Módulo 5 - Aula 3t - Andrea Fraser - Da crítica às instituições a uma instituição da crítica

Embed Size (px)

Citation preview

  • 8/13/2019 Mdulo 5 - Aula 3t - Andrea Fraser - Da crtica s instituies a uma instituio da crtica

    1/10

    Daniel Buren. Photo-Souvenir: Peinture-Sculpture,

    1971. Vista da instalao, Museu Solomon R.

    Guggenheim, Nova York.

  • 8/13/2019 Mdulo 5 - Aula 3t - Andrea Fraser - Da crtica s instituies a uma instituio da crtica

    2/10

    179

    Da crtica s instituies1a uma instituio da crtica

    Andrea Fraser

    Quase 40 anos aps sua primeira apario, as prticas atualmente as-

    sociadas crtica institucional parecem estar, para muitos, bem... institucionalizadas.

    S na ltima primavera, Daniel Buren retornou com uma importante instalao ao Museu

    Guggenheim (responsvel pelas famosas censuras a seu trabalho e ao de Hans Haacke em

    1971); Buren e Olafur Eliasson discutiram o problema que permeia a instituio nas

    pginas desta revista;2e o Museu de Arte do Condado de Los Angeles LACMA abrigou a

    conferncia Institutional Critique and After. Outros simpsios planejados para o centro

    The Getty e a conferncia anual do College Art Association, junto com um nmero espe-

    cial de Texte zur Kunst, podem muito bem demonstrar a conseqente reduo da institu-

    tional critique a seu acrnimo: IC.Ick,3ou melhor, eca!

    No contexto de exposies museolgicas e simpsios de histria da arte como esses,

    nota-se cada vez mais que a crtica institucional vem sendo tratada com o inquestion-

    vel respeito freqentemente atribudo a fenmenos artsticos que atingiram certo status

    histrico. Esse reconhecimento, entretanto, transforma-se rapidamente em ocasio para

    dispensar as reivindicaes crticas a ela associadas, medida que o ressentimento contra

    suas inferidas exclusividade e arrogncia rapidamente vem tona. Como podem artistas

    que se tornaram eles prprios instituies da histria da arte reivindicar uma crtica instituio da arte? Michael Kimmelman ofereceu um breve exemplo de seu ceticismo em

    resenha crtica sobre a mostra de Buren no Guggenheim, publicada no New York Times.

    Enquanto a crtica instituio do museu e ao status de mercadoria da arte eram

    idias contra o establishmentquando surgiram, mais ou menos 40 anos atrs, como no

    caso do sr. Buren, argumenta Kimmelman, Buren agora um artista oficial da Frana,

    papel que no parece perturbar alguns de seus (um dia) radicais fs. Nem, aparentemente,

    o fato de que sua marca ou tipo de anlise institucional (...) invariavelmente dependa da

    generosidade de instituies como o Guggenheim. Kimmelman segue com a comparao

    desfavorvel a Buren com relao a Christo e Jeanne-Claude, que operam, na maior parte

    das vezes, fora das instituies tradicionais, com independncia fiscal, em esfera pblica

    que ultrapassa o controle legislativo dos expertsda arte.4

    Mais dvidas sobre a eficcia histrica e atual da crtica institucional surgem junto a

    lamentos sobre como tudo vai mal no mundo da arte, quando o MOMA abre suas novas

    galerias de exposio temporria com uma coleo empresarial, e fundos de proteo emarte vendem quotas de uma nica pintura. Nessas discusses, nota-se certa nostalgia da

    crtica institucional como artefato (agora) anacrnico de uma era anterior ao megamuseu

    Traduo Gisele Ribeiro.

    1 Se, no original, the critique of institutions

    nos remete the critique of pure reason e

    demais crticas kantianas, poderamos levar

    em considerao a traduo dos ttulos de

    Kant para o portugus, como Crtica da Ra-

    zo Pura, e utilizar crtica das instituies.

    No entanto, optamos pela expresso crtica

    s instituies ao longo de todo o texto, por

    nos parecer mais esclarecedora. (NT)

    2 O texto se refere entrevista publicada na

    Artforumde maio de 2005. Daniel Buren, Ola-

    fur Eliasson, In Conversation: Daniel Buren

    & Olafur Eliasson, Artforum, vol. XLIII, n. 9,

    maio 2005, p. 208-214. (NT)

    3 Expresso de nojo em ingls. (NT)

    Da crtica s instituies a uma instituio da crtica Andrea Fraser

    4 Michael Kimmelman, Tall French Visitor

    Takes up Residence in the Guggenheim, New

    York Times, 25 de maro de 2005.

  • 8/13/2019 Mdulo 5 - Aula 3t - Andrea Fraser - Da crtica s instituies a uma instituio da crtica

    3/10

    180 concinnitasano 9, volume 2, nmero 13, dezembro 2008

    corporativo e ao mercado global da arte em funcionamento 24 horas, sete dias por sema-

    na, tempo em que artistas podiam ainda, possivelmente, tomar uma posio crtica contra

    ou fora da instituio. Hoje, segundo tal argumento, no h mais um fora. Como, ento,podemos imaginar, e muito menos realizar, uma crtica s instituies artsticas quando

    museus e mercado se tornaram um aparato de reificao cultural que tudo engloba? Ago-

    ra, quando mais necessitamos, a crtica institucional est morta, vtima de seu sucesso ou

    fracasso, engolida pela instituio contra a qual se posicionava.

    As avaliaes sobre a institucionalizao da crtica institucional e as acusaes de obso-

    lescncia na era dos megamuseus e mercados globais, porm, se fundam em uma concep-

    o bsica equivocada do que a crtica institucional, ao menos luz das prticas que

    levaram a sua definio. necessrio um reexame de sua histria e suas metas, e uma

    reiterao das questes mais urgentes em jogo neste momento.

    Recentemente descobri que nenhuma da meia dzia de pessoas que freqentemente so

    consideradas fundadoras da crtica institucional reivindica o uso do termo. Utilizei,

    eu mesma, a expresso, pela primeira vez em veculo impresso, em um ensaio de 1985, In

    and Out of Place, sobre o trabalho de Louise Lawler, quando apresentava a lista (agora jfamiliar) de artistas como Michael Asher, Marcel Broodthaers, Daniel Buren e Hans Haa-

    cke, comentando que, embora muito diferentes, todos esses artistas estavam engajados

    na crt ica institucional.5

    Provavelmente, encontrei pela primeira vez essa lista de nomes atrelados ao termo ins-

    tituio no ensaio de Benjamin H. D. Buchloh Allegorical Procedures,6em que descreve

    as anlises, realizadas por Buren e Asher, da posio e funo histricas das construesestticas no mbito institucional, ou as operaes, de Haacke e Broodthaers, que reve-

    lavam as condies materiais daquelas instituies como ideolgicas.7O ensaio segue

    fazendo referncia linguagem institucionalizada, ao enquadramento institucional,

    a tpicos relativos exposio institucional, e define como uma das caractersticas

    essenciais do Modernismo o impulso autocrtica, operada de dentro, a fim de questio-

    nar sua institucionalizao mas a expresso crtica institucional no aparece nunca

    nesse artigo.

    Em 1985, j havia lido tambm o livro Theory of the Avant-Garde,8de Peter Brger, que

    fora publicado em alemo em 1974 e finalmente em ingls em 1984. Uma das teses cen-

    trais de Brger que com os movimentos histrico-vanguardistas, o subsistema social

    que a arte entra no estgio de autocrtica. O Dadasmo (...) no critica mais as escolas

    que o precederam, mas sim a arte como instituio e o curso de seu desenvolvimento na

    sociedade burguesa.9

    Tendo estudado com Buchloh e tambm com Craig Owens, responsvel pela edio de

    meu ensaio sobre Lawler, acho muito provvel que um deles tenha deixado escapar a

    5 Andrea Fraser, In and Out of Place, Art in

    America, junho de 1985, p. 124.

    6 Texto publicado em portugus in Benjamin

    Buchloh, Procedimentos alegricos: apro-

    priao e montagem na arte contempornea,Arte&Ensaios, n. 7, novembro de 2000, p.

    178-197. (NT)

    7 Benjamin Buchloh, Allegorical Procedures:

    Appropriations and Montages in Contemporary

    Art,Artforum, setembro de 1982, p. 48.

    8 Em portugus: Peter Brger, Teoria da Van-

    guarda, So Paulo: Cosac&Naify, 2008. (NT)

    9 Peter Brger, Theory of the Avant-Garde,

    Minneapolis: University of Minnesota Press,

    1984, p. 22.

  • 8/13/2019 Mdulo 5 - Aula 3t - Andrea Fraser - Da crtica s instituies a uma instituio da crtica

    4/10

    181

    expresso crtica institucional. Tambm possvel que em meados dos anos 80 seus

    alunos da School of Visual Arts de Nova York e do Programa de Estudos Independentes do

    Whitney (onde Haacke e Martha Rosler tambm lecionaram) incluindo Gregg Bordowitz,Joshua Decter, Mark Dion e eu tivessem comeado a us-la como mera abreviao de

    crtica s instituies em nossos debates depois das aulas. No encontrando nenhuma

    utilizao da expresso em publicaes anteriores, curioso considerar que o cnone que

    pensvamos estar recebendo poderia estar sendo estabelecido naquele momento. Pode ser,

    alis, que nossa recepo de trabalhos de 10 ou 15 anos atrs, de textos reeditados e de

    tradues tardias (de autores como Douglas Crimp, Asher, Buren, Haacke, Rosler, Buchloh

    e Brger), e nossa percepo daqueles trabalhos e textos como cannicos, constitussem

    um momento central do chamado processo de institucionalizao da crtica institucional.

    Vejo-me, portanto, envolta nas contradies e cumplicidades, ambies e ambivalncia,

    das quais freqentemente acusada a crtica institucional, presa entre a possibilidade de

    auto-indulgncia, como a primeira pessoa a mencionar a expresso em publicao impres-

    sa, e a criticamente vergonhosa perspectiva de ter representado um papel na reduo de

    certas prticas radicais a uma breve frase, embalada para cooptao.

    Se, de fato, a expresso crtica institucional surgiu como abreviao de crtica s ins-tituies, hoje a frase de efeito foi reduzida ainda mais a uma interpretao restrita de

    suas partes constitutivas: instituio e crtica. A prtica da crtica institucional

    normalmente definida por seu objeto aparente, a instituio, que entendida, por sua

    vez, primordialmente em referncia a lugares estabelecidos, organizados para a apresen-

    tao da arte. Como descreve ofolder do simpsio do LACMA, a crtica institucional a

    arte que expe as estruturas e lgicas dos museus e galerias de arte. Crtica aparece de

    modo ainda mais vago do que instituio, vacilando entre um bastante tmido expor,refletir ou revelar, por um lado, e, por outro, vises de uma revolucionria derrocada

    da ordem museolgica vigente, com a crt ica institucional funcionando como guerrilheiro

    engajado em atos de subverso e sabotagem, rompendo paredes, chos e portas, provo-

    cando censura, colocando abaixo poderes estabelecidos. Em qualquer dos casos, arte e

    artista geralmente figuram como contrrios, antagonicamente, a uma instituio que

    incorpora, coopta, transforma em mercadoria, seno usurpa, prticas um dia radicais e

    no institucionalizadas.

    Essas representaes podem, verdade, ser encontradas em textos de crticos associados

    crtica institucional. Entretanto, a idia de que a crtica institucional ope arte e institui-

    o ou supe que prticas artsticas radicais podem existir, ou algum dia existiram, fora

    da instituio da arte antes de serem institucionalizadas pelos museus, desmentida

    ponto a ponto pelos escritos e trabalhos de Asher, Broodthaers, Buren e Haacke. Desde o

    anncio de Broodthaers de sua primeira exposio em galeria em 1964 em que ele co-

    mea confidenciando que a idia de inventar algo insincero finalmente passou por minha[sua] cabea para ento nos informar que seu marchandlevaria 30%10, a crtica do

    aparato que distribui, apresenta e coleciona arte tem sido inseparvel da crt ica prpria

    Da crtica s instituies a uma instituio da crtica Andrea Fraser

    10 Broodthaers apud Benjamin Buchloh, Open

    Letters, Industrial Poems, October,n. 42, ou-

    tono de 1987, p. 71.

  • 8/13/2019 Mdulo 5 - Aula 3t - Andrea Fraser - Da crtica s instituies a uma instituio da crtica

    5/10

    182 concinnitasano 9, volume 2, nmero 13, dezembro 2008

    prtica artstica. Como coloca Buren em The Function of the Museum,11de 1970, se o

    Museu deixa sua marca, impe sua moldura (...) em tudo que exibe, de modo profundo

    e permanente, o faz to facilmente porque tudo que o museu mostra s consideradoe produzido tendo em vista sua colocao a.12Em The Function of the Studio, escrito no

    ano seguinte, Buren no poderia ser mais claro ao argumentar que a anlise do sistema

    da arte deve inevitavelmente ser levada adiante atravs da investigao de ambos o

    ateli e o museu como costume, como o costume ossificante da arte.13

    De fato, a crtica mais consistente em evidncia no trabalho ps-ateli de Buren e Asher

    direcionada prpria prtica artstica (um ponto que pode muito bem no ter passado

    despercebido aos demais artistas da 6aExposio Internacional do Guggenheim, j que

    foram eles, e no os administradores ou membros do conselho do museu, que pediram a

    remoo do trabalho de Buren em 1971). Como deixam claro seus escritos, a instituciona-

    lizao da arte em museus, ou sua mercantilizao em galerias, no pode ser concebida

    como cooptao ou usurpao da arte de ateli, cuja forma porttil a predestina a uma

    vida de circulao e troca, incorporao mercadolgica e museolgica. Suas interven-

    es em site-specific, rigorosamente especficas para o lugar, foram desenvolvidas no s

    como um modo de refletir sobre essa e outras condies institucionais, mas tambm deresistir s vrias formas de apropriao sobre as quais refletem. Por serem transitrios,

    esses trabalhos so ainda conscientes da especificidade histrica de qualquer interveno

    crtica, cuja eficcia estar sempre limitada a tempo e lugar particulares. Broodthaers,

    entretanto, era o mestre supremo em representar a obsolescncia crtica em seus gestos

    de cumplicidade melanclica. Apenas trs anos depois de fundar oMuse dArt Moderne,

    Dpartement des Aiglesem seu ateli de Bruxelas, em 1968, ele pe venda sua fico

    museolgica, por motivo de falncia, em um prospecto que servia como papel deembrulho para o catlogo da Feira de Arte de Colnia cuja edio limitada era vendida

    pela Galeria Michael Werner. Finalmente, a declarao mais explcita a respeito do papel

    elementar que os artistas mantm na instituio da arte pode ter sido dada por Haacke.

    Os artistas, escreveu em 1974, assim como seus apoiadores e inimigos, independente

    de qualquer tonalidade ideolgica, so parceiros involuntrios. (...) Participam conjun-

    tamente da manuteno e/ou desenvolvimento da maquiagem ideolgica de sua prpria

    sociedade. Trabalham nesse enquadramento, marcam-no e so enquadrados.14

    De 1969 em diante, comea a emergir uma concepo de instituio da arte que no

    inclui s museu ou mesmo s os sites15de produo, distribuio e recepo da arte,

    mas todo o campo da arte como universo social. Nos trabalhos de artistas associados

    crtica institucional, a expresso comea a abarcar todosos sitesnos quais a arte

    apresentada de museus e galerias a gabinetes corporativos e casas de colecionadores,

    e at mesmo espaos pblicos quando neles h arte instalada. Tambm inclui os sites

    de produo da arte, atelis, assim como escritrios, e os sitesde produo do discursoartstico: revistas de arte, catlogos, colunas direcionadas arte na imprensa popular,

    simpsios, conferncias e aulas. E ainda os sitesde produo de produtores da arte e

    11 Em portugus: Daniel Buren, Funo do

    Museu, in Paulo Sergio Duarte (ed.), Daniel

    Buren: textos e entrevistas escolhidos (1967-

    2000), Rio de Janeiro: Centro de Arte Hlio

    Oiticica, 2001. (NT)

    12 Daniel Buren, The Function of the

    Museum, in A. A. Bronson, Peggy Gale (eds.),

    Museums by Artists, Toronto: Art Metropole,

    1983, p. 58.

    13 Daniel Buren, The Function of the Studio,

    in Bronson e Gale, op. cit., p. 61.

    14 Hans Haacke, All the Art Thats Fit to Show,

    in Bronson e Gale, op. cit., p. 152.

    15 O termositeser mantido em ingls, devi-

    do a sua relao com as discusses em torno

    das prticassite-specific,to importantes para

    Andrea Fraser. (NT)

  • 8/13/2019 Mdulo 5 - Aula 3t - Andrea Fraser - Da crtica s instituies a uma instituio da crtica

    6/10

    183

    do discurso artstico: programas de atelis e residncias, programas de histria da arte

    e, agora, estudos curatoriais. E finalmente, como Rosler coloca no ttulo de seu ensaio

    seminal de 1979, tambm inclui os prprios espectadores, compradores, comerciantes erealizadores, todos eles.16

    Essa concepo de instituio pode ser vista de modo mais claro no trabalho de Haacke,

    que chegou crtica institucional por uma guinada, de sistemas ambientais e fsicos nos

    anos 60 a sistemas sociais, a comear por suas enquetes com visitantes das galerias, entre

    1969 e 1973. Mais do que uma superabrangente lista de substantivos, espaos, lugares,

    pessoas e coisas, a instituio na qual se engaja Haacke pode ser mais bem definida

    como rede de relaes sociais e econmicas entre esses elementos. Como em seu Conden-

    sation Cube, 1963-65, e seuMOMA-Poll, 1970, a galeria e o museu figuram menos como

    objetos de crtica, eles prprios, do que como recipientes nos quais as foras e relaes,

    altamente abstratas e invisveis, que atravessam um espao particular podem tornar-se

    visveis.17

    Na passagem de um entendimento da instituio basicamente como lugares, organiza-

    es e indivduos especficos a sua concepo como campo social, a questo referente aoque est dentro e fora torna-se muito mais complexa. Engajar-se nessas fronteiras tem

    sido uma preocupao coerente de artistas associados com a crtica institucional. Desde

    1969 com um travail in situ18na Wide White Space, Anturpia, Buren realizou vrios

    trabalhos que ligavam interior e exterior,sitesartsticos e no artsticos, revelando como

    a percepo do mesmo material, do mesmo signo, pode variar radicalmente dependendo

    de onde seja visto.

    Entretanto, pode ter sido Asher quem realizou com mais preciso a precoce compreenso

    de Buren de que mesmo um conceito, a partir do momento em que enunciado e, sobre-

    tudo, quando exposto como arte (...) torna-se um objeto-ideal, que nos leva novamente

    arte.19Com suaInstallation Mnster (Caravan),Asher demonstrava que a instituciona-

    lizao da arte como artedepende no de sua localizao dentro de limites fsicos de um

    enquadramento institucional, mas de enquadres conceituais e perceptivos. Apresentado

    pela primeira vez na edio de 1977 do Skulptur Projekte em Mnster,20Alemanha, o tra-

    balho consistia de um trailer alugado estacionado em diferentes partes da cidade durante

    o perodo da exposio, mudando de local a cada semana. No museu que servia de ponto

    de referncia para a mostra, os visitantes podiam encontrar informaes sobre o lugar

    em que o trailer poderia ser visto, in situ,naquela semana. No prprio site, entretanto,

    no havia nada que indicasse que o trailer era arte ou que tivesse qualquer relao com a

    exposio. Para um transeunte ocasional, no era nada alm de um trailer.

    Asher levou Duchamp um passo mais adiante. Arte no arte porque est assinada porum artista ou porque exibida em um museu ou qualquer outro siteinstitucional. Arte

    arte quando existe para discursos e prticas que a reconhecem como arte, seja como

    Da crtica s instituies a uma instituio da crtica Andrea Fraser

    16 Martha Rosler, Lookers, Buyers, Dealers,

    and Makers: Thoughts on Audience in Brian

    Wallis, Marcia Tucker (eds.),Art After Modernism:

    Rethinking Representation, Nova York: The New

    Museum of Contemporary Art, 1984. (NT)

    17 Nesse ponto, h um paralelo entre o traba-

    lho de Haacke e a teoria da arte como campo

    social desenvolvida por Pierre Bourdieu.

    18 Em francs no original. (NT)

    19 Daniel Buren, Beware!, Studio Internatio-

    nal, maro de 1970, p. 101. Em portugus,

    Daniel Buren, Advertncia, in Glria Ferreira,

    Cecilia Cotrim (orgs.), Escritos de artistas,

    anos 60/70, Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 2006,

    p. 253. (NT)

    20 Alm da edio de 1977, Asher voltou a

    apresentar o trabalho nas de 1987, 1997 e

    2007, participando assim de todas as verses

    da mostra com o mesmo trabalho. (NT)

  • 8/13/2019 Mdulo 5 - Aula 3t - Andrea Fraser - Da crtica s instituies a uma instituio da crtica

    7/10

    184 concinnitasano 9, volume 2, nmero 13, dezembro 2008

    objeto, gesto, representao ou apenas idia. A instituio da arte no algo externo a

    qualquer trabalho de arte, mas a condio irredutvel de sua existncia como arte. No

    importa quo pblica seja sua localizao, quo imaterial ou transitrio, relacional, coti-diano ou mesmo invisvel, o que enunciado e percebido como arte sempre j institu-

    cionalizado, simplesmente porque existe dentro da percepo dos participantes do campo

    da arte como arte; uma percepo no necessariamente esttica, mas fundamentalmente

    social em sua determinao.

    O que Asher demonstrava ento que a instituio da arte no s institucionalizada

    em organizaes como museus e objetos de arte presos ao objeto. Tambm internali-

    zada e incorporada nas pessoas. internalizada em competncias, modelos conceituais

    e modos de percepo que nos permitem produzir, escrever sobre e entender a arte ou

    simplesmente reconhecer arte como arte, seja no papel de artistas, crticos, curadores,

    historiadores da arte, galeristas, colecionadores ou visitantes de museus. E, sobretudo,

    tal internalizao existe em nossos interesses, aspiraes e critrios de qualidade que

    orientam nossas aes e definem nosso senso de valor. Essas competncias e disposies

    determinam nossa prpria institucionalizao como membros do campo da arte. Elas

    formam o que Pierre Bourdieu chamava de habitus: o social incorporado, se o socialtorna-se corpo, a instituio torna-se mente.

    H, obviamente, um fora da instituio, mas esse no tem caractersticas fixas, essen-

    ciais. apenas o que, num dado momento, no existe como objeto de discursos e prticas

    artsticas. Mas assim como a arte no pode existir fora do campo da arte, tampouco ns

    podemos existir fora do campo da arte, ao menos no como artistas, crticos, curadores,

    etc. E o que fazemos fora do campo, enquanto permanea fora, pode no ter efeito algum

    dentro dele. Logo, se no h fora para ns, no porque a instituio perfeitamente

    fechada ou porque existe como aparato em uma sociedade totalmente administrada

    nem sequer porque se tornou algo que tudo abarca, tanto por seu tamanho como por seu

    campo de investigao mas porque a instituio est dentro de ns, e no podemos

    estar fora de ns mesmos.

    A crtica institucional foi institucionalizada? A crtica institucional semprefoi institucio-

    nalizada. S poderia ter surgido de dentroe, como toda arte, s pode funcionar dentroda

    instituio arte. A insistncia da crtica institucional sobre a inescapvel determinao

    institucional pode ser, de fato, o que a distingue de modo mais preciso de outros legados

    da vanguarda histrica. Pode ser distinta em relao a outros legados por reconhecer o

    fracasso dos movimentos vanguardistas e as conseqncias desse fracasso; isto , reco-

    nhece no a destruio da instituio da arte, mas sua exploso para alm das fronteiras

    tradicionais de objetos especificamente artsticos e critrios estticos. A institucionali-

    zao da negao duchampiana da competncia artstica com o readymadetransformouessa negao em uma afirmao suprema da onipotncia do olhar artstico e seu poder

    ilimitado de incorporao. Isso abriu caminho para a conceitualizao artstica e mer-

  • 8/13/2019 Mdulo 5 - Aula 3t - Andrea Fraser - Da crtica s instituies a uma instituio da crtica

    8/10

    185

    cantilizao de tudo. Como Brger escrevia j em 1974, se um artista hoje assina

    uma chamin e a exibe, esse artista certamente no denuncia o mercado da arte, mas

    adapta-se a ele. Tal adaptao no erradica a idia de uma criatividade individual, mas areafirma, e a razo disto o fracasso da vanguarda.21

    So os artistas assim como os museus e o mercado que, em seus esforos de fugir

    da instituio da arte, geraram essa expanso. Em cada tentativa de fuga dos limites da

    determinao institucional, a fim de abraar um fora, de redefinir a arte ou reintegr-la

    no cotidiano, para alcanar pessoas comuns e trabalhar no mundo real, expandimos

    nossa moldura e trazemos mais do mundo para dentro desse enquadramento. Mas dele

    nunca escapamos.

    Obviamente, esse enquadramento tambm foi transformado no decorrer do processo. A

    questo como? As discusses sobre essa transformao tm a tendncia a girar em

    torno de oposies como dentro e fora, pblico e privado, elitismo e populismo. Quando,

    porm, esses argumentos so usados para atribuir valor poltico a condies especficas,

    fracassam freqentemente ao deixar de levar em considerao a subjacente distribuio

    do poder que reproduzida mesmo quando variam as condies, e terminam, portanto,por servir de legitimao a essa reproduo. Para dar um exemplo bvio, o enorme cres-

    cimento da audincia em museus, celebrada sob a bandeira do populismo, veio de mos

    dadas com um contnuo aumento no preo das entradas, excluindo cada vez mais os

    visitantes de baixa renda, e criando novas formas de participao da elite com o aumento

    de diferenas hierrquicas nos modos de associao, visita, e convite para aberturas, cuja

    exclusividade amplamente anunciada em revistas de moda e pginas de colunas sociais.

    Longe de se tornarem menos elitista, museus sempre-mais-populares se transformaram

    em veculos de um massificador marketing de gostos e prticas da elite que, embora

    talvez menos elitistas em relao s competncias estticas que demandam, o so cada

    vez mais em termos econmicos como no aumento dos preos. Tudo isso tambm amplia

    a demanda de produtos e servios de profissionais da arte.

    O fato de estarmos presos a um campo, entretanto, no significa que no produzimos

    efeito sobre ele ou que no somos afetados pelo que ocorre alm de suas fronteiras. Uma

    vez mais, Haacke pode ter sido o primeiro a entender e representar, em toda sua ampli-

    tude, o jogo entre o que est dentro e fora do campo da arte. Enquanto Asher e Buren

    examinavam como um objeto ou signo transformado quando atravessa fronteiras fsicas

    e conceituais, Haacke involucrava a instituio como uma rede de relaes sociais e

    econmicas, tornando visveis as cumplicidades entre as aparentemente opostas esferas

    da arte, do Estado e empresariais. Pode ter sido Haacke quem, mais do que qualquer

    outro, aludiu s caracterizaes da crtica institucional como um desafio herico, que

    destemidamente diz a verdade ao poder e com razo, j que seu trabalho tem sido su-jeito a vandalismo, censura, e enfrentamentos parlamentares. Contudo, qualquer um que

    tenha familiaridade com seu trabalho deve reconhecer que, longe de tentar desmantelar

    Da crtica s instituies a uma instituio da crtica Andrea Fraser

    21 Brger, Theory of the Avant-Garde, op. cit.,

    p. 52-53.

  • 8/13/2019 Mdulo 5 - Aula 3t - Andrea Fraser - Da crtica s instituies a uma instituio da crtica

    9/10

    186 concinnitasano 9, volume 2, nmero 13, dezembro 2008

    o museu, o projeto de Haacke uma tentativa de defender a instituio da arte da ins-

    trumentalizao por parte de interesses polticos e econmicos.

    Que o mundo da arte, agora uma indstria global multibilionria, no seja parte do mun-

    do real uma das fices mais absurdas do discurso artstico. O boomdo mercado atual,22

    s para mencionar o exemplo mais evidente, produto direto das polticas econmicas

    neoliberais. Em primeiro lugar, faz parte do boomdo mercado de consumo de bens de

    luxo que acompanha os crescentes disparates de renda e concentrao de riqueza os

    beneficirios da reduo de impostos de Bush so nossos patrocinadores e, em segun-

    do, pertence mesma fora econmica que criou a bolha imobiliria global: falta de

    confiana no mercado de aes decorrente da queda de preos e escndalos financeiros

    corporativos, falta de confiana no mercado de bnus derivado da alta da dvida interna

    [americana], queda da taxa de juros, e corte regressivo de impostos. E o mercado de arte

    no o nico sitedo mundo da arte em que se encontram reproduzidos os crescentes dis-

    parates econmicos de nossa sociedade. Eles tambm podem ser reconhecidos naquilo que

    (agora s no nome) se proclama organizaes sem fins lucrativos como universidades

    cujos programas de ps-graduao em belas artes se sustentam base de mo-de-obra

    barata contratada temporariamente e museus, cujas polticas anti-sindicato tm pro-duzido compensaes proporcionalmente dspares, entre os mais bem pagos e os piores

    salrios, chegando a ultrapassar 40:1.

    Representaes do mundo da arte como algo totalmente dist into do mundo real, as-

    sim como representaes da instituio como discretas e apartadas de ns, servem a

    funes especficas no discurso artstico. Elas mantm uma distncia imaginria entre os

    interesses sociais e econmicos, nos quais investimos atravs de nossas atividades, e eu-

    fmicos interesses (ou desinteresses) artsticos, intelectuais e at mesmo polt icos que

    provm essas atividades com contedo e justificam sua existncia. E com essas represen-

    taes, ns tambm reproduzimos as mitologias de liberdade voluntarista e onipotncia

    criativa que tm feito da arte e de artistas emblemas to atrativos ao empreendimento

    neoliberal e ao otimismo da sociedade-da-propriedade.23Que tal otimismo tenha encon-

    trado sua perfeita expresso artstica em prticas neoFluxus, como a esttica relacional,

    que se encontram agora em voga contnua, demonstra at que ponto o que Brger cha-

    mava de meta da vanguarda de integrar arte na vida prtica se tornou forma altamente

    ideolgica de escapismo. Mas isso no diz respeito apenas ideologia. No somos meros

    smbolos da recompensa do regime vigente: nesse mercado da arte, somos materialmente

    seus beneficirios diretos.

    Toda vez que mencionamos a instituio como algo distinto de ns, executamos

    nosso papel na criao e perpetuao de suas condies. Evitamos as aes contra ou a

    responsabilidade pelas cumplicidades, compromissos e censuras acima de tudo autocen-suras cotidianos que so direcionados por nossos prprios interesses no campo e pelos

    benefcios que dele derivam. No uma questo de dentro e fora ou de nmero e escala

    22 As condies econmicas a que se remete

    a autora so relativas a 2005, ano de publica-

    o do texto. (NT)

    23 A expresso ownership societyfaz parte de

    umsloganpropagado pelo presidente america-

    no George W. Bush na defesa de valores como

    responsabilidade pessoal, liberdade econ-

    mica e direito propriedade, em detrimento

    daqueles que favoreceriam o direito assis-

    tncia social e sade pblica gratuita. (NT)

  • 8/13/2019 Mdulo 5 - Aula 3t - Andrea Fraser - Da crtica s instituies a uma instituio da crtica

    10/10

    187

    dos vrios sitesorganizados para a produo, apresentao e distribuio da arte. No

    uma questo de ser contra a instituio: Ns somos a instituio. uma questo de que

    tipo de instituio somos, que tipo de valores institucionalizamos, que formas de prticas

    remuneramos, e a que tipos de recompensas aspiramos. Por ser a instituio da arte inter-

    nalizada, incorporada, e representada por indivduos, estas so as questes que a crtica

    institucional demanda que perguntemos, sobretudo, a ns mesmos.

    Finalmente, o autoquestionamento mais do que uma questo de temtica, tipo a

    instituio, no importa quo amplamente concebida que define a crtica institucional

    como prtica. Se, como sugere Brger, o autocriticismo da vanguarda histrica visava

    abolio da arte autnoma e sua integrao na vida prtica, ele fracassou tanto nas

    metas quanto nas estratgias.24 Entretanto, a prpria institucionalizao que marcou

    esse fracasso se tornou a condio da crtica institucional. Ao reconhecer esse fracasso e

    suas conseqncias, a crtica institucional deixou de lado os esforos, cada vez mais mal-

    intencionados, das neovanguardas em desmantelar ou escapar da instituio da arte e

    tomou como meta, ao contrrio, a defesada prpria instituio que a institucionalizao

    do autocriticismo da vanguarda tinha propiciado: uma instituio dacrtica. E pode ser

    essa mesma institucionalizao que permite crt ica institucional julgar a instituio daarte contra as alegaes crticas de seus discursos legitimantes, contra sua autorepresen-

    tao como sitede resistncia e contestao, e contra suas mitologias de radicalidade e

    revoluo simblica.

    Andrea Fraser artista de Nova York dedicada performance, arte contextual e cr-

    tica institucional. Desde meados dos anos 80 vem trabalhando emperformances, vdeos,

    instalaes e publicaes, tanto em galerias como em museus, como o MOMA de Nova York

    (1986). Entre 1986 e 1989 fez parte do grupo de performance V-Girls. / [email protected]

    Da crtica s instituies a uma instituio da crtica Andrea Fraser

    24 Brger, Theory of the Avant-Garde, op. cit.,

    p. 54.