de

António de Oliveira Salazar sustentava-se em nada contra o tempo. Disso ficaram apenas

traumas e um mar de ruínas”35 e será numa tentativa de compreender as ruínas deste império

que Manuel Alegre produz um novo discurso de libertação imperial e reconstrução de

Portugal, atribuindo significados distintos aos fragmentos da memória e da história da batalha

matriz.

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"Nascido da dor, nutrindo-se da esperança, ele é na história o que é na poesia a saudade, uma feição

inseparável da alma portuguesa.” Lúcio de Azevedo36

Conclusões

Angola foi a nova tentativa imperial em que Portugal pretendeu imaginar novamente um

império possível, tendo como resultado a produção de novos mitos e fantasmas que vieram

povoar o seu imaginário. A mensagem produzida ao longo de toda a narrativa de Manuel

Alegre é prenúncio da queda do império e o desastre da guerra: “Talvez o Quinto Império seja

afinal o fim de todos os impérios. O Grande Império do Avesso, o Anti-Império. E talvez seja

esse o único sentido possível desta guerra: fechar o ciclo. Talvez tenhamos de nos perder aqui

para chegar finalmente ao porto por achar: dentro de nós. Talvez tenhamos de não ser para

voltar a ser.

Há outro Portugal, não este. E sinto que tinha de passar por aqui para o encontrar. Não sei

se passado, não sei se futuro. Não sei se fim ou se princípio. Sei que sou desse país: um país que

já foi, um país que ainda não é.”37

Já no final do século XIX, Oliveira Martins, publicava a sua História de Portugal onde fazia a

sua análise da batalha intitulando este capítulo como “A catástrofe”. Este texto de Oliveira

Martins é uma nova voz que dá conta do desencantamento do reino, abrindo a possibilidade

de novos discursos. O Sebastianismo passou a ser entendido como um paradoxo da identidade

nacional, um renascimento falhado, uma aventura impossível. “A expedição teve lugar, a

batalha, a derrota. Com a pátria portuguesa, morrem Camões e D. Sebastião, que tinham

35

Margarida Calafate Ribeiro, entrevista in Livros, Jornal Público 3-VII-2004

36 Lúcio de Azevedo, A Evolução do Sebastianismo in Lucette Valensi, Fábulas da memória – A gloriosa batalha dos

três reis, Lisboa, Edições Asa, 1996, p.19

37Manuel Alegre, Jornada de África – Romance de Amor e Morte do Alferes Sebastião, Lisboa, Publicações D.

Quixote, 1989, Capítulo XXXIII, p.231

Mito e Memória na Jornada de África e sua reescrita

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quimericamente encarnado a ressurreição dela. «Nesse túmulo que encerrava, com os

cadáveres do poeta e do rei, o da nação, havia dois epitáfios: um foi o sonho sebastianista; o

outro foi, é, o poema d’Os Lusíadas.».”38 Esta posição de Oliveira Martins desencadeou uma

batalha entre sebastianólfilos e sebastianófobos, pois visava declarar o óbito do mito e da

memória de uma batalha impressa geneticamente no ADN português. O que nos interessa

perceber é que ao discurso de salvação e renascimento se juntou o discurso da morte da pátria

portuguesa e foi com base neste paradoxo que Manuel Alegre trabalhou na sua ficção, no

cenário da guerra colonial, em que o protagonista defendendo a pátria exemplarmente, revela

uma necessidade de ruptura com os valores nacionais decadentes. É um novo contexto do

Portugal que agoniza, porém está vivo, e precisa de uma regeneração urgente. Manuel Alegre

não busca modelos de salvação, mas sim a interrogação sobre o destino e a identidade do país

e as suas soluções políticas.

A expedição do rei D. Sebastião a Marrocos e a derrota de Alcácer-Quibir constituiu assim

“o maior fantasma e a maior fantasia da mitologia portuguesa”39 que alimentou durante o

período do Estado Novo esta necessidade de afirmação imperial e a reimaginação da nação. A

obra de Manuel Alegre, por sua vez, veio denunciar o desastre da guerra, a queda do império,

o desencantamento desse império perdido em que África que se transformou no espelho de

um Portugal reprimido. A narrativa pós-colonial situa-se precisamente entre os destroços do

império e a Europa que abre portas aos novos discursos da identidade nacional, onde Portugal

necessita de marcar a sua posição. A guerra foi, desta forma, o elemento que gerou o mito e o

reanimou séculos depois, reformulando os discursos pós-coloniais, legitimando a memória.

Esta passagem da acção histórica ao mito é também ela própria um processo histórico. O

processo de transmissão da memória pode passar pela historiografia ou pela ficção de forma

igualmente válida. As narrativas e as suas reescritas recriam os mesmos símbolos conferindo

novos sistemas de significação a esses mesmos símbolos, como uma reconstituição

interpretativa dos factos. “O sebastianismo impregnou o inconsciente português até aos nossos

dias”, escreve Eduardo Lourenço, que prossegue: “A nossa razão de ser, a raiz de toda a nossa

esperança, era ter sido.”40 Como qualquer mito messiânico, o Sebastianismo visa a libertação

38

Lucette Valensi, Fábulas da memória – A gloriosa batalha dos três reis, Lisboa, Edições Asa, 1996, p.243

39 Margarida Calafate Ribeiro, Uma História de Regressos, Império, Guerra Colonial e Pós-Colonialismo, Porto,

Edições Afrontamento, 2004, p. 41

40 Eduardo Lourenço, Le Labyrinthe de la Saudade. Psychanalyse mytique du destin portugais, 1988 in Lucette

Valensi, Fábulas da memória – A gloriosa batalha dos três reis, Lisboa, Edições Asa, 1996, p.305

Mito e Memória na Jornada de África e sua reescrita

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de um povo dos seus inimigos ou opressores. O opositor pode ser externo a esse povo ou

mesmo interno e é aqui que reside a grande diferença ideológica que separa as duas narrativas

que analisámos. Se para Jerónimo Mendonça ao Sebastianismo correspondia o desejo de

cruzada de oposição aos infiéis e à regeneração do reino face a esta força externa, para

Manuel Alegre o mito visa a regeneração de Portugal desde o seu interior, pela democracia e o

seu posicionamento face à modernidade da comunidade europeia. Esta ideia é clara na

narrativa de Manuel Alegre: “O inimigo está em toda a parte meu alferes, talvez mesmo no

meio de nós.41” O Sebastianismo é o recurso utilizado na busca da prosperidade de Portugal e

do seu lugar privilegiado face aos outros, face à situação anacrónica que se vivia em cada um

dos momentos. Quanto maior é o trauma do momento histórico, maior é a necessidade de

alimentar a esperança, de forma a reposicionar Portugal novamente como nação pioneira do

seu império imaginado.

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