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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO – CAMPUS I PEDAGOGIA – ANOS INICIAIS MARIA RAIMUNDA CALDAS SOUZA O PODER DE DETERMINAÇÃO DA DIMENSÃO POLÍTICO-PEDAGÓGICA DA PRÁXIS DOCENTE NA CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA DISCENTE NOS ANOS INICIAIS SALVADOR – BA 2010

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB

DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO – CAMPUS I

PEDAGOGIA – ANOS INICIAIS

MARIA RAIMUNDA CALDAS SOUZA

O PODER DE DETERMINAÇÃO DA DIMENSÃO POLÍTICO-PEDAGÓGICA DA

PRÁXIS DOCENTE NA CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA DISCENTE NOS ANOS

INICIAIS

SALVADOR – BA

2010

1

MARIA RAIMUNDA CALDAS SOUZA

O PODER DE DETERMINAÇÃO DA DIMENSÃO POLÍTICO-PEDAGÓGICA DA

PRÁXIS DOCENTE NA CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA DISCENTE NOS ANOS

INICIAIS

.

SALVADOR – BA

2010

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como requisito parcial para obtenção do Grau de Licenciatura Plena em Pedagogia com Habilitação em Anos Iniciais, pelo Curso de graduação em Pedagogia, da Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Orientador: Prof. Dr. Luciano Sérgio Ventin Bomfim. .

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MARIA RAIMUNDA CALDAS SOUZA

O PODER DE DETERMINAÇÃO DA DIMENSÃO POLÍTICO-PEDAGÓGICA DA

PRÁXIS DOCENTE NA CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA DISCENTE NOS ANOS

INICIAIS

.

Aprovado em___/___/___

BANCA EXAMINADORA

_______________________________________________________________

Professor Dr. Luciano Sérgio Ventin Bomfim – UNEB

_____________________________________________________________________

Professor Dr. Valdélio Santos Silva – UNEB

_____________________________________________________________________

Professora Msc. Ieda Balogh – UNEB

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como requisito parcial para obtenção do Grau de Licenciatura Plena em Pedagogia com Habilitação em Anos Iniciais, pelo Curso de graduação em Pedagogia, da Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Orientador: Prof. Dr. Luciano Sérgio Ventin Bomfim. .

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Dedico este trabalho à minha filha Sofia que mesmo

ainda no meu ventre me faz ansiar com muito mais

intensidade por um mundo melhor, mais justo. Junto

a ela, dedico também a todas as crianças que são

hoje a única esperança de uma sociedade mais

humana.

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AGRADECIMENTOS

Se a atividade humana se constitui através das relações sociais, a elas

devemos a realidade que vivemos. Se a realidade pode ser transformada, que

busquemos isso através de nossas práxis. Pois, o conhecimento significativo só será

construído se entre ele e o interessado medeia pessoas significativas. Assim,

gostaria de agradecer profundamente às pessoas que contribuíram direta ou

indiretamente para que esse trabalho se realizasse. Aos poucos verdadeiros

mestres que passaram na minha vida e se tornaram fonte de inspiração neste

trabalho, o meu muito obrigada!

A Deus que sempre me ampara nos momentos de angústia (em especial na

realização desse trabalho);

A toda minha família, que sempre acreditou em mim, em especial à minha

mãe que mesmo semi-analfabeta acreditou que a educação formal era um bem

valioso na minha vida;

À Edmary (minha primeira professora), que apesar da sua práxis estar

limitada à lógica do capital, me ensinou carinhosamente a ler e a escrever;

Ao meu marido Antonio Cesar, pelo amor, paciência, incentivo e confiança no

meu potencial;

À professora Lucinete Chaves, por sua vontade e garra em formar

professores críticos;

Ao professor Roberto Carlos, por defender a Pedagogia como uma das mais

belas profissões;

Ao professor e orientador Luciano Bomfim, que abraçou a minha pesquisa e

me fez entrar em atividade intelectual tão intensamente que não mais dela desejo

sair.

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“É necessário romper com a lógica do capital se quisermos contemplar a criação de

uma alternativa educacional significativamente diferente”.

István Mészáros

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RESUMO

O presente trabalho tem por objetivo descobrir o poder de determinação da dimensão político-pedagógica da práxis docente na construção da cidadania discente nos anos iniciais. Para isso, se fez necessário entender como se processou as relações sociais construídas ao longo da história – em especial no sistema capitalista –, entre os seres humanos, e destes com a natureza; entender o conceito de práxis social e práxis docente; e, qual a necessidade da práxis docente na construção da cidadania discente. Assim, foi necessário fazer uma revisão da literatura, no qual o referencial teórico adotado baseou-se nos autores Karl Marx, Antonio Gramsci, Paulo Freire, István Mészáros, Dermeval Saviani, dentre outros que tratam desse tema. Além disso, foi preciso analisar alguns documentos oficiais que regem a educação escolar brasileira e trazer para a discussão a realidade política social e econômica sob a qual se encontra os menos favorecidos. Por fim, ao concluir este trabalho, descobriu-se que o poder de determinação da práxis docente nos anos iniciais está limitado à lógica do capital o qual manipula e aliena tanto o professor quanto o aluno. E essa condição de seres alienados só será superada quando o docente romper com essa lógica.

Palavras-chave: Alienação. Práxis. Cidadania.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO

2 A RELAÇÃO ESTADO – ESCOLA – SOCIEDADE

2.1 A ONTOLOGIA DO SER HUMANO

2.2 A ESCOLA ANTE AS DETERMINAÇÕES SOCIAIS

2.3 AS POLÍTICAS PÚBLICAS E A AUTONOMIA DA ESCOLA

3 A DIALÉTICA PRÁXIS SOCIAL – PRÁXIS DOCENTE

3.1 O CONCEITO DE PRÁXIS SOCIAL

3.2 HÁ UMA AUTONOMIA DA PRÁXIS DOCENTE ANTE A PRÁXIS

SOCIAL?

3.3 A DIMENSÃO POLÍTICO-SOCIAL DA PRÁXIS DOCENTE

4 A PRÁXIS DOCENTE E A NECESSIDADE DE CONSTRUÇÃO DA

CIDADANIA DO ALUNO NOS ANOS INICIAIS

4.1 A NECESSIDADE DA FORMAÇÃO CIDADÃ PARA A CRIANÇA

4.2 A EDUCAÇÃO ENQUANTO ATO POLÍTICO

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

REFERÊNCIAS

ANEXOS

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13

13

18

26

35

35

41

44

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49

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1 INTRODUÇÃO

Considerando ser a formação política do indivíduo o principal instrumento de

desalienação e luta pacífica contra as injustiças do mundo, se faz necessário dar

maior atenção a esse objeto do conhecimento se quisermos cumprir com um dos

objetivos constitucionais da educação e da Lei de Diretrizes e Bases - LDB:

preparação para cidadania.

Refletindo sobre minha experiência educacional dos 7 anos de idade (período

que ingressei no mundo escolar) até a atual graduação, bem como as experiências

que tive em sala de aula, desde os estágios na época do curso de magistério até os

dias de hoje, e as experiências de observação em sala de aula, pude perceber que a

educação que tive – a qual influenciou minha visão de mundo até pouco tempo, e

que comumente se desenvolve nas escolas brasileiras –, está enraizada em uma

prática pedagógica alienante, que conserva, reproduz e mantém a sociedade em

prol do capital, e que não desenvolve uma verdadeira práxis, que seja revolucionária

e que emancipe o sujeito e toda sociedade.

A educação formal precisa assumir verdadeiramente seu papel perante a

sociedade, isto é, contribuir significativamente para o desenvolvimento humano. Os

educadores precisam perceber que sua contribuição é extremamente relevante no

processo de formação do sujeito crítico, criativo, autônomo e participativo. Para isso

precisam se libertar das garras da lógica do capital. Enquanto eles não quebrarem

as correntes que lhes prendem a esse sistema desumano, que explora e exclui

grande parte da população, não conseguirá mediar o desenvolvimento da

consciência crítica dos seus alunos e consequentemente a construção da cidadania;

afinal, nós construímos uma visão de mundo e atuamos sobre ele a partir da nossa

formação enquanto sujeitos, assim, enquanto formos sujeitos alienados,

reproduziremos sujeitos também alienados. Não serei ingênua em afirmar que a

escola sozinha resolverá os problemas da sociedade, porém, essa deve ser a mola

propulsora na construção de uma sociedade mais justa, solidária, em busca de

iguais oportunidades.

Diante disso, o objetivo deste trabalho é descobrir o poder de determinação

da dimensão político-pedagógica da práxis do professor na construção da cidadania

discente nos anos iniciais.

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A temática em questão surgiu a partir de inquietações e angústias que

insistem em me acompanhar desde quando entrei para o mundo acadêmico. Não é

de hoje que vivo questionando meu processo de formação e minha prática. E, como

num insight, me vi mergulhada num mar de incertezas, medos, dúvidas.

Foi o que me fez refletir sobre minha condição de futura educadora, e assim

me reportei aos meus primeiros anos de escola; época que considero hoje, a mais

importante no processo de formação e desenvolvimento do sujeito, mas que em mim

deixou “lacunas” jamais preenchidas. Não compreendia o que significava estar numa

sala cheia de pessoas estranhas, e porque tinha que ir a escola; porque a escola

nunca me foi apresentada como um espaço democrático e preocupada com a minha

formação de cidadã, mas apenas como um local necessário para me educar ao

ponto de “garantir” um emprego no futuro. Por que não conseguia compreender as

coisas que aconteciam ao meu redor: minha situação econômica, o bairro pobre

onde morava, a falta de saneamento básico? Por que me sentia inferior aos brancos

de cabelos lisos e porque os negros eram considerados classes inferiores? Por que

poucos eram ricos e muitos eram pobres? Por que...? Por que...? Por que...? Será

que é porque deveria continuar acreditando que era Deus que queria assim, que era

o meu destino? Será que é porque deveria crescer alienada, aceitando tudo que a

mim era imposto? Será que meus professores eram alienados tanto quanto eu? Ou

será que eram vítimas do sistema o dos governantes do nosso país? Será...?

Será...? Será...? São questionamentos que não me deram oportunidade de fazer,

mas que só agora faço e encontro respostas.

E me vi fazendo magistério. Por vocação? Por falta de opção? Sei lá, só sei

que estava lá, tentando me preparar para ser mais uma professora do interior,

reproduzindo uma educação tão tradicional, retrógrada e alienante quanto meus

pensamentos e minha formação. De repente chego ao 3º ano e descubro que não

quero ser uma professora, não mais acredito nos educadores e na educação. Mas já

era tarde demais! Veio a tão sonhada formatura. Recebo uma proposta: continuar

morando no interior e começar a lecionar, ou vim para capital “tentar a vida”. Apesar

da dúvida, decidi vim para Salvador em busca de novas oportunidades, afinal, isso

não seria coisa difícil, tinha 18 anos, segundo grau completo. Que ingenuidade!

Aliás, essa vivia (e ainda vive) me perseguindo.

Depois de quase um ano de procuras e decepções, finalmente consigo um

emprego, função? Operadora de caixa. Como estava feliz, valeu à pena estudar.

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Faculdade? Não fazia parte dos meus planos, pois isso era coisa de rico. Mas fui

descobrindo o mundo acadêmico por osmose. Assim, depois de dois/três anos na

capital, decidi fazer um cursinho pré-vestibular, um pouco incerta do que me moveu

para o sonho de entrar numa universidade, lá estava me preparando para competir

por uma vaga no mundo acadêmico, mundo que me garantiria uma profissão

decente, que me tirasse de trás de um balcão. Contudo, ainda achando algo muito

distante do meu mundo, do mundo da minha família - como ainda é hoje -, pois

dentre oito irmãos, só eu ingressei numa universidade.

Daí veio os questionamentos internos: que curso fazer? Um que me desse

dinheiro ou que eu tivesse afinidade? A única coisa que sabia era que gostava de

crianças e queria trabalhar com questões sociais. Entre muitas sugestões decido

tentar ingressar num curso de Pedagogia, afinal, não existiria curso melhor para,

além de trabalhar com crianças, desenvolver um trabalho que envolvesse as

questões sociais. Foi então quando comecei a me decepcionar verdadeiramente

com a educação, ou melhor, com os educadores e o sistema de ensino. Ainda nas

aulas de cursinho percebi que nada sabia, que minha formação não servia pra nada,

ou melhor, só servia pra me fazer reproduzir o que a lógica do capital queria, um ser

humano conformado e alienado. E quando estava para desistir de tentar, diante do

conformismo que a vida me impôs, e da “incapacidade” de competir por uma vaga,

entro em uma universidade pública – sonho de todo estudante – no curso de

Pedagogia. E assim, dentre muitas faltas, decepções e incertezas – só consciente

hoje –, foi sendo construída minha formação escolar, minha consciência, minha

cidadania, meu futuro, minha visão de mundo.

Cheia de medo e insegurança, apresento-me e sou apresentada a um mundo

muito distante do que até então conhecia. Trêmula, insegura e sentindo-me incapaz,

tinha agora um desafio: correr atrás do prejuízo deixado por uma formação

“capenga” e desconstruir uma visão de mundo tão ingênua e passiva quanto a que

tinha, bem como contribuir para não perpetuar a história que vivi.

A partir de então, pela necessidade de me reconhecer enquanto ser histórico

e humano, decidi pesquisar o tema – O poder de determinação da dimensão

político-pedagógica da práxis docente na construção da cidadania discente nos anos

iniciais. Pois acredito que o papel e a atuação político-pedagógica docente devem

estar indiscutivelmente ligados à sua práxis cotidiana, e que a consciência política

deve ser trabalhada na escola desde o primeiro contato da criança com a vida

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escolar. Só assim, o ensino brasileiro tradicionalista e excludente, comandado pelo

sistema capitalista, será superado.

Sabe-se que a escola é formadora de opiniões, porém, estar longe de mim

defender uma ação político-partidária do professorado ou atos proselitistas, isto é,

defender o uso da sala de aula como espaço de doutrinação, impondo ideologias e

crenças; pois isso, por si só vai de encontro com a própria ideia que defendo – a

formação da consciência crítica e política do educando –, afinal, como afirma Paulo

Freire (1983, p. 12), “conscientizar não significa, de nenhum modo, ideologizar ou

propor palavras de ordem”; se assim acontece, limita os alunos a uma visão de

mundo restrita e particularizada, tornando-os seres alienados. Sei que o discurso

político partidário é inaceitável na sala de aula, porém, conscientizar politicamente é

papel sim da escola,

Portanto, o tema em questão pretende levar o leitor a compreender quais

resultados e conseqüências o trabalho docente (ensinar) causará na formação dos

seus alunos; ele poderá ser um sujeito alienado, acrítico e passivo, ou será

questionador, consciente dos seus direitos e deveres; que não aceitam as ideias, e

as situações impostas pelos outros, como únicas e verdadeiras antes de analisá-las,

questioná-las e compreendê-las dentro do contexto vivido; afinal, quem não dialoga,

não é capaz de conhecer e tampouco refutar e assim criar, recriar e transformar,

pois apenas decora, internaliza e repete modelos minuciosamente construídos para

manter as coisas como estão. Neste sentido, encaro o papel da educação formal e

do educador como fundamental para a formação humana; uma formação que não

permita que histórias como a que vivi – marcada por faltas, aceitações, acriticidade,

questões não instigadas, nem tampouco respondidas pelos meus professores –, se

reproduzam.

Para que esta pesquisa fosse realizada foi necessário desenvolver o seguinte

roteiro: selecionar e fichar referências que já pesquisaram o tema; conhecer as

teorias das seleções feitas; aprofundar-me dessas teorias para refinar a seleção;

selecionar os autores primários, secundários e terciários; e localizar tais referências.

Além disso, se fez necessário analisar alguns documentos oficiais que asseguram a

educação escolar; e, partindo da realidade contemporânea, compreender como a

educação formal se comporta diante dela; por fim, fazer as devidas leituras

dialogando com os autores, com os documentos, e a realidade, e assim produzir os

textos que resultaram nesse trabalho.

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Diante disto, trago no primeiro capítulo (item 2 do sumário), a relação escola

estado e sociedade com intuito de investigar e compreender os processos históricos

e sociais que desencadearam essa relação. Para isso, foi necessário primeiro

conhecer o ser humano enquanto essência, ou seja, sua ontologia. A partir daí

buscamos compreender suas relações construídas historicamente, e qual o papel da

escola nesse emaranhado de relações. Como aporte teórico, me apoiei nas ideias

do evolucionismo de Charles Darwin, e nas teorias cristãs do criacionismo. Outros

autores que muito contribuíram para esse tema foi Karl Marx e sua crítica ao sistema

capitalista, bem como Althusser e Enguita e suas críticas à escola como aparelho

reprodutor de Estado. As teorias de Antonio Gramsci, Dermerval Saviani e Paulo

Freire que, além de criticar a educação reprodutivista, nos fornece subsídios para

que uma mudança significativa aconteça, também foram muito relevantes.

Buscamos em Celina Souza, em Moacir Gadotti, na Constituição Federativa de 1988

e na lei de Diretrizes e Bases da Educação, em especial a 9394/96, a discussão

sobre as políticas públicas e a autonomia da escola.

No segundo capítulo (item 3 do sumário) trazemos para discussão a dialética

práxis social – práxis docente. Neste momento buscamos compreender o conceito

de práxis social e práxis docente, trazendo um diálogo entre as duas, procurando

compreender e respeitar suas particularidades. Para entender o conceito de práxis

social me apoiei em Vázquez e Marx, os quais defendem a práxis social enquanto

atividade humana transformadora. Assim, fez-se necessário discutir também a

autonomia do professor e sua formação político-social. Utilizamos das ideias dos

teóricos István Mészáros e Paulo Freire por esses acreditarem que a educação só

será transformadora quando o educador romper com a lógica do capital.

No terceiro e último capítulo (item 4 do sumário), discutimos a práxis docente

e a necessidade da construção da cidadania discente nos anos iniciais. Neste

capítulo se discutiu a necessidade da formação cidadã da criança e a educação

enquanto ato político. Os teóricos que nos apoiaram aqui foram: Freire, Mészáros e

Saviani.

E assim chegamos em nossas considerações finais percebendo que a práxis

docente é controlada por um sistema que não permite uma educação de qualidade

para os menos favorecidos; que aliena tanto o professor que ver seu trabalho como

uma mercadoria de troca, quanto o aluno que sofre a ação de ser educado dentro

dessa lógica.

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2 A RELAÇÃO ESTADO – ESCOLA – SOCIEDADE

Para que possamos compreender as relações sociais existentes hoje no

Brasil e no mundo se faz necessário antes de tudo entender o homem dentro do

processo histórico em que viveu. Como se constitui e se constituíram suas relações

com o outro, com a natureza, com as instituições civis, com a escola, com o poder,

com Estado. Entender o papel do Estado ante estas relações é de extrema

importância se quisermos compreender o ser humano em sua essência.

2.1 A ONTOLOGIA DO SER HUMANO

Quem somos? De onde viemos? Para onde vamos? Esses questionamentos

caminham com a humanidade desde que os homens tentam entender e buscam

provar a origem das espécies no planeta Terra. Num surto de crise existencial,

alguém um dia se viu intrigado com os mistérios de sua existência e eternizou essas

indagações que podem ser a mola propulsora na mudança da história do surgimento

da humanidade. Não se sabe ao certo quem primeiro levantou esses

questionamentos, no entanto, é impossível negar sua importância na “descoberta”

da origem da espécie humana. Imortalizadas na obra do pintor francês Paul

Guaguim1 – obra essa que tem como título essas três perguntas –, estas questões

despertam grandes interesses de filósofos e cientistas consagrados.

O aparecimento do homem na Terra é recheado de teorias, hipóteses e

crenças defendidas pelas mais diversas linhas de pensamento. A ciência e a religião

vivem em constantes conflitos em prol de suas teorias, de suas verdades a respeito

da origem da vida e sua evolução.

A teoria Criacionista acredita que há um Deus (para fé cristã) ou vários

deuses ( para outras crenças religiosas), Criador da natureza e de toda criatura que

habita sobre a Terra. Como se pode ler na Bíblia Cristã:

No princípio, Deus criou o céu e a terra [...]. Deus disse: ‘ A terra faça brotar vegetação: plantas que dêem sementes, e árvores frutíferas, que dêem frutos sobre a terra, tendo em si a semente de sua espécie [...] Deus disse: ’Fervilhem as águas de seres vivos e voem pássaros sobre a terra, debaixo do firmamento do céu’ [...]

1 Pintor francês do século XIX.

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Deus disse: ‘Produza a terra seres vivos segundo suas espécies, animais domésticos, animais pequenos e animais selvagens, segundo suas espécies’ [...] Deus disse: ‘Façamos o ser humano à nossa imagem e segundo a nossa semelhança, para que domine sobre os peixes do mar, as aves do céu, os animais domésticos, todos os animais selvagens e todos os animais que se movem pelo chão’. [...] E Deus os abençoou e lhes disse: ‘ Sede fecundos e multiplicai-vos, enchei a terra e submetei-a’! (Gn 1,1.28).

E assim estava criado todo ser vivo que habita sobre a Terra. Essa é a crença da

teoria criacionista conservadora, seguida por várias religiões cristãs, em especial as

protestantes, que vêem os princípios bíblicos da criação como a única verdade

aceita e incontestável. No entanto, é preciso ressaltar que apesar dessa teoria estar

baseada na fé cristã e judaica, muitos dos seus seguidores (como a Igreja Católica,

Anglicana, alguns protestantes, dentre outros) já aceitam o evolucionismo numa

tentativa de unir ciência e fé. Não se quer dizer com isso que tais seguidores

renunciam a lei da criação como os evolucionistas, mas, que acreditam - ou

assumiram essa crença -, que essas duas teorias se integram e não se anulam.

Porém, continuam negando o “acaso” como justificativa para o surgimento da vida

na Terra, o que acreditam é que há um Deus criador do céu e da Terra e de toda

criatura, que nos criou por um propósito e por isso orienta todas nossas ações, mas,

que foi evoluindo desde sua criação e garantindo assim sua existência no planeta.

Essa última teoria é o que Ferreira (2008) chama de “criacionismo moderno”.

Por outro lado, a teoria Evolucionista busca negar o Criacionismo e provar a

partir de evidências observadas e testadas, isto é, a partir do conhecimento científico

que o ser humano é a evolução de outra espécie animal, assim como todos os

outros seres vivos. Para Charles Darwin, as espécies surgiram e evoluíram através

de processos naturais, das mutações aleatórias, levando em consideração a

adaptação ao meio ambiente.

Não se quer aqui defender nem tampouco negar nenhuma das duas vertentes

teóricas. No entanto, o que fica claro nas duas correntes bem como em todas as

suas seguidoras é que o ser humano é a espécie mais “perfeita” entre eles, pois,

além de interagir de maneira consciente com as outras espécies, entre eles e com a

natureza, é capaz de pensar e transformar o meio para suprir suas necessidades,

para sobreviver. E essa transformação se dá desde então pelo trabalho, por sua

relação com a natureza. Assim, tanto o Criacionismo quanto o Evolucionismo tentam

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em comum, entender e explicar o ser humano ontologicamente, isto é, sua essência,

seu conteúdo de espécie.

É claro que dentro da própria ciência assim como nas crenças religiosas,

existem várias teorias em defesa da origem da vida, porém, o que todas comungam

é a ideia que o mundo está em constante evolução e como nele o homem está

inserido, precisa ser entendido como tal.

Sendo o ser humano o mais “perfeito”/evoluído dos animais, torna-se

diferente e superior a esses, pois, só ele é capaz de agir conscientemente e dominá-

los – apesar de sabermos que existe a dominação entre os seres humanos e que

essa se dá através do poder, não entraremos agora nessa discussão –,

transformar-se, e modificar a natureza em benefício próprio através do trabalho, [...]

”ou seja, agindo para o atendimento de suas necessidades, que o ser humano

transforma a natureza e, ao mesmo tempo, transforma a si mesmo, se produz, torna-

se consciente”, como destaca Bomfim (1996, p.7) se apropriando da ideia de Marx.

E esse “tornar-se consciente” de sua práxis e de suas necessidades foi sendo

constituído através do trabalho. Ou seja, o trabalho torna o ser humano consciente,

e a consciência possibilita o ser humano transformar a natureza, a sociedade.

Para melhor compreender a formação da consciência tomaremos como base

as reflexões de Marx e Engels em sua obra “A Ideologia Alemã” (1932). Aqui, os

autores buscam explicar como se deu a vida em sociedade, tendo as correntes

filosóficas e a realidade alemã como referência; além disso, vêm demonstrar

também que há duas maneiras de explicar a formação da consciência humana: a

partir da concepção idealista, ao qual eles criticam por vê-la como uma concepção

especulativa e abstrata da realidade; e da concepção materialista e dialética,

defendida por eles, e que se explica a partir daquilo que é empírico, concreto, real.

Para estes autores, “não é a consciência que determina a vida, mas a vida é que

determina a consciência”, ou seja, a consciência é produto da prática e do

desenvolvimento humano; da relação existente entre o homem e seu objeto

concreto; logo, são as condições materiais disponíveis e os meios de produção que

determinam as relações entre os seres humanos através da consciência.

Seguindo a linha de algumas correntes naturalistas e idealistas, pode-se dizer

que toda espécie animal possui características biológicas específicas. Os animais

irracionais são naturalmente pré-determinados a se comportar de maneira tal na

natureza, possuem ação instintiva, e essa é a essência do seu existir no mundo.

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Para Marx, ao contrário, a vida do ser humano não está pré-determinada, pois sendo

ele um ser consciente (não entraremos agora no mérito dos tipos de consciência –

ingênua ou crítica), ou seja, de conhecimento, razão, reflexão, memória, e por isso,

livre do determinismo da natureza, o faz pensar o seu estar no mundo. Ele existe,

sabe que existe, e pensa sobre isso, e pensando, reage, modifica, transforma, e

assim se torna livre para escolher seu “destino”, suas ações. Sendo livre, o homem

constrói sua essência historicamente. Essa construção se dá a partir das relações

sociais e da interação com a natureza. E toda essa interação que está em constante

movimento – construção-destruição-reconstrução –, por ser consciente, tem uma

intencionalidade; não é instintiva como ocorre com os outros animais. Logo, o que

diferencia o ser humano dos animais irracionais, é a existência da consciência, da

razão. E foi justamente o uso destas que fez a humanidade evoluir (entender por

evolução também os problemas que a sociedade enfrenta hoje).

Sabe-se que os primeiros seres humanos a habitar o planeta Terra viviam em

estado primitivo e assim foram classificados como inferiores e selvagens por

pertencer a sociedades anteriores a civilização. No entanto, a história da vida em

sociedade,

[...] pode ser explicada, em termos de uma sucessão de revoluções tecnológicas e de processos civilizatórios através dos quais a maioria dos homens passa de uma condição generalizada de caçadores e coletores para diversos modos, mais uniformes do que diferenciados, de prover a subsistência, de organizar a vida social e de explicar suas próprias experiências ( RIBEIRO, 1998, p.39-40).

Fica claro então que o processo de formação das sociedades, resultante do

desenvolvimento humano, se deu a partir de revoluções, as quais diferenciaram o

modo de ser, de pensar e de agir do ser humano, ao longo do seu processo

histórico. E é a partir desta nova maneira de se comportar no mundo que passaram

a trabalhar coletivamente para subsistência do grupo; a terra era de todos, logo, o

produto desse trabalho pertencia a todos; ainda não existia entre eles o pensamento

da divisão de classes, da exploração do homem pelo homem, nem tampouco da

propriedade privada. À medida que o homem foi evoluindo, “civilizando-se”, a

produção deixou de ser apenas para a subsistência, o homem começa a produzir

excedentes com o objetivo da troca, nasce então a mercadoria (estamos no sistema

feudal). Grandes famílias então eram formadas e em conjunto trabalham em

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benefício próprio, agora, cada pedaço de terra tinha um dono (senhor feudal), surge

assim a propriedade privada, a divisão do trabalho e consequentemente a divisão

das classes sociais (dominantes e dominados); e assim a civilização propriamente

dita vai incorporando as técnicas, o poder da religião, o uso da razão, a ciência, os

valores, as leis, a arte, a força do capital; enfim a sociedade civil organizada e o

Estado, e com ele o poder de dominação se fortalecendo.

À medida que o tempo foi passando e o mundo experimentando as mais

diversas formas de convívio em sociedade, novas formas de poder foram surgindo, e

com ele a necessidade de uma sociedade organizada foi ficando cada vez mais

forte. O homem por natureza sente-se pertencente a um grupo, na verdade, ele já

nasce inserido num determinado grupo que é a família e vai sendo inserido em

outros: o trabalho, os amigos, a escola, a igreja etc. O trabalho que desde então

impulsionava a sociedade primitiva, vem agora tomar um lugar de maior destaque,

servir como base entre as sociedades capitalistas2, em especial nas reflexões de

Karl Marx:

O trabalho, como criador de valores-de-uso, como trabalho útil, é indispensável à existência do homem – quaisquer que sejam as formas de sociedade –, é necessidade natural e eterna de efetivar o intercâmbio material entre o homem e a natureza, e, portanto, de manter a vida humana. ( MARX, 1890, p.50).

Marx aqui quer demonstrar que o trabalho antes de tudo é a essência da vida, é a

ponte que liga o indivíduo e a natureza. Ele afirma que o produto desse trabalho

deve ser útil - o que ele chama de valor de uso -, isto é, deve ser produzido para

atender a uma necessidade do ser humano. Quando o produto do trabalho é uma

mercadoria (o que acontece na sociedade capitalista), não necessariamente são

criadas como valores de uso já que a finalidade desse produto é a troca ou a venda.

Assim, o valor de uso cede lugar ao valor de troca.

As teorias levantadas por Marx em O Capital partiram da tentativa de

entender a lógica do capital a partir do comportamento da sociedade capitalista

vivida em sua época, onde a força de trabalho era o alicerce de sua sustentação.

Além disso, queria entender a sociedade dividida em classes tão bem definidas. E

2 Apropriando-nos do termo em Marx, podemos dizer que esse tipo de sociedade se define como produtora de mercadoria e de mão-de-obra assalariada.

18

qual era o papel de cada classe; por que a burguesia ascendia com tanto fervor e o

proletariado estava cada vez mais em estado de miséria.

A partir das ideias de Marx e de outros teóricos preocupados com a

disparidade existente na sociedade capitalista, e com a emancipação humana; é

possível entender o comportamento do homem atual, [...] “ dos modos de ser e

interagir das sociedades contemporâneas, enquanto resultantes de longos e

complexos processos históricos” (RIBEIRO, 1998, p.34), seus anseios, suas

necessidades, suas faltas e a possível mudança; é possível entender como a

riqueza em detrimento da miserabilidade é tão gritante em alguns países como o

Brasil; enfim é possível compreender o homem em sua essência, isto é, a sua

ontologia.

2.2 A ESCOLA ANTE AS DETERMINAÇÕES SOCIAIS O cotidiano de um indivíduo, de um grupo, de uma família ou até mesmo de

uma sociedade é marcado por fatores diversos. Sejam eles sociais, econômicos,

políticos, ambientais etc., cada época vai marcar historicamente esta sociedade.

Várias foram as formas de se pensar e organizar cada sociedade desde sua

existência. A princípio ( pelo menos nas sociedades primitivas), toda pessoa exercia

um importante papel nela, ou seja, todos eram considerados necessários e

fundamentais para a manutenção da vida; do equilíbrio entre a natureza e o ser

humano. Com o passar do tempo, a função de cada sujeito foi se modificando, vezes

sendo substituída, outras sendo manipulada, algumas outras descartada. O vilão

dessa história? É o que iremos descobrir.

Desde que o ser humano se percebeu um ser em constante evolução, suas

necessidades, seu comportamento e sua vida mudaram. A maneira de ver e explorar

a natureza ganhou um novo olhar. Cada ação, antes voltada apenas para

sobrevivência do coletivo, ganha uma novo significado. A partir de então, não

bastava mais trabalhar para sua subsistência, era preciso conquistar e acumular

cada vez mais para garantir o “futuro”, seu e da sua família. Numa espécie de

gincana, uns tornam-se “vencedores” e dominadores e outros “perdedores” e

dominados, assim como acontecia e ainda acontece na educação escolar, pois, o

processo de ensino-aprendizagem foi e continua sendo (mesmo com todo otimismo

que depositamos nele) uma espécie de competição desigual e excludente. Onde os

19

vencedores (a classe dominante) e os perdedores ( os dominados) todos já

conhecem antes mesmo do seu fim.

A educação e o desenvolvimento da humanidade sempre caminharam juntas,

isso porque, como nos lembra Freire (1983, p. 35), “não há educação fora das

sociedades humanas e não há homem no vazio” Logo, a educação e o

desenvolvimento humano sempre coexistiram. Toda ação humana é determinada –

e determina – por um ato educativo mesmo que esta não seja percebida ou definida

com tal. No entanto, essa prática só se tornou objeto de estudo milênios depois do

aparecimento do ser humano.

Para entendermos melhor a prática educativa e posteriormente a escola ante

as determinações sociais, precisamos fazer uma viagem histórica dentro das ideias

de educação que cada sociedade criou ao longo dos tempos; e como essa é vista no

mundo contemporâneo.

Nas sociedades primitivas a educação acontecia através da prática. A ação

educativa era vista no cotidiano de cada comunidade. A criança aprendia a caçar e

pescar olhando e imitando seus pais ou outros adultos da tribo ao qual pertencia. À

medida que a divisão social do trabalho e com ela as desigualdades econômicas e

sociais surgem – pois essa divisão resultou em benefícios para poucos e malefícios

para muitos –, aparecem também as classes e as relações sociais de produção.

Agora, cada grupo ou pessoa exercia função específica dentro dessa sociedade.

Enquanto uns passaram a elaborar, controlar e ditar as regras do sistema, seja

econômico, político ou social, (tendo a educação com aliada), outros apenas as

seguiam, isto é, uns mandavam, e outros obedeciam. A educação que antes era

igual para todos passa a ser diferenciada: uma educação X para os ricos e

exploradores e uma educação Y para os pobres e explorados. E assim a história da

educação e da humanidade ia sendo construída. O interesse no coletivo perde

espaço e vai sendo substituído por interesses cada vez mais individualizados. De

um lado estão os submetidos, os oprimidos e excluídos, vítimas da expropriação e

da exploração; do outro, os exploradores, prontos para fazer o que preciso fosse

para defender e manter sua posição privilegiada diante da sociedade. E assim, a

educação primitiva e familiar foi sendo substituída por uma educação dogmática,

autoritária e conservadora.

Não se pode negar que apesar dessa mudança ocorrida no processo

educativo, o qual resultou em classes tão antagônicas e desiguais, muitos avanços

20

se devem a ela. O nascimento do pensamento filosófico e sociológico acerca do ser

humano enquanto ser consciente e em busca de mudança, vem despertar

relevantes reflexões dentro da sociedade de cada época. O comportamento do ser

humano, seus interesses, suas ações, passam a ser objeto de estudos de diversos

autores dentro da Filosofia, da Sociologia, da Antropologia, da Educação, dentre

outros. Várias novas teorias surgem então questionando hipóteses antes

inquestionáveis, vistas como verdades absolutas por milhões e milhões de anos

(como o surgimento do homem na Terra, por exemplo). E assim, o pensamento e as

ações de cada época histórica iam se modificando. Ora evoluindo, ora retrocedendo

– do ponto de vista da emancipação humana. As teorias e as práticas pedagógicas,

por ter importante função na sociedade ganha destaque. Cada período histórico vai

desenvolvendo seu modo de pensar e fazer a educação, sua pedagogia. Dentre os

vários pensamentos pedagógicos, encontramos o que Dermeval Saviani chamou de

teorias não-críticas, teorias crítico-reprodutivistas, e as teorias críticas, as quais

vêem demonstrar como ocorreram (e ocorrem) as relações entre a educação e a

sociedade, pois, como já foi comentada anteriormente a relação entre educação e

sociedade é uma relação de dependência.

Diante disto, várias teorias foram elaboradas ao longo da história com o

objetivo de entender e explicar a prática educativa como sendo a mola propulsora do

“desenvolvimento” da humanidade. Assim, foram criadas teorias que ora vê a escola

como instrumento de superação da marginalidade, ora a define como reprodutora e

mantenedora desta. Analisaremos brevemente essas teorias baseados nas ideias

desenvolvidas por Dermeval Saviani em seu livro Escola e Democracia, onde o autor

traz para discussão os problemas da educação atual focando a marginalização e a

acriticidade (ou falsa crítica) de algumas teorias que foram aclamadas por longos

períodos no Brasil e no mundo.

Criadas para atender aos interesses da burguesia (classe em ascensão) que

clamava por uma educação democrática e para todos, as teorias não-críticas

(Pedagogia Tradicional, Pedagogia Nova e Pedagogia Tecnicista) viam a questão da

marginalização como um acidente, ou seja, um fato social, não premeditado, que

poderia ser superado pela educação através da escola. Por acreditarem que a

educação não influenciava o modelo de sociedade, essas teorias eram classificadas

como não-críticas. Já as teorias crítico-reprodutivistas, criticavam a escola na

sociedade capitalista por vê-la como instrumento de reprodução e inculcação da

21

ideologia dominante e das relações sociais de produção. E isso se dava pelo ensino

dual que oferecia tais escolas: um voltado para a elite (intelectual), e outro para o

povo (técnico e manual), como aponta Gramsci (1991, p. 118), a escola estava

dividida em clássica e profissional, a qual, “a escola profissional destinava-se às

classes instrumentais, ao passo que a clássica destinava-se às classes dominantes

e aos intelectuais.” O que gerava os diferentes níveis intelectuais de conhecimento e

cultura, e consequentemente a segregação e as diferentes classes sociais.

No pensamento pedagógico crítico-reprodutivista, temos como principais

pensadores, Bourdieu e Passeron, Baudelot e Establet, Althusser, e Enguita. Como

o próprio nome indica, os críticos-reprodutivistas criticavam a educação e as

relações sociais de reprodução do capitalismo, mas viam a escola como reprodutora

dessas relações. Para eles, a educação está diretamente ligada aos fatores sociais.

No entanto, tal pensamento, apesar de criticar a educação, nega a autonomia da

escola e assim anula qualquer práxis social que possibilite a emancipação humana e

que lute por uma sociedade mais igualitária e livre da alienação.

Louis Althusser (1918-1990) foi um filósofo francês que se aliou ao Partido

Comunista Francês em 1948. Em seu livro Os aparelhos ideológicos de Estado,

Althusser analisa a “reprodução das condições de produção” através do Estado, o

qual ele define como Aparelho Repressivo de Estado (o governo, a administração, a

política etc.), ou seja, como uma ‘máquina’ que “[...] permite as classes dominantes

[...] assegurar a sua dominação sobre a classe operária [...]” (p.62); bem como as

várias instituições que o constitui como sendo aparelhos ideológicos deste. Como

aparelhos ideológicos de Estado o autor enumera várias instituições: AIE religiosos;

AIE escolar; AIE familiar; AIE Jurídico; AIE político; AIE Sindical; AIE de informação;

AIE cultural. Como o próprio nome indica, para Althusser, os AIE funcionam através

da ideologia e esta é materializada através da prática. Ele ainda acrescenta que

todos os AIE funcionam como reprodutores. Iremos agora entender melhor como

funciona o AIE escolar segundo Althusser.

A necessidade de submeter a classe popular à dominação da classe

dominante e posteriormente à lógica do capital, bem como de “qualificar” a força de

trabalho, transferiu a função de educar da família e da igreja para a escola. A partir

de então cabe à escola, além de ensinar a ler, escrever, contar e algumas técnicas

necessárias para o trabalho nas fábricas, ensinar também as regras do bom

comportamento e da obediência (inquestionável) para alguns, e de chefia para

22

outros. Nesta perspectiva dualista que se encontrava a escola, Althusser define esta

como reprodutora da força de trabalho, que gera e legitima as relações sociais de

produção da elite ( em sua época, a burguesia). Ou seja, a escola ensina para

manter o status quo da classe dominante. Como fica claro na citação a seguir:

Acreditamos portanto ter boas razões para afirmar que, por trás dos jogos de seu Aparelho Ideológico de Estado político, que ocupava o primeiro plano do palco, a burguesia estabeleceu como seu aparelho de Estado n° 1, e portanto dominante, o aparelho escolar, que, na realidade, substitui o antigo aparelho ideológico de Estado dominante, a Igreja, em suas funções. Podemos acrescentar: o par Escola–Família substitui o par Igreja–Família.” (ALTHUSSER, 2003, p. 78).

Assim, fica claro que para Althusser a escola como aparelho ideológico de Estado

reproduz as relações sociais de produção apoiada pela família, inculcando nas

crianças os saberes “pertencentes” à ideologia da classe dominante.

Apesar de não negar diretamente a luta de classes, o que fica evidente para

nós analisando a teoria de Althusser, é que ele não acredita numa vitória da classe

popular. Para ele, uma luta seria em vão à medida que os mais fortes (a elite)

sempre serão vencedores; que a luta de classe era algo utópico (do ponto de vista

irrealizável). Que de nada adiantaria lutar contra esse sistema. A esses poucos que

se revoltavam contra ele (o sistema) Althusser chama de “heróis”. Seriam um

espécie de heróis solitários. Por isso sua teoria é crítico reprodutivista. Vejamos o

trecho a seguir que melhor analisa essa ideia:

Peço desculpas aos professores que, em condições assustadoras, tentam voltar contra a ideologia, contra o sistema e contra as práticas que os aprisionam, as poucas armas que podem encontrar na história e no saber que ‘ensinam’. São uma espécie de heróis. Mas eles são raros, e muitos (a maioria) não têm nem um princípio de suspeita do ‘trabalho’ que o sistema (que os ultrapassa e esmaga) os obriga a fazer, ou, o que é pior, põem todo seu empenho e engenhosidade em fazê-lo de acordo com a última orientação (os famosos métodos novos!). Eles questionam tão pouco que contribuem, pelo seu devotamento mesmo, para manter e alimentar esta representação ideológica da escola, que faz da Escola hoje tão ‘natural’ e indispensável, e benfazeja a nossos contemporâneos para a Igreja era ‘natural’, indispensável e generosa para nossos ancestrais de alguns séculos atrás ( ALTHUSSER, 2003, P. 80-81)

23

Ele acreditava com isso que a escola como aparelho ideológico dominante e

pertencente ao aparelho repressivo de Estado, contaminava e assim alienava todos

que se mostravam contrários ao modelo de educação existente, vendo a escola

como meio de mudança e transformação social.

Outro autor crítico-reprodutivista que merece destaque é Mariano Enguita.

Esse autor que tem seu trabalho desenvolvido na área da Sociologia da educação,

discute em seus estudos as relações sociais de educação, trabalho e ideologia.

Assim como Althusser, Enguita traz à tona sua teoria e visão da escola ante da

sociedade capitalista. Para ele, a autoridade e a hierarquia não é um privilégio da

economia capitalista, pois são encontradas também no seio familiar, nas escolas e

em outros AIE. Essa autoridade se diferencia é certo, mas existe. Assim, a escola

ganha um papel fundamental na sociedade, isto é, atender as necessidades da

sociedade capitalista, sejam essas em nível de formação técnica e intelectual, ou de

aceitação, sujeição, e acima de tudo de reprodução e manutenção da ordem

vigente.

As escolas comungam entre si a ideia de manutenção da ordem e da

autoridade. Como disse Silberman em citação de Enguita, a escola não estava

preocupada em tornar os alunos críticos, “auto-suficientes”, independentes,

autônomos; ao contrário, a educação escolar tornava o aluno cada vez mais

dependente dela e do outro; cada vez mais passivo às regras impostas por ela.

Assim, pode-se dizer que a “autoridade da escola é parte da relação social da

educação” (Enguita, 1989). Isto é, como autoridade inquestionável da educação, a

escola determinava o que era certo ou errado, o que deveria ou não ensinar. E este

era o princípio que sustentava sua existência na sociedade.

Não se pode negar que as teorias crítico-reprodutivistas fizeram sérias críticas

ao modelo de educação da sociedade capitalista e que isso foi de extrema

importância para análises e estudos posteriores em relação a educação e seus fins,

principalmente na América Latina. No entanto, não podemos deixar de mencionar

que estas teorias não trazem propostas pedagógicas intervencionistas, que

solucionem a lamentável situação das classes marginalizadas. Seus seguidores se

posicionam apenas como agentes críticos, sem trazer soluções possíveis, isso por

acreditarem que a sociedade é assim e não poderia ser diferente. Por isso, se faz

necessário refutar algumas abordagens dessas teorias diante do papel da escola.

Sabe-se que a escola tem que obedecer a uma hierarquia e que esta é dominada

24

por várias ideologias. Porém, a luta pela autonomia tanto da escola quanto do

professor ante as instituições que controlam os fins da educação, é a arma mais

eficiente para combater todo tipo de dominação e alienação, tanto política, quanto

ideológica e religiosa que ainda impera na sociedade brasileira e paralisa os

educandos.

Ainda há professores que estão em sala de aula, mas são incapazes de

exercer sua profissão, por incompetência, má formação acadêmica, ou falta dela;

por desacreditar na educação; por ter medo de lutar ou por ser mais cômodo não

lutar; por estar na profissão errada; e, a pior delas, por estar tão alienado(a) em

relação ao seu trabalho, não se dá conta da violência intelectual que está causando

aos seus alunos, reproduzindo ideologias perversas e opressoras. Além disso, ainda

há pessoas que direta – teóricos, professores, diretores, secretários de educação, o

próprio governo com suas alianças políticas – ou indiretamente, ligadas à educação

– jornalistas, pais, religiosos etc. –, vêem a escola como aliada na manutenção da

classe dominante e assim quer manter o ensino. Dessa forma, lutam contra toda

postura que seja contrária a essa estrutura e, usufruindo do poder que possui (seja

político ou econômico) defendem e divulgam informações deturpadas para

convencer e manipular a população. E para isso, não há veículo melhor do que a

mídia. Um exemplo claro da luta da elite contra qualquer práxis revolucionária foi

divulgada pela Revista VEJA há dois anos com o título: Você sabe o que estão

ensinando a ele? (ver anexo A) Pesquisa publicada em agosto de 2008.

Num discurso puramente elitista (feito exclusivamente para elite, já que

mostra dados de escolas particulares conceituadas) escrito pelas jornalistas Mônica

Weinberg e Camila Pereira (prováveis elites brasileira) as autoras chamam a

atenção dos pais para o tipo de educação que seus filhos estão recebendo nas

escolas. Para elas, a práxis educativa de alguns professores preocupados em

conscientizar seus alunos sobre a conseqüência do sistema capitalista, é uma mera

prática doutrinária esquerdista e ideológica. Vários teóricos consagrados que são

citados como figuras históricas pelos professores, e que se posicionaram contra a

ideologia dominante e contra a alienação do povo, foram atacados nesta matéria.

Dentre eles, Marx e Lênin. Até nosso ilustre Paulo Freire foi taxado de “personagem

arcano sem contribuição efetiva à civilização ocidental”. Quanto desrespeito!

Percebe-se com isso que a luta contra a alienação imposta é dura, porém

necessária.

25

Contudo, apesar de toda artimanha articulada pela classe dominante, há

também muitos professores, pesquisadores, acadêmicos e estudiosos, que se

mostram preocupados e engajados em resolver os problemas que impedem a

conquista de uma educação de qualidade; que lutam contra posturas que exclui e

aliena cada vez mais o povo. São nesses incansáveis guerreiros que devemos

alimentar nossas esperanças, não de forma passiva, esperando que o outro faça por

nós, mas participando ativamente, conhecendo e exercendo nossos direitos de

cidadãos; combatendo todo tipo de preconceito e discriminação, seja de sexo, raça,

religião ou posição social. Essa é a prática que esperamos dos educadores, uma

prática que envolva ações concretas, emancipadoras.

Uma nova visão crítica da educação movida pela transformação da sociedade

se deve a Antonio Gramsci e seus seguidores, e o trabalho intelectual que esses

desenvolveram (e vem desenvolvendo) na história da educação. Ao contrário dos

teóricos críticos-reprodutivistas, Gramsci via a educação escolar como instrumento

de transformação social e revolução cultural da grande massa. Para ele, a educação

escolar básica deveria ser única e universal, ou seja, uma educação onde todos

teriam acesso à cultura e ao conhecimento de maneira equitativa. Assim, ele propôs

a criação da escola unitária, isto é,

escola única inicial de cultura geral, humanista, formativa, que equilibre equanimente o desenvolvimento da capacidade de trabalhar manualmente (tecnicamente, industrialmente) e o desenvolvimento das capacidades de trabalho intelectual. (GRAMSCI, 1991, p.118).

Foi com esta visão, que Gramsci, repudiando a educação dual já mencionada

anteriormente, propôs uma escola igual para todos, e de responsabilidade do

Estado; que valorizasse o conhecimento intelectual/clássico (que desenvolvesse o

“trabalho produtivo” e a consciência política) e o técnico/profissional ao mesmo

tempo. O que promoveria a maturidade intelectual dos sujeitos, virtude indispensável

para ingressar nas universidades ou “escolas especializadas”. Sendo esses

espaços, local propício para formar profissionais aptos e conscientes da importância

do seu trabalho para a sociedade. Veja o que diz Gramsci (1991, p.121):

A escola unitária ou de formação humanista[...] ou de cultura geral deveria se propor a tarefa de inserir os jovens na atividade social, depois de tê-los levado a um certo grau de maturidade e

26

capacidade, à criação intelectual e prática e a uma certa autonomia na orientação e na iniciativa.

O que o autor defende é uma formação inicial que desenvolva no sujeito atitudes

autônomas, críticas e maduras perante a sociedade, antes da vida acadêmica ou a

inserção no mercado de trabalho.

Além de Gramsci, outro autor que merece ser destacado por sua luta contra

a alienação da classe explorada e a lógica do capital é Dermeval Saviani, pois, a

ideia deste autor comunga com a de Gramsci. Para ele, o problema das teorias

críticos-reprodutivistas está em não ver a escola como agente de mudança e

transformação social, mas sim como mantenedora da exclusão, da segregação e

marginalização. Já que a classe dominante não tem interesse em modificar a

estrutura social em que vive – pois isso afetaria sua posição e sua estabilidade

econômica –, resta à classe dominada lutar por seu espaço de direito na sociedade,

o que é garantido pela Constituição. E isto só será possível quando esta alcançar a

plena consciência de seus direitos enquanto cidadãos. O que esse autor defende, é

que é possível a partir da educação formal, obter a emancipação humana, tão

necessária para se reparar a injustiça e a desigualdade historicamente construída

pelas sociedades. Ainda que diante de limitações impostas e fatores socialmente

construídos para que essa transformação não aconteça.

Já Paulo Freire, outra figura importantíssima para a educação popular

brasileira, sempre esteve engajado com os princípios da conscientização para

mudança. Este autor idealizou uma pedagogia que fosse capaz de libertar a

sociedade da opressão, desenvolvendo no aluno (assim como Marx idealizou para o

proletariado) a consciência revolucionária, onde o mesmo possa questionar

criticamente as relações de poder que o envolve.

2.3 AS POLÍTICAS PÚBLICAS E A AUTONOMIA DA ESCOLA

Iniciaremos este tópico com uma questão problematizadora que levantará

muitos outros importantes questionamentos para entendermos a escola e a

educação no Brasil contemporâneo: qual o verdadeiro papel da escola na

27

contemporaneidade brasileira? Para encontrar a resposta, precisamos entender

desde seu funcionamento até a participação de todos os sujeitos envolvidos.

Antes de adentrarmos na questão do funcionamento da escola e suas

nuances, precisamos nos localizar no tempo e no espaço. Vivemos num país

historicamente marcado pela exploração européia, pelo regime escravocrata, e de

caráter centralizador. Apesar da sua “Independência” política e administrativa em

1822, o Brasil continuou (e continua) sendo um país dependente do capital

estrangeiro, isto é, dependente política e economicamente dos países

desenvolvidos. Com a extinção do tráfico negreiro em 1850, o dinheiro antes

investido na compra de escravos, passa a ser aplicado no setor industrial. O Brasil

começa dar os primeiros passos para uma política de “desenvolvimento”, tendo a

indústria – e consequentemente o fortalecimento do capital, a divisão do trabalho, o

surgimento do operariado e das classes cada vez mais antagônicas – como principal

instrumento. A entrada do século XX foi marcada pela ascensão do capitalismo e

suas transformações na sociedade. Estamos em pleno século XXI, período

marcado por grandes mudanças e grande evolução mundial, o qual a globalização3,

marcada pela lógica do mercado, dita as principais regras da nova sociedade.

Vivemos num país democrático e capitalista. Como já foi discutido

anteriormente, o sistema capitalista segue a lógica do capital econômico. E o que

vem a ser uma sociedade democrática? É possível um sistema de governo que se

renda a lógica do capital exercer a Democracia?

Viver num Estado democrático é ser tratado de maneira igual perante todos,

independente de cor, sexo, crença e situação social; é ser respeitado em suas

diferenças; é ter as mesmas oportunidades de acesso a educação de qualidade,

saúde, emprego, moradia, e todas as necessidades que o ser humano precisa para

ter uma vida digna; é ter liberdade de ir e vir, e de escolha; é ter seus direitos civis,

sociais e políticos garantidos, e ser incentivado a participar e acompanhar o

desenvolvimento do seu país; é ser tratado como cidadão de direitos. De acordo

com Marilena Chauí (2008, p.67) democracia é:

3 “Processo segundo o qual as atividades decisivas num âmbito de ação determinado (a economia, os meios de comunicação, a tecnologia, a gestão do ambiente e o crime organizado) funcionam como unidade em tempo real no conjunto do planeta” ( Manuel Castells em Sociedade e Estado em transformação, p.149, 1999)

28

Forma sócio-política definida pelo princípio da isonomia (igualdade dos cidadãos perante a lei) e da isegoria ( direito de todos para expor em público suas opiniões, vê-las discutidas, aceitas ou recusadas em público), tendo como base a afirmação de que todos são iguais porque livres, Isto é, ninguém está sob o poder de um outro porque todos obedecem às mesmas leis das quais todos são autores (autores diretamente, numa democracia participativa; indiretamente, numa democracia representativa).

Vivemos isso aqui no Brasil? Como tratar iguais os desiguais já que a Democracia

subtende igualdade de direito para todos?

O que realmente se vive no Brasil é um sistema de governo que não

conseguiu se libertar totalmente do regime autoritário, antidemocrático e oligárquico,

que marca nossa história desde o período colonial; que atende as perspectivas da

classe dominante em detrimento das necessidades da classe popular; mas que se

apropria e prega um discurso essencialmente democrático. Não seremos tão

radicais ao ponto de afirmar que aqui não exista democracia, pois, muitos atos

democráticos foram e são percebidos e vividos no Brasil contemporâneo (eleição,

garantia e ampliação da educação, liberdade de expressão, participação população

(mesmo que restrita), dentre outras). Contudo, vivemos uma democracia

fundamentada em princípios liberais, que se define, segundo Chauí, como sendo

“regime da lei e da ordem para a garantia das liberdades individuais”; mas esta

liberdade é para poucos, haja vista que ela é sinônimo de competição econômica e

política, excluindo boa parte da população. Logo, a democracia existe para uma

pequena parcela da população, ou como destaca Demo (1987, p. 56): “Até hoje

fomos capazes apenas de uma democracia eufórica, uma democracia espasmódica,

absolutamente peregrina, que passa por aqui de vez em quando, mas não mora

aqui”. Ou como analisa Chauí (2008, p. 70), “podemos avaliar quão longe dela nos

encontramos, pois vivemos numa sociedade oligárquica, hierárquica, violenta e

autoritária”. O pensamento destes autores a respeito da democracia social nos leva

a fazer as seguintes reflexões: não se pode dizer que um país vive uma democracia

por cumprir algumas ações democráticas, mas desrespeitar muitas outras; não

podemos definir um país como democrático por dar direito ao voto para seus

cidadãos – ou melhor, obriga-os a votar –, entre outros direitos políticos, mas não

se preocupa com a formação da consciência crítica e política, fato que leva ao que

Paulo freire chama de “ignorância política” ou como diz Pedro Demo “pobreza

política”.

29

Vive na democracia um país que tem alto índice de mortalidade infantil e

analfabetismo (ver anexos B e C) etc.? Que tem uma das piores distribuição de

renda do mundo, conforme o coeficiente de GINI4 (ver anexo D), o que gera a

violência, o desemprego ou subemprego? É democrático investir mais no setor

privado enriquecendo cada vez mais os empresários em detrimento do setor público,

em especial a saúde, a educação e a segurança; necessidades básicas para a

população? É democrático oferecer educação pública para todos, mas sem

qualidade? Ou não construir escolas suficientes e/ou próximas às suas residências,

o que lhe garanta melhor acessibilidade? Se isso é democracia, precisamos criar um

novo conceito para ela.

Se o sistema capitalista defende a propriedade privada, a acumulação de

riqueza, a venda da força de trabalho, o consumismo exagerado e

consequentemente a divisão das classes sociais; então, como a classe popular, que

vive tão alienada, tentando sobreviver, pode “competir” igualmente e exercer seus

direitos num sistema tão desigual e excludente como este? Então, como o Estado

“democrático” em que vivemos se comporta diante disto? A educação é a principal

fonte para encontrarmos essas respostas. Ela é a base necessária para manter

nossa confiança na transformação e revolução pacífica da sociedade, através da

revolução intelectual da grande massa. Afinal, como já dissemos, o Estado Brasileiro

não goza plenamente da democracia que diz ter, e com isso não assegura os

direitos constitucionais. Logo, se a formação para cidadania é um dos principais

objetivos da educação formal, e princípio norteador de uma sociedade democrática,

é neste objetivo que a escola deve fundamentar-se, ou seja, formar cidadãos ativos,

participantes, capazes de julgar, criticar e escolher; valores indispensáveis para uma

efetiva prática democrática e libertadora.

Já foi centro da nossa discussão o papel da escola e da educação na lógica

do capitalismo burguês. Como já afirmara Althusser, ela funcionava como Aparelho

Ideológico de Estado, a qual as relações econômicas, políticas e ideológicas do

Estado capitalista, eram a base desta nova sociedade. Assim, a educação era

diferenciada e vista como formadora de mão-de-obra (formação dada à classe

4 Mede o grau de desigualdade existente na distribuição de renda dos indivíduos. Quanto mais próximo de zero maior a igualdade social. Quanto mais próximo da unidade, maior a desigualdade, varia, portanto em uma escala de zero a um.

30

popular) especializada para atender as necessidades da indústria e da classe

dominante, reproduzindo as relações sociais de produção, como destaca Frigotto:

Nas perspectivas das classes dominantes, historicamente, a educação dos diferentes grupos sociais de trabalhadores deve dar-se a fim de habilitá-los técnica, social e ideologicamente para o trabalho. Trata-se de subordinar a função social da educação de forma controlada para responder às demandas do capital (FRIGOTTO, 2003, p. 26).

É nesta lógica que as escolas funcionavam. Negando os reais princípios da

democracia – sociedade “livre e igualitária” – clamada pela burguesia, e ratificando a

desigualdade de classes, a exclusão, o servilismo, a opressão e a alienação vividos

no feudalismo, mas também percebidos no sistema capitalista que vivemos. Assim,

mais uma vez, pode-se perceber que a democracia existia apenas para os

privilegiados, pois os excluídos não tinham nem mesmo consciência dos seus

direitos.

Pode-se afirmar que o Estado brasileiro na atualidade é marcado por duas

correntes de pensamento: de um lado, o sistema neoliberal e sua política excludente

“que abandona a garantia dos direitos, transformando-os em serviços vendidos e

comprados no mercado e, portanto, em privilégios de classe” (CHAUÍ, 2008, p.66);

isso acontece à medida que esse sistema defende a liberação generalizada

(globalizada) e a promoção desenfreada das atividades econômicas, como a

produção, a distribuição e o consumo; tornando o mercado cada vez mais

competitivo e consequentemente a desigualdade econômica entre as classes, cada

vez mais perceptível. Do outro lado, tem-se a busca pela concretização efetiva da

democracia social, que luta pela legitimação e garantia dos direitos universais.

A função do Estado democrático é promover o bem-estar social. Para isso

ele precisa interferir nas diversas esferas da sociedade: política, social e econômica.

Dentre estas esferas, pode-se destacar a habitação, a saúde, a educação, a

segurança pública e o meio ambiente. E para atingir resultados satisfatórios em tais

áreas, o governo deve utilizar meios que serão indispensáveis para alcançá-los,

como por exemplo, as políticas públicas, isto é, um conjunto de projetos ou ações

estratégicas promovidas para atender aos interesses e necessidades da sociedade.

Ou como afirma Peters (1986), citado por Souza (2006), “política pública é a soma

das atividades dos governos, que agem diretamente ou através de delegação, e que

31

influenciam a vida dos cidadãos”. Logo, pode-se afirmar que as políticas públicas

foram e são criadas para manter certo equilíbrio social, ou seja, para desenvolver o

país e diminuir as desigualdades existentes nele. Para contemplar nosso objeto de

estudo, iremos analisar as políticas públicas no campo educacional.

Sabe-se que a educação pública é uma esfera da política social e obrigação

do Estado. Sendo assim, deveria ser tema central de discussão das políticas

públicas do governo. No entanto, o que podemos perceber é que ela apesar de estar

sempre no rol dos discursos dos governantes, vem legitimando cada vez mais a

segregação das classes sociais e consequentemente as desigualdades entre elas;

seja no acesso ao trabalho produtivo, na cultura, na criticidade, no voto consciente,

nas decisões políticas e demais ações decisórias para o país. Ainda hoje, mesmo

com toda luta e conquistas que a educação já teve, o que ainda impera é a

discriminação educacional e a ausência de uma educação pública de qualidade para

a população, qualidade essa que diminua a distância entre as oportunidades das

classes sociais. Isso nos leva a concluir que o governo investe muito pouco na

educação pública.

Sabemos que as escolas brasileiras são controladas e monitoradas por vários

órgãos e instituições nacionais e internacionais. No entanto, ela pode e deve

funcionar exercendo sua autonomia, afinal, vivemos num país “democrático” que lhe

assegura isso, como garante a Constituição do Brasil de 1988:

Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, e igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional [...]. (BRASIL, 1988)

Como se pode observar na citação acima, a Constituição Brasileira traz como centro

da sua preocupação assegurar os direitos de seus cidadãos. Logo, todo instituição

dirigida pelo Estado deve seguir e respeitar essa Constituição. A escola pública

brasileira, como instituição administrada pelo Estado, não deve fugir à regra, ela

deve caminhar, respeitando e obedecendo a essa Constituição.

Ao funcionamento da escola e do ensino brasileiro foram reservados os

artigos 205 ao 214 da Constituição. No Art.205 está expresso que a educação é um

32

direito de todos sendo dever do Estado e da família. Então, cabe ao “Estado

Democrático Brasileiro” oferecer uma educação que respeite e faça cumprir essa

Constituição.

Analisando a história do MEC (Ministério da Educação e Cultura) pode-se

observar que a responsabilidade da União pelo planejamento nacional da educação

no Brasil, e a garantia da educação como direito de todos, já estava assegurado

desde a Constituição de 1934. Em 1930 foi criado o Ministério da Educação e Saúde

que só foi separado em 1953 quando passou a ser chamado de Ministério da

Educação e Cultura (MEC); em 1932, Fernando de Azevedo, Anísio Teixeira entre

outros intelectuais, preocupados em lançar um programa de política educacional,

elabora o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, documento escrito por vários

educadores, com o título A reconstrução educacional no Brasil: ao povo e ao

governo, que tinha por finalidade oferecer diretrizes para uma nova política de

educação. Até 1960 o sistema de ensino brasileiro era padronizado e centralizado

no MEC, e todos (estados e municípios) deveriam segui-lo. Porém, com a Lei de

Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1961 os municípios e estados

ganharam mais autonomia para desenvolver seus projetos e ações educacionais. De

1961 até a LDB de 1996 (Lei nº 9.394) ao qual nos apoiamos atualmente, muitas

leis, reformas e projetos foram criados. O mais recente compromisso do MEC com o

ensino público é a criação do Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da

Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação) em substituição

ao Fundef (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de

Valorização do Magistério), que vigorou de 1996 até 2006. É de responsabilidade do

Fundeb toda a educação básica, desde as creches e pré-escolas até o Ensino

Médio, e esse estará em vigência até 2020.

O que podemos perceber do sistema de ensino brasileiro até então, é que a

pressão da sociedade por acesso e ampliação da educação gratuita e de qualidade

fez o Brasil ter alguns avanços e conquistas. Além dos já mencionados acima, temos

também o “regime de colaboração” entre a União, o Distrito federal, Estados e

Municípios (Art. 211); autonomia; projeto político pedagógico, dentre outros. No

entanto, esses avanços vêm contribuindo muito pouco para melhorar a qualidade da

educação, e consequentemente assegurarem os direitos educacionais do povo

brasileiro. Isso nos leva a concluir que os governos, ao longo dos anos, fizeram

muitos projetos e leis para a educação pública, mas não investiram adequadamente

33

com recursos financeiros que o fizessem fortes e seguros. Para se ter uma ideia, em

2004, conforme a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico

(OCDE) o percentual do PIB investido na educação brasileira foi de apenas 3,9%,

enquanto que no Chile o investimento foi de 6,4%. E porque isso acontece? Por falta

de real investimento econômico na educação; falta de compromisso dos governos

que não fazem políticas públicas que dêem efetiva autonomia as escolas e aos

profissionais da educação; falta de uma gestão democrática que seja responsável e

compromissada com a educação; falta de fiscalização e cobrança da população etc.

Um dos principais instrumentos para mudar o quadro da educação no Brasil é

a implantação e execução de reformas educacionais que priorize a educação a

partir da gestão democrática. E para ela funcionar se faz necessário descentralizar o

sistema educacional dando maior autonomia para as escolas e para a comunidade:

na formulação de políticas educacionais; no planejamento de ações e projetos; na

tomada de decisões; na definição do uso de recursos e necessidades de

investimento; nos momentos de avaliação da escola; isto é, na efetiva participação

de todos os envolvidos com e educação (principalmente através do Conselho de

Escola5), sejam o governo, os gestores, professores, funcionários, alunos, pais e

toda comunidade escolar. Em uma gestão democrática todos precisam ser ouvidos

e participar dos momentos de elaboração dos projetos da escola ( em especial o

projeto político pedagógico), pois o que deve estar em jogo é sua instância maior,

isto é, o processo de ensino-aprendizagem, algo de interesse de todos. Assim, a

autonomia adquirida deve funcionar dentro de uma prática político-pedagógica

responsável, “compreendida como a liberdade de cada escola construir o seu projeto

pedagógico” (OLIVEIRA, 2008)6, e não como uma conquista à liberdade de ação,

incoerente com os princípios democráticos de educação.

A autonomia da escola no Brasil está apoiada na Constituição de 1988. Já

que esta institui um Estado Democrático que garante a participação de toda

população, concede direitos importantíssimos à escola e aos sujeitos que sofrem

sua ação. No entanto, apesar dessa autonomia ser um direito constitucional, o que

se observa é uma autonomia limitada pela hierarquização de poder e burocratização

5 “Órgão mais importante de uma escola autônoma, base da democratização da gestão escolar”. ( Escola Cidadã: a hora da sociedade- Moacir Gadotti e José Eustáquio Romão. 6 Dalila Andrade Oliveira: Professora do Departamento de Administração Escolar da Faculdade de Educação/UFMG. Em Gestão democrática da educação no contexto da reforma do Estado.

34

dos órgãos que financiam a educação brasileira. Há regras e leis feitas e executadas

de cima para baixo, que na maioria das vezes desconhecem, e por isso não levam

em consideração a realidade de cada região, cidade, bairro, escola, cada aluno.

Pois como afirma Gadotti (2001), “o caminho que pode ser válido numa determinada

conjuntura, num determinado local ou contexto, pode não ser em outra conjuntura ou

contexto”. Não que a escola deva funcionar solta, sem fiscalização; mas autônoma e

participativa, partindo do seu contexto, da sua realidade, da sua necessidade. É

desse modelo de gestão que a escola precisa. Assim, “percebe-se que o novo

paradigma de gestão precisa resgatar o papel e o lugar da escola como centro e

eixo do processo educativo autônomo” (Bordignon e Gracindo, 2008)7, construído

coletivamente.

Outra questão que deve ser discutida dentro da ideia de democratização do

ensino público e de qualidade da educação é a importância da autonomia, tanto do

professor(a), quanto do aluno(a), principais sujeitos do processo ensino-

aprendizagem. Mas uma vez a educação escolar exerce relevante papel na

formação da autonomia do sujeito. Como já foi dito, a escola, apesar da garantia

formal de sua autonomia, ainda é controlada por um poder hierárquico e burocrático

que dita as regras e as normas do sistema público de ensino. No entanto, é preciso

ressaltar que o processo educativo normalmente se realiza dentro da sala de aula, e

os principais protagonistas são os professores e os alunos. Com isso, podemos

afirmar que o professor(a) pode exercer uma autonomia significativa na escolha dos

materiais que irá utilizar na sua aula, nas suas estratégias de ensino e avaliação, o

que lhe permite formar um sujeito tão autônomo quanto ele. A escola precisa

preparar seus alunos para adquirir autonomia pessoal, respeitando e incentivando

sua curiosidade e criatividade, suas preferências, sua linguagem, seus medos e

seus anseios; enfim, suas singularidades; além disso, precisa inseri-los na

sociedade e conscientizá-los para uma emancipação social.

7 Genuíno Bordignon – profº. adjunto e diretor da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília; Regina Vinhas Gracindo – profª. adjunta da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília.

35

3 A DIALÉTICA PRÁXIS SOCIAL – PRÁXIS DOCENTE

Como um ser social, o ser humano age e sofre a ação de todas as relações

que constitui a humanidade. Se sua ação transforma para o bem comum, exerce

uma práxis social; se modifica em seu favor ou em prol de um determinado grupo,

executa uma prática utilitarista e assim legitima as posições sociais.

3.1 O CONCEITO DE PRÁXIS SOCIAL

Para análise deste trabalho adotamos o conceito de práxis apresentado por

Vázquéz (1977), em seu livro Filosofia da Práxis, no qual pretendemos, junto com o

autor, “ elevar nossa consciência da práxis como atividade material do homem que

transforma o mundo natural e social para fazer dele um mundo humano” (p.3). Ou

seja, a verdadeira filosofia da práxis é aquela que não apenas interpreta o mundo –

restrita aos idealistas –, mas que a partir dessa interpretação transforma-o, isto é,

age sobre ele, em prol da sociedade. Esta e outras reflexões levantadas por

Vázquez a respeito da práxis, estão embasadas na concepção marxista de práxis.

Assim, ao nos apropriar da ideia do autor, estaremos paralelamente nos apoiando

na filosofia de Marx.

Para melhor compreendermos o conceito de práxis, Vázquez nos traz a

diferença entre esta e o conceito de “prática”/”prático” (enquanto atividade prática 8),

tratadas na maioria das vezes, no cotidiano, pelo senso comum e até mesmo no

mundo acadêmico, como palavras sinônimas. Não que sejam coisas antagônicas, na

verdade elas estão muito próximas. No entanto, elas apresentam-se como coisas

distintas, do ponto de vista da filosofia marxista. À medida que “prática” é sinônimo

de praticidade, utilidade, resolução rápida de problema, ou como afirma Vázquéz, “é

o ato ou objeto que produz utilidade material, uma vantagem, um benefício”; a

“práxis” revela-se como símbolo de reflexão e ação; ela nasce primeiro no campo da

teoria, do pensamento, a partir de uma realidade, e só depois é transformada em

ação, em prática, diante dessa realidade. Logo, podemos afirmar que o que

diferencia os dois conceitos é a maneira de compreendê-los e utilizá-los. Isto é,

enquanto ‘prática’ denomina-se pela ação, pelo ato ou atividade prática, a ‘práxis’,

8 “Por atividade em geral, entendemos o ato ou conjunto de atos em virtude do qual um sujeito ativo (agente) modifica uma determinada matéria-prima.” (VÁZQUEZ, 1977, P. 186).

36

segundo Vázquez, é a união consciente do pensamento com a ação; além de ser

atividade transformadora, revolucionária e intencionalmente realizada. O sujeito

‘prático’ transforma sua vida em algo prático, útil, ou seja, age para suprir suas

necessidades básicas e urgentes, e assim desprezam os teóricos e suas filosofias

de vida. O que fazem almejarem coisas e seguirem caminhos distintos.

O que fica claro para nós, é que existem duas maneiras de compreender a

prática humana enquanto práxis. Do ponto de vista ingênuo e abstrato, encontrado

no senso comum. Outra, partindo de uma visão crítica, analítica, objetiva, científica e

revolucionária (como defende Marx). A visão ingênua age normalmente por instinto,

sem refletir sobre a realidade. E os sujeitos que sofrem esta ação, continuam a

encarar a realidade como algo natural e imutável, que não precisa ser explicado, só

vivido; logo, “não se aprofunda da casualidade do próprio fato”, como destaca Paulo

Freire (1979, p.40); nem sente a necessidade de transformar sua realidade para nela

intervir, recriar, transformar. Não se vê e nem se sente um ser histórico, encara os

fatos históricos como algo distante de si. Porém, apesar de não se reconhecer como

tal, é um ser social e histórico, isto é, “encontra-se imbricado numa rede de relações

sociais e enraizado num determinado terreno histórico” (VAZQUÉZ, 1977, p. 9), por

isso não pode ser definido como ser a-histórico.

Já a teoria da práxis revolucionária, requer a superação desta ingenuidade,

desta “consciência comum”. Requer uma conscientização da classe explorada, do

proletário. E isto só se dará através da revolução. No entanto, é preciso ficar claro

que todo ato ‘prático’ carece de consciência, mesmo que esta seja ingênua,

fragmentada, afinal, estamos falando de seres humanos e não de animais

irracionais, pois como se sabe, é a consciência ‘prática’ que diferencia um dos

outros. Porém, este grau de consciência é insuficiente para torná-los revolucionários,

é uma consciência ingênua. Mas, que não pode ser desprezada, afinal, é a partir

dessa ingenuidade que se constitui a consciência crítica. Esta, não existe por si só,

ela é fruto da superação da primeira. E é essa superação que desenvolve no sujeito

o desejo da revolução, da transformação da realidade.

Trazendo o conceito de práxis para o pensamento dos séculos XVIII e XIX,

períodos marcados pela ascensão do sistema capitalista e da burguesia – classe

que regia a estrutura social, política e econômica –, pode-se atribuir a essa época,

as primeiras concepções que deram ao trabalho humano o significado de prática

material produtiva. Com isto, a necessidade de transformar a natureza em favor da

37

burguesia torna-se inevitável e cada vez mais urgente. Para produzir bens materiais

e desenvolver a economia da classe em ascensão, era preciso matéria-prima e

seres humanos. À primeira, nada melhor do que a natureza para fornecê-la; para o

segundo, era preciso dominar uma parte da população e colocá-la a seu serviço. No

entanto, para que isto acontecesse, era preciso primeiro dominar a natureza, desde

suas forças naturais até as técnicas necessárias para transformá-la em bens e

serviços para a sociedade.

Pode-se dizer que foram as técnicas utilizadas em prol desse domínio que

elevaram a consciência de práxis do sujeito, pois, não bastava apenas fazer, praticar

uma ação sobre a natureza, era preciso conhecê-la, experimentá-la, criar e recriar,

ou seja, refletir sobre sua ação, transformar de maneira consciente. Logo, “o domínio

da natureza, por meio da produção, da ciência e da técnica, converte-se numa

questão central que corresponde a necessidades e determinações sociais”

(VÁZQUEZ, p. 31). E assim, o sujeito passa a se apropriar da natureza e do mundo

e a colocá-lo a “serviço da humanidade”. (mesmo que esse serviço seja em

benefício da classe detentora do capital). Assim, o trabalho humano, cada vez mais

valorizado – não em sentido de reconhecimento do trabalhador como ser humano ou

da dignidade do seu trabalho, mas do valor capital deste, como instrumento de

produção –, vira alvo de acumulação de bens e riqueza para o grupo detentor dos

meios de produção, bem como, vira possibilidade de meio de subsistência para o

outro grupo (proletariados), que expulsos de suas terras precisa sobreviver.

A elevação do grau de consciência da práxis no capitalismo, não significou

uma compreensão do conceito pleno da práxis, isto é, enquanto atividade humana

transformadora da natureza e do ser humano, da sua realidade. O que se percebe

na visão de Vazquéz, é que o conceito de práxis aqui ficou limitado a um conceito

econômico, prático, que apesar de ter sido superado pelos filósofos idealistas, ainda

ficou limitado apenas à teoria. Logo, enquanto no capitalismo, o mundo modificado,

negava a filosofia, a teoria enquanto práxis; os idealistas acreditavam na

modificação do mundo a partir da sua interpretação, sem uma intervenção real.

Segundo Vázquez, na concepção marxista, a práxis filosófica, real, superara

as concepções idealistas desenvolvidas na Alemanha clássica, em especial, a

concepção hegeliana e feuerbachiana. Embora a primeira aceitasse a atividade

prática humana, esta era apresentada como algo abstrato, realizado apenas na

consciência, na teoria, mas que não atingia nem modificava a realidade. Já para a

38

segunda, a teoria e a prática estavam em lados opostos, e, assim como na primeira,

a atividade humana estava sempre no campo das reflexões, das teorias. Portanto,

parafraseando Vazquéz, a concepção de práxis não pode ser reduzida a uma “mera

atividade da consciência”, mas sim como “atividade material do homem social”.

Em Marx, a concepção de práxis enquanto ação humana transformadora

tanto da natureza, quanto da sociedade, passa a ser o centro da sua filosofia, de

suas reflexões. A relação entre teoria e prática é indispensável e inseparável. A

práxis só existe se antes existir a união da teoria e da prática. Isto é, só há práxis,

em seu sentido verdadeiro, quando a prática for guiada pela teoria; elas não

funcionam soltas, independentes. Logo, podemos dizer que práxis é a concretização

da teoria, ou seja, a transição da teoria para a prática. Como se sabe, Marx foi um

revolucionário preocupado com as condições de trabalho e de vida, ao qual o

sistema capitalista e a burguesia submetiam os operários. É baseado nesta classe

que ele desenvolve toda sua filosofia, principalmente a da práxis. Para ele, a única

forma de libertar a classe explorada do trabalho alienado e do domínio da burguesia,

é através da práxis, isto é, da revolução. E isto só é possível, quando os explorados

tomam consciência da sua situação. Pois, enquanto estes continuarem alienados,

não lutarão, e desconhecerão sua existência, sua própria essência enquanto seres

humanos, seres históricos que transformam e são transformados pela natureza.

Para melhor entender os seres humanos enquanto seres imbricados numa

rede de relações sociais e arraigados num determinado contexto histórico,

precisamos compreender que a realidade em que vivem é fruto da transformação da

natureza, da ação dos seres humanos sobre ela e das relações interpessoais. Seu

modo de ser, pensar, estar e agir no mundo, além de marcar histórica e socialmente

sua vida, determina os diversos fatores sociais, políticos e econômicos da sociedade

em que vive. Sua consciência (mesmo que ingênua) é formada e alimentada por

suas concepções de valores, juízos, preconceitos e ideias; por visões de mundo

construídas historicamente, em seu meio social, através do trabalho, da práxis

social.

Se a atividade produtiva tem como objeto os recursos naturais, a práxis social

é determinada pelas relações sociais, e aqui, o “objeto”, que sofre e pratica a ação, é

o próprio sujeito. Mas não o sujeito isolado, abstrato, mas aquele que está inserido

no mundo, que se relaciona com as outras pessoas, com a natureza e com os outros

animais; o sujeito que trabalha, estuda, diverte-se, vive em contato constante com o

39

mundo, trocando ideias e experiências com as outras pessoas. São nestas relações

que os indivíduos se transformam em seres sociais, capazes de modificar a

sociedade, interferindo nos diversos setores. Como nos é apresentado o conceito

(mínimo) de práxis social em Vázquez (p.200), “a práxis social é atividade de grupos

ou classes sociais que leva a transformar a organização e direção da sociedade, de

acordo com os interesses e finalidades correspondentes”. Ou seja, a práxis social

corresponde a atividade política das classes sociais 9.

Se a práxis social é sinônimo de atividade política, é esta que vai dar

possibilidade às pessoas construírem diferentes formas de organizar a sociedade

através da conscientização 10 e da participação popular nas decisões políticas. Este

estado de consciência tão necessário para emancipar a humanidade, deve

desenvolver no sujeito uma ação reflexiva sobre a realidade, e isto só funcionará

numa ação concreta, coletiva e consciente. Ou seja, por meios e métodos reais.

Neste sentido, se faz necessário a criação de organismos concretos e pessoas

conscientes para representar os interesses do povo (os movimentos sociais, os

sindicatos, as associações os partidos); bem como ações coletivas e efetivas:

reuniões, manifestações, greves, passeatas). Tudo isto de forma pacífica,

organizada, para chamar a atenção de toda a população, do Estado e seus

representantes, dos detentores do poder.

A práxis política, enquanto atividade prática transformadora, torna o povo

consciente dos seus interesses; dos interesses e privilégios da elite; e da articulação

necessária para que estes interesses se tornem único e viável à população

marginalizada. É a partir desta conscientização, que as pessoas vão

compreendendo quem, ou o que determina as relações sociais em que estão

inseridos, e como podem transformá-la. A práxis social é, portanto, a própria

consciência crítica da realidade. Para Ladeia (1995, p.33) 11, práxis social é a

“articulação concreta dos interesses de classe e, ao desenvolver-se em diversos

espaços e organismos da sociedade civil, tendendo-se a generalizar-se, torna-se um

9 “Nas condições da sociedade divididas em classe antagônicas, a política corresponde a luta de classes pelo poder e a direção e estruturação da sociedade”. (Vázquez, 1977, p. 200). 10 Sobre este conceito Paulo Freire vem nos lembrar que só os seres humanos são capazes de agir conscientemente sobre a realidade objetiva. É isto, que a “práxis humana” é, unidade inseparável entre ação e reflexão sobre o mundo. ( Conscientização:teoria e prática da libertação: uma introdução ao pensamento de Paulo Freire. 1980). 11 Doutor em educação pela Unicamp (2002)

40

poderoso agente socializador da atividade política’. Logo, um valioso instrumento de

intervenção na organização e transformação da sociedade.

Em suma, quanto mais ignorante e ‘prático’ for o sujeito, mais fácil será

ludibriá-lo, enganá-lo, dominá-lo, aliená-lo; diminuindo cada vez mais sua chance de

adquirir uma consciência política e social diante dos fatos que estão pré-

determinando sua realidade. Pois, enquanto vê a política como coisa distante de sua

vida, de seu cotidiano, continuará sendo seres apolíticos. Ou, quando conseguir se

inserir na vida política, o homem ’prático’ não conseguirá ou não verá nela a

possibilidade de transformar a sociedade. No máximo, o que verá, é seu

crescimento profissional, econômico, pessoal; ou uma possibilidade de

transformação tão utópica que passa bem longe de uma concreta realização; é o

que o autor chama de “politicismo”. Vejamos o que ele traz sobre esta análise:

Tratando de satisfazer as aspirações “práticas” do homem comum e corrente, desenvolve-se, às vezes, a partir do poder, um trabalho destinado a deformar, castrar ou esvaziar sua consciência política. Este trabalho tende, ao que parece, a integrar este homem comum na vida política, mas com a condição de que ele se interessa exclusivamente pelos aspectos “práticos” da vida política, isto é, a política como carreira. [...] A despolitização cria, assim, um imenso vazio nas consciências, vazio que só pode ser útil à classe dominante, que recheia as consciências com atos, preconceitos, hábitos, lugares-comuns e preocupações que, enfim, contribuem fortemente para manter a ordem vigente. (VAZQUÉZ, 1977, p.12-13).

E é esta, condição de seres “práticos” e alienados da vida social e política, que

transforma os sujeitos em seres tão apáticos em relação à sua realidade, à sua

condição de seres oprimidos. Isto faz da classe dominada, mera marionete da classe

dominante.

O que se percebe diante disso, é que a dominação existe porque o dominado

conforma-se com sua condição de ser dominado, bem como aceita a existência do

dominador. Assim, assume sua inferioridade em relação a este, e sente-se

dependente deste, pois não reconhece que o dominador depende dele, mas se vê

totalmente dependente do dominador. Por isso, não se sente capaz de lutar por sua

liberdade, pois, acredita que, sendo inferior, deve se submeter à condição de

dominado, e obedecer às normas prescritas por seus superiores, como relata Paulo

Freire:

41

Um dos elementos básicos na mediação opressores-oprimidos é a prescrição. Toda prescrição é a imposição da opção de uma consciência a outra. Daí, o sentido alienador das prescrições que transformam a consciência recebedora da consciência opressora. Por isto, o comportamento dos oprimidos é um comportamento prescrito. Faz-se à base de pautas estranhas a eles – as pautas dos opressores. Os oprimidos, que introjetam a ‘sombra’ dos opressores e seguem suas pautas, temem a liberdade, na medida em que esta, implicando na expulsão desta sombra, exigiria deles que ‘preenchessem’ o ‘vazio’ deixado pela expulsão com outro ‘conteúdo’ – o de sua autonomia (1975, p. 34-35)

E assim, a imposição da consciência do dominador sobre o dominado, faz este viver

a realidade do e para o outro, tornando-os passivos, acríticos e vazios, o que

legitima a sociedade em classes tão desiguais.

Enfim, enquanto o sujeito viver para e na ‘prática’ e ignorar ou desconhecer a

‘práxis’, quanto mais imaturo politicamente for, sendo apolítico ou vivendo o

politicismo, continuará sendo alvo fácil de manipulações da classe que o domina e

está no poder.

3.2 HÁ AUTONOMIA DA PRÁXIS DOCENTE ANTE A PRÁXIS SOCIAL?

Para abrir esse debate, nos apoiamos na seguinte afirmação: “Poucos

negariam hoje que os processos educacionais e os processos sociais mais

abrangentes de reprodução estão intimamente ligados”. Mészáros (2008, p. 25). Se

assim estão, e assim são concebidos – e nós acreditamos nisso –, não pode haver

autonomia docente dissociada da práxis social12.

Como se pode perceber, a ideia central da nossa pesquisa funda-se na lógica

excludente do sistema capitalista, e na possibilidade de uma educação que rompa

com este sistema e transforme a sociedade em um mundo mais igualitário, mais

justo e mais humano. Se de um lado o sistema capitalista constrói realidades tão

perversas, que subordina, oprime e submete seres humanos; do outro, forma grupos

tão ricos e poderosos, que manipula e exclui pessoas em nome do poder, do

privilégio e da riqueza, a partir da exploração. E o que resta aos desprovidos, é a

garantia dos direitos humanos universais, tão necessários para a população, mas

que funcionam para poucos ou apenas na teoria. Enquanto isso, a grande massa, ou

12 Autonomia aqui é sinônimo de independência.

42

não sabe da existência, ou não se conscientiza desses direitos, nem tampouco se vê

como vítimas de um sistema todo organizado contra ela. Diante dessa alienação, a

sociedade está ficando cada vez mais dividida, mais desigual, a “mais desigual de

toda história” como afirma Sader (2008, p.16) 13. Por esse motivo, se faz necessário

trazer o tema proposto para discussão nas diversas áreas sociais, de maneira

especial, no âmbito educacional.

Já que a educação exerce grande influência sobre a formação das pessoas,

os defensores do capitalismo querem-na sob seu controle, isto, para manter sua

hegemonia. As condições atuais nas quais o ensino, o docente e os demais

envolvidos com a educação se encontram, têm explicações históricas. Estas

condições são resultado de interesses e estratégias articuladas ao longo do tempo

para manter a ordem vigente. Pois, desde que o trabalho humano virou sinônimo de

acumulação de bens e riquezas, isto é, passou a ser trabalho alienado, a classe que

detém o poder e o capital passou a controlá-la. Assim, sendo atividade significativa

da humanidade, a educação formal que está atrelada ao trabalho humano, pode

manter ou mudar realidades. Como defende Marx, contraditoriamente, mas não

suficientemente verdadeiro, o trabalho nega e afirma o ser humano. Mas, essa

contradição é superada à medida que ele coloca cada ideia em momentos diferentes

da vida do sujeito, elas não coexistem. Para Marx, o trabalho nega o ser humano,

quando aliena o trabalhador, ou seja, quando seu produto se torna independente

dele, alheio a ele; afirma-o quando este supera a alienação, fazendo-o reconhecer-

se em sua produção.

Como todo trabalhador do sistema capitalista, o professor foi transformado

num ser alienado e com isso foi formando seres também alienados. Se

compararmos o professor de hoje ao educador ou operário de três séculos atrás,

vemos que pouca coisa mudou. Enquanto trabalhadores que são, estão sujeitos à

lógica do capital, ou seja, produzir mercadorias. Se de um lado, os operários

produziam bens materiais – que eram estranhos a ele – para serem consumidos

pela humanidade; do outro, o professor, “produzia”/formava (e continua a produzir)

seres humanos, ou melhor, “meras mercadorias”, que aceitassem passivamente as

condições de submissão ao qual estavam inseridos, para assim continuarem o

13 Emir Simão Sader é autor do prefácio da obra de István Mészáros A educação para além do capital. Doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (1990). Atualmente é professor doutor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, coordenador do Laboratório de Políticas Públicas e Secretário Executivo do Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales.

43

processo de produção; num ciclo sem fim. Nesta lógica, as escolas segundo Sader,

se transformaram em Shopping Centers, local propício para o consumo e para o

lucro. Partindo dessa afirmação, iremos ainda mais longe, afirmando que, nestes

shoppings, encontram-se à venda, em liquidação, seres humanos dóceis e

domáveis, prontos para serem “consumidos”, mercantilizados como coisas.

Percebe-se com isso que, enquanto o capital for a força hegemônica do sistema

vigente, e as pessoas continuarem submissas a ele, esses serão os educadores, a

educação e a sociedade que teremos, que aliena e é alienada pelo capital. Logo, a

educação que deveria ser instrumento de emancipação e transformação humana,

passa a perpetuar e reproduzir a exclusão, sendo o professor um dos agentes

legitimadores14 da ordem social, ordem esta é apresentada como natural e

imodificável, sendo assim ’internalizada’ pelos indivíduos.

Nesta perspectiva é que encaramos a educação formal como atividade

humana, legitimadora ou transformadora de realidades. A partir da tese de Gramsci

sobre atividade humana, Mészáros (p.50) ratifica a seguinte reflexão: “todo ser

humano contribui, de uma forma ou de outra, para a formação de uma concepção de

mundo predominante, [...] tal contribuição pode cair nas categorias contrastantes de

‘manutenção’ ou de ‘mudança’”. E o que vai determinar isso, são os interesses e os

meios utilizados para atingir este fim. Diante disso é que defendemos a educação

formal como importantíssimo instrumento para a emancipação da humanidade.

Paulo Freire e István Mészáros já nos chamam atenção sobre os limites e

influências que a educação formal recebe do capitalismo, impedindo uma ação mais

significativa da mesma. Já no prefácio do livro Educação e Mudança de Paulo

Freire, Gadotti (1979) nos faz refletir sobre a análise que o autor traz da “concepção

ingênua da pedagogia que se crê motor ou alavanca da transformação social e

política”, e que a educação por si só não “leva uma sociedade a se libertar da

opressão”. Já Mészáros, diz que a educação formal sozinha não pode ”fornecer uma

alternativa emancipadora radical”. A partir dessas análises, pode-se perceber que

enquanto a escola, a educação, o educador, não romper com a lógica do capital e

perceber que ela trabalha para manter a estrutura capitalista, usando o sistema

14 Mészáros (2008) nos chama atenção para os vários agentes legitimadores do capital como: a televisão, o rádio, os jornais; e acrescentamos a estes, com forte influência, a família, o trabalho, a religião, a cultura.

44

educacional e o professor como meio de “internalização” e aceitação de uma

estrutura dominante, a educação formal nunca será transformadora, emancipadora.

Como nos alerta Mészáros, precisamos de uma verdadeira práxis social que

vá ‘contra-internalização’, que não apenas negue a lógica do capital, mas que lute,

aja concretamente contra esta ordem que aliena, marginaliza, desumaniza a classe

oprimida, e que aprisiona toda sociedade. Precisamos de atividades humanas que

libertem as pessoas dessa prisão que lhes impedem de criar, modificar, revolucionar,

para assim promover o desenvolvimento da humanidade. Precisamos de uma práxis

que promova a autonomia em detrimento da heteronomia que nos é imposta.

Precisamos de intelectuais da educação, professores, alunos, diretores, e de toda

sociedade comprometida com o ensino, que intervenha efetiva e conscientemente

no sistema educacional e na ordem vigente.

3.3 A DIMENSÃO POLÍTICO-SOCIAL DA PRÁXIS DOCENTE Como anda a consciência política da sociedade e em especial do docente?

Ouve-se muito das pessoas leigas e também de alguns ditos intelectuais, o referente

discurso: não gosto de política. Já que vivemos numa sociedade toda organizada

politicamente, este pensamento torna-se inaceitável. Na realidade, o que está por

trás desse discurso é o julgamento que se faz da política. Essas pessoas encaram-

na como algo distante de suas vidas, pertencente apenas ao poder do Estado. E

como este, contém uma prática contrária à teoria, e é constantemente cenário de

atos ilegais – a politicagem –, toda sua ação torna-se desacreditada.

Vários são os fatores que tornam as classes populares vítimas da politicagem

e do capital, e consequentemente alienadas, à margem da sociedade. São vítimas,

porque sem ter o que comer, o que vestir, onde morar e a quem recorrer, submetem-

se aos mais perversos “destinos” da vida, como o trabalho semi-escravo (ou

escravo), o preconceito, a discriminação, a marginalidade; são vítimas, por não ter

oportunidade de conhecer, de explorar, de mudar (se assim quiser); são vítimas,

porque lhe tiraram o direito de sonhar, de ser o que quiserem ser, de se reconhecer

como cidadão; são vítimas, porque estão condenados a continuarem estagnados e a

não ter o direito de mudar; são vítimas porque lhe negaram o direito de falar, de ter

uma educação de qualidade, e com ela, o seu bem mais precioso, o conhecimento e

a criticidade, o que lhes impedem de lutar contra a pobreza material e intelectual a

45

qual está inserido. É a “pobreza política”, discutida por Pedro Demo no seu livro

Educação & Conhecimento15, que gera a exclusão e a pobreza, como está expresso

no texto a seguir:

Definindo desenvolvimento como ‘oportunidade’, educação pode ser reconhecida como o fator principal da invenção de oportunidades, o que tem levado a aceitar que a carência material não seria o centro da pobreza, mas a ignorância (DEMO, 2001, p.14).

Para Demo, o cerne da pobreza, que é a ignorância das pessoas, está na ausência

do conhecimento, na falta de uma educação politizada. Assim, podemos dizer que

esse vazio formado pelo não saber, é determinado pela carência de consciência

política (mas também material) que estagna e aliena o ser humano.

A ignorância exclui e desvaloriza o sujeito ao ponto deste se sentir incapaz de

lutar contra as mazelas que lhe tolhe, que paralisa seu intelecto, seu mundo. Existe

o ignorante que mal consegue enxergar que sua situação social, política e

econômica é uma articulação (da classe dominante) para mantê-lo submisso ao

sistema vigente, é a “ignorância inconsciente” que o leva a aceitar sua posição

como algo natural, o seu destino/sorte; há outros, que são impedidos de poder

lutar, é a “ignorância imposta”; há também os que perpetuam estas “ignorâncias”,

defendendo sua posição como um mérito e não como privilégio. Assim, segundo

Demo, a transformação dessa realidade só é possível partindo de uma educação

que mantenha laços restritos com o conhecimento científico. É nesta perspectiva

que vemos a prática docente e consequentemente a educação formal como fator

fundamental para uma educação emancipatória, transformadora.

Sendo a educação uma das esferas da práxis social, e o professor, um dos

principais responsáveis pelo processo de ensino-aprendizagem, este se vê pré-

determinado a fazer opções em sua prática: ou trabalha mantendo o status quo da

lógica do capital, ao qual impõe isto a ele; ou enfrenta-o para assim negá-lo e paga

por isso. Não que a educação e a atuação do professor por si só forma o sujeito,

seus valores, pensamento e atitudes, pois sabemos que a formação plena do ser

humano depende e é influenciada pelo meio social ao qual pertence (família,

trabalho, cultura, lazer, amigos etc.). No entanto, a educação escolar influencia

significativamente tais comportamentos, sendo – como já defendemos –, um

instrumento indispensável para que eles aconteçam, principalmente para as 15 Livro que leva o leitor a debater várias questões relacionadas a ausência da consciência política do povo brasileiro. (DEMO, 2000).

46

classes menos favorecidas que são privadas de cultura, de lazer, de

conhecimento. Logo, a prática docente influencia diretamente no aprendizado dos

alunos, em seu modo de ver, compreender e agir sobre o mundo; o que envolve

um movimento dinâmico e dialético entre a teoria e a prática, e que leva o sujeito

ao estado de conscientização16.

Na formação de professores, o discurso que predomina é que os conteúdos

devam estar contextualizados com a vida do aluno, contribuindo para o

desenvolvimento da cidadania. No entanto, o que se percebe é uma prática

contrária a esse discurso. De um lado, professores, valorizando apenas a vivência

do aluno, acreditando ser essa a única forma de ensinar; do outro, os que

transmitem os conteúdos, sem dialogar, e nem se importar com os conhecimentos

prévios dos alunos. São dois extremos que desvirtuam o papel da educação e do

educador. Não se pode ensinar, partindo apenas da experiência do aluno, se isso

acontece, vamos perpetuar a exclusão da classe popular e fortalecer a hegemonia

da classe dominante, pois como se sabe, à primeira são negadas as mais diversas

fontes do saber, o que fragmenta e enfraquece seu senso crítico diante da

realidade.

O conhecimento científico deve ser um instrumento que ajude a lapidar o

senso comum. Não se deve privilegiar um em detrimento do outro. O papel do

educador é mediar a passagem da “curiosidade ingênua”, como afirma Paulo

Freire (1996) à criticidade do aluno, para que esse construa conhecimentos

científicos necessários à sua vida profissional e social. Afinal, esse é o papel da

educação, significar a vida do educando em seu meio social.

E como anda a formação docente, em especial da Educação Infantil e Anos

Iniciais no Brasil? Baseada na Resolução que instituiu as Diretrizes Curriculares

Nacionais, pode-se melhor compreender essa profissional tão criticado e

desvalorizado, mas também tão necessário à educação da criança. O Conselho

Nacional de Educação estabeleceu em maio de 2006 as Diretrizes Curriculares

Nacionais para o Curso de Graduação em Pedagogia - licenciatura, embasada na

Lei 9394/96, as quais definem princípios, condições de ensino-aprendizagem,

16 Segundo Paulo Freire, ser consciente não é estar em estado de conscientização, porque este só se alcança quando há o desenvolvimento crítico daquele, ou seja, só há conscientização quando há práxis, quando há ação-reflexão. (Conscientização: teoria e prática da liberdade: uma introdução ao pensamento de Paulo Freire. 1980 ).

47

procedimentos de planejamento e avaliação. O parágrafo 1º do artigo 2º dessa lei

traz em resumo o compromisso que o futuro profissional deve estabelecer com a

educação:

§ 1º Compreende-se a docência como ação educativa e processo pedagógico metódico e intencional, construído em relações sociais, étnico-raciais e produtivas, as quais influenciam conceitos, princípios e objetivos da Pedagogia, desenvolvendo-se na articulação entre conhecimentos científicos e culturais, valores éticos e estéticos inerentes a processos de aprendizagem, de socialização e de construção do conhecimento, no âmbito do diálogo entre diferentes visões de mundo. (Res. CNE/CP 1/2006. Diário Oficial da União, Brasília, 16 de maio de 2006, Seção 1, p.11).

Analisando as diretrizes hoje, bem como toda a história do curso de Pedagogia –

desde sua criação em 1939 –, percebe-se que o pedagogo sempre foi

desprestigiado e desvalorizado na sociedade. Para muitos, ensinar nos Anos Iniciais

até pouco tempo era tarefa fácil, que poderia ser exercida por qualquer profissional

da educação. Isto ratificava o desprestígio que se dava aos profissionais da área de

pedagogia desde a formação até a carreira. Hoje, felizmente, esse pensamento

avançou e o professor das séries iniciais precisa no mínimo ser graduado. No

entanto, isso não garantiu reconhecimento do seu trabalho nem tampouco

qualificação plena da sua formação, pois como se sabe, hoje, em qualquer esquina

da cidade, abre-se uma faculdade, e lá o curso de Pedagogia.

Um dos grandes problemas que a educação enfrenta hoje está diretamente

relacionado à formação docente. Nos cursos de Pedagogia o que se vê é uma

formação estritamente vinculada à docência. O pedagogo não pode ser visto nem

tampouco receber uma formação de simples docente, é preciso estabelecer

metodologias que privilegie uma formação que abranja várias áreas de atuação

profissional, um verdadeiro especialista da educação, com formação teórica

fundamentada, que vê a práxis educativa não apenas como técnicas de ensino, mas

com todos os fatores que envolvem-na. Contudo, o que se vê são muitos

profissionais que saem das universidades sem base teórica concreta, reflexiva, sem

saber qual seu verdadeiro papel na sociedade e assim desconhecem ou desprezam

conceitos importantíssimos para sua práxis, como conscientização, mediação,

emancipação, transformação, e acabam assim conservando ou reproduzindo a

educação que recebeu: conteudista, decoreba, excludente, manipuladora, alienada.

48

Na academia, muito se fala sobre a necessidade do professor reflexivo, no

entanto, o que se percebe nas escolas que recebem esses profissionais, é um

discurso que defende a emancipação do aluno, mas práticas literalmente

reprodutivistas, comandada pela lógica do sistema capitalista; ainda voltadas para a

valorização do ensino tradicional, onde o professor é o detentor do conhecimento e o

aluno um mero receptor de informações.

Infelizmente, são poucos os profissionais que vêem, acreditam e se doam à

educação. O que se vê são profissionais infelizes e decepcionadas com a sua

carreira, com suas escolhas, com seus salários. São sentimentos que se justificam,

mas que não podem legitimar a péssima educação que os alunos vêm recebendo

nas escolas públicas do Brasil. Uma educação que estagna, aliena e atrofia cabeças

ávidas e preparadas para pensar, agir e transformar. E o reflexo disso tudo esteve

no passado, está no presente, e estará no futuro da história da educação se

continuarmos alienados e parados diante dela.

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4 A PRÁXIS DOCENTE E A NECESSIDADE DE CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA DO ALUNO NOS ANOS INICIAIS Diante da carência de cidadãos críticos que se encontra a sociedade

brasileira, se faz necessário dar maior atenção a formação dos alunos nos anos

iniciais já que estes poderão contribuir para uma análise mais crítica da sociedade.

Rever e repensar o tipo de educação que as crianças estão recebendo das escolas,

e desenvolver uma práxis educativa dentro de uma perspectiva político-pedagógica

voltada para formação cidadã são práticas essenciais para formar cidadãos críticos

e conscientes do seu papel.

4.1 A NECESSIDADE DA FORMAÇÃO CIDADÃ PARA A CRIANÇA A função primordial da educação é garantir, através do processo de ensino-

aprendizagem, a aquisição dos conhecimentos, habilidades e valores necessários à

socialização do indivíduo, isto é, desenvolver a aprendizagem e o crescimento do

ser humano. Estas aprendizagens devem antes de tudo, valorizar o ensino dos

componentes curriculares (Português, Matemática, Ciências, História e Geografia,

Artes), sem os quais se torna inviável o acesso da população à cultura letrada, à

formação crítica e humana do aluno. Este tipo de aprendizagem constitui-se também

em instrumento fundamental para que o aluno compreenda melhor a realidade que o

cerca, favorecendo sua participação em relações sociais cada vez mais amplas;

possibilitando a leitura e interpretação de mundo; preparando-o para a inserção no

mundo do trabalho e para a intervenção crítica e consciente na vida pública. A partir

disto, é necessário que a escola propicie para o aluno o domínio dos conteúdos

culturais básicos, da leitura e da escrita, das ciências, das artes, das letras, pois,

sem estas aprendizagens, dificilmente ele poderá exercer seus direitos, sua

cidadania.

O termo cidadania já foi alvo de muitas discussões e modificações ao longo

da história, pois esta se reconstrói a todo instante. No entanto, pode-se dizer que

cidadão é aquele que participa da vida em sociedade; que exerce e tem consciência

dos seus direitos e deveres; possui educação de qualidade; é formado com

princípios éticos e morais; é tratado com igualdade perante as oportunidades; é

50

respeitado nas suas diferenças; enfim, que não é excluído da vida política, social e

econômica do seu país. Neste sentido, a educação escolar tem papel importante

para a construção da cidadania. Vejamos o que diz o livro Ética e Cidadania do

Ministério da Educação:

ser cidadão é, entre outras coisas, aprender a agir com respeito, solidariedade, responsabilidade, justiça, não-violência, aprender a usar o diálogo nas mais diferentes situações e comprometer-se com o que acontece na vida coletiva da comunidade e do país. Esses valores e essas atitudes precisam ser aprendidos e desenvolvidos pelos estudantes e, portanto, podem e devem ser ensinados na escola (LODI; ARAÚJO. p. 69).

Assim, é preciso repensar às ferramentas que se está utilizando para mediar o aluno

na construção desses valores, que são essenciais na construção da sua cidadania.

É sabido que a sociedade vem carregada de questões econômicas, sociais,

políticas, culturais e históricas. Se essa é assim formada, o sujeito precisa conviver

com um emaranhado de fatores que desencadeiam destas questões, respeitando o

outro nas suas diferenças e nas suas particularidades; vivendo em coletividade e

sendo solidário; sendo cidadão crítico e criativo, capaz de intervir conscientemente

na realidade. A educação para a cidadania deve trabalhar todos os valores que

estão embutidos na vida social do aluno, sejam eles morais, éticos, religiosos,

estéticos etc., a fim deste se enxergar como seres iguais e diferentes entre si: iguais

por que têm direitos e deveres perante as leis; diferentes por que são únicos, tem

identidade, atitudes e comportamentos próprios.

A infância é um período de desenvolvimento e apreensão da realidade. A

criança é movida por seus interesses e suas curiosidades, é motivada pela ação e

pelas respostas dos adultos, ou pelas informações vindas dos livros, notícias,

reportagens, televisão, rádio, outdoor etc. E assim se torna “produto” do meio, das

relações e das influências construídas com as outras pessoas e com a natureza. E é

durante este processo, de socialização, que a criança tem oportunidade de construir

sua identidade, sua consciência e sua autonomia, pois, como afirma Gramsci (1991,

p. 131), “a consciência da criança não é algo ‘individual’ (e muito menos

individualizado), é o reflexo da fração de sociedade civil da qual participa, das

relações sociais tais como elas se concentram na familía, na vizinhaça, na aldeia

etc.” Logo, a escola e o educador deve dar atenção especial à criança, já que esta

51

se encontra em contínuo processo de descobrimento e desenvolvimento pessoal,

construindo a sua cidadania. É neste momento que ela irá se reconhecer e conhecer

o outro em suas diferenças e particularidades construíndo assim sua identidade e

sua visão de mundo.

O espaço escolar, por abranger a diversidade sociocultural, ou seja,

diferentes religiões, etnias, costumes, hábitos e valores, se constitui um ambiente

propício à construção da cidadania discente, em especial da criança que se encontra

em formação. Nele, a criança que ainda é livre do preconceito e da discriminação

consciente, conhece, constrói, desconstrói e ressignifica novos sentimentos, valores,

ideias, costumes e papéis sociais.

A criança que é estimulada por princípios democráticos a exercer sua

cidadania, cresce e desenvolve princípios éticos e autônomos ante às outras

pessoas e às transformações que a sociedade sofre a cada instante. Estes

princípios se tornam indispensáveis para torná-la solidária, criativa, crítica e segura

diante de resoluções de problemas, bem como, capazes de transformar realidades.

E o papel do professor é mediar esta construção. A escola, portanto, tem o

compromisso social que vai muito além da simples transmissão do conhecimento

sistematizado. Ela deve se preocupar em educar o aluno para o desenvolvimento

humano e social.

4.2 A EDUCAÇÃO ENQUANTO ATO POLÍTICO A educação enquanto ato político recebe críticas e apoio das mais diversas

linhas de pensamento. Seja de pessoas que defendem a educação como

transformação da sociedade, seja dos radicais que condenam e desvinculam a

educação do ato político. Contudo, o que percebemos é que a prática educativa

”sempre traz em si uma filosofia política” (Tavares, 1993, p. 5). É neste contexto que

guiaremos este estudo.

A alienação política pode ser definida como um determinante que paralisa e

incapacita o sujeito de se orientar politicamente para atender suas necessidades e

interesses, privando-o assim de participar das decisões políticas da sua

comunidade, do seu país.

52

Ao nascer, o ser humano já encontra um mundo social, econômico e

politicamente organizado. Cheio de regras e padrões de comportamento, é orientado

a cumpri-los sem questioná-los. Se foge a eles, sofre sanções pré-estabelecidas. À

medida que o tempo vai passando, novos padrões de comportamento vão surgindo

(pela necessidade ou pela vaidade) e, novas regras são determinadas no cotidiano

do sujeito que vive em um ambiente dinâmico, mutável e desigual. De um lado tem-

se uma classe bem informada, intelectual, e consequentemente crítica, que

compreende e acompanha essa mudança (a classe dominante). Do outro, tem-se a

classe que tudo aceita e ignora as determinações impostas; são os ignorantes e

alienados que acreditam que as coisas são como são por vontade divina ou porque

ao nascer já encontraram assim e não pode mudar, que esse é o seu destino, a sua

sorte. Não se enxergam como vítimas em um cenário todo organizado e articulado

contra eles.

A partir desses constructos sociais, grande parte da população se torna

alienada. Existem aqueles que desconhecem que as condições histórico-sociais em

que vivem é fruto da ação humana, e assim se tornam passivos perante a realidade

e outros poucos que isoladamente sentem-se indignados. E o que a educação e o

professor tem a ver com isso? Como já se sabe, a educação mantém uma relação

íntima com as questões políticas e sociais. Paulo Freire e Saviani levantam a

seguinte bandeira: a educação é um ato político. Eles acreditam que o ato

pedagógico e o ato político não se separam, no entanto afirmam também que não

podem ser confundidos, tratados como a mesma coisa, são práticas inseparáveis,

porém distintas. Segundo Saviani, o cuidado que se deve ter ao tratar a educação

enquanto ato político, está na especificidade de cada um. Enquanto a práxis

pedagógica trabalha para aproximar as pessoas e combater as desigualdades, a

prática política separa e legitima essas desigualdades. Assim, segundo o autor,

[...] diferentemente da prática política, a educação configura uma

relação que se trata entre não-antagônicos. É pressuposto de toda e qualquer relação educativa que o educador está a serviço dos interesses do educando. [...] Em se tratando da política ocorre o inverso. [...] No jogo político se defrontam interesses e perspectivas mutuamente excludentes. Por isso em política o objetivo é vencer e não convencer. Inversamente, em educação o objetivo é convencer e não vencer. (SAVIANI, 1989, p. 92).

53

Diante disso, vale salientar que antes de considerar a prática educativa enquanto ato

político, se faz necessário entender esses conceitos separadamente, isto é, suas

particularidades, pois, só assim a práxis educativa se diferencia da ação política

partidária. Deixemos de lado a política enquanto ação isolada, afinal, o que se

pretende analisar aqui é justamente a íntima relação entre os dois termos, levando

em consideração a educação enquanto ato político, emancipatório e desalienador.

Apesar dos limites impostos pelo sistema de ensino e dos fatores externos e

internos à escola, que contribuem para manter as classes excluídas, e os alunos

cada vez mais alienados e distantes da vida política e econômica do país, ainda

assim é possível uma educação pública que contribua para a construção da

cidadania. Para que isso aconteça, se faz necessário superar o estado de alienação

que se encontram os professores, principalmente os de anos iniciais, que se vêem

na maioria das vezes como adestradores e transmissores de conteúdos. À medida

que o professor percebe que sua função é mediar a busca do conhecimento, este

pode desenvolver um trabalho diferenciado (significativo para o educando e para

ele). A ação do professor como práxis educativa só terá um caráter político-

pedagógico se este possibilite a formação da consciência crítica do aluno, rompendo

com a lógica do capital.

Para Paulo Freire, uma prática educativa voltada para a liberdade deve estar

enraizada numa prática que culmine na conscientização, isto é, na tomada de

consciência das coisas que acontecem ao seu redor. À medida que somos tomados

pela consciência passamos a enxergar o mundo com outros olhos, a partir de um

novo prisma, de uma nova concepção das coisas que são externas e internas a

nós. Sentimo-nos como pertença em relação ao universo, e com isso ansiamos em

transformá-lo para o bem da humanidade. Para Freire, há dois estados de

consciência: a “intransitiva”, que é a consciência ingênua, e a “critica”. No primeiro,

estão os homens acríticos, ou seja, aqueles incapazes de conhecer e se reconhecer

como pertencentes ao mundo e como produto da história da humanidade. No

segundo, encontram-se os seres humanos capazes de interpretar o mundo e seus

problemas, capazes de dialogar e argumentar com o mundo. E, é no momento de

superação do primeiro e domínio do segundo que há a conscientização. E esta

passagem requer um trabalho educativo sério, uma educação político-pedagógica,

que seja capaz de orientar, conscientizar e politizar o sujeito.

54

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante da pergunta que impulsionou essa pesquisa – qual o poder de

determinação da dimensão político-pedagógica da práxis docente na construção da

cidadania discente nos anos iniciais?–, o que nos resta neste momento, é respondê-

la, não como pretensão de finalizar este trabalho, pois ainda tem muito a ser

acrescentado, mas sim, por uma necessidade formal de concluí-lo, ainda que

parcialmente.

Como vimos, vivemos numa sociedade marcada pela acumulação de bens

materiais, pela exploração do trabalhador e pela exclusão dos “incompetentes”, ou

seja, uma sociedade marcada pelas desigualdades, que gera a riqueza em

detrimento da pobreza; então, o que resta aos desprovidos como possibilidade de

mudança, ainda que de forma deficitária, é a educação formal. No entanto, lutar por

ela, pela sua qualidade, é o grande desafio dos educadores comprometidos com

uma sociedade mais justa e mais humana. Partindo da ideia de Demo, não é a

carência material o centro da pobreza, mas a ignorância, no entanto, o que o autor

deixou de mencionar é que a pobreza material é um dos principais entraves que

impedem o acesso ao conhecimento científico. Desta forma, adquirir o conhecimento

se tornou a única arma acessível (mesmo que inconsciente) à classe dominada.

Sendo o conhecimento a maior riqueza que o ser humano possa adquirir, a escola é

indiscutivelmente o local propício para a construção do saber e para a construção da

consciência.

O que descobrimos neste trabalho, é que, apesar da relação íntima existente

entre a escola, o Estado e a sociedade, estes setores tendem a traçar objetivos e

percorrer caminhos diferentes e independentes, o que os tornam enfraquecidos na

tarefa de contribuir para a formação educacional do ser humano. Enquanto esses

setores não organizarem ações coletivas, e chegarem ao consenso que a educação

precisa efetivamente ser qualificada para que se tenha o desenvolvimento humano

necessário, que funda-se na superação das desigualdades, continuaremos sendo

um dos piores países do mundo no Coeficiente de Gini e no IDH - Índice de

Desenvolvimento Humano17.

17 Criado por Mahbub ul Haq com a colaboração do economista indiano Amartya Sen, ganhador do Prêmio Nobel de Economia de 1998, o IDH pretende ser uma medida geral, sintética, do desenvolvimento humano. Não abrange todos os aspectos de desenvolvimento e não é uma

55

Enquanto a dialética práxis docente – práxis social não existir, a atuação do

professor continuará submetida à lógica do capital. Com isso, o que fica claro para

nós, é que apesar da educação formal ser prerrogativa para emancipação humana,

ela, de fato não tem poder e autonomia para exercer uma práxis educativa que faça

isso acontecer. O que vem acontecendo com a educação brasileira (má qualidade,

investimento inadequado, falta de compromisso do profissional e do governo etc.) é

reflexo de um sistema todo organizado para manter os interesses de quem domina.

Por outro lado, não podemos aceitar que esta condição de seres controlados e

alienados, os quais se encontram os educadores, seja determinante e imutável para

sociedade. Não podemos concordar com os críticos-reprodutivistas quando dizem

que a escola está condicionada a reproduzir literalmente as relações sociais de

produção, isso por si só negaria a atividade consciente do ser humano, colocando-o

em igualdade com os outros animais que agem apenas por instinto. Sabemos que a

alienação condiciona o sujeito, mas não inconscientiza-o, pois, mesmo sendo

submetido ao sistema, é dele o poder de decisão; ou rompe com o sistema

capitalista e educa para mudar, ou se alia a ele e se mantém alienado, bem como

aliena toda sociedade.

Formar cidadãos solidários, justos e conscientes do seu papel na sociedade,

com valores morais e éticos, deve ser papel também da escola (pois sabemos que

esses valores são adquiridos principalmente em seu meio social), principalmente no

mundo que vivemos, no qual esses valores estão cada vez mais abandonados ou

distorcidos pelas famílias.

Diante desse contexto, é possível afirmar que educar crianças, é

extremamente delicado e requer atenção especial dos educadores, pois, como ainda

estão apreendendo os conceitos, tornam-se passíveis a reproduzi-los. Assim, se

constrói conceitos discriminatórios, geralmente terá ações discriminatórias; se

adquire uma formação com princípios democráticos, tendem a reproduzir esses

princípios, ou seja, em geral, sua ação é motivada positiva ou negativamente, a

depender da educação que adquira. Logo, apesar da família constituir-se o primeiro

alicerce na formação da criança, é na escola, na relação com os colegas, com os

professores e funcionários, que ela vai começar a construir sua identidade, pois,

neste momento, perceberá que é igual e diferente do outro; isto é, igual, por que não

representação da "felicidade" das pessoas, nem indica "o melhor lugar no mundo para se viver". (http://www.pnud.org.br/idh)

56

é mais o centro das atenções como acontece no seio familiar; diferente, por que é

única, com desejos e necessidade singulares.

Assim, mesmo com toda artimanha organizada pelo poder dominante, ainda é

possível educar para cidadania, basta apenas (não que isso seja fácil) desatar os

nós que prendem o educador alienado à visão que têm da escola, como local de

garantia de emprego e não de atividade humana; afinal, como nos lembra Marx, o

emprego está baseado na troca, o qual o sujeito apenas troca sua força de trabalho

pelo capital, executando apenas o que a ele é pedido; já no trabalho que é a

atividade humana puramente consciente, o ser humano tem a liberdade de escolher

os meios que possibilitem alcançar seus objetivos, e assim se reconhece em sua

produção. Desta forma, façamos da escola local de atividade humana

transformadora e não local de busca de emprego. Pois, o professor só terá poder de

determinação e autonomia, quando, se reconhecendo no seu trabalho, não permitir

ser mais alienado pelo capital.

Diante de tudo isso, podemos concluir que o poder de determinação da práxis

docente na construção da cidadania discente nos anos iniciais está limitada à lógica

do capital. E isto só será superado quando houver a ruptura entre a lógica do capital

e a atuação do professor.

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REFERÊNCIAS

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FERREIRA, Nilson Cândido. Evolucionismo e criacionismo: aspectos de uma polêmica. 2008. 293. Tese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, São Paulo. FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996. _____. Educação e mudança. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. _____. Educação como prática da liberdade. 18ª. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983. _____.Conscientização: teoria e prática da libertação: uma introdução ao pensamento de Paulo Freire. Trad. de Kátia de Mello e Silva. 3ª. São Paulo: Moraes, 1980. ______. Pedagogia do Oprimido. 2ª. Rio de Janeiro. Paz e Terra, 1975. FRIGOTTO, Gaudêncio. Educação e a crise do capitalismo real. 5ª. São Paulo: Cortez, 2003. GADOTTI, Moacir; ROMÃO, J. Eustáquio. (orgs). Autonomia da Escola: princípios e propostas. 4ª. São Paulo: Cortez: Instituto Paulo Freire, 2001. GRAMSCI, Antônio. Os intelectuais orgânicos e a organização da cultura. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. 8ª. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991. INTERNET<http://portal.mec.gov.br/arquivos/pdf/ldb.pdf>. Acessado em 20 de ago. de 2010. INTERNET<http://www.dji.com.br/leis_ordinarias/.htm> Acessado em 25 de ago. de 2010. INTERNET< http://www.miniweb.com.br/educadores/artigos/veja_educacao1.html> Acessado em 26 de ago. de 2010. MARTINS, Maria A. Viviani. O professor como agente político. São Paulo: Edições Loyola, 1984.

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RIBEIRO, Darcy. O processo civilizatório: etapas da evolução sociocultural. São Paulo: Companhia da Letras, 1998. RIBEIRO, Maria Luisa Santos. A formação política do professor de 1º e 2º graus. São Paulo: Cortez, 1984. SAVIANI, Dermeval. Escola e democracia. 21ª. São Paulo: Cortez: Autores Associados, 1989. SOUZA, Celina. Políticas Públicas: uma revisão da literatura. Disponível em: < http://www.scielo.br/pdf/soc/n16/a03n16.pdf >. Acesso em 02 ago. 2010. VÁZQUEZ, Adolfo Sánchez. Filosofia da práxis. Tradução de Luiz Fernando Cardoso. 4ª. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.

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ANEXO

ANEXO A – REPORTAGEM DA REVISTA VEJA – 2008 ANEXO B – TAXA DE MORTALIDADE INFANTIL - 2009 ANEXO C – TAXA DE ALFABETIZAÇÃO - 2009 ANEXO D – COEFICIENTE DE GINI NO MUNDO - 2009

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ANEXO A

Prontos para o século XIX

Muitos professores e seus compêndios enxergam o mundo de hoje como ele era no tempo dos tílburis. Com a justificativa de "incentivar a cidadania", incutem ideologias anacrônicas e preconceitos esquerdistas nos alunos. Monica Weinberg e Camila Pereira

Tema para reflexão: vale a pena usar chocadeiras artificiais para acelerar a produção de frango? Deu-se com isso o início de uma das aulas de geografia no Colégio Ateneu Salesiano Dom Bosco, de Goiânia, escola particular que aparece entre as melhores do país em rankings oficiais. Da platéia, formada por alunos às vésperas do vestibular, alguém diz: "Com as chocadeiras, o homem altera o ritmo da vida pelo lucro". O professor Márcio Santos vibra. "Você disse tudo! O homem se perdeu na necessidade de fazer negócio, ter lucro, exportar." E põe-se a cantar freneticamente Homem Primata / Capitalismo Selvagem / Ôôô (dos Titãs), no que é acompanhado por um enérgico coro de estudantes. Cena muito parecida teve lugar em uma classe do Colégio Anchieta, de Porto Alegre, outro que figura entre os melhores do país. Lá, a aula de história era animada por um jogral. No comando, o professor Paulo Fiovaranti. Ele pergunta: "Quem provoca o desemprego dos trabalhadores, gurizada?". Respondem os alunos: "A máquina". Indaga, mais uma vez, o professor: "Quem são os donos das máquinas?" E os estudantes: "Os empresários!". É a deixa para Fiovaranti encerrar com a lição de casa: "Então, quem tem pai empresário aqui deve questionar se ele está fazendo isso". Fim de aula.

Os dois episódios, ambos presenciados por VEJA, não são raridade nas escolas brasileiras. Ao contrário. Eles exemplificam uma tendência prevalente entre os professores brasileiros de esquerdizar a cabeça das crianças. Parece bobagem, uma curiosidade até pitoresca num mundo em que a empregabilidade e o sucesso

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na vida profissional dependem cada vez mais do desempenho técnico, do rigor intelectual, da atualização do pensamento e do conhecimento. Não é bobagem. A doutrinação esquerdista é predominante em todo o sistema escolar privado e particular. É algo que os professores levam mais a sério do que o ensino das matérias em classe, conforme revela a pesquisa CNT/Sensus encomendada por VEJA. Pobres alunos.

Capitalismo selvagem Colégio Dom Bosco, de Goiânia: Titãs e crítica às chocadeiras artificiais na aula de geografia

Eles estão sendo preparados para viver no fim do século XIX, quando o marxismo surgiu como uma ideologia modernizante, capaz não apenas de explicar mas de mudar o mundo para melhor, acelerando a marcha da história rumo a uma sociedade sem classes. Bem, estamos no século XXI, o comunismo destruiu a si próprio em miséria, assassinatos e injustiças durante suas experiências reais no século passado. É embaraçoso que o marxismo-leninismo sobreviva apenas em Cuba, na Coréia do Norte e nas salas de aula de escolas brasileiras. As chocadeiras produzem os frangos vendidos a menos de 5 reais nos supermercados brasileiros, e isso propicia a dose mínima de proteína a famílias que, de outra forma, estariam mal nutridas. A realidade não interessa nas aulas como a do professor Márcio Santos. O que interessa? Passar a idéia de que as máquinas tiram empregos. Elas tiram? Tiraram no começo dos processos de robotização e automação de fábricas nos anos 90. Hoje, sem robôs e máquinas, os empregos nem sequer seriam criados. Mas dizer isso pode desagradar ao espírito do velho barbudo enterrado no novo Cemitério de Highgate, em Londres. Os professores esquerdistas veneram muito aquele senhor que viveu à custa de um amigo industrial, fez um filho na empregada da casa e, atacado pela furunculose, sofreu como um mártir boa parte da existência. Gostam muito dele, fariam tudo por ele, menos, é claro, lê-lo – pois Karl Marx é um autor rigoroso, complexo, profundo que, mesmo tendo apenas uma de suas idéias ainda levada a sério hoje – a Teoria da Alienação –, exige muito esforço para ser compreendido. "A salada ideológica resulta da leitura de resumos dos grandes pensadores", diz o filósofo Roberto Romano. Gente que vê maldade em chocadeiras e mal em empresários que usam máquinas em suas fábricas no século XXI não pode ter lido Karl Marx. É de supor que não tenham lido muito, quase nada. Mas são esses senhores que ensinam nossos filhos nas melhores escolas brasileiras – sem, diga-se, que os pais se incomodem com isso.

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Lição de casa Colégio Anchieta, em Porto Alegre: o professor pede aos alunos que questionem os "pais empresários"

A pesquisa CNT/Sensus ouviu 3 000 pessoas de 24 estados brasileiros, entre pais, alunos e professores de escolas públicas e particulares. Sua conclusão nesse particular é espantosa. Os pais (61%) sabem que os professores fazem discursos politicamente engajados em sala de aula e acham isso normal. Os professores, em maior proporção, reconhecem que doutrinam mesmo as crianças e acham que isso é sua missão principal – algo muito mais vital do que ensinar a interpretar um texto ou ser um bamba em matemática. Para 78% dos professores, o discurso engajado faz sentido, uma vez que atribuem à escola, antes de tudo, a função de "formar cidadãos" – à frente de "ensinar a matéria" ou "preparar as crianças para o futuro". Muito bonito se não estivessem nesse processo preparando os alunos para um mundo que acabou e diminuindo suas chances de enfrentar a realidade da vida depois que saírem do ambiente escolar. Para atacar um problema, o primeiro passo é reconhecer sua existência. Esse é o mérito da pesquisa CNT/Sensus.

Ódio às máquina Na sala de aula e nos livros, a tecnologia recebe a culpa pelo aumento do desemprego no mundo

Adversária do exercício intelectual, a ideologização do ensino pode ser resultado em parte também do despreparo dos professores para o desempenho da função. No ensino básico, 52% lecionam matérias para as quais não receberam formação específica – 22% deles nunca freqüentaram faculdade. Para esses, os chavões de esquerda servem como uma espécie de muleta, um recurso a que se recorre na falta de informação. "Repetir meia dúzia de slogans é muito mais fácil do que estudar e

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ler grandes obras. Por isso, a ideologização é mais comum onde impera a ignorância", diz o historiador Marco Antonio Villa. A questão não é exatamente nova na educação. Meio século atrás, a filósofa alemã Hannah Arendt já alertava para o equívoco de fazer das aulas um lugar para a doutrinação ideológica, qualquer que fosse o matiz. Em A Crise na Educação, ela dizia: "Em vez de (o professor) juntar-se a seus iguais, assumindo o esforço da persuasão e correndo o risco do fracasso, há a intervenção ditatorial, baseada na absoluta superioridade do adulto". Ao refletirem sobre o atual cenário, os especialistas concordam com a idéia central da filósofa. Está claro, e a própria experiência mostra isso, que o viés político retira da escola aquilo que deveria, afinal, ser seu atributo número 1: ensinar a pensar – verbo cuja origem, do latim, significa justamente pesar. Diz o sociólogo Simon Schwartzman: "O verdadeiro exercício intelectual se faz ao colocar as idéias e os juízos numa balança, algo que só é possível com uma ampla liberdade de investigação e de crítica".

Consumo, esse vilão Na cartilha, as sociedades de consumo se prestam a estimular a futilidade e poluir o ambiente

Não é o caso na maioria das salas de aula. Muitos professores brasileiros se encantam com personagens que em classe mereceriam um tratamento mais crítico, como o guerrilheiro argentino Che Guevara, que na pesquisa aparece com 86% de citações positivas, 14% de neutras e zero, nenhum ponto negativo. Ou idolatram personagens arcanos sem contribuição efetiva à civilização ocidental, como o educador Paulo Freire, autor de um método de doutrinação esquerdista disfarçado de alfabetização. Entre os professores brasileiros ouvidos na pesquisa, Freire goleia o físico teórico alemão Albert Einstein, talvez o maior gênio da história da humanidade. Paulo Freire 29 x 6 Einstein. Só isso já seria evidência suficiente de que se está diante de uma distorção gigantesca das prioridades educacionais dos senhores docentes, de uma deformação no espaço-tempo tão poderosa que talvez ajude a explicar o fato de eles viverem no passado.

Entre as figuras históricas e da atualidade mais citadas em classe está, como não poderia deixar de ser, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. As referências a Lula são contidas. O presidente brasileiro obtém aprovação menor entre os professores, segundo relatam os estudantes, do que aquela com que a sociedade brasileira em geral o brinda. Ele tem 70% de avaliação positiva dos brasileiros, mas na boca dos professores esse índice cai para 30% – com 27% de citações negativas e 43% de neutras. Ressalte-se aqui que é um ponto louvável para os mestres o fato de, como

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mostram os números relativos a Lula, eles não fazerem proselitismo eleitoral em classe – mesmo que seja preciso relevar o fato de o ditador venezuelano Hugo Chávez ter merecido 51% de citações positivas. A neutralidade e o comedimento em relação a Lula desautorizam a interpretação de que os professores tentam direcionar o voto dos alunos, o que seria desastroso. É sinal de que sua pregação, mesmo equivocada, se mantém no nível das idéias – o que é excelente.

Contrários à doutrinação O advogado Miguel Nagib (sentado) fundou a ONG Escola Sem Partido, junto com outros pais: todos acharam na cartilha dos filhos exemplos de ideologia

"Eu e todos os meus colegas professores temos, sim, uma visão de esquerda – e seria impossível isso não aparecer em nossos livros. Faço esforço para mostrar o outro lado", diz a geógrafa Sonia Castellar, que há vinte anos dá aulas na faculdade de pedagogia da Universidade de São Paulo (USP) e escreveu Geografia, um dos best-sellers nas escolas particulares (livro que tem dois de seus trechos comentados por VEJA na reportagem seguinte). "Reconheço o viés esquerdista nos livros e apostilas, fruto da formação marxista dos professores. Mas não temos nenhuma intenção de formar uma geração de jovens socialistas", diz Miguel Cerezo, responsável pelo conteúdo publicado nas apostilas do COC (de onde foram extraídos quatro trechos comentados pela revista). À luz de outra pesquisa em profundidade feita pelo Ibope em colaboração com a revista Nova Escola, editada pela Fundação Victor Civita, os professores da rede pública revelam que, para eles, o principal problema da sala de aula é, de longe (77%), a ausência dos pais no processo educativo. Repousam na colaboração entre pais e professores a correção dos rumos do ensino no país e a aceleração da curva de melhora de desempenho que começa a se desenhar. A questão do excesso de ideologização é um desses problemas que podem ser abordados em conjunto por pais e professores. Demanda para o diálogo existe. O advogado Miguel Nagib fundou, há quatro anos, em Brasília, a ONG Escola Sem Partido, com o objetivo de chamar atenção para a ideologização do ensino na sala de aula. Nagib se incomodou com os sinais do problema na escola particular de sua filha, então com 15 anos, onde o professor de história gostava de comparar Che Guevara a São Francisco de Assis. Foi ao colégio reclamar. Diz Nagib: "As escolas precisam ficar sabendo que muitos pais não concordam com essa visão".

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ANEXO B

Fonte: CIA World Factbook, Janeiro 1, 2009

Posição País Taxa de mortalidade infantil (mortes/1.000 nascimentos normales)

96 Brasil 22.58 97 Tunísia 22.57 98 Líbano 21.82 99 Venezuela 21.54 102 Equador 20.9 103 Filipinas 20.56 104 China 20.25 107 Colômbia 18.9 108 Suriname 18.81 125 Jamaica 15.22 127 Jordânia 14.97 138 Panamá 12.67 148 Argentina 11.44 149 Uruguai 11.32 158 Kuwait 8.96 160 Costa Rica 8.77 161 Porto Rico 8.42 163 Chile 7.71

177 Estados Unidos

6.26

179 Cuba 5.82 192 Portugal 4.78 206 Suíça 4.18 207 Alemanha 3.99 214 França 3.33 220 Bermudas 2.46 221 Singapura 2.31

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ANEXO C Posição País Taxa de alfabetização (%)

26 Suécia 99 27 Suíça 99

35 Estados Unidos

99

40 França 99 43 Guiana 98.8

47 Trindade e Tobago

98.6

48 Itália 98.4 54 Uruguai 98 63 Argentina 97.2 74 Taiwan 96.1 78 Chile 95.7 83 Paraguai 94 88 Kuwait 93.3 89 Portugal 93.3 90 Venezuela 93 91 Peru 92.9 94 Filipinas 92.6 95 Tailândia 92.6 96 Singapura 92.5 100 Panamá 91.9 104 Equador 91 105 China 90.9 108 Colômbia 90.4 109 Indonésia 90.4 117 Malásia 88.7 118 Brasil 88.6

Fonte: CIA World Factbook, Janeiro 1, 2009

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ANEXO D Coeficiente de Gini no mundo (2009).

Fonte: CIA World Factbook, Janeiro 1, 2009