102
UNIVERSIDADE DA REGIÃO DE JOINVILLE UNIVILLE CURSO DE DIREITO NÚCLEO DE PRÁTICA JURÍDICA COORDENAÇÃO DE MONOGRAFIA A NORMATIVIDADE DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS FRENTE À JUDICIALIZAÇÃO DO ACESSO À SAÚDE EUCLIDES DE ALMEIDA SILVA FILHO Orientador: Gustavo Daniel Tavares Bastos Gama Joinville (SC), dezembro de 2010.

Monografia - A normatividade dos princípios constitucionais frente à judicialização do acesso à saúde

  • Upload
    eucla

  • View
    2.662

  • Download
    1

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Euclides de Almeida Silva Filho - Trabalho de Conclusão de Curso - Universidade da Região de Joinville - UNIVILLE - 2010

Citation preview

Page 1: Monografia - A normatividade dos princípios constitucionais frente à judicialização do acesso à saúde

UNIVERSIDADE DA REGIÃO DE JOINVILLE – UNIVILLE CURSO DE DIREITO – NÚCLEO DE PRÁTICA JURÍDICA COORDENAÇÃO DE MONOGRAFIA

A NORMATIVIDADE DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS FRENTE À JUDICIALIZAÇÃO DO ACESSO À SAÚDE

EUCLIDES DE ALMEIDA SILVA FILHO

Orientador: Gustavo Daniel Tavares Bastos Gama

Joinville (SC), dezembro de 2010.

Page 2: Monografia - A normatividade dos princípios constitucionais frente à judicialização do acesso à saúde

UNIVERSIDADE DA REGIÃO DE JOINVILLE – UNIVILLE CURSO DE DIREITO – NÚCLEO DE PRÁTICA JURÍDICA COORDENAÇÃO DE MONOGRAFIA

A NORMATIVIDADE DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS FRENTE À

JUDICIALIZAÇÃO DO ACESSO À SAÚDE

EUCLIDES DE ALMEIDA SILVA FILHO

Monografia submetida à Universidade da Região de Joinville – UNIVILLE,

como requisito parcial à obtenção do título de Bacharel em Direito.

Orientador(a): Gustavo Daniel Tavares Bastos Gama

Joinville (SC), dezembro de 2010.

Page 3: Monografia - A normatividade dos princípios constitucionais frente à judicialização do acesso à saúde

Meus agradecimentos:

Ao meu orientador, Professor Gustavo Daniel

Tavares Bastos Gama, pelas direções

apontadas e conhecimentos proporcionados na

elaboração deste trabalho.

Aos Professores desta instituição, por terem

me ajudado a desvendar os caminhos do

Direito.

Aos colegas universitários por cada momento

compartilhado.

Page 4: Monografia - A normatividade dos princípios constitucionais frente à judicialização do acesso à saúde

Dedico esta obra:

Aos meus pais, que me apoiaram a iniciar o

curso de Direito e agora me incentivam a

continuar no caminho para a realização de um

sonho profissional;

Em especial àqueles que me ensinaram a

prática do Direito; me ensinaram a trabalhar

com ética e profissionalismo e a ser humano

nas decisões, estes serão sempre meus

modelos no longo caminho em busca da

justiça.

Page 5: Monografia - A normatividade dos princípios constitucionais frente à judicialização do acesso à saúde

“Tem fé no direito como o melhor instrumento

para a convivência humana; na justiça, como

destino moral do direito; na paz, como

substituto benevolente da justiça; e, sobretudo,

tem fé na liberdade, sem a qual não há direito,

nem justiça, nem paz”.

Eduardo Couture

Page 6: Monografia - A normatividade dos princípios constitucionais frente à judicialização do acesso à saúde

ROL DE ABREVIATURAS E SIGLAS

CRFB/88 Constituição da República Federativa do Brasil de 1988

PFDC Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão

SUS Sistema Único de Saúde

RENAME Relação Nacional de Medicamentos

ADCT Ato das Disposições Constitucionais Transitórias

OMS Organização Mundial de Saúde

UNIVILLE Universidade da Região de Joinville

Page 7: Monografia - A normatividade dos princípios constitucionais frente à judicialização do acesso à saúde

SUMÁRIO

RESUMO................................................................................................xi

INTRODUÇÃO.......................................................................................1

Capítulo 1

OS PRINCÍPIOS JURÍDICOS E SUA NORMATIVIDADE

1.1. CONCEITO E DEFINIÇÃO DE PRINCÍPIOS.....................................................3

1.2. CARACTERES DOS PRINCÍPIOS JURÍDICOS................................................6

1.2.1. Tipologia constitucional dos princípios....................................................7

1.2.2. Natureza..........................................................................................................9

1.2.3. Características..............................................................................................10

1.2.4. Modalidades de eficácia..............................................................................12

1.2.5. Densificação.................................................................................................15

1.3. AS GERAÇÕES DE DIREITOS FUNDAMENTAIS..........................................16

1.3.1. Os direitos fundamentais de primeira geração.........................................19

1.3.2. Os direitos fundamentais de segunda geração........................................20

1.3.3. Os direitos fundamentais de terceira geração..........................................21

1.3.4. Os direitos fundamentais de quarta geração............................................22

1.4. A EVOLUÇÃO DA NORMATIVIDADE DOS PRINCÍPIOS JURÍDICOS..........23

1.5. O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E O MÍNIMO

EXISTENCIAL.........................................................................................................28

Capítulo 2

ESTRUTURA DAS NORMAS JURÍDICAS

2.1. NOÇÕES INTRODUTÓRIAS............................................................................32

2.2. DEFINIÇÃO DE NORMA JURÍDICA................................................................35

2.3. ESTRUTURA DAS NORMAS JURÍDICAS......................................................37

2.3.1. Sobre a distinção entre regras e princípios..............................................38

Page 8: Monografia - A normatividade dos princípios constitucionais frente à judicialização do acesso à saúde

2.3.2. Distinção forte ou qualitativa......................................................................40

2.3.3. Tese da conformidade ou distinção fraca.................................................44

2.3.4. Distinção dúctil............................................................................................48

2.4. POSTULADOS NORMATIVOS.......................................................................52

2.5. VALORES........................................................................................................55

2.5.1. Distinção entre valores e princípios..........................................................57

2.6. A SAÚDE COMO ELEMENTO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E

SUA POSIÇÃO NA TEORIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS..........................59

Capítulo 3

A JUDICIALIZAÇÃO DO ACESSO À SAÚDE

3.1. DEFINIÇÃO DE SAÚDE E O SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE.......................... 61

3.1.1. Competência dos entes políticos no financiamento da saúde............... 66

3.1.2. O problema que envolve a distribuição gratuita de medicamentos........68

3.2. A JUDICIALIZAÇÃO EXCESSIVA DO ACESSO À SAÚDE E SUAS

IMPLICAÇÕES....................................................................................................71

3.3. A COLISÃO ENTRE O DIREITO À VIDA E À SAÚDE DE UNS EM FACE DA

PROMESSA CONSTITUCIONAL DE UNIVERSALIZAÇÃO DA SAÚDE..............73

3.4. AS POSSIBILIDADES DE UMA ATUAÇÃO JUDICIAL ADEQUADA NA

DISTRIBUIÇÃO DE MEDICAMENTOS PELO ESTADO.......................................78

CONCLUSÃO......................................................................................................83

REFERÊNCIA DAS FONTES CITADAS..............................................................88

REFERÊNCIA LEGISLATIVAS............................................................................91

Page 9: Monografia - A normatividade dos princípios constitucionais frente à judicialização do acesso à saúde

RESUMO

A presente pesquisa está direcionada a uma análise acerca da normatividade

dos princípios constitucionais, com o objetivo de demonstrar os seus contornos,

papel e importância no ordenamento jurídico, revestindo-se como um instrumento

que dá vitalidade e força normativa à Constituição. Não obstante, tratar-se-á do tema

da judicialização do acesso à saúde, sob o enfoque normativo-constitucional vigente,

procurando desvendar as questões polêmicas e propondo alternativas para que a

saúde não fique ao desamparo. Por meio do método de pesquisa bibliográfico, o

trabalho revela quais os efeitos que os princípios jurídicos, notadamente os

constitucionais, exercem no ordenamento jurídico, assim como da transformação

que a compreensão dos princípios provocou na forma de entender o direito. No que

tange à judicialização do acesso à saúde, mostra-se que, excessivas, essas

demandas judiciais podem causar grandes problemas ao Estado na formulação de

suas políticas públicas, mas que sem dúvidas constituem-se numa forma de

efetivação dos direitos fundamentais. Uma visão conjunta desses dois temas permite

visualizar as questões de maior voga no direito constitucional brasileiro atual,

observando-se o grau de normatividade e efetividade das normas constitucionais,

ensejando, por outro lado, a reflexão sobre a primazia que deve ser dada aos

direitos fundamentais em toda política pública estatal, com fulcro na dignidade da

pessoa humana.

Page 10: Monografia - A normatividade dos princípios constitucionais frente à judicialização do acesso à saúde
Page 11: Monografia - A normatividade dos princípios constitucionais frente à judicialização do acesso à saúde

INTRODUÇÃO

O objeto deste Trabalho de Conclusão de Curso é demonstrar o papel e

importância singulares dos princípios constitucionais no ordenamento jurídico, assim

como expor de forma didática o problema da judicialização do acesso à saúde com a

proposição de soluções. Proceder-se-ão estudos acerca da evolução histórica dos

princípios, da estrutura das normas jurídicas, da teoria dos direitos fundamentais e

da judicialização do acesso à saúde.

O seu objetivo institucional é a produção de Monografia para a obtenção de

título de Bacharel em Direito pela Universidade da Região de Joinville.

O objetivo geral do trabalho é mostrar aos leitores os novos paradigmas da

dogmática constitucional tendo por referência os princípios jurídicos, de forma a

também revelar os pontos controversos sobre a possibilidade de se proporem

demandas judiciais objetivando o acesso à saúde e o seu enquadramento na

temática dos direitos fundamentais. Já os objetivos específicos são: a elaboração de

estudos acerca da evolução histórica dos princípios, da estrutura das normas

jurídicas, da teoria dos direitos fundamentais e da judicialização do acesso à saúde.

Desta forma, os objetivos específicos deste trabalho estão diretamente

relacionados com a formulação de uma compreensão adequada sobre a teoria dos

princípios e com a projeção de métodos para a resolução dos problemas ligados à

judicialização da saúde, visto que os temas em comento revestem-se de grande

importância na atualidade, sobretudo devido à funcionalidade da Constituição

Federal de 1988, oriunda de sua força normativa.

Adotou-se o método qualitativo, operacionalizado com as técnicas de

pesquisa bibliográfica, fichamentos e pesquisa de campo, dividindo-se o trabalho em

três capítulos:

O primeiro capítulo tratará do conceito e definição dos princípios jurídicos, de

seus caracteres mais importantes, e da evolução de sua normatividade.

Concomitantemente, abordar-se-ão os temas referentes às gerações dos direitos

fundamentais e à dignidade da pessoa humana e o mínimo existencial.

Na segunda parte proceder-se-á a um estudo voltado para a estrutura das

normas jurídicas. Explanar-se-á sobre a distinção entre regras e princípios e as

formas distintivas adotadas, quais sejam, a distinção forte ou qualitativa, a tese da

Page 12: Monografia - A normatividade dos princípios constitucionais frente à judicialização do acesso à saúde

conformidade ou distinção fraca e a distinção dúctil. Além disto, serão tratados os

temas dos postulados normativos e dos valores, distinguindo os valores dos

princípios. Ao final deste capítulo, abordar-se-á a questão da saúde como elemento

da dignidade da pessoa humana e a sua posição na teoria dos direitos

fundamentais.

No terceiro capítulo será discutida a judicialização do acesso à saúde. Tratar-

se-á, primeiramente, da definição da saúde do Sistema Único de Saúde – SUS,

discorrendo sobre a competência dos entes políticos no financiamento da saúde e

sobre o problema que envolve a distribuição gratuita de medicamentos. Em seguida,

cuidar-se-ão dos temas concernentes à judicialização excessiva do acesso à saúde

e suas implicações, à colisão entre o direito à vida e a saúde de uns em face da

promessa constitucional de universalização da saúde e às possibilidades de uma

atuação judicial adequada na distribuição de medicamentos pelo Estado.

Findando o conteúdo investigatório, na conclusão será abordado o que se

concluiu da presente pesquisa.

Page 13: Monografia - A normatividade dos princípios constitucionais frente à judicialização do acesso à saúde

Capítulo 1

OS PRINCÍPIOS JURÍDICOS E SUA NORMATIVIDADE

1.1. CONCEITO E DEFINIÇÃO DE PRINCÍPIOS

O vocábulo princípio admite várias acepções, ou seja, é uma palavra

polissêmica, variando de significado de acordo com a perspectiva em que for

analisada. Dessa forma, o vocábulo princípio terá tantas definições quantas forem as

perspectivas analisadas.

Primeiramente, proceder-se-á à conceituação e à definição do vocábulo

princípio no sentido geral, e depois dos princípios enquanto elemento jurídico em

suas diversas acepções.

Assim, Plácido e Silva conceitua princípio como:

Derivado do latim principium (origem, começo), em sentido vulgar quer exprimir o começo de vida ou o primeiro instante em que as pessoas ou as coisas começam a existir. É, amplamente, indicativo do começo ou a origem de qualquer coisa. No sentido jurídico, notadamente no plural, quer significar as normas elementares ou os requisitos primordiais instituídos como base, como alicerce de alguma coisa. E, assim, princípios revelam o conjunto de regras ou preceitos, que se fixaram para servir de normas a toda espécie de ação jurídica, traçando, assim, a conduta a ser tida em qualquer operação jurídica. Desse modo, exprimem sentido mais relevante que o da própria norma ou regra jurídica. Mostram-se a própria razão fundamental de ser das coisas jurídicas, convertendo-se em perfeitos axiomas. Princípios jurídicos, sem dúvida, significam os pontos básicos, que servem de ponto de partida ou de elementos vitais do próprio direito. Indicam o alicerce do Direito. E, nesta acepção, não se compreendem somente os fundamentos jurídicos, legalmente instituídos, mas todo axioma jurídico derivado da cultura jurídica universal. Compreendem, pois, os fundamentos da Ciência Jurídica, onde se firmaram as normas originárias ou as leis científicas do direito, que traçam as noções em que se estrutura o próprio Direito. Assim, nem sempre os princípios se inscrevem nas leis. Mas, porque servem de base ao Direito são tidos como preceitos fundamentais para a prática do Direito e proteção aos direitos.1

1 PLÁCIDO E SILVA. Vocabulário jurídico, volume IV.

Page 14: Monografia - A normatividade dos princípios constitucionais frente à judicialização do acesso à saúde

4

Nota-se ainda que os dicionários trazem – além do significado de princípio –

“o significado de princípios”, na forma do plural. Quem nos mostra esse conceito é

Holanda Ferreira: “princípios, S.M.pl. 1. Rudimentos. Primeira época da vida. 3.

Bibliogr. V. folhas preliminares. 4. Filos. Proposições diretoras de uma ciência, às

quais todo o desenvolvimento posterior dessa ciência deve estar subordinado – V.

principio.”2

Na acepção jurídica do termo princípios, encontra-se ainda a definição de

princípios gerais de direito, que assume papel de relevância no desenvolvimento

deste estudo. Neves assim conceitua os princípios gerais de direito: “Diz-se,

genericamente, dos elementos que, aceitos e adotados de maneira universal como

verdades axiomáticas, atuam na formação da consciência jurídica do homem da

lei.”3

A esta altura, para não perder-se no mundo de significados de princípios,

cumpre distinguir conceito de definição.

Fiuza trata de explicar a distinção entre conceito e definição:

Conceito é a expressão mental do objeto, sem nenhuma tentativa de explicá-lo, de distingui-lo de outros objetos. A tarefa de explicar e de distinguir é a da definição. Definição é, pois, a explicação do conceito. Procura-se indicar o gênero próximo, ou seja, com que o objeto se parece, e a diferença específica, isto é, em que o objeto se distingue de seus similares em gênero. Assim, ao vermos uma cadeira, fazemos dela uma idéia, formulamos um conceito – isto é uma cadeira – e elaboramos uma definição – é peça de mobília (gênero próximo), composta de pés e parte rasa, em que se senta (diferença específica).4

Para Melo princípios são:

O mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas, compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico.5

2 HOLANDA FERREIRA, Aurélio Buarque de. Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa, p. 1393.

3 NEVES, Iêdo Batista. Vocabulário prático de tecnologia jurídica e de brocardos latinos.

4 FIUZA, César. Direito civil, curso completo, p. 03

5 MELO, Celso Antonio Bandeira de. Elementos de direito administrativo, p. 230.

Page 15: Monografia - A normatividade dos princípios constitucionais frente à judicialização do acesso à saúde

5

Silva infere que os princípios são:

Ordenações que se irradiam e imantam os sistemas de normas, são (como observam Gomes Canotilho e Vital Moreira) „núcleos de condensações‟ nos quais confluem valores e bens constitucionais. Mas, como disseram os mesmos autores, “os princípios que começam a ser por ser a base das normas jurídicas, podem estar positivamente incorporados, transformando-se em normas-princípio e constituindo preceitos básicos de organização constitucional.6

Para Alexy “os princípios são normas que ordenam que algo seja realizado

na maior medida possível, dentro das possibilidades jurídicas e reais existentes; são

mandados de optimização que podem ser cumpridos em diferentes graus.”7

Mister se faz a colação do conceito de princípios dada por Crisafulli, cuja

extração se faz da obra de Bonavides:

Princípio é, com efeito, toda norma jurídica, enquanto considerada como determinante de uma ou de muitas outras subordinadas, que a pressupõem, desenvolvendo e especificando ulteriormente o preceito em direções mais particulares (menos gerais), das quais determinam, e portanto resumem, potencialmente, o conteúdo: sejam, pois, estas efetivamente postas, sejam, ao contrário, apenas dedutíveis do respectivos princípio geral que as contém.8

Merece referência a investigação doutrinária que o jurista italiano Guastini fez,

tendo colhido elementos da jurisprudência e ensinamentos de juristas diversos,

chegando à formulação seis distintos conceitos de princípios, todos vinculados a

disposições normativas, e assim enunciados:

1. Os princípios se referem “a normas providas de um alto grau de

generalidade;”9

2. Princípios reportam-se “a normas (ou disposições que exprimem normas)

providas de um alto grau de indeterminação, e que por isso requerem concretização

por via interpretativa, sem a qual não seriam suscetíveis de aplicação a casos

concretos;”10

6 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p. 92.

7 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais, p. 86-87.

8 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional, p. 230.

9 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional, pg. 230.

10 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional, p. 230.

Page 16: Monografia - A normatividade dos princípios constitucionais frente à judicialização do acesso à saúde

6

3. O vocábulo princípios cuida de “normas (ou disposições normativas) de

caráter programático;”11

4. O preclaro jurista ainda conceitua princípios como “normas (ou disposições

normativas) cuja posição na hierarquia das fontes do direito é muito elevada;”12

5. Guastini apresenta outra definição do vocábulo princípio:

Para designar normas que desempenham uma função importante ou fundamental no sistema jurídico ou político unitariamente considerado, ou num ou outro subsistema do sistema jurídico conjunto (o Direito Civil, o Direito Trabalho, o Direito das Obrigações);13

6. Por fim, elucida, “os juristas se valem da expressão princípio para designar

normas (ou disposições que exprimem normas) dirigidas aos órgãos de aplicação,

cuja específica função é fazer a escolha dos dispositivos ou de normas aplicáveis

nos diversos casos.”14

Em todas as conceituações de princípios de Guastini é ressaltado o seu

caráter normativo, configurando-se, desse modo, como normas jurídicas. Nos dias

de hoje não é crível a compreensão dos princípios senão pelo aspecto da

normatividade.

A seguir ver-se-ão os caracteres dos princípios jurídicos, com o objetivo de

melhor compreendê-los em sua individualidade.

1.2. CARACTERES DOS PRINCÍPIOS JURÍDICOS

Como já visto, os princípios assumem diferentes significados conforme a

perspectiva em que forem analisados. No presente estudo, analisam-se os princípios

sob a perspectiva do direito, convertendo-se então em princípios jurídicos.

Impõe destacar que os princípios jurídicos não são uma categoria específica

do direito constitucional ou do direito civil, por exemplo, atuando em todos os ramos

do direito, conforme for a sua divisão. Todos esses princípios são jurídicos, haja

vista ser o direito uno e insuscetível de divisão; embora, diante das peculiaridades

de cada ramo jurídico, seja de conveniência didática dividi-los. 11

BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional, p. 230. 12

BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional, p. 230. 13

BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional, p. 231. 14

BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional, p. 231.

Page 17: Monografia - A normatividade dos princípios constitucionais frente à judicialização do acesso à saúde

7

Sobre o fato da divisão do direito em ramos não passar de uma criação

científica, cumpre colacionar os ensinamentos de Sundfeld: “Os tais ramos do direito

nada mais são de que uma criação da ciência jurídica, isto é, de um corte

metodológico através do qual os cientistas acreditam poder visualizar de modo mais

adequado o seu objeto de estudo.”15

Assim, os princípios jurídicos ramificam-se em tantos ramos quanto os criados

pela ciência jurídica. Podem ser civis, constitucionais, penais, previdenciários etc,

todos surgidos ante a conveniência da análise científica, tendo em vista a melhor

operacionalização do direito.

Há também os princípios gerais do direito que, segundo atual concepção,

nada mais são que os próprios princípios constitucionais. Superado o dogma do

positivismo, onde os princípios eram vistos apenas como colmatadores de lacunas

nos casos de omissão da lei, eles passaram a integrar o corpo de normas

constitucionais, servindo como inspiração para a interpretação de leis, além de

possuírem densidade normativa.

Em referência a relação entre o direito e seus princípios, cumpre enfatizar o

pensamento de Miranda:

O Direito não é mero somatório de regras avulsas, produto de actos de vontade, ou mera concatenação de fórmulas verbais articuladas entre si. O Direito é ordenamento ou conjunto significativo e não conjunção resultante de vigência simultânea; implica coerência ou, talvez mais rigorosamente, consistência; projecta-se em sistema; é unidade de sentido, é valor incorporado em regra. E esse ordenamento, esse conjunto, essa unidade, esse valor projeta-se ou traduz-se em princípios, logicamente anteriores aos preceitos.16

Feitas essas considerações, conclui-se que os princípios são parte integrante

e dinâmica do Direito, portanto possuem natureza, características e funções que o

individualizam perante os demais elementos jurídicos. Passa-se, então à análise

dessas peculiaridades.

15

SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de direito público, p. 134. 16

SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de direito público, p. 134.

Page 18: Monografia - A normatividade dos princípios constitucionais frente à judicialização do acesso à saúde

8

1.2.1. Tipologia constitucional dos princípios

Dentro da sistemática constitucional, existem vários tipos de princípios que se

amoldam às características de determinada constituição. Assim, por exemplo, a

Constituição Brasileira de 1988 é revestida de normas programáticas enquanto

outras se revestem apenas de princípios fundamentais, como a dos Estados Unidos

da América.

A tipologia de princípios aqui utilizada como referência é derivada da obra de

Canotilho. Ressalva-se, neste ponto, que:

Não é possível fazer-se aqui uma explanação da complexa problemática dos princípios e das suas relações com as normas jurídicas. No texto, a doutrina defendida tende a aproximar-se da opinião que julgamos estar a ganhar o estatuto de doutrina constitucionalística dominante.17

Dessa forma, passa-se à análise da tipologia dos princípios constitucionais:

I – Princípios jurídicos fundamentais: Segundo Canotilho, “consideram-se

princípios jurídicos fundamentais os princípios historicamente objetivados e

progressivamente introduzidos na consciência jurídica e que encontram uma

recepção expressa ou implícita no texto constitucional.”18 Esses princípios pertencem

à ordem jurídica positiva e constituem um importante fundamento para a

interpretação, integração, conhecimento e aplicação do direito positivo.19

Exercem função negativa e positiva. A atuação negativa desses princípios

surge para evitar atos arbitrários ou que visem suprimir a ordem constitucionalmente

estabelecida. Por outro lado, a função positiva ganha assento na medida em que

informa materialmente os atos dos poderes públicos.20

II – Princípios políticos constitucionalmente conformadores: “Designam-se por

princípios politicamente conformadores os princípios constitucionais que explicitam

as valorações políticas fundamentais do legislador constituinte.”21 Por meio desses

17

CANOTILHO, Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição, p. 1131. 18

CANOTILHO, Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição, p. 1128. 19

CANOTILHO, Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição, p. 1128. 20

CANOTILHO, Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição, p. 1129. 21

CANOTILHO, Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição, p. 1130.

Page 19: Monografia - A normatividade dos princípios constitucionais frente à judicialização do acesso à saúde

9

princípios se condensam as opções políticas nucleares e se reflete a ideologia

inspiradora da constituição.22

Nesta seara situam-se os princípios definidores da forma de Estado, os

princípios definidores da estrutura do Estado (unitário ou federativo), os princípios

estruturantes do regime político (princípio do Estado de Direito, princípio

democrático, princípio republicano) e os princípios definidores da forma de governo

(princípio da separação e interdependência dos poderes).23

III – Princípios constitucionais impositivos: Por intermédio desses princípios

“subsumem-se todos os princípios que impõem aos órgãos do Estado, sobretudo ao

legislador, a realização de fins e execução de tarefas.”24 Citam-se, a título de

exemplo, os princípios definidores dos fins do Estado e as normas programáticas.

IV – Princípios-garantia: “Há outros princípios que visam instituir directa ou

indirectamente uma garantia aos cidadãos. É-lhes atribuída uma densidade de

autêntica norma jurídica e uma força determinante, positiva e negativa.”25 Esses

princípios visam estabelecer garantias aos cidadãos e adquirem forma de autêntica

norma jurídica.

1.2.2. Natureza

Os princípios, como normas jurídicas e parte integrante do ordenamento

jurídico, apresentam uma natureza peculiar que os diferenciam dos outros

comandos emanados do direito. Os princípios têm uma abrangência que vai além

dos estritos limites do direito; sua natureza transcende à política e à ideologia

predominante em determinado Estado, refletindo de sobremodo em outras

ordenações políticas.

Acerca da natureza multiforme dos princípios, Espíndola nos explica:

Esses princípios, então, não expressam somente uma natureza jurídica, mas também política, ideológica e social, como, de resto o Direito e as demais normas de qualquer sistema jurídico. Porém, expressam uma natureza política, ideológica e social, normativamente predominante, cuja eficácia no plano da práxis jurídica – entendida como concretização do Direito no sentido mais

22

CANOTILHO, Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição, p. 1130. 23

CANOTILHO, Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição, p. 1130. 24

CANOTILHO, Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição, p. 1130. 25

CANOTILHO, Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição, p. 1131.

Page 20: Monografia - A normatividade dos princípios constitucionais frente à judicialização do acesso à saúde

10

amplo possível -, alcança, muito além dos procedimentos estatais (judicialistas, legislativos e administrativos), até a organização política dos mais diversos segmentos sociais, como os movimentos populares, sindicatos, partidos políticos etc.26

O constitucionalista português Canotilho, em referência à natureza dos

princípios destacou a sua natureza normogenética – “os princípios são fundamento

de regras, isto é, são normas que estão na base ou constituem a ratio de regras

jurídicas, desempenhando, por isso, uma função normogenética fundamentante.”27

Para esse autor, os princípios constituem, por assim dizer, a gênese das

demais normas jurídicas justamente porque incorporam em si os valores

predominantes de uma comunidade.

1.2.3. Características

Em virtude da natureza particular dos princípios, reflete-se que eles

apresentam características próprias que denotam sua natureza singular enquanto

normas jurídicas. Miranda, depois de abalizada pesquisa na doutrina, menciona as

seguintes características dos princípios:

a) A sua maior aproximação da idéia de Direito ou dos valores do ordenamento; b) A sua amplitude, o seu maior grau de generalidade ou indeterminação frente às normas-regras; c) A sua irradiação ou prejecção para um número vasto de regras ou preceitos, correspondentes a hipóteses de sensível heterogeneidade; d) A sua versatilidade, a sua susceptibilidade de conteúdos algo variáveis ao longo dos tempos e das circunstâncias, com densificações variáveis; e) A sua abertura, sem pretensão de regulamentação exaustiva, ou em plenitude, de todos os casos; f) A sua expansibilidade perante situações ou fatos novos, sem os absorver ou neles se esgotar; g) A sua virtualidade de harmonização, sem invalidação ou revogação recíproca.28

Rocha, em estudo sobre os princípios constitucionais, atribui-lhes as

seguintes características:

26

ESPÍNDOLA, Ruy Samuel. Conceito de princípios constitucionais, p. 81. 27

CANOTILHO, Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição, p. 1125. 28

MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional, tomo II, p. 228.

Page 21: Monografia - A normatividade dos princípios constitucionais frente à judicialização do acesso à saúde

11

I – Generalidade: Os princípios constitucionais não pontuam, com

especificidade e minudência, hipóteses concretas de regulações jurídicas. Eles são

gerais para serem geradores de outros princípios e das regras constitucionais.

Conclui que:

A generalidade destes princípios possibilita que a Constituição cumpra o seu papel de lei maior concreta e fundamental do Estado, sem amarrar a sociedade a modelos inflexíveis e definitivos, que a vida não permitiria algemar-se em travas da lei.29

II – Primariedade: Os princípios constitucionais são primários e primeiros no

interior do sistema constitucional; é deles que se imanam os demais princípios, que

podem ser implícitos e explícitos, e regras desse sistema;

III – Objetividade: Os princípios constitucionais são dotados de objetividade

no sentido de que, embora dotados de generalidade, eles não apresentam

conteúdos subjetivos ou aleatórios. Têm substância jurídica própria, cuja explicitação

é tarefa do aplicador das normas nas quais eles se contêm. “A objetividade dos

princípios constitucionais impedem, então, que seja permitida a seus aplicadores a

opção livre dos sentidos a serem extraídos num determinado momento da vigência

do sistema jurídico.”30

IV – Dimensão axiológica: Os princípios constitucionais têm dimensão

axiológica devido ao conteúdo ético que denotam. Frise-se que eles não se

constituem em axiomas ou verdades absolutas porque estão sujeitos às influências

do meio sociopolítico em que atuam;

V – Transcendência: A transcendência dos princípios constitucionais reside

no fato de que estes superam a elaboração normativa constitucional formal e se

desenvolvem no ordenamento como a mais intensa diretriz política, legislativa,

administrativa e jurisdicional;31

VI – Atualidade: Pela atualidade, os princípios constitucionais hão que se

manter coerentes com as necessidades, aspirações e ideais projetados pelo povo

em seu ordenamento jurídico;32

VII – Poliformia: Consequência das características da atualidade e da

transcendência, a poliformia possibilita a multiplicidade de sentidos que se

29

ROCHA, Carmem Lúcia. Princípios constitucionais da administração pública, p. 29. 30

ROCHA, Carmem Lúcia. Princípios constitucionais da administração pública, p. 33-34. 31

ROCHA, Carmem Lúcia. Princípios constitucionais da administração pública, p. 37. 32

ROCHA, Carmem Lúcia. Princípios constitucionais da administração pública, p. 38.

Page 22: Monografia - A normatividade dos princípios constitucionais frente à judicialização do acesso à saúde

12

acrescentam e se sucedem, garantindo que o sistema tenha permanência,

presença, eficácia social e jurídica;33

VIII – Vinculabilidade: Por meio dessa característica denota-se que nenhum

princípio constitucional deve ser considerado isolado ou auto-suficiente. A

Constituição é uma lei sistematizada em normas que se encadeiam, coordenam-se,

enlaçam-se e harmonizam-se para adquirir um significado, conjunto, para ser pleno,

inteiro;34

IX – Aderência: Decorre-se que nenhum comportamento estatal ou particular

deverá fugir àquilo posto pelos princípios constitucionais. Essa aderência ocorre

mesmo quando a definição do princípio não é afirmativa positiva (por situar

determinado comportamento individual no espaço de liberdade não restringida pelo

sistema jurídico), mas sim afirmativa negativa, quer-se dizer, não há comportamento

que lhe possa contrariar o preceito;35

X – Informatividade: A informatividade dos princípios constitucionais põe em

destaque a fundamentalidade da Constituição como ordem primeira e primária,

marcando a presença de seu espírito em toda a dimensão sistêmica que se plasma

no ordenamento jurídico de uma sociedade estatal;36

XI – Complementariedade: Diante da complementariedade dos princípios, uns

condicionam os outros. O seu entendimento perfeito é sempre uma inteligência

extraída de todos eles, do entrosamento que deles se retire;37

XII – Normatividade Jurídica – Última característica mencionada pela citada

jurista e também a de maior relevo no contexto do presente estudo, a normatividade

jurídica dos princípios constitucionais afere-os o status de norma, de norma de

direito, de juridicidade. Seus preceitos são diferenciados das demais normas

jurídicas, daí a distinção entre regras e princípios, o que não significa afirmar que

seu grau de imperatividade é diferenciado; os princípios constitucionais são normas

como qualquer outra, porém com uma natureza peculiar que os distinguem.

Constatam-se, dessa forma, as várias características que se podem atribuir

aos princípios.

33

ROCHA, Carmem Lúcia. Princípios constitucionais da administração pública, p. 39. 34

ROCHA, Carmem Lúcia. Princípios constitucionais da administração pública, p. 39. 35

ROCHA, Carmem Lúcia. Princípios constitucionais da administração pública, p. 40. 36

ROCHA, Carmem Lúcia. Princípios constitucionais da administração pública, p. 41. 37

ROCHA, Carmem Lúcia. Princípios constitucionais da administração pública, p. 41.

Page 23: Monografia - A normatividade dos princípios constitucionais frente à judicialização do acesso à saúde

13

1.2.4. Modalidades de eficácia

Eficácia é um atributo associado às normas e consiste na consequência

jurídica que deve resultar de sua observância, podendo ser judicialmente exigida se

necessário. As diferentes modalidades de eficácia indicam os diferentes tipos de

comportamento exigíveis em face de um princípio.

A eficácia jurídica de um princípio vincula-se à sua normatividade, o que no

caso dos princípios trata-se de um fenômeno recente, daí a dificuldade que surge

em se apontar os efeitos pelos quais surgem mediante a aplicação de um princípio.

De qualquer forma, a doutrina tem procurado atribuir aos princípios

determinadas modalidades de eficácia, ora similares às das regras, ora

desenvolvendo modalidades diferenciadas, adaptadas às peculiaridades dos

princípios.

Eficácia positiva ou simétrica é o nome pelo qual se convencionou designar a

eficácia associada à maioria das regras. A aplicação da eficácia positiva aos

princípios ainda é uma construção recente e o seu objetivo, seja aplicável às regras

ou aos princípios é o mesmo, quer seja, reconhecer ao beneficiário da norma, ou

àquele que deveria ser atingido pela realização de seus efeitos, direito subjetivo a

esses efeitos, de modo que lhe seja garantida a tutela específica da situação

contemplada no texto legal.38

Barroso e Barcelos assim destacam as conseqüências derivadas da

inocorrência dos efeitos de um princípio com eficácia simétrica:

Ou seja: se os efeitos pretendidos pelo princípio constitucional não ocorreram – tenha a norma sido violada por ação ou omissão –, a eficácia positiva ou simétrica pretende assegurar ao interessado a possibilidade de exigi-los diretamente, na via judicial se necessário. Como se vê, um pressuposto para o funcionamento adequado dessa modalidade de eficácia é a identificação precisa dos efeitos pretendidos por cada princípio constitucional.39

Destarte, a característica essencial desta modalidade de eficácia consiste mo

fato dela se assemelhar com aquela conferida às regras.

38

BARROSO e BARCELOS. A nova interpretação constitucional e o papel dos princípios no direito brasileiro. Disponível em: <http://www.buscalegis/index.php/ buscalegis/article/.../30571>. 39

BARROSO e BARCELOS. A nova interpretação constitucional e o papel dos princípios no direito brasileiro. Disponível em: <http://www.buscalegis/index.php/ buscalegis/article/.../30571>.

Page 24: Monografia - A normatividade dos princípios constitucionais frente à judicialização do acesso à saúde

14

Eficácia interpretativa é aquela em que se exige que as normas de hierarquia

inferior sejam interpretadas de acordo as de hierarquia superior a que estão

vinculadas. Pode ocorrer entre leis e seus regulamentos e entre normas

constitucionais e a ordem infraconstitucional como um todo.

A eficácia dos princípios constitucionais, nessa acepção, consiste em orientar a interpretação das regras em geral (constitucionais e infraconstitucionais), para que o interprete faça a opção, dentre as possíveis exegeses para o caso, por aquela que realiza melhor o efeito pretendido pelo princípio constitucional pertinente.40

A eficácia negativa autoriza que sejam declaradas inválidas todas as normas

ou atos que contravenham os efeitos pretendidos pela norma. Apesar do fato de que

os efeitos pretendidos pelos princípios possam ser relativamente indeterminados,

existe um núcleo de sentido que torna plenamente viável a modalidade da eficácia

jurídica negativa.41

Assim, por exemplo, se uma determinada empresa estabelece jornada de

trabalho de doze horas diárias, sem direito a repouso e folga semanal, está claro

que, além da afronta das normas constitucionais referentes ao trabalho, viola-se o

princípio da dignidade da pessoa humana.

A eficácia vedativa do retrocesso guarda pertinência com os princípios que

envolvem os direitos fundamentais. Pressupõe os casos em que os princípios são

regulados por meio de normas infraconstitucionais, sendo que, com base no direito

constitucional em vigor, um dos efeitos pretendidos é a progressiva ampliação dos

direitos fundamentais.

Partindo desses pressupostos, o que a vedação do retrocesso propõe se possa exigir do Judiciário é a invalidação da revogação de normas que, regulamentando o princípio, concedam ou ampliem direitos fundamentais, sem que a revogação em questão seja acompanhada de uma política substitutiva ou equivalente. Isto é: a invalidade, por inconstitucionalidade, ocorre quando se revoga uma norma infraconstitucional concessiva de um direito, deixando um vazio no seu lugar.42

40

BARROSO e BARCELOS. A nova interpretação constitucional e o papel dos princípios no direito brasileiro. Disponível em: <http://www.buscalegis/index.php/ buscalegis/article/.../30571>. 41

BARROSO e BARCELOS. A nova interpretação constitucional e o papel dos princípios no direito brasileiro. Disponível em: <http://www.buscalegis/index.php/ buscalegis/article/.../30571>. 42

BARROSO e BARCELOS. A nova interpretação constitucional e o papel dos princípios no direito brasileiro. Disponível em: <http://www.buscalegis/index.php/buscalegis/article/.../30571>.

Page 25: Monografia - A normatividade dos princípios constitucionais frente à judicialização do acesso à saúde

15

É bom observar que a questão envolve a pura e simples revogação de uma

norma que dispõe acerca de direitos fundamentais, ocorrendo o esvaziamento do

comando constitucional, como se dispusesse contra ele.

À luz da eficácia dos princípios se vem construindo sua normatividade, porém

deve-se levar em conta que para a eficácia construir o efeito desejado, há de ser

procedida uma identificação cuidadosa dos efeitos pretendidos pelos princípios e

das condutas que realizem o fim indicado pelo princípio ou preservem o bem jurídico

por ele protegido.

1.2.5. Densificação

Densificar significa, em âmbito jurídico-constitucional, significa preencher,

complementar e precisar o espaço normativo de um preceito constitucional,

especialmente carecido de concretização, a fim de tornar possível a solução, por

esse preceito, dos problemas concretos.43

Ainda segundo Lima:

Concretizar o princípio, seguindo a lição de CANOTILHO, é fazer com que ele chegue até a norma de decisão, ou seja, é fazer com que o princípio “construa” a norma jurídica concreta, passando de normas generalíssimas abstratas (dos textos normativos-constitucionais) a normas concretas de decisão (contextos jurídicos decisionais).44

Desta feita, tendo em vista concretizar um princípio, o primeiro caminho a ser

percorrido é o decorrente da densificação. Busca-se, por este método, alcançar um

significado coerente para o princípio que lhe faça ser concretizado com o fim de

aplicá-lo ante um caso concreto.

Lima, muito elucidamente, ocupa-se da atividade da densificação:

É de grande importância ter em mente que a densificação não é tarefa apenas do legislador. De fato, a densificação de um princípio é uma tarefa complexa, que se inicia com a leitura isolada do texto que

43

LIMA, George Marmelstein. A força normativa dos princípios constitucionais. Disponível em: <http://www.mundojuridico.adv.br/cgi-bin/upload/texto38.doc>. 44

LIMA, George Marmelstein. A força normativa dos princípios constitucionais. Disponível em: http://www.mundojuridico.adv.br/cgi-bin/upload/texto38.doc.

Page 26: Monografia - A normatividade dos princípios constitucionais frente à judicialização do acesso à saúde

16

enuncia o princípio, passando, em segunda fase, por uma análise sistemática do texto constitucional, e, a partir daí, buscando os contornos capazes de preencher o significado do princípio. Esses “contornos”, portanto, podem ser encontrados tanto no próprio texto constitucional, quanto na lei, na doutrina, na jurisprudência etc. Ou seja, a densificação de um princípio é qualquer atividade capaz de fornecer subsídios hábeis a melhorar a compreensão do significado da norma.45

Então a aplicação do princípio a um caso real somente ocorrerá se ele for

concretizado, que, por sua vez, se iniciará diante da densificação. Essa densificação

é, pois, tarefa cognitiva, interpretativa.

Magistrais as afirmações de Mendes, Coelho e Branco sobre o processo de

produção de significado dos princípios:

Nesse sentido, pode-se dizer que os princípios jurídicos se produzem necessariamente em dois tempos e a quatro mãos: primeiro são formulados genérica e abstratamente pelo legislador; depois se concretizam, naturalmente, como normas do caso ou normas de decisão, pelos interpretes e aplicadores do Direito. Ou, se preferirmos – parafraseando Eduardo Couture -, os princípios são as regras a longo prazo, porque embora parecem precede-las – como enganosamente sugere o seu nome – em verdade é delas que eles vão sendo extraídos e generalizados, pelos juízes e tribunais, ao constituírem regras de decisão, que lhes permitem realizar a justiça em sentido material, dando a cada um o que é seu.46

Os elementos expostos tiveram o condão de individualizar e qualificar os

princípios jurídicos, onde se procurou demonstrar a sua situação dentro do Direito e

seu aspecto da normatividade.

1.3. AS GERAÇÕES DE DIREITOS FUNDAMENTAIS

O primeiro ponto a ser levantado sobre os direitos fundamentais diz respeito à

sua terminologia. Normalmente emprega-se despropositadamente as expressões

„direitos humanos‟, „direitos do homem‟ e „direitos fundamentais‟ para designar a

mesma coisa. Mas qual vem a ser o significado de cada uma dessas expressões?

45

LIMA, George Marmelstein. A força normativa dos princípios constitucionais. Disponível em: <http://www.mundojuridico.adv.br/cgi-bin/upload/texto38.doc. 46

MENDES, COELHO e BRANCO. Curso de direito constitucional, p. 52.

Page 27: Monografia - A normatividade dos princípios constitucionais frente à judicialização do acesso à saúde

17

“Direitos fundamentais são aqueles direitos que o direito vigente qualifica

como tais.”47 A expressão direitos fundamentais designa aqueles direitos qualificados

como de suprema importância num ordenamento jurídico, geralmente se referindo

aos direitos básicos da pessoa humana.

Mendes, Coelho e Branco assim conceituam os direitos fundamentais:

A locução direitos fundamentais é reservada aos direitos relacionados com posições básicas das pessoas, inscritos em diplomas normativos de cada Estado. São direitos que vigem numa ordem jurídica concreta, sendo, por isso, garantidos e limitados no espaço e no tempo – pois são assegurados na medida em que cada Estado os consagra.48

De outra parte, a expressão „direitos humanos‟, ou „direitos do homem‟, é

reservada para aquelas reivindicações de perene respeito a certas posições

essenciais ao homem. São postulados em bases jusnaturalistas, contém índole

filosófica e não possuem como característica básica a positivação numa ordem

jurídica particular. Por conta de sua vocalização universalista, supranacional, é

empregada para designar pretensões de respeito à pessoa humana, inseridas em

tratados e em outros documentos de direito internacional.49

Na análise das gerações de direitos fundamentais deve-se levar em conta o

seu caráter histórico-evolutivo, ou seja, “os direitos fundamentais são um conjunto

de faculdades e instituições que somente fazem sentido num determinado contexto

histórico”50, bem como esses direitos podem ser proclamados em certas épocas,

desaparecer em outras, ou modificar no tempo.

Bobbio constata que os direitos não nascem todos de uma vez:

Nascem quando devem ou quando podem nascer. Nascem quando o aumento de poder do homem sobre o homem cria novas ameaças à liberdade do indivíduo ou permite novos remédios para as suas indigências: ameaças que são enfrentadas através de demandas de limitação de poder; remédios que são providenciados através da exigência de que o mesmo poder intervenha de modo protetor.51

47

BONAVIDES, Paulo – Curso de direito constitucional, p. 560. 48

MENDES, COELHO E BRANCO – Hermenêutica constitucional e direitos fundamentais, p.125. 49

MENDES, COELHO E BRANCO – Hermenêutica constitucional e direitos fundamentais, p.125. 50

MENDES, COELHO E BRANCO – Hermenêutica constitucional e direitos fundamentais, p.121. 51

BOBBIO, Norberto – A era dos direitos, p. 06.

Page 28: Monografia - A normatividade dos princípios constitucionais frente à judicialização do acesso à saúde

18

Percebe-se, desse jeito, que os direitos fundamentais não são

compartimentos estanques muito menos intrínsecos ao ser humano, podendo sofrer

variações decorrentes das necessidades e aspirações sociais, assim como do

regime adotado por determinado Estado.

Procurou-se, ao longo da história, encontrar alguma noção que justificasse a

existência destes ditos direitos fundamentais. O problema reside no fato de existirem

diversas vertentes filosófico-jurídicas disputando a justificativa dos direitos humanos.

Mendes, Coelho e Branco destacam que:

Para os jusnaturalistas, os direitos do homem são imperativos do direito natural, anteriores e superiores à vontade do Estado. Já para os positivistas, os direitos do homem são faculdades outorgadas pela lei e reguladas por ela. Para os idealistas, os direitos humanos são idéias, princípios abstratos que a realidade vai colhendo ao longo do tempo, ao passo que, para os realistas, seriam o resultado direito de lutas sociais e políticas.52

Pois bem, a consciência da dificuldade de harmonizar as muitas concepções

leva alguns autores a recusar a utilidade do estudo da fundamentalidade dos direitos

fundamentais, sob o argumento que o problema mais premente está na necessidade

de encontrar formulas para protegê-los.

Bobbio ressalta o caráter ilusório de se buscar um fundamento absoluto para

os direitos fundamentais. Destaca o autor que a tentativa de fixar um fundamento

absoluto para os direitos fundamentais seria contraproducente ao próprio

desenvolvimento desses direitos. Registra que o fundamento absoluto dos direitos

fundamentais muitas vezes representa um pretexto para defender posições

conservadoras.

Dois direitos fundamentais, mas antinômicos, não podem ter, um e outro, um fundamento absoluto, ou seja, um fundamento que torne um direito e o seu oposto, ambos, inquestionáveis e irresistíveis. Aliás, vale a pena recordar que, historicamente, a ilusão do fundamento absoluto de alguns direitos estabelecidos foi um obstáculo à introdução de novos direitos, total ou parcialmente incompatíveis com aqueles. Basta pensar nos empecilhos colocados ao progresso da legislação social pela teoria jusnaturalista do fundamento absoluto da propriedade: a oposição quase secular contra a introdução dos direitos sociais foi feita em nome do fundamento absoluto dos direitos de liberdade. O fundamento

52

MENDES, COELHO E BRANCO – Hermenêutica constitucional e direitos fundamentais, p.113.

Page 29: Monografia - A normatividade dos princípios constitucionais frente à judicialização do acesso à saúde

19

absoluto não é apenas ilusão; em alguns casos, é também pretexto para defender posições conservadoras.53

Esclarecidas essas questões atinentes aos direitos fundamentais, cumpre

agora perquirir a sua trajetória histórico-evolutiva.

1.3.1. Os direitos fundamentais de primeira geração

Os primeiros direitos fundamentais, ou seja, os de primeira geração foram os

direitos de liberdade. Eles se desenvolveram em duas fases relevantes. Primeiro,

com o advento do Cristianismo, situação em que o sentido de liberdade ampliou-se,

uma vez que na antiguidade liberdade representava apenas a faculdade de exercer

os direitos políticos do cidadão. Passou-se a entender liberdade como a realização

da vida pessoal.

A doutrina do cristianismo configura o antecedente básico dos direitos

humanos. Santo Tomás de Aquino, seu principal escolástico, defendia a concepção

de que os homens, por serem criados à imagem e semelhança de Deus, possuem

alto valor intrínseco e uma liberdade inerente à sua natureza, razão pela qual

dispõem de direitos que devem ser respeitados por todos e pela sociedade política.

Santo Tomás de Aquino defendia um direito natural fundado na ideia do homem

como criatura feita à semelhança de Deus e dotado de especiais qualidades. Esse

direito subordinava o direito positivo e a discrepância entre um e outro autorizava o

direito de resistência frente ao súdito. 54

As teorias contratualistas ganham relevo na formação dos direitos de primeira

geração, principalmente nos séculos XVII e XVIII, para acentuar que os soberanos

deveriam exercer a sua autoridade com submissão ao direito natural. Decorria daí a

primazia do indivíduo sobre o Estado.55

Os primeiros documentos históricos a fazerem referência aos direitos dos

indivíduos são a Magna Carta, de 1215, o Petition of Rights, de 1628, o Habeas

Corpus Act, de 1679 e o Bill of Rights de 1689. O ponto fulcral do desenvolvimento

dos direitos fundamentais se deu com a Declaração de Virginia de 1776 e a francesa

de 1789.56

53

BOBBIO, Norberto. A era dos direitos, p. 15. 54

MENDES, COELHO E BRANCO – Hermenêutica constitucional e direitos fundamentais, p.105. 55

MENDES, COELHO E BRANCO – Hermenêutica constitucional e direitos fundamentais, p.105. 56

BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional, p. 562-563.

Page 30: Monografia - A normatividade dos princípios constitucionais frente à judicialização do acesso à saúde

20

Bobbio explana acerca da primazia do indivíduo sobre o Estado, teoria que

inspirou o desenvolvimento dos direitos fundamentais:

A afirmação dos direitos do homem deriva de uma radical visão de perspectiva, característica da formação do Estado moderno, na representação da relação política, ou seja, na relação entre Estado/cidadão ou soberano/súditos: relação que é encarada, cada vez mais, do ponto de vista dos direitos dos cidadãos não mais súditos, e não do ponto de vista dos direitos do soberano, em correspondência com a visão individualista da sociedade (...) no início da idade moderna.57

Assim, os direitos de primeira geração são os direitos de liberdade, os

primeiros a constarem do instrumento normativo constitucional; são os direitos civis

e políticos, que correspondem em grande parte, por um prisma histórico, à fase

inaugural do constitucionalismo do Ocidente. Têm por titular o indivíduo, são

oponíveis ao Estado, traduzem-se como faculdade ou atributos da pessoa e

ostentam uma subjetividade que é seu traço mais característico; enfim, são direitos

de resistência ou de oposição perante o Estado.58

1.3.2. Os direitos fundamentais de segunda geração

Os direitos fundamentais de segunda geração tiveram sua origem marcada

por conta de movimentos antiliberais, onde se questionava o absenteísmo do Estado

ante os problemas sociais que surgiram por conta do sistema de exploração do

capitalismo.

A ideia, ínsita ao Estado liberal, da separação Estado-sociedade é reavaliada,

dando surgimento ao entendimento de que o Estado deve prover para que a

sociedade logre a superar as suas angústias estruturais. Daí em diante estabeleceu-

se progressivamente pelos Estados os seguros sociais mais variados como, por

exemplo, a previdência social e de saúde.59 Contribuíram, também, às grandes

guerras, ocasião em que o Estado teve que intervir na vida econômica e social.

57

BOBBIO, Norberto. A era dos direitos, p. 04. 58

BONAVIDES, Paulo – Curso de direito constitucional, p. 563-564. 59

MENDES, COELHO E BRANCO – Hermenêutica constitucional e direitos fundamentais, p.110.

Page 31: Monografia - A normatividade dos princípios constitucionais frente à judicialização do acesso à saúde

21

O Estado passa a se orientar por motivações e objetivos de justiça social. “O

princípio da igualdade de fato ganha realce nesta segunda geração de direitos

fundamentais.”60

Os direitos de segunda geração são, pois, os direitos sociais, culturais e

econômicos bem como os direitos coletivos ou de coletivizados.

Primeiramente, os direitos de segunda geração passaram por um ciclo de

baixa normatividade ou tiveram eficácia duvidosa, em virtude de sua natureza que

exige do Estado determinadas prestações materiais nem sempre resgatáveis por

exigüidade, carência ou limitação essencial de meios e recursos.61

De juridicidade questionada nesta fase, foram eles remetidos à esfera

programática, pelo motivo de não conterem, para a sua concretização, aquelas

garantias habitualmente ministradas pelos instrumentos processuais de proteção

aos direitos da liberdade. Atravessaram uma crise de observância e execução, cujo

fim parece estar próximo, a partir do momento em que as recentes constituições,

incluindo-se aí a brasileira, formularam o preceito da aplicabilidade imediata dos

direitos fundamentais.62

Desse norte, os direitos fundamentais de segunda geração tendem a se

tornar tão justificáveis quanto os da primeira; pelo menos esta é a regra,

considerando que não poderão ser descumpridos ou ter sua eficácia recusada com

aquela facilidade de argumentação arrimada no caráter programático da norma.63

1.3.3. Os direitos fundamentais de terceira geração

Os direitos fundamentais de terceira dimensão advieram a partir da

consciência de um mundo partido entre nações desenvolvidas e subdesenvolvidas

ou em fase de precário desenvolvimento. Trata-se de direitos assentados sobre a

fraternidade, são providos de uma latitude que não parece compreender unicamente

a proteção específica de direitos individuais ou coletivos.64

“Os direitos de terceira geração dirigem-se à proteção, não do homem

isoladamente, mas de coletividades, de grupos, sendo direitos de titularidade difusa

60

MENDES, COELHO E BRANCO – Hermenêutica constitucional e direitos fundamentais, p.110. 61

BONAVIDES, Paulo – Curso de direito constitucional, p. 564. 62

BONAVIDES, Paulo – Curso de direito constitucional, p. 564. 63

BONAVIDES, Paulo – Curso de direito constitucional, p. 564. 64

BONAVIDES, Paulo – Curso de direito constitucional, p.569.

Page 32: Monografia - A normatividade dos princípios constitucionais frente à judicialização do acesso à saúde

22

ou coletiva.”65 Bonavides, inspirado na teoria de Vasak e outros doutrinadores,

identifica cinco direitos de terceira geração, a saber:

A teoria, com Vasak e outros, já identificou cinco direitos de fraternidade, ou seja, da terceira geração: o direito ao desenvolvimento, o direito à paz, o direito ao meio ambiente, o direito de propriedade sobre o patrimônio cultural da humanidade e o direito de comunicação.66

Cumpre insistir que esse rol não é taxativo, podendo haver outros na medida

em que a sociedade se desenvolve.

1.3.4. Os direitos fundamentais de quarta geração

Os direitos fundamentais de quarta geração surgem diante da globalização

política. Referem-se à globalização dos direitos fundamentais.

Atualmente vive-se o período da globalização do neoliberalismo, extraída da

globalização econômica. Sua filosofia do poder é negativa e se move, de certa

forma, rumo à dissolução do Estado nacional, afrouxando e debilitando os laços de

soberania e, ao mesmo tempo, doutrinando uma falsa despolitização da sociedade.67

Nesse ponto, a única globalização política que interessa à camada mais

pobre da sociedade é a globalização dos direitos fundamentais. Pela teoria dos

direitos fundamentais, aufere-se legitimação e humanidade a esse movimento

político que domina os dias atuais.

Bonavides assim discorre sobre os direitos de quarta geração:

São direitos de quarta geração o direito à democracia, o direito à informação e o direito ao pluralismo. Deles depende a concretização da sociedade aberta para o futuro, em dimensão de máxima universalidade, para a qual o mundo parece inclinar-se no plano de todas as relações de convivência. (...) Daqui se pode, assim, partir para a asserção de que os direitos da segunda, da terceira e da quarta gerações não se interpretam, concretizam-se. É na esteira dessa concretização que reside o futuro da globalização política, o seu princípio de legitimidade, a força incorporadora de seus valores de libertação.68

65

MENDES, COELHO E BRANCO – Hermenêutica constitucional e direitos fundamentais, p.111. 66

BONAVIDES, Paulo – Curso de direito constitucional, p. 569. 67

BONAVIDES, Paulo – Curso de direito constitucional, p. 570-571. 68

BONAVIDES, Paulo – Curso de direito constitucional, p. 572.

Page 33: Monografia - A normatividade dos princípios constitucionais frente à judicialização do acesso à saúde

23

A propósito, Mendes, Coelho e Branco afirmam que:

Os direitos fundamentais são hoje o parâmetro de aferição do grau de democracia de uma sociedade. Ao mesmo tempo, a sociedade democrática é condição imprescindível para a eficácia dos direitos fundamentais. Direitos fundamentais eficazes e democráticos são conceitos indissociáveis, não subsistindo aqueles fora do contexto desse regime político.69

Infere-se, então, que os direitos fundamentais de quarta geração compendiam

o futuro da cidadania e legitimam o fenômeno da globalização política.

Ainda no tocante aos direitos fundamentais, útil se faz a menção sobre o

termo gerações de direitos fundamentais. Este termo é amplamente adotado pela

doutrina, tendo como seu autor Norberto Bobbio, em “A era dos direitos”. Mas,

cumpre fazer alguns esclarecimentos a cerca da terminologia, para que seu

emprego não conduza a erros.

Mendes, Coelho e Branco advertem que a visão dos direitos fundamentais em

termos de gerações indica o caráter cumulativo da evolução desses direitos no

tempo. Os direitos devem ser vistos num contexto de unidade e indivisibilidade.

“Cada direito de cada geração interage com o das outras e, nesse processo, dá-se a

compreensão.”70

Bonavides explica as implicações desse equívoco de linguagem:

Força é dirimir, a esta altura, um eventual equívoco de linguagem: o vocábulo “dimensão” substitui, com vantagem lógica e qualitativa, o termo “geração”, caso este último venha a induzir apenas sucessão cronológica e, portanto, suposta caducidade dos direitos das gerações anteriores, o que não é verdade. Ao contrário, os direitos de primeira geração, direitos individuais, os de segunda, direitos sociais, e os de terceira, direitos ao desenvolvimento, ao meio ambiente, à paz e à fraternidade, permanecem eficazes, são infra-estruturais, formam a pirâmide cujo ápice é o direito à democracia; coroamento daquela globalização política para a qual, como no provérbio chinês da grande muralha, a Humanidade parece caminhar a todo vapor, depois de haver dado o seu primeiro e largo passo.71

69

MENDES, COELHO E BRANCO – Hermenêutica constitucional e direitos fundamentais, p.104. 70

MENDES, COELHO E BRANCO – Hermenêutica constitucional e direitos fundamentais, p.113. 71

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, p. 571-572.

Page 34: Monografia - A normatividade dos princípios constitucionais frente à judicialização do acesso à saúde

24

Estas são, portanto, as gerações de direitos fundamentais, entendidas como a

trajetória histórico-evolutiva percorrida pelos direitos fundamentais rumo aos

avanços que podem ser constatados nos dias de hoje, ao menos doutrinariamente.

1.4. A EVOLUÇÃO DA NORMATIVIDADE DOS PRINCÍPIOS JURÍDICOS

Os princípios jurídicos, antes de atingirem seu ápice normativo, quando

passaram a ser incorporados como normas fundamentais em todas as constituições

modernas, percorreram três distintas fases de juridicidade: o jusnaturalismo, o

positivismo e o pós-positivismo.

Os princípios tiveram sua origem na fase jusnaturalista. Nessa fase, os

princípios possuíam natureza abstrata e metafísica, eram carentes de

normatividade, e seus preceitos espelhavam os postulados oriundos da concepção

de justiça.

A ideia de direito natural, cujo conceito de “natureza das coisas” regia seus

postulados, era o fator a determinar a natureza então abstrata e metafísica dos

princípios jurídicos.

Acerca de sua natureza, os princípios não expressavam mais do que „normas

universais de bem obrar‟72, eram o chamado de „carta de boas intenções‟73.

Representavam as disposições que consignavam os valores ou axiomas jurídicos.

Destarte, sua normatividade era carente ou quase nula, bem como seu

conteúdo era subordinado àquele em que visto o direito natural. Eles existiam para

expressar os direitos fundamentais do homem, mas nem sempre cumpriam o seu

desiderato, visto que eram facilmente manipuláveis pelas classes dominantes.

A fase jusnaturalista dominou a dogmática dos princípios por um longo

período até o advento da Escola histórica do direito. Essa doutrina precede o

positivismo jurídico, sendo que pregava o direito natural não como um sistema

normativo autossuficiente, separado do direito positivo, e sim como um conjunto de

considerações filosóficas sobre o positivismo. Seu surgimento se deu ao final do

século XVIII, na Alemanha.

Já no século XIX é inaugurada a fase do positivismo jurídico. Nela, o direito é

concebido sob concepção monista, identificando o direito com o Estado, apontado

como o detentor exclusivo da monopolização da produção normativa. Segundo

72

BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional, p. 261. 73

BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional, p. 261.

Page 35: Monografia - A normatividade dos princípios constitucionais frente à judicialização do acesso à saúde

25

Bobbio positivismo “é aquela doutrina segundo a qual não existe outro direito senão

o positivo.”74 Nítida é sua posição oposta ao jusnaturalismo.

Durante a fase positivista, os princípios jurídicos equivaliam aos princípios

que informam o direito positivo, ou seja, nessa fase os princípios eram encarados

como direito.

Bonavides, em citação extraída da obra de J. Arce y Flórez Valdés,

acrescenta:

Esses princípios – acrescenta literalmente o mesmo autor – se induzem por via de abstração ou de sucessivas generalizações, do próprio do Direito Positivo, de suas regras particulares (...). Os princípios, com efeito – prossegue – já estão dentro do Direito Positivo e, por ser este um sistema coerente, podem ser inferidos do mesmo. Seu valor lhes vem – conclui – não de serem ditados pela razão ou por constituírem um Direito Natural ou ideal, senão por derivarem das próprias leis.75

Observa-se, portanto, que os princípios nessa fase ainda carecem de

normatividade, a considerar que eles decorrem precipuamente das regras

elaboradas pelo legislador na formulação do direito. Era característica do positivismo

se imbuir apenas de regras, formando um sistema jurídico fechado.

Dentro desse contexto, cumpre extrair as observações de Bobbio sobre o viés

normativo dos princípios:

Os princípios gerais são, a meu ver, normas fundamentais ou generalíssimas do sistema, as normas mais gerais. O nome princípios induz em engano, tanto que é velha questão entre juristas se os princípios são ou não normas. Pra mim não há dúvida: os princípios gerais são normas como todas as demais. E esta é a tese sustentada também pelo estudioso que mais amplamente se ocupou da problemática, ou seja, Crisafulli. Para sustentar que os princípios gerais são normas os argumentos vêm a ser dois e ambos válidos: antes de tudo, se são normas aquelas das quais os princípios gerais são extraídos, através de um processo de generalização sucessiva, não se vê por que não devam ser normas também eles: se abstraio de espécies animais obtenho sempre animais, e não flores ou estrelas. Em segundo lugar, a função para a qual são abstraídos e adotados é aquela mesma que é cumprida por todas as normas, isto é, a função de regular um caso. Para regular um comportamento não regulado, é claro: mas agora servem ao mesmo fim para que servem as normas expressas. E por que então não deveriam ser normas?76

74

BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito, p. 26. 75

BONAVIDES, PAULO. Curso de direito constitucional, p. 263. 76

BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico, p. 182-183.

Page 36: Monografia - A normatividade dos princípios constitucionais frente à judicialização do acesso à saúde

26

Dessa forma, os princípios jurídicos eram como válvulas de segurança do

direito, tinham utilidade para suprir as lacunas deixadas pela lei. Uma norma que

exemplifica bem essa situação no Brasil é o artigo 4º da Lei de Introdução ao Código

Civil, de 1942, onde diz: “Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo

com a analogia, os costumes e os princípios gerais do direito.”77

Por derradeiro, em meados do século XX, diante dos grandes momentos

constituintes daquela época, tendo como percussora a constituição alemã de 1949,

inaugura-se a fase do pós-positivismo, ocasião em que, enfim, os princípios passam

a ocupar os textos das constituições, “convertendo-se no pedestal normativo sobre o

qual assenta todo o edifício jurídico dos novos sistemas constitucionais.”78

Devido ao trabalho de expressivos juristas, como o do americano Dworkin e o

publicista alemão Alexy, é que a doutrina do pós-positivismo ganha assento, cuja

característica principal reside na normatividade dos princípios.

É com o pós-positivismo que tanto a doutrina do direito natural quanto a do

velho positivismo ortodoxo vêm abaixo, sofrendo duras críticas em cima de seus

postulados. As críticas consistem basicamente na incompatibilidade dessas

doutrinas com a normatividade dos princípios, assim como pela falta de

consideração axiológica e fundamentação do ordenamento jurídico.

Essa fase inaugura uma época em que os valores e os fundamentos do

ordenamento jurídico são buscados dentro do direito, por meio dos princípios, que,

por sua vez, consistem na principal fonte normativa das constituições, uma vez que

impregnam em si os fundamentos da ordem jurídica.

Por conseguinte, os princípios possuem a virtude de impor obrigações legais

da mesma forma que as regras, sendo que não é crível a interpretação de qualquer

regra em contraposição ao espírito do princípio que a inspira e anima.

Destarte, os princípios saem dos códigos em que possuíam a função de

colmatadores de lacunas e passam a integrar os textos constitucionais,

transformando-se, dessa forma, na principal fonte normativa da ordem jurídica.

Incrementa-se, nesse processo, a força normativa da constituição, bem como

reafirma o compromisso do direito em concretizar os valores predominantes na

sociedade e os direitos fundamentais do homem.

77

BRASIL. Decreto-Lei nº 4.707, 04 de setembro de 1942. Dispõe sobre a vigência da Lei de Introdução ao Código Civil 78

BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional, p. 264.

Page 37: Monografia - A normatividade dos princípios constitucionais frente à judicialização do acesso à saúde

27

Em relação aos direitos fundamentais, tendo a constituição ou tratados e

convenções internacionais disposto sobre eles, ainda que de forma indireta ou

programática, impõe-se a sua concretização, visto o caráter normativo dos princípios

constitucionais e sua envergadura como disposições fundamentais do sistema.

De modo que, a princípio, não subsistem as escusas por parte do Estado e

dos particulares em cumprir com os princípios constitucionais, sob as alegações de

que eles se constituem apenas em fins a serem perseguidos ou valores a inspirar a

mente do jurista. Isto significa que as políticas públicas estatais, bem como todo o

aparato social devem adaptar-se aos preceitos constitucionais e não o contrário, de

forma a otimizar a aplicação dos princípios fundamentais.

De igual maneira dispõe a nossa Constituição Federal de 198879, em seu

artigo 5º, §1º: “§1º. As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm

aplicação imediata.”80

Essa foi a trajetória percorrida pelos princípios jurídicos rumo à sua

normatividade. Em conclusão, Bonavides destaca que:

(...) A teoria dos princípios chega à presente fase do pós-positivismo com os seguintes resultados já consolidados: a passagem dos princípios da especulação metafísica e abstrata para o campo concreto e positivo do Direito, com baixíssimo teor de densidade normativa; a transição crucial da ordem jusprivatista (a sua antiga inserção nos Códigos) para a órbita juspublicística (seu ingresso nas Constituições); a suspensão da distinção clássica entre princípios e normas; o deslocamento dos princípios da esfera da jusfilosofia para o domínio da Ciência Jurídica; a proclamação de sua normatividade; a perda de seu caráter de normas programáticas; o reconhecimento definitivo de sua positividade e concretude por obra sobretudo das Constituições; a distinção entre regras e princípios, como espécies diversificadas do gênero norma, e, finalmente, por expressão máxima de todo esse desdobramento doutrinário, o mais significativo de seus efeitos: a total hegemonia e preeminência dos princípios.81

Mediante essa evolução de cunho histórico os princípios tornaram-se um dos

pilares para a compreensão e aplicação do direito.

79

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. 80

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. 81

BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional, p. 294.

Page 38: Monografia - A normatividade dos princípios constitucionais frente à judicialização do acesso à saúde

28

1.5. O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E O MÍNIMO

EXISTENCIAL

O conceito de dignidade da pessoa humana é um conceito em permanente

construção, haja vista as dificuldades encontradas na sua delimitação e significado.

Tem origem filosófica, e encontra muitas aplicações práticas na seara do direito, pois

que serve de vetor para a interpretação e efetivação dos direitos fundamentais.

Quem primeiramente tentou explorar o significado de dignidade foi Imanuel

Kant, no século XVIII, que partia do pressuposto de que o homem não pode ser

tratado como um objeto, como um meio para atingir determinado fim. Aduz que o

homem, racional por natureza e autônomo, deve ser um fim em si mesmo,

diferentemente dos animais ou objetos que possuem um preço equivalente.

Rocha bem expõe a doutrina de Kant a respeito da dignidade:

Para Kant, o grande filósofo da dignidade; a pessoa (o homem) é um fim, nunca um meio; como tal, sujeito de fins e que é um fim em si, deve tratar a si mesmo e ao outro. Aquele filósofo distinguiu no mundo o que tem um preço e o que tem uma dignidade. O preço é conferido àquilo que se pode aquilatar, avaliar até mesmo para sua substituição ou troca por outra de igual valor e cuidado; daí porque há uma relatividade deste elemento ou bem, uma vez que ele é meio de que se há valer para se obter uma finalidade definida. Sendo meio, pode ser rendido por outro de igual valor e forma, suprindo-se de idêntico modo a precisão a realizar o fim almejado.82

Em que pese sua formulação filosófica, a dignidade da pessoa humana só

ganhou positividade após a Segunda Guerra Mundial, ocasião em que a coisificação

do homem se mostrou mais evidente diante das atrocidades cometidas pelo regime

nazista.

Tendo sede na filosofia, o conceito de dignidade da pessoa humana ganhou foros de juridicidade positiva e impositiva como uma reação a práticas políticas nazi-fascistas desde a Segunda Guerra Mundial, tornando-se, agora, nos estertores do século XX, uma garantia contra as práticas econômicas identicamente nazi-fascistas, levadas a efeito a partir da propagação do capitalismo canibalista liberal globalizante sobre o qual se discursa e sobre o qual praticam atos governativos submissos ao mercado; um mercado que busca substituir o Estado de Direito pelo não Estado, ou, pelo menos, pelo

82

ROCHA, Carmem Lúcia – O princípio da dignidade da pessoa humana e a exclusão social. Artigo publicado na Revista do instituto brasileiro de direitos humanos, volume II, p. 48.

Page 39: Monografia - A normatividade dos princípios constitucionais frente à judicialização do acesso à saúde

29

Estado do não-Direito, que busca transformar o Estado Democrático dos direitos sociais em Estado autoritário sem direitos.83

Constata-se, dessa forma, que a dignidade da pessoa humana, nos dias

atuais, ainda conta com baixa eficácia, dessa vez oriunda de desigualdades sociais,

inefetiva atuação estatal e das práticas econômicas provindas do neoliberalismo

econômico.

Mediante a conversão de conceito filosófico a princípio jurídico, a dignidade

da pessoa humana tornou-se uma nova forma de o Direito considerar o homem e o

que dele, com ele e por ele se pode fazer numa sociedade política. Por força da

juridicização daquele conceito, o próprio direito foi repensado, reelaborado e

diversamente aplicadas foram suas normas, especialmente pelos Tribunais

constitucionais.84

O princípio da dignidade da pessoa humana, destarte, tem implicação em

todas as partes do direito onde se possa haver violação da dignidade humana,

como, por exemplo, nos direitos sociais, no direito penal, no direito civil etc.

Rocha retrata os efeitos da constitucionalização do princípio da dignidade da

pessoa humana:

A constitucionalização do princípio da dignidade da pessoa humana não retrata apenas uma modificação parcial dos textos fundamentais dos Estados contemporâneos. Antes, traduz-se ali um novo momento do conteúdo do direito, o qual tem sua vertente no valor supremo da pessoa humana, considerada em sua dignidade incontornável, inquestionável e impositiva, e uma nova concepção de Constituição, pois a partir do acolhimento daquele valor tornado princípio em seu sistema de normas fundamentais, mudou-se o modelo jurídico-constitucional que passa, então, de um paradigma de preceitos, antes vigentes, para um figurino normativo de princípios.85

Este princípio é posto, de maneira inédita, no texto do art. 1º, III, da

Constituição Federal de 1988, uma vez que os textos constitucionais anteriores não

contemplavam aquele princípio. É posto como fundamento do Estado Democrático

de Direito em que se constitui a República Federativa do Brasil.

83

ROCHA, Carmem Lúcia – O princípio da dignidade da pessoa humana e a exclusão social. Artigo publicado na Revista do instituto brasileiro de direitos humanos, volume II, p. 47. 84

ROCHA, Carmem Lúcia – O princípio da dignidade da pessoa humana e a exclusão social. Artigo publicado na Revista do instituto brasileiro de direitos humanos, volume II, p. 49. 85

ROCHA, Carmem Lúcia – O princípio da dignidade da pessoa humana e a exclusão social. Artigo publicado na Revista do instituto brasileiro de direitos humanos, volume II, p. 51.

Page 40: Monografia - A normatividade dos princípios constitucionais frente à judicialização do acesso à saúde

30

A expressão daquele princípio como fundamento do Estado do Brasil quer significar, pois, que esse existe para o homem, para assegurar condições políticas, sociais, econômicas e jurídicas que permita que ele atinja os seus fins; que o seu fim é o homem, como fim em si mesmo que é, quer dizer, como sujeito de dignidade, de razão digna e supremamente posta cima de todos os bens e coisas, inclusive do próprio Estado.86

Pois bem, as implicações disso decorrem que o Estado deve ser o principal

garantidor da dignidade da pessoa humana, principalmente diante de sua

configuração como Estado social. As políticas públicas, os tributos arrecadados, a

atuação de seus agentes públicos devem ter como fim o ser humano. O que vem

ocorrendo atualmente, em amplitude mundial, é o que o Estado vem favorecendo as

corporações econômicas em detrimento à pessoa humana, ou o que é pior – essas

corporações vêm influindo no modo de ser dos Estados para verem atendidos seus

próprios interesses.

O Estado somente é democrático, em sua concepção, constitucionalização e atuação, quando respeita o princípio da dignidade da pessoa humana. Não há verbo constitucional, não há verba governamental que se façam legítimos quando não se voltem ao atendimento daquele princípio. Não há verdade constitucional, não há suporte institucional para políticas públicas que não sejam destinadas ao pleno cumprimento daquele valor maior transformado em princípio constitucional.87

Talvez com o intuito de balizar o princípio da dignidade da pessoa humana,

para que ele não seja atribuído em excesso de modo a desequilibrar o Estado nem

seja atribuído ao mínimo de forma a violar o princípio, tenha surgido o conceito de

mínimo existencial.

As formulações em torno do mínimo existencial expressam que este

apresenta uma vertente garantista e uma vertente prestacional. A vertente garantista

impede agressão do direito, isto é, requer cedência de outros direitos ou deveres

(pagar impostos, por exemplo) para a garantia de meios que satisfaçam as mínimas

condições de vivência digna da pessoa ou da sua família. A feição prestacional tem

86

ROCHA, Carmem Lúcia – O princípio da dignidade da pessoa humana e a exclusão social. Artigo publicado na Revista do instituto brasileiro de direitos humanos, volume II, p. 52. 87

ROCHA, Carmem Lúcia – O princípio da dignidade da pessoa humana e a exclusão social. Artigo publicado na Revista do instituto brasileiro de direitos humanos, volume II, p. 54.

Page 41: Monografia - A normatividade dos princípios constitucionais frente à judicialização do acesso à saúde

31

caráter de direito social, exigível frente ao Estado. Deve-se equacionar esse mínimo

de forma a revelar a aptidão de se cumprir os desideratos do Estado Democrático de

Direito.

Outra questão referente ao mínimo existencial diz respeito a qual seriam os

direitos mínimos a serem providos para garantir a proteção da dignidade da pessoa

humana. Vencida essa questão, ainda cumpre perquirir e extensão desses direitos a

serem satisfeitos.

Essa discussão tem como pano de fundo a escassez dos recursos do Estado

ante as inúmeras necessidades humanas pendentes de satisfação.

A doutrina normalmente elenca como direitos essenciais ao mínimo

existencial o salário mínimo, a assistência social aos necessitados, a educação, a

previdência social e a saúde básica.

Neste ponto, a especificação do mínimo existencial da dignidade humana não

pode ser um conceito estático, devendo ser objeto de constante evolução conforme

as mudanças da própria sociedade. Porém, não deve ficar apenas na dependência

do que ocorre no seio da sociedade, razão por que a ação estatal deve se conformar

ao desenvolvimento social. Na dignidade da pessoa humana vale o princípio da

vedação do retrocesso social.

Page 42: Monografia - A normatividade dos princípios constitucionais frente à judicialização do acesso à saúde

Capítulo 2

ESTRUTURA DAS NORMAS JURÍDICAS

2.1. NOÇÕES INTRODUTÓRIAS

O presente capítulo ocupa-se da estrutura das normas jurídicas. Trata-se de

se desvendar a importância que o estudo das estruturas das normas jurídicas,

principalmente as constitucionais, tem para a correta interpretação e aplicação do

direito, de modo a assegurar a efetividade do ordenamento jurídico.

Nos estudos de direito constitucional a distinção entre princípios e regras

adquiriu grande relevo doutrinário, sobretudo diante das peculiaridades que

envolvem as normas constitucionais, haja vista serem elas os pilares do

ordenamento jurídico, razão pela qual as normas infraconstitucionais devem guardar

conformidade com o estatuído constitucionalmente. Dessa forma, torna-se claro que

essas normas desempenham funções diferentes, por isso são aplicadas de

maneiras diversas, o que permite indagar sobre a sua estrutura.

Rufino bem delimita a problemática que envolve a distinção entre regras e

princípios:

As distinções entre regras e princípios e entre normas e valores constituem um dos pilares do constitucionalismo e, dessa forma, são pressuposto para entender por que, sob o pálio do Estado constitucional, a idéia de subsunção abre espaço para a de ponderação; a independência da lei cede lugar à onipresença da Constituição e, enfim, a autonomia do legislador democrático é confrontada com a onipotência dos Tribunais Constitucionais.88

Conforme abordado no capítulo anterior, são recentes os estudos que

envolvem os princípios jurídicos, marcados pela ruptura do positivismo jurídico e do

liberalismo, assim como pelo advento do Estado constitucional amplo garantidor de

direitos de várias dimensões, que marca o nascimento de um Estado do bem-estar

social. Em qualquer doutrina de direito constitucional encontram-se conceitos de

princípios e distinção entre princípios e regras, porém, não raras vezes, repleta de

88

RUFINO, André do Vale. Estrutura das normas de direitos fundamentais – repensando a distinção entre regras, princípios e valores, p. 4.

Page 43: Monografia - A normatividade dos princípios constitucionais frente à judicialização do acesso à saúde

33

equívocos, o que bota em risco a própria efetividade do ordenamento jurídico, bem

como a apreciações subjetivas dos operadores do direito.

Ávila ressalta esse fenômeno que vem ocorrendo em relação ao estudo dos princípios:

Hoje, mais do que ontem, importa construir o sentido e delimitar a função daquelas normas que, sobre prescreverem fins a serem atingidos, servem de fundamento para a aplicação do ordenamento constitucional – os princípios jurídicos. É até mesmo plausível afirmar que a doutrina constitucional vive, hoje, a euforia do que se convencionou chamar de Estado Principiológico. Importa ressaltar, no entanto, que notáveis exceções confirmam a regra de que a euforia do novo terminou por acarretar alguns exageros e problemas teóricos que têm inibido a própria efetividade do ordenamento jurídico. Trata-se, em especial e paradoxalmente, da efetividade de elementos chamados de fundamentais – os princípios jurídicos. Nesse quadro, algumas questões causam perplexidade.89

Como se vê, a maioria dos estudos que tratam das espécies normativas

carecem de maior aprofundamento, tendo em consideração a relevância do

problema em questão, fundamental para a interpretação e aplicação do direito. A má

apreciação dos princípios leva a conseqüências graves, como a inefetividade dos

direitos ditos fundamentais e também a um retrocesso do direito.

Sobre a banalização da distinção entre princípios e regras, Ávila expõe que:

A distinção entre princípios e regras virou moda. Os trabalhos de direito público tratam da distinção, com raras exceções, como se ela, de tão óbvia, dispensasse maiores aprofundamentos. A separação entre as espécies normativas como que ganha foros de unanimidade. E a unanimidade termina por semear não mais o conhecimento crítico das espécies normativas, mas a crença de que elas são dessa maneira, e pronto.90

Outro motivo que torna imperiosa a análise das estruturas das normas

jurídicas é o que diz respeito às normas de direitos fundamentais. Observa-se que

tais normas possuem um alto grau de indeterminação, o que é contraditório com a

máxima importância dessas normas. Normalmente, as normas infraconstituionais

são determinadas e precisas, de fácil visualização, ao contrário das normas

89

ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios – da definição à aplicação dos princípios jurídicos, p. 23. 90

ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios – da definição à aplicação dos princípios jurídicos, p. 26.

Page 44: Monografia - A normatividade dos princípios constitucionais frente à judicialização do acesso à saúde

34

constitucionais fundamentais que pecam com seu excesso de generalização,

dependentes, muitas vezes de ponderações e exclusões.

Assim, não é muito difícil que normas inconstitucionais, que afrontam os

direitos fundamentais, máxime aqueles do art. 5º da CRFB/88, se sobreponham aos

direito fundamentais, sendo, aliás, muito comum em nosso país essa situação.

Dessa forma, Rufino discorre que:

As cláusulas pétreas que protegem os direitos fundamentais são, contraditoriamente, normas vagas, gerais, imprecisas, axiológicas e, além disso, derrotáveis (defeasible), que abrem amplas margens à discricionariedade judicial, ficando também vulneráveis aos cálculos utilitaristas do Estado.91

Completa o citado autor dizendo que “talvez seja possível afirmar que a

garantia dos direitos fundamentais é uma questão de princípio, porém ao mesmo

tempo imprópria de princípios.”92

Essas constatações colocam em dúvida, de certa forma, a eficácia dos

princípios na proteção dos direitos garantidos pela constituição, bem como a sua

prevalência em detrimento das regras.

A doutrina e jurisprudência, em geral, também costumam fazer confusão a

respeito dos conceitos de princípios e valores. De efeito, as normas constitucionais

são impregnadas de valores, na medida em que a constituição alberga os principais

valores aceitos na sociedade. Isso acrescenta uma dificuldade extra na

determinação das normas constitucionais.

O paradoxo ganha contornos claros quando traduzido na tensão figurante

entre o aspecto estrutural-normativo e o aspecto político dos direitos constitucionais.

Considerando a estrutura deficiente e a forte carga axiológica das normas

fundamentais do Estado, tem-se que fatores vários penetram na seara da

argumentação jurídica, envolvendo muitas vezes a moral no jurídico, emprestando à

atividade judicial um caráter inevitavelmente criador. As conseqüências disso quem

lembra é Rufino:

91

RUFINO, André do Vale. Estrutura das normas de direitos fundamentais – repensando a distinção entre regras, princípios e valores, p. 1. 92

RUFINO, André do Vale. Estrutura das normas de direitos fundamentais – repensando a distinção entre regras, princípios e valores, p. 1.

Page 45: Monografia - A normatividade dos princípios constitucionais frente à judicialização do acesso à saúde

35

Nesse contexto, a aparente invasão do direito por técnicas próprias da argumentação moral – cujo melhor exemplo se encontra na ponderação de bens e valores – e o conseqüente desequilíbrio causado na configuração institucional dos Poderes no Estado Constitucional tornam-se alvos fáceis dos críticos que enxergam em tal realidade um risco incalculável para a democracia e para a proteção dos direitos individuais.93

Nesse sentido, interessante a posição dos postulados normativos, que se

situam num plano de metanormas jurídicas, e que orientam os métodos de aplicação

do direito.

O estudo das estruturas das normas jurídicas adquire assento na medida em

que:

A solução contra o possível risco de desproteção dos direitos não esteja na defesa de uma estrita concepção deontológica dos direitos, mas na determinação de diferentes comportamentos das normas de direitos fundamentais no processo de interpretação/aplicação. Dessa forma, a flexibilidade e a complexidade das normas podem propiciar uma ampla proteção dos direitos.94

Ao tempo que os princípios surgiram como medida para garantir a efetividade

dos direitos fundamentais estabelecidos na constituição, a taxação de uma norma

como “princípio” ou seu desmesurado uso pode redundar na inefetividade dos

direitos.

O objetivo do presente capítulo é analisar todos os elementos que envolvem a

estrutura das normas jurídicas para, ao final, demonstrar a flexibilidade das normas

constitucionais, ora podendo configurar-se de determinada forma, ora sob outra.

Porém, antes convém efetuar a definição de norma jurídica, para maior

compreensão do assunto.

2.2. DEFINIÇÃO DE NORMA JURÍDICA

Norma jurídica é o meio pelo qual o direito encontra a sua maior

manifestação. O direito não se resume às normas jurídicas formais, mas sem dúvida

ela se qualifica como um elemento jurídico essencial.

93

RUFINO, André do Vale. Estrutura das normas de direitos fundamentais – repensando a distinção entre regras, princípios e valores, p. 3. 94

RUFINO, André do Vale. Estrutura das normas de direitos fundamentais – repensando a distinção entre regras, princípios e valores, p. 8.

Page 46: Monografia - A normatividade dos princípios constitucionais frente à judicialização do acesso à saúde

36

Para Reale norma jurídica é “uma estrutura proposicional enunciativa de uma

forma de organização ou de conduta, que deve ser seguida de maneira objetiva e

obrigatória.”95

Já Canotilho qualifica norma jurídica como “regra jurídica definidora de um

padrão de comportamento ou criadora de esquemas jurídicos para a solução de

conflitos.”96

Mediante essas definições infere-se que a norma jurídica tem um conteúdo

obrigatório.

Sua estrutura é proposicional, pois “seu conteúdo pode ser enunciado

mediante uma ou mais proposições entre si correlacionadas, sendo certo que o

significado pleno de uma regra jurídica só é dado pela integração lógico-

complementar das proposições que nela se contêm.”97

Pode-se afirmar que a norma enuncia formas de organizações ou padrões de

conduta porque se destina a regular as relações humanas dentro da sociedade.

Por fim, cumpre afirmar que a norma jurídica enuncia um dever ser, isso

tendo em vista que nenhuma norma prescreve algo que é, porém algo como deve

ser, considerando a consecução de determinados fins. Para garantir o cumprimento

desses “dever ser” existem as sanções – penalidades que afligem o infrator da

norma jurídica.

A essa altura cabe fazer a distinção entre texto e norma. Sabe-se muito bem

que dentro de uma lei existem diversas normas, ou mesmo dentro de um artigo de

lei ou até de um parágrafo. A norma jurídica não decorre da lei, mas sim da

construção de seu significado; assim, só se pode falar de norma jurídica a partir de

seu significado, a lei constitui-se no objeto da norma. A construção desses

significados se dá por meio da interpretação.

Há normas, no entanto, que nem mesmo decorrem de disposições de lei, mas

de razões outras importantes para a ciência do direito, como exemplo a segurança

jurídica.

Ávila diz o que é norma:

Normas não são textos nem o conjunto deles, mas os sentidos construídos a partir da interpretação sistemática de textos

95

REALE, Miguel. Lições preliminares de direito, p. 95. 96

CANOTILHO, Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição, p. 1.107. 97

REALE, Miguel. Lições preliminares de direito, p. 95.

Page 47: Monografia - A normatividade dos princípios constitucionais frente à judicialização do acesso à saúde

37

normativos. Daí se afirmar que os dispositivos se constituem no objeto da interpretação; e as normas, no seu resultado.98

Desta feita, constata-se que o dispositivo é o ponto de partida da

interpretação, que culmina diante do caso concreto, onde o seu sentido é

derradeiramente construído. É na presença do caso concreto que uma norma

encontra seu verdadeiro significado.

2.3. ESTRUTURA DAS NORMAS JURÍDICAS

A doutrina comumente tem apontado como tipos estruturais das normas

jurídicas as regras e os princípios. A construção doutrinária de Humberto Ávila

também leva em conta os postulados normativos.

Neste momento, convém ressaltar que a identificação estrutural de uma

norma jurídica surge pelo processo de interpretação, porque é neste processo que

se fixam os reais ou supostos significados da norma, revelando-a.

Rufino, discorrendo a respeito da teoria da interpretação, aponta a existência

de três tipos: a teoria cognitiva, onde a interpretação é uma limitada atividade de

conhecimento do significado objetivo das disposições normativas (textos) e da

intenção subjetivas de seus autores; a teoria cética, onde o trabalho interpretativo se

constitui não como uma atividade de conhecimento, mas de valoração e decisão, em

que se pressupõe a inexistência de algo como o significado próprio e intrínseco dos

textos normativos, podendo os textos serem compreendidos de diversos modos,

segundo as concepções do interprete; a teoria intermediária busca uma conciliação

entre os dois tipos citados, sustentando que a interpretação pode ser, às vezes, uma

atividade de conhecimento e, outras vezes, uma atividade de decisão discricionária,

o que depende da dificuldade dos textos a serem interpretados, havendo o que se

chama de uma zona de certeza e uma zona de penumbra.99

Por conseguinte, somente na interpretação, com base nas conclusões

extraídas deste processo, é que se pode afirmar que uma norma é uma regra ou

princípio.

98

ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios – da definição à aplicação dos princípios jurídicos, p. 30. 99

RUFINO, André do Vale. Estrutura das normas de direitos fundamentais – repensando a distinção entre regras e princípios, p. 18-20.

Page 48: Monografia - A normatividade dos princípios constitucionais frente à judicialização do acesso à saúde

38

Fixadas estas premissas, conveniente partir agora para a distinção dessas

estruturas das normas jurídicas.

2.3.1. Sobre a distinção entre regras e princípios

Os antecedentes históricos que remontam a distinção entre princípios e

regras começam por Josef Esser100 que em um primeiro momento faz a distinção

entre princípio e norma.

Seu estudo surgiu diante de uma série de decisões judiciais anglo-americanas

e europeias que faziam menção aos conceitos de princípios do direito, idéias

diretrizes e pensamentos jurídicos gerais. Neste sentido, o autor fazia críticas ao

positivismo por considerar incompatível a motivação de decisões judiciais com base

nos princípios com a ideia de sistematização do direito concebida pelo positivismo.

Rebatia também a concepção de um direito natural estático, ignorando a importância

dos princípios na atividade criadora da jurisprudência.

Para o autor, o campo de ação dos princípios deveria ser em meio à

jurisprudência, aproximando-o da escola sociológica e do realismo norte americano.

Em suas palavras: “princípios do direito não são elementos estáticos de uma construção escolástica cerrada, senão topoi, pontos de vista postos à escolha discricionária da jurisprudência, base autorizada e legal da argumentação. (...) um princípio jurídico não é um preceito jurídico, nem uma norma jurídica em sentido técnico, porquanto não contém nenhuma instrução vinculante de tipo imediato para um determinado campo de questões (...). Os princípios jurídicos são conteúdo em oposição à forma”.101

Desta forma, Esser sustenta que os princípios eram conteúdo valorativo a ser

captado pela jurisprudência, a fonte a inspirá-la, não lhe atribuindo destaque além do

meramente argumentativo.

Karl Larenz102, inspirado pela teoria de Esser, considera a existência de

princípios que subjazem a uma determinada regulação jurídica e que são aplicados

pela jurisprudência, ainda que com freqüência sejam desconhecidos ou estejam

ocultos sob uma fundamentação obscura. Em sua definição, os princípios

100

ESSER, Josef. Princípio e norma na elaboração jurisprudencial do direito privado. 101

RUFINO, André do Vale. Estrutura das normas de direitos fundamentais – repensando a distinção entre regras e princípios, p. 46-47. 102

LARENZ, Karl. Direito justo, fundamentos da ética jurídica.

Page 49: Monografia - A normatividade dos princípios constitucionais frente à judicialização do acesso à saúde

39

constituem “pensamentos diretores e causas de justificação de uma regulação

jurídica (possível ou efetivamente vigente).”103

Sua referência ao direito justo advém do fato de que os princípios devem

orientar a regulação jurídica na direção do justo e, nesse sentido, constituem a

representação jurídico-positiva dos princípios do Direito Justo.104

O enfoque dado por Larenz na concretização dos princípios é o mesmo dado

por Esser, pelo motivo de que os dois autores consideram que os princípios não

podem ser extraídos da ordem positiva, sendo que o momento próprio de revelá-los

seria apenas no momento da aplicação.

Rufino bem apresenta o ponto comum das teorias dos autores supracitados:

Nestes termos, as teorias de Esser e Larenz encontram-se num ponto comum: a consideração da existência de princípios que não fazem parte do ordenamento e que também não são dedutíveis de um direito natural, mas mesmo assim podem ser positivados e entrar em processo de concretização, seja por meio de regulação ou aplicação prática. A principal função desses princípios é auxiliar na descoberta da decisão justa para o caso concreto.105

Roscoe Pound106 foi outro autor que procurou proceder à distinção entre

princípios e regras, servindo suas teses como um prefácio do pensamento do jurista

norte-americano Ronald Dworkin, principalmente no que se refere às críticas ao

modelo estrito de regras do positivismo.

De acordo com o ideário desse jurista, “o direito seria formado por regras em

sentido estrito, princípios, preceitos que definem concepções e preceitos que

prescrevem critérios (standards).”107

Assim, as regras em sentido estrito “são preceitos que atribuem uma

conseqüência jurídica definida e detalhada a uma situação de fato ou a um estado

de coisas (state of facts) igualmente definido e detalhado.”108

103

RUFINO, André do Vale. Estrutura das normas de direitos fundamentais – repensando a distinção entre regras e princípios, p. 50. 104

RUFINO, André do Vale. Estrutura das normas de direitos fundamentais – repensando a distinção entre regras e princípios, p. 52. 105

RUFINO, André do Vale. Estrutura das normas de direitos fundamentais – repensando a distinção entre regras e princípios, p. 55 106

POUND, ROSCOE. Minha filosofia do direito. 107

RUFINO, André do Vale. Estrutura das normas de direitos fundamentais – repensando a distinção entre regras e princípios, p. 59 108

RUFINO, André do Vale. Estrutura das normas de direitos fundamentais – repensando a distinção entre regras e princípios, p. 59.

Page 50: Monografia - A normatividade dos princípios constitucionais frente à judicialização do acesso à saúde

40

Por outro lado, os princípios são úteis para: servir de ponto de partida para o

raciocínio e fundamentação jurídica, caracterizando-se por não atribuir nenhuma

conseqüência definida e detalhada a um estado de coisas ou situação de fato; não

tendo a regra contemplado uma solução para um caso específico, os princípios

proporcionam a base para o raciocínio e fundamentação jurídica, indicando a

solução a ser tomada; atuar como fonte de reconciliação no caso de conflito entre

regras, fornecendo os meios de sua interpretação.109

Enfim, ultrapassados os antecedentes históricos e menos abordados sobre a

distinção entre princípios e regras, Ronald Dworkin110 e Robert Alexy111 foram os

autores que então disseminaram o estudo sobre os princípios como umas das

estruturas normativas em oposição às regras.

Suas teses se basearam na distinção forte entre princípios e regras, que será

abordada logo a seguir.

2.3.2. Distinção forte ou qualitativa

A distinção forte ou qualitativa entre regras e princípios adota o ponto de vista

as normas jurídicas são regras ou princípios, não havendo qualquer tipo de confusão

em relação a isso.

O marco da distinção forte se deu inicialmente com os estudos de Ronald

Dworkin, em 1967. Seu objetivo inicial era proceder a “um ataque geral ao

positivismo”. O autor estabelece uma distinção entre regras e princípios baseada na

orientação diferenciada que cada norma fornece para as decisões jurídicas. Como

se vê, até em virtude do commom law, o estudo de Dworkin se baseia muito no

direito judiciário.

No modelo de Dworkin, as regras são aplicadas de maneira disjuntiva. Isto

significa que as regras serão aplicadas da maneira do “tudo ou nada”, ou seja, elas

serão aplicadas a determinado caso ou serão inválidas.

As regras são aplicadas á maneira do tudo-ou-nada. Dados os fatos que uma regra estipula, ou ela é válida, e neste caso a resposta que

109

RUFINO, André do Vale. Estrutura das normas de direitos fundamentais – repensando a distinção entre regras e princípios, p. 59-60. 110

DWORKIN, Ronald. O modelo das regras e Levando os direitos a sério. 111

ALEXY, Robert. Sobre o conceito de princípios jurídicos. Teoria dos direitos fundamentais.

Page 51: Monografia - A normatividade dos princípios constitucionais frente à judicialização do acesso à saúde

41

ela fornece deve ser aceita, ou não é válida, e neste caso em nada contribui para a decisão.112

De outro norte, os princípios possuem a “dimensão de peso ou importância”.

Quando dois princípios entram em conflito, deve-se levar em consideração a força

relativa de cada um. Assim, um deles não será levado em conta, o que não significa

sua exclusão do ordenamento jurídico. O intérprete deve questionar que peso ele

tem ou quão importante ele é.113

A teoria dos princípios de Robert Alexy é fundada nos estudos de Dworkin,

porém procura apontar suas falhas e imperfeições. Sua crítica principal reside na

alegação de que os critérios de distinção utilizados pelo jurista norte americano não

atingem o núcleo de diferenciação entre princípios e regras, à medida que não

justifica por que os princípios entram em colisão.

Assim, a teoria de Alexy é composta por três teses fundamentais: a) a tese da

otimização; b) a lei da colisão e c) a lei da ponderação.114

A tese de otimização de Alexy proclama que os princípios se caracterizam

como normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível, de

acordo com as possibilidades fáticas e jurídicas existentes. Isso significa que o

cumprimento dos princípios, diferente do das regras, pode se dar em diferentes

graus e não depende só das circunstâncias fáticas, mas também das jurídicas.115

As regras se conformam à teoria do tudo-ou-nada proposta por Dworkin, se

comportando como mandatos definitivos. Desta forma, a lógica da distinção entre

regras e princípios de Alexy se amolda aos termos dos mandatos definitivos e dos

mandatos de otimização.

A lei da colisão procura estabelecer maneira de resolução dos conflitos

pertinentes a duas regras e a dois princípios. Nesse ponto, a lei não diverge daquilo

proposto por Dworkin. No conflito entre duas regras, uma terá que ser declarada

inválida enquanto a outra prevalecerá, resolvendo-se no plano da validez; no conflito

entre princípios, um deles deve ceder ante o outro, não significando isso que o

112

DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério, p. 39. 113

DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério, p. 42-43. 114

CACHICHI, Rogério Cangussu Dantas. A distinção entre princípios e regras como espécies de normas na obra Teoria dos direitos fundamentais de Robert Alexy, p. 6. Disponível em: <www2.uel.br/revistas/direitopub/pdfs/VOLUME_4/num_2>. 115

CACHICHI, Rogério Cangussu Dantas. A distinção entre princípios e regras como espécies de

normas na obra Teoria dos direitos fundamentais de Robert Alexy, p. 6. Disponível no sítio <www2.uel.br/revistas/direitopub/pdfs/VOLUME_4/num_2>.

Page 52: Monografia - A normatividade dos princípios constitucionais frente à judicialização do acesso à saúde

42

princípio preterido deverá ser declarado inválido, a prevalência de um princípio sobre

o outro leva em conta as circunstâncias de cada caso, estabelecendo-se entre os

princípios uma relação de precedência condicionada.116

A lei da ponderação surge da conexão entre a teoria dos princípios e o

princípio da proporcionalidade, nos seguintes termos:

“A teoria dos princípios implica o princípio da proporcionalidade e este implica aquela”. Isso significa que o princípio da proporcionalidade e seus três subprincípios – adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito (ponderação propriamente dita) – decorrem logicamente da teoria dos princípios.117

Alexy formula a lei da ponderação da seguinte forma: “Quanto maior é o grau

de não-satisfação de um princípio, tanto maior deve ser a importância da satisfação

do outro.”118 Significa dizer que um princípio só poderá não ser satisfeito em sua

máxima medida enquanto o outro princípio sendo satisfeito em determinado grau.

Ainda sobre as origens históricas da distinção entre princípios e regras,

cumpre destacar suas consequências no Direito. Quem se lembra disso é Rufino:

A distinção entre princípios e regras elaborada por Dworkin e refutada posteriormente por Alexy consolidou a ideia que já vinha sendo construída desde Pound no contexto norte-americano e Esser na realidade européia: a de que o direito não é constituído apenas por regras, mas por princípios, normas que abrem caminho para a entrada dos valores no direito – como defendido por Radbruch – em oposição às teses positivistas. A ideia de princípio como norma, e não mais apenas como mero valor despido de caráter deontológico, e a consideração do papel exercido por essas normas no sistema e na argumentação jurídica, adentrou o debate filosófico-jurídico com tamanha força que fez despertar um novo paradigma, chamado de pós-positivismo.119

116

CACHICHI, Rogério Cangussu Dantas. A distinção entre princípios e regras como espécies de normas na obra Teoria dos direitos fundamentais de Robert Alexy, p. 6. Disponível em: <www2.uel.br/revistas/direitopub/pdfs/VOLUME_4/num_2>. 117

RUFINO, André do Vale. Estrutura das normas de direitos fundamentais – repensando a distinção entre regras e princípios, p. 70. 118

ALEXY, ROBERT. Teoria dos direitos fundamentais, p. 298. 119

RUFINO, André do Vale. Estrutura das normas de direitos fundamentais – repensando a distinção entre regras e princípios, p. 71-72.

Page 53: Monografia - A normatividade dos princípios constitucionais frente à judicialização do acesso à saúde

43

Além destes autores citados, Manuel Atienza e Ruiz Manero120 também se

destacam na formulação de uma distinção forte entre regras e princípios. A teoria

deles se baseiam nas distinções estrutural e funcional destas espécies normativas.

Assim, na abordagem destes autores, existem os princípios em sentido

estrito, as diretrizes e as regras. Os princípios em sentido estrito e as regras se

diferenciam porque os primeiros são normas que expressam os valores superiores

de um ordenamento jurídico, enquanto as diretrizes são normas programáticas que

estabelecem objetivos a serem realizados.121

O enfoque estrutural é formulado segundo um esquema condicional, onde

tanto as regras como os princípios correlacionam casos com a qualificação

normativa de uma determinada conduta. A principal diferença entre regras e

princípios sob o prisma estrutural está em que os princípios configuram o caso de

forma aberta, e as regras o fazem de forma fechada.

Já a diferença entre os princípios em sentido estrito e as diretrizes situa-se no

cumprimento pleno daqueles e no cumprimento gradual destas.

Nesta seara, Rufino resumiu as diferenças estruturais das espécies

normativas de Atienza e Manero:

A distinção estrutural entre regras e princípios – e dentro destes, entre princípios em sentido estrito e diretrizes ou normas programáticas – pode ser resumida da seguinte maneira: a) as regras configuram de forma fechada tanto o suporte fático como a conduta qualificada deonticamente; b) os princípios em sentido estrito configuram de forma aberta o suporte fático e de forma fechada a conduta qualificada deonticamente; c) as diretrizes ou normas programáticas estabelecem de forma aberta tanto o suporte fático como a conduta qualificada deonticamente.122

O enfoque funcional da distinção entre princípios e regras parte do

pressuposto de que esses dois tipos de normas funcionam como razões para ação.

Dessa forma, as regras são razões para ação peremptórias. Isto significa que,

uma vez preenchidas as condições de aplicação de uma regra, elas devem

120

ATIENZA E MANERO. Sobre princípios e regras. 121

RUFINO, André do Vale. Estrutura das normas de direitos fundamentais – repensando a distinção entre regras e princípios, p. 72-73. 122

RUFINO, André do Vale. Estrutura das normas de direitos fundamentais – repensando a distinção entre regras e princípios, p. 76.

Page 54: Monografia - A normatividade dos princípios constitucionais frente à judicialização do acesso à saúde

44

obrigatoriamente ser observadas (razões de primeira ordem), excluindo seu próprio

juízo acerca das razões a serem aplicadas ao caso (razões de segunda ordem).123

Os princípios em sentido estrito geram razões de correção, as quais operam

como razões últimas na deliberação do destinatário. Quer dizer que, quando um

princípio prevalece sobre outro, ele atua como uma regra de ação, de modo que não

cabe ao destinatário da norma a ponderação entre meios e fins em razão de

interesses opostos protegidos por outros princípios.124

As diretrizes fornecem razões para ação de tipo utilitário, uma vez que

ordenando a consecução de um fim, o destinatário da norma deve realizar a

ponderação entre os meios mais eficazes para a realização desse fim, levando em

conta os interesses opostos protegidos por outras diretrizes que possam vir a ser

afetados.125

Estes foram, portanto, os principais aparatos doutrinários que sustentaram a

distinção forte ou qualitativa entre princípios e regras.

2.3.3. Tese da conformidade ou distinção fraca

A tese da conformidade ou distinção fraca entre regras e princípios surgiu de

duras críticas à tese da demarcação forte capitaneada por Dworkin e Alexy. De

acordo com essa doutrina, a distinção forte mostra-se insustentável a partir do

momento em que certas propriedades normativas podem ser encontradas em

ambos os tipos de normas, o que revela uma fundada dúvida sobre a real

possibilidade de se separar e catalogar as normas entre regras, por um lado, e

princípios, por outro.126

A tarefa de distinguir as regras dos princípios encontra um obstáculo difícil de ser superado: a constatação de que certas características estruturais e funcionais supostamente exclusivas das regras podem ser achadas nos princípios e determinadas propriedades normativas

123

RUFINO, André do Vale. Estrutura das normas de direitos fundamentais – repensando a distinção entre regras e princípios, p. 78. 124

RUFINO, André do Vale. Estrutura das normas de direitos fundamentais – repensando a distinção entre regras e princípios, p. 79. 125

RUFINO, André do Vale. Estrutura das normas de direitos fundamentais – repensando a distinção entre regras e princípios, p. 78. 126

RUFINO, André do Vale. Estrutura das normas de direitos fundamentais – repensando a distinção entre regras e princípios, p. 90.

Page 55: Monografia - A normatividade dos princípios constitucionais frente à judicialização do acesso à saúde

45

supostamente encontradas apenas nos princípios podem ser também atribuídas às regras.127

Os principais expoentes da tese da conformidade, opositora da distinção forte

entre regras e princípios, que na verdade sugerem não haver diferenças estruturais

de normas jurídicas, são Aulis Aarnio128 e Klaus Gunther129.

Aarnio considera que a tentativa de distinguir regras e princípios falha em

quatro níveis de análise: a) o nível da formulação lingüística da norma; b) o nível da

estrutura da norma; c) o nível de validez da norma; d) o nível da posição das normas

na argumentação jurídica.

Em relação à formulação linguística da norma, Aarnio afirma que, do ponto de

vista lingüístico, não há qualquer diferença entre regras e princípios.130 Isto pode ser

observado uma vez que tanto as regras podem ser formuladas de forma vaga,

imprecisa ou genérica, como os princípios podem indicar determinações precisas.

Neste ponto, entre regras e princípios existe uma escala intermediária que

pode dividir-se em quatro partes, que indicam uma escala de graduação que vai das

regras aos princípios: 1) as regras propriamente ditas (R); 2) as regras que são ou

atuam como princípios (RP); 3) os princípios que são ou atuam como regras (PR); 4)

os princípios propriamente ditos.131

No nível de estrutura das normas, não existem diferenças marcantes entre

regras e princípios. O autor sustenta que o caráter deontológico de regras e

princípios é similar. Para isso, valeu-se da formulação de Alexy referente à sua

consideração dos princípios como mandatos de otimização.

Explica que mandato não é um princípio, mas uma regra, que deve ser

seguida ou não; que um mandato não pode ser cumprido de forma gradual, ou se

otimiza ou não se otimiza. Havendo colisão entre dois princípios, ambos somente

podem ser harmonizados de maneira ótima.132

127

RUFINO, André do Vale. Estrutura das normas de direitos fundamentais – repensando a distinção entre regras e princípios, p. 90. 128

AARNIO, Aulis. Las reglas en serio. 129

GUNTHER, Klaus. Teoria da argumentação no direito e na moral. 130

RUFINO, André do Vale. Estrutura das normas de direitos fundamentais – repensando a distinção entre regras e princípios, p. 83. 131

RUFINO, André do Vale. Estrutura das normas de direitos fundamentais – repensando a distinção entre regras e princípios, p. 83. 132

RUFINO, André do Vale. Estrutura das normas de direitos fundamentais – repensando a distinção entre regras e princípios, p. 84

Page 56: Monografia - A normatividade dos princípios constitucionais frente à judicialização do acesso à saúde

46

Quanto ao nível de validez da norma, observa-se não haver diferença entre

regras e princípios em relação à forma que eles estão em vigor no ordenamento

jurídico.

No plano formal de validez, não existe diferença entre as normas, pois todas

são válidas igualmente, possuindo seu fundamento de validade numa mesma regra

de reconhecimento. No plano material de validez, tanto as regras como os princípios

podem ceder diante de outras regras e princípios opostos, sem que tenham de ser

declarados inválidos. “A validez material tanto de regras como de princípios sempre

dependerá da interpretação que leve em conta todos os fatores determinantes do

caso. Só se pode falar de valides material das normas uma vez interpretadas.”133

Sobre o nível de posição das normas na argumentação jurídica, Aarnio

encara as regras e os princípios como razões para justificar uma determinada

decisão.

Para ele, neste ponto também não se pode notar qualquer diferença na

distinção entre as estruturas normativas, sendo que regras e princípios cumprem

papel semelhante na argumentação, tendo em vista que os princípios que são ou

atuam como regras (PR) são razões definitivas e as regras que são ou atuam como

princípios (RP) são razões prima facie.134

Assim, com base nestas premissas, Aarnio conclui não haver qualquer

diferença entre princípios e regras.

Günter, a seu turno, sustenta que a distinção entre regras e princípios se

baseia numa “máxima de conversação”. Explica ele que a diferença consistiria no

tratamento da norma como regra ou como princípio. Destarte, num determinado

caso, a forma de aplicação de uma norma muito se assemelharia à regra, e noutro

caso, se assemelharia ao princípio.135

Deveras, a distinção forte entre princípios e regras não se configura como a

mais adequada para a teoria dos princípios, pois provoca duas inconsistências: uma

de ordem semântica e outra de ordem sintática.136

133

RUFINO, André do Vale. Estrutura das normas de direitos fundamentais – repensando a distinção entre regras e princípios, p. 85 134

RUFINO, André do Vale. Estrutura das normas de direitos fundamentais – repensando a distinção entre regras e princípios, p. 85. 135

RUFINO, André do Vale. Estrutura das normas de direitos fundamentais – repensando a distinção entre regras e princípios, p. 88 136

ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios – da definição à aplicação dos princípios jurídicos, p. 88.

Page 57: Monografia - A normatividade dos princípios constitucionais frente à judicialização do acesso à saúde

47

A inconsistência semântica ocorre diante da impropriedade da definição de

princípios tendo em vista o modo final de aplicação e no modo de solução de

antinomias. O modo final de aplicação das espécies normativas, se por ponderação

ou subsunção, não é adequado para diferenciá-las, uma vez que essas são

propriedades comuns a todas as normas jurídicas.137

A ponderação das regras pode ser tanto interna quanto externa: se interna,

seu conteúdo semântico é reconstruído na sua hipótese e finalidade que lhe é

subjacente e depende de um confronto entre várias razões em favor de alternativas

interpretativas; se externa, a ponderação ocorre nos casos em que duas regras,

abstratamente harmoniosas, entram em conflito diante do caso concreto sem que a

solução para o conflito envolva a decretação de invalidade de uma das regras.138

Quanto à solução de antinomias, insta ressaltar que o conflito entre regras

não se resolvem exclusivamente por este método, ocorrendo que não raras vezes

podem ser constatados conflitos de regras sendo resolvidos no âmbito da eficácia.

A inconsistência sintática é derivada da semântica e ocorre quando, por

exemplo, uma norma com características comumente atribuídas aos princípios

(ponderação, generalidade, dimensão de peso) é qualificada como regra ou o

inverso.

Um equívoco doutrinário largamente difundido consiste na afirmação de que

descumprir um princípio é mais grave do que descumprir uma regra. Ou melhor, o

descumprimento de normas com características normalmente atribuídas aos

princípios é mais gravoso do que o descumprimento de normas com características

atribuídas às regras. Essa assertiva é incorreta porque as regras têm uma pretensão

de decidibilidade que os princípios não têm: as regras têm a pretensão de oferecer

uma solução provisória para um conflito de interesses já conhecido ou antecipável

pelo Poder Judiciário ao passo que os princípios apenas oferecem razões

complementares para solucionar um conflito futuramente verificável. Instaurar-se-ia a

desordem caso as regras fossem descumpridas a todo tempo.139

Neste norte, outro ponto que produz indagações diz respeito, a saber, qual

norma deve prevalecer diante de um conflito entre regras e princípios de mesma

hierarquia (princípio constitucional contra uma regra constitucional, por exemplo).

137

ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios – da definição à aplicação dos princípios jurídicos, p. 88. 138

ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios – da definição à aplicação dos princípios jurídicos, p. 88. 139

ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios – da definição à aplicação dos princípios jurídicos, p. 90.

Page 58: Monografia - A normatividade dos princípios constitucionais frente à judicialização do acesso à saúde

48

Com remessa à concepção supracitada, dever-se-ia prevalecer a regra em face do

princípio de mesma hierarquia, porém é oportuno lembrar que sempre há as

chamadas exceções, bem como os casos de difícil elucidação.

Foi visto que a distinção forte entre princípios e regras surgiu de um ataque

ao positivismo, sendo capitaneada por Dworkin e Alexy. Porém, nos termos em que

foi formulada, essa distinção, ao criar modelos rígidos e igualmente fortes de regras

e princípios, acabou por gerar o efeito inverso, em que Rufino logrou em denominar

de “cavalo de Tróia” da distinção entre regras e princípios.

A descoberta dos princípios foi de incalculável importância para evolução do

direito e para a quebra de paradigmas, mas:

As teorias fortes, que tinham por objetivo primordial defender os princípios e o modelo de interpretação/aplicação que eles proporcionam, acabaram construindo um conceito de regra muito mais rígido e formalista do que o conceito positivista ao qual pretendiam combater.140

Não se olvide, porém, da utilidade desta distinção, não pelos moldes da

distinção forte ou pelo reducionismo da tese da conformidade, o que se leva à

formulação da chamada distinção dúctil entre regras e princípios.

2.3.4. Distinção dúctil

A distinção dúctil entre princípios e regras surge como reação à tese da

conformidade e da distinção forte, que não se mostram totalmente adequadas para

tratar do fenômeno normativo.

Dessa forma, tem-se que a tese da conformidade falha em três aspectos.

Primeiro, trata os enunciados normativos como tópicos cujo conteúdo proposicional

só pode ser definido diante de um caso concreto, caindo num realismo extremo,

visto que antes do processo de interpretação, existiria apenas um conjunto indefinido

de enunciados indiferenciados estruturalmente; segundo, não admite o fato pelo qual

uma norma que ofereça razões prima facie ou razões definitivas pode estar

vinculada, ainda que não necessariamente, à sua estrutura; por último, a tese da

conformidade não considera que uma norma, às vezes, não apresenta dúvida

140

RUFINO, André do Vale. Estrutura das normas de direitos fundamentais – repensando a distinção entre regras e princípios, p. 90.

Page 59: Monografia - A normatividade dos princípios constitucionais frente à judicialização do acesso à saúde

49

alguma quanto ao seu enunciado, não admitindo, assim, a existência de casos

fáceis e casos difíceis.141

Em que pese os equívocos da distinção forte e da tese da conformidade, não

se deve abandonar por completo a distinção entre princípios e regras, até porque o

assunto é da maior relevância no contexto de interpretação e aplicação das normas

constitucionais. Para elaborar uma distinção dúctil entre princípios e regras, alguns

fatores devem ser levados em conta, expostos a seguir.

A distinção dúctil, ao contrário das outras teorias, admite uma zona de

graduação entre princípios e regras. Dessa forma, admite-se a existência de uma

zona de penumbra, bem como uma zona de certeza semântica.

A tese da demarcação forte nega a existência da zona de penumbra,

enquanto que a tese da conformidade desconhece uma zona de certeza semântica.

A zona de penumbra e a zona de certeza podem ser representadas pela escala de graduação entre regras e princípios. A zona de certeza reside nos extremos dessa escala, onde figuram as regras (R), de um lado, e os princípios (P), de outro. A zona de penumbra está na etapa intermediária entre os dois extremos, que é formada pelas regras que são ou atuam como princípios (RP) e pelos princípios que são ou atuam como regras (PR).142

Na medida em que se reconhece a zona de certeza e da zona de penumbra,

não se pode negar relevância à distinção entre regras e princípios.

O vínculo dúctil (maleável, flexível) abrange também os aspectos estrutural e

funcional da distinção. “A distinção dúctil, apesar de focar-se primordialmente no

aspecto funcional da distinção, reconhece que certas funções desempenhadas pelas

normas estão vinculadas, ainda que de forma débil, à sua estrutura.”143

Seguindo os conceitos da zona de certeza e da zona de penumbra, pode-se

afirmar que nos casos em que a norma certamente é uma regra (R) ou um princípio

(P), ela encontra-se orientada, de forma débil, pela sua estrutura.

No aspecto funcional, a distinção adquire maior relevo, haja vista as inúmeras

possibilidades que a interpretação e aplicação de uma norma proporcionam.

141

RUFINO, André do Vale. Estrutura das normas de direitos fundamentais – repensando a distinção entre regras e princípios, p. 108-109. 142

RUFINO, André do Vale. Estrutura das normas de direitos fundamentais – repensando a distinção

entre regras e princípios, p. 112. 143

RUFINO, André do Vale. Estrutura das normas de direitos fundamentais – repensando a distinção entre regras e princípios, p. 113.

Page 60: Monografia - A normatividade dos princípios constitucionais frente à judicialização do acesso à saúde

50

Em todo caso, definir se uma norma constitui (deve ser aplicada como) uma regra ou um princípio é questão de interpretação, muitas vezes manipulada pelo intérprete com o intuito de atribuir à norma certos efeitos práticos (independentes de sua estrutura) que incentivarão mecanismos diferenciados de argumentação úteis para a solução do caso concreto.144

Para Luis Pietro Sanches145 regras e princípios não constituem duas classes

de normas, mas dois tipos de estratégias interpretativas. As idéias de dimensão de

peso, da aplicação tudo ou nada e dos mandatos de otimização não são

propriedades exclusivas de um tipo de normas, mas técnicas de interpretação

estimuladas, não necessariamente, pela estruturas de certas normas.146

A ideia de derrotabilidade das normas implica que ela está sujeita a exceções

(implícitas) que não podem ser exaustivamente identificadas previamente, não

sendo possível antecipar quais as circunstâncias que serão determinantes e

suficientes para a sua aplicação.147

Para a distinção dúctil, todas as normas, regras ou princípios são derrotáveis.

A tese da demarcação forte marca a ideia de que os princípios seriam derrotáveis e

as regras inderrotáveis.

No Estado constitucional, a ideia de Constituição “invasora” do ordenamento jurídico traduz-se no influxo constante entre todas as normas, tornando impraticável a tarefa de determinação exaustiva dos casos em que a norma será aplicada. A ilação que se retira disso é que toda a norma está sujeita a exceções em virtude de sua potencial colisão com outras normas jurídicas.148

Isto significa que o fato de uma norma ser dotada de uma determinada

estrutura não significa que ela deve ser aplicada de uma determinada forma. A

144

RUFINO, André do Vale. Estrutura das normas de direitos fundamentais – repensando a distinção entre regras e princípios, p. 115. 145

Sanches, Luis Pietro. Sobre princípios y normas. 146

RUFINO, André do Vale. Estrutura das normas de direitos fundamentais – repensando a distinção entre regras e princípios, p. 115. 147

RUFINO, André do Vale. Estrutura das normas de direitos fundamentais – repensando a distinção entre regras e princípios, p. 117. 148

RUFINO, André do Vale. Estrutura das normas de direitos fundamentais – repensando a distinção entre regras e princípios, p. 119.

Page 61: Monografia - A normatividade dos princípios constitucionais frente à judicialização do acesso à saúde

51

estrutura das normas estimulará, mas não determinará, o modo de interpretação e

aplicação.149

Enfim, constata-se que a distinção dúctil se preocupa mais com os princípios

do que com as regras, preocupando-se em esclarecer os fenômenos que decorrem

disso. Esse é o ponto chave da distinção – o que importa são os fenômenos que

decorrem das regras ou princípios, o que poderá induzir a um determinado tipo de

interpretação/aplicação, não taxação de uma norma como regra ou princípio.

Para a teoria da distinção dúctil, os princípios constituem um recurso ou técnica de argumentação que na linguagem jurídica possuem múltiplas funções e objetivos, cuja utilização pode vir a ser estimulada – mas não necessariamente – pelas características estruturais de um enunciado normativo. Diante dessa pluralidade de significados, pode-se dizer, com Pietro Sanchís, que “os princípios são um critério relacional ou comparativo”. Isso quer dizer que, a menos que se queira adotar um determinado tipo de argumentação, não tem muito sentido dizer que uma norma, isolada e abstratamente, constitui um princípio.150

Integrando a teoria da argumentação, os princípios jurídicos se tornam um

componente que dá maior mobilidade ao direito, rompendo paradigmas como o do

positivismo, instrumentando os aplicadores do direito a buscarem a realização de

justiça por meio da ordem jurídica.

Não é por acaso que a maioria das normas de direitos fundamentais são

qualificadas como princípios, mas é preciso ter a compreensão correta deste

fenômeno jurídico, para que sua utilização não venha a legitimar a injustiça.

2.4. POSTULADOS NORMATIVOS

Postulado, sinônimo de „axioma‟, pode ser entendido como “premissa

imediatamente evidente que se admite como universalmente verdadeira sem

exigência de demonstração.”151

149

RUFINO, André do Vale. Estrutura das normas de direitos fundamentais – repensando a distinção entre regras e princípios, p. 119. 150

RUFINO, André do Vale. Estrutura das normas de direitos fundamentais – repensando a distinção entre regras e princípios, p. 122. 151

HOLANDA FERREIRA, Aurélio Buarque de. Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa, p. 209.

Page 62: Monografia - A normatividade dos princípios constitucionais frente à judicialização do acesso à saúde

52

Dessa forma, os postulados na ciência jurídica seriam as condições

essenciais sem as quais o direito não poderia nem sequer ser apreendido. Assim,

não se podem utilizar postulados matemáticos, por exemplo, para orientar a

aplicação de uma norma jurídica ante uma situação onde o direito se faz presente.

O direito possui seus próprios postulados, denominados de postulados

normativos, que podem ser determinados como hermenêuticos, ou seja, que

orientam a compreensão do direito, e os aplicativos, que orientam a aplicação das

normas jurídicas nesse complexo esquema de sopesamento das normas mais

adequadas a reger o caso concreto.

Neste estudo, os postulados que mais interessam são os aplicativos, até para

correlacioná-los com os princípios e as regras. Ávila explica o que são os postulados

normativos aplicativos:

Os postulados normativos aplicativos são normas imediatamente metódicas que instituem os critérios de aplicação de outras normas situadas no plano objeto de aplicação. Assim, qualificam-se como normas de seguindo grau. Nesse sentido, sempre que se está diante de um postulado normativo, há uma diretriz metódica que se dirige ao intérprete relativamente à interpretação de outras normas.152

Os postulados normativos aplicativos são, destarte, diretrizes metodológicas

que orientam a aplicação de outras normas jurídicas. Portanto, os postulados

normativos não são normas jurídicas, não fazem parte do ordenamento jurídico,

podendo ser qualificados como normas de segundo grau ou metanormas.

Os postulados normativos funcionam diferentemente dos princípios e das regras. A uma, porque não se situam no mesmo nível: os princípios e as regras são normas objetos de aplicação; os postulados são normas que orientam a aplicação de outras. A duas, porque não possuem os mesmos destinatários: os princípios e as regras são primariamente dirigidos ao Poder Público e aos contribuintes; os postulados são frontalmente dirigidos ao intérprete e aplicador do Direito. A três, porque não se relacionam da mesma forma com outras normas: os princípios e as regras, até porque se situam no mesmo nível do objeto, implicam-se reciprocamente, quer de modo preliminarmente complementar (princípios), quer de modo preliminarmente decisivo (regras); os postulados, justamente porque se situam num metanível, orientam a aplicação dos princípios e das regras sem conflituosidade necessária com outras normas.153

152

ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios – da definição à aplicação dos princípios jurídicos, p. 124. 153

ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios – da definição à aplicação dos princípios jurídicos, p. 124.

Page 63: Monografia - A normatividade dos princípios constitucionais frente à judicialização do acesso à saúde

53

Dentre os próprios postulados normativos aplicativos, há os postulados

inespecíficos e os específicos. Os inespecíficos são de aplicação geral, não sendo

estabelecidos os elementos e os critérios que devem orientar a relação entre eles,

também intitulados como incondicionais. Os específicos exigem o relacionamento

entre elementos específicos, com critérios que devem orientar a relação entre

eles.154

Os postulados inespecíficos, de acordo com o estudo de Humberto Ávila, são

a ponderação, a concordância prática e a proibição do excesso.

“A ponderação de bens consiste num método destinado a atribuir pesos a

elementos que se entrelaçam, sem referência a pontos de vista materiais que

orientem esse sopesamento.”155 Deve-se observar que a ponderação, para cumprir

com seus fins, orienta-se a partir de uma estrutura e de critérios materiais.156

A concordância prática aparece como uma finalidade que deve direcionar a

ponderação, uma vez que propõe a realização máxima dos valores que se imbricam.

Esse postulado surge da coexistência de valores que apontam total ou parcialmente

para sentidos contrários.157

A proibição do excesso, por sua vez, proíbe a aplicação de uma norma que

restrinja de tal forma um direito fundamental que acabe por retirar-lhe o mínimo de

eficácia. Decorre da promoção de finalidades constitucionalmente postas e liga-se

de maneira predominante à problemática dos direitos fundamentais.158

Os postulados específicos são o da igualdade, o da razoabilidade e o da

proporcionalidade.

A igualdade é vista como um postulado normativo na medida em que

estrutura a aplicação do direito em função de elementos (critério de diferenciação e

finalidade da distinção) e da relação entre eles (congruência do critério em relação

ao fim). A aplicação da igualdade depende de um critério diferenciador e de um fim a

ser alcançado. Vale dizer que fins diversos conduzem à utilização de critérios

distintos. No mais, os sujeitos devem ser considerados iguais em liberdade,

154

ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios – da definição à aplicação dos princípios jurídicos, p. 144. 155

ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios – da definição à aplicação dos princípios jurídicos, p. 145. 156

ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios – da definição à aplicação dos princípios jurídicos, p. 145. 157

ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios – da definição à aplicação dos princípios jurídicos, p. 147. 158

ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios – da definição à aplicação dos princípios jurídicos, p. 148.

Page 64: Monografia - A normatividade dos princípios constitucionais frente à judicialização do acesso à saúde

54

propriedade e dignidade, assim como diferenciados naquilo que os torna

diferentes.159

Quanto ao postulado da razoabilidade, tem-se que não existe uma

uniformidade terminológica a respeito, porque diversas as acepções que o vocábulo

oferece, bem como muitas são as possibilidades na área jurídica. Dessa forma, Ávila

destaca três sentidos aplicáveis à razoabilidade:

O postulado da razoabilidade aplica-se, primeiro, como diretriz que exige a relação das normas gerais com as individualidades do caso concreto, quer mostrando sob qual perspectiva a norma deve ser aplicada, quer indicando em quais hipóteses o caso individual, em virtude de suas especificidades, deixa de se enquadrar na norma geral. Segundo, como diretriz que exige a vinculação das normas jurídicas com o mundo a qual elas fazem referência, seja reclamando a existência de um suporte empírico e adequado a qualquer ato jurídico, seja demandando uma congruência entre a medida adotada e o fim que ela pretende atingir. Terceiro, como diretriz que exige a relação de equivalência entre duas grandezas.160

Já o postulado da proporcionalidade aplica-se nos casos em que exista uma

relação de causalidade entre um meio e um fim concretamente perceptível. A partir

disso, procede-se a três exames fundamentais: o da adequação (o meio promove o

fim?), o da necessidade (dentre os meios disponíveis e igualmente adequados para

promover o fim, existe outro meio menos restritivo ao(s) direito(s) fundamentais

afetados?), e o da proporcionalidade em sentido estrito (as vantagens trazidas pela

promoção do fim correspondem às desvantagens provocadas pela adoção do

meio?).161 Feitas estas considerações, descobrir-se-á o meio mais adequado para

promover o fim almejado pela ordem jurídica.

Estes são, portanto, os postulados normativos, recurso de grande importância

dirigido ao intérprete e aplicador do direito como meio metodológico de aplicação

das normas jurídicas.

159

ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios – da definição à aplicação dos princípios jurídicos, p. 152-153. 160

ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios – da definição à aplicação dos princípios jurídicos, p. 185. 161

ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios – da definição à aplicação dos princípios jurídicos, p. 163-164.

Page 65: Monografia - A normatividade dos princípios constitucionais frente à judicialização do acesso à saúde

55

2.5. VALORES

A Constituição Federal de 1988, influenciada pelo constitucionalismo do pós-

guerra, incorporou uma sistemática de valores em suas normas, sendo que esses

valores influenciam diretamente a interpretação constitucional, podendo-se afirmar

que os valores interferem na normatividade.

Observa-se que logo no preâmbulo o legislador constituinte elegeu como

valores supremos da sociedade brasileira a liberdade, a segurança, o bem-estar, o

desenvolvimento, a igualdade e a justiça.

A definição de valores é uma tarefa muito complexa e árdua, pois apresenta

diversos significados sem ser possível de enquadrar um à problemática jurídica. Não

obstante, este fato não prejudica o estudo dos valores, principalmente se

comparados com as normas jurídicas.

Rufino, apoiado na teoria de Alexy, afirma que os valores são apenas os

critérios de valoração, como, por exemplo, bom, mal, justo e injusto, os quais não se

confundem com os objetos valorados, como os objetos naturais, artefatos, situações

etc.162

Desse jeito, um objeto de pode ser valorado com base em diferentes critérios

de valoração, o que faz com que esses valores entrem em colisão, de forma que um

juízo de valor definitivo ocorre somente após a ponderação entre os critérios de

valoração.163

Na seara do direito constitucional, só existem os chamados juízos de valor

comparativos, tendo em vista que não seria adequado estabelecer uma escala de

valores constitucionais, como, por exemplo, o direito de intimidade e o da liberdade

de imprensa.

Os valores representam, ainda, o que se chama de ideais, dissociando-se,

por conseguinte, valor de realidade. Isso implica que os valores tendem a serem

realizados na maior medida possível. Há, de fato, similaridades entre essa noção de

valor e o conceito difundido pela distinção forte de princípios, razão pela qual exista

muita confusão entre essas duas categorias.

162

RUFINO, André do Vale. Estrutura das normas de direitos fundamentais – repensando a distinção entre regras, princípios e valores, p. 137. 163

RUFINO, André do Vale. Estrutura das normas de direitos fundamentais – repensando a distinção entre regras, princípios e valores, p. 137.

Page 66: Monografia - A normatividade dos princípios constitucionais frente à judicialização do acesso à saúde

56

Diante disso, os valores, quando não realizados, determinam algo como deve

ser, gerando normas de comportamento. Neste ponto também pode haver confusão

entre as idéias de valor e de normatividade. O que o direito prega não é mais do que

o dever ser, uma vez que por si só não se realiza.

Assim, “o Direito não é um valor ou um conjunto de valores, antes constitui o

“veículo de realização de valores”, “algo que funciona como meio de realização de

valores”.164 Por isso, o direito constantemente faz referência a valores, não havendo

a correspondência perfeita entre o direito e um valor específico. O principal valor que

nutre a ideia de direito é a justiça, sem dúvidas.

Desta feita, constata-se que as normas de direitos fundamentais são

normalmente impregnadas de muitos valores. Na verdade, essas normas possuem

tanto uma dimensão deontológica como uma dimensão axiológica. Conforme visto,

todas as normas jurídicas de certa forma fazem referência a algum valor, mas as

normas de direitos fundamentais, haja vista encerrarem os principais direitos

humanos reconhecidos na ordem jurídica, possuem uma alta carga valorativa.

Rufino afirma que “os direitos fundamentais são a projeção normativa dos valores

incorporados pela Constituição, isto é, constituem o sistema axiológico positivado

pela Constituição.”165

Em função de sua dimensão axiológica, os direitos fundamentais não devem

ser confundidos com os enunciados deônticos que estabelecem sua projeção

normativa, vez que compreendê-los dessa forma seria reduzi-los à linguagem

normativa de seus enunciados. Os direitos fundamentais também constituem

valores, de modo que incompreensíveis se desvinculados desses valores que

pretendem proteger ou realizar. A dimensão valorativa justifica a dimensão

deontológica, por este motivo tais normas se diferenciam das outras.166

Feitas essas considerações, avança-se à formulação da distinção entre

valores e princípios.

164

RUFINO, André do Vale. Estrutura das normas de direitos fundamentais – repensando a distinção entre regras, princípios e valores, p. 139. 165

RUFINO, André do Vale. Estrutura das normas de direitos fundamentais – repensando a distinção entre regras, princípios e valores, p. 241. 166

RUFINO, André do Vale. Estrutura das normas de direitos fundamentais – repensando a distinção entre regras, princípios e valores, p. 241.

Page 67: Monografia - A normatividade dos princípios constitucionais frente à judicialização do acesso à saúde

57

2.5.1. Distinção entre valores e princípios

Vários autores procuraram fazer a distinção entre valores e princípios, dentre

os quais se destacam Alexy, Peczenik e Habermas. Embora os autores tenham se

utilizados da expressão princípios, o correto é que a interpretação se refira a normas

constitucionais que apresentem as principais características atribuídas aos

princípios, pelas razões já expostas acerca da não congruência de uma diferença

forte ou qualitativa entre princípios e regras.

Pois bem, a distinção fraca é formulada por Alexy e Alexander Pecnezik.

Alexy considera que os princípios e os valores são categorias estritamente

vinculadas. A vinculação se dá porque à semelhança do que ocorre com os

princípios, existe uma colisão de valores e uma ponderação de valores; e, da

mesma maneira que os princípios, os valores podem ser realizados de maneira

gradual.167

Princípios e valores, portanto, possuem estruturas semelhantes. Inobstante,

existe uma diferença fundamental entre estas categorias, a saber: os princípios se

enquadram como mandatos de otimização, pertencendo ao âmbito deontológico ao

passo que os valores estão num nível axiológico porque não expressam o que é

devido, mas o que é bom.168

A diferença entre princípios e valores está no caráter deontológico do

primeiro e no caráter axiológico do último. As estruturas, porém, são semelhantes.

A distinção formulada por Alexy, dessa forma, possui o efeito (inverso) de realçar a semelhança estrutural entre princípios e valores. Sua utilidade principal está em esclarecer as duas dimensões (axiológica e deontológica) de uma mesma norma. Deixa aberta, não obstante, a possibilidade de que na interpretação da norma se passe facilmente da dimensão deontológica para a dimensão axiológica.169

167

RUFINO, André do Vale. Estrutura das normas de direitos fundamentais – repensando a distinção entre regras, princípios e valores, p. 140. 168

RUFINO, André do Vale. Estrutura das normas de direitos fundamentais – repensando a distinção entre regras, princípios e valores, p. 141. 169

RUFINO, André do Vale. Estrutura das normas de direitos fundamentais – repensando a distinção entre regras, princípios e valores, p. 142.

Page 68: Monografia - A normatividade dos princípios constitucionais frente à judicialização do acesso à saúde

58

Semelhante conclusão fez Peczenik ao afirmar que a estrutura dos princípios

e dos valores são iguais, sendo que o princípio diz o que é prima facie obrigatório e

o valor o que é prima facie melhor.

Já Habermas aparece como defensor de uma distinção forte entre princípios e

valores. Ele concorda no ponto que se refere à estrutura semelhante das categorias,

bem como no caráter deontológico dos princípios e axiológico dos valores, porém

diverge aos estabelecer outras diferenças.

O autor procura construir um „muro divisório‟ entre o que é jurídico e o que é

moral e fundamenta sua teoria por meio da separação do modo de

interpretação/aplicação de normas do modo de interpretação/aplicação dos valores,

sendo que apenas o primeiro pode corresponder à aplicação das normas jurídicas.

“A assimilação dos princípios jurídicos aos valores estabelecidos pela distinção fraca

de Alexy introduz no discurso jurídico formas próprias da aplicação de valores, e,

nesse sentido, subverte o caráter deontológico das normas jurídicas.”170

O problema da distinção formulada por Habermas – motivo pelo qual a

distinção fraca formulada por Alexy e Peczenik se mostra mais adequada para tratar

da diferenciação entre princípios e valores –, está em que ele, ao enxergar como um

problema a assimilação dos princípios jurídicos aos valores, deixa de perceber que

os princípios jurídicos, tal como colocados nas constituições, possuem igualmente

uma dimensão axiológica, caracterizando-se pelo seu duplo caráter.

Conclui-se então que as normas constitucionais possuem uma dupla face,

visto que tanto prescrevem algo obrigatoriamente (dimensão deontológica) como

encerram um juízo de valor sobre o que é devido (dimensão axiológica).

Pode-se dizer então que as normas apresentam uma dupla face: por um lado, determinam o que é devido (elemento normativo, diretivo, imperativo, isto é, deontológico); por outro, contêm um juízo de valor ou critério de valor (de justificação ou de crítica) sobre o que é devido (elemento valorativo ou axiológico). Os elementos deontológico e axiológico representam, por assim dizer, as duas faces de uma mesma norma.171

170

RUFINO, André do Vale. Estrutura das normas de direitos fundamentais – repensando a distinção entre regras, princípios e valores, p. 146. 171

RUFINO, André do Vale. Estrutura das normas de direitos fundamentais – repensando a distinção entre regras, princípios e valores, p. 160.

Page 69: Monografia - A normatividade dos princípios constitucionais frente à judicialização do acesso à saúde

59

O caráter axiológico das normas jurídicas induz a coerência e estabelece o

sentido do ordenamento jurídico, na medida em que encerra os fins fundamentais da

sociedade.

2.6. A SAÚDE COMO ELEMENTO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E SUA

POSIÇÃO NA TEORIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

Dentre os direitos que visam a garantir a existência digna da pessoa humana,

destaca-se o direito à saúde. Uma existência digna não se ocupa apenas em

preservar a vida humana, no aspecto de mera sobrevivência física do indivíduo, mas

sim de uma sobrevivência que atenda os mais elementares padrões de dignidade.172

A saúde cuida do aspecto da preservação da vida física e mental do

indivíduo, porém alça patamares mais elevados, na medida em que uma boa saúde

contribui para a elevação da dignidade de uma pessoa, sendo certo que este será

um cidadão mais ativo e participativo, com possibilidades de transformar a

sociedade na qual vive.

Pois bem, com a formação do Estado de Bem-Estar Social, surgiram os

chamados direitos sociais, de segunda geração. Estes direitos podem ser

classificados em liberdades sociais e direitos a prestação.

As liberdades sociais representam a dimensão negativa dos direitos sociais,

no ponto em que reclamam uma abstenção por parte do destinatário e não

dependem, em regra, de alocação de recursos e de concretização legislativa.

Os direitos sociais prestacionais têm por objeto precípuo conduta positiva do

Estado (ou particulares destinatários da norma), consistente numa prestação de

natureza fática, tais direitos reclamam uma crescente posição ativa do Estado na

esfera econômica e social. Daí dizer-se a respeito de seu conteúdo econômico.173

Sarlet afirma que: “o desiderato dos direitos sociais, como direitos a

prestações, consiste precisamente em realizar e garantir os pressupostos materiais

para uma efetiva fruição das liberdades, razão pela qual podem ser enquadrados

naquilo que se denominou status positivus socialis.”174

172

SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais, p. 300. 173

SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais, p. 272. 174

SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais, p. 273.

Page 70: Monografia - A normatividade dos princípios constitucionais frente à judicialização do acesso à saúde

60

O direito à saúde, como posto aqui, é um direito social prestacional de

segunda geração, porém é interessante observar esse direito implica em vários

desdobramentos. Assim, enquanto a saúde se configura como um dos principais

componentes da vida, ela é um direito de primeira geração, podendo ser oposta

contra a vontade estatal. Por outro lado, o direito à saúde também pode ser visto

como um direito difuso, ou seja, de terceira geração, se for considerar que inexiste a

determinação de seus titulares, sendo, portanto, um direito transindividual. Como

direito difuso, aplicam-se as regras do art. 81, I, do Código de Defesa do

Consumidor175, e ninguém poderá avocar propriedade sobre a saúde.176

Voltando à análise do direito à saúde enquanto direito prestacional, observa-

se que ele apresenta um dilema, isso por conta de seu conteúdo econômico. Quer

dizer que a saúde não pode ser satisfeita ilimitadamente porque depende de

vultosos recursos econômicos e materiais para a sua promoção. O direito à saúde

pode ser visto como um mandato de otimização, uma vez que pode ser concretizado

em vários graus conforme as possibilidades fáticas e jurídicas do Estado.

Essa realidade não justifica a omissão do Estado na promoção à saúde, vez

que se trata de direito fundamental, devendo ser prioridade entre as políticas

públicas estatais.

A Constituição Federal Brasileira de 1988 faz menção ao direito à saúde em

dois momentos distintos: no caput do art. 6º, elencando-o como um direito social, e

no art. 196 ao art. 200, onde são traçadas as diretrizes da promoção à saúde e fica

estabelecida a criação e as atribuições do Sistema único de Saúde.

175

BRASIL. Lei nº 8.078/90. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. 176

SCHWARTZ, Germano. Direito à saúde: efetivação de uma perspectiva sistêmica, p. 54.

Page 71: Monografia - A normatividade dos princípios constitucionais frente à judicialização do acesso à saúde

Capítulo 3

A JUDICIALIZAÇÃO DO ACESSO À SAÚDE

3.1. DEFINIÇÃO DE SAÚDE E O SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE

Não obstante a indiscutível importância que a saúde apresenta, a

Constituição Federal foi inovadora ao estabelecer a saúde como um direito de todos

e dever do Estado. Observa-se que o caput do art. 5º da Constituição prescreve que

o direito à saúde é garantido aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país.

Antes de se definir o que significa a saúde hoje no direito brasileiro, cumpre

verificar sumariamente o seu desenvolvimento histórico.

Primeiramente, a saúde foi vista pela humanidade como uma forma de

eliminação dos males que atingiam a espécie, uma forma de luta em favor da

preservação da espécie. Schwartz é bem lúcido a esse respeito:

Ao longo do tempo, os seres humanos foram acometidos por doenças que ameaçaram a sua sobrevivência. Nos tempos bíblicos, os surtos de lepre, peste e cólera eram a grande preocupação da civilização. Na Índia e na China antigas, foi a varíola. Na Antiguidade Greco-Romana, a malária se fez presente. Na Idade Média, ocorreu a Peste Negra, onde de peste bulbônica que assolou a Europa, causando a morte de 25 milhões de pessoas. No séc. XVI, a crise de sífilis fez com que a Igreja dissesse que esta era uma resposta divina aos pecados individuais de cada um (Júlio Rocha, 1999, p.90-91). Hoje, podemos afirmar, sem medo de errar, que a AIDS e o câncer são doenças com potencial efeito destrutivo nos seres humanos, incluindo-se no rol das grandes doenças da humanidade. Ressalte-se: quanto às duas últimas, a cura ainda é um fato um pouco distante.177

Nessa primeira fase, que remonta a Antiguidade, os meios utilizados para

combater as doenças eram a magia e a religião. Tal situação perdurou até a Grécia

antiga, onde a partir do conhecimento científico foi possível formular o primeiro

conceito de saúde.

“O primeiro conceito de saúde pode ser atribuído aos gregos da cidade-

estado de Esparta. O brocardo “Mens Sana in Corpore Sano” é, em realidade, o

177

SCHWARTZ, Germano. Direito à saúde: efetivação de uma perspectiva sistêmica, p. 28.

Page 72: Monografia - A normatividade dos princípios constitucionais frente à judicialização do acesso à saúde

62

marco primeiro da definição de que o que é ter saúde.”178 Hipócrates foi o grande

nome dessa medicina que afastava a religião das doenças, isso graças ao seu poder

de observação empírica, o que levou-o a conclusões ainda válidas atualmente.

Uma das teorias de Hipócrates era que a cidade e o tipo de vida

influenciavam a saúde dos habitantes. Para ele, as doenças deveriam ser tratadas

de acordo com as particularidades locais. Baseadas em essas noções, pode-se

afirmar que um dos motivos pelos quais a saúde brasileira é descentralizada tem

como origem remota o pensamento hipocrático.179

Veio a Idade Média, e com ela houve um retrocesso no que tange à saúde.

Insta ressaltar que o retrocesso operou-se na Europa Ocidental, principalmente,

sendo que os árabes e judeus nessa época obtiveram grandes avanços científicos

na área da medicina.

A ascendência do regime feudalista, a influência de práticas supersticiosas e

a Igreja tiveram influência nesse processo. Segundo os cristãos, a doença era

purificação de algum pecado, e a cura viria somente se fosse merecida.

O séc. XVII retorna às origens gregas, e, novamente, passa a tratar a saúde sob um prisma científico, e, ainda, a perceber a saúde como ausência de doença. (...) No decorrer do século, ocorreram grandes descobertas, como, por exemplo: o conhecimento do quinino para tratar a malária, o reconhecimento dos sintomas das diabetes e a descoberta das bactérias.180

O Estado Liberal chamou para si a obrigação de exercer a polícia sanitária,

tendo em vista o seu interesse em manter a força de trabalho nas indústrias a mais

ativa possível. O aspecto da saúde demonstrado até agora se liga à chamada saúde

curativa, preocupada sobretudo na ausência de enfermidades.181

A mudança de paradigma na concepção de saúde ocorre com o surgimento

do Estado de Bem-Estar Social, após a segunda guerra mundial, mediante o

nascimento de uma visão coletivizante da realidade social. A saúde preventiva

consiste, assim, num direito que todos têm que o Estado interventor social

proporcione a saúde por meio de serviços básicos de atividade sanitária.182

178

SCHWARTZ, Germano. Direito à saúde: efetivação de uma perspectiva sistêmica, p. 29. 179

SCHWARTZ, Germano. Direito à saúde: efetivação de uma perspectiva sistêmica, p. 30. 180

SCHWARTZ, Germano. Direito à saúde: efetivação de uma perspectiva sistêmica, p. 32. 181

SCHWARTZ, Germano. Direito à saúde: efetivação de uma perspectiva sistêmica, p. 33. 182

SCHWARTZ, Germano. Direito à saúde: efetivação de uma perspectiva sistêmica, p. 34.

Page 73: Monografia - A normatividade dos princípios constitucionais frente à judicialização do acesso à saúde

63

O marco teórico-referencial do conceito de saúde se deu em 26 de julho de

1946, com a constituição da Organização Mundial de Saúde (OMS). A Constituição

da Organização Mundial de Saúde declara que “a saúde é um completo estado de

bem-estar físico, mental e social, e não consiste apenas na ausência de doença e

enfermidade.”183 Também afirma ser um direito fundamental do homem gozar do

melhor estado de saúde, sem qualquer discriminação.

No entanto, o conceito oferecido pela OMS é objeto de críticas. A primeira

delas advém do fato de que este conceito reconhece limitações culturais, sociais e

econômicas. Ainda mais a partir do momento em que o Estado assumiu papel de

destaque no cenário da saúde, porque a vontade política torna-se um instrumento de

inaplicabilidade do conceito da OMS. De outra parte, a expressão bem-estar envolve

um componente subjetivo dificilmente quantificável. Trata-se de um conceito irreal,

inadaptável à realidade fática, a considerar que o bem-estar é um objetivo a ser

alcançado, que se alarga ou diminui com a evolução da sociedade.184

O conceito de saúde a ser proposto reconhece-a como sendo um sistema

social. A saúde é um sistema dentro de um sistema maior, que é a vida, e com ela

se relaciona. Esse relacionamento entre sistemas recebe o nome de comunicação e

os sistemas adquirem a sua identidade numa permanente diferenciação com o

ambiente e os outros sistemas, graças às decisões das organizações.185

A conseqüência da visão da saúde como um sistema leva à outra de que ela

é um processo que se constroi. Isso porque é um fenômeno holístico, onde seus

componentes se interrelacionam, formando um complexo dinâmico.186

Desta forma, Schwartz conclui que a saúde é:

Um processo sistêmico que objetiva a prevenção e cura de doenças, ao mesmo tempo que visa a melhor qualidade de vida possível, tendo como instrumento de aferição a realidade de cada indivíduo e pressuposta de efetivação a possibilidade de esse mesmo indivíduo ter acesso aos meios indispensáveis ao seu particular estado de bem-estar.187

183

BRASIL. Decreto nº 26.042, de 17 de dezembro de 1948. Promulga os atos firmados em Nova York a 22 de julho de 1946, por ocasião da Conferência Internacional de Saúde. 184

SCHWARTZ, Germano. Direito à saúde: efetivação de uma perspectiva sistêmica, p. 36-37. 185

SCHWARTZ, Germano. Direito à saúde: efetivação de uma perspectiva sistêmica, p. 37-38. 186

SCHWARTZ, Germano. Direito à saúde: efetivação de uma perspectiva sistêmica, p. 39. 187

SCHWARTZ, Germano. Direito à saúde: efetivação de uma perspectiva sistêmica, p. 39.

Page 74: Monografia - A normatividade dos princípios constitucionais frente à judicialização do acesso à saúde

64

Tornando-se o Estado responsável pela promoção, proteção e recuperação

da saúde, a Constituição Federal de 1988 incorporou o SUS como uma nova

formulação política e organizacional para o reordenamento dos serviços e ações de

saúde.188

Para tanto, o Poder Legislativo aprovou as Leis nº 8.080189 e 8.142190, ambas

de 1990, servindo estas leis de baliza do Sistema Nacional de Saúde.

A Lei nº 8.080/90 regula, em todo o território nacional, as ações e serviços de

saúde, executados isolada ou conjuntamente, em caráter permanente ou eventual,

por pessoas naturais ou jurídicas de direito público ou privado. Ainda, em seu art. 2º,

estabelece ser a saúde um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado

prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício.

O art. 4º da Lei nº 8.080/90 apregoa ser o Sistema Único de Saúde o conjunto

de ações ou serviços de saúde prestados pelo Estado, seja por meio da

administração direta como pela administração indireta.

A Lei nº 8.142/90 cria condições para a participação da comunidade na

gestão do SUS, nas Conferências de Saúde e Conselhos de Saúde em seus

diferentes níveis de organização, podendo os cidadãos, dessa forma, controlar e

fiscalizar as políticas de saúde.

Como não poderia deixar de ser, o Sistema Único de Saúde é orientado por

princípios que informam a sua atuação no sentido de propiciar a saúde à população.

Os princípios do SUS são, portanto, a universalidade, a integralidade e a equidade.

O que é a universalidade propõe é garantir o acesso de toda e qualquer

pessoa, a todo e qualquer serviço de saúde, seja ele público ou privado contratado

pelo Poder Público. O princípio atua como um grande viabilizador do direito à saúde

e vem expresso no art. 196 da Constituição Federal.

O princípio da universalidade passou por dois paradigmas, o referente ao

universalismo clássico e o novo universalismo.

188

BERNARDES, Elexandra Helena. Princípios do Sistema Único de Saúde: concepção dos enfermeiros da Estratégia de Saúde da Família, de uma cidade do Estado de Minas Gerais, p. 43-44. Disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/22/22133/tde-21122005-1411317>. 189

BRASIL. Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. 190

BRASIL. Lei nº 8.142, de 28 de dezembro de 1990. Dispõe sobre a participação da comunidade na gestão do Sistema Único de Saúde (SUS) e sobre as transferências intergovernamentais de recursos financeiros na área da saúde e dá outras providências.

Page 75: Monografia - A normatividade dos princípios constitucionais frente à judicialização do acesso à saúde

65

O universalismo clássico, inspirado no socialismo e no pós-guerra, leva à

instituição de sistemas públicos de saúde universais, baseados na ideia de

cidadania e de um Estado eficaz que seria capaz de garantir o livre acesso de todos

a todos os serviços sociais.191

Contudo, frente a várias mudanças sociais e econômicas ocorridas nas

últimas décadas, observa-se a imposição de uma nova concepção de universalismo

– o novo universalismo – oriundo da constatação de que não é possível ao Estado

oferecer a todas as pessoas a totalidade das intervenções da saúde. Assim, o que o

novo universalismo propõe é:

Oferecer serviços essenciais de alta qualidade para todos os usuários definidos pelos critérios de aceitabilidade social, efetividade e custos, consistindo em uma escolha explícita de prioridade entre intervenções, respeitando o princípio ético de que pode ser necessário e eficiente racionar serviços, mas que é inadmissível excluir grupos inteiros da população.192

O princípio da equidade funda-se na noção de liberdade e igualdade,

pregando que todo o cidadão que necessite de ações e serviços da saúde deve ter

direito assegurado de acesso aos serviços. A equidade visa a corrigir a

desigualdade evitável e injusta, passíveis de intervenção de políticas dos diversos

setores, inclusive o da saúde.193

O princípio da integralidade pressupõe que as ações de promoção, proteção e

recuperação da saúde da mesma forma que se constituem num todo, não podendo

ser compartimentalizadas, as unidades constitutivas do SUS se configuram também

como um todo indivisível, capaz de prestar assistência integral.194

Extrai-se, portanto, que o atual Estado brasileiro adota o Sistema Único de

Saúde como o meio de garantir o direito à saúde. Este sistema se constitui numa

191

BERNARDES, Elexandra Helena. Princípios do Sistema Único de Saúde: concepção dos enfermeiros da Estratégia de Saúde da Família, de uma cidade do Estado de Minas Gerais, p. 51. Disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/22/22133/tde-21122005-1411317>. 192

BERNARDES, Elexandra Helena. Princípios do Sistema Único de Saúde: concepção dos enfermeiros da Estratégia de Saúde da Família, de uma cidade do Estado de Minas Gerais, p. 51. Disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/22/22133/tde-21122005-1411317>. 193

BERNARDES, Elexandra Helena. Princípios do Sistema Único de Saúde: concepção dos enfermeiros da Estratégia de Saúde da Família, de uma cidade do Estado de Minas Gerais, p. 56. Disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/22/22133/tde-21122005-1411317>. 194

BERNARDES, Elexandra Helena. Princípios do Sistema Único de Saúde: concepção dos enfermeiros da Estratégia de Saúde da Família, de uma cidade do Estado de Minas Gerais, p. 65. Disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/22/22133/tde-21122005-1411317>.

Page 76: Monografia - A normatividade dos princípios constitucionais frente à judicialização do acesso à saúde

66

rede hierarquizada e descentralizada, orientada pelos princípios da universalidade,

equidade e integralidade.

3.1.1. Competência dos entes políticos no financiamento da saúde

Sendo a saúde um direito social, tem-se que ela deve ser implementada por

meio de políticas públicas, estas dependentes de recursos orçamentários. A

Constituição Federal, portanto, não apenas estabeleceu o dever do Estado em

prover a saúde, como também indicou as chamadas fontes de custeio.

O objetivo do controle sobre os recursos aplicados na saúde é a conquista de

um Sistema Único de Saúde de qualidade. O professor Gilson Carvalho ensina que:

“Controle por controle, controle para punir, se perdem no processo e não cumprem

com a sua finalidade. Em última análise deve-se controlar para conquistar a boa

qualidade, a maior eficiência e eficácia. Controlar não é castigar, mas eficientizar.”195

Com a Emenda Constitucional nº 29/2000, fixou-se a estrutura mínima do

financiamento da saúde.

O §1º do art. 198 da Constituição Federal prevê que a saúde será financiada

com recursos do orçamento da seguridade social, da União, dos Estados, do Distrito

Federal e dos Municípios, além de outras fontes. Vê-se que todos os entes

federativos contribuem para o financiamento da saúde, bem como é reservada para

a saúde parte dos recursos oriundos da seguridade social.

No §2º do art. 198 da Constituição Federal, estipulou-se sobre quais impostos

devem ser retirados os recursos mínimos destinados à saúde. Ainda, o §3º do art.

198 define que Lei Complementar, que será reavaliada a cada cinco anos,

estabelecerá sobre os percentuais dos impostos aplicados na saúde; os critérios de

rateio dos recursos da União destinados aos outros entes federativos e dos Estados

destinados aos Municípios, objetivando a progressiva redução das disparidades

regionais; normas de fiscalização, avaliação e controle das despesas com saúde nas

esferas federal, estadual, distrital e municipal; por derradeiro, as normas de cálculo

do montante a ser aplicado pela União.

195

CARVALHO, Gilson. Financiamento público da saúde no bloco de constitucionalidade, p. 38. Disponível em: <http://pfdc.mpf.gov.br/atuacao-e-conteudos-de-apoio/publicacoes/saude>.

Page 77: Monografia - A normatividade dos princípios constitucionais frente à judicialização do acesso à saúde

67

Além disso, o artigo 77 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias196

(ADCT) prescreve os recursos mínimos a serem destinados à saúde pelos entes

federativos, sendo que o valor da União será determinado a partir do crescimento

ânuo do PIB, os Estados e o Distrito Federal deverão destinar à saúde 12% dos

recursos próprios provenientes dos impostos e os Municípios deverão destinar 15%

dos recursos próprios provenientes de impostos.

O §4º do art. 77 da ADCT diz que, na ausência de lei complementar a que se

refere o art. 198, §3º, a partir do exercício financeiro de 2005, aplicar-se-á à União,

aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios o disposto neste artigo. Isso

significa que, não havendo lei complementar própria, as disposições do art. 77 da

ADCT continuarão vigentes no ponto em que define os percentuais mínimos a serem

destinados por cada ente político no trato da saúde, inclusive.

Os Fundos de Saúde são órgãos criados exclusivamente para receber os

recursos dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios oriundos da saúde,

sendo acompanhado e fiscalizado pelos Conselhos da Saúde, na forma do §3º do

art. 77 da ADCT. O art. 4º da Lei nº 8.142/90 prevê a existência de um Fundo de

Saúde e de um Conselho de Saúde para cada Estado, Município e para o Distrito

Federal.

O §1º do art. 33 da Lei nº 8.080/90 define que os recursos financeiros,

originários do Orçamento da Seguridade Social, de outros orçamentos da União,

além de outras fontes, serão administrados pelo Ministério da Saúde, através do

Fundo Nacional da Saúde.

Infere-se, portanto, a disciplina exaustiva por parte da Constituição Federal e

de leis infraconstitucionais no que toca ao financiamento da saúde, prevendo órgãos

com competência para administrar estes recursos. Mas isso só não basta, é preciso

que esses recursos sejam aplicados em ações e serviços públicos de saúde, na

forma em que estabelece a Constituição.

Não raro os recursos destinados à saúde são aplicados em programas

assistencialistas do governo ou em outras finalidades quaisquer, algumas vezes por

má-fé dos administradores públicos outras vezes por conta da dificuldade em se

especificar quais seriam essas ações e serviços públicos de saúde.

196

BRASIL. Ato das disposições constitucionais transitórias

Page 78: Monografia - A normatividade dos princípios constitucionais frente à judicialização do acesso à saúde

68

Ultimamente prevalece o entendimento que as ações e serviços públicos de

saúde são aqueles que possam concretizar os comandos descritos nos arts. 5º e 6º

da Lei nº 8.080/90.197

Não obstante, o art. 315 do Código Penal198 prescreve ser crime o emprego

irregular de verbas públicas, o que se aplica no caso da destinação de recursos da

saúde.

3.1.2. O problema que envolve a distribuição gratuita de medicamentos

A distribuição gratuita de medicamentos se dá por intermédio do Sistema

Único de Saúde e procura realizar a promessa constitucional da universalização do

acesso à saúde, tendo em vista que medicamentos para diferentes tipos de doença

são oferecidos a toda população. A instituição dos medicamentos genéricos foi uma

das ações governamentais que procurou promover o acesso universal à saúde.199

Contudo, os recursos estatais são escassos, assim como a produção de

medicamentos também é. O Estado simplesmente não pode proceder à distribuição

indiscriminada de medicamentos, por isso são planejadas políticas públicas que

almejam uma distribuição equilibrada e eficaz, que procura favorecer as pessoas

mais carentes.

Interessante a formulação do conceito de política pública levada a cabo por

Machado: “conceitua-se política pública como um fenômeno vinculado ao interesse

público, de natureza político-jurídica, elaborado, planejado ou executado pelo Estado

para a realização de objetivos socialmente relevantes, com vistas à concretização

dos direitos fundamentais e à consolidação do Estado Democrático de Direito.”200

Não é demais ressaltar que as políticas públicas estatais referentes ao

fornecimento de medicamentos devem ser consentâneas com a concretização dos

direitos fundamentais, visto que este é o dever do Estado.

197

MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL – PFDC. Financiamento da saúde, p. 62-65. Disponível em: <http://pfdc.pgr.mpf.gov.br/pfdc/institucional/grupos-de-trabalho/saude/manuais-de-atuacao>. 198

BRASIL. Código Penal. Decreto-lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. 199

BRASIL. Lei nº 9.797, de 10 de fevereiro de 1999. Altera a Lei nº 6.360, de 23 de setembro de 1976, que dispõe sobre a vigilância sanitária, estabelece o medicamento genérico, dispõe sobre a utilização de nomes genéricos em produtos farmacêuticos e dá outras providências. 200

MACHADO, Clara Cardoso. Propugnando um conceito jurídico-metodológico de políticas públicas para concretização de direitos fundamentais. Disponível em: <http://www.portalciclo.com.br/downloads/artigo/direito/conceito_juridico_de_politicas_publicas_clara_cardoso.pdf>.

Page 79: Monografia - A normatividade dos princípios constitucionais frente à judicialização do acesso à saúde

69

A respeito da competência administrativa dos entes federativos quanto ao

fornecimento gratuito de medicamentos, o art. 23, II, da CRFB/88 prescreve ser

competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios

cuidar da saúde e assistência pública.

O tema do fornecimento gratuito de medicamentos por parte do Estado é

atual e bastante complexo, na medida em que a demanda por tratamentos

medicamentosos aumentou assustadoramente, assim como a produção de

diferentes tipos de fármacos. Neste ponto, pertinentes são as considerações

colocadas por Bernardes acerca das conclusões obtidas na Conferência Nacional de

Saúde de 2001:

Os modelos vigentes mantêm caráter assistencialista, sendo pouco capazes de responder às necessidades da população. São modelos curativistas, operados por profissionais muitas vezes despreparados para atuarem com o respeito devido aos direitos do usuário e suas necessidades, e com a qualidade necessária. São centrados no profissional médico, priorizam mais a doença, gerando expectativa de que a única forma de resolver os problemas de saúde seja tratar a doença medicamentosamente.201

O Ministério da Saúde, procurando formular uma Política Nacional de

Medicamentos, editou a Portaria nº 3.916/98202, que, entre outras coisas, define as

atribuições de cada ente estatal quanto à disponibilização de medicamentos à

população.

Quanto à gestão federal, cabe a ela: prestar cooperação técnica e financeira

às demais instâncias do SUS relativas à Política Nacional de Medicamentos;

estabelecer normas e promover a assistência farmacêutica nas três esferas de

Governo; implementar atividades de controle da qualidade de medicamentos;

promover a revisão periódica e avaliação contínua do RENAME e destinar recursos

para a aquisição de medicamentos, mediante repasse Fundo-a-Fundo para estados

e municípios, definindo, para tanto, critérios básicos para o mesmo.

À gestão estadual cabe, precipuamente: promover a formulação da política

estadual de medicamentos, definir a relação estadual de medicamentos, com base

201

BERNARDES, Elexandra Helena. Princípios do Sistema Único de Saúde: concepção dos enfermeiros da Estratégia de Saúde da Família, de uma cidade do Estado de Minas Gerais, p. 63. Disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/22/22133/tde-21122005-1411317>. 202

BRASIL. Portaria nº 3.916/GM, de 30 de outubro de 1998. Aprova a Política Nacional de

Medicamentos.

Page 80: Monografia - A normatividade dos princípios constitucionais frente à judicialização do acesso à saúde

70

no RENAME, e em conformidade com o perfil epidemiológico do estado; prestar

cooperação técnica e financeira aos municípios no desenvolvimento de suas

atividades e ações relativas à assistência farmacêutica; coordenar e executar a

assistência farmacêutica no seu âmbito.

Por sua vez, compete à gestão municipal: coordenar e executar a assistência

farmacêutica no seu respectivo âmbito; assegurar a dispensação adequada dos

medicamentos; definir a relação municipal de medicamentos essenciais, com base

na RENAME, decorrente do perfil nosológico da população, receber, armazenar e

distribuir adequadamente os medicamentos sob sua guarda.

Além disso, a mencionada Portaria estabeleceu, dentre as suas diretrizes: a

adoção da Relação Nacional de Medicamentos Essenciais – RENAME, que integra

o elenco dos medicamentos considerados básicos e essenciais para atender a

maioria dos problemas de saúde da população, devendo estar disponíveis aos

segmentos da sociedade que dele necessitem; a reorientação da Assistência

Farmacêutica, para que não se restrinja apenas à aquisição e à distribuição de

medicamentos, devendo ser implementadas nesse campo, nas três esferas do SUS,

todas as atividades relacionadas à promoção do acesso da população aos

medicamentos essenciais.

Por fim, a Portaria nº 3916/GM, de 30 de outubro de 1998, prescreveu ser

responsabilidade das esferas do governo no âmbito do SUS viabilizar o propósito

desta Política de Medicamentos, qual seja, o de garantir a necessária segurança,

qualidade, eficácia e qualidade dos medicamentos, a promoção do uso racional e o

acesso da população àqueles considerados essenciais.

É de ter em vista, portanto, que é dever do SUS distribuir à população os

medicamentos considerados essenciais, tendo a Política Nacional de Medicamentos

fixado as normas e diretrizes do controle dos medicamentos por parte do Estado,

bem como a organização para a aquisição e distribuição dos medicamentos.

Porém, a regulamentação normativa tem se mostrado pouco eficaz, vez que

boa parte da população continua não tendo acesso nem aos medicamentos

considerados essenciais, revelando aí um problema estrutural do SUS.

Page 81: Monografia - A normatividade dos princípios constitucionais frente à judicialização do acesso à saúde

71

3.2. A JUDICIALIZAÇÃO EXCESSIVA DO ACESSO À SAÚDE E SUAS

IMPLICAÇÕES

A judicialização do acesso à saúde nasce com a possibilidade do Poder

Judiciário editar determinações à Administração Pública para que forneça ações e

serviços de saúde a uma determinada pessoa. As demandas judiciais mais

correntes em relação à prestação da saúde referem-se justamente à distribuição de

medicamentos.

Essa possibilidade de intervenção judicial no que tange ao serviço do Estado

na prestação da saúde surge a partir do momento em que a constituição adquire

força normativa e efetividade. Barroso assim discorre sobre o tema:

As normas constitucionais deixaram de ser percebidas como integrantes de um documento estritamente político, mera convocação à atuação do Legislativo e do Executivo, e passaram a desfrutar de aplicabilidade direta e imediata por juízes e tribunais. Nesse ambiente, os direitos constitucionais em geral, e os direitos sociais em particular, convertem-se em direitos subjetivos em sentido pleno, comportando tutela judicial específica.203

Hesse explica que a Constituição detém pressupostos realizáveis que,

mesmo em caso de conflito, permitem assegurar a sua força normativa.

A Constituição não está desvinculada da realidade histórica concreta do seu tempo. Todavia, ela não está condicionada, simplesmente, por essa realidade. Em caso de eventual conflito, a Constituição não deve ser considerada, necessariamente, a parte mais fraca. Ao contrário, existem pressupostos realizáveis (realizierbare Voraussetzungen) que, mesmo em caso de confronto, permitem assegurar a força normativa da Constituição. Somente quando esses pressupostos não puderem ser satisfeitos, dar-se-á a conversão dos problemas constitucionais, enquanto questões jurídicas (Rechtsfragen), em questões de poder (Machtfragen).204

Cabe, então, ao Poder Judiciário tutelar os direitos fundamentais tendo como

premissa a força normativa da constituição. A atuação judicial, nesse caso, tem

203

BARROSO, Luís Roberto. Da falta de efetividade à judicialização excessiva: direito à saúde, fornecimento gratuito de medicamentos e parâmetros para a atuação judicial, p. 3. Disponível em: <http://www.lrbarroso.com.br/pt/casos/direito/artigo_prof_luis_barroso_da_falta_de_efetividade_a_judicializacao_efetiva.pdf>. 204

HESSE, Konrad. A força normativa da constituição, p. 25.

Page 82: Monografia - A normatividade dos princípios constitucionais frente à judicialização do acesso à saúde

72

como parâmetro o núcleo essencial dos direitos fundamentais, pois deve ser

convocado a atuar sempre que um direito for malbaratado além de seu núcleo

essencial. Mendes, Coelho e Branco afirmam que o núcleo essencial “destina-se a

evitar o esvaziamento do conteúdo do direito fundamental decorrente de restrições

descabidas, desmesuradas ou desproporcionais.”205

Não obstante, uma gigantesca demanda tem assolado o Poder Judiciário em

relação à distribuição de medicamentos por parte do Poder Público. Isso, de certa

forma, afeta o sistema, considerando que o Estado não se mostra preparado para

assumi-la, bem como a jurisprudência até agora não adotou um critério para a

concessão dos medicamentos, ora proferindo decisões extravagantes condenando a

Administração a custear tratamentos caros, ora determinando a concessão de

medicamentos de eficácia duvidosa. Ademais, não se definiu ainda qual entidade

estatal – União, Estados e Municípios – devem ser responsabilizada para entrega de

cada tipo de medicamento.206

Essas demandas judiciais envidam uma superposição de esforços e defesas,

envolvendo várias entidades federativas e mobilizando uma grande quantidade de

agentes públicos, servidores e procuradores, acarretando um enorme dispêndio de

recursos públicos, imprevisibilidade e desfuncionalidade na atividade jurisdicional.207

A interferência do Judiciário em questões políticas do Estado é outro ponto

que tem gerado controvérsias na comunidade jurídica.

Quando o Judiciário determina que o SUS forneça algum medicamento ou

tratamento a um paciente, ele interfere em toda a política estatal de ações e serviços

de saúde. O excesso de demandas judiciais que têm por objeto a saúde provoca

uma interferência ainda maior nas políticas públicas.

A partir disso surge a indagação acerca da legitimidade do Judiciário para

interferir em políticas públicas e dos limites de uma possível intervenção.

205

MENDES, COELHO e BRANCO. Curso de direito constitucional, p. 351. 206

BARROSO, Luís Roberto. Da falta de efetividade à judicialização excessiva: direito à saúde, fornecimento gratuito de medicamentos e parâmetros para a atuação judicial, p. 3. Disponível em: <http://www.lrbarroso.com.br/pt/casos/direito/artigo_prof_luis_barroso_da_falta_de_efetividade_a_judicializacao_efetiva.pdf>. 207

BARROSO, Luís Roberto. Da falta de efetividade à judicialização excessiva: direito à saúde, fornecimento gratuito de medicamentos e parâmetros para a atuação judicial, p. 3. Disponível em: <http://www.lrbarroso.com.br/pt/casos/direito/artigo_prof_luis_barroso_da_falta_de_efetividade_a_judicializacao_efetiva.pdf>.

Page 83: Monografia - A normatividade dos princípios constitucionais frente à judicialização do acesso à saúde

73

Mendes, Coelho e Branco apontam que “não se reconhece indenidade aos

atos ou decisões políticas se elas afetam ou ameaçam direitos individuais. Essa é a

orientação pacífica do Supremo Tribunal Federal desde os primórdios da

República.”208

Schwartz esclarece que “a saúde, como direito público subjetivo e

fundamental do ser humano, quando lesionada, não pode ser excluída da

apreciação do Poder Judiciário. Essa é, no constitucionalismo contemporâneo, a

tarefa mais elevada do Poder Judiciário: garantir a observância e cumprimento dos

direitos fundamentais do homem.”209

Como se observa, a atuação do Poder Judiciário no trato de questões

políticas é legítima e necessária quando houver malbaratamento dos direitos

fundamentais do homem, seja por ação insuficiente ou por omissão do Estado.

Todavia, essa atuação deve se limitar justamente a reparar os direitos porventura

lesados, sob pena invasão de competência dos outros entes políticos.

Barroso destaca que “a atividade judicial deve guardar parcimônia e,

sobretudo, deve respeitar o conjunto de opções legislativas e administrativas

formuladas acerca da matéria pelos órgãos institucionais competentes.”210

De outra parte, tratando-se a saúde de um direito vital ao homem, não cabe

exclusivamente ao Poder Público promovê-la, devendo todos os cidadãos participar

ativamente na concretização e desenvolvimento da saúde.

3.3. A COLISÃO ENTRE O DIREITO À VIDA E À SAÚDE DE UNS EM FACE DA

PROMESSA CONSTITUCIONAL DA UNIVERSALIZAÇÃO DA SAÚDE

A judicialização excessiva do acesso à saúde, além do farto dispêndio dos

recursos públicos, muitas vezes acaba por ferir a igualdade do acesso á saúde

pública pela população. Barroso ressalta que: “Em muitos casos, o que se revela é a

concessão de privilégios a alguns jurisdicionados em detrimento da generalidade da

208

MENDES, COELHO e BRANCO. Curso de direito constitucional, p. 550. 209

SCHWARTZ, Germano. Direito à saúde: efetivação de uma perspectiva sistêmica, p. 163. 210

BARROSO, Luís Roberto. Da falta de efetividade à judicialização excessiva: direito à saúde, fornecimento gratuito de medicamentos e parâmetros para a atuação judicial, p. 21. Disponível em: <http://www.lrbarroso.com.br/pt/casos/direito/artigo_prof_luis_barroso_da_falta_de_efetividade_a_judicializacao_efetiva.pdf>.

Page 84: Monografia - A normatividade dos princípios constitucionais frente à judicialização do acesso à saúde

74

cidadania, que continua dependente das políticas universalistas implementadas pelo

Poder Executivo.”211

Não raro, muitas pessoas se aproveitam da jurisdição para obter vantagens

nos serviços fornecidos pelo SUS. Noutro ponto, os recursos estatais são de fato

limitados para que sejam desperdiçados em demandas judiciais que não venham a

possibilitar o acesso à saúde aos mais necessitados. Fala-se aí da teoria da reserva

do possível.

Portanto, a judicialização excessiva do acesso à saúde compromete a

universalização da saúde no ponto em que vem a estabelecer desigualdades entre

cidadãos e dificulta a eficácia das políticas públicas de saúde, considerando que

grande parte dos recursos alocados à saúde destina-se às demandas judiciais.

Nesse momento surge a questão da colisão entre os direitos fundamentais

daqueles que postulam judicialmente o acesso à saúde e a promessa constitucional

da universalização da saúde.

Na situação de colisão de direitos fundamentais, o primeiro aspecto que deve

ser observado é o que diz respeito ao âmbito de proteção do respectivo direito.

Mendes, Coelho e Branco assinalam que “a definição do âmbito de proteção

configura pressuposto primário para a análise de qualquer direito fundamental.”212

Canotilho sustenta a existência de dois tipos de colisão de direitos: a) a

colisão autêntica de direitos, que ocorre quando o exercício de um direito

fundamental por parte de seu titular colide com o exercício do direito fundamental

por parte do outro titular e b) a colisão de direitos em sentido impróprio, tendo lugar

quando o exercício de um direito fundamental colide com outros bens

constitucionalmente protegidos.213

Existem, ainda, os conflitos entre direitos fundamentais suscetíveis de

restrição, bem como os conflitos entre direitos fundamentais insuscetíveis de

restrição.

Os direitos fundamentais suscetíveis de restrição são direitos prima facie e

não direitos definitivos, dependendo a sua radicação subjetiva definitiva da

ponderação e da concordância feita em face de determinadas circunstâncias

211

BARROSO, Luís Roberto. Da falta de efetividade à judicialização excessiva: direito à saúde, fornecimento gratuito de medicamentos e parâmetros para a atuação judicial, p. 4. Disponível em: <http://www.lrbarroso.com.br/pt/casos/direito/artigo_prof_luis_barroso_da_falta_de_efetividade_a_judicializacao_efetiva.pdf>. 212

MENDES, COELHO e BRANCO. Curso de direito constitucional, p. 328. 213

CANOTILHO, Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição, p. 1229.

Page 85: Monografia - A normatividade dos princípios constitucionais frente à judicialização do acesso à saúde

75

concretas. O domínio normativo desses direitos é sempre potencial, tornando-se

atual depois da averiguação das condições concretamente existentes, sendo que a

conversão de um direito prima facie em direito definitivo poderá ser objeto de lei

restritiva, que, nos casos autorizados pela Constituição, representará um primeiro

instrumento de solução de conflitos.214

Os direitos fundamentais insuscetíveis de restrição não são sujeitos a normas

de restrição, assim como não podem converter-se em direitos com mais restrições

do que aqueles restringidos diretamente pela constituição ou com autorização

dela.215

Desta forma, o conflito entre direitos insuscetíveis de restrição não se

resolverá por meio da redução de seu âmbito normativo, pela limitação de seu

âmbito de proteção ou por meio da ideia de justificação de restrição de um dos

direitos colidentes.216

Nas colisões entre direitos fundamentais, a técnica da ponderação proposta

por Alexy é de plena validade, tendo em vista que um direito fundamental nesses

casos não pode ser restringido ou invalidado. Assim, por meio da técnica da

ponderação, afasta-se o direito fundamental que, diante das condições fáticas e

jurídicas verificadas, tenha menor peso.217

Contudo, a alusão genérica à técnica da ponderação não se mostra

suficiente, pois é necessária uma ferramenta que permita controlar a racionalidade

dessas ponderações, ou melhor, que diga como se deve ponderar. A máxima da

proporcionalidade se configura como uma norma metodológica que visa garantir a

racionalidade da técnica da ponderação.218

Faz-se referência, neste momento, ao postulado normativo da

proporcionalidade proposto por Ávila. Assim como a máxima da proporcionalidade

de Alexy, o postulado da proporcionalidade se decompõe nos exames fundamentais

de adequação, de necessidade e de proporcionalidade em sentido estrito.219

214

CANOTILHO, Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição, p. 1231. 215

CANOTILHO, Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição, p. 1232. 216

CANOTILHO, Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição, p. 1232. 217

BUSTAMANTE, Thomas. Princípios, regras e a fórmula de ponderação de Alexy: um modelo funcional para a argumentação jurídica? Artigo publicado na Revista de direito constitucional e internacional, volume 54, p. 85. 218

BUSTAMANTE, Thomas. Princípios, regras e a fórmula de ponderação de Alexy: um modelo funcional para a argumentação jurídica? Artigo publicado na Revista de direito constitucional e internacional, volume 54, p. 87-88. 219

ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios – da definição à aplicação dos princípios jurídicos, p. 163-164.

Page 86: Monografia - A normatividade dos princípios constitucionais frente à judicialização do acesso à saúde

76

Canotilho, em referência a Alexy, encerra que:

Os exemplos anteriores apontam para a necessidade de as regras do direito constitucional dos conflitos deverem construir-se com base na harmonização de direitos, e, no caso de isso ser necessário, na prevalência (ou relação de prevalência) de um direito ou bem em relação a outro (D1 P D2). Todavia, uma eventual relação de prevalência só em face das circunstâncias concretas poderá se determinar, pois só nestas condições é legítimo dizer que um direito tem mais peso do que o outro (D1 P D2) C, ou seja, um direito (D1) prefere (P) outro (D2) em face das circunstâncias do caso (C).220

Em todo caso, percebe-se que os direitos individuais à vida e à saúde são

insuscetíveis de restrição, não podendo seu âmbito de proteção ser restrito em face

do escopo da universalização da saúde almejado pelo Estado.

A saúde deve ser fornecida integralmente a todos que dela necessitem sem

qualquer forma de restrição, devendo-se respeitar o núcleo essencial do direito à

saúde.

Deve a pessoa socorrer-se do Poder Judiciário sempre que o Estado, por

meio de suas políticas públicas de saúde, não estiver dando conta de assegurar-lhe

o direito à saúde.

Nem por isso é lícito que se utilize do Judiciário para que sejam promovidos

os tratamentos mais caros e sofisticados ou se concedam medicamentos de eficácia

duvidosa. Os recursos estatais são limitados e são custeados por toda a população,

em razão disso não devem ter seu uso indevido ou supérfluo.

Neste sentido, Freitas esclarece que: O direito à saúde, contudo, não pode

ser entendido como um poder a ser exercido contra o Estado, de forma absoluta e

ilimitada, mas sim como um direito de justiça social, eis que se mostra inadequada a

sua concretização a concepção de direito subjetivo como poder absoluto a ser

exercido contra o Estado.”221

O art. 196 da Constituição Federal fala que a saúde é direito de todos e dever

do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução

do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal igualitário às ações e

serviços para sua promoção, proteção e recuperação. Infere-se desse dispositivo

que o compromisso do Estado é garantir o direito à saúde a todos coletivamente,

220

CANOTILHO, Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição, p. 1232. 221

LIMA, Ricardo Seibel de Freitas. Direito à saúde e critérios de aplicação, p. 20. Artigo publicado na Revista de Direito Público, número 12, pg. 131.

Page 87: Monografia - A normatividade dos princípios constitucionais frente à judicialização do acesso à saúde

77

não apenas individualmente, motivo pelo qual é temerário que o Judiciário, ante a

sua visão estrita de um caso individual, assuma o papel de protagonista na

implementação de políticas públicas de saúde.222

Na verdade, a colisão entre o direito fundamental à vida e à saúde dos

postulantes judiciais em detrimento da universalização da saúde é apenas aparente,

porque não é necessário que a saúde pública, garantida igualitariamente,

universalmente e coletivamente, sucumba frente às necessidades daqueles que

recorrem às vias judiciais para concretizarem seu direito à saúde.

Deve haver nesse caso uma harmonização entre direitos, de forma que a

necessidade de uns não prejudique as políticas coletivas de saúde. Não se deve

esperar que o Estado forneça qualquer tipo de tratamento, porque ele é obrigado a

cuidar daquilo considerado essencial em caráter coletivo, como as políticas

preventivas e o saneamento básico. Concessões devem ser feitas, nesse caso.

Mendes, Coelho e Branco explicam que “tem-se, pois, autêntica colisão de

direitos apenas quando um direito individual afeta o âmbito de proteção de outro

direito individual.”223

Discute-se aqui uma suposta colisão entre o bem jurídico saúde pública, que

decorre do próprio direito à saúde, e o direito individual à saúde. Logo, não é correto

que se fale em colisão, pois não há nenhuma invasão do âmbito de proteção do

direito individual, ocorrendo justamente o oposto, em que a saúde pública é um meio

importante para a concretização do direito individual à saúde.

Os problemas que existem são originários da má gestão da saúde por parte

dos administradores públicos que são responsáveis pelo sucateamento do SUS,

gerando, consequentemente, um aumento na demanda judicial na busca pela

saúde, como também pelos excessos da jurisprudência, que, por falta de critérios,

até agora não se revelou capaz de enfrentar adequadamente as demandas oriundas

da saúde pública.

222

BARROSO, Luís Roberto. Da falta de efetividade à judicialização excessiva: direito à saúde, fornecimento gratuito de medicamentos e parâmetros para a atuação judicial, p. 24. Disponível em: <http://www.lrbarroso.com.br/pt/casos/direito/artigo_prof_luis_barroso_da_falta_de_efetividade_a_judicializacao_efetiva.pdf>. 223

MENDES, COELHO e BRANCO. Curso de direito constitucional, p. 375.

Page 88: Monografia - A normatividade dos princípios constitucionais frente à judicialização do acesso à saúde

78

3.4. AS POSSIBILIDADES DE UMA ATUAÇÃO JUDICIAL ADEQUADA NA

DISTRIBUIÇÃO DE MEDICAMENTOS PELO ESTADO

O Poder Judiciário, com a promulgação da Constituição Federal de 1988,

passou a ocupar um espaço até então inédito na história constitucional brasileira.

Conferiu-se ao Judiciário autonomia institucional, consubstanciada na garantia de

autonomia financeira e administrativa, bem ainda foi assegurada aos magistrados

autonomia funcional.224

Mais do que isso, o Poder Judiciário passa a tutelar a Constituição em seu

sentido material, garantido o seu devido respeito com base na prevalência dos

direitos fundamentais. Rosa assevera que:

A possibilidade de transformação social pelo Direito, em simetria com o pacto social avivado pela Constituição Federal de 1988 e dos direitos humanos aderidos (CF, art. 5º, §2º), representa a mais relevante atuação social do Poder Judiciário de índole substancialista. Não é verdade – e nem se está defendendo – que o Poder Judiciário é a salvação de toda situação social. Todavia, exigir o fazer acontecer do Poder Legislativo, dos administradores públicos e dos próprios membros do Poder Judiciário é o grande papel do ator jurídico, consciente da sua função democrática.225

O Estado Democrático de Direito, consagrado no art. 1º da Constituição

Federal, pauta-se pelos conceitos de democracia e constitucionalismo. Democracia,

segundo Neves, é “o regime político, ou forma de governo, em que a soberania

reside no povo que, por sua maioria, mas sempre indiretamente, representado por

uma elite reduzida de seus delegados, exerce o poder, sob o princípio da absoluta

igualdade de direitos entre os cidadãos. Diz-se do governo do povo, pelo povo e

para o povo.”226 Já constitucionalismo significa, em essência, limitação do poder e

supremacia da lei (Estado de direito, rule of Law, Rechstaat).227

A democracia é composta pelo seu âmbito formal e substancial. O âmbito

formal vincula a democracia à vontade da maioria, enquanto o substancial articula o

224

MENDES, COELHO e BRANCO. Curso de direito constitucional, p. 974 225

ROSA, Alexandre Morais da. O que é garantismo jurídico?, p. 80-81. 226

NEVES, Iêdo Batista. Vocabulário prático de tecnologia jurídica e de brocardos latinos. 227

BARROSO, Luís Roberto. Da falta de efetividade à judicialização excessiva: direito à saúde, fornecimento gratuito de medicamentos e parâmetros para a atuação judicial, p. 10. Disponível em: <http://www.lrbarroso.com.br/pt/casos/direito/artigo_prof_luis_barroso_da_falta_de_efetividade_a_judicializacao_efetiva.pdf>.

Page 89: Monografia - A normatividade dos princípios constitucionais frente à judicialização do acesso à saúde

79

indecidível, ou seja, nem mesmo pela maioria poder-se-á violar ou negar os direitos

fundamentais.228

Dessa forma, os direitos fundamentais deverão prevalecer mesmo que contra

a vontade da maioria, isso por conta da ideia de democracia substancial em que se

funda o Estado Democrático de Direito.

O Estado Constitucional de Direito gravita em torno da dignidade da pessoa

humana e na centralidade dos direitos humanos. A dignidade da pessoa humana é o

centro de irradiação dos direitos fundamentais, conhecido também como o núcleo

essencial de tais direitos. Cabe, assim, ao Legislativo, Executivo e Judiciário realizar

os direitos fundamentais, na maior extensão possível, tendo como limite mínimo o

núcleo essencial desses direitos.229

No que tange às três funções estatais, o embate entre a democracia e o

constitucionalismo se dá quando o Poder Judiciário interfere nas deliberações

oriundas do Legislativo e do Executivo, representados pela maioria. Essa

interferência só é possível quando algum direito fundamental é vulnerado para além

do seu mínimo essencial, qual seja, a dignidade da pessoa humana.

É inviável que os direitos fundamentais, especificamente os prestacionais,

sejam promovidos indiscriminadamente, não sendo rara a necessidade de se

efetuarem ponderações e escolhas nem sempre agradáveis, devendo o Judiciário

ser deferente para com essas opções políticas, em respeito ao princípio

democrático.230

Conclui-se, portanto, que não é vocação do Poder Judiciário formular políticas

públicas, mas sim tutelar os direitos fundamentais.

Em relação à concessão gratuita de medicamentos pelo Estado, quais seriam

os parâmetros para uma atuação judicial adequada?

Barroso propôs certos critérios para a concessão de medicamentos pelo

Estado via judicial, tanto nas ações individuais como nas ações coletivas.

228

ROSA, Alexandre Morais da. O que é garantismo jurídico?, p. 21. 229

BARROSO, Luís Roberto. Da falta de efetividade à judicialização excessiva: direito à saúde, fornecimento gratuito de medicamentos e parâmetros para a atuação judicial, p. 10. Disponível em: <http://www.lrbarroso.com.br/pt/casos/direito/artigo_prof_luis_barroso_da_falta_de_efetividade_a_judicializacao_efetiva.pdf>. 230

BARROSO, Luís Roberto. Da falta de efetividade à judicialização excessiva: direito à saúde, fornecimento gratuito de medicamentos e parâmetros para a atuação judicial, p. 12. Disponível em: <http://www.lrbarroso.com.br/pt/casos/direito/artigo_prof_luis_barroso_da_falta_de_efetividade_a_judicializacao_efetiva.pdf>.

Page 90: Monografia - A normatividade dos princípios constitucionais frente à judicialização do acesso à saúde

80

As ações individuais destinar-se-iam à concessão de medicamentos a uma

pessoa singularmente, enquanto as ações coletivas, às alterações das listas de

medicamentos elaboradas pelos entes federativos.

Para Barroso, no âmbito das ações individuais, a atuação jurisdicional deve

ater-se a efetivar a dispensação dos medicamentos constantes das listas elaboradas

pelos entes federativos.231

Defende-se a presunção de que o Legislativo e Executivo, ao elaborarem as

listas de medicamentos, avaliaram, em primeiro lugar, as necessidades prioritárias a

serem supridas e os recursos disponíveis, a partir da visão global que detêm de tais

fenômenos. Assim como avaliaram os aspectos técnico-médicos envolvidos na

eficácia e emprego dos medicamentos.232 A prevalência das opções do Legislativo e

do Executivo devem prevalecer em respeito ao princípio democrático, uma vez que

legitimados pelo povo a planejar e executar políticas públicas.

Em que pese essa concepção seja um critério válido para a dispensação de

medicamentos em ações individuais, tal critério não deve ser absoluto. De fato,

presume-se que o Legislativo e o Executivo fizeram as devidas ponderações e

avaliações na elaboração da lista de medicamentos a serem disponibilizados pelo

Estado, contudo, essa presunção não pode ser absoluta, cabendo prova em sentido

contrário.

Não raro, medicamentos essenciais para o tratamentos de doenças

singulares ficam de fora das listas elaboradas pelos entes federativos, vindo a

prejudicar pacientes que correm risco de vida acaso não façam uso desses

medicamentos. Havendo a postulação de algum medicamento que, mediante análise

foi possível constatar a sua essencialidade, deve o Judiciário determinar a

concessão do medicamento.

Nas tutelas emergenciais, via de regra, não é possível deter-se a uma análise

mais aprofundada acerca da essencialidade de um medicamento não incluso na lista

do SUS, caso em que o juiz deverá apoiar-se nas circunstâncias do caso concreto e

nos elementos constantes nos autos para deferir a concessão do medicamento.

231

BARROSO, Luís Roberto. Da falta de efetividade à judicialização excessiva: direito à saúde, fornecimento gratuito de medicamentos e parâmetros para a atuação judicial, p. 28. Disponível em: <http://www.lrbarroso.com.br/pt/casos/direito/artigo_prof_luis_barroso_da_falta_de_efetividade_a_judicializacao_efetiva.pdf>. 232

BARROSO, Luís Roberto. Da falta de efetividade à judicialização excessiva: direito à saúde, fornecimento gratuito de medicamentos e parâmetros para a atuação judicial, p. 28. Disponível em: <http://www.lrbarroso.com.br/pt/casos/direito/artigo_prof_luis_barroso_da_falta_de_efetividade_a_judicializacao_efetiva.pdf>.

Page 91: Monografia - A normatividade dos princípios constitucionais frente à judicialização do acesso à saúde

81

Ainda em relação às demandas individuais, segundo o autor, o pólo passivo

deverá ser ocupado pelo ente responsável pela lista pela qual consta o

medicamento requerido.233

As ações coletivas destinar-se-ão à alteração das listas de medicamentos,

seja para a inclusão de algum medicamento, seja para a substituição de um

medicamento por outro mais eficaz.

Para a defesa de direitos difusos ou coletivos cuja decisão produz efeitos erga

omnes no limite territorial da jurisdição de seu prolator justifica-se a intervenção

judicial para a alteração da lista de medicamentos dos entes federativos. Ainda mais

pelo fato dos legitimados às ações coletivas terem melhores condições de trazer

elementos aos autos e discuti-los.234

De acordo com Barroso, alguns parâmetros devem ser observados para que

se proceda à alteração na listagem dos medicamentos, quais sejam: 1. A

determinação de inclusão, em lista, de medicamentos dar-se-á apenas em relação

aqueles de eficácia comprovada, excluindo-se os experimentais e os alternativos; 2.

O Judiciário deverá optar por substâncias produzidas no Brasil, tendo em vistas as

facilidades que medeiam essa opção; 3. O Judiciário deverá optar pelo medicamento

genérico, de menor custo; 4. O Judiciário deverá considerar se o medicamento é

indispensável para a manutenção da vida, haja vista que, em um contexto de

recursos escassos, um medicamento vital à sobrevivência de determinados

pacientes terá preferência ao que proporcionar apenas melhor qualidade de vida.235

A legitimidade passiva, a exemplo das ações individuais, deverá ser do ente

federativo encarregado de elaborar a listagem dos medicamentos.

Observa-se que, com critérios definidos e consciência acerca das

possibilidades e limites do Estado quanto à prestação dos direitos sociais, é possível

que o Poder Judiciário se torne um artífice na concretização do direito à saúde,

233

BARROSO, Luís Roberto. Da falta de efetividade à judicialização excessiva: direito à saúde, fornecimento gratuito de medicamentos e parâmetros para a atuação judicial, p. 34. Disponível em: <http://www.lrbarroso.com.br/pt/casos/direito/artigo_prof_luis_barroso_da_falta_de_efetividade_a_judicializacao_efetiva.pdf>. 234

BARROSO, Luís Roberto. Da falta de efetividade à judicialização excessiva: direito à saúde, fornecimento gratuito de medicamentos e parâmetros para a atuação judicial, p. 31. Disponível em: <http://www.lrbarroso.com.br/pt/casos/direito/artigo_prof_luis_barroso_da_falta_de_efetividade_a_judicializacao_efetiva.pdf>. 235

BARROSO, Luís Roberto. Da falta de efetividade à judicialização excessiva: direito à saúde, fornecimento gratuito de medicamentos e parâmetros para a atuação judicial, p. 32. Disponível em: <http://www.lrbarroso.com.br/pt/casos/direito/artigo_prof_luis_barroso_da_falta_de_efetividade_a_judicializacao_efetiva.pdf>.

Page 92: Monografia - A normatividade dos princípios constitucionais frente à judicialização do acesso à saúde

82

evitando o excesso de demandas que são prejudiciais tanto ao Judiciário quanto aos

outros poderes.

Contudo, não se pode deixar aqui de afirmar que uma conscienciosa atuação

por parte do Judiciário não basta para evitar o excesso de demandas ou a

inefetividade do direito à saúde. É preciso mais. Uma participação mais ativa da

população e uma maior responsabilidade dos administradores públicos são os

caminhos para que a saúde se torne efetivamente igualitária e universal, conforme

prega a constituição.

Page 93: Monografia - A normatividade dos princípios constitucionais frente à judicialização do acesso à saúde

CONCLUSÃO

Neste Trabalho de Conclusão de Curso foram abordados os temas da

normatividade dos princípios constitucionais e da judicialização do acesso à saúde.

Procurou-se, por meio da normatividade dos princípios constitucionais, demonstrar o

papel e importância singulares dos princípios no ordenamento jurídico. Em relação à

judicialização do acesso à saúde, propôs-se visualizar os problemas que envolvem

as demandas judiciais da saúde de maneira ampla, de modo que se pudesse, ao

final, apresentar parâmetros para que o enfrentamento racional da matéria.

Para melhor esclarecer, no primeiro capítulo procedeu-se à definição dos

princípios com base nos ensinamentos dos grandes doutrinadores sobre o tema, a

apresentação dos seus caracteres, bem como sobre a evolução da normatividade

dos princípios nos ordenamentos jurídicos. Concomitantemente, abordaram-se os

temas das gerações de direitos fundamentais e da dignidade da pessoa humana e o

mínimo existencial.

O termo princípio é polissêmico, variando de significado conforme a

perspectiva em que for analisada. Juridicamente, o vocábulo princípio passa por

constantes modificações a fim de que seu significado abranja tudo aquilo que ele

realmente representa em cada época. Os caracteres dos princípios são as suas

características e os efeitos concretos que são capazes de produzir na sua prática

social. A evolução da normatividade dos princípios demonstra que eles passaram

por três fases distintas de juridicidade: o jusnaturalismo, o positivismo e o pós-

positivismo.

Na fase jusnaturalista, os princípios eram carentes de normatividade, sendo

que espelhavam nada mais do que postulados oriundos da concepção de justiça. No

positivismo, os princípios eram encarados como direito, porém seriam como normas

de aplicação subsidiária caso o direito positivo não contemplasse uma situação

específica. Já na fase pós-positivista os princípios finalmente alcançaram o status de

normas jurídicas assim como as regras, mas com peculiaridades que lhe atribuíam

uma natureza jurídica própria.

Referente ao tema das gerações dos direitos fundamentais mostrou-se a

formação histórica dos direitos ditos fundamentais, procedendo-se à classificação

destas gerações em quatro. Os direitos de primeira geração referem-se aos direitos

Page 94: Monografia - A normatividade dos princípios constitucionais frente à judicialização do acesso à saúde

84

de liberdade. Os de segunda geração são os direitos sociais, oriundos da concepção

de que o Estado é responsável por realizar a justiça social. A terceira geração dos

direitos fundamentais possui titularidade difusa e coletiva, assentados sobre a ideia

de fraternidade. Os direitos de quarta geração advieram do movimento de

globalização política, são os direitos à democracia, à informação e ao pluralismo.

A dignidade da pessoa humana e o mínimo existencial têm especial relevo na

temática dos direitos fundamentais. Por meio da dignidade da pessoa humana

compreende-se o ser humano como fim nunca como um meio, distinguindo-se aquilo

que tem um preço e aquilo que tem dignidade. O mínimo existencial representa a

quantificação mínima dos direitos fundamentais para que seja assegurada a

dignidade da pessoa humana.

Este capítulo, em síntese, apresentou a temática dos princípios e aferiu o seu

caráter de norma jurídica, bem com expôs os fundamentos da doutrina dos direitos

fundamentais.

O segundo capítulo tratou do tema da estrutura das normas jurídicas, que

englobou a questão da distinção entre regras e princípios, os postulados normativos,

os valores e a distinção entre princípios e valores. Ainda, expôs o tema da saúde

como elemento da dignidade da pessoa humana e a sua posição na teoria dos

direitos fundamentais.

A distinção entre princípios e regras é tema central acerca da formulação da

estrutura das normas jurídicas. Quanto maior for a intensidade da distinção entre

eles, mais nítida será a ideia da existência de duas espécies de normas jurídicas.

Formularam-se, desta forma, três tipos de distinções entre regras e princípios:

a distinção forte ou qualitativa, a tese da conformidade ou distinção fraca e a

distinção dúctil.

A distinção forte propugna a ideia de que as normas jurídicas são regras ou

princípios. As regras seriam aplicadas da maneira tudo ou nada, sendo que na

hipótese de conflito entre regras, uma necessariamente teria que ser declarada

inválida. Os princípios seriam como mandatos de otimização, normas que ordenam

que algo seja realizado na maior medida possível, considerando que um conflito de

princípios resolve-se através da lei da ponderação, onde o princípio de maior peso

será aplicado ante o caso concreto, sem, contudo, que o outro princípio seja

declarado inválido.

Page 95: Monografia - A normatividade dos princípios constitucionais frente à judicialização do acesso à saúde

85

A tese da conformidade ou distinção fraca vem afirmar que a tese da distinção

forte é insustentável a partir do momento que certas propriedades normativas podem

ser encontradas em ambas as espécies de normas, podendo, assim, haver nas

regras mandatos de otimização, bem como podem existir nos princípios

determinações precisas.

A distinção dúctil admite uma zona de graduação entre princípios e regras.

Existem a zona de penumbra e a zona de certeza semântica. A distinção forte nega

a existência da zona de penumbra, enquanto que a distinção fraca desconhece a

zona de certeza semântica. Deste jeito, a distinção dúctil reconhece que certas

funções desempenhadas pela norma estão vinculadas, ainda que de forma débil, à

sua estrutura. Não se abandona, por conseguinte, a distinção entre princípios e

regras.

Os postulados normativos constituem-se em diretrizes metodológicas de

aplicação das normas jurídicas no complexo esquema de sopesamento das normas

a reger um caso concreto.

A definição do conceito de valores é uma tarefa complexa e árdua, sendo que

para os fins deste trabalho, os valores apresentam-se como critérios de valoração,

os quais não se confundem com os objetos valorados. A distinção entre valores e

princípios sustenta-se na dimensão axiológica do primeiro, e na dupla dimensão

axiológica e deontológica dos princípios.

Ao final do segundo capítulo, discorreu-se a respeito da saúde incorporar-se

como elemento da dignidade da pessoa humana, uma vez que, sem o mínimo de

saúde, não há como garantir a sobrevivência digna. O direito à saúde pode ser

encaixado tanto como um direito de primeira geração, vez que pode ser oposta

contra a vontade estatal; de segunda geração, eis que é visto como um direito social

a ser propiciado pelo Estado; e como um direito de terceira geração, visto que

inexiste a determinação de seus titular, tratando-se de um direito transindividual.

Neste trabalho, a saúde foi abordada como um direito social prestacional.

Os resultados almejados no segundo capítulo foram plenamente alcançados,

conseguindo-se demonstrar uma teoria da estrutura das normas jurídicas adequada

tendo em vista sua aplicação e concretização, assim como foram apresentados os

caracteres iniciais do direito à saúde, tema do terceiro capítulo.

O terceiro capítulo se ocupou do tema da judicialização do acesso à saúde.

Primeiro, procedeu-se à definição de saúde, destacando-se a competência dos

Page 96: Monografia - A normatividade dos princípios constitucionais frente à judicialização do acesso à saúde

86

entes políticos no financiamento da saúde e o problema que envolve a distribuição

gratuita de medicamentos; em seguida, tratou-se da judicialização excessiva do

acesso à saúde, da colisão entre o direito à vida e à saúde de uns e a promessa

constitucional da universalização da saúde, sendo que o capítulo finaliza-se com a

discussão sobre as possibilidades de uma atuação judicial adequada na distribuição

de medicamentos pelo Estado.

A saúde pode ser vista como um processo sistêmico que objetiva a prevenção

e a cura de doenças, ao mesmo tempo em que visa à melhor qualidade de vida

possível, levando-se em conta a realidade de cada indivíduo.

O Estado promove a saúde a toda a população através do Sistema Único de

Saúde – SUS, orientado pelos princípios da universalidade, integralidade e

equidade. É competência comum de todos os entes estatais, quais sejam, a União,

Estados, Distrito Federal e Municípios cuidar da saúde.

A distribuição gratuita de medicamentos pelo Estado decorre do dever deste

em promover a saúde e apresenta-se, atualmente, como uma questão de grande

complexidade. A procura por medicamentos aumentou bastante, deve o Estado

eleger aqueles medicamentos considerados essenciais, bem ainda as demandas

judiciais para a concessão de medicamentos têm dispendido uma enorme

quantidade de recursos sem se mostrar eficaz quanto à efetivação do direito à

saúde.

A judicialização do acesso à saúde passou a existir já no contexto da

Constituição Federal de 1988, onde as normas constitucionais adquiriram força

normativa. Neste viés, trava-se uma relevante discussão acerca dos limites do

controle judicial de políticas públicas, aceitando-se a possibilidade dessa

interferência somente quando os direitos fundamentais forem vulnerados. O

excessivo número destas demandas judiciais acaba trazendo conseqüências

prejudiciais às políticas públicas traçadas pelo governo; daí a importância da

jurisprudência apontar critérios objetivos para a resolução das demandas, a fim de

minorar os prejuízos e propiciar segurança jurídica.

A colisão entre o direito à vida e à saúde de uns e a promessa constitucional

da universalização da saúde surge como o ponto central das demandas da saúde.

Na verdade, não se deve falar aqui de uma colisão propriamente dita, mas sim de

uma colisão aparente, visto que não é razoável que a saúde pública sucumba frente

à necessidade de um indivíduo e vice-versa. A coletividade e o individual

Page 97: Monografia - A normatividade dos princípios constitucionais frente à judicialização do acesso à saúde

87

representam as duas formas de concretização da saúde, devendo harmonizar-se ao

ponto de que um lado não prejudique o outro.

Para uma atuação judicial adequada na distribuição de medicamentos, foram

destacados os seguintes parâmetros: as ações individuais destinam-se apenas à

dispensação dos medicamentos considerados essenciais inclusos na lista

elaboradas pelos entes federais, exceto se o caso envolva risco à saúde, em que se

admitirá a postulação de outros medicamentos; as ações coletivas servirão para a

alteração da lista de medicamentos, seja para a inclusão de algum medicamento,

seja para a substituição de um medicamento por outro mais eficaz.

Concluindo, o terceiro capítulo foi capaz de revelar a situação referente às

demandas judiciais da saúde, mostrando a sua indispensável utilidade, as questões

polêmicas e os problemas de sua banalização, bem como foram propostos

parâmetros para uma atuação correta da jurisprudência.

Posto isto, foi possível alcançar todos os objetivos desejados com a pesquisa,

pois se verificou a posição dos temas abordados dentro da temática constitucional

contemporânea, de grande importância para a formulação de uma dogmática

constitucional, assim como se puderam detalhar minuciosamente algumas das

questões correntes da saúde no Brasil, propondo-se alternativas e ensejando a

discussão.

Page 98: Monografia - A normatividade dos princípios constitucionais frente à judicialização do acesso à saúde

REFERÊNCIAS DAS FONTES CITADAS

ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2008. ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios – da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 2010. BANDEIRA DE MELO, Celso Antônio. Elementos de direito administrativo. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991. BARROSO E BARCELOS. A nova interpretação constitucional e o papel dos princípios no direito brasileiro. Disponível em: <http://www.buscalegis/index.php/ buscalegis/article/.../30571>. Acesso 14 de julho de 2010. BATISTA NEVES, Iêdo. Vocabulário prático de tecnologia jurídica e de brocardos latinos. Rio de Janeiro: APM, 1987. BERNARDES, Elexandra Helena. Princípios do Sistema Único de Saúde: concepção dos enfermeiros da Estratégia de Saúde da Família, de uma cidade do Estado de Minas Gerais, p. 43-44. Disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/22/22133/tde-21122005-1411317>. Acesso em 25 de setembro de 2010. BOBBIO, Norberto. Positivismo jurídico: lições de filosofia de direito. São Paulo: Ícone, 1995. ______. Teoria do ordenamento jurídico. 10. ed. Brasília: Brasília, 1999. ______. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992. BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. BUSTAMANTE, Thomas. Princípios, regras e a fórmula de ponderação de Alexy: um modelo funcional para a argumentação jurídica? Artigo publicado na Revista de direito constitucional e internacional, volume 54, p. 76-107. CACHICHI, Rogério Cangussu Dantas. A distinção entre princípios e regras como espécie de normas na obra Teoria dos direitos fundamentais de Robert Alexy. <http://www2.uel.br/revista/direitopub/pdfs/VOLUME_4/num_2>. Acesso 06 de outubro de 2010. CANOTILHO, Joaquim Gomes. Direito Constitucional e teoria da constituição. 7. ed. Portugal: Almedina, 2003.

Page 99: Monografia - A normatividade dos princípios constitucionais frente à judicialização do acesso à saúde

89

CARVALHO, Gilson. Financiamento público da saúde no bloco de constitucionalidade, p. 38. Disponível em: <http://pfdc.mpf.gov.br/atuacao-e-conteudos-de-apoio/publicacoes/saude>. Acesso em 03/10/2010. DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002. ESPÍNDOLA, Ruy Samuel. Conceito de princípios constitucionais. 2. ed. São Paulo: Editora RT, 2002. FIUZA, César. Direito civil, curso completo. 12. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2009. HESSE, Konrad. A força normativa da constituição. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1991. HOLANDA FERREIRA, Aurélio Buarque de. Novo dicionário da língua portuguesa. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005. LIMA, George Marmelstein. A força normativa dos princípios constitucionais. Disponível em: <http://www.mundojuridico.adv.br/cgi-bin/upload/texto38.doc>. Acesso em 08 de julho de 2010. LIMA, Ricardo Seibel de Freitas. Direito à saúde e critérios de aplicação, p. 20. Artigo publicado na Revista de Direito Público, número 12, p. 112-132. MACHADO, Clara Cardoso. Propugnando um conceito jurídico-metodológico de políticas públicas para concretização de direitos fundamentais. Disponível em: <http://www.portalciclo.com.br/downloads/artigo/direito/conceito_juridico_de_politicas_publicas_clara_cardoso.pdf>. Acesso em 01 de outubro de 2010. MENDES, GONET e BRANCO. Curso de direito constitucional. 4. ed. Brasília: Saraiva, 2009. __________________________. Hermenêutica constitucional e direitos fundamentais. Brasília: Brasília Jurídica, 2002. MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional, tomo II. 3. ed. Coimbra: Coimbra, 2000. MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL – PROCURADORIA FEDERAL DOS DIREITOS DO CIDADÃO. Financiamento da saúde. Disponível em: <http://pfdc.pgr.mpf.gov.br/pfdc/institucional/grupos-de-trabalho/saude/manuais-de-atuacao>. Acesso em 01 de outubro de 2010. PLÁCIDO E SILVA. Vocabulário jurídico, volume IV. Rio de Janeiro: Forense, 2001. REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2004. ROCHA, Carmem Lúcia. Princípios constitucionais da administração pública. Belo Horizonte: Del Rey, 1994.

Page 100: Monografia - A normatividade dos princípios constitucionais frente à judicialização do acesso à saúde

90

___________________. O princípio da dignidade da pessoa humana e a exclusão social. Revista do Instituto Brasileiro de Direitos Humanos, Brasil, ano II, volume II, p. 49-64, 2001. ROSA, Alexandre Morais da. O que é garantismo jurídico? Florianópolis: Habitus, 2003. RUFINO, André do Vale. Estrutura das normas de direitos fundamentais – repensando a distinção entre regras, princípios e valores. São Paulo: Saraiva, 2009. SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 23. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. SCHWARTZ, Germano. Direito à saúde: Efetivação de uma perspectiva sistêmica. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de direito público. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2008.

Page 101: Monografia - A normatividade dos princípios constitucionais frente à judicialização do acesso à saúde

REFERÊNCIAS LEGISLATIVAS

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil.

Brasília, DF: Senado, 1988.

BRASIL. Decreto nº 26.042, de 17 de dezembro de 1948. Promulga os atos firmados

em Nova York a 22 de julho de 1946, por ocasião da Conferência Internacional de

Saúde. Publicado no Diário Oficial da União, de 25 de janeiro de 1949.

BRASIL. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Publicado

no Diário Oficial da União, de 31 de dezembro de 1940.

BRASIL. Decreto-Lei nº 4.707, de 17 de setembro de 1942. Dispõe sobre a vigência

da Lei de Introdução ao Código Civil. Publicado no Diário Oficial da União, de 18 de

setembro de 1942.

BRASIL. Lei nº 8.078, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre a defesa do

consumidor e dá outras providências. Publicado no Diário Oficial da União, de 20 de

setembro de 1990.

BRASIL. Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para

a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento

dos serviços correspondentes e dá outras providências. Publicado no Diário Oficial

da União, de 20 de setembro de 1990.

BRASIL. Lei nº 8.142, de 28 de dezembro de 1990. Dispõe sobre a participação da

comunidade na gestão do Sistema Único de Saúde (SUS) e sobre as transferências

intergovernamentais de recursos financeiros na área da saúde e dá outras

providências. Publicado no Diário Oficial da União, de 31 de dezembro de 1990.

Page 102: Monografia - A normatividade dos princípios constitucionais frente à judicialização do acesso à saúde

92

BRASIL. Lei nº 9.797, de 10 de fevereiro de 1999. Altera a Lei nº 6.360, de 23 de

setembro de 1976, que dispõe sobre a vigilância sanitária, estabelece o

medicamento genérico, dispõe sobre a utilização de nomes genéricos em produtos

farmacêuticos e dá outras providências. Publicado no Diário Oficial da União, de 7

de maio de 1999.

BRASIL. Portaria 3.916/GM, de 31 de outubro de 1998. Aprova a Política Nacional

de Medicamentos. Publicado no Diário Oficial da União, de 10 de novembro de

1990.