Mito Rito e Religião. Historia Teatro universal

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Mito Rito e Religião. Historia Teatro universal.

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CAPTULO II1MITO, RITO E RELIGIOJunito de Souza Brando1 necessrio deixar bem claro, nesta tentativa de conceituar o mito Claro que a palavra mito tem mltiplos significados, mas, como diz Roland Barthes, o que se tenta definir coisas, no palavras., que o mesmo no tem aqui a conotao usual de fbula, lenda Mito se distingue de lenda, fbula, alegoria e parbola. Lenda uma narrativa de cunho, as mais da vezes, edificante, composta para ser lida (provm do latim legenda, o que deve ser lido) ou narrada em pblico e que tem por alicerce o histrico, embora deformado. Fbula uma pequena narrativa de carter puramente imaginrio, que visa a transmitir um ensinamento terico ou moral. Parbola, na definio de Monique Augras, em A dimenso simblica, Petrpolis, Vozes, 1980, p.15, um mito elaborado de maneira intencional. Tem, antes do mais, um carter didtico. Os Evangelhos evidenciam o carter didtico da parbola, que tende a criar um simbolismo para explicar princpios religiosos, consoante a mesma autora. Alegoria, etimologicamente dizer outra coisa, uma fico que representa um objeto para dar idia de outro ou, mais profundamente, um processo mental que consiste em simbolizar como ser divino, humano ou animal uma ao ou qualidade., inveno, fico, mas a acepo que lhe atribuam e ainda atribuem as sociedades arcaicas, as impropriamente denominadas culturas primitivas, onde mito o relato de um acontecimento ocorrido no tempo primordial, mediante a interveno de entes sobrenaturais. Em outros termos, mito, consoante Mircea Eliade, o relato de uma histria verdadeira, ocorrida nos tempos dos princpios, illo tempre, quando, com a interferncia de entes sobrenaturais, uma realidade passou a existir, seja uma realidade total, o cosmo, ou to-somente um fragmento, um monte, uma pedra, uma ilha, uma espcie animal ou vegetal, um comportamento humano. Mito , pois, a narrativa de uma criao: conta-nos de que modo algo, que no era, comeou a ser.Em sntese:MITOhistria verdadeira ocorrida no tempo primordialNova realidade: cosmoantropofania (total ou parcial)Interveno de entes sobrenaturaisDe outro lado, o mito sempre uma representao coletiva, transmitida atravs de vrias geraes e que relata uma explicao do mundo. Mito , por conseguinte, a parole, a palavra revelada, o dito. E, desse modo, se o mito pode se exprimir ao nvel da linguagem, ele , antes de tudo, uma palavra que circunscreve e fixa um acontecimento DER LEEUW, Van. L'Homme Primitif et la Religion. Paris, AIcan, 1940, p. 131.. Maurice Leenhardt precisa ainda mais o conceito: O mito sentido e vivido antes de ser inteligido e formulado.Mito a palavra, a imagem, o gesto, que circunscreve o acontecimento no corao do homem, emotivo como uma criana, antes de fixar-se como narrativa LEENHARDT, Maurice. Do Komo. Paris N.R.F., 1947, p. 247..O mito expressa o mundo e a realidade humana, mas cuja essncia efetivamente uma representao coletiva, que chegou at ns atravs de vrias geraes. E, na medida em que pretende explicar o mundo e o homem, isto , a complexidade do real, o mito no pode ser lgico: ao revs, ilgico e irracional. Abre-se como uma janela a todos os ventos( presta-se a todas as interpretaes. Decifrar o mito , pois, decifrar-se. E, como afirma Roland Barthes, o mito no pode, consequentemente, ser um objeto, um conceito ou uma idia: ele um modo de significao, uma forma BARTHES, Roland. Mythologies. Paris, Seuil, 1970, p. 130.. Assim, no se h de definir o mito pelo objeto de sua mensagem, mas pelo modo como a profere.2 bem verdade que a sociedade industrial usa o mito como expresso de fantasia, de mentiras, da mitomania, mas no este o sentido que hodiernamente se lhe atribui.O mesmo Roland Barthes, alis, procurou reduzir, embora significativamente, o conceito de mito, apresentando-o como qualquer forma substituvel de uma verdade. Uma verdade que esconde outra verdade. Talvez fosse mais exato defini-lo como uma verdade profunda de nossa mente. que poucos se do ao trabalho de verificar a verdade que existe no mito, buscando apenas a iluso que o mesmo contm. Muitos vem no mito to-somente os significantes, isto , a parte concreta do signo. mister ir alm das aparncias e buscar-lhe os significados, quer dizer, a parte abstrata, o sentido profundo.Talvez se pudesse definir mito, dentro do conceito de Carl Gustav Jung, como a conscientizao dos arqutipos do inconsciente coletivo, quer dizer, um elo entre o consciente e o inconsciente coletivo, bem como as formas atravs das quais o inconsciente se manifesta.Compreende-se por inconsciente coletivo a herana das vivncias das geraes anteriores. Desse modo, o inconsciente coletivo expressaria a identidade de todos os homens, seja qual for a poca e o lugar onde tenham vivido.Arqutipo, do grego arkhtypos, etimologicamente, significa modelo primitivo, idias inatas. Como contedo do inconsciente coletivo foi empregado pela primeira vez por Jung. No mito, esses contedos remontam a uma tradio, cuja idade impossvel determinar. Pertencem a um mundo do passado, primitivo, cujas exigncias espirituais so semelhantes s que se observam entre culturas primitivas ainda existentes. Normalmente, ou didaticamente, se distinguem dois tipos de imagens:a) imagens (includos os sonhos) de carter pessoal, que remontam a experincias pessoais esquecidas ou reprimidas, que podem ser explicadas pela anamnese individual; b) imagens (includos os sonhos) de carter impessoal, que no podem ser incorporados histria individual. Correspondem a certos elementos coletivos: so hereditrias.A palavra textual de Jung ilustra melhor o que se exps: Os contedos do inconsciente pessoal so aquisies da existncia individual, ao passo que os contedos do inconsciente coletivo so arqutipos que existem sempre e a priori JUNG, C.G- Aion - Estudos sobre o Simbolismo do Si-mesmo. Traduo de Dom Mateus Ramalho Rocha, O-S-B- Petrpclis, Vozes, 1982, p. 6..Embora se tenha que admitir a importncia da tradio e da disperso por migraes, casos h e muito numerosos em que essas imagens pressupem uma camada psquica coletiva: o inconsciente coletivo Veja-se, para maiores esclarecimentos, a obra de C-G- Jung e Ch. Kernyi, Introduction l'Essence de la Mytbologie- Paris, Payot, 1953, p. 95sqq.. Mas, como este no verbal, quer dizer, no podendo o inconsciente se manifestar de forma conceitual, verbal, ele o faz atravs de smbolos. Atente-se para a etimologia de smbolo, do grego smbolon, do verbo symbllein, lanar com, arremessar ao mesmo tempo, com-jogar. De incio, smbolo era um sinal de reconhecimento: um objeto dividido em duas partes, cujo ajuste, confronto, permitia aos portadores de cada uma das partes se reconhecerem. O smbolo , pois, a expresso de um conceito de equivalncia.Assim, para se atingir o mito, que se expressa por smbolos, preciso fazer uma equivalncia, uma com-jugao, uma re-unio, porque, se o signo sempre menor do que o conceito que representa, o smbolo representa sempre mais do que seu significado evidente e imediato.Em sntese, os mitos so a linguagem imagstica dos princpios. Traduzem a origem de uma instituio, de um hbito, a lgica de uma gesta, a economia de um encontro.Na expresso de Goethe, os mitos so as relaes permanentes da vida.Se mito , pois, uma representao coletiva, transmitida atravs de vrias geraes e que relata uma explicao do mundo, ento o que mitologia?Se mitologema a soma dos elementos antigos transmitidos pela tradio e mitema as unidades constitutivas desses elementos, mitologia o movimento desse material: algo de estvel e mutvel simultaneamente, sujeito, portanto, a transformaes. Do ponto de vista etimolgico, mitologia o estudo dos mitos, concebidos como histria verdadeira.3Quanto religio, do latim religione, a palavra possivelmente se prende ao verbo religare, ao de ligar, o que parece comprovado pela imagem do grande poeta latino Tito Lucrcio Caro (De Reram Natura, I, 932) : Religionum animum nodis exsoluere pergo - esforo-me por libertar o esprito dos ns das supersties - onde o poeta epicurista joga, como est claro, com as palavras religio e nodus, religio (ligao) e n.Religio pode, assim, ser definida como o conjunto de atitudes e atos pelos quais o homem se prende, se liga ao divino ou manifesta sua dependncia em relao a seres invisveis tidos como sobrenaturais. Tomando-se o vocbulo num sentido mais estrito, pode-se dizer que a religio para os antigos a reatualizao e a ritualizao do mito. O rito possui, no dizer de Georges Gusdorf, o poder de suscitar ou, ao menos, de reafirmar o mito GUSDORF, Georges. Op. cit., p.24..Atravs do rito, o homem se incorpora ao mito, beneficiando-se de todas as foras e energias que jorraram nas origens. A ao ritual realiza no imediato uma transcendncia vivida. O rito toma, nesse caso, o sentido de uma ao essencial e primordial atravs da referncia que se estabelece do profano ao sagrado GUSDORF, Georges. Op. cit-, p. 25.. Em resumo: o rito a prxis do mito. o mito em ao. O mito rememora, o rito comemora.Rememorando os mitos, reatualizando-os, renovando-os por meio de certos rituais, o homem torna-se apto a repetir o que os deuses e os heris fizeram nas origens, porque conhecer os mitos aprender o segredo da origem das coisas. E o rito pelo qual se exprime (o mito) reatualiza aquilo que ritualizado: re-criao, queda, redeno LAGENEST, J-P- Barruel de Elementos de Sociologia da Religio Petrpclis Vozes1976 p. 25. ' '. E conhecer a origem das coisas - de um objeto, de um nome, de um animal ou planta - equivale a adquirir sobre as mesmas um poder mgico, graas ao qual possvel domin-las, multiplic-las ou reproduzi-las vontade ELIADE, Mircea. Mito e Realidade. Traduo de Pola Civelli So Paulo Ed Perspectiva, 1972, p, 19.. Esse retorno s origens, por meio do rito, de suma importncia, porque voltar s origens readquirir as foras que jorraram nessas mesmas origens.No em vo que na Idade Mdia muitos cronistas comeavam suas histrias com a origem do mundo. A finalidade era recuperar o tempo forte, o tempo primordial e as bnos que jorraram illo tempre.Alm do mais, o rito, reiterando o mito, aponta o caminho, oferece um modelo exemplar, colocando o homem na contemporaneidade do sagrado. o que nos diz, com sua autoridade, Mircea Eliade: Um objeto ou um ato no se tornam reais, a no ser na medida em que repetem um arqutipo. Assim a realidade se adquire exclusivamente pela repetio ou participao; tudo que no possui um modelo exemplar vazio de sentido, isto , carece de realidadeEliade, Mircea. Citado por Georges Gusdof. Op. cit., p.26.O rito, que o aspecto litrgico do mito, transforma a palavra em verbo, sem o que ela apenas lenda, legenda, o que deve ser lido e no mais proferido.4 idia de reiterao prende-se a idia de tempo. O mundo transcendente dos deuses e heris religiosamente acessvel e reatualizvel, exatamente porque o homem das culturas primitivas no aceita a irreversibilidade do tempo: o rito abole o tempo profano e recupera o tempo sagrado do mito. que, enquanto o tempo profano, cronolgico, linear e, por isso mesmo, irreversvel (pode-se comemorar uma data histrica, mas no faz-la voltar no tempo),o tempo mtico, ritualizado, circular, voltando sempre sobre si mesmo. precisamente essa reversibilidade que liberta o homem do peso do tempo morto, dando-lhe a segurana de que ele capaz de abolir o passado, de recomear sua vida e recriar seu mundo. O profano o tempo da vida; o sagrado, o tempo da eternidade.J.B. Barruel de Lagenest tem uma pgina luminosa acerca da dicotomia do profano e do sagrado. Para o telogo em pauta, o profano e o sagrado podem ser enfocados subjetiva e objetivamente: Se considerarmos a experincia sensvel como o elemento mais importante da atitude religiosa, a percepo do sagrado (...) ser valor determinante da vida profunda de um indivduo ou de um grupo. Diante da divindade a criatura s se pode sentir fraca, incapaz, totalmente dependente.Esse sentimento se transforma em instrumento de compreenso, pois torna aquele que o vive capaz de descobrir, como que por intuio, o eterno no transitrio, o infinito no finito, o absoluto atravs do relativo. O sagrado , assim, o sentimento religioso que aflora.No entanto, tambm possvel ver no sagrado um modo de ser independente do observador. Na medida em que o sobrenatural aflora atravs do natural, no mais o sentimento que cria o carter sagrado, e sim o carter sagrado, preexistente, que provoca o sentimento. Deste ponto de vista, no h soluo de continuidade entre a manifestao da divindade atravs de uma pedra, de uma rvore, de um animal ou de um homem consagrados. Nesse caso, nem apedra, nem a rvore, nem o animal, nem o homem so sagrados e sim aquilo que revelam: a hierofania faz que o objeto se torne outra coisa, embora permanea o mesmo (...). Um objeto ou uma pessoa no so apenas aquilo que. se v; so sempre sacramento', sinal sensvel de outra coisa; e, por isso mesmo, permitem o acesso ao sagrado e a comunho com ele LAGENEST, J-P- Barmel de. Op. cit., p. 17sq..Nada mais apropriado para encerrar este captulo que as palavras de Bronislav Malinowski, o grande estudioso dos costumes indgenas das Ilhas Trobriand, na Melansia. Procura mostrar o etnlogo que a conscincia mtica, embora rejeitada no mundo moderno, ainda est viva e atuante nas civilizaes denominadas primitivas: O mito, quando estudado ao vivo, no uma explicao destinada a satisfazer a uma curiosidade cientfica, mas uma narrativa que faz reviver uma realidade primeva, que satisfaz a profundas necessidades religiosas, aspiraes morais, a presses e a imperativos de ordem social e mesmo a exigncias prticas. Nas civilizaes primitivas, o mito desempenha uma funo indispensvel: ele exprime, exalta e codifica a crena; salvaguarda e impe os princpios morais; garante a eficcia do ritual e oferece regras prticas para a orientao do homem. O mito um ingrediente vital da civilizao humana; longe de ser uma fabulao v, ele , ao contrrio, uma realidade viva, qual se recorre incessantemente; no , absolutamente, uma teoria abstrata ou uma fantasia artstica, mas uma verdadeira codificao da religio primitiva e da sabedoria prtica MALINOWSKI, Bronislav. Citado por Mircea Eliade. Op. cit., p. 23..