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Sérgio Leite Movimentos da modernidade: novos atores na esfera pública Estudos Sociedade e Agricultura, 5, novembro 1995: 32-44. Sérgio Leite é professor da UFRRJ/CPDA. Introdução A presença das chamadas organizações não-governamentais (ONGs) no cenário político contemporâneo, atuando tanto no campo de defesa de diversos grupos minoritários como na redefinição do eixo programático de novas políticas públicas, tem influenciado o debate sobre o papel dos atores sociais em meio à crise da modernidade. Ainda que de forma diferenciada, a emergência destas organizações, de certa maneira a forma institucionalizada de determinados movimentos sociais (Fernandes, 1994), tem contribuído para redimensionar questões centrais ao desenvolvimento de sociedades do velho e do novo mundo. Uma reflexão mais acurada sobre o significado dessa “presença” remeteria, por um lado, à análise do perfil e da constituição destes novos atores, da sua internacionalização e do grau de legitimidade das suas práticas, vis-à-vis o posicionamento de outros segmentos sociais convencionais, como, por exemplo, o Estado, a Igreja e o Sindicato. Por outro lado, no debate acima, fica implícita uma discussão mais complexa sobre o caráter da modernidade e sua crise, do surgimento dos atores sociais e sua interação com a sociedade capitalista. Neste campo em particular, são vários os caminhos e as interpretações a serem percorridas, bem como é extremamente difícil uma sistematização consistente sobre o tema em pauta. Um recente e instigante trabalho de Alain Touraine (1992) permite ao mesmo tempo uma aproximação competente ao debate, além de trazer argumentos extremamente interessantes ao contexto aqui referido. Estas notas, à guisa de uma tentativa inicial de apreender estas novas relações, têm por objetivo recortar o quadro proposto procurando intercalar, na análise, as duas perspectivas apontadas no parágrafo anterior. Dado o escopo do texto, fundamentaremos nossas observações nos trabalhos de Assumpção (1993) e Fernandes (1994) para o retrato e a polêmica em torno das ONGs, sobretudo brasileiras. A ponte com a reflexão mais geral terá nos textos de Touraine (1991a, 1991b, 1992) um ancoradouro importante. A modernidade em crise É oportuna a forma com que Touraine situa o debate em torno da modernidade, a partir de uma visão crítica. Para tanto ele aponta três momentos históricos onde a concepção clássica de modernidade entra em crise. O primeiro, o “mundo weberiano” do final do século XIX, “reflete a impotência frente à racionalidade, ao instrumentalismo, impotência para agir e manter-se, frente a inimigos internos ou externos. O segundo

Movimentos da modernidade: novos atores na esfera pública

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Artigo de Sérgio Leite, da UFRRJ/CPDA

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Srgio LeiteMovimentos da modernidade: novos atores na esfera pblica

Estudos Sociedade e Agricultura, 5, novembro 1995: 32-44.Srgio Leite professor da UFRRJ/CPDA.

IntroduoA presena das chamadas organizaes no-governamentais (ONGs) no cenrio poltico contemporneo, atuando tanto no campo de defesa de diversos grupos minoritrios como na redefinio do eixo programtico de novas polticas pblicas, tem influenciado o debate sobre o papel dos atores sociais em meio crise da modernidade. Ainda que de forma diferenciada, a emergncia destas organizaes, de certa maneira a forma institucionalizada de determinados movimentos sociais (Fernandes, 1994), tem contribudo para redimensionar questes centrais ao desenvolvimento de sociedades do velho e do novo mundo.Uma reflexo mais acurada sobre o significado dessa presena remeteria, por um lado, anlise do perfil e da constituio destes novos atores, da sua internacionalizao e do graude legitimidade das suas prticas,vis--viso posicionamento de outros segmentos sociais convencionais, como, por exemplo, o Estado, a Igreja e o Sindicato. Por outro lado, no debate acima, fica implcita uma discusso mais complexa sobre o carter da modernidade e sua crise, do surgimento dos atores sociais e sua interao com a sociedade capitalista. Neste campo em particular, so vrios os caminhos e as interpretaes a serem percorridas, bem como extremamente difcil uma sistematizao consistente sobre o tema em pauta. Um recente e instigante trabalho de Alain Touraine (1992) permite ao mesmo tempo uma aproximao competente ao debate, alm de trazer argumentos extremamente interessantes ao contexto aqui referido.Estas notas, guisa de uma tentativa inicial de apreender estas novas relaes, tm por objetivo recortar o quadro proposto procurando intercalar, na anlise, as duas perspectivas apontadas no pargrafo anterior. Dado o escopo do texto, fundamentaremos nossas observaes nos trabalhos de Assumpo (1993) e Fernandes (1994) para o retrato e a polmica em torno das ONGs, sobretudo brasileiras. A ponte com a reflexo mais geral ter nos textos de Touraine (1991a, 1991b, 1992) um ancoradouro importante.A modernidade em crise oportuna a forma com que Touraine situa o debate em torno da modernidade, a partir de uma viso crtica. Para tanto ele aponta trs momentos histricos onde a concepo clssica de modernidade entra em crise. O primeiro, o mundo weberiano do final do sculo XIX, reflete a impotncia frente racionalidade, ao instrumentalismo, impotncia para agir e manter-se, frente a inimigos internos ou externos. O segundo nvel muito mais crtico, transformando uma viso otimista, iluminista, numa viso negativa e repressiva da modernidade (Touraine, 1991a: 178), onde a lgica do sistema sobrepe-se ao conjunto dos atores, na realidade muito mais agentes, seguindo a expresso de Poulantzas utilizada pelo autor. Esse segundo momento data do ps-guerra. Finalmente, j no campo prtico e poltico, um terceiro momento apontaria a sublevao das foras consideradas irracionais, provocando um processo de fragmentao do modelo em curso, dando elementos s teses ps-modernas que pregam a no correspondncia dos atores ao sistema, uma viso destruidora da sociedade.[1]Ainda no campo da localizao dos nveis da crise, Touraine sublinha a diferenciao entre modernidade e modernizao, justificando sua proposta de manter o debate no campo prprio da modernidade, afastando, portanto, as concepes liberais, ps-modernas, antimodernas e hipermodernas (Touraine, 1992). Assim, no se trata de confundir a modernidade com o modo puramente capitalista de modernizao (idem: 238), como o fez Weber, onde impera a instrumentalidade da racionalidade econmica; mas abrir, no contexto das sociedades programadas, para uma viso que integre um campo cultural, condicionante dos conflitos sociais e das aes polticas que a se desenvolvem.[2]Ao invs de insistir na concepo desta de uma modernidade limitada, Touraine avana para a plena modernidade, no mais sob a gide exclusiva da racionalizao, mas agora sob o binmio, carregado de tenso e conflito, dado pela racionalizao e pela subjetivao. Para tanto necessrio situar o contexto social em que se inserem essas relaes que permitiro o nascimento do Sujeito, qual seja, a sociedade ps-industrial. Esta ltima pode ser definida como um tipo de sociedade que aparece quando se passa do tema dos bens materiais ao dos bens culturais e quando o problema da cultura e da personalidade se torna mais importante, mais central do que o problema econmico (Touraine, 1991b: 37).[3]Vale destacar que nesta concepo a luta de classes deixa de ser o lcus nevrlgico do sistema, para ceder espao ao conflito social, privilegiando campos como a escola, o hospital e os meios de comunicao, sobretudo a televiso (Peralva et al., 1991).Neste contexto de bipolaridade (Razo/Sujeito) ganham peso as relaes que o Sujeito estabelece entre a sua prpria vida e a Nao, e aquelas que a Razo mantm entre a lgica do consumo e da empresa, provocando um fluxo de complementaridade entre estes plos, ao contrrio da modernidade dividida, onde a racionalidade instrumental articulava os quatro parmetros acima (vida, consumo, nao, empresa). Assim, recorrendo mais uma vez ao prprio autor, De um lado, a nossa sociedade de produo e de consumo de massa, de empresas e de mercados, animada pela razo instrumental. Ela um fluxo de transformaes e um conjunto de estratgias de adaptao e de iniciativa num meio ambiente instvel e fracamente controlado. De outro lado, nossa sociedade est ocupada pelo desejo individual e pela memria coletiva pelas pulses de vida e de morte e pela defesa da identidade coletiva. (Touraine, 1994: 231).Historicamente Touraine situa o final da dcada de 60 como o momento de crise das sociedades industriais, ressalvando que no se trata de uma anlise etapista/evolucionista, muito menos historicista. Na realidade esse perodo marca o desgaste dos valores e atores das sociedades industriais calcadas no processo de industrializao e luta de classes, consolidadas a partir do sculo XIX, que, j nos anos 80, chega inclusive a opor acentuadamente os campos do clculo econmico e da identidade cultural, aumentando o risco eminente de uma desagregao completa. No entanto, o autor observa o renascimento do social atravs da presena de novos atores em cena (Touraine, 1992).Vale aqui um parnteses, dado nosso propsito comparativo, para ressaltar que a atividade associativa, como aponta Fernandes (1994) ganha peso nos anos 70 e se desenvolve aceleradamente na dcada seguinte, especificamente para movimentos como os de mulheres, indgenas, minorias tnicas, ecologia e de consumidores.[4]Muitas vezes com origem filantrpica, ou ainda presos instrumentalidade racional dominante, esses movimentos vo assumindo, ao longo desse perodo, caractersticas outras, quer em relao ao campo de atuao e grupo de beneficirios, quer ainda no debate poltico mais geral.[5]Sujeitos, atores e movimentos sociaisSegundo Touraine o Sujeito a vontade de um indivduo agir e ser reconhecido como ator, onde a subjetivao consiste na penetrao do Sujeito no indivduo e, portanto, a transformao - parcial - do indivduo em Sujeito[6]. A subjetivao destri o Ego que se define pela correspondncia de comportamentos pessoais e de papis sociais e construdo pelas interaes sociais e pela ao de agncias de socializao. O Ego se parte: de um lado o Sujeito (o Eu e sua relao com o Id), de outro o Si-mesmo (Self). O Si-mesmo associa natureza e sociedade, assim como sujeito associa indivduo e liberdade. Ou ainda, (...) A idia de ator social no separvel da idia de sujeito, porque se o ator social no se define mais por sua utilidade para com o corpo social ou por seu respeito aos mandamentos divinos, quais princpios o guiam seno os de se constituir como sujeito, de estender e proteger a sua liberdade ? Sujeito e ator so noes inseparveis e que resistem conjuntamente a um individualismo que restitui a superioridade lgica do sistema sobre a do ator, reduzindo este ltimo procura racional - portanto calculvel e previsvel - de seu interesse. (Touraine, 1994: 221-222).Parece-nos extremamente interessante a toro realizada por Touraine na transposio do conceito de indivduo quele de Sujeito.[7]Nesta passagem Touraine, sem abrir mo da sua crtica feroz ao domnio da razo e aos conseqentes totalitarismos de direita e de esquerda que inibem a liberdade do sujeito, nem tampouco fazer qualquer concesso ao narcisismo individualista; resgata elementos presentes quer na concepo testa (onde a religio incumbe-se de corroborar o processo de resistncia do sujeito opresso da razo instrumental) ou iluminista (onde a substituio de Deus pela racionalidade das leis da Natureza, fruto do processo de desencantamento do mundo, levou considerao, ainda que pela porta dos fundos, da presena do sujeito) pertinentes construo do Sujeito.[8]Resta, portanto, pensar no processo de recolhimento dos pedaos da modernidade partida (clat), sem restaurar qualquer princpio universal e unificador, como o foram, em circunstncias diversas o Estado (em especial o Estado populista nas naes latino americanas) e a presena de Deus.[9]Em primeiro lugar o autor insiste na argumentao em prol do dilogo racionalizao/subjetivizao para explicar a modernidade plena[10], para depois localizar nos movimentos sociais (ou ainda movimentos culturais) o ponto nevrlgico da relao dual, acima referida. A resposta precisa que este livro d que a razo e o Sujeito, que podem realmente tornar-se estranhos ou hostis um ao outro, podem tambm unir-se, e que o agente desta unio o movimento social, isto , a transformao da defesa pessoal e cultural do Sujeito em ao coletiva dirigida contra o poder que submete a razo aos seus interesses. (Touraine, 1994: 394).Nesta perspectiva o movimento social guarda uma ao coletiva desencadeada pelo sujeito e sua formao depende do grau de integrao entre trs aspectos: a definio do ator, seu adversrio e do campo de conflito ou negociao entre atores (Touraine, 1991b). Vale lembrar que a visibilidade do Sujeito, sem nenhuma conotao funcionalista, dada pela sua relao com outros sujeitos.[11]E desta forma atores e conflitos passam a definir o Sujeito, como um modo de construo de experincia social. Assim, o conflito no se d entre as classes mas entre os atores/ sujeitos enquanto tais (Touraine, 1991 b).Recorrendo, novamente, ao autor: um movimento social est formado por dois aspectos, que no podemos separar: um aspecto conflitivo, que consiste no enfrentamento de um ator com outro ator social. Por exemplo, uma classe social com outra classe social. Um enfrentamento que ocorre no interior de uma relao de poder, de dominao social. Esse o primeiro aspecto. O segundo uma orientao positiva em direo a valores centrais de uma sociedade. No se trata, portanto, nem de uma viso puramente conflitiva, nem de uma viso participacionista, nem uma em termos de contradies, ou funcionalista. Minha idia central mais simples a de que o movimento social envolve um conflito entre atores opostos mas que tm algo em comum: as orientaes culturais. Ou ainda: o conflito social visto como unidade de orientaes culturais e polarizao de modelos sociais. Se no existem os dois elementos, no h movimento social.(...) O movimento social muito mais do que a defesa de interesses particulares. uma vontade de construir ou reconstruir a sociedade em seu conjunto, de maneira favorvel aos interesses de um grupo (Touraine, 1991b: 32-33)Atores e movimentos sociais na Amrica LatinaSegundo Touraine as sociedades latino-americanas possuem algumas especificidades que poderiam caracterizar essas naes de passado colonial como sociedades caleidoscpicas e fragmentrias. Na realidade coexistiriam diversos sistemas de estratificao: sociedade mercantil (oligarquia, burocracia, povo, pobres); sociedade industrial (gerentes/executivos de empresas, tcnicos, trabalhadores, desempregados); modo e grau de participao ao desenvolvimento para o interior (elite dirigente, sub-elite setorial, cidados, marginais); efeitos da dependncia (financeiros, consumidores voltados ao mercado internacional, assalariados dependentes, setor informal). A forma de desenvolvimento destas sociedades teriam como elementos comuns a entrada de recursos estrangeiros para setores no-produtivos, a presena da oligarquia, em detrimento dos empresrios na conduo da economia, fraca capacidade de inovao tecnolgica e industrializao truncada (Touraine, 1989).Assim, na parte que nos interessa mais de perto, as caractersticas acima adicionadas pouca demarcao entre a vida pblica e a vida privada, bem como dificuldade de estabelecer uma clara distino entre a sociedade civil e o Estado, tornam esta parte do continente um conjunto de naes de atores sem ao.[12]As lutas sociais vivenciadas no se constituem propriamente em movimentos sociais, pois ainda que carreguem um forte carter contestador, possuem limitado impacto poltico (idem, ibidem).[13]Cabe referncia especfica ao papel do Estado nacional-popular que, atuando como elemento unificador dessas sociedades, subordinam os atores sociais ao poder poltico e corroboram para a convivncia entre o processo de modernizao econmica e a desarticulao ideolgica e poltica.Montado o quadro, agravado pelo extremo grau de desigualdade social observado, o autor parte para o prognstico: nesse sentido, minha concluso no de tipo prtico, mas exige frisar a importncia dos trs problemas centrais que mencionei: primeiro, diminuir as desigualdades; segundo, aumentar a vinculao entre o sistema de deciso poltica e os grandes interesses sociais; e terceiro, e isso mais difcil, evitar a separao que se observa hoje entre o mundo moderno e o mundo popular. (...) Por isso penso que os estudos sobre os movimentos sociais no so estudos margem da sociedade. Situam-se no seu centro, porque o problema no saber se o sistema poltico pode integrar todas as demandas, o que envolve uma viso muito superficial dos movimentos sociais. Pelo contrrio, trata-se de saber em que condies a sociedade pode ser dirigida pelos atores sociais, por suas negociaes e seus conflitos, dentro de um marco nacional (Simo, Cardoso, Touraine, 1991: 25). Acrescente-se o fato de que o Estado latino-americano, afundado na crise fiscal, no mais possui o elemento mobilizador e unificador de outrora.Vale lembrar ainda, seguindo a anlise de Oliveira (1994), que o regime autoritrio, no caso brasileiro pelo menos, no logrou constituir/mobilizar os movimentos ao seu favor (como foi experimentado pelo Estado populista), contentando-se em reprimir ou tutelar o movimento sindical, impedindo a constituio de uma sociedade poltica.Novos atores e esfera pblica: a presena das ONGsNo desnecessrio lembrar o limite destas notas. Desta forma, com base nas questes levantadas anteriormente tendo como referncia a obra de Touraine, oportuno passarmos agora para uma reflexo final sobre a possibilidade de compreender as organizaes no-governamentais como emblemticas dos novos movimentos sociais. Na realidade Fernandes (1994) vai mais longe na definio de um terceiro setor na Amrica Latina, incorporando instituies formais e informais, desde que se incluam na rubrica organizaes privadas com finalidades pblicas.Fernandes (1994: 43) aponta para o fato de que tais associaes e organizaes, emergentes na Amrica Latina a partir da dcada de 70, foram conceituadas de movimentos para acentuar sua natureza instvel e mutante, distinta da obtida em estruturas que se organizam numa longa durao. E chamados sociais devido ao seu distanciamento em relao aos aparelhos de Estado. Apesar do envolvimento constante em matrias de interesse pblico, no foram chamados movimentos polticos justamente porque lhes faltavam as conexes que os integrassem a alguma poltica sistemtica de governo.[14]O autor ressalta, ainda, seu carter descentralizado, visando a formao de redes de relacionamento, priorizando o trabalho e a assessoria no local de moradia ao invs do local de trabalho, tradicional reduto do movimento sindical.Essa aproximao ao social num primeiro momento explica-se tambm pelo contexto poltico extremamente opressor, sufocando as prticas polticas convencionais de partidos e sindicatos e possibilitando a essas novas organizaes, sobretudo aquelas com matriz eclesistica, um trabalho comunitrio quase que imperceptvel s antenas do regime. Com algum exagero, talvez pudssemos estabelecer uma analogia ao campo em que Touraine tambm situa os novos movimentos, ou seja, ao campo social e cultural. Fazendo a crtica a Habermas e Lefort, Touraine (1991a, 1992) no cr na capacidade de unidade poltica como meio de pavimentao do novo espectro societal. Na realidade ele parece pregar uma desvinculao dos atores sociais ao sistema poltico, ainda que considere os conflitos sociais e a emergncia do Sujeito vitais ao processo democrtico. Esta passagem nos parece, no entanto, problemtica. No caso das ONGs, suas lutas, para alm do social e do cultural, enfronham-se, tambm, na disputa de um projeto poltico (veja-se as articulaes, por exemplo, entre associaes de agricultura orgnica com o Partido Verde na Alemanha), e, para alm dos direitos humanos, vrias dessas organizaes desfraldaram a bandeira da democracia como lema central. A partir deste ponto, no se trata apenas da maior ou menor visibilidade aos problemas das minorias, mas tambm de situar estas organizaes em relao ao poder do Estado, aos partidos polticos e ao carter extensivo do conceito de cidadania. Se, como prega o discurso liberal, no cabe mais falar de direita ou esquerda, o marco das organizaes mais ou menos progressistas persiste na caracterizao implcita ao meio. Movimentos ambientalistas so exemplos fartos de organizaes com pouca postura humanista como quer Touraine.Porm ao ressaltarem a importncia de lutas especficas contra o processo de desagregao e desigualdade social, estas organizaes, mais conhecidas como entidades de assistncia e ao comunitria nos anos 70, de assessoria e capacitao nos anos 80 e de atores e movimentos nos anos 90 (Assumpo, 1993)[15], no focalizam exclusivamente os conflitos no campo instrumental-racional, para uma nova aproximao Touraine, mas sobretudo fora dele. Segundo Fernandes (1994: 72) o campo de atuao das ONGs na Amrica Latina pode ser definido como de educao para o desenvolvimento com nfase na promoo social. Em termos de reas especficas de atuao, podem ser arroladas: criminalidade/violncia/drogas: 1%; negros e ndios: 1,6 %; formao qualificada/assessoria: 40,6%; educao : 36%; pesquisa: 15,98%; desenvolvimento/promoo social: 29,50%; desenvolvimento rural: 15,78%; sade: 20%; mulher: 11,58%; meio ambiente: 18,12%; comunicao: 18,58%; direitos humanos: 8,70%; projetos de financiamento: 8,64% (Fernandes, 1994).Finalmente, na ausncia de uma concluso formal, resta ainda colocarmos uma ltima questo: na medida em que o objeto da ao destas instituies limita-se ao espao pblico, pois renunciam ao lucro privado e ao poder de Estado, abre-se a possibilidade de pensar sua participao na definio de polticas mais gerais, com carter marcadamente pblico, no necessariamente governamentais.[16]Tal direcionamento implica, ademais, no questionamento do processo de distribuio dos fundos pblicos, reivindicados pelas ONGs sem, no entanto, comprometer sua autonomia institucional.[17]Este parece ser o ponto tambm ressaltado por Oliveira (1994: 12): o processo de democratizao pressupe uma influncia maior no campo de origem dos movimentos sociais, ou seja, no mbito das polticas pblicas. Estas deixariam de oscilar junto s conjunturas para serem mais institucionalizadas. Esta transio teria, no entanto, uma conotao negativa, como demonstrado em Touraine (1991b: 38-39), para quem a autonomia (dos movimentos sociais) um fato positivo, mas o desenraizamento das foras polticas frente aos atores sociais obviamente negativo. E a nica resposta possvel a de que vamos assistir a algo que no muito interessante: a criao, entre o mundo poltico e o mundo social, de um mundo intermedirio, que o mundo da opinio pblica.No se trata, porm, de negligenciar o papel do Estado, ou identific-lo apenas no campo da dominao opressora, como parece propor Touraine, mas de refunda-lo, e com ele, um novo espao poltico da sociedade moderna, redefinindo a esfera pblica, onde, cada vez mais, as associaes da sociedade civil tm assumido importncia crucial.Referncias bibliogrficasAssumpo, Leilah L.A inveno das ONGs: do servio invisvel profisso sem nome. 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[1]Durante a poca da modernidade limitada, o homem se julgou deus; ele se embriagou com o seu poder e se aprisionou em uma jaula de ferro que foi menos a das tcnicas que a do poder absoluto, de um despotismo que se queria modernizador e que se tornou totalitrio. Ao mesmo tempo, a partir da metade do sculo XIX, a idia de modernidade foi cada vez mais recoberta pela idia de modernizao, pela mobilizao de recursos no econmicos e no modernos visando assegurar um desenvolvimento que no pode ser espontneo, endgeno. Esses dois movimentos se conjugaram para apagar a primeira imagem da modernidade cuja fora total vinha do seu papel libertador. medida que os antigos regimes se decompem ou so derrubados, os movimentos de libertao se esgotam e a sociedade moderna se reencontra prisioneira de seu prprio poder de um lado, e de outro, das condies histricas e culturais de sua realizao. Tendo chegado ao fim do sculo XX, a modernidade desapareceu, esmagada por seus prprios agentes, e se reduziu a um vanguardismo acelerado que se transforma em ps-modernidade desorientada. desta crise da protomodernidade que nasce, paralelamente s brincadeiras da ps-modernidade e os horrores do mundo totalitrio, a modernidade mais completa na qual ns entramos (...) (Touraine, 1994: 386).[2]Touraine (1992: 415). Reconhecendo a importncia da passagem do ascetismo fora do mundo ao ascetismo dentro do mundo para o surgimento do Sujeito, Touraine critica severamente a concepo de modernidade presente em Weber, buscando alargar, dentro do prprio campo do modelo racional (o nico que nos protege contra os particularismos que necessariamente nos levam guerra, ao racismo, etc. (Touraine, 1991a: 180), as bases do pensamento e da sociedade moderna. Assim, para o autor, o interesse da anlise weberiana do capitalismo , portanto, privilegiar o caso histrico onde as crenas religiosas contribuem diretamente para isolar uma lgica econmica do resto da vida social e poltica. Seu perigo seria levar a acreditar que esta anlise vale para a modernidade em geral. O que Weber descreve no a modernidade, mas uma forma particular de modernizao que se caracteriza ao mesmo tempo por uma grande concentrao de meios a servio da racionalizao econmica e pela forte represso exercida sobre as pertenas culturais e sociais tradicionais, sobre as necessidades pessoais de consumo e sobre todas as foras sociais identificadas pelos capitalistas como o mbito das necessidades imediatas, da preguia e da irracionalidade. (Touraine, 1994: 35). Da mesma forma, o autor sublinha a diferenciao entre os conceitos de burguesia e de capitalista, vinculando o segundo lgica do modelo weberiano (idem: 274). Ver, tambm, Weber (1967).[3]Ver ainda Touraine (1976). Para um outro tipo de anlise que relativiza o aspecto econmico no bojo das sociedades modernas, ver Polanyi (1978).[4]Umsurveyque realizei em 1982 sobre organizaes no lucrativas de servio social em 16 comunidades norte-americanas mostrou que 65% das organizaes ento existentes haviam sido criadas depois de 1960. Praticamente cada um dos grandes movimentos sociais das ltimas trs dcadas nos Estados Unidos (...) teve suas razes no setor no lucrativo. Na Frana, o nmero de associaes deu um salto igualmente expressivo. (...) Entre 1980 e 1986, a arrecadao das organizaes filantrpicas britnicas cresceu cerca de 221%. Estimativas recentes registram em torno de 275.000charitiesna Gr-Bretanha, com um ingresso equivalente a mais de 4% do produto nacional bruto. Na Itlia, pesquisas indicam um forte impulso na formao de organizaes voluntrias nos anos 70 e 80. Das organizaes encontradas em 1985, 40% haviam sido criadas depois de 1977 (Salamon, L., Anheier, H.K. In search of the non-profit sector.I: The question of definitions.Voluntas3/2, Manchester: Manchester Univ. Press, 1992.ApudFernandes (1994: 17).[5]Dados os limites deste texto no pretendemos abordar as questes metodolgicas e semnticas que perpassam o tema das associaes sem fins lucrativos e no governtamentais. O tema foi revisto, exausto, por Assumpo (1993).[6]O autor chega mesmo a falar num novo princpio central de moralidade calcado na liberdade (Touraine, 1992: 244-5).[7]O autor dedica vrias pginas ao tratamento dessa passagem que, por questes bvias, no sero retomadas aqui. (Cf.Touraine, 1992).[8]A secularizao no a destruio do sujeito, mas sua humanizao. Ela no somente desencantamento do mundo, ela tambm reencantamento do homem e coloca uma distncia crescente entre as diferentes faces dele mesmo, sua individualidade, sua capacidade de ser sujeito, seu Ego e o Si-mesmo que constroem fora dos papis sociais. A passagem para a modernidade no a da subjetividade para a objetividade, da ao centrada sobre si para a ao impessoal, tcnica ou burocrtica. Ela conduz, da adaptao ao mundo para a construo de mundos novos, da razo que descobre as idias eternas para a ao que, racionalizando o mundo, liberta o sujeito e o recompe. (Touraine, 1994: 243).[9]Diversamente da dicotomia holismo-individualismo utilizada por Louis Dumont para caracterizar a passagem sociedade moderna, Touraine prope a sociologia do sujeitoversuso individualismo racionalista (Touraine, 1992).[10]Esta dicotomia pode tambm ser lida, na obra em questo, pela relao de dominao entre dirigentes e dirigidos. Ao negar o conceito de classe social e luta de classes, e a conseqente abordagem marxista em torno da explorao da fora de trabalho, o autor no precisa a nova base de dominao, apenas localizando no sujeito a expresso das resistncias pela liberdade e no segmento portador da razo instrumental a prtica do clculo e da defesa dos interesses econmicos. Ver Touraine (1992).[11] somente quando o indivduo sai de si mesmo e fala ao outro, no nos seus papis, nas suas posies sociais, mas como sujeito, que ele projetado fora do seu prprio si-mesmo, de suas determinaes sociais, e se torna liberdade. (Touraine, 1994: 239).[12]A dificuldade, no caso europeu, deslocar uma anlise objetivista, em termos de processo histrico, e propor uma anlise em termos de atores. No caso latino-americano, o problema compreender em que condies se formam atores desprovidos de ao, personagens sem estrutura, que podem transformar-se em agentes de um processo de mudanas histricas (Simo, Cardoso, Touraine, 1991: 19).[13]Uma boa anlise e resenha do debate acerca dos movimentos sociais, populares e sindicais e seu rebatimento no caso brasileiro, pode ser encontrada em Lesbaupin (1994).[14]Ou ainda, segundo Assumpo: (...) essas entidades e seus agentes, como se viu, passam em sua maioria dos grupos atingidos para os movimentos, ou oMovimento, no singular, palavra-chave que comea a reinar no centro do iderio, das esperanas e das especializaes, para os anos 80, desse conjunto de agentes e entidades (Assumpo, 1993: 381).[15]Vrias das grandes ONGs de desenvolvimento brasileiras tm se auto-denominado como atores, movimentos ou mediadores polticos por excelncia.[16]Ou seja, o conceito (de terceiro setor) denota um conjunto de organizaes e iniciativas privadas que visam produo de bens e servios pblicos. Este o sentido positivo da expresso. Bens e servios pblicos, neste caso, implicam uma dupla qualificao: no geram lucros e respondem a necessidades coletivas. (...) Quaisquer que sejam as variantes, no entanto, h um elemento comum que deve ser fixado: o conceito implica umaexpansoda idia corrente sobre a esfera pblica (Fernandes, 1994: 21)[17]O Jornal da Abong, 11, de agosto de 1995, traz uma srie de artigos sobre o carter no-governamental, semigovernamental, neogovernamental dessas instituies, sua diferenciao em relao s demais entidades sem fins lucrativos e sua participao na distribuio dos fundos pblicos. Os artigos associam, ainda, este debate crise de financiamento das ONGs, argumentando que o momento atual implica que estas questes estejam amadurecidas o quanto antes, forando uma participao ativa e autonma dessas organizaes na administrao dos recursos pblicos. Ver especialmente os trabalhos de Duro (1995) e Grzybowski (1995). Sobre o conceito e problematizao da importncia dos fundos pblicos no processo de valorizao do capital, ver Oliveira (1993).

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