Música, teatro e dança - · PDF fileFotos Sílvia Machado. ESTUDOS AVANADOS 26 (76), 2012 289 Abrindo ... do passo do frevo, das danças dramáticas como os congos e a nau catarineta,

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    Msica, teatro e dana

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    Maria Eugnia e Marina Abib em Cabea de Porco.

    Antnio Nbrega improvisando durante apresentao.

    Foto

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    hado

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    Abrindom julho de 2009, no Teatro Paulo Autran da unidade Sesc Pinheiros de So Paulo, dei incio s apresentaes do espetculo de dana Natural-mente teoria e jogo de uma dana brasileira. Digo espetculo, mas, na

    verdade, ele tanto poderia ser tratado como uma aula bem ilustrada ou como um espetculo comentado. De qualquer maneira, aula-espetculo ou propria-mente espetculo como prefiro consider-lo , o fato que essa minitempora-da, para a minha grata surpresa, estava destinada a provocar um bom priplo de apresentaes do espetculo. Uma primeira e boa notcia chegou-me logo aps a ltima apresentao desse fim de semana de estreia. Danilo Miranda, diretor do Sesc So Paulo, presente ela, aps a apresentao fez-me o convite para grav-lo por intermdio da instituio que dirigia. E claro que de imediato aceitei o convite. A gravao foi realizada em meados de 2010 e teve na sua dire-o o meu velho amigo e parceiro de outras tantas gravaes e trabalhos Walter Carvalho. Do momento dessas suas primeiras apresentaes at o registro em DVD, o espetculo foi merecedor de prmios e contou sempre com uma muito boa acolhida de pblico e crtica.

    Mas eu dizia da minha surpresa pelo bom destino que o espetculo veio a ter. Porque havia em mim uma certa dvida, uma insegurana mesmo, em rela-o sua natureza. Receava, fundamentalmente, que os textos nele inclusos no fossem de interesse geral do pblico e que terminassem por cans-lo. Para minha sorte, no foi o que aconteceu. Na verdade, o que constatei foi uma generosa e interessada disposio do pblico em procurar acompanhar as falas. Penso que o fato de estarem organicamente ligadas s performances fez que o pblico as aceitasse fluidamente, como se fossem, me permitam, falas-danantes... falas que se completavam com a movimentao dos corpos.

    O presente texto um registro ligeiramente ampliado daquelas falas. Aproveito a oportunidade de sua publicao para tentar aprofund-las. Uma tarefa que venho me propondo realizar e que encontra nessa ocasio, portanto, um bom ensejo para comear.

    Primeiramente, devo situar o leitor em relao ao espetculo. Ele se inicia com a exibio, num imenso telo colocado ao fundo do palco, de uma mul-tifacetada coletnea de momentos coreogrficos de diversas danas populares brasileiras. Essas cenas foram tiradas da srie televisiva Danas Brasileiras, prota-

    Naturalmente Teoriae jogo de uma dana brasileiraANtoNio NobrEgA

    E

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    gonizada por mim e Rosane (minha mulher), idealizada por ns e pelo cineasta Belisrio Franca que tambm a dirigiu.

    Durante a exibio desse vdeo, de pouco mais de cinco minutos, eu, no violino, e um outro msico, o Zezinho Pitoco, na zabumba, executamos a trilha musical composta das seguintes obras: a polca Medrosa, de Anacleto de Medei-ros; o frevo Corisco, de Lourival de Oliveira; e o baio Mouro, de Guerra Peixe. Logo aps essa exibio dou inicio s falas.

    Primeira falaEstou dando incio a um espetculo que guarda uma certa particularida-

    de. Vem de longe o meu desejo de apresentar publicamente algumas considera-es que venho elaborando sobre uma dana brasileira contempornea de matri-zes populares. Tomei o caminho de acondicionar essas consideraes no corpo de um espetculo. Decidido a isso, todavia, fui logo tomado por uma boa dose de apreenso: ser que tal juno de performance e fala daria liga? Ser que um espetculo com esse subttulo Teoria e Jogo de uma Dana Brasileira motiva-ria as pessoas? Depois de muito rodopiar dentro de mim, cheguei concluso final de que s poderia tirar essas dvidas apresentando o espetculo.

    por isso que estou aqui, gratificado pela presena de todos e agradecido ao Sesc por mais uma vez colaborar com meu trabalho artstico.

    As imagens com as quais abrimos o espetculo representam uma pequena amostra de passos, volteios, gingados, posturas, gestos e procedimentos coreo-grficos presentes no rico imaginrio corporal popular brasileiro. Ele fruto de um processo de miscigenao cultural que atravessa os nossos quatro primeiros sculos de formao. O Brasil foi um espao aonde imemoriais heranas culturais se encontraram e deram origem a inmeras manifestaes artsticas de marcante presena corporal. Irei chamar de matrizes culturais fundadoras os cantos, nar-rativas, mitos, danas ou fragmentos deles provenientes das diversas naes africanas para aqui trazidas, das vrias culturas indgenas aqui encontradas e dos diversos dialetos culturais ibricos aqui aportados. do encontro dessas matri-zes fundadoras que, lenta e pacientemente dialogando entre si, nascem as pri-meiras matrizes culturais brasileiras. Os nossos folguedos, danas, cantos, mitos e narrativas nascem, portanto, desse processo de mestiagem cultural. No caso da dana, esse sincretismo de matrizes d origem a um rico caldeiro de manifes-taes que se derrama por todo o pas. Podemos dizer que essas manifestaes se agrupam em torno de algumas famlias. Uma das principais a dos batuques. Coreograficamente, tm em comum a forma de roda, o sapateado, o bater de palmas e, sobretudo, a umbigada ou a insinuao dela. Pelo lado musical, o can-to refro-estrofe (prevalentemente em quadras de sete slabas) e a utilizao de uma percusso base de tambores tocados com as mos, de dimenses diversas, e, no geral, dispostos verticalmente no cho. Alguns grupos se utilizam tambm do ganz, do reco-reco, do pandeiro, da alfaia e por vezes de uma lata percutida com varetas, caso do coco-de-zamb. A provenincia da famlia dos batuques

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    remonta s reunies festivas, prticas e celebraes religiosas os ditos calundus realizadas pelos negros em seus ajuntamentos, senzalas e quilombos durante o nosso largo processo de colonizao. Com peculiaridades regionais e diferentes nomes esse gnero de manifestao se acha presente em todo o pas. Coco de roda, praiano ou simplesmente coco, em Pernambuco, Alagoas e Paraba; coco--de-zamb, no Rio Grande do Norte; samba rural, no interior baiano; tambor--de-crioula, no Maranho; jongo, no Rio; batuque, em So Paulo; carimb, no Par etc. dessa famlia, ainda, de onde provm o nosso samba, palavra derivada de semba, que em banto quer justamente dizer umbigada.

    Uma segunda famlia a dos cortejos. So manifestaes diretamente des-cendentes do antigo procedimento colonial de coroao dos Reis de Congo. Reis negros quase sempre escravos, eleitos por outros cativos, com anuncia interessada da prpria coroa, tinham poderes de governar uma determinada comunidade comumente denominada de nao. Nos dias da coroao desses reis negros, bem como naqueles dedicados s celebraes religiosas dos santos negros como N. Sra. do Rosrio e So Benedito, eram organizados festivos cortejos-espetculos. A msica a puxar tais squitos ainda hoje em plena ati-vidade constituda de cantos toadas, loas e benditos animados por uma sonorosa percusso formada por robustos tambores e caixas-de-guerra ou taris. Coreograficamente, alm dos passos e movimentos utilizados durante o deslo-camento do cortejo e, em alguns, o jogo dos bastes, representaes de danas--mimadas simulando passados combates de reminiscncias africanas, continuam a integrar o desfilar de muitos desses prstitos. nessa famlia onde esto os moambiques, os maracatus, as congadas, os congos, os cucumbis, as taieiras, entre outros.

    A terceira e mais vistosa dessas famlias dos espetculos ou folguedos populares propriamente ditos. Tm uma ascendncia ligada, especialmente, s janeiras e reisadas portuguesas: grupos processionais e peditrios que jornadea- vam por casas, ruas e povoaes louvando e cantando o nascimento do deus menino e a chegada dos reis magos na poca da Natividade crist solstcio de vero europeu. Peregrinavam ao som de violas, rabecas, cavaquinhos e instru-mentos de percusso. No Brasil, esses pequenos grupos caminheiros tambm conhecidos pelos nomes de ternos e ranchos , ao longo dos sculos, foram incorporando s suas andanas tipos e figuras teatrais provenientes de diversas fontes, tais como, cancioneiro, romanceiro, personagens populares, mitos etc. Assim, ao visitarem as casas para pedir as sortes ou tirarem reis, tais figuras dramticas, apresentadas na forma de pequenos entremeios ou entrechos dia-logados, mimados, danados ou cantados eram exibidas. So esses pequenos grupos itinerantes, portanto, que, no Brasil, vo ganhar o nome de reisados. Cada um desses reisados se intitulava a partir do nome de uma das suas figuras mais representativas. Assim, havia o reisado do Joo do Vale, o do pinica-pau, o do Jaragu, o do cavalo-marinho etc. Com o passar do tempo, tais grupos vo aglutinando vrios reisados num s, vo perdendo o seu carter deambulatrio

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    e tornando-se uma trupe-de-brincantes que se fixam numa determinada regio para a apresentao de sua numerosa galeria de tipos e figuras. So esses reisados que paulatinamente vm se firmar com os nomes de bumba-meu-boi, cavalo--marinho, boi-bumb, boi-de-mamo, boi-de-reis, cordo-de-bichos, auto-dos--guerreiros etc. A presena e persistncia do nome boi ligado maioria desses espetculos se deve ao fato de ser o entrecho dramtico do boi aquele tanto de maior significado mgico-religioso identificado com o complexo morte-res-surreio quanto o de maior seduo e encantamento espetacular devido s es-tripulias, investidas e galhofarias dessa figura-totem h, bumba, meu boi! So esses brinquedos ou brincadeiras (denominaes dadas ao folguedo pelos seus prprios integrantes) espetculos-hospedeiros totais, pois abrigam a dana, o canto, a msica instrumental, a comdia, o drama, o recitativo, a pantomima etc. A msi