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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA HENRIQUE DE MORAIS RIBEIRO Monadismo e Fisicismo: Um Ensaio sobre as Relações Mente-Corpo São Paulo 2012

Monadismo e Fisicismo: Um Ensaio sobre as Relações … · Um Ensaio sobre as Relações Mente-Corpo São Paulo 2012 . HENRIQUE DE MORAIS RIBEIRO Monadismo e Fisicismo: Um Ensaio

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  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM FILOSOFIA

    HENRIQUE DE MORAIS RIBEIRO

    Monadismo e Fisicismo: Um Ensaio sobre as Relaes Mente-Corpo

    So Paulo 2012

  • HENRIQUE DE MORAIS RIBEIRO

    Monadismo e Fisicismo: Um Ensaio sobre as Relaes Mente-Corpo

    Tese de doutorado apresentada ao programa de Ps-Graduao em Filosofia do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, para defesa sob a orientao do Prof. Dr. Osvaldo Frota Pessoa Jnior.

    SO PAULO

    2012

  • 1

    Agradecimentos

    Iniciei meus estudos na Filosofia no curso de graduao da Universidade Estadual

    Paulista Jlio de Mesquita Filho em 1993. Desde ento at 1996, eu fui convidado para

    fazer parte do Grupo Acadmico Estudos Cognitivos onde tive contato com muitas

    pessoas que me ajudaram a aprimorar meu interesse pela Filosofia. As discusses

    interdisciplinares do GAEC abrangiam muitas reas, tais como: Inteligncia Artificial,

    Neurocincia Cognitiva, Lingustica Computacional e principalmente, questes de Filosofia

    da Mente. Fui introduzido por colegas no GAEC e devo aos professores e colegas de

    pesquisa a oportunidade de comear minhas discusses sobre questes filosficas sobre a

    natureza da mente.

    Depois de completar meus estudos de graduao, continuei na Faculdade de

    Filosofia e Cincias da UNESP, juntando-me ao programa de mestrado. Neste curso,

    continuei a ter a oportunidade de participar do GAEC de 1997 a 2000, quando ento

    defendi minha dissertao de mestrado no campo da Filosofia da Cincia, aplicando

    resultados desta rea no campo da Cincia Cognitiva, focalizando a questo da

    interdisciplinaridade nesta cincia. No trabalho com esta questo, tive a chance de me

    corresponder com Hilary Whitehall Putnam, que contribuiu para o entendimento de muitas

    questes sobre a teoria funcionalista da relao mente-corpo na Filosofia da Mente

    contempornea.

  • 2

    Quando completei meu mestrado, decidi fazer parte de meus estudos no exterior,

    para aprimorar meu doutorado e para focalizar meus interesses na Filosofia da Mente,

    escolhendo como tpico da tese o problema mente-corpo.

    Aps realizar alguns estudos de doutorado sobre filosofia das neurocincias,

    semitica e filosofia da mente no programa de doutorado da Universidade Estadual Paulista

    no ano de 2000, iniciei, ento, uma pesquisa prospectiva sobre agncias de fomento

    pesquisa doutoral, bem como sobre programas de doutorado em universidades nos Estados

    Unidos, Inglaterra, Frana e Austrlia, durante os anos de 2000 a 2002. Obtive, nesta fase,

    como resultado, uma bolsa da CAPES - Ministrio da Educao em 2002, para doutorado

    pleno ou estgio doutoral, e uma vaga incondicional para o programa de doutorado no

    departamento de filosofia da Universidade de Sheffield e uma vaga condicional para

    University College London, com a colaborao de Antnio Trajano de Menezes Arruda, da

    UNESP e Donald Peterson, do Institute of Education da Universidade de Londres.

    Despendi dois anos acadmicos 2002 a 2004 nos departamentos de Filosofia das

    Universidades de Sheffield e, posteriormente, em Londres, Kings College.

    Nestes lugares, pude realizar o levantamento bibliogrfico em diversas bibliotecas e

    redigir a estrutura principal do argumento central da tese e me corresponder com

    acadmicos de vrias universidades nos exterior trabalhando em minha rea de pesquisa,

    dentre os quais destaco: Peter Simons, Donald Davidson, Jaegwon Kim, Hilary Putnam,

    Steven Stich e David Chalmers.

    Parte da crtica de verses preliminares do trabalho desta tese deve-se

    principalmente ao professor Christopher Hookway da Universidade de Sheffield, na sesso

    acadmica de 2002-2003. Menciono tambm posteriormente James Hopkins e Keith

    Hossack, cujos comentrios me levaram a discutir o emergentismo, Verity Hartle

  • 3

    (atualmente em Yale), pelas discusses sobre a relao de supervenincia para domnios

    mltiplos, e David Papineau, todos do departamento de filosofia de Kings College. Nesta

    universidade, tive a chance de participar dos seminrios avanados e de pesquisar na

    biblioteca principal da Universidade de Sheffield, no Maugham Library do Kings College,

    e na Biblioteca Britnica. Meu trabalho nesta tese foi apoiado teoricamente pelos encontros

    de pesquisa nos seminrios no Kings College durante as sesses acadmica de 2003-2004.

    Sou grato aos colegas da ps-graduao dos departamentos de Sheffield e Kings College

    pelos comentrios e sugestes, menciono David Liggins, Elizabeth Schellekens e Jake

    Chandler, atualmente nas Universidades de Manchester, Durham e Glasgow

    respectivamente.

    As ideias intuitivas que sustentam o argumento explicativo da relao mente-corpo

    aqui desenvolvido so um trabalho em progresso, principalmente no que tange derivao

    das implicaes cientficas dos pressupostos deste ensaio. Penso que meu trabalho

    concorda, em certa medida, com assunes e motivaes filosficas especficas das

    abordagens contemporneas da relao mente-corpo em Thomas Nagel, o qual props uma

    teoria panpsiquista da mente, e David Chalmers, o principal, seno maior, propositor de

    uma teoria fenomenolgica da subjetividade da mente, abordagens estas que primam pela

    relevncia causal da mente na explicao das relaes mente-corpo.

    Com relao a comentrios mais profundos de verses preliminares do manuscrito,

    menciono Hans Burkhardt e Cristina Schneider, ambos do departamento de filosofia da

    Universidade de Munique. Menciono tambm Gordon Globus, da Universidade da

    Califrnia em Irvine, que, em 2006, fez comentrios substanciais sobre as verses

    preliminares do manuscrito, principalmente a respeito da discusso sobre o fsicismo

    contemporneo e sobre o dualismo elementar. Michael Esfeld, da Universidade de

  • 4

    Lausanne, teceu comentrios sobre a premissa composicional holstica do argumento

    proposto. Eles seguramente contriburam para a compreenso da linha de argumentao,

    situvel na Filosofia Antiga (tradies egpcia, grega e judaica), porm tambm ainda nova,

    que denomino monadismo, o qual um estudo ontolgico, isto , no dizer de Aristteles

    (Metafsica 1005b), uma investigao sobre o que essencial:

    .

    Hodiernamente, existe um interesse crescente na linha de argumentao conhecida

    como panpsiquismo, recentemente desenvolvida por Thomas Nagel, William Seager e

    Galen Strawson (o qual desenvolveu uma vertente materialista-panpsiquista denominada

    monismo ou fisicismo realista), na filosofia da mente contempornea. No que se refere

    ideia de que as propriedades mentais so ontologicamente ubquas, temos o aspecto

    panpsiquista do monadismo aqui proposto. Esta viso de um universo mental constitui uma

    doutrina que se origina nas tradies hermtica, cabalista, na de Giordano Bruno,

    Condillac, Leibniz, Kant (pr-crtico e leibniziano), Herbart, Husserl, Renouvier, Bradley e

    muitos outros filsofos monadistas cujos trabalhos sero por ns abordados oportunamente.

    Agradeo a Osvaldo Frota Pessoa Jnior, meu atual orientador na Universidade de

    So Paulo, a Maria Eunice Quilici Gonzales, da UNESP, aos membros da banca

    examinadora, bem como a outros colegas, amigos e familiares e aos docentes do

    Departamento de Filosofia da USP por comentrios e colaborao conclusiva para o

    aprimoramento da redao final da tese. Na atenuao das dificuldades da vida, menciono

    dentre os amigos e colegas da FFC-UNESP, Arnaldo Cezar Leite, Cacilda Satie Mori

    (Escola Educao e Cultura de Pompia), Thiago, Tenente Mario Sergio Nonato, e

  • 5

    Gabriel Rocha, os quais me acompanharam ao longo de sete anos de visita ao departamento

    de Filosofia da UNESP.

    Para concluir, meus agradecimentos tambm se dirigem aos meus colegas da

    graduao e da ps-graduao FFC-UNESP, pela oportunidade de lecionar ingls

    instrumental, filosofia da mente, e filosofia da cincia durante o perodo de agosto 2007 ao

    presente ano, e pelas discusses filosficas durante os anos acadmicos de agosto de 2005

    at o presente ano, perodo que se seguiu ao meu regresso do estgio doutoral no exterior.

    Agradecimentos so tambm dirigidos s fundaes CAPES e, principalmente,

    FAPESP pelo apoio financeiro e assessoria durante os anos acadmicos de 2002-2004 e

    2009-2011 para meus projetos de pesquisa sobre a metafsica da relao mente-corpo na

    tradio ps-analtica contempornea, ou seja, para a pesquisa e desenvolvimento relativos

    rea de Filosofia da Mente.

  • 6

    RESUMO Nesta tese, desenvolve-se um argumento explicativo da relao mente-corpo fundamentada

    na noo de mnada, ou substncia simples, como elemento ontolgico estruturante de um

    enfoque contemporneo da mencionada relao. Na primeira parte da tese, de natureza

    crtica, analisam-se as teorias fisicistas contemporneas da mencionada relao, a saber, a

    teoria de supervenincia da mente, da emergncia e da causao mental, com vistas a

    justificar a proposta de assuno de uma premissa dualista que visa, principalmente, propor,

    em contraste com o cenrio epifenomenalista do fisicismo contemporneo, uma ontologia

    da mente que seja compatvel com as intuies realistas do senso comum e da psicolgica

    popular sobre a fora causal da mente no universo fsico. Na segunda parte, de natureza

    positiva, prope-se um argumento explicativo da relao mente-corpo partindo-se, para

    tanto, de uma assuno e duas premissas. A assuno afirma que a mente tem o mesmo

    importe ontolgico da matria fsica, sendo estes considerados como elementos

    composicionais, afirmao a qual se denomina dualismo elementar. No que se refere s

    premissas, prope-se duas, a saber, a tese composicional holstica, que afirma que a mente e

    a matria so partes constitutivas de um todo chamado substncia simples, e a tese

    composicional mereolgica, que afirma que as substncias simples ou mnadas compem

    mereologicamente, por supervenincia, a relao mente-corpo. Examinam-se tambm

    algumas objees ao argumento monadista proposto.

    Palavras-chave: Relao Mente-Corpo, Debate Mente/Corpo, Problema Mente-Corpo, Mnada, Monadismo, Fisicismo, Causao Mental, Emergentismo, Supervenincia da Mente, Mereologia, Holismo, Dualismo, Filosofia da Mente Contempornea.

  • 7

    ABSTRACT

    This thesis offers an explanatory argument concerning the mind-body relation, an argument

    that is grounded on the notion of monad, or the simple substance, as an ontological element

    for proposing a contemporary approach to the mind-body relation. In the first part, a

    critique of the current physicalist theories of mind is given, namely, supervenience,

    emergence and mental causation, in order to justify the proposal of a dualist premiss which

    aims at an ontology of mind which satisfies the realistic intuitions of common sense and of

    folk psychology on the causal efficacy and relevance of the mind amid the physical, in

    opposition to the epiphenomenalist view of contemporary physicalist theories. In the

    second part, the positive one, we propose an explanatory argument for monadism about

    mind-body relations, based on an assumption and two premises. The assumption says that

    the mind has the same ontological import of the physical matter, and they, mind and matter,

    are considered to be elements entering the composition of psychophysical relations, an

    assumption called elementary dualism. Regarding the premises, we propose two, namely,

    the holistic compositional thesis, which asserts that mind and matter are parts entering the

    composition of true wholes called substances, and the mereological compositional thesis,

    which says that such simple substances compose, via supervenience, the mind-body

    relations. Some objections to the proposed monadist argument are examined and

    rejoindered as well.

    Key-words: Mind-Body Relation, Mind/Body Debate, Mind-Body Problem, Monad, Monadism, Physicalism, Mental Causation, Emergentism, Epiphenomenalism, Supervenience of Mind, Mereology, Holism, Dualism, Contemporary Philosophy of Mind.

  • 8

    Um mistrio singular reside sob uma imensa variedade de trabalho atual na filosofia. A fsica descreve todo o mundo, mas parece retratar uma imagem sem qualquer pensamento neste mundo. No entanto, estamos aprendendo mais e mais como um sistema fsico poderia agir se tivesse pensamentos; estamos aprendendo como uma seleo natural e a dinmica ecolgica poderiam produzir organismos para os quais atribuiramos pensamentos sem hesitao. Presumivelmente, somos tais organismos. Ainda assim, entre descrever um organismo como um sistema fsico complexo, um produto de seleo natural e de padres de impacto ambiental tal, e, de um outro lado, dizer que isto ter certos pensamentos, parece haver um grande abismo.

    Allan Gibbard (2003, p. 83)

    Pois, se no literalmente verdadeiro que meu desejo causalmente responsvel pela minha busca, e minha coceira causalmente responsvel pelo meu ato de coar, e minha crena causalmente responsvel por uma afirmao... se nenhuma destas literalmente verdadeira, ento praticamente tudo em que acredito sobre qualquer coisa falso e isto o fim do mundo.

    Jerry Fodor (1989, p. 78)

    Um nmero impressionante de filsofos sustenta que os estados mentais esto pobremente posicionados para causar conduta.

    Stephen Yablo (2003, p. 316),

    A forma deste argumento poderia dar margem a mal entendidos. No que tenhamos, por um lado, um sistema conceitual, que nos coloque diante do problema da identificao de coisas singulares; enquanto, por outro lado, existiriam objetos materiais de modo suficientemente rico e rigoroso para tornar possvel a soluo de tais problemas. O problema existe apenas porque uma soluo possvel. O mesmo vlido para todos os argumentos transcendentais.

    Peter Strawson

    Duma maneira semelhante aos antigos que tinham a habilidade de dirigir oito cavalos atrelados numa carruagem, Leibniz dirigiu todas as cincias numa mesma direo.

    Homenagem de Fontenelle a Leibniz

    Redeunt Saturnia regna

    Virglio, Quarta cloga

  • 9

    Sumrio

    Introduo 11

    Cap. I A Assuno do Dualismo Elementar e o Fisicismo No-Reducionista 18

    1 O Dilema Atual do Fisicismo No-Reducionista 19

    2 Os Argumentos de Supervenincia Psicofsica Extrados do Funcionalismo 22

    3 Argumentos Emergentistas das Cincias Especiais 37

    4 O Argumento de Supervenincia para o Epifenomenalismo e a Causao Descendente 45

    5 Sobredeterminao Causal e Escolha 53

    6 Uma Justificao da Escolha do Dualismo Elementar 57

    Cap. II A Tese Composicional das Relaes Psicofsicas 61

    1 A Tese Holista ou o Holismo dos Simples 63

    2 A Tese Mereolgica ou a Mereologia dos Compostos 70

    Cap. III A Tese Ontolgica das Relaes Psicofsicas 82

    1 A Substncia Simples ou Mnada 82

    2 As Substncias Compostas 88

  • 10

    Cap. IV A Tese Principal, Fisicismo e o Monadismo Clssico 91

    1 Posio da Tese do Monadismo 92

    2 Monadismo e Fisicismo: Similaridades e Divergncias 94

    3 Monadismos Clssicos de Leibniz e Whitehead 98

    3.1 Leibniz 99

    3.2 Whitehead 105

    Cap. V Objees ao Monadismo 111

    1 Objeo sobre as Formas ou Universais 111

    2 Dualismo Elementar: Categorias e Elementos 113

    3 Monadismos Clssico e Contemporneo 114

    4 Discusso sobre a Janela das Mnadas 116

    Consideraes Finais 118

    Referncias Bibliogrficas 119

  • 11

    Introduo

    As relaes entre o mental e o fsico ocorrem comumente no mundo. Os

    movimentos corporais, as sensaes corporais e afeces, as dores e percepes e outras

    relaes psicofsicas so acontecimentos naturais e comuns que relacionam a mente com os

    corpos fsicos. Esta viso pressupe uma certa concepo realista ingnua, comum a

    diversas imagens cientficas do real, a respeito do que seja corpo fsico no mundo. Na

    parte da Filosofia que trata do debate sobre a relao mente-corpo, existem muitas questes

    de longa data em discusso sobre as relaes psicofsicas. Questes comumente levantadas

    pelo senso comum e tambm no domnio das cincias psicolgicas so: O que a mente? O

    que o corpo fsico? Como eles esto relacionados? Em que medida nossas intuies do

    senso comum so corretas?

    Na Ontologia da Mente, muitas interpretaes das questes referidas e suas

    respectivas respostas tm sido propostas com vistas a explicar as relaes psicofsicas.

    Como sabemos ao percorrer a literatura em Filosofia da Mente, possvel colocar as

    respostas, vises e posies em diferentes classes de argumentos cujos fundamentos

    ontolgicos so expressos em premissas que variam do dualismo cartesiano at as formas

    contemporneas do fisicismo1. Em uma tal classe, as questes so levantadas e vises so

    sugeridas para a acepo dos termos mental e fsico, e para a explicao de como eles

    esto relacionados. Neste ensaio, argumentarei a favor de uma posio realista no fisicista,

    no cartesiana, mas monadista.

    1 Usarei o termo fisicismo, e no fisicalismo, como traduo de physicalism, para me referir corrente do materialismo sobre a relao mente-corpo na tradio analtica contempornea.

  • 12

    Muitos filsofos tm recentemente argumentado em favor de posicionamentos

    fisicistas, posicionamentos estes que podem ser vistos como variedades de argumentos para

    explicao das relaes mente-corpo. Tais variedades tm sido propostas com vistas a

    estruturar a formulao adequada do problema mente-corpo e sugerir respostas possveis s

    questes s quais nos referimos anteriormente. Os argumentos materialistas parecem ter

    assumido pressupostos mais fortes sobre a realidade causal da mente; muitas vises

    fisicistas recentemente propostas sobre as relaes mente-corpo tm posicionamentos,

    afirmativas e assunes que tm sido formuladas com vistas a argumentar em favor do

    realismo mental, uma doutrina de acordo com a qual a mente tem influncia causal sobre o

    fsico.

    O debate sobre o problema mente-corpo parece indicar que, de modo a eliminar

    algumas dificuldades dos argumentos fisicistas (principalmente aquelas que se relacionam

    com a intuio do senso comum de que a mente altera o mundo), uma abordagem nova e

    mais forte da ontologia da mente se faz necessria, assim como um pedido filosfico pela

    eficcia causal da mente. O desideratum de uma tal ontologia da mente (no qual a mente

    tem influncia real sobre o mundo) certamente compartilhado pelos argumentos de

    diversas teorias da mente contemporneas, tais como o fisicismo no-reducionista,

    funcionalismo, panpsiquismo, mentalismo e emergentismo. Ele negado apenas por formas

    reducionistas e eliminativistas do fisicismo.

    Com o propsito de mostrar como uma ontologia realista alternativa (no fisicista)

    poderia ser desenvolvida, preservando a intuio da psicologia popular (folk psychology) de

    que a mente tem eficcia causal, objetivamos, neste ensaio, argumentar em favor da

    explicao da relao mente-corpo com base em duas estratgias. Primeiramente,

    discordamos em parte das teses ontolgicas de supervenincia da mente e de emergncia da

  • 13

    mente defendidas pelo fisicistas. Em segundo lugar, defendemos uma teoria chamada pela

    tradio filosfica de monadismo ou substancialismo2 sobre a relao mente-corpo. Com

    vistas a satisfazer o desideratum anteriormente mencionado, eu proporei uma resposta com

    base em assunes monadistas, usadas para formular o problema mente-corpo. Trata-se de

    assunes tcitas, e no de suposies empiricamente testveis (ou seja, pretendo fazer algo

    como uma filosofia primeira, e no uma metafsica naturalizada). Tais assunes referem-

    se noo de substncia simples, a mnada, que so usadas como fundamento para a

    formulao de conceitos no contexto de uma abordagem monadista (sob aspecto

    programtico) do problema mente-corpo. Pressuponho a existncia de universais, ou seja,

    um realismo de universais, e a mnada entendida como um universal.

    Alm disso, neste ensaio, eu alego que a mente e a matria relacionam-se entre si

    como elementos que compem e constituem compostos psicofsicos. Os elementos

    supramencionados so definveis ontologicamente como unidades mondicas do ser, e toda

    relao mente-corpo sobrevm (ou supervm) agregao desses unidades mondicas.

    Para defender o substancialismo ou monadismo como formulaes e solues

    propostas para o problema mente-corpo, considerarei as questes relevantes tocantes s

    vises fisicistas, e argumentarei diretamente em favor de uma ontologia mais forte e em

    favor da realidade causal da mente em meio ao mundo fsico. Em vez de argumentar em

    favor da primazia do universo material a ideia expressa na tese ontolgica de que o que

    existe o universo fsico, tal como se faz na defesa do fisicismo mnimo , alego que

    deveramos dar mente o mesmo importe ontolgico da matria, de modo a oferecer uma

    2 Neste ensaio, eu utilizarei o termo monadismo tal como na acepo proposta por Russell ([1937] 1997), na colocao da questo da existncia e do conhecimento dos universais ou formas, com certas distines de significado e de posio, e por Eliot (1916). Utilizarei o termo monadismo como sinnimo dos termos substancialismo ou substancialismo mondico.

  • 14

    explicao da relao mente-corpo que satisfaa os desiderata ontolgicos das discusses

    em Filosofia da Mente. O caminho da igualdade no importe ontolgico ser o fundamento

    da estratgia deste ensaio.

    O argumento central deste ensaio resulta da conjuno de trs premissas e uma tese

    principal sustentada por tais premissas. A primeira premissa a assuno do dualismo

    elementar. Segundo tal assuno, os termos mente e matria so interpretados segundo

    a categoria metafsica de elementos (stoikeia para os antigos gregos), que tm a mesma

    importncia ontolgica na explicao da relao mente-corpo.

    A segunda premissa a tese composicional mereolgica, que afirma que a mente e a

    matria do mundo fsico compem mereologicamente, por meio de supervenincias, os

    seres pensantes existentes. Uma relao mereolgica, ou quantitativa, uma relao entre

    parte e todo, em que as partes tm uma prioridade ontolgica sobre o todo. Por exemplo,

    um monte de trigo nada mais do que um agregado de gros de trigo; pode-se dizer que o

    todo a soma das partes. Esta uma composio mereolgica. Mas h um outra espcie de

    composio, que a composio holstica, em que o todo tem prioridade ontolgica sobre

    as partes. O dictum do holismo que o todo maior do que a soma das partes (Nagel,

    1961).

    Assim, a terceira premissa a tese de que a mente e a matria constituem uma

    unidade substancial indestrutvel, entendendo-se por indestrutvel aquilo cuja

    possibilidade de ser nada-em-absoluto no existe (seguindo a ontologia leibniziana).

    Chamo esta terceira premissa de tese ontolgica. Esta unidade substancial denominada

    mnada. A mnada no tem partes mereolgicas, apenas partes constitutivas. Um outro

    aspecto desta premissa a tese de que a mente e a matria so partes constitutivas de um

  • 15

    todo holstico, sendo holstico definido segundo uma teoria analtica recentemente

    proposta por Esfeld (1998) e Simons (2003).

    A tese principal do ensaio, a tese do monadismo, afirma que a mente e a matria

    esto relacionadas como elementos que constituem ontologicamente um todo denominado

    substncia ou mnada (em outras palavras, os elementos compem holisticamente um todo

    essencial). Por outro lado, uma composio mereolgica de uma infinidade de mnadas

    geraria os corpos inanimados e animados. Argumentarei, na seo IV.1, que a natureza

    desta relao entre mnadas e corpos de supervenincia.

    Com base na sinopse do argumento central acima exposta, este ensaio est divido

    em cinco captulos. No primeiro captulo, eu formulo a principal assuno do argumento

    central, ou seja, a assuno de dualismo elementar, o qual afirma que a relao entre a

    mente e a matria uma relao entre elementos mentais e fsicos. Ento contrasto esta

    assuno com os argumentos atuais em favor do fisicismo3. Aps apresentar o dilema

    construtivo atualmente reconhecido para o fisicismo no-reducionista, exponho os

    principais argumentos envolvendo as teses de supervenincia e de emergncia.

    Primeiramente, na seo I.2, discutem-se os argumentos de supervenincia extrados da

    teoria funcionalista da mente. A seo I.3 trata dos argumentos emergentistas extrados de

    diversas fontes e a seo seguinte considera o argumento de supervenincia, tambm

    chamado na literatura de master argument, em favor do epifenomenalismo e da causalidade

    descendente. Aps examinar a questo da sobredeterminao causal, formulo, na seo I.6,

    uma justificativa para a escolha e proposta do dualismo elementar como assuno do

    argumento que ser defendido ao longo do presente ensaio.

    3 Interessa-nos o fisicismo que versa sobre a relao mente-corpo. H outras variedades de fisicismo que no nos interessam aqui, como por exemplo as teses fisicistas sobre cores, sobre nmeros, etc.

  • 16

    No segundo captulo, reservo lugar para a exposio da tese composicional do

    argumento. Esta tese est divida em duas partes: a tese composicional holstica e a tese

    composicional mereolgica. A tese composicional mereolgica afirma que a mente e a

    matria do mundo fsico compem mereologicamente, por meio de supervenincias, os

    seres pensantes existentes. A tese composicional holstica afirma que a mente e a matria

    perfazem um sistema holstico substancial dos qual eles so partes integrantes. Na seo

    II.1, apresento a parte holstica da tese composicional, na qual formulo a noo de holismo

    das partes simples, como elementos bsicos que compem os todos psicofsicos. Considero

    minha noo de holismo como uma aplicao da noo de Michael Esfeld de sistema

    holstico. Na seo II.2, focalizo a parte mereolgica da tese composicional. Derivo

    conservativamente uma teoria mereolgica partindo do sistema de mereologia de Burkhardt

    & Degen, o qual est fundamentado na monadologia de Leibniz e, apoiando-me nos

    resultados deles, eu derivo algumas teses que descrevem, de maneira semi-formal, as

    relaes mente-corpo, segundo um estilo de clareza analtica.

    No terceiro captulo, apresenta-se a tese ontolgica, que est relacionada com a tese

    composicional. Na seo III.1, elaboro a noo de substncia simples como sendo a

    unidade bsica da composio da relao psicofsica. A noo de substncia simples

    depende do holismo ontolgico definido na seo II.1. Na seo III.2, examino a noo de

    substncia composta, com vistas a argumentar que todos os seres pensantes so compostos,

    ou substncias compostas a partir das substncias simples denominadas mnadas.

    No quarto captulo, exponho a tese principal deste ensaio, contrastada com as teses

    do fisicismo e com outras linhas de argumentao, as quais denomino monadismos

    clssicos. Portanto, na seo IV.1, explico detalhadamente a tese de que as relaes

    psicofsicas so sobrevenientes organizao de unidades bsicas do ser, as mnadas, tese

  • 17

    que contrastada com a concepo de matria primria dos fisicistas. Com o fito de inserir

    o monadismo no debate contemporneo, mostra-se que a noo de mnada proposta neste

    ensaio diferente das noes de mnada propostas por filsofos com Leibniz e Whitehead,

    noes que foram respectivamente desenvolvidas na clebre e fecunda Monadologie e na

    obra Process and Reality.

    No captulo cinco, apresento respostas a quatro objees contra a proposta

    monadista deste ensaio. A primeira objeo alega que a noo de mnada seria

    ontologicamente trivial, e envolve o debate sobre a existncia e conhecimento dos

    universais. A segunda contesta que a noo de mnada no seria adequada para as teorias

    contemporneas da mente propostas nas cincias especiais e na filosofia. A terceira alude a

    uma distino necessria entre elementos e propriedades, e a quarta objeo questo da

    abertura causal da mnada. Em resposta a tais objees, argumentarei em favor da no-

    trivialidade da noo de mnada e em favor do posicionamento correto do monadismo em

    meio do debate mente-corpo contemporneo.

    Nas concluses, tento reconciliar o monadismo com uma certa variedade do

    fisicismo neutro com relao ontologia. Tal fisicismo apoia-se em uma assuno referente

    a uma ontologia do universo fsico que compatvel com a assuno de dualismo elementar

    no monadismo contemporneo, ou seja, com a realidade da mente em um universo.

  • 18

    Captulo I

    A Assuno de Dualismo Elementar e o Fisicismo No-Reducionista

    Com vistas a advogar o substancialismo ou monadismo sobre as relaes mente-

    corpo, eu gostaria de comear com uma justificativa para a escolha da assuno de

    dualismo elementar com premissa do argumento proposto neste ensaio. A justificativa

    resulta do contraste do dualismo elementar com o fisicismo, que a doutrina de acordo com

    a qual tudo constitudo e composto de matria fsica. O fisicismo, assim concebido, uma

    interpretao filosfico-ontlogica do que existe e do que permanece sob as mudanas.

    Nesta doutrina, existe uma assuno fundamental de todos os argumentos materialistas: a

    tese da primazia do universo fsico. De acordo com a tal tese, tudo sobrevm a, ou emerge

    de um fundamento ontolgico primrio, que seria a matria fsica (pressupondo, na histria

    dos debates, uma certa concepo sobre a matria fsica). A corrente mais forte do fisicismo

    atual no-reducionista, negando que se possa efetuar, mesmo em princpio, uma reduo

    completa de tudo que existe base fsica ou material. Ao longo da discusso do fisicismo

    no-reducionista, darei relevncia para a tese da primazia defendida nos argumentos para

    explicao das relaes mente-corpo.

    O dualismo elementar afirma que a mente e a matria fsica devem ser concebidas

    como elementos que so os relata de qualquer relao psicofsica e, para o monadista, tais

    elementos devem ter a mesma importncia ontolgica para explicao desta relao. Eu

    interpreto a mente e a matria fsica como elementos que tm propriedades e constituem

    uma coisa simples: a substncia chamada mnada. Se esta assuno verdadeira, a mente e

    o corpo no so idnticos tal como pressuposto pelas teorias materialistas de identidade

  • 19

    mente-crebro nem fundamentalmente distintos tal como exigido pelas teorias dualistas

    (sendo a identidade ou distino interpretadas de acordo com assunes sobre as

    propriedades, eventos, processos e, com maior nfase, substncias). As teorias fisicistas

    conduzem a algumas dificuldades especficas, as quais esclareceremos no desenvolvimento

    do presente ensaio. Na viso argumentada neste ensaio, a mente e a matria, o repetimos,

    so melhor concebidas com base numa ontologia de partes (as mnadas) que constituem

    totalidades que, a seu turno, compem mereologicamente os seres pensantes. Tal como

    pretendo argumentar, estes dois elementos (mente e corpo) tm a mesma importncia

    ontolgica na explicao das relaes mente-corpo.

    1 O Dilema Atual do Fisicismo No-Reducionista

    Antes de avaliar a tese de primazia (do universo material) pressuposta pelas teorias

    da supervenincia, emergncia e da causao mental no fisicismo contemporneo, situemos

    as questes explicativas da formulao e da solubilidade do problema mente-corpo. As

    investigaes filosficas sobre o problema mente-corpo podem ser vistas como

    fundamentadas em duas estratgias opostas. A primeira consiste na alegao de que o

    problema mente-corpo solvel (isto , a relao mente-corpo pode ser explicada por meio

    de argumentos), assumindo-se, para tanto, sua formulao e as assunes correlatas de tal

    formulao. A segunda consiste na alegao de que o problema mente-corpo insolvel

    (isto , a relao mente-corpo no pode ser explicada por meio de argumentos), tentando-se

    de certa forma evit-lo por meio da recusa de aceitao de assunes e pressuposies de

    suas formulaes.

  • 20

    Na primeira estratgia, aceita-se que o problema esteja bem formulado e tenta-se

    resolv-lo. O fisicismo pode ser considerado como uma posio cuja estratgia resolver o

    problema mente-corpo, partindo-se de diversos argumentos em favor da tese da primazia,

    havendo uma gama ampla para as formulaes da noo de fsico nos debates, noo que

    pressupe um realismo direto sobre o mundo, formulaes que dependem das concepes

    de supervenincia e de emergncia que foram propostas na literatura sobre as relaes

    mente-corpo.

    Na segunda estratgia, negam-se as assunes que implicam o problema mente-

    corpo e, portanto, evita-se o problema. A posio de Putnam (1967), por exemplo, se

    aproxima desta estratgia, ao dissolver a formulao do problema apresentada pelos

    materialistas da teoria da identidade. Neste texto, ele defende uma teoria funcionalista da

    mente, compatvel com diferentes vertentes materialistas, dualistas ou espiritualistas. Para a

    viso funcionalista, a abordagem da relao mente-corpo tem um aspecto programtico,

    isto , no se objetiva a soluo da problema da relao mente-corpo, mas sim buscar

    fontes a posteriori para sua abordagem colocada como hiptese emprica, o que seria uma

    forma de abertura da discusso sobre tal questo, favorvel ao pensamento leibniziano.

    Ao estabelecer minha posio substancialista, em face do carter extremamente

    controverso dos debates contemporneos sobre as relaes mente-corpo, procurarei criticar

    as formulaes do problema mente-corpo feitas pelos argumentos fisicistas,

    fundamentadas segundo a doutrina de supervenincia e, mais recentemente, da doutrina de

    emergncia, bem como de teses adicionais que sero especificadas ao longo do ensaio. Faz-

    se tambm necessrio considerar a persuaso dos atuais argumentos contra a causalidade

    descendente. No que se segue, eu exporei e abordarei as assunes ontolgicas que, na

    minha viso, parecem ser questionveis. Concordarei em parte com as assunes e

  • 21

    pressuposies de trs classes cruciais de argumentos para o fisicismo, com vistas a

    justificar a escolha do dualismo elementar como assuno proposta para meu argumento de

    explicao das relaes mente-corpo.

    Entretanto, a escolha pelo dualismo no nos exclui do debate fisicista

    contemporneo. O dualismo uma possibilidade reconcilivel com uma variedade de

    fisicismo neutro com relao ontologia, o qual chamarei de fisicismo neutro. O

    dualismo pode ser um notvel resultado de tal discusso, tal como podemos ler no seguinte

    argumento de Jaegwon Kim, que um momento crucial do debate:

    Se os fisicistas no-reducionistas aceitam o fechamento causal do domnio fsico, ento, eles no tm caminho visvel de lidar com a possibilidade da causao psicofsica. Isto significa que eles devem ou abandonar seu antirreducionismo ou, se no isto, rejeitar a possibilidade de relaes causais psicofsicas. A negao da causao psicofsica pode surgir de duas formas: primeiro voc faz tal negao porque no acredita que haja eventos mentais; ou, segundo, voc mantm sua crena nos eventos mentais mesmo no aceitando que eles entrem em transaes causais com os processos fsicos, constituindo eles um mundo causal autnomo. Portanto, se voc esposou o eliminativismo, ou, se no isto, voc est se movimentando alm em direo ao dualismo que afirma a existncia de um reino do mental em total isolamento causal com o mundo fsico [...] Nossa concluso, portanto, tem que ser esta: o materialismo no-reducionista no um posicionamento estvel. H pressuposies de vrias espcies que o empurram ou em direo ao um eliminativismo direto ou em direo de uma forma explcita de dualismo (Kim, 1999, p. 5).

    Tal instabilidade, que definida claramente por Kim como um dilema construtivo4

    para o fisicismo no-reducionista contemporneo, pode ser considerado, na viso que

    advogo aqui, como resultado de assunes relativas concepo fisicista da substncia,

    segundo a qual tudo o que permanece mediante a mudana ou subsiste a matria fsica,

    concepo esta que est pressuposta por muitos argumentos fisicistas. A meu ver, o

    4 Em correspondncia pessoal com Gordon Globus, ele sugeriu que este argumento de Kim fosse descrito como um stalemate, posio no xadrez em que o empate se segue impossibilidade de um dos lados conseguir mover suas peas. Porm, em correspondncia com Kim, este esclareceu que o argumento tem a forma lgica de um dilema, um dilema construtivo.

  • 22

    movimento correto para evitar a instabilidade do debate mente-corpo em direo de uma

    forma mais forte de dualismo, qual chamo dualismo elementar.

    2 Os Argumentos de Supervenincia Psicofisica Extrados do Funcionalismo

    Nesta seo, como parte da justificativa para a escolha do dualismo elementar,

    pretendo discutir os argumentos de supervenincia fundamentais em favor do fisicismo

    sobre a relao mente-corpo, argumentos que foram fundamentados em muitas premissas,

    entre as quais destacaria as premissas do funcionalismo na explicao das relaes mente-

    corpo. Comeo com uma considerao da definio da relao de supervenincia.

    Posteriormente, introduzo uma tese de supervenincia psicofsica fundamentada em

    definies, e ento avalio criticamente o argumento de supervenincia e suas premissas.

    Para comear, til introduzir e capturar a intuio envolvida na noo de

    supervenincia. Aristteles explicou o significado de supervenincia da forma seguinte: O

    prazer completa a atividade no como o estado permanente correspondente faz pela sua

    imanncia, mas como um fim que sobrevm [] como o despontar da

    juventude faz naqueles que esto na flor de sua idade5. Ou seja, na explicao de

    Aristteles, o prazer definido como sobreveniente s atividades prazerosas que defluem

    da juventude. O trecho seguinte esclarece mais a noo de supervenincia:

    5 Cf. Aristteles, tica a Nicmaco, 1174b31-33, citado em Heil (1992, p. 67) e em Hare (1984, nota 1), que aceitou a traduo do termo grego destacado. Em correspondncia pessoal, tenho sabido que alguns intrpretes do grego jnico (Plato scholars) crem ser inconveniente traduzir o termo grego sob o termo latino supervenire. Mas, no presente contexto, eu estou apenas introduzindo a noo de supervenincia, sem entrar em detalhes ulteriores sobre a traduo do termo grego, detalhes dos quais se faria questo em outros ensaios em Filosofia Antiga.

  • 23

    O termo supervenincia deriva-se etimologicamente do latim super, significando sobre, acima, adicional, e do verbo latino venire, que significa vir. Nos contextos no-filosficos o verbo utilizado primariamente de um modo temporal tipicamente para significar vindo ou ocorrendo como uma coisa nova, adicional, inesperada. Em contextos filosficos, primariamente utilizado no-temporalmente para significar uma relao de determinao metafsica e/ou conceitual; aqui a etimologia parece ser quase metafrica espacialmente, a ideia sendo que algo superveniente vem sobre est fundamentado por aquilo ao qual supervm (Horgan, 1993, p. 555).

    As relaes de supervenincia, que pressupem a intuio sobre a dependncia e

    sobre sua oposta, a relao de determinao, foram durante muito tempo consideradas

    como assunes para a formulao da interpretao fisicista do problema mente-corpo. Trs

    questes tm sido cruciais para a discusso da supervenincia e sua relao com as teorias

    da relao mente-corpo:

    (Q1) Como definir e explicar a novidade envolvida modalmente na relao de

    supervenincia especificada para defesa do fisicismo, dado que existem muitas variedades

    de relao de supervenincia?6

    (Q2) adequada a formulao do problema mente-corpo como uma tese de

    supervenincia?7

    (Q3) Como explicar fisicamente as teses de supervenincia via argumentos com

    vistas a evitar a reduo psicofsica forte e satisfazer as condies para a proposta de uma

    ontologia materialista da mente?8

    6 Para comentrios sobre a variedade prolfica de definies lgico-filosficas das teses de supervenincia no fisicismo contemporneo, veja-se Kim (1993, ensaio 7) e Lewis (1986, p. 14). 7 A formulao supervenientista do materialismo foi proposta pela primeira vez por Davidson (1970, 1985), por Horgan (1982) e depois por Kim (1993), que desenvolveu e refinou a formulao e soluo supervenientista do problema mente-corpo. Alguns anos depois, houve desacordos sobre a adequao da relao de supervenincia para enfocar a questo, ainda polmica, de como formular o materialismo sobre as relaes mente-corpo. Por exemplo, veja-se Horgan (1993), Hawthorne (2002) e Putnam (1999, parte II).

  • 24

    No que concerne primeira questo, da definio de supervenincia, h muitas

    maneiras de classificar as relaes de supervenincia, propostas de modo a formular o

    fisicismo. Fundamentais para a relao de supervenincia so (1) a propriedade de

    determinao, e sua inversa, (2) a propriedade de dependncia (cf. Kim, 1993, pp. 54, 131

    ff). Assim, no caso da variedade psicofsica da relao de supervenincia, o fisicismo alega

    que existe uma dependncia do mental em relao ao fsico ou, inversamente, que existe

    uma determinao das propriedades, eventos, estados e processos mentais por aqueles

    fsicos (corporais). A dependncia e a determinao so definidas em cada teoria na qual a

    relao de supervenincia fundamenta a formulao de diversas teses de supervenincia

    psicofsica. Muitos filsofos analticos9 propuseram as formas mais simples de

    dependncia ou de determinao dos relata de propriedades.

    Tais formas podem ser logicamente expressas como se segue. Sejam W e W dois

    conjuntos de propriedades, propriedades sobrevenientes e propriedades de base, ou

    subvenientes, definidas para um nico domnio (supomos domnio nico por convenincia

    para a ontologia materialista da mente que nos interessa especificamente) ao qual pertence

    certo objeto. W supervm a W se e somente se:

    (i) W nada mais do que W.10

    8 Davidson (1970, 1980 e 1985) foi o autor do artigo seminal sobre um argumento materialista e anti-reducionista em favor da tese de supervenincia psicofsica. Explicarei o argumento de Davidson a seguir. 9 Horgan (1982, p. 97), Hare (1984, p. 1), Kim (1993, ensaios 4 e 8, e 1998), Lewis (1986), Heil (1992), McLaughlin (1996), Drai (1999) e Jackson (1994). 10 Armstrong (1989, p. 56), citado por Humphreys (1997, p. S338, nota 2). Esta expresso da tese de identidade psicofsica, dos materialistas de identidade. Os domnios de propriedades W e W referem-se ao mesmo objeto, num nico domnio definido para a relao de supervenincia. Por exemplo: W (a mente) supervm a W (o sistema nervoso central) porque W idntico a W (segundo os tericos da identidade mente-crebro, como Armstrong). Da perspectiva da teoria da identidade de Frege, trata-se de uma identidade singular.

  • 25

    (ii) No h uma mudana qualquer em W se no houver mudana fsica em W.11

    (iii) No h diferena em W (alguma propriedade) sem haver diferena em W

    (outra propriedade) (Jackson, 1994).

    (iv) No h dois eventos semelhantes com relao aos seus aspectos fsicos em W

    mas diferindo em algum aspecto mental em W (Davidson, 1980, p. 214).

    (v) Fixando o fsico em W fixar tudo o mais em W (Kim, 1993, p. 155; Horgan,

    1982, p. 32).

    (vi) Nada em W doutra forma se e somente se algo fsico em W doutra forma

    (Haugeland, 1982, p. 97).

    (vii) No poderia haver o caso em que o mundo fsico em W o mesmo e o mundo

    mental em W difira ou se altere (Haugeland, 1982, p. 97).

    (viii) Propriedades-W supervm s propriedades-W se no houver situaes

    possveis que so idnticas com relao s propriedades-W enquanto diferindo com

    relao s propriedades-W (Chalmers, 1996, p. 24).

    (ix) No h diferena de alguma espcie em W sem que haja diferena em outra

    espcie em W (Lewis, 1986, apud Horgan, 1993, p. 568).

    (x) Objetos que so indiscernveis com relao s propriedades de um tipo em W

    (propriedades de base, subvenientes) so indiscernveis com relao s propriedades doutro

    tipo em W (propriedades sobrevenientes) (Kim, 1993, p. 109).

    11 A mudana, comumente referida na tradio analtica como Cambridge change, a la Russell, isto , a percepo aparente de que um objeto apresente uma propriedade p no instante t e no apresenta tal propriedade no instante seguinte, a qual Leibniz chamava simplesmente de tempo ou sucedaneum, me parece ser um fundamento metafisicamente mais simples para definir a supervenincia, mais simples do que outra formulao extrada das cincias especiais. Exemplos de formulaes extradas das cincias especiais seriam, por exemplo, as formulaes de noes de supervenincia em termos de pares ordenados, de covariana forte ou fraca, de indiscernibilidade ou similaridade atravs de mundos (como na definio de supervenincia global) e de domnios mltiplos de objetos com propriedades.

  • 26

    Em termos lgicos, as definies mais desenvolvidas de supervenincia so as

    variedades graduadas de acordo com a fora modal forte e fraca de tal relao. Tais

    definies lgicas so bem conhecidas, e so expressas nas formas seguintes12. Sejam A e

    B propriedades que pertencem aos domnios W e W. Seja tambm o domnio da relao de

    supervenincia composto por objetos x e y. Ento:

    Ax (Ax B(Bx y(ByAy))) (1)

    Ax (Ax B(Bx y(ByAy))) (2) so definies que podem ser interpretadas na linguagem natural da seguinte maneira.

    (1) Supervenincia fraca: necessariamente, se algum objeto tem a propriedade A em W,

    ento existe uma propriedade B em W tal que, o objeto tem B e, possivelmente, qualquer

    objeto que tem B tem A. (2) Supervenincia forte: necessariamente, se algum objeto tem a

    propriedade A em W, ento existe uma propriedade B em W tal que o objeto que tem B e,

    necessariamente, qualquer objeto que tem B tem A.

    Estas so definies analiticas13 para a relao de supervenincia que tm sido

    propostas para capturar a intuio metafsica de dependncia entre estados, propriedades,

    12 Cf. Horgan (1982, p.32; 1993, pp. 566-7), Heil (1992, p.70), Kim (1993, pp. 57-70, 140-2), Drai (1999, cap. 1) e Savellos & Yalin (1996, p. 3). 13 Eu acrescento uma definio logicamente mais rigorosa da relao de supervenincia a priori: seja L uma lgica na qual a classe de objetos est selecionada e x seja um objeto de uma tal classe, e dois predicados unrios de um conjunto de predicados que so fechados sob operaes booleanas que podem gerar infinitamente muitas propriedades a partir das operaes booleanas. Dados modelos fisicistas ou a priori de interpretao dos operadores modais, h duas variedades definveis de supervenincia a seguir: (1) sobrevm fracamente a se, e somente se, necessariamente, para todo x, se x tem , ento possivelmente x tem ; (2) sobrevm fortemente a , se e somente se, necessariamente, para todo x, se x tem , ento necessariamente x tem . Semelhantemente s definies explicadas acima, definies mais completas podem ser formuladas a partir destas mais simples.

  • 27

    processos, etc., hierarquicamente organizados ou no, ou de sua inversa, a determinao

    entre propriedades e processos. Tais definies so pressupostas nas variedades mais

    desenvolvidas de supervenincia, para argumentar em favor do fisicismo, especificamente

    concernente conexo entre os nveis da mente e dos corpos fsicos. Com vistas a avaliar o

    fisicismo interpretado como tese de supervenincia, eu interpretarei a supervenincia

    simplesmente como uma tese metafsica sobre a mudana, compreendida como mudana de

    propriedades mentais e fsicas. Colocando de outra forma, no ocorre nenhuma mudana

    com respeito a A em W sem que ocorra uma mudana com respeito a B em W (Drai, 1999,

    p. 2), definio a que chamarei de supervenincia da mudana (Cambridge change

    supervenience). Com relao segunda questo, sobre se a supervenincia adequada para formular o problema mente corpo, a supervenincia de mudana considerada como uma relao

    metafsica fundamental para interpretar de modo fsico o problema mente-corpo (Kim,

    1998, p. 14), que se torna definvel por meio de relaes de supervenincia. Aqui, h uma

    questo a ser considerada: a simetria ou a assimetria da relao de supervenincia, e sua

    relevncia para a definio da ontologia material do relatum mental. Com vistas a formular

    a tese fisicista sobre o problema mente-corpo, alguns filsofos14 argumentaram que a

    relao assimtrica, ou seja, o mental depende de ou determinado pelo fsico, mas no

    vice-versa, e esta determinao de mo nica (not a two-way street; cf. Miller, 1990)

    tornaria a supervenincia adequada para alegar que a matria fsica seja prioritria em

    14 Nem todos concordam sobre este ponto, alguns alegam que a supervenincia seja uma relao simtrica, isto , se A sobrevm a B, B sobrevm a A. Isto pode ocorrer se for provado que A sobrevm a B, como no caso da supervenincia psicofsica de A sobre B e se for tambm provado que h tambm causao mental de A sobre B. Sobre a questo da simetria, veja-se, por exemplo, Miller (1990) e Kim (1998, p. 11).

  • 28

    relao ao mental e, portanto, o fsico seria a base subveniente a partir da qual o mental e

    tudo o mais sobrevm (isto , supervenincia de tudo sobre o fsico, ou supervenincia

    csmica).

    A terceira questo, mencionada anteriormente, a questo central, situvel

    consensualmente, sobre como explicar que o mental sobrevm famigerada base fsica

    ou ao correlato corporal ou, alternativamente, como possvel que no haja mudana da

    mente sem que haja mudana na matria fsica, ou como o corpo fsico determina as

    mudanas mentais, ou ainda como estas dependem do corpo fsico. Focalizarei esta

    questo no que se segue.

    Os argumentos fundamentais para a explicao no-reducionista da supervenincia

    psicofsica sobre fundamentos a posteriori foram formulados a partir de premissas

    extradas de diversas teorias, dentre as quais podemos mencionar o monismo anmalo

    (Davidson, 1970, 1985, pp. 209-15), a completude da fsica15, o realizacionismo mltiplo16

    e mltipla especificao causal (Lewis, 1966; Kim, 1998), como variedades do

    funcionalismo e da fenomenologia funcional no-reducionista17. Para o presente propsito

    15 Horgan (1982, 1983), onde ele define a noo de supervenincia como hermenutica csmica, isto , como interpretao de todas as verdades acerca do universo com base nas inferncias lgicas deduzidas a partir das verdades aceitas na linguagem da fsica. E Papineau (2001), que explicou a origem do fisicismo como tese principal do argumento para o fisicismo como tese sobre a completude da fsica. Jackson (1994) argumenta em favor de uma tese de supervenincia psicofsica como uma tese de implicao lgica no exemplo de sua defesa da anlise conceitual. 16 Putnam (1975), que props que o funcionalismo compatvel com a tese de identidade fraca (token identity thesis), e Kim (1982, 1993 e 1998), que assumiu premissas dos argumentos funcionalistas de Putnam como passo fundamental para defesa de seu argumento de supervenincia. 17 Chalmers (1996, parte II, cap. 7.2). O argumento de Chalmers para o dualismo a partir do funcionalismo no-reducionista parece, segundo penso, divergir sutilmente das posies fisicistas que pressupem a tese de primazia. Mas, por outro lado, Chalmers parece estar comprometido com o desideratum de explicao da tese de supervenincia, que est fundada na tese de primazia em sua formulao fisicista. Por esta razo, duvido que o universo fsico seja ontologicamente prioritrio para ele.

  • 29

    de elaborao da justificao das premissas do dualismo elementar, descreverei os

    argumentos sucintamente como se segue.

    Primeiramente, temos que considerar o argumento para a tese de identidade

    psicofsica fraca a partir do monismo anmalo, que nos interessa aqui pelo uso que faz da

    tese de primazia do fsico. A ideia bsica deste argumento, que foi seminal na introduo de

    argumentos para teses de supervenincia sobre o problema mente-corpo, a reconciliao

    de trs princpios dispostos numa trade inconsistente:

    (A1) Princpio de Interao Causal: Eventos mentais causam eventos fsicos.

    (A2) Carter Nomolgico da Causalidade: Quando dois eventos esto numa relao

    causal, uma lei determinstica estrita fundamenta tal relao.

    (A3) Anomalismo do Mental: No h leis estritas determinsticas com base nas quais

    os eventos mentais possam ser preditos ou explicados.

    Considerando a validade das teses a que nos referimos acima, afirma-se, no

    argumento de Davidson, que elas no podem ser todas verdadeiras simultaneamente; tem-se

    uma trade inconsistente. Porque se assumimos que o primeiro princpio verdadeiro, deve-

    se inferir que seja verdadeiro que haja relao psicofsica de modo que os eventos mentais

    causem os eventos fsicos. Se se assume que o segundo princpio seja verdadeiro, devemos

    inferir que deva haver uma lei estrita (estrita no sentido de um universal lgico) e

    determinstica (determinstica significando que haja univocidade na relao causal, ou

    seja, para todo efeito fsico h uma, e somente uma, causa), com base na qual se pode

    explicar e predizer qualquer evento mental. Se os trs princpios so assumidos como

  • 30

    verdadeiros, ento h uma contradio, pois segue-se dos dois primeiros que h leis

    psicofsicas estritas e determinsticas, o que contraria o terceiro princpio.

    A reconciliao dos princpios do argumento exposto depende da maneira de

    descrever os eventos fsicos fundamentados por leis. Uma soluo que no haveria leis

    psicofsicas,18 mas somente leis fsicas ligando eventos, e tais eventos so somente fsicos.

    Segundo esta linha de argumento, pode-se inferir que os eventos mentais so idnticos aos

    eventos fsicos (a tese de identidade psicofsica) e, portanto, no h mudana mental sem

    que haja mudana fsica, uma concluso que estabelece a tese de supervenincia (cf.

    Davidson, 1980, p. 209).

    Em segundo lugar, consideremos o fisicismo em termos da tese de completude da

    fsica. Consideremos aqui brevemente duas formulaes da tese e dois argumentos

    relacionados. A tese de completude uma premissa central do argumento para o fisicismo,

    e ela pode ser afirmada a partir de fontes a priori ou a posteriori.

    A tese de completude a priori conhecida como hermenutica csmica (Horgan,

    1982) ou interpretao completa e fsica das verdades, interpretao que precisamente

    representada pela alegao de que para toda verdade acerca do universo, existe uma

    correspondente verdade fsica, expressa em linguagem da fsica; ou seja, qualquer verdade

    sobre o universo segue necessariamente de uma sentena fsica verdadeira.19 A necessidade

    lgica interpretada simpliciter para todo mundo possvel, uma interpretao chamada de

    tese de entrada por implicao (entry by entailment) (Jackson, 1994, p. 27). Assim,

    18 Para uma apreciao crtica do argumento de Davidson, que se relaciona com tese de identidade defendida no argumento davidsoniano, ver Drai (1999, p. 86-96). Para uma literatura completa e atualizada sobre defesas e crticas do monismo anmalo, ver Chalmers www.consc.net/mindpapers/4.1d. 19 Cf. Byrne (1999, p. 347), para uma avaliao crtica do argumento de Horgan para a completude a priori da fsica.

  • 31

    haveria implicaes de verdades sobre o universo mental a partir das verdades sobre o

    universo fsico. O argumento extrado da tese de completude a priori funciona asserindo-se

    que o mental ou o psicolgico supervm ao fsico ou fisiolgico, se a verdade acerca do

    mental implicada, ou logicamente implicada, pela verdade acerca do fsico.

    A tese de completude a posteriori asserida a partir da interpretao naturalstica-

    filosfica da fsica. A metafsica da completude da fsica assevera que todos os efeitos

    fsicos so completamente determinados pelas leis fsicas e pela srie causal ou histrica.

    Esta interpretao feita com base nas premissas inspiradas em fundamentos empricos,

    fundamentos que residem basicamente nas leis de conservao, e na sua relao com a

    questo da incluso de foras mentais em meio ao mundo fsico (Papineau, 2001). Como

    colocado por alguns autores, o argumento causal para a supervenincia do mental, que

    pressupe a tese de completude da fsica, expresso pelas teses seguintes (Papineau, 2001):

    (B1) Completude da Fsica: Todos os efeitos fsicos so completamente

    determinados por lei e por uma histria causal prvia.

    (B2) Causao Psicofsica: Todas as ocorrncias mentais tm causas fsicas.

    (B3) No-sobredeterminao: Os efeitos fsicos de causas mentais no so

    sobredeterminados20, ou seja, no pode haver mais de uma causa

    numericamente distinta para um dado efeito fsico.

    (B4) Identidade Psicofsica: As causas mentais so ontologicamente idnticas s

    causas fsicas, donde segue-se a fortiori:

    20 A forma concisa do argumento devida a Papineau (2003).

  • 32

    (B5) Supervenincia Psicofsica: No h mudana natural causal no mental a menos

    que haja uma mudana causal do fsico21.

    A primeira premissa assere que a fsica ideal e causalmente completa. Se se

    questiona o significado do termo fsico, ento existe uma forma de questionar tal

    premissa, pois a teoria fsica contempornea no consensualmente considerada completa

    (assumindo-se que o termo completude refira-se tambm completude da fsica atual)

    (cf. Papineau, 2003).

    Agora, temos que considerar a doutrina do funcionalismo reducionista, seja ela

    afirmada como funcionalismo de mquina ou como mltipla especificao causal. A teoria

    funcional fundamentada de duas formas. Ou sobre os estados computacionais ou sobre as

    relaes causais definidas na fsica clssica. Na primeira, o funcionalismo fundamentado

    na tese de realizao mltipla ou sobre a mltipla especificao causal de propriedades de

    segunda-ordem do corpo fsico, tal como se argumenta em favor da tese fraca de identidade

    psicofsica. Portanto, segue-se do funcionalismo que no h mudana mental sem mudana

    fsica, uma concluso que declara nominalmente a tese de supervenincia psicofsica.

    Existem as formas reducionistas de funcionalismo, com a reduo significando identidade

    da experincia subjetiva fenomnica, ou qualia, com as mudanas nas propriedades fsicas.

    Como consenso, sabe-se que duas objees a estas principais variedades de funcionalismo

    foram levantadas. A objeo crucial que os estados, eventos, propriedades e eventos, etc,

    no so idnticos totalmente aos estados, eventos e propriedades, etc., funcionais de

    21 Eu acrescentei a tese de supervenincia no argumento, que, sendo mais fraca que as anteriores, segue-se a fortiori. A forma concisa do argumento dada por Papineau (2003).

  • 33

    segunda ordem22 em muitos casos, principalmente no caso crucial das experincias

    fenomnicas ou qualia. Alm disso, existe outra objeo que diz que o funcionalismo pode

    conduzir, tal como discutirei na seo I.4, ao argumento de excluso causal ou argumento

    mestre (master argument: cf. Kim, 1998; Block, 1990; Nasrin, 2000).

    Alm do funcionalismo reducionista, tem-se que considerar outra teoria digna de

    nota, a interpretao funcionalista no-reducionista (Chalmers, 1996, p. 275) do problema

    mente-corpo, que foi proposta para preservar a teoria funcionalista e incluir a mente

    consciente, que estaria excluda da teoria funcionalista reducionista de segunda ordem. O

    dualismo naturalista de Chalmers argumenta que a fenomenologia salva pela combinao

    da ontologia da base fsica ou neurofisiolgica do corpo com um dualismo de propriedades,

    sendo este dualismo constitudo de propriedades fenomnicas ou protofenomnicas,

    juntamente com as propriedades fsicas ou neurofisiolgicas. Isto d ao mental enquanto

    conscincia uma importncia ontolgica fundamental, e o funcionalismo (na variedade da

    mltipla especificao causal) preservado como uma premissa do argumento do dualismo

    naturalista para a explicao da supervenincia psicofsica.

    De acordo com o dualismo naturalista, com referncia critica contempornea do

    fisicismo, no necessrio pressupor a primazia do fsico na explicao fisicista da origem

    da mente consciente (Chalmers, 1996, p. 298). O dualismo naturalista argumenta,

    22 Cf. Kim (1998, pp. 19-23). Uma propriedade de segunda ordem a propriedade de uma propriedade (de primeira ordem) de um certo objeto. Neste caso, quantifica-se sobre as propriedades do objeto, que so de primeira ordem. Aplicando-se esta noo ao caso da relao mente-corpo, na teoria funcionalista ou da realizao fsica da mente, se diz que as propriedades mentais so propriedades de propriedades fsicas do corpo e que, dado que as propriedades mentais so propriedades funcionais do organismo como um todo, as propriedades funcionais so propriedades de segunda-ordem do fsico. Como bem definiu Kim (1998, p. 20): F uma propriedade de segunda-ordem sobre o conjunto B de base (ou de primeira ordem) de propriedades se, e somente se, F a propriedade de ter alguma propriedade P em B tal que D(P), onde D especifica uma condio dos membros de B.

  • 34

    fundamentado em alguns princpios funcionalistas, em favor da tese de que a mente

    consciente supervm naturalmente sobre o fsico (e, conjuntamente, sobre o fenomnico),

    negando, portanto, a tese de primazia pressuposta pelo funcionalismo reducionista no

    fisicismo mnimo (minimal physicalism)23. Desde que a tese de primazia no seja

    pressuposta necessariamente pelo dualismo naturalista, eu penso que esta teoria concorda,

    tanto concisa quanto positivamente em muitos pontos, com o dualismo elementar (pela

    admisso da importncia ontolgica da mente consciente). Este dualismo naturalista

    concorda, outrossim, tal como alguns argumentaram24, com o protopanpsiquismo, uma

    doutrina que atribui forte importncia ontolgica ao mental em meio ao universo fsico.

    Para propsitos estratgicos, eu no relacionarei aqui tal teoria com minha proposta

    substancialista ou monadista a ser defendida neste ensaio.

    A tese de primazia tem sido amplamente pressuposta em muitos argumentos25 e as

    definies de supervenincia, bem como os argumentos fundamentais correlatos, tm

    expressado a tese de primazia na forma de uma tese de supervenincia. A tese de primazia

    uma das teses mais notveis do fisicismo. As teses do fisicismo so expressveis como se

    segue:

    (C1) Ontologia Fsica: Tudo que existe so partes de matria fsica e seus agregados

    com suas somas mereolgicas e fuses (irrestritamente compostas) e, portanto,

    23Chalmers (1996, seo 2.5 da parte I, e seo 7.1). A conjuno do fenomnico com o fsico, como uma base subveniente a partir da qual a conscincia supervm, foi sugerida por Byrne (1997), na avaliao do argumento em favor da hermenutica csmica. 24 Cf. Chalmers (1996, pp. 297 ff), Seager (1995), MacLennan (1996) e Nagel (1986, cap. III, sees 1 a 6). 25 Cf. Kim (1982, 2000), Horgan (1982), Haugeland (1982) e Jackson (1994).

  • 35

    a matria fsica fundamental para explicar tudo que existe, incluindo tanto a

    mente consciente quanto a mente causativa.

    (C2) Dualismo de Propriedades: Quando os sistemas fsicos alcanam certo nvel

    de organizao em termos de complexidade, eles exibem propriedades no-

    fsicas.

    (C3) Supervenincia Psicofsica: Propriedades no fsicas dos objetos e sistemas

    supervm s suas propriedades fsicas, isto , no h mudana no mental sem

    que haja mudana no fsico (Kim, 2000).

    Neste ponto, dois argumentos de supervenincia26 se seguem das noes de

    supervenincia e da principal tese do fisicismo. A estrutura de tais argumentos se resume

    no seguinte:

    (D1) Pressupe-se que M idntico ao estado funcional S de um organismo com a

    estrutura relevante que especifica M; e

    (D2) A classe P realiza, ou especifica causalmente, em uma infinidade de formas

    atuais, os realizadores (realizers) M em um dado tempo; portanto

    (D3) Segue-se a tese de supervenincia psicofsica, em outras palavras, M supervm

    a P, ambos no mesmo tempo, ou dito doutra forma, no pode haver mudana no

    mental sem que haja mudana fsica (na classe de eventos P).

    26 Cf. Kim (1993, pp. 191-2) e Kim (1998, p. 23). O primeiro argumenta a partir do funcionalismo computacional, ao passo que, o segundo, a partir do funcionalismo de mltipla especificao.

  • 36

    Assim, a mltipla realizao explicaria a supervenincia do mental e constituiria

    uma explicao das relaes mente-corpo (cf. Kim, 1998, p. 23).

    Acredita-se, consensualmente, como resultado do debate em torno da

    supervenincia, que algumas dificuldades dos argumentos funcionalistas de supervenincia

    pareceram se reduzir a alguns pontos dignos de nota: primeiramente, o funcionalismo no

    descreve a fenomenologia da mente (esta parece ser uma alegao que prevalece entre os

    filsofos27); segundo, alguns autores argumentam que as propriedades funcionais de

    segunda-ordem levariam ao epifenomenalismo (o que equivalente a dizer que o

    funcionalismo no inclui causalmente os estados qualitativos da mente); terceiro, a noo

    de matria fsica, que parece ser claramente clssica (baroque picture), como pressuposto

    exclui causalmente a mentalidade. Em quarto, ademais, uma objeo adequao da

    doutrina da supervenincia para a questo da formulao do fisicismo afirma que a relao

    de supervenincia no adequada para formular o fisicismo no-reducionista28. Em quinto,

    tem-se objetado que a prpria relao de supervenincia psicofsica necessita de

    explicao29.

    Em virtude dessas dificuldades, parece-nos que as relaes de supervenincia no

    conseguem sustentar a primazia ontolgica do universo fsico sobre o mental, com relao a

    alguns aspectos das propriedades naturais, sejam elas mentais ou fsicas. Em face dessas

    dificuldades muito debatidas, alguns filsofos sugeriram, como bem sabido, que as

    27 Levine (1993), Horgan (1993, nota 23, p. 580) e Chalmers (1996). 28 Cf. Hogan (1993, p. 555), Kim (1998) e Gillett (2002, p. 92). 29 Os filsofos fisicistas aceitam a ideia de que a relao de supervenincia expressa, no contexto do fisicismo contemporneo, relao mente-corpo com vistas a posicionar os argumentos explicativos da supervenincia psicofsica. Cf. Horgan (1993, p. 556), Kim (1993, p. 156), Kim (1998, p. 13) e Heil (1992, p. 65).

  • 37

    dificuldades implicadas pela reduo pressuposta no enfoque de supervenincia poderiam

    ser evitadas definindo-se o fisicismo em termos de emergentismo, sendo o emergentismo

    entendido aqui como no-superveniente30. Assim, necessrio considerar detalhadamente a

    classe de argumentos extrados a partir da doutrina emergentista da mente.

    3 Argumentos Emergentistas das Cincias Especiais

    Continuando com a justificativa para a escolha do dualismo elementar, eu gostaria

    de abordar as propostas e dificuldades dos enfoques emergentistas do problema mente-

    corpo. Tal como foi feito com relao teoria da supervenincia, definamos a noo de

    emergncia, as teses de emergncia e, conseqentemente, os argumentos emergentistas

    relevantes para explicao das relaes mente-corpo.

    A par da formulao em termos da relao de supervenincia, o problema mente-

    corpo tem sido, conforme depreendemos do debate recente, formulado de acordo com a

    tese emergentista no-supervenientista. Debateu-se, no curso da discusso, que a relao de

    supervenincia no seria a mais adequada para a formulao do materialismo, em face das

    dificuldades mencionadas.

    Tal como no caso das relaes de supervenincia, a relao de emergncia tem uma

    vasta gama de definies a partir das quais teses so formuladas e argumentos so

    propostos para explicar a relao psicofsica.

    30 Em relao questo da formulao do emergentismo, alguns autores consideram a relao de emergncia compatvel com a relao de supervenincia, ao passo que outros no. Para compatibilidade, cf. Kim (2005) e Pessoa (2010). Para incompatibilidade, cf. Humphreys (1997).

  • 38

    Argumenta-se a favor da adequao da relao de emergncia no-superveniente

    com base em, principalmente, duas razes. Primeiro, para evitar a reduo pressuposta na,

    ou implicada pela, metafsica das propriedades supervenientes (como conseqncia dos

    argumentos do funcionalismo), em meio s quais esto as propriedades mentais. Segundo,

    para considerar a persuaso dos argumentos que mostram que o mental no

    funcionalizvel em alguns casos, aos quais me referirei a seguir.

    A noo de emergncia capturada pela ideia intuitiva de uma novidade

    inexplicvel, tais como a mente surgindo a partir das partes prprias da matria. Muitos

    emergentistas concordaram com a tese de que a novidade o aspecto da noo de

    emergncia que parece ser essencial. Diferentemente da supervenincia, na qual as

    operaes booleanas, combinando as propriedades de base, podem fixar, e em conseqncia

    explicar funcionalmente (no caso da supervenincia forte, de tipo funcionalista kimiano,

    que interessa para a explicao das relaes mente-corpo) as propriedades supervenientes, a

    emergncia no-superveniente no de forma alguma explicvel ou predizvel ou mesmo

    fixvel pelas propriedades de base: as propriedades emergentes so completamente novas.

    No caso da supervenincia, pode existir, via argumento, uma explicao de acordo com as

    descries funcionais, sejam elas maquinais ou causais. No caso da emergncia, o mental

    seria completamente novo, inexplicvel e imprevisvel a partir da classe basal de

    propriedades ou condies. Argumentativamente, a teoria da evoluo seria uma referncia

    para explicar tais novidades. Diretamente relacionada questo de como definir as

    propriedades emergentes, existe, como pressuposio, a questo de se a emergncia seria

    uma tese epistemolgica ou ontolgica. Alguns autores argumentam em favor da tese de

    que a emergncia seja epistemolgica (Nagel, 1961; Teller, 1992; Humphreys, 1997;

    Wimsatt, 1997), enquanto outros em favor da emergncia ontolgica (Stephan, 1992, 1999;

  • 39

    Pihlstrm, 2002). Defendendo uma ontologia substancial mondica entre a mente e a

    matria fsica, eu considerarei brevemente a emergncia na concluso e tomarei a posio

    de que as propriedades, processos, estados e eventos emergem como novas entidades

    relacionadas a novas percepes mondicas.

    Qual a caracterstica definidora das propriedades emergentes? H diferentes

    propostas, constituindo diferentes variedades de emergncia, sendo que as mais importantes

    so (Stephan, 1996, 1999; Kim, 1999, 2000; Pihlstrm, 2002): emergncia enquanto

    novidade (Teller, 1992, pp. 139-40; Stephan, 1992, 1999), no-aditividade (Nagel, 1961),

    imprevisibilidade absoluta e relativa (Stephan, 1992, 1999, referindo-se noo de Popper

    de emergncia absoluta).

    No sentido da novidade, existem muitos aspectos considerados pelos emergentistas.

    Por exemplo, afirma-se que os emergentes introduzem novos aspectos (de espcie mental,

    sejam eles entidades ou propriedades) que so instanciadas pela primeira vez. A

    emergncia pode ser vista como gerando estados mentais ligados holisticamente31. A

    relao temporal entre a base e o emergente define duas espcies de emergncia: sincrnica

    e diacrnica32. No primeiro caso, diacrnico e atemporal, o emergente surge a partir de uma

    condio de base dada no mesmo instante. No segundo caso, o diacrnico, temporal, o

    emergente se origina num tempo que posterior ao tempo de surgimento de sua base

    correspondente, por exemplo no curso da evoluo biolgica33.

    31 Esta viso holstica da emergncia do mental defendida por Davidson (1999). 32 Cf. Nagel (1961, pp. 266-80), tambm a terminologia introduzida por Stephan (1999, p.51) e, para uma explicao, veja Pihlstrm (2002). 33 Cf. Nagel (1961) para uma definio de evoluo emergente inspirada nos primeiros emergentistas.

  • 40

    A no-aditividade outra fonte clssica da noo de emergncia. Na fsica34, ela se

    consistiu num contra-exemplo ao princpio fsico de aditividade, ou seja, situao em que

    um efeito a soma ponderada das causas, como ocorre na adio vetorial de duas foras

    impulsivas (que atuam em um intervalo de tempo curtssimo). Por exemplo, o efeito de

    duas tacadas feitas ao mesmo tempo em uma bola de bilhar (com tacos diferentes) resulta

    num efeito que a soma dos efeitos de cada tacada individual. Os emergentistas apontaram

    contra-exemplos a esta situao simples da mecnica clssica. Um exemplo dado por John

    Stuart Mill o da combinao qumica de dois lquidos, um transparente e outro azul. Um

    processo aditivo levaria a uma soluo com uma cor azul clara, mas s vezes pode surgir

    um composto vermelho, um exemplo de processo no-aditivo, ou no-linear. Mill ([1843]

    1979, cap. V) cunhou o termo homoptico para a adio simples, e heteroptico para a

    situao em que emerge uma nova propriedade.

    Nos debates, deve-se tambm dar relevncia emergncia na medida em que esta

    tem a ver com os aspectos epistemolgicos da explicao, isto , a dedutibilidade e a

    previsibilidade dos emergentes. A no-dedutibilidade e a imprevisibilidade so

    consideradas de diferentes formas: como novidade dos emergentes, como o lao

    heteronmico entre as condies basais e os emergentes fsicos (Kim, 1999, p. 3;

    Humphreys, 1997, p. S342; e Stephan, 1992, pp. 28-9), como irredutibilidade do nvel

    emergente ao nvel basal (Kim (1992, 1999, 2000), e como a no-dedutibilidade e

    imprevisibilidade tericas dos emergentes (Broad, 1925, p. 61; Nagel, 1961, pp. 336 ff;

    Kim, 1999, pp. 13 ff; Stephan, 1992, pp. 28-9; 1999, p. 51).

    34 Tal como aludido por Nagel (1961, p. 241), Kim (1999, p. 1) e Stephan (1992, p. 28). O precursor foi Stuart Mill e existe um argumento para a no-aditividade vetorial em Russell. Tal argumento trata da no-redutibilidade da resultante vetorial aos seus componentes, argumento do qual Nagel discordou.

  • 41

    Como no caso do fisicismo formulado de acordo com a relao lgica de

    supervenincia, a posio emergentista comumente formulada com base nas noes de

    emergncia referidas acima, expressveis de acordo com as seguintes teses:

    (E1) Ontologia Fsica Fundamental: Existem entidades e propriedades bsicas no

    emergentes e estas so relativas a entidades materiais que so propriedades

    fsicas fundamentais.

    (E2) Emergncia de Propriedades: Quando os agregados de entidades bsicas

    alcanam certo nvel de complexidade estrutural (relacional), propriedades

    genuinamente novas emergem para caracterizar tais agregados estruturados.

    Ademais, estas propriedades emergem somente quando as condies basais

    apropriadas esto presentes.

    (E3) Fisicismo No-Reducionista: As propriedades emergentes so novas no sentido

    de que elas no so redutivamente explicveis em termos das condies a partir

    das quais elas emergem (Kim, 1992).

    Como no caso da doutrina da supervenincia, um argumento foi proposto pelo

    emergentismo, cuja tese principal segue-se das teses descritas acima. Para o propsito da

    defesa do monadismo, salientamos que as premissas para o argumento em favor do

    emergentismo foram extradas de trs fontes relevantes inter-relacionadas: teoria evolutiva,

    que a fonte principal de premissas emergentistas, e duas doutrinas relevantes, quais sejam,

    a sntese fsica e o mltiplo realizacionismo, ambos invocados para explicar

  • 42

    alternativamente como os emergentes surgem. A primeira fonte a teoria que se resume na

    seguinte passagem:

    Eu falo de eventos em um dado nvel qualquer na pirmide da evoluo emergente como envolvendo os eventos concorrentes nos nveis inferiores. Algo que emerge, em qualquer nvel dado, d suporte a uma instncia [affords an instance] do que considero ser uma nova espcie de relao da qual no h instncias nos nveis inferiores. O mundo foi sucessivamente enriquecido atravs do advento de relaes conscientes e vitais [...] Sendo elas de alguma forma dadas, devem ser consideradas tal como as encontramos. Mas quando alguma nova espcie de relao superveniente (digamos no nvel da vida) a forma na qual os eventos fsicos que esto envolvidos percorrem seu curso diferente em virtude da sua presena diferente da situao em que estaria se a vida estivesse ausente (Lloyd Morgan, 1923, apud Horgan, 1993, p. 558).

    A noo de curso evolutivo est na base das teses que so relacionadas com a noo

    de complexidade estrutural do organismo. Aqui eu gostaria de considerar as teorias que

    procuram explicar como propriedades, estados, eventos e entidades emergem. Estas teorias

    podem ser, por exemplo, expressas no funcionalismo, no realizacionismo mltiplo, ou na

    teoria quntica, teorias que podem ser combinadas com a tese de dualismo de propriedades.

    A questo crucial para o emergentista explicar como as propriedades emergentes

    (mentais) M surgem a partir das condies basais (fsicas) P.

    Podemos considerar trs maneiras de formular a relao M-P da emergncia.

    (1) Emergncia como realizabilidade mltipla de propriedades de alto nvel em meio s

    propriedades basais fsicas, e sua inversa, a plasticidade construtiva35 do emergente em

    relao a suas condies basais, isto , M realizvel, talvez em uma infinidade de formas,

    em meio aos Ps, e esta teoria assume que uma propriedade emergente, uma entidade, um

    35 O leitor pode achar estranho considerar a relao inversa da realizabilidade mltipla, isto , da plasticidade construtiva. Cf. para uma explicao posterior, Endicott (1994).

  • 43

    estado ou um evento seja funcionalizvel, isto , identificvel com um estado funcional36;

    (2) Emergncia como um fenmeno fsico chamado fuso, e seu fenmeno inverso, a

    fisso, fenmenos que conectam nveis da natureza que poderiam ligar o nvel mental com

    o fsico37. (3) Emergncia como herana de potncias causativas funcionais38, tambm

    fundamentada no princpio de herana, que afirma que a potncia causal do realizador

    herdado pela propriedade a ser realizada39.

    Mesmo com a proposta promissora de uma concepo do mental fornecida por tais

    doutrinas emergentistas, concepo que parece capturar a intuio do no-reducionismo

    36 Cf. Kim (1999, p. 10), no qual Kim argumenta a partir da identificao com relaes causais/nmicas entre as propriedades mentais e fsicas, sendo as ltimas chamadas de bases de reduo fsica. A definio de propriedade funcionalizvel dada por meio de trs passos, dos quais salientamos o primeiro passo, por referir-se propriedade funcionalizvel:

    Seja B o domnio de propriedades (tambm fenmenos, fatos, etc, se voc desejar) servindo como base de reduo para ns, este contm as condies basais para nossas propriedades emergentes. A reduo da propriedade E a B envolve trs passos. Passo 1: E deve ser funcionalizada isto , E deve ser interpretada, ou reinterpretada, como uma propriedade definida pelas suas relaes causais/nmicas com outras propriedades, especificamente, propriedades na base de reduo B. Ns podemos pensar em uma definio funcional de E sobre o domnio B como tipicamente tendo a forma seguinte (simplificada): Ter E =def. Ter alguma propriedade P em B tal que (i) C1, ..., Cn causa a instanciao de P, e (ii) P causa a instanciao de F1,..., Fm. (Kim, 1999, pp. 10-11).

    Ou seja, Kim est se referindo a uma srie causal ligando as propriedades C com as propriedades F por meio das propriedades P.

    37 Cf. Humphreys (1999b, pp. 9-10) para a definio de uma fuso mereolgica fsica (no meramente lgica) de propriedades e entidades. Tal como ele define fuso como uma operao fsica real na natureza pelo smbolo de sntese fsica (.*.) de tal modo que no nvel L na natureza existem propriedades P dos objetos, digamos, x e y, tais que em um dado instante t ocorre o seguinte: (Pi(x)(t)*Pi(y)(t)) = (Pi*Pi) ((x+y))(t) = Pi+1(x+y)(t) , sendo que a segunda parte da igualdade expressa uma propriedade/objeto emergente nova e a esquerda sua propriedades basais. 38 A doutrina das propriedades como potncias causativas foi elaborada por Shoemaker (1980). 39 Cf. Gillett (2002, pp. 94-6), onde lemos: A instncia da propriedade/relao (s) F1, ..., Fn realiza uma instncia da propriedade G, num indivduo s, se, e somente se, s tem potncias que so individuaes de uma instncia de G em virtude das potncias concedidas por F1,...,Fn a s ou pelo constituintes de s, mas no vice-versa.

  • 44

    necessrio para argumentar em favor da tese do fisicismo mnimo, os crticos do

    emergentismo salientam que existe ainda uma dificuldade crucial, a instabilidade do

    emergentismo fisicista, que expresso pelo dilema construtivo de Kim (que vimos na seo

    I.1): Eu argumentei em outro lugar contra o materialismo no-reducionista alegando que

    esta casa na metade do caminho uma posio inerentemente instvel e que ela ameaa

    colapsar ou em reducionismo ou numa forma mais sria de dualismo (Kim, 1999, p. 5).

    O dilema crucial da posio emergentista concisamente explicado abaixo:

    A dificuldade bsica que o emergentismo enfrenta uma que Kim formula como geralmente apavorando as teorias [...] que querem obter tanto irredutibilidade quanto dependncia: se a relao entre o mental e os nveis fsicos de propriedade fraca o suficiente para ser no redutiva, ela tende a ser muito fraca para servir como uma relao de dependncia; inversamente, quando a relao forte o suficiente para nos dar dependncia, ela tende a ser muito forte forte o suficiente para implicar redutibilidade.40

    Esta dificuldade crucial permanece mesmo quando um argumento proposto

    satisfazendo a condio (seja esta a realizabilidade mltipla, a plasticidade construtiva, a

    sntese fsica por fuso, ou a doutrina causal da potncia de propriedades, s quais nos

    referimos) exigida para emergncia do mental. Isso porque os argumentos discutidos

    acabam por reduzir ontologicamente as propriedades de alto nvel s basais, o que

    contrrio ao desideratum do fisicismo no-reducionista. A instabilidade faz o emergentismo

    fisicista ser uma posio difcil de sustentar com relao soluo do problema mente-

    corpo. E, por outro lado, no que se refere ao problema da relao mente-para-o-fsico, a

    redutibilidade do mental materia faz com que a mente seja causalmente inerte, tal como se

    40 Kim (1998, p. 140), apud Pihlstrm (2002). Esta dificuldade bsica apontada por Kim e Pihlstrm a ns parecer ser crucial, com a qual muitos fisicistas concordariam, na medida em que ela considera os desiderata bsicos do fisicismo no reducionista, a saber, no reducibilidade de propriedades e ontologia material da mente.

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    argumenta comumente nos debates; tem-se, portanto, um argumento em favor do

    epifenomenalismo, ao invs de um argumento em favor da causao mental.

    4 O Argumento de Supervenincia para o Epifenomenalismo e a Causao Descendente

    At aqui, eu considerei as variedades supervenientista e emergentista de argumentos

    materialistas que so associados relao fsico-para-a-mente. Nesta seo, eu gostaria de

    considerar a relao inversa, a relao mente-para-o-fsico, isto , a causao mental, com

    vistas a apoiar melhor minha justificativa para a preferncia ontolgica pelo dualismo

    elementar como uma premissa da tese monadista. Especificamente, situo a questo da

    excluso causal com vistas a argumentar que, ao estabelecer a tese principal segundo a qual

    a relao mente-corpo explicada por meio de agregao superveniente de unidades

    substanciais chamadas mnadas, o substancialismo (ou monadismo) evita a questo da

    excluso causal da mente, uma questo que levantada na interpretao fisicista da relao

    mente-para-o-fsico. Tal como bem sabido no debate sobre a causao mental: O

    problema se a ideia principal de causao descendente inteligvel: podemos

    coerentemente pensar que a existncia de Y (ou sua instanciao) completamente

    dependente de uma propriedade X mais bsica e que, no entanto, Y tem um poder causal

    para influenciar X ? (Pihlstrm, 2002, p. 144).

    A questo acima pode ser considerada uma dificuldade essencial do emergentismo

    contemporneo que esposa a causao descendente. Outro autor, corroborando a opinio

    geral na literatura, assim descreve a problemtica da incompatibilidade dos desiderata do

    materialismo analtico: Um dos diversos problemas concernentes possibilidade da

    causao mental que a causa potencial de uma propriedade superveniente parece ser

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    absorvida pela sua base subveniente se tal base e sua propriedade superveniente no so

    idnticos (Schrder, 2007, p. 221).

    A questo de incompatibilidade tem sido bast