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91 Sitientibus, Feira de Santana, n.27, p.91-111, jul./dez. 2002 MOEDA E CÂMBIO: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS SOBRE A EXPERIÊNCIA BRASILEIRA NA DÉCADA DE NOVENTA CURRENCY AND EXCHANGE: SOME THEORETICAL CONSIDERATIONS ON THE BRAZILIAN EXPERIENCE OF THE 1990s Armando Neto* Maria Emília M. Fagundes** RESUMO — Passados sete anos de implantação do Plano Real, este artigo propõe uma releitura de sua construção conceitual e da sua operacionalização. Durante esse período, a instabilidade da economia internacional provocou ajustes no seu gerenciamento, porém o plano continua, na sua essência, baseado na mesma estrutura lógica e sem um horizonte de longo prazo para a estabilidade da moeda nacional, uma vez que persistem a fragilidade financeira do setor público e a vulnerabilidade do balanço de pagamentos. PALAVRAS-CHAVE: Moeda; Câmbio; Planos de estabilização. ABSTRACT — Seven years after the implementation of the “Plano Real”, this article provides a re-examination of its conception and operation. During this time, the instability of the international economy has brought about adjustments in the management of the Plan; however it remains, in its essence, based on the same structure and without a long-term prospect of national monetary stability, since the financial fragility of the public sector and the vulnerability of the balance of payments remain unchanged. * Prof. Assistente do DCIS/UEFS e da UNIFACS. Doutor em Administração (UFBA). E-mail: [email protected] ** Prof. Assistente (DCIS/UEFS). Mestre em Economia (UFBA). E-mail: [email protected] Universidade Estadual de Feira de Santana – Dep. de CIS. Tel./Fax (75) 224-8049 – BR 116 – Km 03, Campus - Feira de Santana/BA – CEP 44031-460.

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MOEDA E CÂMBIO: ALGUMAS CONSIDERAÇÕESTEÓRICAS SOBRE A EXPERIÊNCIA BRASILEIRA NADÉCADA DE NOVENTA

CURRENCY AND EXCHANGE: SOME THEORETICALCONSIDERATIONS ON THE BRAZILIAN EXPERIENCE OF THE1990s

Armando Neto*Maria Emília M. Fagundes**

RESUMO — Passados sete anos de implantação do Plano Real, esteartigo propõe uma releitura de sua construção conceitual e da suaoperacionalização. Durante esse período, a instabilidade da economiainternacional provocou ajustes no seu gerenciamento, porém o planocontinua, na sua essência, baseado na mesma estrutura lógica e sem umhorizonte de longo prazo para a estabilidade da moeda nacional, umavez que persistem a fragilidade financeira do setor público e a vulnerabilidadedo balanço de pagamentos.

PALAVRAS-CHAVE : Moeda; Câmbio; Planos de estabilização.

ABSTRACT — Seven years after the implementation of the “Plano Real”,this article provides a re-examination of its conception and operation.During this time, the instability of the international economy has broughtabout adjustments in the management of the Plan; however it remains, inits essence, based on the same structure and without a long-term prospectof national monetary stability, since the financial fragility of the publicsector and the vulnerability of the balance of payments remain unchanged.

* Prof. Assistente do DCIS/UEFS e da UNIFACS. Doutorem Administração (UFBA). E-mail: [email protected]

** Prof. Assistente (DCIS/UEFS). Mestre em Economia(UFBA). E-mail: [email protected] Estadual de Feira de Santana – Dep. de CIS. Tel./Fax(75) 224-8049 – BR 116 – Km 03, Campus - Feira de Santana/BA– CEP 44031-460.

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KEY WORDS: Currency; Exchange rate; Nominal anchor; plans of stabilization

Este texto discute aspectos teóricos relacionados à moedae ao câmbio, à engenharia do Plano Real e seus principaisajustes, em resposta aos percalços das economias nacional einternacional, ocorridos na última metade da década de noven-ta.

Na busca de um símbolo para conversão dos valores detroca e preservação da riqueza, as sociedades caminharam nosentido de estabelecer regras que garantissem a estabilidadedo símbolo eleito como moeda.

Numa economia de trocas, é a moeda que articula social-mente os trabalhos privados, resolvendo a contradição priva-do/social: os trabalhos são realizados de forma privada, apa-rentemente independentes, mas sujeitos a uma divisão dotrabalho que é social. No mercado, as decisões individuais sãoajustadas por meio da validação monetária. Quanto mais es-tável for o valor da moeda, melhor ela poderá cumprir o papelde instrumento de comparação de diferentes tipos de trabalho.É esse papel de mecanismo de regulação1 desempenhado pelamoeda que primeiro lhe garante a sua aceitação como espelhode valor das demais mercadorias, permitindo-lhe não só cum-prir as funções de medida de valor e meio de troca comotambém as de reserva de valor e padrão de pagamentosdiferidos.

No regime da moeda-mercadoria, a aceitação do equiva-lente geral era assegurada pelas características inerentes àmatéria física utilizada como moeda. Os metais, particularmen-te o ouro, por suas características intrínsecas, eram as mer-cadorias mais talhadas para o exercício das funções monetá-rias. As condições de obtenção relativamente estáveis do ouropossibilitavam que os valores relativos das mercadorias trocadasexprimissem suas diferentes condições de produção, uma vezque se afastavam as influências decorrentes da variação dovalor da unidade de conta. No regime da moeda-papel, emborase abandone o uso do ouro como moeda, a regra de emissãolastreada agia como elemento da estabilidade monetária, àmedida que impedia expansões excessivas da oferta de moeda

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vis-à-vis às necessidades de produção e circulação das mer-cadorias. Não obstante ser uma regra imperfeita, pois queditada pelas condições de produção de uma mercadoria espe-cífica (que lastreia a emissão), o padrão-ouro inibia sançõesde aumentos especulativos dos preços ao restringir a açãodiscricionária do agente emissor.

Ao tempo em que o lastro ouro atendia à necessidade deestabilização do padrão monetário, criava, por outro lado,restrições à acumulação capitalista na medida em que a extra-ção de metais preciosos não acompanhava a rápida evoluçãoda produção de mercadorias. Gradativamente, a moeda lastreadacede lugar a um novo regime monetário, agora sob a forma depapel-moeda. O regime fiduciário vem romper as amarras dopadrão-ouro, liberando a oferta monetária dos limites impostospelo ritmo de evolução da exploração dos metais. Todavia, opoder discricionário de emissão introduz um viés inflacionáriodado que se abre a possibilidade de expansões monetáriasdesmesuradas, em relação à evolução da produção. A ausên-cia de uma regra disciplinadora das emissões deixa o órgãoresponsável pelo controle da moeda vulnerável às pressões dosistema, podendo dificultar que se alcance a desejável esta-bilidade do padrão monetário2 .

A vinculação entre a gênese do processo inflacionário ea emissão monetária tem se constituído numa das principaiscontrovérsias da economia política. Os mercantilistas, já noséc. XVII, sistematizaram a noção de que os preços nominaisguardam uma relação direta com a quantidade de moeda emcirculação. Descreviam, na verdade, um fenômeno empiricamenteobservável na evolução histórica da moeda.

A idéia da associação entre moeda e preços, muitas vezes,costuma ser erroneamente confundida com a teoria quantita-tiva da moeda, cerne da abordagem monetarista. Em realidade,no monetarismo, o velho fenômeno já identificado pelos mercantilistasganha uma interpretação própria, na qual se enfatiza a relaçãocausal entre moeda e preços, admitindo-se que variações naoferta monetária redundam em modificações no mesmo sentidoe magnitude sobre o nível de preços3 . Resumidamente, pode-se afirmar que essa teoria baseia-se em algumas hipóteses

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heróicas, notadamente a constância, relativa estabilidade ouprevisibilidade da velocidade de circulação e a incapacidadede a oferta monetária afetar o nível de atividade econômica,permitindo uma leitura funcional da equação de trocas (-MV =-PY) no sentido da esquerda para a direita. Essa concepçãobaseia-se em dois supostos fundamentais: a neutralidade e aexogeneidade da moeda. Se a moeda não for neutra, os efeitossobre Y impedem que o aumento de P seja de mesma magnitudedo de M, e se a moeda for endógena, V não é estável ouprevisível.

Retirados os pressupostos quantitativistas, a equação detrocas revela-se uma mera identidade contábil – o valor mone-tário das mercadorias transacionadas corresponde ao montan-te de moeda empregado na circulação, multiplicado pelo núme-ro de vezes que cada unidade monetária participa das tran-sações. Vista dessa forma, a expressão não autoriza a leituracausal monetarista e, tampouco, a relação unívoca entre moedae preços. Evidencia, contudo, a existência de uma associaçãoentre as variáveis envolvidas, permitindo análises de matrizesteóricas distintas, que estabelecem outras interpretações pos-síveis para a relação moeda/preços. Mesmo considerando quea oferta monetária seja completamente exógena, com o órgãoemissor exercendo o poder discricionário em sua plenitude,haveria que se levar em conta, além do efeito-preço, tambémo impacto da expansão monetária sobre o nível de produçãoda economia, decorrente da redução da taxa de juros.

Interpretações mais realistas do fenômeno monetário enfatizamum forte componente de endogeneidade da moeda, com ocomportamento dos agentes econômicos passando a exercerum papel ativo na determinação da quantidade de moeda emcirculação. O órgão emissor, ao sancionar a demanda demoeda dos agentes, expõe a natureza endógena da ofertamonetária, submetendo-se às pressões oriundas da alteraçãodo estágio da preferência pela liquidez.

Vale ressaltar que essa concepção não implica a elimina-ção do caráter ativo da política monetária, uma vez que ogoverno pode, por exemplo, mediante manipulação de taxa dejuros, induzir a composição do “portifólio” dos agentes, afetan-

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do, por essa via, a própria demanda de moeda do sistema. Ahipótese da endogeneidade da moeda apenas enfatiza que ograu de manobra da intervenção está circunscrito ao nível dademanda monetária. O controle dos agregados monetários,nesse caso, diverge do tipo normalmente apresentado nosmanuais de macroeconomia, em que a variável chave é a ofertade moeda. Na realidade, a forma de intervenção dirige-se,claramente, para o controle da demanda por liquidez.

Em outras palavras, a hipótese da moeda exógena consi-dera que a base monetária é a variável de controle adminis-trada pelo Banco Central, com a taxa de juros funcionandocomo fator de ajuste no mercado monetário. Em contraposição,na hipótese da moeda endógena, a taxa de juros figura comovariável de ajuste do mercado 4 . Vê-se que, neste último caso,o governo pratica um controle monetário indireto, enquanto aprimeira situação descreve o padrão convencional de condu-ção da política monetária.

Além de utilizar os instrumentos de política monetária parainfluenciar o comportamento do setor privado, o governo, elepróprio, através da administração das finanças públicas, res-ponde por uma parcela significativa da demanda de moeda. Arigor, essa separação entre ação da autoridade monetária e agestão orçamentária do governo corresponde ao corte políticamonetária/política fiscal. Na prática, todavia, existe uma áreade interseção entre duas esferas de política, que será tão maisvasta quanto menor for a autonomia do órgão responsável pelamoeda. Se o Banco Central adquire diretamente do TesouroNacional os títulos emitidos para cobrir déficits orçamentários,ou se o faz, indiretamente, através de um mecanismo triangu-lar, adquirindo os títulos previamente negociados com o setorprivado, tem-se um fator de expansão da base monetária. Porseu turno, os movimentos da taxa de juros desencadeados pelaação da autoridade monetária, com vistas ao atingimento doobjetivo de estabilização dos preços, exercem grande impactosobre a dívida pública, à medida que altera o custo de finan-ciamento do déficit do governo, notadamente nas circunstân-cias de rolagem da dívida do Tesouro em mãos do público.

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A demanda por moeda dos agentes econômicos, segundoa abordagem keynesiana, pode ser subdividida em demandaativa e demanda inativa. A primeira é determinada pelo nívelde atividade estabelecido pelas decisões do empresário. Asegunda depende do estado de confiança e das expectativasdo proprietário de riqueza. A demanda ativa pode ter suaorigem no hiato entre a tomada de decisão e a execução doinvestimento por parte do empresário ou pode ser provenienteda defasagem temporal entre o recebimento e o gasto da rendapelas famílias ou entre a efetivação das despesas e o recebi-mento das receitas por parte das empresas.

Em relação à demanda ativa, Keynes afirma que um au-mento na atividade da economia determina uma variação nomesmo sentido da demanda por moeda. Inicialmente, a deman-da adicional por moeda vem satisfazer as necessidades denumerário provenientes do hiato entre a decisão e a execuçãodo investimento. Em seguida, o aumento de atividade, emdecorrência desse investimento, deverá causar uma elevaçãoda demanda por moeda devido, agora, ao hiato próprio dosfluxos de caixa das famílias e das empresas ( KEYNES, 1973b)5.A natureza da demanda por moeda pode ser detalhada atravésda discussão dos motivos que explicam a preferência dosagentes econômicos por reter liquidez.

O motivo transação incorpora tanto as necessidades dopúblico por numerário para garantir a transição entre o rece-bimento e o desembolso da renda (motivo renda), como tam-bém o numerário demandado pelos empresários no intervaloentre o momento do desembolso de dinheiro para o pagamentode suas despesas até o momento de realização de suas receitasquando da venda dos seus produtos (motivo negócios).

O motivo precaução refere-se à necessidade do públicoem reservar uma certa quantidade de dinheiro na sua formamais líquida com o objetivo de fazer frente a despesas não-previsíveis, sejam decorrentes de contingências inesperadasou de oportunidades de compras vantajosas não-programa-das. Assim como o anterior, o motivo precaução guarda umarelação positiva com a renda da economia, mas, prioritariamente,com o grau de confiança das expectativas em relação aocomportamento das taxas de juros de mercado.

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O motivo especulação, diferentemente dos dois anterio-res, sofre influência direta da taxa de juros. As pessoas deman-dam dinheiro para atender o motivo especulação com o objetivode obtenção de maiores rendimentos futuros, a partir de umatentativa de previsão da evolução das taxas de juros do mer-cado. O Banco Central pode influenciar a demanda por moedapara atender o motivo especulação quando interfere na taxade juros ou quando provoca alterações nas expectativas dopúblico, em relação aos preços dos títulos.

Ao tratar do motivo de especulação, convém distinguir,entre as variações da taxa de juros, as que se devem amudanças na oferta de moeda disponível para satisfazer essemotivo, sem que haja ocorrido alteração alguma na função deliquidez, e as que têm como causa principal as mudanças nasexpectativas que afetam diretamente essa função. As opera-ções de mercado aberto podem, sem dúvida, influir sobre a taxade juros de ambas as maneiras, quer alterando o volume demoeda, quer dando origem a novas expectativas relativamenteà política futura do Banco Central ou do governo. ( KEYNES,1982, p.139).

Na releitura de Keynes proposta por Minsky 6 , os agenteseconômicos – indivíduos, empresas e governo – demandammoeda para satisfazer os gastos correntes, alterar o perfil deseus ativos ou para pagar débitos herdados de dívidas contra-ídas em períodos anteriores. Esses três motivos são denomi-nados de “renda”, “portifólio” e “balancete”.

A maior necessidade de moeda para fazer face aos gastoscorrentes pode resultar do aumento do volume de produto acircular ou da elevação dos preços das mercadorias. A expan-são da oferta monetária para atender ao crescimento do nívelde atividade econômica não representa, a princípio, um fatorde elevação de preços. Já se os agentes econômicos reajustamos preços e o Banco Central sanciona esse aumento, viaexpansão monetária, configura-se um movimento inflacionário.Na medida em que mecanismos de indexação se disseminam,com rendas e preços em geral sendo reajustados com base namemória da inflação passada, aflora o fenômeno da inérciainflacionária.

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O motivo “portifólio” refere-se à moeda enquanto reservade valor e corresponde à demanda para fins especulativos naterminologia keynesiana. Naturalmente, a retenção de liquidezpara essa finalidade requer uma relativa estabilidade do valorda moeda e, em situações normais, abarca um horizonte estrei-to de tempo, vez que guardar moeda implica abrir mão daremuneração de outros ativos. Em economias submetidas aprocessos inflacionários intensos, com uma gama variada deaplicações financeiras indexadas e de curtíssimo prazo, aobservação desse motivo exige que se parta para definiçõesmais abrangentes de moeda, que incluam os títulos “quase--monetários”. Na verdade, mesmo com inflação baixa, o encur-tamento do horizonte de valorização do capital, que caracterizao processo contemporâneo de financeirização da riqueza, temprovocado a diversificação e ampliação de aplicações financei-ras cada vez mais líquidas, induzindo a redefinição do conceitoconvencional de moeda de modo a incorporar esses ativos quecombinam liquidez e rentabilidade.

Resta discutir o motivo “ balancete”. Para cada agente,sempre que os rendimentos correntes forem inferiores às despesasa serem suportadas, haverá necessidade de financiar essadiferença, desfazendo-se de ativos acumulados ou contraindoempréstimos. Essa última opção implica que, em algum momen-to, a dívida deverá ser resgatada, o que exigirá uma receitasuperior aos gastos correntes futuros. O financiamento doinvestimento é um exemplo típico dessa situação: o empresáriocontrai empréstimo para realizar investimento baseado na expectativade que o fluxo de renda gerado pelo bem de capital permitaamortizar a dívida e pagar os juros da operação de crédito.

Quando o agente econômico possui elevada capacidadede refinanciar, continuamente, seus débitos, o prazo pararesgate das dívidas contraídas pode ser estendido, de modoa postergar o momento de resgate para além do horizontetemporal de cálculo econômico dos agentes. Tal forma definanciamento assemelha-se à anterior, mas não reflete umasituação de endividamento fundamentado na expectativa deresgate num prazo determinado. Em realidade, a situação oradescrita representa um processo de rolagem da dívida acumu-

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lada, sem perspectiva de amortização. Embora, em tese, qual-quer agente econômico possa recorrer a refinanciamentosdessa natureza, o Governo personifica, mais que qualqueroutro, essa possibilidade. A rolagem contínua da dívida públi-ca, contudo, traz consigo uma necessária elevação da taxa dejuros, o que representa um ônus crescente para o próprioprocesso de refinanciamento. A cada exercício, cresce a par-cela de natureza financeira do déficit, dificultando a obtençãodo equilíbrio orçamentário. Esse processo de financeirizaçãodo déficit público, outra característica do regime de acumula-ção contemporâneo, encerra uma inversão do impacto dessedéficit sobre o nível da atividade econômica, em relação àperspectiva keynesiana. Trata-se de um déficit que inibe aprodução e a geração de emprego e renda, ao tempo em quealimenta a inflação, com resultados perversos sobre a distri-buição de renda do país.

Os efeitos da estratégia do “roll over” assumida peloGoverno transcendem o âmbito das finanças públicas, poden-do afetar, a depender da magnitude das necessidades decaptação de poupança e dos prazos envolvidos, toda a estru-tura de financiamento da economia. Ao oferecer ativos finan-ceiros, em volumes crescentes e negociáveis a prazos cadavez mais curtos, o Governo propicia condições para uma acu-mulação financeira dissociada da produção de riqueza real,gerando um vasto campo de aplicação rentável para os inter-mediários financeiros. Os bancos passam a direcionar poupan-ça privada para sustentar a ciranda dos títulos públicos, aban-donando sua função precípua de canalização de recursos parao sistema produtivo.

Se o Governo, buscando evitar os efeitos negativos doprocesso que acaba de ser descrito, optar pela monetizaçãoda dívida, configura-se um claro descompromisso com a esta-bilidade do padrão monetário. Nessa hipótese, o financiamentodo déficit via Banco Central, sem a captação de poupançaprivada, implica uma maior oferta da moeda na economia,desvinculada do movimento de expansão da produção, o quealimenta o processo inflacionário. A extensão da perda de valorda moeda será tanto maior quanto mais acentuado for o com-

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ponente financeiro do déficit público. Isso porque o déficitprimário, de natureza marcadamente fiscal (isto é, excluídos osgastos decorrentes da amortização e serviço da dívida) repre-senta um fator de expansão da demanda agregada e, conse-qüentemente, do nível de produção da economia. O crescimen-to da atividade econômica respalda a emissão havida, e oresíduo inflacionário que porventura venha a persistir deve sercreditado à natural elevação de preços, que tende a acompa-nhar a expansão da economia.

Até então, a discussão apresentada não tratou explicita-mente das relações com o exterior. Sabe-se, todavia, que asvariações nos fluxos financeiros entre o país e o resto domundo podem representar um importante elemento condicionanteda taxa de juros doméstica. Como mencionado anteriormente,a taxa de juros é a variável de controle do Banco Centralutilizada para induzir alterações no portifólio dos agentes eco-nômicos e, por conseguinte, na demanda de moeda. Além devariável de controle indireto da oferta monetária, a taxa de jurointerna desempenha um importante papel para atração deinvestimentos externos. A margem de manobra do Banco Cen-tral em determinar a taxa de juros doméstica com a finalidadede controle da liquidez depende, em grande medida, da situ-ação das contas do balanço de pagamentos. A rapidez e avolatilidade dos fluxos cambiais, características atuais dasfinanças internacionais, reduzem a distância entre os merca-dos monetário e financeiro, estabelecendo um estreitamentodas relações entre as taxas de câmbio e de juros, que passama ser determinadas concomitantemente.

A literatura econômica distingue dois regimes cambiaisbásicos: o câmbio fixo e o flutuante, dos quais se originamvárias possibilidades de regimes mistos.

No sistema de câmbio fixo, o Banco Central determina ataxa de câmbio, comprometendo-se a comprar e a vender amoeda estrangeira ao preço fixado, o que torna a políticamonetária dependente do fluxo de divisas. Nesse caso, a áreade manobra da gestão da liquidez vê-se bastante reduzida, poiso resultado do balanço de pagamentos será o principal condicionanteda taxa de juros doméstica 7. É importante salientar que adoção

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do câmbio fixo requer a existência de um volume de reservassuficiente para assegurar a capacidade de intervenção doBanco Central no mercado de divisas.

No regime de câmbio flexível, a autoridade monetáriapermite que as taxas do câmbio flutuem livremente, ajustando-se a fim de equilibrar a oferta e a demanda de divisas. Nessemodelo, o movimento de preços relativos internos e externose o hiato das taxas de juros doméstica e internacional deter-minam o fluxo de divisas e o conseqüente ajuste da taxa decâmbio, de modo a eliminar o diferencial entre a inflaçãointerna e internacional e equalizar a rentabilidade dos ativosfinanceiros8 . O sistema de clean floating representa uma sim-plificação teórica, em que os fluxos de comércio e capital como exterior não influenciam as reservas oficiais uma vez que oBanco Central se omite do mercado. Aqui, ao contrário doregime de câmbio fixo, a política monetária, ao afetar a taxa dejuros, passa a ser o fator condicionante básico da taxa decâmbio.

Na prática, o que ocorre é a flutuação “suja” (dirty floating),regime no qual, embora não haja uma taxa fixa, o Banco Centralintervém no mercado, comprando e vendendo divisas, numatentativa de influenciar a taxa de câmbio. Essa situação defineuma influência recíproca: o fluxo de divisas interfere na taxade juros doméstica, ao tempo em que a taxa de câmbio éafetada pela condução da política monetária.

O regime das bandas cambiais é um misto dos dois siste-mas anteriormente discutidos. O mercado de divisas é deixadolivre, dentro de uma faixa de variação da taxa de câmbio , coma autoridade monetária intervindo sempre que o limite (mínimoou máximo) de cotação for atingido.

Os programas de estabilização implementados em algunspaíses da América Latina, no transcurso da década de noventa,adotaram modelos de ancoragem nominal, numa tentativa desuperar a inércia inflacionária e resgatar a capacidade decoordenação das expectativas por parte do Governo. Essaestratégia, reconhecidamente de efeito temporário, foi implementadacomo forma de conter as pressões de preço, na impossibilidadede solução a curto prazo para os desequilíbrios de natureza

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financeira, das contas públicas e do balanço de pagamentos,principais focos geradores da instabilidade monetária.

Dois são os modelos clássicos de ancoragem nominal. Oprimeiro baseia-se na fixação da taxa de câmbio, com o intuitode assegurar a preservação do valor em dólar dos rendimentose da moeda como riqueza, além de deter o aumento dos custoscom insumos importados e fomentar a competitividade com oexterior. Consegue-se, com isso, frear as incertezas de perdade valor da moeda corrente, ao se garantir a manutenção daparidade com o dólar, amenizando o movimento inercial depreços. Ao mesmo tempo, a maior exposição à concorrênciainternacional e a contenção dos custos atuam de maneirapositiva na formação dos preços setoriais. Se o Governo fixao câmbio, amarrando as emissões monetárias à evolução dovolume de divisas, estará não apenas agindo com vistas abrecar a inércia inflacionária, como também adotando umaregra rígida de emissão. Essa foi a opção argentina. Nessecaso, em prol do combate à inflação, tem-se a perda completada capacidade de execução de uma política monetária ativa,como visto anteriormente.

A segunda alternativa de ancoragem nominal consiste nafixação de limites quantitativos de expansão monetária. Aqui,o Banco Central deveria obedecer estritamente às metas deemissão estabelecidas, ficando impossibilitado de sancionar osaumentos de preços gerados pelo ímpeto dos agentes econômicos,de expandir sua participação na apropriação da renda nacional.A adoção desse tipo de ancoragem, em tese, requer um regimecambial flexível, pois o Banco Central não poderia intervir nomercado de divisas para não comprometer as metas monetárias.

Com efeito, a idéia de limites rígidos de emissão correspondeà aceitação da tese de exogeneidade da oferta de moedadiscutida em parágrafos anteriores deste artigo. Trata-se deuma percepção pouco realista do poder de controle de fatoexercido pela Autoridade Monetária. A rápida superação dasmetas quantitativas previstas, quando do lançamento do “Real”,comprova a dificuldade de se implementar a ancoragem mone-tária, em virtude da impossibilidade de previsão do nível deremonetização desejado pelos agentes econômicos durante o

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processo de estabilização9 . A recuperação do valor da moedainduz à alteração do “portifólio” dos agentes, que passam ademandar maior liquidez. Numa conjuntura desse tipo, deixarde atender às exigências por moeda do sistema pode mesmodesencadear uma crise monetário-financeira de proporçõesinimagináveis.

O modelo de política monetária/cambial subjacente aoplano de estabilização brasileiro pautou-se, inicialmente, emuma ancoragem cambial diversa do regime de paridade fixa,procurando preservar algum grau de liberdade na condução dapolítica monetária. Na essência, o “Plano Real” fundamentou-se na tentativa de controle de duas variáveis básicas do sis-tema econômico: a taxa de câmbio e a taxa de juros.

Nos primeiros quatro anos após o Plano Real, o BancoCentral do Brasil interveio no mercado de divisas de modo aassegurar a variação da taxa de câmbio dentro de limitesestreitos (as “bandas cambiais”). Objetivava, com isso, contro-lar o grau de incerteza sobre a evolução do valor de rendase dos ativos, contendo o movimento endógeno por aumentosde preços na economia. Essa opção produziu efeitos negativossobre a balança comercial, decorrentes da sobrevalorização damoeda nacional. O custo dessa política recaiu, prioritariamente,sobre as atividades produtivas, pois a compensação das per-das de divisas associada à reversão das relações comerciaiscom o resto do mundo se fez por intermédio da alta da taxa dejuros, que objetiva garantir o fluxo positivo de capitais externos,necessário para assegurar a relativa estabilidade de câmbio.De certa forma, o impacto negativo das elevadas taxas de jurossobre a atividade econômica doméstica revelava-se funcionalpara solucionar o próprio problema da balança comercial, namedida em que reduzia a pressão sobre as importações. Valenotar, contudo, que o efeito do aumento da taxa de juros sobrea demanda agregada foi retardado pela ação de contratendências,que não devem ser negligenciadas. O fim do imposto inflacionário,por si só, representou um significativo acréscimo de renda paraas parcelas da população sem acesso aos ativos indexados,induzindo o crescimento do consumo. Além disso, a queda dastaxas nominais de juros pós - estabilização impediu a percepção

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do real custo do financiamento por parte dos consumidores,levando ao aumento das compras a crédito.

As políticas cambial e monetária constituem faces de umamesma lógica. A manutenção de um câmbio relativamenteestável requer um fluxo de moeda estrangeira que assegureum nível de oferta de divisas condizente com a taxa de câmbioque se deseja manter. Antes dos abalos da crise mexicana, noprimeiro trimestre de 1995, o Brasil, assim como os demaispaíses da América Latina que administravam planos de esta-bilização de natureza análoga, valeu-se do ingresso de recur-sos de curto prazo que fluíam à procura de maiores taxas deremuneração do capital. O colapso do México, todavia, expôsa volatilidade desse “hot money”, sua vulnerabilidade aosmovimentos de desvalorização das moedas nacionais dos paísesemergentes e sua rápida capacidade de reação a iminentescrises cambiais. Com o objetivo de conter a fuga de capitais,aprofundou-se a política já em curso de elevação do nível detaxa de juros, sem o que ver-se-ia comprometido o modelo deancoragem cambial adotado.

A solução encontrada para gerenciar o programa de es-tabilização – bandas cambiais estreitas com elevadas taxas dejuros – revelou-se acertada no curto prazo, e o Governo con-seguiu sustentar a “engenharia” do Real, a despeito do cenáriode incerteza que envolvia o sistema financeiro internacional,em relação à estabilidade econômica do país. Esse arranjo,todavia, criaria uma verdadeira armadilha para o plano deestabilização: as altas taxas de juros fazem crescer o serviçoda dívida mobiliária do governo, tornando cada vez mais dis-tante o almejado equilíbrio orçamentário. Conforme antes mencionado,a natureza cada vez mais marcadamente financeira do déficitpúblico potencializa os problemas decorrentes da elevação dataxa de juros sobre os níveis de emprego e renda, pois quepassa a exigir crescentes superávits primários, inteiramenteabsorvidos pelos custos de uma dívida pública que se expandeem virtude das necessidades de manter a taxa de juros nospatamares requeridos para arbitrar a movimentação de capitaisinternacionais.

Ao longo do ano de 1996, debelada a fase mais aguda dos

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efeitos provenientes da crise cambial mexicana, as taxas dejuros puderam experimentar uma gradativa redução. Para esseresultado, muito contribuiu a alteração na composição do fluxolíquido de capitais internacionais ao país – o crescimento dosinvestimentos externos diretos, em boa parte associado à in-tensificação do programa de privatizações, permitia o financi-amento do déficit em transações correntes em condições maisfavoráveis, o que possibilitou uma redução do chamado prêmiocambial10 , assim como a adoção de medidas disciplinadoras doingresso de recursos de curto prazo (elevação do prazo mínimode amortização de novos empréstimos, eliminação do recolhi-mento de Imposto sobre Operações Financeiras para algumasmodalidades de recursos para prazos de permanência superi-ores a um ano, entre outras). Em meados do ano, o BancoCentral reformulou a assistência financeira de liquidez, pas-sando a utilizar mais intensamente esse instrumento, com oobjetivo de evitar a rolagem diária dos títulos no open market11

No segundo semestre de 1997, entretanto, outra crisefinanceira, dessa vez originada no sudeste asiático, viria exporuma vez mais a fragilidade do regime de âncora cambial quesustentava o Plano Real. A necessidade de cobrir os prejuízoscontabilizados nos mercados em crise e a própria recomposi-ção de portifólio dos agentes, decorrente da alteração dapercepção de risco dos mercados ditos emergentes, levarama uma rápida perda de divisas, evidenciando a elevada volatilidadedo capital estrangeiro, a despeito da modificação na compo-sição dos ingressos líquidos de recursos, iniciada no anoanterior. Mais uma vez, as taxas de juros, sobre as quaisrecaía, praticamente, todo o ônus de enfrentamento das crisesno mercado de câmbio, tiveram que ser elevadas de forma agarantir a manutenção da relativa estabilidade cambial (nesseano, a condução da política cambial pautou-se em desvalori-zações graduais da taxa de câmbio da ordem de 0,6% ao mês).

Não estavam ainda debelados os impactos do choqueexterno desencadeado pela crise asiática, quando, no segundotrimestre de 1998, a eclosão da crise russa provocou novorevés para os mercados emergentes. As dificuldades de aces-so aos recursos externos, numa conjuntura em que os inves-

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tidores privilegiavam ativos de menor risco, impuseram a revisãodas restrições antes estabelecidas aos capitais de curto prazo,buscando estimular a captação externa (redução dos prazosmínimos das operações e ampliação das possibilidades deaplicação de créditos captados e não repassados). A disse-minação de expectativas negativas sobre as possibilidades desustentação do regime de âncora cambial brasileiro, todavia,terminaram por agravar a crise. A saída líquida de cerca de US$24 bilhões, entre agosto e setembro de 1998, levou o BancoCentral do Brasil a elevar a taxa básica de juros em 20% 12 evoltar a atuar no mercado aberto para gestão diária da liquidez.Para reduzir a pressão sobre o mercado de divisas, o Bacenintensificou as operações com títulos públicos com cláusula decorreção cambial, visando a atender a demanda por hedge dosagentes que, de outra forma, se exerceria no próprio mercadode divisas, tornando-o ainda mais instável. No final do ano, ogoverno recorreu à comunidade financeira internacional, rece-bendo assistência financeira no valor total de US$ 41,5 bilhões,num acordo que envolveu o compromisso com metas relativasà evolução do déficit público e da relação dívida pública/PIBpara o triênio 1999/2001.

Sem condições de resistir ao ataque especulativo contraa moeda nacional, o governo brasileiro, no início de 1999,finalmente adota o câmbio flexível. Em março, as regras operacionaisda política monetária foram alteradas, explicitando-se a atua-ção da autoridade monetária sobre a taxa de juros, que passoua ser ajustada por meio de intervenções do Banco Central nomercado aberto, consistentes com a meta para a taxa de jurosSelic, definida pelo Comitê de Política Monetária, responsável,também, pela fixação do seu viés de alta ou baixa. Para contera volatilidade do câmbio, a meta da taxa SELIC foi fixada em45% a. a . (seis pontos percentuais acima do nível vigente nomês anterior), as taxas do recolhimento compulsório foramelevadas, ao tempo em que se aprofundava a desregulamentaçãodos mercados de câmbio e se ampliavam as vendas de títuloscom indexação cambial.

No novo regime, sem o compromisso da autoridade mone-tária com a estabilidade do câmbio, o ônus dos ajustes aos

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choques externos, antes inteiramente a cargo da taxa de juros,passa a ser compartilhado com a taxa de câmbio. Se, por umlado, a mudança permitiu certo alargamento do raio de mano-bra da política monetária, uma vez que a administração da taxade juros estaria direcionada diretamente para o controle dainflação, por outro lado, eliminou a âncora nominal represen-tada pelas bandas cambiais. Dessa forma, o governo federalelimina o controle cambial, como mecanismo para referenciara fixação de preços e salários, instituindo, em meados do anode 1999, a sistemática de metas para a inflação, como diretrizpara a condução da política monetária. O próprio objetivo decontrole da inflação é transformado em meta a ser perseguida,com a taxa de juros básica funcionando como variável decontrole. Nessa estratégia de política monetária, a autoridademonetária deve desenvolver modelos que permitam antecipara trajetória dos preços e identificar a sensibilidade das pres-sões inflacionárias aos instrumentos de política. Produz, apartir daí, uma previsão da inflação, que é comparada com ameta inflacionária, acionando os instrumentos de política, nocaso de diferença para mais ou para menos na inflação espe-rada frente à meta, de modo a produzir o efeito desejado sobrea taxa básica de juros, que deve se propagar pelo sistema.

Em verdade, o modelo de meta inflacionária, adotado peloBanco Central, só poderá funcionar como alternativa à anco-ragem cambial ou às metas quantitativas de expansão mone-tária, caso ocorra uma redução da vulnerabilidade financeiraexterna. No cenário de deterioração do balanço de pagamen-tos, para evitar a brusca desvalorização da taxa de câmbio,o Banco Central será obrigado a reagir por meio de umaintervenção mais audaciosa no próprio mercado de câmbio e/ou no mercado de títulos públicos, ampliando a oferta de papéisindexados em dólar, assim como por meio de uma elevação nataxa de juros básica. O aumento da taxa de juros, nessascircunstâncias, agindo como mecanismo indireto de controle dataxa de câmbio, implicaria o abandono da lógica do modelo demeta inflacionária, de acordo com o qual as variações nas taxasde juros deveriam refletir o distanciamento entre a taxa deinflação esperada e a meta determinada. Ademais, tal situação

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provocaria uma ampliação do endividamento do setor públicode origem meramente financeira. Nesse sentido, o modelo demeta inflacionária não garante per si a estabilidade monetáriano longo prazo, pois sua operacionalização requer uma redu-ção da exposição financeira do balanço de pagamentos. Essecenário parece bastante improvável, uma vez que mudançasestruturais da economia nacional, atualmente ausentes naagenda do governo federal, são imprescindíveis para a redu-ção do grau de dependência entre a equação do balanço depagamentos e o capital financeiro de curto prazo e, por con-seguinte, para uma maior autonomia das políticas monetárias.

NOTAS

1 O mercado é o destino de uma infinidade de mercadorias produ-zidas visando à troca. Essas mercadorias são frutos dos esforçosde trabalho aplicados nas mais diversas especialidades. A ope-racionalização da troca requer uma referência para a comparaçãodesses diferentes tipos de trabalhos. O instrumento que permiteessa comparação é a moeda.

2 Enquanto solução para quebrar as amarras impostas pelo padrão-ouro, a moeda fiduciária e as práticas monetárias a ela associ-adas trazem outras contradições, determinando a necessidadede novas regras de aceitação, conquanto, diferentemente doouro, inexista nela própria qualquer vestígio de valor. Caberia aoEstado a resolução da contradição posta pela moeda. Se, por umlado, faz-se necessário um controle da liquidez para que nãoocorra um descolamento do monetário em relação ao mundo real,colocando em risco a aceitação da moeda como equivalentegeral, por outro lado, esse controle não pode representar umobstáculo à acumulação de capital.

3 Essa abordagem surge com Ricardo, sendo posteriormente for-malizada por intermédio da equação de Fisher. A essência dopensamento monetarista é retomada por Friedman e pelos recen-tes modelos de expectativas racionais.

4 Trata-se da taxa de juros básicos do sistema, definida no mercadomonetário.

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5 Esta exposição da demanda por moeda representa uma síntesedos determinantes da preferência por liquidez por parte dosagentes econômicos apresentados por Keynes na Teoria Gerale complementados nos textos Alternative Theories of the Rate ofInterest e Mr. Keynes’ Finance. Estes últimos, publicados naoportunidade do debate envolvendo Keynes e os teóricos dosfundos de empréstimos.

6 Hyman P. Minsky, Stabilizing na Unstable Economy (TwentiethCentury Fund Report, 1985).

7 O regime de câmbio fixo, regulamentado no Acordo de Bretton-Woods, predominou até o início da década de 70, quando oexcesso de liquidez do dólar no mercado internacional passoua exercer pressões contínuas sobre as paridades contratadas.

8 Na literatura econômica, os dois fatores de oscilação da taxa decâmbio são denominados de paridade do poder de compra eparidade da taxa de juro. Esse último elemento é mais importanteno curto prazo.

9 A rigor, a existência simultânea de uma âncora cambial e metasquantitativas para os agregados monetários representa uma in-consistência – dadas as influências recíprocas entre as taxas decâmbio e as taxas de juros, não é possível, para a AutoridadeMonetária, controlar ao mesmo tempo as duas variáveis. No casobrasileiro, logo ficou evidenciado que a programação monetáriaera uma peça de ficção; na engenharia do Plano Real, a esta-bilidade seria assegurada pela âncora cambial, atrelada à fixaçãoda taxa de juros em patamar elevado de modo a assegurar oingresso líquido de divisas necessário para lhe dar sustentação.

10 O prêmio cambial pode ser definido com a taxa de juros over-SELIC, descontada a desvalorização cambial.

11 Foram criadas a Taxa Básica do Bacen (TBC), anunciada peloComitê de Política Monetária (COPOM), instituído na mesmaépoca, cobrada dos bancos nos empréstimos de liquidez quandoas garantias eram títulos públicos, e a Taxa de Assistência doBanco Central (TBAN), de valor mais alto que a TBC, válida paraoperações com outras garantias. As duas taxas funcionavam,respectivamente, como piso e teto da taxa de juros no mercadomonetário. A possibilidade de o banco, com a garantia dos títulospúblicos de sua carteira, obter empréstimos de curto prazo no

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Bacen a taxas não - punitivas, reduziria a necessidade de aautoridade monetária intervir diariamente no mercado aberto paragerir a liquidez.

12 Em setembro, o Copom elevou a Tban, até então teto da taxade juros no mercado monetário, de 29,75% para 49,75% esuspendeu a utilização da TBC.

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