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Mosteiro de São Bento da VitóriaSala do Tribunal12 ‑22 fevereiro 2015

encenação Micaela Cardoso José Roseira

assistência de encenação e produção executiva Mário Nogueiradramaturgia Francisco Luís Parreira (a partir da tradução de Suzana Cabral de Mello)desenho de luz Pedro Vieira de Carvalho

coprodução Micaela Cardoso TNSJ

dur. aprox. 1:10M/12 anos

qua 19:00 qui-sáb 21:00 dom 16:00

de Hermann BrocH

commicaela cardoso

o TNSJ É memBRo dA

ZERLINAeSTReIA

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Muito embora tenha já um longo percurso dedicado à interpretação, esta é a primeira vez que avanço com um projecto do qual sou autora. Nunca antes tive tal urgência. Agora reconheço uma confluência de factores que tornaram este passo inescapável, materializando leituras, estudos preambulares e a necessidade de explorar os meus próprios limites, pondo-os à prova. Durante o meu caminho profissional, fui reunindo, como uma coleccionista, ânsias criativas por colmatar. O universo feminino, em toda a sua complexidade, sempre me desassossegou. São muitas as camadas estratificadas que tenho a descobrir. Assim se justifica, em parte, a alegria que senti ao descobrir este texto.

A Criada Zerlina é uma narrativa integrante de Os Inocentes, o último romance de Hermann Broch, escrito em 1950, durante o seu exílio nos EUA. A par do arrebatamento que o texto me provocou, está o fascínio pela vida deste homem, profundamente regida por primados éticos. Mais do que à produção literária, actividade que durante grande parte da sua existência relegou para segundo plano, dedicou -se a repensar a Arte não como um objecto isolado, mas como um dos vértices de um triângulo mais abrangente: trabalho artístico, trabalho científico e trabalho político. Por outras palavras, Broch, através da sua Teoria do Conhecimento, trabalhou na busca de um conceito de Absoluto. “Fora provavelmente essa busca que desde o início o pusera no seu caminho, e foi ela que por fim lhe deu a ideia de um ‘absoluto terreno’ como solução para satisfazer o seu espírito e consolar o seu coração.” (Hannah Arendt, Homens em Tempos Sombrios)

Ao ler A Criada Zerlina, desassossegou -me, num primeiro assalto, a figura desta personagem sumamente sexual e duramente feminina, que usa a sua condição como arma, dominando a intimidade da família que serve. O relato de Zerlina sobre as suas experiências eróticas carrega reflexões profundas sobre os comportamentos humanos, no que toca ao desejo, ao prazer e ao cariz complexo e volátil que pode ter o amor.

Na actualidade, a tecnologia reequaciona, quase de forma imperativa, toda a estrutura do relacionamento social, acentuando a dimensão imediata do presente. O relato de Zerlina desloca o eixo temporal para o exercício da memória e desenrola -se no desejo de relembrar uma vida construída sobre uma imagem do amor, mas também sobre a busca do prazer e os recortes da arte da sedução. Sob a máscara do erotismo, Zerlina oculta alvos maiores, e é esse um dos campos a explorar. Como pode o desejo escamotear a vingança? Como pode o erotismo ser usado por uma mulher como a sua arma, ao serviço da sua inteligência, durante toda uma vida?

Este texto tem o secretismo perverso de uma confissão e Zerlina desdobra -se em duplicidades, que vão das suas diferentes idades aos vários papéis que experimenta – criada, amante, preceptora, criadora, espia, instigadora de

mIcAelA cARdoSo

Zerlina

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homicídio, de loucura, de ciúme e de vingança. Aquilo que me compele para este conto feito monólogo é também o domínio que Zerlina tem sobre o seu tempo, pois que possui, a priori, o conhecimento absoluto das histórias e dos factos que vai narrar, tanto do seu passado como do seu futuro próximo, sustentando de alguma forma a Teoria do Conhecimento de Broch, que Hannah Arendt tão claramente expõe:

Como poderia o conhecimento abolir a morte? Como poderia um homem chegar a conhecer

tudo? […] Do conhecimento que abarca tudo resulta necessariamente a simultaneidade, que abole

a sucessão do tempo, e por conseguinte a morte; instaura -se na vida humana uma espécie de

eternidade. Quanto à segunda pergunta, a chave está na frase: “O que é necessário é uma teoria

geral do empirismo”, ou seja, um sistema que leve em conta todas as experiências possíveis.

Tomando o teatro como um lugar de abstracção e, por conseguinte, de reflexão, que vá mais além do espaço da representação, nele podemos fazer viver todo o tempo em simultâneo, abolindo assim a imagem da morte. Mais do que fazer a Zerlina, trata -se aqui de ser a Zerlina, estender a ilusão teatral e, sem sacralizações, criar uma peregrinação, uma subcorrente que perpetue na memória do espectador a experiência de ser ele o hóspede, o visitante, o interlocutor, o ouvinte, o cúmplice, o voyeur, a quem, uma e outra vez, poderá Zerlina repetir este número, um ritual de passagem a que são submetidos todos os que permanecerem naquela casa, como inquilinos de uma família da alta burguesia em franca ruína e declínio.

Adensando a leitura, descobre -se a probabilidade da repetição que advém do exercício da memória que se debate, ela própria, por manter o essencial; no fundo, a junção de todas as experiências basilares e inolvidáveis para sermos quem somos e não outros.

Alimentamos o tempo, alimentamos a morte com o que foi esquecido, mas o inesquecível

é uma oferta que a morte nos faz. Quando a recebemos, já não estamos apenas no presente,

estamos também ali onde o mundo se precipita na escuridão. Tudo o que se passou entre mim

e o Senhor de Juna foi essa oferta doce e sem tempo da morte. Um dia transportar -me -á,

e suavizar -me -á a queda na escuridão, ela própria transportada na plenitude da memória.

Texto escrito de acordo com a antiga ortografia.

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O texto cénico de Zerlina retém a narrativa monologada da criada Zerlina tal como a conhecemos em forma impressa. Retém -na na sua integridade; fizeram -se porém modificações no texto impresso que não pareceram imperdoáveis e se orientaram, no conjunto, à boa conciliação de sistemas de mediação sempre prontos à desavença, como a literatura e o teatro. Não difere o processo, de resto, daquele a que Platão, na República, para se referir ao próprio da imitação dramática e distingui -la do discurso narrativo, chamava de “ocultação do autor” e definia como a “supressão das palavras do poeta que estão no meio das falas”. Tratou -se, em todo o caso, de modificações operadas na pequena escala do parágrafo ou do período: rasuras tão parcimoniosas quanto possível em trechos que o leitor costuma identificar como “reflexivos” ou “metanarrativos” e para os quais o tempo ideal da leitura, na sua maleabilidade característica, se encontra mais receptivo que o tempo ideal do drama. Neste sentido, também pareceu útil, em certas passagens, extremar e reordenar momentos narrativos e recapitulativos, ainda que, na sua existência literária, eles apareçam na sua coesão indistinta: é especialmente o caso do episódio rememorado do pavilhão de caça.

Porém, o texto literário não é só constituído pela narrativa monologada. Com efeito, a narrativa da velha criada deixa -se ler no contexto heterodiegético imposto pela presença de um auditor que ocasionalmente a enquadra, antecipa ou comenta. Andreas, de resto, não é um auditor qualquer: ele é o centro daquela schuldhaft schuldlos, a culposa ausência de culpa em que se cristalizam todos os movimentos (ou paralisias) de Os Inocentes, o promontório romanesco de que o Relato da Criada Zerlina se individualiza em capítulo próprio. É natural, assim, que Broch faça dele o mediador activo entre a criada e o leitor. Com efeito, embora a intervenção diegética de Andreas seja inexpressiva, e a narrativa de Zerlina possa fluir da intacta imanência de paixões – piores ou melhores – que a organiza, ele está pelo menos investido com a faculdade de discurso interior, no acesso ao qual se determina, em boa medida, a posição interpretativa do leitor. Por essa boa razão, é conjecturável que a decisão quanto à presença ou omissão cénica desse interlocutor tenha sido a questão subordinante de todas as transposições teatrais do texto de Broch e aquela de que, em última análise, terão procedido, em cada caso, as soluções ditas “técnicas”. A já longínqua primeira (e até agora única) adaptação para a cena portuguesa mostrou -se benigna com certa perspectiva que nada tem a recear da personificação e abasteceu o palco com dois actores. A presente dramaturgia não segue esse exemplo e opta por privar Zerlina de interlocutor físico. Submeter um actor à reclinada imobilidade de uma otomana e provê -lo de duas ou três falas, sem mais efeito que o de recordarem a filiação do texto no sistema literário, aproximar -se -ia perigosamente do mau trato — desde logo, do actor, mas

FRANcISco luíS PARReIRA

Nota dramatúrgica

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não menos da actriz, junto da qual a dramaturgia seria omissa no seu dever principal: o de abrir ao seu trabalho perspectivas de projecção em graus ulteriores de complexidade.

A opção de isolar Zerlina – quer dizer, a opção de interiorizar Andreas – não está desamparada: surte, por assim dizer, dos próprios recursos latentes do texto de Broch. Se, nas primeiras páginas, Broch, como já apontado, parece querer radicar na escuta de Andreas a percepção condutora da leitura, esse é o contorno que primeiro lhe é necessário estabelecer para o fazer implodir oportunamente, exibindo perante os olhos do leitor a desagregação do seu sistema de expectativas e realçando ex negativo o desolado triunfo da personagem. É que as palavras de Zerlina, demasiado conscientes das pré -condicionantes daquela escuta, não cessam de redistribuir, a cada momento, as posições para as quais o apuro de um sentido está em questão. As suas palavras, nessa medida, são aquilo que é lícito fazer ecoar – diríamos, a sós – no momento em que esta questão já abriu o seu sulco. Assim, é já a interlocução de Andreas que está totalmente absorvida na escuta que Zerlina aplica a si mesma e de que, em suma, procede a sua narrativa.

Há, no entanto, uma parte do discurso interior de Andreas – palavras de poeta, que estão no meio das falas – de que não se quis amputar o texto cénico. Trata -se do parágrafo que acolhe a reflexão sobre o donjuanismo (recordo que as personagens do romance, maioritariamente, possuem os nomes das personagens com que Mozart e Lorenzo Da Ponte especificam o mito no Don Giovanni). A implantação desse tema no núcleo mais interior da história da criada Zerlina e a inteligência da reflexão obrigaram à integração da passagem, convenientemente reescrita, no texto cénico monologado.

Texto escrito de acordo com a antiga ortografia.

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Hermann Broch sabia que durante a guerra as Musas não emudecem, elas fazem -se ouvir no tempo das crueldades e do horror, chamando -nos, afligindo -se nas nossas cidades. Porquê escrever, poeta? O verso inicial de cada uma das vozes, que, como proémio, mágoa, desalento e magnificat, abre cada uma das partes de Die Schuldlosen, é uma interrogação que não se refere à impossibilidade de haver poetas nas cidades da ignomínia, não anula nem enfraquece a necessidade da sua existência no mais fundo das trevas. Depois de Auschwitz os poetas são esperados, mas em cada estação, a cada nova chegada, eles perguntam: “O que devemos nós fazer?” Não se trata, portanto, de encontrar zonas de paz no meio do Inferno. Foram muitos os textos onde Hermann Broch se interrogou sobre o que cabe ao poeta, sobre a sua missão. Ele tomou -a em mãos, através de um querer ajustar -se àquilo a que chamou o elemento empírico da existência humana, a totalidade do reino sentimental com toda a sua irracionalidade, pelo esforço de recolher em cada momento a sua solidão própria, de anotar pacientemente todos os sinais da escuridão que envolve os homens (pressentimento ininterrupto da morte), tentando dominar essa escuridão pela forma, iluminá -la, sem a poder vencer: O dia de ontem escapa ‑se mesmo antes de a barca ter recolhido.

As palavras do poeta apresentam uma coisa que esteve à beira de ser conhecida, uma coisa que não se quer deixar atrás de si, vazia, estéril, abandonada. As palavras poéticas estão entregues a um inquérito daquilo a que se referem, que pressentem, desejam, temem, dando feição às forças criativas e destrutivas que agem na passagem do não -ser ao ser própria do acto poético, as palavras que seguem como seu cortejo o absoluto, que a porta da morte deixou entrar, em particular essas palavras mágicas, no dizer de Broch, beleza, bem, justiça, Deus, mas também palavras como corpo, sonho, mãe, desejo, dor, fome, felicidade, todas as palavras. Essa procura é um gesto próprio daquele que morre e tem como vontade redimir a morte: sabe -se que se morre, é essa a imposição mais potente do elemento empírico, terreno. Terreno também é o desejo do sexo ou o desejo de procriar, mas sempre que esse desejo se realiza, o esplendor da experiência de comoção da criatura revela -se como autêntica proximidade com a morte e converte -se em libertação da morte no sentido mais elevado: a escuridão transforma -se numa imagem pairante, uma nuvem. A poesia e a arte caminham a par com esta experiência e procuram recolher esta imagem.

mARIA FIlomeNA moldeR*

* In O Absoluto

que Pertence à Terra.

Lisboa: Vendaval,

2006. p. 171 -176.

O presente sombrio, doce e intemporal da morte

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Provindo a arte do irracional, do acontecimento místico daquilo que há, exercendo uma tarefa de tornar o irracional em racional, isto é, tornar visível através de uma forma que alguma coisa está a ser conhecida e esteve a ser conhecida, o artista sabe que é sempre de novo o irracional que brilha no coração do resultado formado, soltando -se dele. E a morte não é só a porta, por onde passa o absoluto e o seu cortejo mágico, o semblante da morte é o grande ressuscitador, por isso o poeta não deve resistir à angústia da solidão, nem anestesiar essa angústia, trata -se sempre de tomá -la, a ela que constitui a comunidade lógica do ser humano com Deus, para que nos faça falar ou cantar: todos conheceram outrora a sua infância, oh! faz com que eu não esqueça.

Há uma passagem na Narrativa da Criada Zerlina que reúne de modo incomparável aquilo que Hermann Broch quer dizer acerca do tempo, da morte e da redenção da morte. Zerlina não ignora que, através de todas as horas da sua respiração, o tempo se encaminha para a morte. Levada de sonho em sonho, de uma angústia para outra angústia, é uma mulher que se prepara (que esteve desde sempre a preparar -se) para falar daquilo que na sua vida pode vir a tornar -se a redenção da sua vida, que permite pôr a descoberto os seus mistérios, onde todos os seus gestos de servidão, “se não houvesse este vazio e estes esquecimentos”, hão -de ficar guardados, salvos e incompletos, prepara -se para falar do inesquecível. Em cada pausa da sua narrativa, Zerlina faz -nos ver que todo o imediato é inexorável e que o sagrado provém desse carácter inexorável e não pode existir sem rigor, sem peso, sem dureza, por isso reconhece aos numerosos matizes do prazer do amor os seus direitos próprios.

“Presente sombrio, doce e intemporal da morte”, o inesquecível é aquilo de que nós andamos à procura, postos na nossa inquietação e querendo tomar conta dela, fazendo -a crescer, isso que está prometido, suspenso em cada instante. O inesquecível tem a ver com o momento, com a redenção do momento, que se precipita para aquele encontro de que Hermann Broch fala quando se descobre que “tudo o que é infinito acontece uma única vez”; é um movimento que o imediato realiza sobre si próprio, conservando assim, guardando, o elemento terrestre e a procriação no instante eterno, onde se precipitam o espaço e o tempo no seu encontro comum. Experiência que nasce da reconciliação com termos nascido das entranhas da mãe, de possuir entranhas, possuirmos um corpo cujas costas se levantam quando respiramos, com os seus inumeráveis ossos, os seus milhares de veias, arrastados para além da terra: os mistérios do ser no elemento terrestre e na procriação, os mistérios da sexualidade e do desejo. É assim que o isolamento da alma humana não chega a tomar a forma de uma indiferença por habitar um corpo provido de pulmões e entranhas, deixa -se expandir nos seus gestos e abandona -se às suas forças, consciente do elemento terrestre e da morte, não resistindo ao amor.

É uma ideia admirável, essa de ter compreendido que o princípio de imitação na arte, concebido como cessação da descontinuidade entre a vida e a arte, que abdica da dificuldade de procurar os “vocábulos de realidade”, reproduzindo -os através de formas inteiriçadas, em que as obras de arte anteriores se convertem, tomadas como fixação do infinito, elas que apenas deixam passar o seu ruído imenso, é admirável ter compreendido que esse princípio é a condição do mal radical no sistema de valores da arte, daquele mal inerte ao sistema, inexterminável, que leva o sistema à auto -destruição, utilizando os seus próprios haveres, um ladrão que usurpa a casa própria como se fosse alheia. Condição do mal radical, do não -valor,

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da falsa dominação da morte, porque é fuga da morte sem autêntica redenção, o princípio de imitação realiza uma ultrapassagem falsificadora da distância que vai de uma escuridão a outra escuridão, condenando -a ao esquecimento. Rigorosamente, o não -valor é a morte, sendo o mal radical um modo de perverter a compreensão desse não -valor, que se opõe ao valor que é a vida, reduzindo o procedimento do artista a uma forma vã. Evadindo -se da morte, em vez de manter intacto o seu brilho terrível, aniquila o olhar para muito longe, para trás, para os muitos que já foram, e suprime a possibilidade de converter essa experiência do outrora em imagem prometida do futuro.

Hermann Broch pensava o artista como um moribundo que se está preparando para o seu serviço, empurrado, levado por dois ventos contrários mas consanguíneos (fugir a todo o momento do repouso e correr atrás dele), sorrindo por finalmente o seu peso o arrastar, alguém que sabe encontrar -se na situação daquele escreve o mais rapidamente que pode, a fim de conseguir ir arrumar o seu livro na biblioteca de Alexandria, esperando que o incêndio não tenha sido ateado. Ele padeceu e quis contar o padecimento das imagens que à força de rapidez se imobilizam, sem elo, sem enleio, perdendo o valor simbólico, uma tradição onde já não se pode viver: tornar essa imagem clara, desenrolá -la, iluminar isso, não é procurar ainda a morada de um anjo, cheios de felicidade, libertos de toda a esperança?

Texto escrito de acordo com a antiga ortografia.

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Quem assiste à representação de A Narrativa da Criada Zerlina de Hermann Broch nem sempre sabe que se trata da adaptação para palco dum capítulo do romance Os Inocentes [Die Schuldlosen, 1951], e não de um texto dramático convencional. Tal facto não é, contudo, irrelevante, já que o gesto de fragmentação que isola o relato de teor fundamentalmente retrospectivo de Zerlina, ao captar a sua máxima irradiação, confere -lhe igualmente uma representatividade e sentido de completude, que talvez se não registem relativamente ao conjunto de onze capítulos que forma o romance. A dramaticidade do longo monólogo da velha criada é, aliás, inegável; e chamo -lhe monólogo porque a presença da outra voz funciona como mero reflector e suporte das modulações rítmicas de Zerlina (o hóspede é sintomaticamente denominado apenas pela letra maiúscula A.), enquanto a parcimoniosa voz do narrador deixa as escassas indicações cénicas necessárias à lenta evolução dum velho corpo num espaço conhecido, saturado (é a própria Zerlina que, saudosa, compara esta com a vasta casa de outrora) e exíguo.

Zerlina, serva e justiceiraFeRNANdA GIl coSTA*

* Texto originalmente

publicado no programa

do espectáculo Zerlina

(Teatro Nacional

D. Maria II, 1993).

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Mas sendo, sem dúvida, parte dum todo, torna -se necessário sublinhar a já referida completude do fragmento, até porque a técnica de composição da narrativa brochiana constantemente fomenta a multiplicidade e a profundidade das visões envolvidas.

Num ensaio do final dos anos quarenta, sobre o escritor vienense Hugo von Hofmannsthal [Hofmannsthal und seine Zeit, 1947 -48], Broch defende a pertinência da construção alegórica nas obras de arte, sobretudo em épocas de decadência e generalizada crise de valores. Um pouco antes, em 1936, num discurso de homenagem pelo 50.º aniversário de James Joyce [“James Joyce und die Gegenwart”], Ulisses é considerado o romance que confirma no presente a viabilidade da representação poética do mundo e a valência simbólica do universo ficcionado da obra de arte, de modo a iluminar, a partir de dentro, toda uma época e a totalidade das suas manifestações na escala existencial e humana. Ora, é precisamente a construção alegórica do discurso, a montagem das vozes na singularidade da voz, aliada ao princípio expansivo da visão da personagem, que assim vai perdendo todo o naturalismo e alcançando uma espécie de capacidade de refracção simbólica, que a torna uma reflexão, um desdobramento e uma intrusão em linguagens à primeira vista ausentes, como a filosófica ou a religiosa. É este processo que permite também os deslizes da consciência da personagem para registos da voz autorial, recortando um perfil inverosímil face aos hábitos realistas do palco e do romance e uma figura manifestamente experimental, “construída” como oráculo de vozes exteriores e espaço de tensão entre pulsões de uma subjectividade que a si mesma se sabe difusa, descontínua e fracturada. Veja -se, por exemplo, a permanente indecisão entre a paixão, imanente ao sujeito que recorda e se revive como desejo, e a sobranceria transcendente de quem reformula e vence, pelo esforço da narração e da apropriação, o enigma do passado, recortando -o definitivamente na saga da “vitória” de Zerlina.

Mas a falta de centro e unidade da voz da criada, a deambulação por discursos de ressentimento sexual e classista (com ecos de Strindberg), por um erotismo possessivo e primitivo que evoca o mito finissecular da femme fatale, Lulu, Nana, por um puritanismo justiceiro e uma obcecação ética que tendem para a mitificação da culpa e da expiação sub specie aeternitatis, é aqui o limite de um modo de narrar que pretende ser ajustado ao seu tempo. Pois em Broch o carácter supra -temporal da arte só é atingido pela síntese entre o ético e o estético, pela obra que é também diagnóstico do espírito do tempo.

A marca alegórica é dominante desde o pormenor à estruturação global da narrativa; está presente na densa rede simbólica que o texto vai urdindo, assinalando a alusão parodística ao mito do Don Juan no acontecer e também nas unidades menores da organização do sentido, por exemplo na escolha dos nomes próprios (além de Zerlina, temos a baronesa Elvira e o Senhor de Juna, simples alteração gráfica de Juan, enquanto o Senhor Barão, com o seu óbvio funcionamento de juiz supremo do universo ético da ficção, duplicando o papel que desempenha na intriga, combina as tradicionais funções do comendador e da estátua de pedra, o pai protector e o justiceiro transcendente). E se no plano dos eventos e das figuras encontramos uma explícita alusão ao Don Juan, no plano mais abstracto da valência simbólica da narrativa é visível a estratégia do mistério medieval. Basta observar a descrição que Zerlina faz

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da sua visita a Juna para reconhecer o tema da queda da alma ou da descida ao inferno: os cavalos negros, a presença obsessiva da escuridão, o caminho a pique, o erotismo demoníaco da paixão, a descrição do orgasmo como atracção do abismo e antecipação da experiência avassaladora da morte. Juna é no percurso de Zerlina a passagem pelas trevas, a estação do pecado purificador que tornará a alma permeável à presença da luz.

Mas a estratégia alegórica não se reduz a uma teia mais ou menos finamente tecida de alusões, ela é submissa a um determinismo e a um finalismo que só a função autorial pode sabiamente, dissimuladamente, encaminhar. A história de Zerlina encontra o seu objectivo final como moralidade, como passado recuperado para o presente que o constrói e, através do duplo discurso alegórico, transfigura os episódios de traição, perversidade e abnegação no equívoco mas determinado caminho de uma (precária) redenção. Precária porque só é válida para Zerlina, prisioneira do passado que recupera para a sua vitória pessoal, a vitória dos “fortes” que o amor alcança apenas longe do prazer e a partir do ambíguo lugar da rejeição. O estado interior da força moral consiste, afinal, na capacidade de transformar o não -querer em não -poder (o eco schopenhaueriano é iniludível) e assim vencer os “fracos” de olhar alagado pelo medo (a baronesa e o amante), a decadência dos seus “frémitos de alma”, a vida de que só resta o simulacro. A perversidade de Zerlina, o ímpeto da paixão que a conduziu ao inferno, onde o amor não passa de ódio e luxúria, e a tentativa falhada de se apoderar do seu único e inatingível amor (Hannah Arendt considerou a narrativa de Zerlina talvez a mais bela história de amor escrita em alemão), tornando -o num instrumento de vingança e (confusa) regeneração, só pode ser explicada no interior da sua visão maniqueísta em que o demónio, o “impuro”, e o anjo, ou “santo”, “aquele que está muito acima do prazer” se debatem pela alma humana, conspurcada e envilecida, num tempo de valores em derrocada. Para Broch, que entendia o kitsch, essencialmente, como um estado de desagregação entre o ético e o estético, com a consequente demissão das obras de arte do papel de avaliação e forma de conhecimento do mundo, a construção estratificada, alegórica, contraditória da voz da criada Zerlina só pode ler -se como desejo de ultrapassar o plano do destino social da personagem para o elevar a um entendimento simultaneamente mais livre, mais trágico e mais moderno: o da edificação de si mesmo pela superação da memória (identidade) lacunar (“com tantos buracos que não se pode remendar”), num olhar que lembra o do Angelus Novus de Walter Benjamin, pois é simultaneamente expiação de culpa, desejo de redenção (ou de sentido) e luto.

Texto escrito de acordo com a antiga ortografia.

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Numa das cenas de A Noite de Antonioni, víamos, na mão de uma personagem, um exemplar da tradução publicada pela Einaudi de Os Sonâmbulos de Hermann Broch. No entanto, ainda que celebradas, as obras -primas de Broch não são conhecidas como mereciam. O escritor, nascido em Viena no ano de 1886 e falecido nos Estados Unidos em 1951, permaneceu talvez mais distante do que outros autores austríacos, grandes e menos grandes, que nas últimas décadas têm usufruído de uma fama crescente, mais do que merecida no caso de alguns – entre os quais, por exemplo, Musil e Canetti – e por vezes despropositadamente estendida a personalidades medíocres, cujo único mérito consiste em proceder da Mitteleuropa dos Habsburgos.

Os escritores austríacos que foram mais facilmente assimilados pertencem a duas categorias: os nostálgicos do mundo de ontem, transfigurado como imagem da ordem e da segurança, e os arúspices da crise, para os quais a velha Áustria é a Babel da desordem e da falência dos valores, o laboratório do niilismo, o modelo de toda a civilização contemporânea fundada no nada.

Broch intimida os nostálgicos, porque desmistificou a alegre Viena de final do século XIX, mostrando -a como um apocalíptico vazio de valores, dissimulado por um kitsch de opereta, e inspira suspeita nos admiradores pós -modernos do vazio, naqueles que voluntariamente se deixam seduzir por esse vazio, porque Broch submete -o a uma crítica implacável, racional e ao mesmo tempo religiosa – de uma religiosidade não confessional, caracterizada por uma singular simbiose de judaísmo e catolicismo, que encontramos também, ainda que de modo diverso, em Joseph Roth.

Em ambos os casos, trata -se de uma visão que, precisamente porque informada pelo sentido do sagrado, se revela particularmente apta a compreender o caos contemporâneo, as suas verdades e os seus ídolos. Broch propõe valores fortes, ainda que clandestinos para o delírio da sua época, que ainda é a nossa; se o amplo consumo de literatura austríaca se viu amiúde influenciado pelo fátuo interesse pelo excêntrico, o irracional ou o sofisticado, Broch – com a clareza da sua ética, da sua formação científica e da sua conceção religiosa, opostas em igual medida a qualquer pífia coqueteria com o oculto – torna -se amargo para esse gosto, que o próprio repudia ao classificá -lo como kitsch e ao qual contrapõe o sentido da totalidade da vida, impregnada de um significado que lhe confere unidade.

Esta unidade da vida – e do extraordinário estilo poético -filosófico que a reflete e ao mesmo tempo funda, como escreveu Broch em memoráveis e magníficos ensaios – estilhaçou -se, e ele põe a descoberto tanto essa desagregação como a estéril complacência em relação a ela ou os falsos intentos

Além da linguagemHermann Broch (1886 ‑1951)clAudIo mAGRIS*

* Excertos de “Más allá

del lenguaje: la obra

de Hermann Broch”

(1993). In Utopía y

Desencanto: Historias,

Esperanzas e Ilusiones

de la Modernidad.

Barcelona: Anagrama,

2001. p. 242 -248.

Trad. Pedro Sobrado.

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de ocultá -la, restaurando ideais falidos ou substituindo os perdidos valores autênticos por edificantes sucedâneos ideológicos e sentimentais.

[…] Para Broch, o mundo parece -se com esse camarote vazio, reservado em todos os teatros de todas as cidades do império Habsburgo para a eventual visita do soberano, que, evidentemente, nunca ou quase nunca aparece por ali, de modo que o centro ideal dessa civilização é algo que falta, que não está, e que se esforçam por encobrir com uma imensa profusão de ornamentos ecléticos, como os edifícios falso -renascentistas ou falso -góticos da Ringstrasse vienense. Tanto nos ensaios como nos romances, Broch põe genialmente em relevo o esgotamento, a irrealidade – e, por conseguinte, também a angústia, a impotência vital e afetiva – de um mundo sem valores; mesclando elementos regressivos (como a idealização da Idade Média) e uma sensibilidade extraordinariamente capaz de imergir no delírio da época – especialmente no espantoso delírio do período entre guerras –, Broch exibe a irracionalidade de uma civilização que se toma por racional, porque cada uma das peças individuais em que se desmembrou funciona normalmente, mas apenas no que a cada uma diz respeito, de maneira que o conjunto – isto é, a vida, a realidade, a pessoa propriamente dita – é um caos.

Broch é um grande artista quando representa – por exemplo, em Os Sonâmbulos ou em Os Inocentes – a alienação do indivíduo que, uma vez perdido um sistema de valores, o substitui com fictícios e míseros simulacros, com os ídolos psicológicos, ideológicos ou sentimentais que a opinião corrente fabrica; este indivíduo é um sonâmbulo, que não quer dar -se conta de que dorme ou vaga na irrealidade, dando rédea solta ao seu próprio nada e à sua obscura angústia.

Nas páginas de Broch, esta grandiosa temática epocal desce à concreta realidade da existência, do corpo, dos sentimentos, do sexo. De formação matemática – e também nisto filho dessa cultura austríaca que era grande sobretudo pela sua associação de poesia e ciência –, Broch desmascarou a face demoníaca do século, o mal totalitário – que sofreu na sua própria pele de judeu exilado na América, durante o nazismo – e essoutro mal, igualmente sinistro, que é a intangível e deliberadamente inconsciente conivência com ele, praticada até nos gestos quotidianos.

Nostálgico da ordem, Broch sabia que a verdade do seu tempo era a desordem e que a tarefa moral do poeta – como disse Canetti no discurso pronunciado por ocasião do seu quinquagésimo aniversário – era a de ser o cão do seu tempo, não se encerrar na sua própria pureza, mas ir farejar em todos os recantos, por muito sórdidos que sejam, a verdade, talvez repelente, da sua época, aliviando assim a dor e arrancando do seu covil o mal escondido entre os dejetos.

Para Broch, o romance experimental da vanguarda – Joyce, Kafka – pode ser para a idade contemporânea o que Homero e o seu grande estilo foram para o mundo clássico. Segundo o escritor, o romance converte -se num instrumento cognoscitivo para captar o espírito da sua época, narrando os avatares, os sentimentos e pensamentos dos homens nos quais encarna. Para refletir com verdade uma época – a contemporânea – que se desagregou numa atomização centrífuga e heterogénea, perdendo toda a unidade de valor e de estilo, o romance deve fazer -se polifónico e poli -histórico, assumir na sua estrutura a desconexa multiplicidade de estilos da época e a sua falta de unidade e de centro. O romance deve ser ao mesmo tempo narração épica, hino

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e lírica, reflexão ensaística, teoria filosófica que desce e vive na existência das personagens, numa experimentação das formas épicas que faz de Broch um dos mais audazes inovadores do romance.

Numa obra -prima como A Morte de Virgílio, Broch atinge as mais extremas fronteiras do romance. “Poeta à minha revelia”, como dizia de si mesmo, Broch considerava que a arte era chamada a expressar o que a filosofia já não era capaz de dizer, ou seja, o valor ou, pelo menos, a exigência do valor; para realizar esta tarefa, a arte teria de proclamar a sua própria insuficiência, considerar -se um servo – ainda que insubstituível – de algo maior, a que ele – mas apenas ele – poderia unicamente aludir. A poesia é para Broch o gesto que, na fronteira do inexprimível, mostra o que está além dessa fronteira – “além da linguagem”, como diz a derradeira frase de A Morte de Virgílio. Além dessa fronteira está o absoluto e a poesia não pode alcançá -lo, mas pode conduzir os homens até esse limiar, sinalizando -lhes que o que verdadeiramente importa está para lá do limiar, mas recordando que a razão e a moral proíbem de, presunçosamente, definir o indizível, como, por seu turno, fazem os falsos profetas.

O poeta assemelha -se a Moisés, que não pode entrar na Terra Prometida mas sabe indicar o caminho que, através do deserto, conduz a esse destino. “A impotência da escrita para derrotar o mal no mundo”, como disse Giorgio Cusatelli a propósito de Canetti, é também sentida intensamente por Broch, mas nessa consciência se estriba o significado – inclusive moral – da escrita propriamente dita.

A Morte de Virgílio, publicada em 1947 depois de três anos de trabalho, expressa também, com arrepiante poesia, uma dolorosa condenação da arte. O romance é um monólogo interior de quinhentas páginas que abarca as últimas horas de Virgílio, o progressivo apagamento da sua consciência, que, antes de se diluir no Todo, revive toda a sua vida e funde por fim, simultaneamente, todos os planos da realidade – pessoal, histórica, cósmica –, afundando -se no seu oceano incomensurável. Nascido dessa literatura austríaca tão sensível à flutuante relação entre a vida e a palavra, o livro constitui um esforço extremo da linguagem para expressar a sua própria extinção no silêncio, o último gesto da forma nas margens do informe. Idêntico à palavra, o próprio indivíduo se dissolve no infinito da morte, apagando, antes de se desvanecer, todos os falsos signos. Broch – assinala Ladislao Mittner – sabe enfrentar a fundo, a todos os níveis, o absoluto da morte.

A Broch fascinam as épocas de transição, as épocas suspensas entre o final de um sistema de valores (o “já não”) e a espera de um novo (o “ainda não”), antecipado na tensão utópica e messiânica da esperança (o “no entanto já”). Em épocas assim – como a contemporânea e, seu espelho simbólico, a época de Augusto, entre o paganismo moribundo e o advento do cristianismo – a poesia indica uma meta que ela mesma não pode alcançar e um vazio que não pode colmatar. Virgílio converte -se no arquétipo do poeta moderno, que põe em dúvida a sua razão de ser e só dessa dúvida extrai a sua autenticidade e justificação.

Nestas épocas de crise, como as que Virgílio e Broch viveram, a poesia revela sobretudo a necessidade de ir até ao fundo da crise, de percorrer o caminho no deserto ou no vazio até dar apocalipticamente cumprimento

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à destruição do mal e, com ele, à do velho mundo, que deve perecer para que, messianicamente, a salvação e o nascimento do novo possam ter lugar.

A Morte de Virgílio evoca com extraordinário poder a trama essencial da vida, o amor, a angústia, a culpa, a felicidade, o sonho e a morte. Broch conseguiu escrever uma obra muito ousada e, no entanto, inteligível, impregnada de problemática filosófica e tensão cognoscitiva e, todavia, dissolvida num canto lírico; conseguiu criar uma linguagem que, sendo rica em conceitos e construções abstratas e, por vezes, densas, se resolve em música e dá a impressão de regressar à nascente original de cada expressão.

A poesia, que para Broch é “impaciência de conhecer”, é refutação do poder. Virgílio é poeta porque quer destinar a Eneida ao fogo, para impedir que o grande e sábio Augusto a use para a glória do Império. O poeta moderno não só não pode celebrar como também deve negar qualquer Cidade terrena; se o poeta homérico das origens podia cantar os exércitos, as hierarquias ou os heróis, incensar Augusto seria uma mentira, comparável à exaltação de um líder político do século XX. Se, por fim, Virgílio destina a Eneida ao fogo é porque, como observa Renato Saviane, o faz em nome de um sacrifício ainda mais elevado: compreende que deve assumir a responsabilidade das suas ações e que, após ter cantado o Império no seu poema, não pode rasurar esse, apesar de tudo, respeitável compromisso com o poder e apresentar -se puro e inocente diante da morte, sem que tenha de arcar, inclusive no último momento, com o fardo dessa culpa.

Numa admirável página do romance, o poema virgiliano despoja -se de nomes, liberta -se de toda a gloriosa nomenclatura e de toda a palavra com pretensões a capturar o inefável e torna -se murmúrio indistinto, suspiro do mundo, fluxo da vida e desembocadura na morte, no silêncio de que nasce e no qual se volta a fundir toda a linguagem. Sendo um escritor desigual, que não está isento de pathos redundante e de ideologia retrógrada, Broch é uma voz que nos ajuda a compreender o nosso presente e que, como escreve Luigi Forte, percorre “o caminho da angústia de um século”, expressando a “grande nostalgia de uma pátria que nos é dado pressagiar na dor, na gélida solidão de toda a criatura”. Como toda a grande obra poética, o livro de Broch faz ver o quão mesquinha é uma literatura incapaz de projetar -se além de si mesma.

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Nasceu no Porto, em 1974. Frequentou o curso de interpretação da Academia contemporânea do espetáculo. Trabalhou em teatro, televisão, cinema e rádio. obteve o Prémio Revelação Ribeiro da Fonte, em 1998, pela participação nos espetáculos As Lições, a partir de A Lição de eugène Ionesco, e Noite de Reis, de Shakespeare, encenações de Ricardo Pais no TNSJ, e o Prémio de melhor Atriz no VI Festival luso -Brasileiro de Santa maria da Feira, em 2002, pelo seu papel na longa -metragem O Rapaz do Trapézio Voador, de Fernando matos Silva. em teatro, trabalhou com os encenadores João Brites, Rogério de carvalho, Ruy otero, Nuno carinhas, Ricardo Pais, Giorgio Barberio corsetti, Álvaro correia, José Peixoto, João cardoso, Rosa Quiroga e Nuno cardoso.

Micaela Cardoso

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ficha técnica TNSJcoordenação de produção Maria João Teixeiraassistência de produção Maria do Céu Soares Mónica Rochadireção de palco Rui Simãoluz Filipe Pinheiro (coordenação) Abílio Vinhas Adão Gonçalves José Rodrigues Nuno Gonçalves Rui Simãomaquinaria Filipe Silva (coordenação) Adélio Pêra António Quaresma Carlos Barbosa Joaquim Marques Joel Santos Jorge Silva Paulo Ferreirasom António Bica

apoios

apoios à divulgação

agradecimentoscâmara municipal do PortoPolícia de Segurança Públicamr. Piano/Pianos Rui macedo

agradecimentos especiaisSachiko Broch de Rothermannmanuel malzbenderJorge longamarco Sénicamaria Adelaide evaristoAlbertino cardoso evaristolucinda FerreiraPedro NogueiraIsabel ArielAce/Teatro do Bolhão

Teatro Nacional São JoãoPraça da Batalha4000 -102 PortoT 22 340 19 00

Teatro Carlos AlbertoRua das oliveiras, 434050 -449 PortoT 22 340 19 00

Mosteiro de São Bento da VitóriaRua de São Bento da Vitória4050 -543 PortoT 22 340 19 00

[email protected]

ediçãoDepartamento de Edições do TNSJcoordenação Pedro Sobradofotografia Rui Pinheiroimpressão Multitema

Não é permitido filmar, gravar ou fotografar durante o espetáculo. o uso de telemóveis ou relógios com sinal sonoro é incómodo, tanto para os intérpretes como para os espectadores.

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