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Mixordia No Picadeiro Walter de Sousa Junior

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    UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    ESCOLA DE COMUNICAES E ARTES

    Mixrdia no picadeiro

    Circo, circo-teatro e circularidade cultural

    na So Paulo das dcadas de 1930 a 1970

    Walter de Sousa Junior

    Tese apresentada ao Departamento de Comunicaes e Artes

    da Escola de Comunicaes e Artes da Universidade de So

    Paulo para defesa de doutorado na rea de concentrao

    Comunicao, linha de pesquisa Comunicao e Cultura, sob

    orientao da Profa. Dra. Maria Cristina Costa.

    So Paulo

    2008

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    Banca examinadora:

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    Resumo

    O circo-teatro, presente na paisagem urbana de So Paulo em todo o sculo

    XX, constituiu-se em espetculo popular baseado na hibridizao cultural,

    com elementos da cultura erudita e da cultura de massa. Por sua vez, essas

    duas se apropriaram do discurso circense, num processo evidente de circu-

    laridade cultural.

    Abstract

    The circus-theater, that could be seen at So Paulos urban landscape throughout twentieth century, constituted itself in a form of popular per-

    formance based in the cultural hybridization, with elements from learned

    culture and mass culture. In turn, both of these cultures assimilated the cir-

    cus discourse, in an unequivocal process of cultural circularity.

    Palavras-chave

    Circo-teatro, So Paulo, cultura popular, cultura erudita, cultura de massa,

    hibridizao, circularidade cultural.

    Key words

    Circus-theater, So Paulo, popular culture, learned culture, mass culture,

    hybridization, cultural circularity.

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    Objetivos

    Averiguar a dramaturgia circense, seu processo de construo hbrida, e sua

    apropriao pelos discursos erudito e massivo, a partir de dois estudos de

    caso.

    Mtodos

    Anlise dos processos de censura presentes no Arquivo Miroel Silveira da

    Escola de Comunicaes e Artes/USP, contextualizao histrica e cultu-

    ral, entrevistas com artistas remanescentes.

    Resultados

    Confirmao da hibridizao na formao das matrizes popu-

    lar/erudita/massiva e da transferncia do discurso circense do picadeiro pa-

    ra os crculos eruditos e para a televiso.

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    Agradecimentos

    Profa. Dra. Maria Cristina Castilho Costa, minha orientadora, por acreditar

    que a dramaturgia circense presente no Arquivo Miroel Silveira poderia emergir numa

    pesquisa acadmica. banca de qualificao, que partilhou da mesma crena, da qual

    participaram a Profa. Dra. Roseli Fgaro, da ECA/USP e o Prof. Dr. Mrio Bolognesi,

    da UNESP.

    Aos professores das disciplinas cursadas, que me ajudaram a desenhar o mapa

    noturno da pesquisa: Prof. Dr. Clvis Garcia, Profa. Dra. Ecla Bosi, Profa. Dra. Maria

    Inez Machado Pinto e Prof. Dr. Jess Martn-Barbero.

    s pessoas envolvidas no Arquivo Miroel Silveira, em particular Jacqueline Pi-

    than dos Santos, e Augusto Veloso-Pampolha, por me ajudar a desatar um n que me

    ocupava h trs anos. Analucia Viviani Recine, da Biblioteca da Escola de Comuni-

    caes e Artes, pelo seu apoio inicial, que possibilitou a construo do ponto de partida

    da pesquisa.

    Aos entrevistados, que me acolheram e abriram suas vidas para um curioso pes-

    quisador: Roger Avanzi (Palhao Picolino II), Waldemar Seyssel Filho (primognito de

    Arrelia), Franco Alves Monteiro (Palhao Xuxu), Iara Fortuna (filha de Jos Fortuna) e

    Elclides Fortuna (o Pitangueira, irmo e parceiro de Jos Fortuna).

    CNPq, por possibilitar o meu aperfeioamento profissional e o desenvolvi-

    mento deste trabalho com seu imprescindvel apoio financeiro.

    Daniele Pimenta, sempre muito atenciosa em esclarecer dvidas sobre o uni-

    verso circense, sobrinha de Antenor Pimenta, autor de peas de circo-teatro. Ermnia

    Silva, pela rpida e esclarecedora conversa que tivemos durante um evento circense.

    Aos amigos que sempre acreditaram no trabalho: o fotgrafo Paulo Pepe, que

    registrou em imagens as entrevistas realizadas; Cristiano Eloi, pelo incentivo bibliogr-

    fico e Newton Eichenberg, que fez a cuidadosa reviso deste trabalho.

    Enfim, minha famlia e minha filha, Beatriz Pithan dos Santos Sousa, a quem

    a minha pesquisa foi muito vantajosa para sua infncia, pois pde freqentar espetcu-

    los de circo e se divertir com esse gnero de entretenimento numa poca em que ele

    experimenta uma nova tentativa de renascimento, ancorada no sucesso do circo interna-

    cional.

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    Sumrio

    Introduo

    Circo-teatro: memria, censura e hibridismo 8

    Captulo 1

    Os mastros: cultura popular e cultura de massa 17

    Captulo 2

    O terreno: a metrpole sinfnica, cenrios e personagens 42

    Captulo 3

    A arquibancada: mestiagens culturais 64

    Captulo 4

    A lona: o circo-teatro e seu repertrio hbrido 97

    Captulo 5

    Piolin: entre o picadeiro e os intelectuais 144

    Captulo 6

    Arrelia: entre a comdia e a televiso 167

    Concluso 193

    Bibliografia 197

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    Anexos (CD)

    Entrevistas (transcrio):

    Waldemar Seyssel Filho

    Franco Alves Monteiro (Palhao Xuxu)

    Roger Avanzi (Palhao Picolino II)

    Iara Fortuna

    Elclides Fortuna (Pitangueira)

    Lista de circos-teatros e pavilhes que atuaram em So Paulo entre

    1928 e 1968 segundo os processos que passaram pelo Departamento de

    Diverses Pblicas (DDP), que constam do Arquivo Miroel Silveira.

    Lista das peas de circo-teatro por ano de pedido de vistas do Depar-

    tamento de Diverses Pblicas (DDP) entre 1928 e 1967, presentes no

    Arquivo Miroel Silveira.

  • 8

    Introduo

    Circo-teatro: memria, censura e hibridismo

    Quase apagado da memria cultural de So Paulo, seja como forma de entrete-

    nimento ou como referncia para a construo do discurso dos meios de comunicao

    de massa, o circo-teatro, expresso cnica popular, deixa um legado que atravessa o

    sculo XX, num tempo em que o centro e a periferia da capital ainda estavam dispon-

    veis para abrigar lonas e picadeiros e que atores e autores, em sua formao orgnica,

    criavam sua arte a partir de outras referncias, manuseando-as com seus saberes circen-

    ses.

    Chega a ser um tanto paradoxal o fato de que o circo-teatro tenha boa parte de

    sua obra dramatrgica preservada por um arquivo do rgo responsvel pela censura

    dessas peas. Isso porque esse gnero de espetculo no foi ostensivamente perseguido,

    pois o foco principal da tesoura estatal estava direcionado a outros gneros teatrais,

    fossem eles mais elitizados, como o teatro poltico, ou mais populares, como o Teatro

    de Revista. O que no quer dizer que as peas de circo-teatro encenadas entre 1930 e

    1970 no tenham sofrido cortes e alguns poucos vetos. Essas peas se encontram entre

    os processos de censura estadual do Departamento de Diverses Pblicas (DDP), hoje

    reunidos no Arquivo Miroel Silveira, coordenado pela Profa. Dra. Maria Cristina Costa,

    da Escola de Comunicaes e Artes.

    Na primeira vez que tive contato com os processos do DDP, eles estavam enca-

    dernados em grossos tomos com capas azuis, todos empilhados numa estante de ferro

    numa pequena sala da biblioteca da Escola de Comunicaes e Artes. Logo que fui a-

    presentado ao arquivo, contaram-me que aquele estava sendo seu melhor refgio desde

    que o crtico, escritor, diretor de teatro e professor Miroel Silveira o salvou da fogueira,

    em 1988, depois da promulgao da nova Constituio, quando a censura prvia foi

    extinta. Miroel, que naquela altura era professor da Escola de Comunicaes e Artes da

    USP, conhecia bem o arquivo, pois foi com base nos processos de censura que pde

    estruturar sua tese de doutorado, A contribuio italiana ao teatro brasileiro 1895-

    1964, depois transformada em livro. Alis, outro grande paradoxo. A fogueira, smbolo

    da opresso inquisitorial e metfora muitas vezes usada para se referir aos meios autori-

    trios extremos de coibir e vigiar a produo cultural do Pas em quase toda a extenso

  • 9

    da sua histria poucas vezes o Brasil conseguiu se livrar de processos censrios e,

    mesmo agora, quando no existe mais a censura prvia, ela vive ameaando voltar ,

    quase foi o destino dos mais de seis mil processos do DDP. Miroel os salvou porque

    eram, alm de um retrato da produo teatral paulista dos quarenta anos que esse acervo

    cobre, uma fonte imensa de informaes passveis de serem transformadas em conhe-

    cimento. Assim, quando abri aleatoriamente o primeiro volume de processos, o acaso

    me mostrou um nome que se entranhava em minha memria e me remetia a modorren-

    tas tardes de domingo da minha infncia: Waldemar Seyssel. Eu sabia quem era aquele

    ilustre cavaleiro: o palhao Arrelia. E o que parecia um mar de possibilidades minha

    busca por um objeto de pesquisa, se resumiu ao tema que, dali para diante, me consu-

    miu os anos seguintes.

    Minha vida acadmica inclua duas pesquisas consecutivas sobre o universo da

    cultura popular. A primeira, que envolveu no s o perodo de um ano e meio do curso

    de Gesto de Processos Comunicacionais da ECA/USP, ento um curso de ps-

    graduao lato sensu (hoje se chama Gesto de Comunicao e de especializao),

    mais um total de sete anos, que envolveu um mergulho profundo no universo da msica

    caipira. Ou melhor, envolveu uma investigao sobre como a msica caipira se formou

    a partir da expresso folclrica paulista, sempre agregando influncias externas; como

    ela se confirmou como uma expresso popular, que fazia sucesso em disco e no rdio;

    e, na seqncia, como foi apropriada e transformada pela indstria cultural, agregando

    mudanas rtmicas a partir de influncias estrangeiras (guarnia paraguaia, rancheira

    mexicana, rock, country norte-americano), virando o que hoje conhecemos por msica

    sertaneja. O resultado est no livro Moda Inviolada Uma histria da msica caipira,

    editado em 20061.

    Antes mesmo de a pesquisa ter adquirido o formato de livro, uma outra j havia

    consumido, se menos tempo, mais profundidade terica, embora seu objeto aparentasse

    menor complexidade e um recorte menos extenso. Minha dissertao de mestrado se

    centrou na contaminao de gneros na grade televisiva, particularmente na grade da

    Rede Globo. O Jornal Nacional, noticirio enxertado no final dos anos 1960 entre tele-

    novelas que iam conquistando a audincia e consolidando a hegemonia da emissora,

    nasceu com um tom oficial do Regime Militar e virou sinnimo de verdade se o

    noticirio deu, ento foi verdade at que o modelo perdeu fora a partir da redemocra-

    1 SOUSA, Walter de. Moda inviolada Uma histria da msica caipira. Editora Quiron, So Paulo,

    2006.

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    tizao do Pas na dcada de 1980. A sada para reconquistar a audincia foi promover

    uma contaminao controlada de gneros, de modo que a base estrutural das notcias

    passou a ser aquela que dava a tnica da grade do horrio nobre da emissora: o melo-

    drama. Portanto, tratou-se de uma pesquisa em que a cultura popular novamente se so-

    bressaa.

    O contato ocasional com o nome de Waldemar Seyssel e o material que despon-

    tou minha frente sobre ele me arrastava mais uma vez ao universo do popular, embora

    o circo seja um caso bem mais complexo, que envolve hibridismos culturais, circulari-

    dades e cujo espetculo se desenvolve num desinibido espao de apropriaes simbli-

    cas. como se o picadeiro fosse um verdadeiro campo de significados onde os arquti-

    pos humanos danassem diante dos olhos da alma humana, como definiu o prprio Mi-

    roel Silveira num artigo antolgico sobre o circo2.

    O desafio, portanto, se mostrava maior. O processo cultural dentro dos limites

    do picadeiro demonstra a existncia de uma dinmica no-linear de apropriao da cul-

    tura popular e da cultura de massa, de modo que tal processo se revelar menos resis-

    tente em face do que ocorre, por exemplo, em outras manifestaes populares. Ao

    mesmo tempo, e a partir desse processo, o circo-teatro criado para um pblico emer-

    gente diante de um mercado cultural tambm emergente. Mas a caracterstica mais sub-

    versiva nisso tudo que ambos, circo-teatro e pblico popular perfazem o processo

    conjuntamente, pois, ao contrrio do contrato entre espetculo e assistncia firmado no

    teatro convencional, no circo-teatro vale a interferncia do espectador no espetculo, de

    modo que o artista est preparado para incorporar prontamente na cena as interferncias

    propostas. Ouvido para a pesquisa, o ator circense Pitangueira, tambm msico caipira,

    que atuou em dupla com o irmo Jos Fortuna, faz uma comparao interessante: O

    artista como o poltico: ele busca entender o povo para dar aquilo que ele quer. A di-

    ferena que no mentimos para o povo.

    Portanto, o processo cultural do circo-teatro ocorre a partir de um campo simb-

    lico em que interagem cultura popular, cultura erudita e cultura de massa, num amplo

    jogo de apropriaes e negociaes, tenses e distenses, confrontos e consensos.

    Mesmo assim, permanece a idia de processo, pois o circo-teatro, a priori, no deixa de

    2 SILVEIRA, Miroel. O circo Espao arquetipal convergente in O circo, catlogo da exposio reali-

    zada no Pao das Artes em 1978, Secretaria da Cultura, Cincia e Tecnologia do Estado de So Paulo,

    So Paulo, 1978.

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    ser cultura popular que se referencia no teatro erudito e que apropriado pela cultura de

    massas.

    Depois de ter tomado a deciso de transformar o circo-teatro em objeto de estu-

    do que fui perceber a dimenso do recorte que o gnero representa dentro do AMS.

    Em primeiro lugar, se o arquivo permitia uma reconstituio histrica da cena paulista,

    e se 1.088 processos levavam a rubrica do gnero circo-teatro, eu tinha a oportunidade

    mpar de reconstituir a importncia dessa expresso cultural no perodo de sua maior

    efervescncia entre as dcadas de 1930 e 1970 e identificar qual a sua contribuio

    para a formalizao discursiva da televiso, que chegou ao Brasil em 1950. Ou seja,

    conseguiria reconstituir o caminho percorrido pela serragem do picadeiro at alcanar o

    estdio de televiso e, assim, as salas de estar dos brasileiros. Em segundo lugar, outra

    possibilidade, menos evidente primeira vista, tambm se revelava: seria possvel es-

    quadrinhar os pontos de interseo entre a cultura popular, a cultura erudita e a cultura

    de massa no espao exguo e circular do picadeiro. Esse espao de mediao e de mi-

    xrdia, como bem sabem aqueles que dele partilham era o laboratrio perfeito, mesmo

    que inconsciente, para a construo de sentido e do discurso da indstria cultural.

    Desde que o processo de estudo sistemtico do AMS teve incio, em 2002, com

    um projeto de pesquisa que contou com o auxlio da Fundao de Amparo Pesquisa do

    Estado de So Paulo (Fapesp), intitulado A censura em cena, muita coisa aconteceu at

    que processos do DDP passassem a constituir uma base de dados sobre a histria do

    teatro e da censura em So Paulo. Ele se converteu no Projeto Temtico A cena paulista

    um estudo da produo cultural de So Paulo de 1930 a 1970 a partir do Arquivo

    Miroel Silveira, que tambm conta com o apoio da Fapesp, e que comporta quatro eixos

    de pesquisa:

    A censura em cena Organizao e anlise dos processos de censura

    teatral do Departamento de Diverses Pblicas do Estado de So Paulo

    (DDP-SP).

    O poder e a fala na cena paulista Voltado para o estudo das peas

    que apresentam trechos, expresses ou palavras censuradas e em que

    possvel apreender as formaes discursivas.

    Na cena paulista, o amador Estudo do teatro amador em trs de suas

    vertentes: os grupos filodramticos, ligados a sindicatos operrios, os

    grupos formados por associaes de imigrantes (desenvolvidos princi-

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    palmente nos anos 1930 e 1940), e o teatro de aspirantes carreira pro-

    fissional, organizado nos anos 1950 pelas universidades e escolas de ar-

    tes dramticas;

    Do palco para as telas Estudo dos documentos do Arquivo Miroel

    Silveira e reconstituio do quadro poltico e social da poca, tanto em

    So Paulo como no restante do Pas.

    para esse ltimo eixo temtico que a presente pesquisa pretende contribuir. Ou

    seja, ela pretende localizar o circo-teatro no contexto das tendncias culturais alinhadas

    com a circularidade promovida pelo gnero dentro da cultura paulista, assim como ava-

    liar a sua contribuio para o processo de elaborar o discurso massivo da televiso. Ca-

    be ainda salientar a ruptura epistemolgica proposta por este estudo, uma vez que boa

    parte das pesquisas efetivadas at o momento se exime de situar o circo e muito me-

    nos o circo-teatro no processo cultural de formao da cultura de massa, restringindo-

    se os enfoques s apropriaes promovidas em relao aos discursos radiofnicos, ci-

    nematogrficos e teatrais (tanto do teatro profissional como do Teatro de Revista).

    A base da pesquisa

    Os anos de atividade do DDP no Estado de So Paulo, a princpio brao censor

    do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), de Getlio Vargas, avanam alm

    do perodo varguista (1930-1945), atuando ativamente durante o perodo democrtico

    (1946-1963) que antecedeu o perodo militar (a partir de 1964), quando foi reoxigena-

    do, sendo extinto com o AI-5 (1968), quando o controle cultural passou a ser uma atri-

    buio federal. Entre 1928 e 1968, toda a produo teatral, nos mais diversos gneros,

    inclusive o circense, obedeceu ao rito de censura estabelecido como pressuposto bsico

    para a apresentao pblica de dramaturgia. Entretanto, a censura no se restringiu a

    esse perodo histrico nacional. Ela aparece como elemento de formao histrica,

    sempre amparada pela mo pesada do poder institudo, seja legtimo ou no, e sempre

    aquiescido por instituies sociais frgeis.

    A censura no Brasil no foi apenas uma prerrogativa do Estado. Foi um

    amplo processo de aliana entre o governo, a Igreja Catlica, os setores

    conservadores da sociedade e os da elite obscurantista para coibir o

    pensamento crtico e a livre expresso artstica. Reside aqui a dificul-

    dade em enfrentar o conflito e a diferena, uma convivncia que no

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    busque aplainar, escamotear, disfarar ou esconder as oposies e as

    divergncias.3

    Certamente, o circo-teatro no escapou desse processo. Embora de maneira me-

    nos enftica que nos demais gneros teatrais entre eles o Teatro de Revista, que traz

    em sua estrutura o humor poltico e o nu, e o teatro profissional, que, a partir do final da

    dcada de 1940, com a criao do Teatro Brasileiro de Comdia (TBC), se torna mais

    renovador em estrutura e espetculo , o circo-teatro obrigado a cumprir o rito bsico

    da censura prvia, como todas as criaes cnicas do perodo de atuao do DDP, e que

    tambm define o recorte desta pesquisa.

    O rito de censura envolvia o envio do texto a ser encenado, pelo autor ou pelo

    produtor do espetculo, para as vistas prvias dos censores. No DDP, esse texto era

    distribudo pelo diretor a um censor designado, que o lia e deliberava sobre os cortes a

    serem feitos. O texto era devolvido ao produtor ou autor e um ensaio era marcado, ao

    qual comparecia o censor, que, mais uma vez, imbudo do poder de corte, designava as

    mudanas a serem feitas no espetculo pronto. Cumprido o rito, a deciso poderia ser

    uma das seguintes: liberada integralmente para qualquer idade; liberada para maiores de

    18 anos, o que, no caso do circo, era praticamente um veto, pois no h limite de idade

    para o espetculo circense completo; parcialmente liberada, com cortes e modificaes;

    e vetada, quando sua encenao era proibida4. No caso do circo, de 1.088 processos,

    constam no Arquivo Miroel Silveira somente dez peas vetadas5. Quanto aos cortes de

    trechos e palavras, seguiam os seguintes motivos, apontados por Cristina Costa6: 1.

    Censura moral (corte de palavres, cenas atentatrias ao pudor, adultrio feminino,

    referncias a atos sexuais, etc.); 2. Censura poltica (insinuaes a respeito do Pas, da

    ordem social e poltica, e referncias a pases considerados inimigos); 3. Censura reli-

    giosa (referncias Igreja e aos santos); 4. Censura social (temas relacionados a ques-

    tes sociais polmicas).

    3 COSTA, Cristina.Censura em cena Teatro e censura no Brasil. Edusp, Fapesp e Imprensa Oficial do

    Estado de So Paulo, So Paulo, 2006, p. 253. 4 Idem, op. cit., pp. 212 e 213.

    5 So elas: Gaspar, o serralheiro, de Baptista Machado, Circo Alcebades, 1941; As duas Anglicas, de

    Abelardo Pinto, Circo Irmos Queirolo, 1942; Ladra: alta comdia em 3 atos, de Silvino Lopes, Circo

    Teatro Batuta, 1942; Defesa passiva, Agenor Gomes, Circo Teatro Piolin, 1943; E o cu uniu duas almas,

    Helen Fantucci Neto, Circo Teatro Oito Irmos Mello, 1947 (por ser um plgio de E o cu uniu dois co-

    raes, de Antenor Pimenta); Revelao fatal, de Agenor Gomes, Circo Teatro Oito Irmos Mello, 1947;

    Nos degraus da perdio, Horcio Mello e Nancy Tognolli Mello, Circo Teatro Oito Irmos Mello, 1950;

    Lampeo, o rei do cangao, de Paulo Bonetti, Circo Teatro Delback, 1951; Deixa correr o marfim, de

    Armando Braga, Circo Teatro Piolin, 1953 (por ser plgio da pea portuguesa O tio padre); Joo, o corta-

    mar, de Antnio Cndido de Oliveira, Circo Teatro Simes, 1955. 6 COSTA, Cristina. Op. cit., p. 232.

  • 14

    Quanto s palavras censuradas, no muito raramente, no se obedecia aos cortes

    nas encenaes, boa parte delas no visitadas pelos censores aps a devoluo da pea

    para a apresentao, como atesta o circense Eulo de Almeida, do Circo Franois, que

    teve como principal espetculo a pea Ben-Hur, adaptao do livro homnimo feita por

    Hilrio de Almeida. Os censores vetaram as palavras Roma e romanos, pois a pea

    seria encenada em pleno perodo de confronto mundial e a Itlia se alinhava com as

    foras do Eixo. Passava-se por cima, claro. Tinha que explicar ao pblico, ou no

    ? E no havia nada de mal.7

    De fato, a perseguio poltica durante as ditaduras de Vargas e Militar no foi

    to perceptvel queles que faziam o circo-teatro e aos que a ele assistiam. Se fala em

    ditadura militar... Ns no vimos nada disso, pois estvamos no circo!, afirma o ator

    Pitangueira. No entanto, ela perceptvel quando se avalia, de maneira mais precisa, os

    processos do DDP.

    No que se refere ao circo-teatro, o Arquivo Miroel Silveira (AMS) apresenta o

    seguinte volume de circos e peas presentes nos processos de censura junto ao DDP

    entre 1928 e 1967:

    Ano Circos Peas Ano Circos Peas Ano Circos Peas Ano Circos Peas

    1928 0 8 1938 3 5 1948 31 323 1958 1 18

    1929 0 2 1939 4 7 1949 31 246 1959 5 55

    1930 0 2 1940 0 3 1950 19 149 1960 2 18

    1931 2 23 1941 8 19 1951 16 153 1961 1 49

    1932 0 13 1942 15 131 1952 7 103 1962 1 33

    1933 4 29 1943 29 227 1953 10 106 1963 0 9

    1934 12 40 1944 33 284 1954 18 139 1964 1 9

    1935 3 13 1945 30 220 1955 7 93 1965 0 4

    1936 5 12 1946 23 218 1956 9 72 1966 0 2

    1937 3 11 1947 37 335 1957 3 41 1967 0 1

    Fonte: Base de dados do Arquivo Miroel Silveira.

    A base das peas originais e o suporte terico bibliogrfico foram complemen-

    tados com a pesquisa emprica realizada a partir de entrevistas livres com personalida-

    des-chave do perodo analisado:

    1. Roger Avanzi Palhao Picolino II, do Circo Nerino, 84 anos.

    7 Entrevista de Eulo de Almeida in COSTA, Cristina. Comunicao e censura O circo-teatro na produ-

    o cultural paulista de 1930 a 1970, Terceira Margem, So Paulo, 2006, p. 165.

  • 15

    2. Franco Alves Monteiro Palhao Xuxu, do Circo Aloma e do Cirquinho

    Bombril (TV Tupi, 1950), ltimo parceiro de Piolin, 69 anos.

    3. Waldemar Seyssel Filho Filho de Arrelia, do Circo Irmos Seyssel e do

    Cirquinho do Arrelia (TV Record, 1953), 73 anos.

    4. Elclides Fortuna Pitangueira, ator e intrprete de msica caipira, irmo de

    Jos Fortuna, compositor e autor de peas de circo-teatro, integrante do gru-

    po circense Os Maracans, 80 anos.

    5. Iara Fortuna Filha de Jos Fortuna, produtora musical, 51 anos.

    Mistura de gneros

    A listagem das peas de circo-teatro que constam do AMS revela a mistura de

    gneros e o espao cultural democrtico que eram os palcos e os picadeiros. Por eles

    transitavam os movimentos teatrais dos sculos XIX e XX, como a influncia portugue-

    sa e a gerao do Teatro Trianon (1916-1921), alm de textos de autores brasileiros do

    sculo XIX, especialmente Martins Pena e Arthur de Azevedo. O grande e prolongado

    sucesso do Teatro de Revista, com suas ondulaes peridicas, tambm esteve presente

    nos circos, a ponto de a sua interao gerar um subgnero, a revista circense. Por conta

    da tradio teatral e revisteira com temtica regional-caipira, surge ainda um espetculo

    circense feito a partir da adaptao de sagas hericas cantadas em modas-de-viola para

    os palcos e os picadeiros.

    Ttulos cinematogrficos de sucesso foram transladados para o circo usando

    uma terminologia do meio circense , da mesma maneira que foi criada uma profuso

    de pardias de pelculas.

    As peas de circo-teatro, assim como as entradas dos palhaos, tambm se inspi-

    raram no humor radiofnico, com a vantagem de agregarem a ele a expresso cnica,

    fsica, dos atores. Diversos tipos humorsticos do rdio ganharam corpo e alma sob a

    lona, num jogo de referncias em que o espectador, capaz de identific-los com facili-

    dade, se entretinha sem que a fonte original do humor fosse comprometida. Alm disso,

    passou a ser comum artistas do rdio se apresentarem no picadeiro, prtica que se tor-

    nou mais corriqueira a partir da dcada de 1960, quando a televiso passou a exigir dos

    msicos tticas mais diretas de divulgao, como a apresentao prxima do pblico.

    Tambm popularizado pelo rdio, o futebol virou tema das peas de circo-teatro,

    assim como o noticirio da guerra, que refletiu o avano das tcnicas jornalsticas im-

  • 16

    pressas e de rdio. Por fim, ttulos da literatura europia e nacional aparecem entre os

    nomes das peas encenadas no circo.

    Essa rpida deteco de influncias aponta para o fato de que o circo-teatro sur-

    ge na cena paulista como uma grande e prolfica fonte de entretenimento popular que se

    destaca por conseguir atrair e adaptar os temas, enredos, estruturas e semnticas de di-

    versos meios e eventos. Para isso, usa de deliberada liberdade ao empregar elementos

    culturais diversos para formalizar a sua prpria linguagem. Nesse processo, no encon-

    tra pudores nem mesmo para canibalizar a prpria linguagem circense, apropriando-se

    no s dos artistas que fazem a primeira parte, mas mesclando as suas habilidades s

    dos personagens que representam na segunda parte.

    Nesse sentido, o circo uma expresso que sintetiza, na circunferncia do pica-

    deiro, uma cidade que se moderniza e surge aqui mais um paradoxo, pois a mesma

    metrpole emergente empurra as lonas circenses para a periferia medida que se ex-

    pande: nele se produzem discursos que preparam um novo tipo de espectador, atento s

    misturas, homogeneizaes, trocas, tenses e hibridizaes, que reconhece os elemen-

    tos dessa mixrdia e, ao mesmo tempo, ri dela. Ao mesmo tempo em que abrevia o pro-

    cesso de tenso que permeia a troca simblica, o circo-teatro avana num processo

    tambm paradoxal: ele faz do hibridismo a sua matria-prima, mas por meio dele que

    ir ver diludo o seu prprio discurso cultural, at ser apropriado pela televiso. Uma

    matriz cultural que, num dado momento, por suas caractersticas intrnsecas, d subs-

    dios s apropriaes da cultura de massa, e esvazia-se enquanto expresso cnica.

    , enfim, esse espao de negociao simblica e esse jogo de mediaes que o

    circo-teatro torna efetivo no seu perodo ureo que esta pesquisa se prope a analisar:

    entre paradoxos e tenses culturais, ela pretende mostrar que o circo-teatro sempre ca-

    minhou, como um funmbulo, sobre o arame esticado entre os mastros da cultura popu-

    lar e da cultura urbano-massiva.

  • 17

    Captulo 1

    Os mastros: cultura popular e cultura de massa

    Uma pesquisa que tem por objeto o circo-teatro atuando em meio a uma socie-

    dade vida por mestiar culturas e linguagens exige, de incio, que se delineiem os dois

    mastros que amparam a lona do hibridismo, a qual, por sua vez, abriga o picadeiro, que

    encerra o campo de mediaes simblicas. Para isso, preciso partir simultaneamente

    de trs pontos, assinalados por Ermnia Silva como os elementos caractersticos do cir-

    co: o nomadismo, que faz o trnsito urbano-rural e popular-massivo, tornando-o um

    meio de leitura e expresso das novidades para os diversos pblicos; a estrutura famili-

    ar, que possibilita a transmisso oral dos saberes e prticas circenses, e que uma prti-

    ca de mediao, que agrega e integra discursos diferentes e utiliza o fazer artesanal para

    transmitir a leitura hbrida em sua essncia; e a habilidade para deglutir as demais ma-

    nifestaes (folclricas, populares, eruditas e massivas). Esses trs fios, esticados entre

    os dois mastros, o da cultura popular e o da cultura massiva, perfazem a trama da rede

    urdida pelo circo-teatro, e que ir amparar o circo enquanto espetculo para os diversos

    pblicos.

    O fato que essa prtica de hibridismo, seja ela ocasionada por presso de uma

    mestiagem cultural inata sociedade paulista, seja por um rito de sobrevivncia do

    espetculo, que precisa de pblico na arquibancada, tambm ocorre por uma condio

    histrico-social em cujo mbito o circo-teatro se desenvolve. Usando uma reflexo de

    Renato Ortiz, Canclini assinala que (...) no Brasil no se produz uma distino clara,

    como nas sociedades europias, entre a cultura artstica e o mercado massivo, nem suas

    contradies adotam uma forma to antagnica.8 onde comear a ser cavado o bu-

    raco em que sero encaixados os mastros a serem erguidos para o iamento da lona.

    Os primeiros indcios culturais percebidos na anlise do circo-teatro como mani-

    festao artstico-cultural na metrpole paulistana levam a deduzir que se trata de uma

    expresso da cultura popular. Afinal, ele se refere a um teatro feito por artistas no-

    profissionais e semiprofissionais sem ser amadores, pois encenam para obter ganhos

    8 ORTIZ, Renato. A moderna tradio brasileira. Brasiliense, So Paulo, 1988, pp. 23-28, in CANCLI-

    NI, Nestor Garcia. Op. cit., p. 68.

  • 18

    , novatos e com uma formao orgnica, aprendida de maneira pragmtica no seio da

    famlia circense. Outras caractersticas ligadas cultura popular nos levam concluso

    de que o circo-teatro uma manifestao dessa matriz cultural: o exerccio constante da

    improvisao nos espetculos, o uso de diferentes linguagens, o desempenho artstico

    em multifunes o artista que o palhao na primeira parte vira o gal na segunda ,

    e a encenao sem um preparo sistematizado, sem a tcnica das escolas teatrais.

    Por outro lado, a encenao, por vezes, faz uso do palco italiano elemento ca-

    racterstico de uma expresso teatral originada na cultura erudita europia e outras

    vezes feita em pleno picadeiro, espao popular por excelncia, cuja estrutura incorpo-

    ra elementos que vo desde as arenas gregas e romanas at a concepo do circo mam-

    bembe, e, deste, ao circo moderno, criado em 1773 por Philip Astley. Essas duas matri-

    zes europias palco e picadeiro chegam ao Pas um tanto dissociadas, mas aos pou-

    cos se aproximam, num processo tangvel de hibridismo cultural, especialmente porque

    ocorre numa circunstncia histrica em que um outro elemento se junta a esse fenme-

    no: o advento da cultura de massa. Temos, assim, um espetculo mambembe de origem

    popular e uma representao dramtica de origem erudita, os quais, associados, apre-

    sentam um discurso simblico dirigido a um pblico urbano com referncias da cultura

    massiva, composto por espectadores das classes mdias e populares.

    Cultura popular

    A discusso em torno de uma cultura popular remonta ao perodo pr-

    romntico, como assinala Renato Ortiz, passando a ser estimulada pela cultura erudita a

    partir da criao, em 1807, na Frana, da Academia cltica, que logo se transformaria

    na Sociedade dos Antiqurios da Frana, seguindo o nome da pioneira Sociedade

    dos Antiqurios, fundada na Inglaterra em 1718: A academia tinha como objetivo

    principal o estudo da lngua e das antiguidades celtas, mas ela tambm ir se ocupar dos

    costumes da vida popular, chegando inclusive a elaborar uma srie de questionrios que

    envia aos diversos departamentos franceses.9 O reconhecimento, por parte dos intelec-

    tuais europeus, de uma cultura praticada pelas classes populares desperta, a princpio,

    uma certa prtica colecionista, o que, desde o princpio, expressa um sentido de segre-

    gao.

    9 ORTIZ, Renato. Romnticos e folcloristas, So Paulo, Olho Dgua, 1992, p. 12.

  • 19

    Em diversos pases da Europa, comea a surgir um novo tipo de intelectual, o

    antiqurio, um colecionador e curioso incansvel, que no tem predileo alguma pelas

    coisas do povo. Freqentemente ele justifica seu interesse colecionador pelo amor s

    antiguidades, ou pelo gosto do bizarro.10 Ou seja, ele segue o esprito da poca. Mas

    o advento do Romantismo mudaria profundamente essa postura. Para alguns intelectu-

    ais, principalmente no final do sculo XVIII, o povo era interessante de uma certa for-

    ma extica; no incio do sculo XIX, em contraposio, havia um culto ao povo, no

    sentido de que os intelectuais se identificavam com ele e tentavam imit-lo.11

    O Romantismo foi uma resposta que surgiu no mbito cultural das profundas

    mudanas promovidas pelas revolues Francesa e Industrial na Europa do sculo XVI-

    II. Martn-Barbero assinala que a descoberta do povo pelos romnticos ocorre por trs

    vias: 1. Por uma exaltao revolucionria (a coletividade unida e o heri que se levanta

    contra o mal); 2. Por um nacionalismo cuja matriz o povo; 3. Como forma de reao

    Ilustrao. Com isso, o Romantismo constri um novo imaginrio no qual, pela pri-

    meira vez, o que vem do povo adquire status de cultura12. Martn-Barbero considera

    ainda que a idia de povo, para os romnticos, chega no por meio de um impulso in-

    clusivo, mas por um mecanismo social que, quela altura, legitima a ascenso burguesa:

    A invocao do povo legitima o poder da burguesia na medida exata

    em que essa invocao articula sua excluso da cultura. E nesse mo-

    vimento que se geram as categorias do culto e do popular. Isto , do popular com inculto, do popular designando, no momento de sua

    constituio em conceito, um modo especfico de relao com a totali-

    dade do social: a da negao, a de uma identidade reflexa, a daquele

    que se constitui no pelo que , mas pelo que lhe falta.13

    Por sua vez, Canclini percebe na idia de povo uma contradio congnita, que

    ir perdurar em todas as abordagens construdas sobre a cultura popular:

    O povo comea a existir como referente do debate moderno no fim do

    sculo XVIII e incio do XIX, pela formao na Europa de Estados na-

    cionais que trataram de abarcar todos os estratos da populao. Entre-

    tanto, a ilustrao acredita que esse povo ao qual se deve recorrer para

    legitimar um governo secular e democrtico tambm o portador da-

    10

    Idem, p. 14 e 15. 11

    BURKE, Peter. Cultura popular na Idade Moderna Europa, 1500-1800, So Paulo, Companhia das Letras, 1995, p. 37. 12

    MARTN-BARBERO, Jess. Dos meios s mediaes Comunicao, cultura e hegemonia, Editora UFRJ, 2

    a Edio, Rio de Janeiro, 2001, p. 39.

    13 MARTN-BARBERO, Jess. Op. cit., p. 37.

  • 20

    quilo que a razo quer abolir: a superstio, a ignorncia e a turbuln-

    cia. (...) O povo interessa como legitimador da hegemonia burguesa,

    mas incomoda como lugar do inculto por tudo aquilo que lhe falta.14

    O colecionismo acabara gerando um certo mtodo, especialmente a partir dos

    romnticos alemes, o que, num breve futuro, levou alguns intelectuais a alimentarem a

    ambio de elevar a prtica colecionista da cultura do povo (o folk) condio de rea

    do conhecimento (folklore, termo ingls, ou volkskunde, em alemo). Foi na Alemanha

    que os irmos Grimm, para reunir os contos populares publicados em duas coletneas

    (em 1812 e 1814), tiveram o cuidado de recolher as histrias diretamente da boca do

    povo, sem arranjo no texto final por parte dos autores, como at ento era comum se

    fazer. Essa postura se diferenciava muito da dos antiqurios, pois atribua s fontes po-

    pulares a fidedignidade dos contos coletados, e posteriormente publicados. Alm disso,

    os Grimm tomaram o cuidado de anotar em cada conto os locais onde foram coletados.

    Teorizando, Jakob Grimm, num ensaio sobre o ciclo do Anel dos Nibelungos, nota que

    a autoria dos contos populares desconhecida e, portanto, coletiva, feita a partir de um

    processo similar ao desenvolvimento de uma rvore que simplesmente cresce.15

    Na

    definio do prprio Grimm, a poesia do povo a poesia da natureza. Enfim, para

    ele uma acepo romanticamente idealizada que, a princpio, altera a percepo do co-

    lecionador, passando do gosto pelo bizarro do antiqurio para o romntico, que resgata

    nostalgicamente os resqucios de um paraso perdido.

    Toda essa leitura, entretanto, era feita pela cultura erudita, pelos intelectuais, e

    no pelo povo, que, quando muito, como assinala Peter Burke, somente se surpreendia

    ao ver pessoas curiosas invadindo suas casas procura dos cacos de um tempo esqueci-

    do.

    O ideal romntico permitiu, assim, que, na segunda metade do sculo XIX, os

    estudiosos da cultura popular passassem a se denominar folcloristas, usando a termino-

    logia criada em 1838 por William John Thoms (da Sociedade dos Antiqurios, da In-

    glaterra). Era mais um passo na direo do propsito anunciado de tornar o folclore

    uma cincia, esforo que encontraria, somente quarenta anos depois, a sua principal

    sede intelectual, a Folklore Society, fundada na Inglaterra em 1878. O folclore, como

    forma de conhecimento cientfico, uma das mais audaciosas aventuras do sculo

    XIX. (...) Pois ele se prope um problema essencialmente prtico: determinar o conhe-

    14

    Idem, p. 208. 15

    BURKE, Peter. Op. cit., p. 32.

  • 21

    cimento peculiar ao povo, obtido por meio dos elementos materiais e no materiais que

    constituam a sua cultura. Ou seja, o folclore se propunha a estudar os modos de ser, de

    pensar e de agir peculiares ao povo (...).16 Florestan Fernandes aponta, no entanto,

    para o fato de que o progresso foi o primeiro entrave a essa ambio intelectual, pois

    ele no se processa uniformemente na sociedade. Com isso, o folclore se transforma

    em matria que trata do apego ao passado, ou seja, o estudo dos elementos culturais

    praticamente ultrapassados: as sobrevivncias.17 A definio, no entanto, nada mais

    que um juzo de valor, pois, examinado pelos olhos da cultura erudita, o objeto do fol-

    clore era uma cultura superada, passada, suplantada por outra, civilizada e burguesa.

    Obviamente, isso acirrou ainda mais a dicotomia entre o saber do povo e o de uma elite

    aculturada, sem vis de intercmbio entre uma e outra. Alis, a possibilidade de inter-

    cmbio entre ambas no chegou sequer a ser levada em considerao pelos intelectuais

    romnticos ou folcloristas. Afinal, a intelectualidade via somente a justaposio entre o

    passado e o futuro, o primitivo e o civilizado, o pitoresco e o elaborado. Alm disso, a

    idia da ocorrncia de hibridismos surgida bem depois e somente compreendida a

    partir dessa diviso entre o popular e o erudito , se fosse aventada naquele perodo

    inicial, acabaria inviabilizando de vez a tentativa de tornar o folclore uma rea do co-

    nhecimento cientfico.

    Portanto, os desafios epistemolgicos j eram bastante grandes. A tarefa envol-

    via o intrincado desafio de coadunar duas vertentes a priori inconciliveis: o ideal ro-

    mntico, que gerou o estudo da cultura popular; e o esprito cientfico iluminista. O

    embate se alastrou pelo sculo seguinte a ponto de o seu campo de trabalho ser invadi-

    do pelas cincias sociais, e ser encarado como mtodo de pesquisa utilizado por histori-

    adores, psicanalistas, socilogos e antroplogos.

    Gramsci tenta resgatar a inteireza da cultura popular, atribuindo-lhe valor, mas

    propondo uma anlise a partir da sua contraposio cultura erudita, sem considerar a

    possibilidade de hibridismo entre ambas:

    Pode-se dizer que, at hoje, o folclore foi preponderantemente estudado

    como elemento pitoresco (na realidade, at hoje foi apenas coletado material para erudio, e a cincia do folclore consistiu preponderan-

    temente nos estudos a respeito do mtodo de coleta, seleo e classifi-

    cao desse material, isto , no estudo das cautelas prticas e dos prin-

    cpios empricos necessrios para se desenvolver proficuamente um as-

    16

    FERNANDES, Florestan. O folclore em questo. Hucitec, So Paulo, 1989, p. 38. 17

    Idem, p. 40.

  • 22

    pecto particular da erudio; com isso, decerto, no se desconhece a

    importncia e a significao histrica de alguns estudiosos de folclore).

    Dever-se-ia estud-lo, pelo contrrio, como concepo do mundo e de vida, em grande medida implcita, de determinados estratos (determi-nados no tempo e no espao) da sociedade, em contraposio (tambm

    no mais das vezes implcita, mecnica, objetiva) com as concepes do

    mundo oficiais (ou, em sentido mais amplo, das partes cultas das so-ciedades historicamente determinadas), que se sucederam no desenvol-

    vimento histrico.18

    Desde que os intelectuais pr-romnticos comearam a palmilhar a cultura po-

    pular, j no havia como construir teoricamente a idia de povo. A dificuldade em se

    definir o povo sugere que a cultura popular no era monoltica nem homognea. De

    fato, era extremamente variada.19 Em sua extensa e profunda pesquisa sobre a cultura

    popular na Idade Moderna, Peter Burke assume a tarefa de delinear historicamente a

    cultura popular, mas descobre camadas distintas dessa cultura no campo, nas cidades,

    nos andarilhos, com variaes religiosas e regionais , o que torna a idia de povo bas-

    tante difusa. Ou seja, dentro de seu prprio campo, a cultura popular no encontrava

    uma estrutura matricial.

    Os trs pontos essenciais apontados pelos romnticos (Herder e os irmos

    Grimm) para definir a cultura popular so altamente questionveis. Seguidos pela con-

    testao de Burke, so eles: 1. Essa cultura tem origem num perodo primitivo, e a-

    travessa inclume os sculos, sem transformaes notveis (sabe-se hoje que entre

    1500 e 1800 as tradies estiveram muito expostas a transformaes, inclusive com a

    participao direta das elites culturais); 2. A cultura popular uma criao coletiva, a

    tradio se sobrepe ao indivduo (mais uma vez, constata-se atualmente que a tradio

    no inibe o desenvolvimento de um estilo individual); 3. O povo formado por pessoas

    incultas, que vivem perto da natureza e, por isso, desenvolvem uma cultura particular,

    prpria. Nesse ltimo ponto, surge a questo que mais diretamente estrangula a idia de

    uma cultura popular: Teria realmente existido em algum momento histrico um pu-

    rismo cultural? Em outras palavras, ser que em algum perodo houve uma cultura que

    se manifestou sem interferncia da cultura erudita?

    Ao iniciar seu estudo sobre a cultura popular na Idade Moderna, Burke aponta

    para o fato de que a questo do popular reconhecidamente problemtica, dissipando

    qualquer necessidade de contraposio entre ela e a cultura erudita. A fronteira entre as

    18

    GRAMSCI, Antonio. Literatura e vida nacional, Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, 1978, p. 184. 19

    BURKE, Peter. Op. cit., p. 49.

  • 23

    vrias culturas do povo e as culturas das elites (e estas eram to variadas quanto aque-

    las) vaga e por isso a ateno dos estudiosos do assunto deveria concentrar-se na inte-

    rao e no na diviso entre elas.20 Como exemplo, cita Mikhail Bakhtin: Sua defini-

    o de Carnaval e carnavalesco pela oposio no s elites, mas cultura oficial, assina-

    la uma mudana de nfase que chega quase a redefinir o popular como o rebelde que

    existe em todos ns, e no a propriedade de algum grupo social.21

    Thompson, por sua vez, acredita que, na falta de generalizaes para a cultura

    popular, preciso pens-la a partir de contextos histricos, pois a cultura popular da

    Europa de 1500, poca em que as elites participavam da cultura do povo, diferente da

    praticada no sculo XVIII, quando a elite no mais dela participava. Com essa leitura,

    Thompson se aproxima de Gramsci, do qual empresta a idia de hegemonia cultural,

    questionada por Burke, que no cr que um conceito usado para analisar problemas par-

    ticulares italianos, como a influncia da Igreja na Itlia meridional, possa tambm ser

    usado como gabarito por socilogos e historiadores sociais, embutindo-se nele a prtica

    da negociao.

    A proposta da presente pesquisa compreender a cultura popular a partir do re-

    corte das Cincias da Comunicao. Por isso, em Jess Martn-Barbero que desponta a

    sntese do que os tericos e historiadores europeus j haviam descoberto: havia, de fato,

    uma interao entre as tradies eruditas e populares, sem que fosse possvel precisar se

    se tratava de um rebaixamento da cultura erudita, da criatividade das classes cultas, ou,

    como defendiam os irmos Grimm, que o povo detinha a receita do fermento criativo,

    apropriado pela erudio. Burke conclui que havia sim um trfego de mo dupla entre

    elas 22. Corrobora Ginzburg:

    s classes subalternas das sociedades pr-industriais atribuda ora

    uma passiva adequao aos subprodutos culturais distribudos com ge-

    nerosidade pelas classes dominantes (Mandrou), ora uma tcita propos-

    ta de valores, ao menos em parte autnomos em relao cultura des-

    sas classes (Bollme), ora um estranhamento absoluto que se coloca at

    mesmo para alm, ou melhor, para aqum da cultura (Foucault). bem

    mais frutfera a hiptese formulada por Bakhtin de uma influncia rec-

    proca entre a cultura das classes subalternas e a cultura dominante.23

    20

    Idem, p. 17. 21

    Ibidem. 22

    Ibidem, p. 85. 23

    GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes o cotidiano e as idias de um moleiro perseguido pela Inquisio. Companhia das Letras, So Paulo, 1987, p. 24.

  • 24

    Essa via de mo dupla, no entanto, no tem um traado retilneo, mas tortuoso,

    em que as mediaes entre uma cultura e outra se do a partir de trocas e negociaes,

    operao que no prescinde do conflito. Enfim, como aponta Canclini:

    O culto e o popular, o nacional e o estrangeiro apresentam-se ao final

    desse percurso como construes culturais. No tm nenhuma consis-

    tncia como estruturas naturais, inerentes vida coletiva. Sua veros-similhana foi alcanada historicamente mediante operaes de rituali-

    zao de patrimnios essencializados. A dificuldade de definir o que

    o culto e o que o popular deriva da contradio de que ambas as mo-

    dalidades so organizaes do simblico geradas pela modernidade,

    mas ao mesmo tempo a modernidade por seu relativismo e anti-substancialismo as desgasta o tempo todo.24

    Cultura de massa

    O advento da cultura de massa colocou mais uma vez em cheque os conceitos

    de cultura erudita e cultura popular. Especialmente porque se tratava da produo cultu-

    ral em escala industrial para um pblico massivo e sem face que requeria um universo

    simblico de fcil identificao, inclusive com o contexto do nacional. Ao analisar o

    surgimento da indstria cultural, Cristina Costa aponta:

    A rigor, a indstria cultural tem incio com a inveno da prensa de Gu-

    tenberg, que permitiu a reproduo tcnica dos textos literrios. Mas foi

    apenas com a formao, nas cidades, desse pblico heterogneo e pro-

    letrio identificado depois como massa que as bases de uma inds-tria cultural como a que se conhece hoje se desenvolveram. Portanto,

    quando falo em indstria cultural, estou me referindo no apenas pro-

    duo mecnica e ampliada de produtos culturais, mas a uma nova pro-

    duo destinada a um amplo contingente de pessoas reunidas nos cen-

    tros urbanos pela revoluo industrial. Esse processo tem caractersti-

    cas prprias que o distinguem da produo cultural na qual se inserem

    os contos de As mil e uma noites e outras manifestaes de cultura po-

    pular e artesanal existentes at ento. Distingue-se tambm da cultura

    erudita europia, embora essa tambm j estivesse submetida ao pro-

    cesso capitalista de mercantilizao e reproduo mecnica.25

    Muitos autores, em especial os da escola crtica de Frankfurt, incluindo Adorno

    e Horkheimer, que cunharam a expresso indstria cultural, apontaram esse processo

    como anteparo inibidor do desenvolvimento da conscincia das massas. Ou seja, a in-

    dstria cultural impediria a formao de indivduos autnomos, independentes, capa-

    24

    CANCLINI, Nestor Garcia. Op. cit., p. 362. 25

    COSTA, Cristina. A milsima segunda noite Da narrativa mtica telenovela anlise esttica e sociolgica. AnnaBlume/Fapesp, So Paulo, 2000, pp. 107 e 108.

  • 25

    zes de julgar e de decidir conscientemente.26 Portanto, trata-se de uma cultura produ-

    zida em escala unicamente para o consumo, carregada da ideologia dominante. Por isso,

    usurpa a aura da obra de arte27, dessublimando-a, despojando-a para consumo rpido,

    e ao mesmo tempo tambm se transforma em cultura nacional, roubando o papel antes

    atribudo cultura popular. Como veremos, a cultura de massa uma cultura: ela

    constitui um corpo de smbolos, mitos e imagens concernentes vida prtica e vida

    imaginria, um sistema de projees e de identificaes especficas. Ela se acrescenta

    cultura nacional, cultura humanista, cultura religiosa, e entra em concorrncia com

    essas culturas.28 Edgar Morin contesta a perspectiva frankfurtiana ao questionar que

    tudo parece opor a cultura dos cultos cultura de massa. Mas antes de perguntarmos

    se a cultura de massa na realidade como a v o culto, preciso nos perguntarmos se

    os valores da alta cultura no so dogmticos, formais, mitificados, se o culto da arte

    no esconde muitas vezes um comrcio superficial com as obras.29 No entanto, a esco-

    la frankfurtiana e mesmo a francesa, de Morin, no haviam refletido sobre as condies

    em que a indstria cultural lidava com a cultura popular. Esse lapso, hoje gritante, pois

    da cultura popular que a cultura de massa vai se apropriar de elementos que constitui-

    ro seus discursos, foi percebido somente a partir de autores que se propuseram a olhar

    no para o centro, mas para as periferias, onde a mistura ocorria em escala de evidncia

    maior e com uma voracidade em que os limites entre ambas as culturas nem sempre

    eram visveis. Jess Martn-Barbero um desses autores, que desvelam as pegadas de

    um longo percurso, como adverte na introduo do seminal Dos meios s mediaes

    comunicao, cultura e hegemonia, apontando como as culturas permearam a formao

    do discurso massivo.

    No podemos ento pensar hoje o popular atuante margem do proces-

    so histrico de constituio do massivo: o acesso das massas sua visi-

    bilidade e presena social, e da massificao em que historicamente es-

    se processo se materializa. No podemos continuar construindo uma

    crtica que separa a massificao da cultura do fato poltico que gera a

    emergncia histrica das massas e do contraditrio movimento que ali

    produz a no-exterioridade do massivo ao popular, seu constituir-se em

    um de seus modos de existncia.30

    26

    ADORNO, Theodor W. Dialtica do Iluminismo. Coleo Os Pensadores, Nova Cultural, So Paulo,

    1999, p. 8. 27

    No sentido dado por Walter Benjamin. 28

    MORIN, Edgar. Cultura de massas no sculo XX O esprito do tempo (Neurose). Forense Universit-ria. Rio de Janeiro, 1984, pp. 15 e 16. 29

    Idem, p. 18. 30

    MARTN-BARBERO, Jess. Op. cit., p. 29.

  • 26

    Martn-Barbero faz uma busca terica pela histria da cultura para encontrar as

    intersees entre o popular e o massivo desde a Ilustrao. Assinala que h um momen-

    to na chamada cultura popular em que ocorre uma importante passagem, quando os

    contos orais das populaes sofrem um trnsito para a linguagem escrita, o que, para

    ele, a transformao do folclrico no popular. o advento da literatura de cordel na

    Espanha de Lope de Vega (1562-1635). Para evidenciar a importncia desse momento,

    Martn-Barbero recolhe um memorial escrito por Vega e endereado ao Rei de Espanha

    em que ataca os apregoadores que recitam suas histrias pelas ruas de Madri e, assim,

    ferem o seu direito de autor. No memorial, ele enumera os efeitos nocivos dessa prti-

    ca: ...inquieta o vulgo, enfastia a nobreza, deslustra a polcia (que nesse tempo signifi-

    cava a poltica e a ordem social).31 Nota-se, assim, que a percepo dessa nascente

    literatura popular se aproxima de um mercado simblico do qual Vega participa e do

    qual se v ameaado em seu monoplio artstico. Por isso, requer a ajuda do rei para

    que se restabelea a ordem.

    Mas no s meio: a literatura de cordel mediao. Por sua lingua-

    gem, que no alta nem baixa, mas a mistura das duas. Mistura de lin-

    guagens e religiosidades. (...) Estamos diante de outra literatura que se

    move entre a vulgarizao do que vem de cima e sua funo de vlvula

    de escape de uma represso que explode em sensacionalismo e escr-

    nio. Que em lugar de inovar, estereotipa, mas na qual essa mesma este-

    reotipia da linguagem ou dos argumentos no vem s das imposies

    carreadas pela comercializao do dispositivo da repetio e dos modos

    do narrar popular.32

    Martn-Barbero afirma ainda que o outro lado da indstria de narrativas o que

    nos d acesso ao processo de circulao cultural materializado na literatura que estamos

    estudando: um novo modo de existncia cultural do popular.33

    O melodrama francs, concebido e executado em sua plenitude no Boulevard du

    Temple, na Paris do sculo XIX, estilizado em 1800 por Gilbert de Pixercourt com a

    pea Celina ou a Filha do Mistrio, um outro marco de transio do folclrico para o

    popular, embora num nvel simblico mais complexo do que havia ocorrido com a lite-

    ratura de cordel.

    31

    Idem, p. 157. 32

    Ibidem, p. 158. 33

    Ibidem, p. 160.

  • 27

    Fora dos grandes teatros da Comdie Franaise, o povo parisiense tinha ao seu

    alcance, num primeiro momento, somente as representaes de rua, sem dilogos, e, em

    seguida, os melodramas encenados nos teatros do Boulevard, regio parisiense de tradi-

    cional concentrao de artistas populares e circenses, e desde o tempo em que a muralha

    da cidadela ainda estava de p. Com isso, o povo subiu ao palco. Pixercourt afirmava

    que o melodrama era um espetculo dirigido queles que no sabiam ler. Talvez porque,

    ao contrrio do teatro culto, repleto de sentimentos contidos, nesses espetculos popula-

    res era justamente o sentimento que dava o tom. Com isso, j se encaminha um novo

    marco de transio, a busca por uma linguagem massiva. Ou seja, o popular passa a

    adquirir um contexto simblico que avana transpondo as fronteiras sociais. (...) lugar

    de chegada de uma memria narrativa e gestual e lugar de emergncia de uma cena de

    massa, isto , onde o popular comea a ser objeto de uma operao, de um apagamento

    das fronteiras deslanchado com a constituio de um discurso homogneo e uma ima-

    gem unificada do popular, primeira figura de massa.34

    Essa nova ruptura, que envolve expanso discursiva, ainda, segundo Martn-

    Barbero, um outro modo de existncia do popular. Ou seja, a cultura de massa que, em

    vez de ser o lugar onde as diferenas sociais so definidas, passa a ser o lugar onde tais

    diferenas so encobertas e negadas. E isso no ocorre por um estratagema dos domina-

    dores, e sim como elemento constitutivo do novo modo de funcionamento da hegemo-

    nia burguesa, como parte integrante da ideologia dominante e da conscincia popu-

    lar.35

    Conceito central em Martn-Barbero, que vai busc-lo em Gramsci, a hegemonia

    consegue alinhar no s o aspecto de transformao social em que a idia de imposi-

    o exterior abandonada pela de adeso a partir de interesses internos mas tambm o

    de que a cultura um campo estratgico de articulao dos conflitos, onde ocorrem as

    negociaes por meio de apropriaes, seduo e cumplicidade. ...ao se transformarem

    as massas em classe, a cultura mudou de profisso e se converteu em espao estratgico

    de hegemonia, passando a mediar, isto , encobrir as diferenas e reconciliar os gos-

    tos.36

    Processo semelhante aconteceu no sculo XIX, na mesma Frana, quando o me-

    lodrama transferiu-se para as pginas dos jornais na forma do folhetim.

    34

    Ibidem, p. 171. 35

    Ibidem, p. 180. 36

    Ibidem, p. 181.

  • 28

    Sua forma, essencialmente ficcional e seriada, dedica-se principalmente

    a histrias de grande ao ou melodramticas, capazes de atrair e pren-

    der a ateno de inmeros leitores. Dirigido a um pblico amplo e indi-

    ferenciado, composto de pessoas heterogneas quanto ao sexo, idade,

    classe social ou poder aquisitivo, o folhetim encontrou nas formas de

    narrativas populares, coletivas e de fcil assimilao o modelo ideal.37

    Assim, o folhetim, uma manifestao literria originada no alvorecer da inds-

    tria cultural, manteve em seu discurso simblico caractersticas da oralidade das narrati-

    vas populares, usando-as para cumprir o seu objetivo de atrair o pblico e criar o hbi-

    to da leitura e, conseqentemente, o consumo dirio de jornal38.

    Ou seja, o massivo foi sendo gerado na medida em que se apropriava da cultura

    popular, a deformava e a tornava mais homognea, at mold-la de modo a integr-la

    numa nova ordem cultural, da qual tambm participa a alta cultura. essa, enfim, a di-

    nmica do processo cultural dentro da sociedade de massa, e que vai se intensificar e se

    tornar mais complexa a partir do advento da televiso.

    O contexto da Amrica Latina

    Se no possvel analisar a cultura de massa dissociada da cultura popular em

    campos em que ambas se apresentam em pleno confronto, esse processo se mostra ain-

    da mais intrincado na realidade da Amrica Latina, na qual os conceitos de erudito e

    popular j emergem embebidos de mestiagem. Alis, segundo Canclini, a cultura po-

    pular aparece em trs momentos distintos, mas sempre construdos politicamente: o

    folclore, as indstrias culturais e o populismo poltico39

    .

    A rigor, o processo de homogeneizao das culturas autctones da A-

    mrica comeou muito antes do rdio e da televiso: nas operaes et-

    nocidas da conquista e da colonizao, na cristianizao violenta de

    grupos com religies diversas durante a formao dos Estados nacio-nais , na escolarizao monolnge e na organizao colonial ou mo-derna do espao urbano.

    40

    Nesse panorama, o circo-teatro, diante do vis das matrizes histricas (folclri-

    co/popular/massivo), revela-se fruto de um complexo processo de hibridizao. Ele no

    37

    COSTA, Cristina. Op. cit. p. 89. 38

    Idem. 39

    CANCLINI, Nestor Garcia. Op. cit., pp. 206-207. 40

    Idem, p. 255.

  • 29

    tem a referncia rural, nem transfere ao urbano qualquer outra referncia. Em sua gne-

    se, como se ver adiante, o circo-teatro de fruto da negociao simblica entre a cul-

    tura popular e a cultura de massa. E mais, por estar no campo das referncias populares,

    premido pela ascenso dos meios de comunicao de massa, acaba se tornando espao

    de mediao, num acelerado processo de negociao, tenso e assimilao.

    A averiguao desse fenmeno envolve a pesquisa terica da origem do circo-

    teatro. Vrios estudiosos indicam que ele o gnero originrio de uma experincia ex-

    clusivamente brasileira. No entanto, a idia de agregar dramatizaes ao espetculo

    tradicional circense no uma combinao to original a ponto de ser percebida apenas

    pelos circenses brasileiros. Mesmo a concepo do circo moderno, atribuda ao oficial

    de cavalaria Philip Astley e seu Astleys Amphitheatre, inaugurado em 1773 em Lon-

    dres, trazia entre os nmeros de acrobacia eqestre algumas encenaes de pantomi-

    mas. Astley chegou a se apresentar em Paris, onde conheceu o empresrio Antonio

    Franconi, que passou a dirigir o Anfiteatro quando o militar teve de retornar a Londres

    em 1793, durante o conflito entre a Frana e a Inglaterra.

    Astley retornou em 1802, aps a assinatura do tratado de paz entre os

    dois pases, e retomou sua casa de espetculos. Franconi, ento, ainda

    em Paris, instalou-se em um terreno dos Capuchinos, local em que se

    praticava uma gama extensa de formas de espetculos populares. Ali,

    na Casa dos Capuchinos, alm do picadeiro, Franconi acrescentou um

    palco para a representao de pantomimas.41

    A introduo do circo-teatro no Brasil atribuda ao Circo Spinelli42

    , especial-

    mente ao inventivo palhao Benjamim de Oliveira que, com o apoio do dono do circo,

    Alfonso Spinelli, foi o principal agente, durante a virada do sculo XX e sua primeira

    dcada, de uma transformao do espetculo circense, que passou a incorporar a drama-

    tizao em nada menos que metade do tempo das atraes oferecidas ao pblico. As-

    sim, num processo que inclui a mistura de pantomimas e msica popular similar ao

    que ocorreu na Frana do sculo XVIII, na elaborao do melodrama , e a incorpora-

    o paulatina de elementos do teatro musicado, em especial da opereta, at a aquisio

    do dilogo, a famosa segunda parte do espetculo se torna um vetor de peas que antes

    s eram encenadas para a elite endinheirada em teatros luxuosos, passando a ser ofere-

    41

    BOLOGNESI, Mrio Fernando. Palhaos. Editora Unesp, So Paulo, 2003, p. 32. 42

    O principal autor a defender essa tese Roberto Ruiz. Mas quem mais a corrobora o prprio Benja-

    mim de Oliveira, em seu depoimento a Brcio de Abreu, citado por Ruiz.

  • 30

    cidas s massas urbanas. Ou seja, o circo-teatro surgiu no Brasil como uma maneira de

    oferecer s classes populares um repertrio elaborado, e no folclrico no sentido de-

    senvolvido por Rossini Tavares de Lima43

    (que incluiria manifestaes como o teatro

    de bonecos, os dramas da Paixo de Cristo, os dramas e as comdias domsticas, os

    artistas ambulantes e os folguedos populares).

    Ele nasce, enfim, da busca por um espetculo do agrado popular num ambiente

    urbano. No perodo em que concebido pelo Circo Spinelli, sua referncia o teatro

    musicado europeu, que, naquela altura, estava sendo elaborado a partir de uma srie de

    modernizaes promovidas pelo teatro romntico. Este, por sua vez, prope inovaes

    a partir de temas e elementos cnicos originrios do melodrama popular. Enfim, esse

    continuum de influncias mediadas evoca um processo de circularidade cultural, em

    que os discursos populares servem alta cultura e, na seqncia, referenciam novamen-

    te o espetculo popular.44

    Enfim, esse hibridismo se torna a base morfognica da cultura latino-americana.

    Ao ser apropriado pela indstria cultural, acaba se desdobrando em efeitos similares de

    circularidade cultural, referenciando e sendo referenciado. Um processo semelhante a

    um fractal em que, na complexidade dos seus desdobramentos formais, padres podem

    ser identificados. No caso do circo-teatro, esses padres so os conceitos difusos de

    cultura popular e de cultura de massa, os dois mastros em que se apia a lona hbrida da

    presente pesquisa.

    A Belle poque e o Circo Spinelli

    A partir das apresentaes de pantomimas no espao do picadeiro do Circo Spi-

    nelli, na ltima dcada do sculo XIX e na primeira do sculo XX, tem incio uma lenta

    migrao cnica, da mmica para o teatro em si, cujo parmetro hegemnico na poca,

    na capital federal, o Rio de Janeiro, o espetculo do teatro musicado. No entanto, a

    referncia se d num momento em que a intelectualidade carioca reage contra o teatro

    musicado, representado pelos gneros opereta, revista e mgica, e levanta a bandeira da

    necessidade de se criar um teatro genuinamente nacional. Com isso, o repertrio adota-

    43

    LIMA, Rossini Tavares de, Folguedos populares do Brasil, So Paulo, Ricordi, 1962. 44

    Especialmente o conceito compreendido a partir de M. Bakhtin ao analisar as relaes entre a cultura

    popular na Idade Mdia francesa e a literatura de Rabelais, especialmente os livros Gargntua e Panta-

    gruel. Essa relao de circularidade ser tambm vasculhada por Carlo Ginzburg ao analisar o processo

    de Inquisio a que foi submetido um moleiro friulano, Menocchio, condenado por seus discursos que

    misturam elementos cotidianos da vida popular ao radicalismo religioso. Ver GINZBURG, Carlo. Op.

    cit..

  • 31

    do pelo circo tenta reproduzir aquele apresentado pelas companhias europias de teatro,

    adaptando-o ao palco e orquestra circenses. De maneira inesperada, agrega duas irre-

    conciliveis vertentes, o repertrio erudito e o teatro musicado.

    Esse ajuste ocorre num cenrio urbano em que o pblico composto pela massa

    de trabalhadores de uma cidade que vive a efervescncia cultural e econmica da Belle

    poque, o esprito do arrivismo desencadeado pelo Encilhamento, e sob um surto de

    febre do ideal republicano que tinha por objetivo transferir para os trpicos o estilo de

    vida europeu, em particular o francs.

    A reforma da capital federal promovida pelo prefeito Pereira Passos, em 1903,

    ficou logo conhecida como bota-abaixo! por promover a derrubada em escala dos

    pardieiros, cortios e sobrados do centro da cidade, num processo que transformou esse

    ncleo urbano numa representao da Paris do Baro Haussmann45

    . No mesmo ano,

    outro fato deixou a populao carioca ainda mais aturdida: a vacinao contra a febre

    amarela, ordenada pelo presidente Rodrigues Alves e comandada pelo ento desconhe-

    cido mdico Oswaldo Cruz, que fizera carreira como sanitarista no Instituto Pasteur, em

    Paris. Em 1904, a vacinao da populao da capital republicana se tornou obrigatria

    por lei federal, o que acabou gerando um levante popular em resposta medida.

    Enfim, em 1906, Oswaldo Cruz triunfa e cumpre a promessa de erradicar os ma-

    les tropicais, ao passo que uma nova cidade emerge dos escombros da antiga. A Aveni-

    da Central, com seus quase dois quilmetros de extenso, com paisagismo moda dos

    bulevares franceses, fez o que a Corte no havia conseguido: trouxe um pedao da Eu-

    ropa para os trpicos. Lojas de produtos importados foram instaladas na avenida, assim

    como as sedes de grandes empresas. Por l passavam algumas poucas mquinas infer-

    nais de quatro rodas: os automveis, luxo de poucos, conduzidos por seus chauffeurs.

    Nicolau Sevcenko v nessa nova cidade a representao de uma capital do arrivismo:

    Assistia-se transformao do espao pblico, do modo de vida e da

    mentalidade carioca, segundo padres totalmente originais; e no havia

    quem pudesse se opor a ela. Quatro princpios fundamentais regeram o

    transcurso dessa metamorfose (...): a condenao dos hbitos e costu-

    mes ligados pela memria sociedade tradicional; a negao de todo e

    qualquer elemento de cultura popular que pudesse macular a imagem

    civilizada da sociedade dominante; uma poltica rigorosa de expulso

    dos grupos populares da rea central da cidade, que ser praticamente

    isolada para o desfrute exclusivo das camadas aburguesadas; e um cos-

    45

    A reforma da cidade promovida por Haussmann a partir de 1851, sob Napoleo III, se tornou referncia

    de plano urbanstico e arquitetnico para os principais centros urbanos da poca.

  • 32

    mopolitismo agressivo, profundamente identificado com a vida parisi-

    ense.46

    esse o elemento externo que interfere na concepo de um espetculo dramti-

    co capaz de agradar ao pblico popular, que empurrado para as periferias nesse pro-

    cesso de afrancesamento da urbe, mas que tem os trilhos das ferrovias como seu ponto

    de conexo com o novo centro elitista: o Circo Spinelli esteve montado no boulevard de

    So Cristvo nos anos de ascenso dos seus espetculos dramticos e, na dcada se-

    guinte, ergueu-se ao lado da estao da Central do Brasil. Ao mesmo tempo, trata-se de

    um pblico assediado pelo arrivismo, pelos modos smart, do dndi que atravessa a A-

    venida Central vestindo os cortes parisienses, e que quer se integrar a esse modo de vida

    que vai se tornando hegemnico. Por isso, ele busca um espetculo mais integrado, ou

    seja, que represente o universo cultural do novo limiar social.

    FOTO 1 Foto lembrana de Benjamim de Oliveira,

    ator e palhao do Circo Spinelli (1909), reproduzido do

    livro de Ermnia Silva Circo-teatro: Benjamim de

    Oliveira e a teatralidade circense no Brasil.

    46

    SEVCENKO, Nicolau. A literatura como misso Tenses sociais e criao cultural na Primeira Repblica. Companhia das Letras, 2

    a Edio, So Paulo, 2003, p. 42.

  • 33

    Benjamim de Oliveira e Afonso Spinelli haviam se conhecido entre 1895 e

    1896, e passaram anos construindo a fama do Circo Spinelli. Palhao desde 1889,

    quando, atuando como ginasta no circo de Albano Pereira, foi convocado para substitu-

    ir Freitinhas (Antonio de Freitas), Benjamim passou quase dois anos sendo vaiado at

    ser reconhecido por sua graa. Quando chegou ao Rio de Janeiro, em 1892, no circo do

    lendrio Comendador Caamba, ao se apresentar em Cascadura, recebeu uma gorda

    gorjeta de um misterioso admirador: o Marechal Floriano Peixoto. Por conta desse epi-

    sdio, Benjamim visitou o ento presidente da Repblica a mando do Comendador e

    conseguiu transferir o circo para a Praa da Repblica, onde cumpriu uma longa tempo-

    rada de sucesso.

    De volta a So Paulo, Benjamim conheceu Alfonso Spinelli no Circo Franois,

    que tambm atuava como palhao e que havia fugido da famlia quando criana num

    circo que passara pela sua cidade em Minas Gerais. Quis a sorte que Spinelli reencon-

    trasse a famlia em So Paulo, e a descobrisse abastada. Nela buscou financiamento

    para montar seu prprio circo, que teria Benjamim como principal atrao47

    .

    Na virada do sculo XX, os palhaos eram as principais atraes dos circos,

    sempre se apresentando com o violo, no centro do picadeiro, cantando modinhas e

    contando piadas. O tipo do palhao-cantor sempre esteve presente, especialmente nas

    feiras populares, mas era tido como menor, at que o palhao Polydoro (Jos Manoel

    Ferreira da Silva) o tornou o paradigma do clown brasileiro em 1873, no Circo Elias de

    Castro. Os circos de grande porte eram em sua imensa maioria estrangeiros e tinham

    como modelo de palhao os artistas ingleses, considerados mestres da mmica e das

    acrobacias com cavalos. Polydoro era parlapato; chegou com seu violo, suas cano-

    netas de duplo sentido, seus requebros e seu tanguinhos e foi adorado pelas platias

    mais exigentes.48

    Os palhaos-cantores foram os principais divulgadores das msicas e enredos

    musicais apresentados pelas revistas cariocas, de modo a populariz-los no s nos es-

    petculos urbanos, mas tambm naqueles apresentados em povoados mais distantes da

    capital. Na mesma poca, somente dois outros divulgadores rivalizavam com os palha-

    os nessa tarefa: os vendedores de folhetos com letras de modinhas e de lundus49

    ; e a

    indstria fonogrfica, que, a partir de 1902, trocou os cilindros de cera pelos discos.

    47

    CASTRO, Alice Viveiros de. Op. cit., pp.170-176. Benjamim tambm contou sua histria a ABREU,

    Brcio de, Esses populares to desconhecidos. Editora Raposo Carneiro, Rio de Janeiro, 1963. 48

    Idem, p. 166. 49

    TINHORO, Jos Ramos. Os sons que vm da rua. Editora 34, 2a Edio, So Paulo, 2005.

  • 34

    Tinhoro lembra que os primeiros cantores gravados em disco foram os tambm palha-

    os Eduardo das Neves (1871-1919), o famoso Dudu das Neves, e Mrio Pinheiro

    (1880?-1923), alm de um certo Campos, que, no selo do disco, trazia sob o seu nome:

    antigo palhao de circo. Baiano (Manoel Pedro dos Santos), que deu voz s primeiras

    73 gravaes da Casa Edison, de Fred Figner, em 1902, tambm havia cantado como

    palhao no Spinelli, ao lado de Benjamim de Oliveira.

    A popularidade desses palhaos-cantores era tamanha que os circos promoviam

    acirrados embates no picadeiro, com os artistas sendo defendidos por seus partidos,

    semelhana do que ocorria nos recitais do teatro lrico, ou seja, faces que defendiam

    determinados cantores de predileo em detrimento dos rivais50

    . A nascente indstria

    musical, da qual faziam parte todos esses atores palhaos, vendedores de folhetos,

    disco, Teatro de Revista atuava de forma a integr-los na divulgao de canonetas,

    modinhas e lundus para um vido e emergente pblico consumidor.

    Tambm era comum o fato de os palhaos-cantores se apresentarem nas casas

    noturnas cariocas, em especial nas da rede comandada por Paschoal Segreto: A maio-

    ria dos cafs-concerto e music halls, no Rio de Janeiro, tinha como proposta de trabalho

    oferecer um conjunto variado de espetculos, que misturavam representaes teatrais,

    cenas cmicas, apresentaes musicais nacionais, muitos artistas estrangeiros execu-

    tando acrobacias, ginsticas e clowns excntricos.51

    Desse modo, eles se incluam num ainda incipiente, mas j eficiente sistema de

    divulgao musical, especialmente por suas habilidades com o instrumento o violo

    , que j fazia parte do espetculo dramtico nos anos finais do sculo XIX. As panto-

    mimas, que chegaram ao Pas junto com o espetculo circense, comearam a passar,

    com a proximidade dos meios mais elaborados de encenao do teatro musicado, por

    uma transformao ainda lenta, mas que levaria criao efetiva do circo-teatro dentro

    do mesmo Circo Spinelli.

    O teatro musicado nos palcos/picadeiros, nos seus mais variados gne-

    ros, que j compunha parte das representaes circenses atravs das

    pantomimas e cenas cmicas, com aquele dilogo, passou por diferen-

    tes fases da produo das suas montagens; mas isso no implicou ex-

    cluso ou diminuio do conjunto de pantomimas e composies musi-

    cais anteriormente encenadas. Apesar de aquela parte do espetculo a-

    50

    Para os partidos de cantores lricos ver GIRON, Lus Antonio. Minoridade crtica A pera e o teatro nos folhetins da Corte (1826-1861). Ediouro/Edusp, So Paulo, 2004. 51

    SILVA, Ermnia. As mltiplas linguagens na teatralidade circense. Op. cit., p. 196.

  • 35

    inda ser denominada pantomima, as representaes faladas e cantadas

    em portugus foram adquirindo cada vez mais espao.52

    Numa entrevista concedida revista Dom Casmurro, e registrada pelo reprter

    Brcio de Abreu, Benjamim de Oliveira conta sobre a criao do gnero, atribuindo a si

    mesmo a autoria do feito53

    :

    No Spinelli que eu lancei essa forma de teatro combinado com circo,

    que mais tarde tomaria o nome de Pavilho. Spinelli era contra. Tanto

    que nos primeiros espetculos tomamos roupas de aluguel, porque ele

    se negava a comprar guarda-roupa. Foi ali no Boliche da Praa 11. E a

    primeira pea intitulava-se O Diabo e o Chico. Pouco a pouco fomos

    saindo para o teatro mais forte, de melhor qualidade. E terminamos por

    fazer Otelo.54

    Em 23 de fevereiro de 1907, Arthur Azevedo dedicou-lhe uma crnica na sua

    coluna publicada no jornal O Paiz. O crtico assistira verso do romance O guarani,

    de Jos de Alencar, pantomima para circo, batizada D. Antnio e os guaranis, tambm

    baseada no libreto de Antnio Scalvini e Carlo dOrmeville para a pera de Carlos

    Gomes. A pantomima estreou em So Paulo, em 1902, e contava com 22 quadros e 22

    nmeros de msica, com Benjamim de Oliveira interpretando Peri. um negro, mas

    um negro apolneo, plstico; um negro que, metido nas suas bombachas de clown, me

    pareceu Otelo, que saltasse das pginas de Shakespeare para o circo, na Cidade Nova,

    escreveu55

    . Ermnia Silva aponta que essa pantomima se tornou constante no repertrio

    do Circo Spinelli at 1910.

    Mas a pea que Benjamim aponta como sendo a primeira ocorrncia do circo-

    teatro uma mise-en-scne escrita na seqncia de D. Antnio e os guaranis, que tam-

    bm esteve presente no repertrio do Spinelli durante vrios anos. Alm dessa mgica

    farsesca, como era anunciada nos folhetos e cartazes da poca, Benjamim escreveu

    outras mise-en-scne, entre elas: O negro do frade, farsa fantstica em que interpreta o

    negro pobre que se apaixona pela moa branca rica; A filha do campo, farsa fantstico-

    dramtica; e O colar perdido. Essas farsas eram chamadas s vezes de farsas fantsti-

    cas, e outras vezes de burletas, ou ainda, mgicas. Todas essas pantomimas tinham uma

    estrutura cnica e musical muito parecida com a das peas do repertrio dos gneros

    52

    Idem, p. 203. 53

    Vrios trechos foram mencionados por RUIZ, Roberto. Op. cit., p. 29 a 41. 54

    Idem, p. 39. 55

    In SILVA, Ermnia. Op. cit.,, pp. 228 e 229.

  • 36

    ligeiros e musicados apresentados nos teatros da poca. Cada um desses espetculos

    contava com cerca de 25 nmeros musicais.

    Por isso, Benjamim fez fama no s no palco como tambm no disco, registran-

    do seis gravaes de 1907 a 1912, alm de transpor vrias de suas pantomimas para o

    cinema, incluindo a de Os guaranis.

    Com o aumento significativo da produo e montagem das peas dialo-

    gadas e cantadas, com uma maior rotatividade do repertrio de repre-

    sentaes, e destas em variedade de gneros, os circenses exploravam

    ainda mais uma estrutura que j estava presente nas encenaes das

    pantomimas, marcada pelos papis fixos ou personagens-tipos, seme-

    lhana do que tambm acontecia nos teatros. A tipificao dos papis

    das pantomimas iria permanecer, mas com algumas diferenas, aumen-

    tando o nmero de gneros e temas que os circenses, em particular nas

    produes de Benjamim, encenavam. Alguns artistas eram destinados a

    serem gals, vilos, cmicos (que normalmente eram os palhaos das

    companhias); entre as mulheres, havia a mocinha ou ingnua, a cnica e

    a caricata, mas tambm a representao de diversos outros papis

    quando o encenado era uma revista.56

    No entanto, essas ainda no eram peas de circo-teatro, embora nesse limiar no

    seja possvel saber se havia de fato ou no dilogos encenados em meio s pantomimas

    e nmeros musicais. Mas at mesmo a denominao circo-teatro j era utilizada, embo-

    ra no tivesse sido empregada originalmente pelo Spinelli. Conta Ermnia Silva que,

    desde a dcada de 1870, o circense Albano Pereira assim denominava seu circo. Em

    1899, se anunciava no Largo da Concrdia, no Brs, em So Paulo, como Teatro Circo

    Universal.

    Mas a grande mudana aconteceria em 1910, quando Benjamim adaptou a ope-

    reta Viva alegre, de Franz Lehr, para o picadeiro. A pea estreou em 18 de maro no

    Circo Spinelli, montado no boulevard de So Cristvo, com adaptao musical para

    banda feita por Paulino Sacramento, maestro de orquestra de teatros de revista. Por ou-

    tro lado, Eduardo das Neves j havia composto uma pardia da opereta, A sentena da

    viva alegre, que estreou em 18 de janeiro do mesmo ano.

    Graas a essas duas apresentaes, o Brasil ficou sendo, ento, o nico

    pas do mundo em que a famosa opereta destinada ao consumo da fan-

    tasia das altas camadas da classe mdia urbana pde descer ao alcance

    do povo, com o prncipe Danilo interpretado por trs palhaos de circo:

    56

    SILVA, Ermnia. Op. cit., p. 238.

  • 37

    Mrio Pinheiro (que depois cederia lugar a Benjamim, inicialmente fa-

    zendo Negus), Benjamim de Oliveira e Eduardo das Neves.57

    O pblico endinheirado carioca j conhecia a opereta, que vinha sendo apresen-

    tada na capital federal desde 1908. No entanto, a primeira apresentao foi em alemo.

    No ano seguinte, foram encenadas verses dela em italiano, espanhol e ingls, sempre

    por companhias europias. O xito de pblico dessas verses despertou a ateno da

    imprensa, que passou, ento, a elogi-la. O gnero opereta nasceu com o Orphe aux

    enfers (1858), de Offenbach, em Paris. Anos depois, o formato musical foi suplantado

    na ustria, em 1871, pelo de J. Strauss. Enfim, o hngaro Franz Lehr inovou ao sinte-

    tizar num mesmo espetculo o cancan de Offenbach e a valsa de Strauss. Com isso,

    concebeu um dos mais populares espetculos musicais europeus, A viva alegre.

    A verso em portugus surgiu tambm em 1909, encenada por uma companhia

    portuguesa, que utilizou a verso feita um ano antes por Artur Azevedo, o qual no vi-

    veria o bastante para v-la no palco. O cinema tambm apresentou inmeras verses da

    opereta. Em 1910, surgiu a verso em disco, gravada em espanhol, e em 18 de janeiro

    estria uma verso pardica assinada pelo palhao Dudu das Neves. A montagem do

    Spinelli foi a primeira a ser encenada com elenco brasileiro. As enchentes, como se

    dizia na poca, que invadiam as arquibancadas do Spinelli para ver o espetculo nos

    quatro meses seguintes estria foram realizadas 203 apresentaes , incluam no s

    populares, mas tambm representantes do mundo smart, como atestam os cronistas

    da poca. Enfim, a dupla Spinelli-Benjamim havia conseguido atrair para o seu ambien-

    te os legtimos tipos da capital do arrivismo.

    A produo de A viva alegre no Spinelli trazia uma relao clara entre

    continuidade e transformao. Quando um texto era incorporado ao

    campo da teatralidade circense, enriquecia-se com as mltiplas lingua-

    gens que a compunham, dentro dos pressupostos do modo de organiza-

    o do trabalho circense. Nessa perspectiva, conformar um espetculo

    era um jeito de constituir o conjunto de expresses daquela teatralida-

    de, definindo o circo como um espao polissmico e polifnico. (...) va-

    le ressaltar que o reconhecimento pela apresentao da opereta, em

    1910, foi em torno de uma apresentao que mantinha uma organizao

    do trabalho, um modo de produo do espetculo e um processo de

    formao/socializao/aprendizagem articulados s caractersticas defi-

    nidoras e distintivas do grupo circense, que pressupunha, entre outros,

    contemporaneidade do espetculo, nomadismo, tradio oral, familiar e

    coletiva.58

    57

    TINHORO, Jos Ramos. Op. cit., p. 188. 58

    SILVA, Ermnia. Op. cit., p. 265.

  • 38

    Esse marco inicial do circo-teatro brasileiro evidencia um trao comum com as

    investigaes da matriz cultural da msica caipira, que encontrou campo para se multi-

    facetar a partir de hibridismos culturais. Tambm a cena teatral em que o circo-teatro

    surgiu buscou na integrao de linguagens e culturas a sua matria-prima de elabora-

    o. Portanto, no h como compreender a matriz cultural do circo-teatro usando a ex-

    cluso como base emprica do objeto proposto nesta pesquisa. No h como compreen-

    d-lo sem um dos dois mastros que sustentam a lona circense: a cultura popular ou a

    cultura de massa. Se na msica caipira a interao entre o folclrico, o popular e o mas-

    sivo ocorre no mbito de um processo de mediaes que acompanha o fluxo populacio-

    nal rural/urbano, no caso do circo-teatro essas mediaes atuam a partir de um processo

    sistmico, urbano. Assim, o espao do picadeiro, a princpio, e a instalao do palco

    italiano, no perodo subseqente, desenham os contornos de um campo de intensa ne-

    gociao simblica. Dele participam artistas, autores, palhaos e um pblico originrio

    da periferia urbana, integrado s transformaes sociais da urbe.

    O circo-teatro parece-se com um circo comum, apresentando atrs do

    picadeiro, do lado oposto entrada, o palco. Cadeiras, da chamada pla-

    tia nobre, podero ocupar o picadeiro na apresentao das peas. O

    uso do espao interno do circo, assim dividido, poderia fazer supor,

    primeira vista, uma rgida diviso entre palco e platia, o que de fato

    no acontece. Os atores podero romper essa diviso a qualquer mo-

    mento, durante o espetc