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    Organizadores

    JEAN-CHRISTOPHE MERLE

    LUIZ MOREIRA

    E D I T O R A

    DireitoeLegitimidade

    Escritos em homenagemao Prof. Dr. Joaquim Carlos Salgado,por ocasio de seu Decanato como

    Professor Titular de Teoria Geral e Filosofiado Direito da Faculdade de Direito da UFMG

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    DIREITO E LEGITIMIDADE

    OrganizadoresJean-Christophe Merle e Luiz Moreira

    TraduoClaudio MolzTito Lvio Cruz Romo

    Reviso tcnica da traduoLuiz Moreira

    Cludia Toledo

    Jean-Christophe Merle e Luiz Moreira

    CapaCamila Mesquita

    EditorAntonio Daniel Abreu

    Reviso e diagramao eletrnicaOficina das Letras Apoio Editorial S/C Ltda.internet: www.oficinadasletras.com.br

    CATHERINE AUDARD BRIAN BARRY ANDR BERTEN ADELA CORTINAREGENALDODA COSTA TERCIO SAMPAIO FERRAZ JR.

    ALEXANDRE TRAVESSONI GOMES PETER HBERLE JRGEN HABERMASOTFRIED HFFE AXEL HONNETH MATTHIAS KAUFMANN

    WOLFGANG KERSTING JEAN-FRANOIS KERVGAN PETER KOLLERROSEMIRO PEREIRA LEAL HENRIQUE CLUDIODE LIMA VAZ

    JEAN-CHRISTOPHE MERLE LUIZ MOREIRA EUGNIO PACELLIDE OLIVEIRAPHILIP PETTIT ULRICH K. PREU HENRY S. RICHARDSON

    LUIZ PAULO ROUANET JOAQUIM CARLOS SALGADOANTNIO LVARESDA SILVA QUENTIN SKINNER CLUDIA TOLEDO

    ANTNIO CARLOS WOLKMER

    Landy Livraria Editora e Distribuidora Ltda.Alameda Ja, 1791 Tels. e Fax (11) 3081.4169

    3085.5235 / 3082.7909 / 3082.4772

    CEP 01420-002 So Paulo, SP, Brasile-mail: [email protected]: www.landy.com.br

    2003

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    SUMRIO

    JEAN-CHRISTOPHE MERLE e LUIZ MOREIRA Introduo ... .. .. ... .. .. .. . 9

    PARTE I

    SOBERANIA, DIREITOSHUMANOSELEGITIMIDADE

    ANDR BERTEN Republicanismo e motivao poltica ................ 21

    REGENALDO DA COSTA Discurso, Direito e democracia emHabermas ................................................................................. 37

    PETER HBERLE A humanidade como valor bsico do EstadoConstitucional .......................................................................... 53

    JRGEN HABERMAS Sobre a legitimao pelos direitos humanos 67

    AXEL HONNETH A superinstitucionalizao da eticidade emHegel........................................................................................ 83

    MATTHIAS KAUFMANN Discurso e despotismo ............................. 94

    WOLFGANG KERSTING Democracia e educao poltica............... 107

    JEAN-FRANOIS KERVGAN Democracia e direitos humanos........ 115

    HENRIQUE CLUDIODE LIMA VAZ tica, Direito e Justia .......... 126

    LUIZ MOREIRA Direito e normatividade ...................................... 144ULRICH K. PREU Os elementos normativos da soberania ......... 158

    HENRY S. RICHARDSON Em defesa de uma democracia qualificada 175

    JOAQUIM CARLOS SALGADO Princpios hermenuticos dos direitosfundamentais............................................................................ 195

    QUENTIN SKINNER Estados livres e liberdade individual ............. 212

    CLUDIA TOLEDO A argumentao jusfundamental em RobertAlexy ....................................................................................... 231

    PARTE II

    PLURALISMOCULTURAL, LEGITIMIDADEEPROCEDIMENTO

    CATHERINE AUDARD tica pblica, moral privada e cidadania ... 249

    BRIAN BARRY Procedimento e justia social ............................... 262

    ADELA CORTINA tica transnacional e cidade cosmopolita ........ 274

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    8 DIREITO E LEGITIMIDADE

    TERCIO SAMPAIO FERRAZ JR. A legitimidade pragmtica dossistemas normativos ................................................................ 288

    ALEXANDRE TRAVESSONI GOMES tica, Direito e paz perptua.... 298

    OTFRIED HFFE Estados nacionais e direitos humanos na era daglobalizao ............................................................................. 309

    PETER KOLLER Soberania nacional e justia internacional ......... 322

    ROSEMIRO PEREIRA LEAL O garantismo processual e direitos fun-damentais lquidos e certos..................................................... 335

    JEAN-CHRISTOPHE MERLE tica kantiana de integrao e negocia-o de ingresso........................................................................ 344

    EUGNIO PACELLIDE OLIVEIRA A suprema corte e a era da incer-

    teza........................................................................................... 355PHILIP PETTIT Democracia e contestabilidade ............................. 370

    LUIZ PAULO ROUANET Igualdade complexa e igualdade de rendano Brasil .................................................................................. 385

    ANTNIO LVARESDA SILVA Da legitimidade do empregado e doempregador na soluo de seus prprios conflitos ................ 395

    ANTNIO CARLOS WOLKMER Pressupostos de legitimao para sepensar a justia e o pluralismo no Direito............................. 416

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    108 DIREITO E LEGITIMIDADE

    Desde o princpio, assim dizem os crticos, a ordem liberal teria saquea-do as reservas morais do sistema de vida. E quando, ento, em seguida,os recursos tradicionais da solidariedade e do autocomprometimento seesgotarem e as coisas corriqueiras do respeito e considerao sumirem,ento a sociedade liberal no mais poderia resistir presso centrfuga docrescente individualismo; ela sucumbiria e voltaria para o lugar, de onde,de acordo com o seu prprio mito de fundao, proveio, para o estadonatural da ausncia de leis e da guerra de todos contra todos. Aos olhos dosseus preocupados crticos, sociedade liberal restaria apenas um caminhopara evitar esse destino. Para frear a especulao econmica e, simultanea-mente, a dinmica de auto-realizao inescrupulosa, ela precisaria assegu-rar-se de novo do apoio das foras da tradio e fortalecer os compromis-sos do sistema de vida, precisaria reabilitar a religio e a metafsica, j que,

    em ltima instncia, no seriam as instituies do Direito, mas seria so-mente Deus que poder conduzir o ser humano moderno da sociedadeliberal para fora do dilema em que est preso.

    No entanto, nada de novo se est narrando ao liberalismo com essacrtica. Ele nem sequer cogita de pr em dvida os dados diagnostica-dos. S que lhes atribui uma avaliao contrria, isto , emancipatria.Foi, ao menos, coisa semelhante que fez nos seus anos de juventude.Basta lembrar o famoso dito de Kant, no sentido de que o problema dainstaurao do Estado [...] seria solucionvel mesmo para um povode demnios [...], contanto que tenham racionalidade. Com essa drs-tica imagem o filsofo expressou a convico fundamental do liberalis-mo clssico de que tranqilamente se poderia prescindir da virtuosidadedo cidado republicano na poca moderna, uma vez que todos os recur-sos exigidos para serem investidos na integrao social poderiam ser

    supridos exclusivamente do fundo motivacional do interesse prprioiluminista. Entrementes, o liberalismo naturalmente perdeu esse oti-mismo. H muito entendeu que Kant se enganara e que no possvelestabelecer nenhuma sociedade exclusivamente sobre o fundamentosoberano do Direito. A sociedade liberal tem uma necessidade conside-rvel de ethos, a necessidade de uma concepo conjunta do bem queproduza senso comunitrio e engajamento cidado e gere a disciplinamoral, que necessria, a fim de salvar a linda, espirituosa e temer-ria questo do liberalismo.1 Mas onde que se encontra essa concep-o conjunta do bem? Os adeptos das varinhas mgicas comunitaristasdirigem o seu olhar firmemente para o passado e, por vezes, tm-se aimpresso de que a atualidade est se tornando um local de encontropara redivivos. Nos dossis dos semanrios e nos encontros das acade-mias evanglicas a reanimao est em alta. Espera-se um redescobri-

    (1) ORTEGA Y GASSET, Jos,Der Aufstand der Massen [O levante das mas-sas] (1930), Hamburg, 1956, p. 55.

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    111WOLFGANG KERSTING

    participao democrtica so garantidas por uma configurao jurdicafavorvel, pelo aumento na adoo de elementos plebiscitrios consti-tucionais. Essa asseverao precisa ser, sempre de novo, contraposta atodos os entusiastas da tica do discurso e da sociedade civil. roman-tismo democrtico crer que a qualidade da cultura cidad seja apenasum problema de participao, alegando-se que, de momento, essa par-ticipao estaria pelo cho, como que estrangulada devido a passivida-de poltica forada, mas que, a seguir, com o corajoso fortalecimentodos elementos participatrios, iria subitamente florescer. A qualidadeda participao tica depende exclusivamente da competncia tica doscidados. E essa competncia no se adquire por meio de procedimen-tos de Direito Constitucional, mas to-somente pela educao.

    2. Educao poltica tica

    O tema da educao poltica tica tem consistentemente feito parteda poltica clssica. Na Filosofia poltica moderna, entretanto, esse mbito desconsiderado como problema. H duas razes para isso.

    Por um lado o que vale para a Filosofia poltica nos incios da eramoderna, de Hobbes at Kant , achava-se que seria suficiente trabalharcom o fundo motivacional do interesse prprio iluminista. Por outrolado o que vale para a Filosofia poltica na atualidade , havia ainibio para fazer perguntas sobre a educao, em vista do dever de oEstado ser neutro. Um Estado que se compreende como moderador eadministrador do pluralismo no pode transmitir ele mesmo orienta-es de valorao e tem que deixar tarefas desse tipo s instituiessociais respectivas, famlia e igreja. Obviamente a excluso da edu-cao deixou sem responder a questo, de onde deveriam afinal vir oscidados eticamente competentes que formariam a sustentao para quea sociedade pudesse organizar-se a si mesma de forma deliberativa edemocrtica. Em vez disso, acabou-se gerando na teoria umromanticismo democrtico-terico que, com os olhos intencionalmentebem fechados, se esmerava dedicadamente em dar um polimento aoideal democrtico, confrontando a realidade com conceitos cada vezmais fantsticos de participao cidad e de autodeterminao pela so-ciedade civil. E alguns, que eram especialmente imunes realidade, atchegam a crer, por isso, que aquilo que, no Estado nacional, no foibem-sucedido, seguramente daria certo na amplitude da sociedade mun-dial transnacional. Quem lamentar a desmotivao poltica, a crescentefalta de senso comunitrio e a desertificao social do sistema de vida,no deveria calar a respeito de educao poltica. E quem quiser calar a

    respeito de educao poltica, no deveria fazer exigncias de democra-tizao, pleitear por engajamento da sociedade civil e cobrar mais opor-tunidades de participao. A autenticidade do terico manda que a idiano definhe em gesticulao. Crtica normativa que estiver comprome-

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    113WOLFGANG KERSTING

    de distenso do individualismo quanto dos efeitos de alienao douniversalismo. O cidado liberal precisa de virtudes especficas damodernidade, virtudes reflexivas, nas quais se expressa a propriedadedistintiva da vida na era moderna; ele necessita estar capacitado para acomplexidade e saber combinar a demanda por tolerncia no pluralis-mo com a capacidade de defender conscientemente uma caractersticaliberal prpria; ele precisa saber agentar incertezas e resistir s tenta-es das coisas simples; ele precisa ser altamente capacitado para coo-perar e estar em condies de elaborar em conjunto concepes de metaspolticas e de autocompreenso tica; e ele no pode sacrificar a dispo-sio de defender essa forma de vida, que a mais complicada que j foidesenvolvida at agora na histria mundial, em nome de um estado deateno neutralista, em atitude de expectativa, esperando o momento

    que lhe pudesse carrear a maior vantagem.Partindo dessa idia, falta apenas um pequeno passo at a educao.

    que virtudes precisam ser aprendidas; cidados no caem do cu, euma sociedade liberal no deveria relegar a formao de uma cidadanialiberal ao acaso. Esta linha de argumentao tem a vantagem de evitar ovis funcionalista, no qual cai a maioria da crtica do liberalismo. Aindaque fosse certo que para a sua necessidade de integrao a sociedadeliberal abasteceu-se at agora das fontes ticas que ainda jorram desistemas da tradio, j h muito empalidecidas, esse fato no nos levaadiante. Tradies so perpassadas por elementos de veracidade e nopodem, por isso, ser artificialmente revividas; aqueles que pretendemreintroduzir a religio e a metafsica, em virtude dos seus bem-vindosefeitos integrativos, desprezam a ambos, o sistema de interpretao datradio e a sociedade liberal da atualidade. Indubitavelmente, o libera-

    lismo constitui um projeto sobremaneira frgil da era moderna poltica,mas ilusrio que se pudesse estabiliz-lo por meio de imitaes datradio, aplicadas como instrumentos de forma manipuladora. Mas igualmente ilusrio, atribuir fora geradora de motivao s regras uni-versalistas do Direito e da Moral; a Constituio no uma ptria. So-mos pessoas em busca de felicidade e de sentido, mas no em busca dejustia; concepes de felicidade e interpretaes de sentido podemmotivar-nos, os procedimentos universalistas de formao da vontadedemocrtica e a ordem que contextualiza o igualitarismo dos direitoshumanos, porm, no produzem efeitos que orientem para a ao. Oliberalismo, no entanto, constitui uma ordem exigente que precisa dalealdade, da efetiva afirmao e da ativa colaborao dos cidados. Se oliberalismo perder os seus cidados, ele se torna indigesto, o sistemapoltico definha, a cultura da distncia desaparece e o Direito se acovar-

    da. O liberalismo, portanto, tem que compreender a si mesmo como umbem e no titubear em tomar providncias para a sua continuidade, pelointeresse poltico prprio atravs de uma educao poltica corajosa.Mas para alcan-lo, ser exigido a formao de um ethos liberal, um

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    114 DIREITO E LEGITIMIDADE

    ideal de cidadania, que o liberalismo desista de autocompreender-sepor um mal-entendido neutralista e que encontre a coragem de no pro-ver alunos apenas com cognitivas qualificaes-chave e oportunidadesindividuais de carreira, mas de educ-los como cidados, que em umaeducao poltico-tica, orientada para a excelncia, se suscite nos ado-lescentes a compreenso de que o liberalismo um assunto bom e justo,e, por isso mesmo, belo, imaginativo e arriscado.

    O problema da democracia apresenta, porm, ainda outra faceta: que apenas a educao dos cidados no basta. Na democracia liberal anecessidade de ethos maior. Necessitamos tambm de polticos etica-mente educados, uma vez que no s uma cidadania que vai sumindo,pode arruinar a ordem poltica liberal, mas o abandono tico dos polti-cos tambm pode destroar a democracia e o Estado de Direito. Afinal

    de contas, a falta de sensibilidade para questes de forma, de postura ede decncia entre a classe poltica ainda bem mais periclitante para aqualidade e a consistncia da democracia liberal, uma vez que de qual-quer modo, como no sem razo alguns alegam, o cidado j estaria detodo politicamente desapropriado e o sistema comunitrio teria passados mos dos partidos polticos. Se os proprietrios e ocupantes do poderj no forem orientados pelo suave regime dos parmetros costumeirosda decncia, se fraquejar a fora da naturalidade tica, que a que for-ma a mentalidade e orienta a ao, e abandonar o campo em favor dooportunismo de auto-afirmao descompromissado, descarado e vers-til, ento o fundamento da democracia liberal cai em eroso. Como serque ns liberais chegamos convico de que to-somente o conjuntode regras e o sistema contariam e que s importaria dar uma forma tal moldura institucional que todos, cidados e polticos, j funcionariam

    por interesse prprio, como o plano geral da poltica de estabilidadeprevia? Seguramente coube razo democracia diante de Plato. Noh motivo para entregar a direo do sistema comunitrio a um grupo deextraordinrios especialistas da sabedoria e abdicar da organizao dasoberania democrtica. Mas parece e acumulam-se as motivaes parasuspeit-lo que a democracia no consegue arranjar-se sem Plato.Preocupantes fenmenos de carncia tica clamam por uma teoria deeducao poltica e tica dos cidados e dos polticos. E certamente tarefa da Filosofia poltica da atualidade adotar essa temtica e encon-trar uma forma de expresso, que fosse adequada s condies atuais depensamento e de vida, para o problema da garantia suficiente dos recur-sos ticos de engajamento, de lealdade e de decncia. que no serpossvel, de modo to descomplicado, revolver a tralha, como Rawls eos seus ao ressuscitarem o contrato, e reativar o venervel gnero do

    espelho do prncipe.

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    ESTADOS LIVRES E LIBERDADE

    INDIVIDUAL*

    QUENTIN SKINNER

    Professor Titular de Histria Moderna da

    Universidade de Cambridge, Gr-Bretanha.

    I

    Na Gr-Bretanha do incio da Idade Moderna, a teoria neo-romanados Estados livres tornou-se uma ideologia altamente subversiva. A es-tratgia seguida pelos tericos neo-romanos (Milton, Harrington, More,Sidney, Nedham etc.) foi a de apropriar-se do valor moral supremo deliberdade e aplic-lo exclusivamente a certas formas um tanto radicaisde governo representativo. Isto acabou permitindo-lhes estigmatizar,com o ignbil nome de escravido, a um nmero de governos como oAncien Rgime na Frana e o domnio britnico na Amrica do Norte que eram considerados legtimos e at progressistas. Por este moti-vo, dificilmente causar surpresa a idia de que a teoria neo-romanasempre conviveu com uma saraivada de crticas fortemente hostis.

    A mais radical dentre estas crticas foi expressa, talvez da forma maisdecisiva, noLeviat, de Hobbes. Trata-se da mais pura confuso, afirmaHobbes, supor que haja alguma ligao entre o estabelecimento de Es-tados livres e a manuteno da liberdade individual. A liberdade descri-ta tanto pelos autores romanos quanto por seus admiradores modernosno a liberdade dos indivduos, porm, simplesmente, a liberdadedo Estado.1

    (*) Traduo do original em ingls: Tito Lvio Cruz Romo; Reviso tcnica datraduo: Cludia Toledo e Luiz Moreira.

    Artigo gentilmente cedido pelo autor para o presente livro com o ttulo origi-nal Free states and individual liberty.

    (1) HOBBES, Thomas.Leviathan, or The Matter, Forme & Power of a Commom-weath Ecclesiasticall and Civil, ed. Richard Tuck, revised student edn.,Cambridge [traduo brasileira Leviat ou Matria, Forma e Poder de umEstado Eclesistico e Civil. Traduo de Alex Marins. So Paulo: EditoraMartin Claret, 2002] 1996, p. 149.

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    213QUENTIN SKINNER

    Desde ento, a objeo de Hobbes, logo adotada por Filmer,2 temsido reiterada por diversos autores.3 Segundo consta, os autores neo-romanos estavam preocupados com a liberdade das cidades e no coma liberdade dos cidados individualmente.4 Todavia, esta controvrsiano logra arcar com a estrutura da teoria neo-romana de liberdade. Se verdade que os referidos autores tomam esta idia de Estados livrescomo seu ponto de partida, assim o fazem, em parte, por causa de umatese radical que desejam desenvolver acerca do conceito de liberdadeindividual. De acordo com sua tese e sem maiores rodeios somentese pode ser livre em um Estado livre.

    verdade que esta no foi a principal razo apontada originalmentepara se querer viver como um cidado de um Estado livre. Nestas altu-ras, talvez precisemos atentar para uma importante incompatibilidade

    de opinies na tradio do pensamento neo-romano. Conforme os anti-gos autores romanos e seus discpulos renascentistas, o mais importantebenefcio da vida numa civitas libera [cidade livre] consiste em taiscomunidades apresentarem uma disposio especial para alcanar aglria e a grandeza. Dentre os autores da Antigidade, Salstio cons-tantemente invocado como a autoridade incontestvel nesta rea. SuaobraBellum Catilinae [Guerra Catilinria] inicia-se com um apanhadohistrico da ascenso de Roma. As informaes a contidas nos ensi-nam que a autoridade real, instituda, em primeiro lugar, para conser-var a liberdade e fazer crescer o Estado, resvalou pela arrogncia e pelatirania.5 Confrontado com esta crise, o povo romano trocou seus reispor um sistema anual de magistraturas, aps o que incrvel lembrar a

    (2) FILMER, Sir Robert. Patriarcha and Other Writings [Patriarca e outros escri-tos], ed. Johann P. Sommerville, Cambridge, 1991, p. 275.

    (3) As duas formas mais conhecidas de retomada desta temtica talvez tenhamsido empreendidas por Benjamin Constant e, na nossa era, por Isaiah Berlin.Cf. CONSTANT, Benjamin. The Liberty of the Ancients Compared with thatof the Moderns in Political Writings [A liberdade dos antigos comparada coma dos modernos nos escritos polticos], ed. Biancamaria Fontana, Cambridge,1988, p. 309-328, especialmente p. 309, 316-317, e BERLIN, Isaiah. TwoConcepts of Liberty: An Inaugural Lecture delivered before the University ofOxford on 31 October 1958 [Dois conceitos de liberdade: uma aula inauguralfeita na Universidade de Oxford em 31 de outubro de 1958], Oxford, 1958,especialmente p. 39-47.

    (4) Vide, por exemplo, SCOTT, Jonathan. The Rapture of Motion: JamesHarringtons Republicanism [O arrebatamento da proposta: o republicanismode James Harrington]. Political Discourse in Early Modern Britain [Discurso

    poltico na nascente Gr-Bretanha moderna], ed. Nicholas Phillipson andQuentin Skinner, Cambridge, 1993, nota p. 152.

    (5) SALLUST.Bellum. Catilinae in Sallust, traduo e edio J. C. Rolfe, London,1931, p. 1-128, especialmente, 6.7, p. 12.

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    215QUENTIN SKINNER

    do esboo histrico feito por Salstio sobre a Repblica Romana maissombria e irnica, do que se poderia esperar. Com a grandeza, queixa-se Salstio, aportaram, entre os lderes de Roma, a ambio e a cobiapor poder; com o aumento do poder, vieram a avareza e uma necessida-de insacivel por cada vez mais butins e trofus. Segundo consta, ovilo desta histria seria Lcio Sulla, que ergueu um exrcito perigo-samente grande, ensinou a seus comandados a cobiar esplendoresasiticos e depois usou seu exrcito para tomar posse do Estadoromano transformando excelentes etapas iniciais em um desagradveldesfecho.11

    Ao longo do interregno, tornou-se extremamente fcil, para os auto-res neo-romanos na Gr-Bretanha, identificar Oliver Cromwell com aimagem de Sulla retratada por Salstio, sobremodo aps Cromwell ter

    conquistado a Esccia e a Irlanda e ter feito uso da fora para dissolverParlamento no ano de 1653. Harrington faz uma clara advertncia aolembrar-nos que Sulla derrubou o povo e o Estado de Roma, estabe-lecendo a base da monarquia subseqente.12 Um crescente temor deque a busca por glria no estrangeiro pudesse levar runa da liberdadeem seu prprio pas fez de Harrington, bem como de seus adeptos, cr-ticos veementes do protetorado cromwelliano, levando-os, ao mesmotempo, a pensar de modo diferente sobre os mritos especiais de regi-mes republicanos. Ao invs de alardearem a capacidade de ascenso deEstados livres glria e grandeza, passaram sobretudo a destacar acapacidade destes regimes de assegurarem e promoverem as liberdadesde seus prprios cidados.

    Este sempre fora um tema secundrio nos textos antigos erenascentistas. O benefcio comum de se viver em um Estado livre,

    atestara Maquiavel, o de ser capaz de usufruir, com liberdade e semnenhum temor, de suas prprias possesses.13 A isto acrescentara, numtom salustiano: a razo pela qual os pases livres sempre tm imensosganhos reside em que todos sabem no apenas que nasceram em umEstado de liberdade, e no como escravos, mas tambm que podemascender, atravs de sua virt, a posies de destaque.14 Esta a reivin-dicao que os autores neo-romanos da Repblica inglesa apresentamcomo centro de sua viso de Estados livres. No incio de Oceana,Harrington declara que o valor especial de comunidades desta natureza

    (11) SALLUST.Bellum Catilinae in Sallust, 11.4, p. 18-20.(12) HARRINGTON, James. The Commonwealth of Oceana and A System of

    Politics, p. 44.(13) MACHIAVELLI, Nicoll.Il principi e Discorsi sopra la prima deca di Tito

    Lvio, 1.16, p. 174.(14) MACHIAVELLI, Nicoll.Il principi e Discorsi sopra la prima deca di Tito

    Lvio, 11.2, p. 284.

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    DIREITO E LEGITIMIDADE216

    deve-se a que suas leis so formuladas por todo indivduo a fim deproteger a liberdade de todo indivduo, o que, dessa maneira, vem aconsistir na liberdade do Estado.15 Milton termina seuReadie and EasieWay com uma retumbante reafirmao do mesmo sentimento. Alm denossa liberdade de religio, a outra parte de nossa liberdade consistenos direitos de cidado e progressos de cada indivduo, e indubitvelque a fruio destes nunca [] mais segura, e o acesso a eles, nuncamais aberto, do que num Estado.16

    Nesse sentido, estes autores esto comprometidos com uma conclu-so primordial: somente possvel usufruir integralmente da liberdadeindividual, caso se viva como cidado de um Estado livre. Seja comofor, como nos vem lembrar Hobbes, isto est longe de ser uma infernciabvia e, ao que tudo indica, parece menos consistente que um ilusionis-

    mo verbal. Agora necessitamos, portanto, considerar que evidncia osautores neo-romanos apresentam para apoiar sua concluso e como sedefendem da sempre repetida acusao feita por Hobbes.

    Para acompanharmos sua argumentao, necessrio, de incio,voltarmos analogia que fazem entre corpos polticos e corpos natu-rais. Segundo os autores, o significado de possuir ou de perder sua liber-dade dever ser o mesmo tanto para um cidado quanto para uma comu-nidade livre de Estados ou um Estado livre. Conseqentemente, argu-mentam que, para indivduos como para Estados, sempre haver doiscaminhos distintos, atravs dos quais a liberdade poder ser perdida ouminada. Em primeiro lugar, o indivduo ser privado de sua liberdade,caso o poder do Estado (ou de seus concidados) seja usado para for-lo ou coagi-lo a praticar (ou deixar de praticar) alguma ao que noseja nem imposta nem proibida por lei. Recorrendo ao exemplo mais

    bvio: caso o poder poltico esteja nas mos de um governante tirnico,e caso o tirano em questo empregue seu poder para ameaar ou inter-ferir na vida dos indivduos, a liberdade ou as propriedades destes, bemcomo sua liberdade enquanto cidados, estaro minados at este ponto.Por esse motivo, a recusa de John Hampden em pagar o imposto shipmoney* no ano de 1635 sempre ocupou um grande espao nas explica-es oferecidas por estes autores sobre a ecloso da guerra civil ingle-

    (15) HARRINGTON, James. The Commonwealth of Oceana and A System ofPolitics, p. 20.

    (16) MILTON, John. The Readie and Easie Way to Establish a FreeCommonwealth Complete Prose Works of John Milton [Trabalhos comple-tos de John Milton], vol. VII, ed. Robert W. Ayers, revised edn., New Haven,

    Conn, 1980, p. 458.(*) Nota do tradutor: o ship money era um imposto pago apenas pelas cidades

    porturias para a defesa da marinha real, que Carlos I (1625/1642) estendeus demais regies do pas.

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    IGUALDADE COMPLEXA E IGUALDADE

    DE RENDA NO BRASIL

    LUIZ PAULO ROUANET

    Professor de Filosofia da PUC-Campinas e

    da Universidade So Marcos, So Paulo.

    (...) manifestamente contra a lei da natureza,

    seja qual for a maneira por que a definamos,uma criana mandar num velho, um imbecil conduzir

    um sbio, ou um punhado de pessoas regurgitar

    superfluidades enquanto multido faminta

    falta o necessrio.

    (Rousseau, Discurso sobre a origem e os fundamentosda desigualdade entre os homens, 1978, p. 282, in fine)

    A partir de uma preocupao em se pensar as condies que tornampossvel uma sociedade justa, a questo da desigualdade, especialmentegritante em um pas como o Brasil, coloca-se como central. Mais, tal-vez, do que a questo da tolerncia, cuja importncia central em pa-ses com aguados conflitos tnicos e religiosos, a pesquisa sobre a de-

    sigualdade, ou a busca de igualdade, impe-se em um pas que apresen-ta as mais altas taxas de concentrao de renda do mundo, em umaperversa combinao das mais altas taxas de lucros por parte das em-presas com os salrios mais baixos pagos aos trabalhadores. A reflexosobre a desigualdade encontra apoio na bibliografia filosfica, a come-ar por Jean-Jacques Rousseau e chegando a nossos dias com John Rawlse Michael Walzer.

    1. Igualdade complexa

    Primeiramente, apresento o conceito de igualdade complexa, con-forme a definio de Walzer: Em termos formais, igualdade complexasignifica que a posio de nenhum cidado em uma esfera ou em rela-o a um bem social pode ser minada por sua posio em alguma outraesfera, em relao a algum outro bem.1 Em outros termos, a suposta

    (1) WALZER, Michael. Spheres of justice [Esferas da justia]. New York: BasicBooks, 1983, p. 19.

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    superioridade de um cidado em uma determinada esfera no lhe garan-te superioridade em uma esfera distinta daquela. O crucial que ne-nhum bem, ou posio, seja dominante, isto , seja mais importante, emsentido absoluto, do que outro bem ou posio. Em uma sociedade jus-ta, portanto, um determinado bem, como o dinheiro, no deve prevale-cer sobre outros bens, como educao, sade, alimentao, trabalhodigno, lazer etc. Mas h o risco de um elemento utpico em um mausentido, algo a que Walzer se refere, em outro texto, como utopismoruim (bad utopianism): A filosofia deve ser historicamente infor-mada e sociologicamente competente se quiser evitar o utopismo ruime reconhecer as duras escolhas que muitas vezes se exigem na vidapoltica.2 preciso, portanto, considerar a sociedade concreta, poisdepende de sua organizao interna haver esse predomnio de um fato

    sobre os outros. Como diz David Miller, a extenso da convertibilidadeentre esferas de distribuio depende dos arranjos institucionais de cadasociedade.3 Assim, se pensarmos em nossas prprias sociedades, e nomeu caso, no Brasil, evidente que a grande desigualdade existente primordialmente econmica, refletindo-se sobre todas as demais esfe-ras.4 Neste texto, gostaria de discutir a aplicabilidade desse conceito deigualdade complexa a uma sociedade como a brasileira, e que vale, emcerta medida, tambm para outras sociedades latino-americanas.

    David Miller manifesta essa preocupao na extenso da igualdadecomplexa a outros tipos de sociedade:

    (...) no quero excluir a possibilidade de que a escala de desigual-dade de renda em sociedades contemporneas constitua um obstculoindependente igualdade complexa. Pode ser que, onde as diferenasde renda so muito grandes elas sejam suficientes para suscitar divises

    perceptveis de classe, mesmo que sejam contrabalanadas por outrasesferas distributivas. Nesse caso, os igualitarianos complexos no po-dero mais limitar sua ateno ao controle da dominncia: manter aseparao das esferas de justia pode ser insuficiente para alcanar igual-dade de status.5

    (2) WALZER, Michael. On toleration. New Haven/London: Yale University Press,1997, p. 5 [edio brasileira: WALZER, Michael.Da tolerncia . Trad. AlmiroPisetta. So Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 8].

    (3) MILLER, David; WALZER, Michael (eds.). Pluralism, justice, and equality[Pluralismo, justia e igualdade], Oxford: Oxford University Press, 1995, p.216.

    (4) Sobre os dados sobre a desigualdade no Brasil, ver BARROS, Ricardo P. de;HENRIQUES, Ricardo; MENDONA, Rosane. Desigualdade e pobreza no

    Brasil: retrato de uma estabilidade inaceitvel.Revista Brasileira de Cin-cias Sociais, vol. 15, n. 42, p. 123-142.

    (5) MILLER, David; WALZER, Michael (eds.). Pluralism, justice, and equality[Pluralismo, justia e igualdade], p. 214.