94
MST e a Cultura Ademar Bogo outubro 2000

MST e a Cultura - mstemdados.org de formação n 04... · Por isso definimos que cultura é tudo o que fazemos para produzir nossa existência. Se fazemos coisas, dependemos do emprego

Embed Size (px)

Citation preview

MST e a Cultura

Ademar Bogo

outubro 2000

Sumário

Apresentação............................................................................. 3

Introdução.......................................................................................5

1. O que é cultura e como se apresenta ...................................8

1.1. A formação de nosso povo..............................................10

1.2. A cultura dos rejeitados................................................15

1.3. A cultura dos sem terra..................................................22

1.3.1. Memória histórica .........................................27

1.3.2. As virtudes extraordinárias.................................30

1.3.3. A consciência estética..........................................36

2. A revolução cultural.............................................................472.1. O que é a revolução........................................................48

2.2. As possibilidades da revolução cultural.......................61

3. Pilares de nossa revolução cultural........................................72

4. Conclusão.................................................................92

Apresentação

A cultura é nossa vida

Estimados companheiros,É com muita alegria que estamos apresentando a toda nossa

militância, mais esse caderno de formação. Agora, com um temaque há muito tempo gostaríamos de ter tipo oportunidade depublicar: a questão da cultura em nosso movimento, em nossosassentamentos e comunidades rurais.

Em geral, temos uma falsa idéia ao identificarmos a questãoda cultura apenas como atividades culturais de nossa sociedaderelacionadas com nossa tradição musical, do teatro e da pintura.Na verdade, a questão da cultura é muito mais abrangente, estárelacionada com todas as nossas atividades quotidianas; nossoshábitos, nossos costumes, nossas tradições, nossas inovações. Estárelacionada com toda nossa vida.

As reflexões reunidas neste caderno pelo companheiroAdemar Bogo, certamente nos ajudarão a discutir na base, tantoa compreensão como o estímulo ao desenvolvimento das inú-meras atividades relacionadas à cultura.Mas valorizar a questãoda cultura não é apenas valorizar os mais diferentes aspectos denossa vida. No contexto histórico atual se reveste de umaimportância ainda maior. Há uma hegemonia política ideológicae (também) cultural, do modus vivendi burguês, do consumismo,de valorização apenas das coisas que acontecem na cidade. Comose a urbanização, como se as atividades que acontecem nasmetrópoles fossem as únicas importantes para nosso povo. Pior,

está em curso um modelo agrícola que marginaliza o meio rurale inviabiliza a agricultura familiar e as comunidades ruraisesparramadas pelo nosso imenso território.

Nesse contexto, discutir então a questão da cultura adquireum significado político e ideológico muito importante, pois aresistência a essa ofensiva neoliberal está relacionada também àcultura, aos nossos costumes e valores do meio rural e do MSTcomo movimento social.Como disse o Prof. Horacio Martins,“mais do que nunca as comunidades do meio rural, os trabalha-dores rurais precisam desenvolver uma cultura de resistência e devalorização, de auto-estima, como trabalhadores rurais, parapoderem enfrentar a avalanche da ofensiva neoliberal”.

Por último, a reflexão de cultura está relacionada tambémà prática de nossos valores enquanto indivíduos comprometidoscom o bem estar social de todos, comprometidos com os princí-pios da Justiça, da igualdade e do bem comum. E relacionadacom os valores sociais, coletivos, que nosso movimento defende,que precisa estimular e propagar no meio rural.

Certamente, este caderno de formação será muito útil paraentendermos, refletirmos e melhorarmos nossa prática cotidianade militantes sociais, por mudanças no meio rural.

São Paulo, outubro 2000Coletivo Nacional do Setor de Cultura e Educação

55555O MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a Cultura

Introdução

O MST, por sua natureza, é um movimento de massas.Carrega em si uma enormidade de diferenças, hábitos, jeitos,métodos e comportamentos que às vezes confundem os inimigos,que por fazermos certas ações ousadas, acreditam que deixamosde ser um Movimento forte e lutador.

É verdade que não é fácil relacionar e entender tudo o quefazemos, por se tratar de coisas diferentes, mas que estão muito ligadas.

Acontece que as características do MST não admitem que sefaça uma coisa isolada da outra. Por isso é que dizemos que noMST temos a cultura da organicidade, que nada mais é que aligação de uma parte, de uma atividade com outra.

Quando encanamos a água colocamos um cano mais grossoao pé da fonte ou da rede principal. Depois colocamos curvasnos canos para fazer a água subir e descer. Aí colocamos umcano mais fino, e para não desperdiçar água, colocamos na pontado cano uma torneira. Isso pode ser um exemplo de organicidadeonde a justeza de uma parte complementa a outra.

A luta vai criando hábitos e jeitos que dão identidade àorganização e aos poucos descobrimos que a cada passoconstruímos nossa existência, que chamamos de MST. Assimocupamos terra, lutamos por créditos, educamos crianças,construímos casas e escolas, participamos de disputas eleitorais,gravamos CDs, protestamos contra as privatizações, fazemosações de solidariedade.

Tudo isso vai fazendo parte da vida da gente que luta noMST. Será que isto tem algo a ver com cultura?

66666 Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34

Tem muito a ver. Por que não podemos considerar culturasomente aquilo que está ligado com a arte. A arte é a capacidadeque o ser humano tem de criar. Logo, temos capacidade de criarmúsicas, mas também criamos as lutas, as escolas, os barracos,as casas, o método de fazer reuniões, as marchas, etc. Significaque tudo isso vai se transformando em cultura.

O que precisamos fazer é tornar esses gestos do cotidiano emconscientes, para que analisemos tudo que fazemos, se contribuiou não para o melhoramento da vida e da organização social.

Há hábitos que repetimos há dezenas de anos e não percebemosque prejudicam nossa saúde. Há tipos de alimentos que ingerimosque também não fazem bem à saúde. Às vezes o jeito de trabalhar,andar, relacionar-se, perceber as coisas, solucionar problemas, etc.não ajudam a melhorar a existência social, por isso dizemos queprecisamos fazer uma revolução cultural, que nada mais é que colocaras coisas em outra ordem.

Nossa tarefa imediata é desenvolver a consciência nasdiferentes áreas da vida humana, para que se possa superar osatrasos culturais que pairam sobre determinados aspectos.Devemos corrigir desvios surgidos a partir da convivência social,e possibilitar a formulação e a prática de novos valores culturais.

É fundamental avançar e consolidar a identidade nacionalatravés dos hábitos, costumes, práticas e valores. A istochamaremos de unidade em torno da expressão cultural quedará maior qualidade à consciência.

Cada vez mais a cultura se tornará consciência, porque tudoo que fazemos e sentimos constituirá a existência de nossa orga-nização. Assim a educação, a religião, o trabalho, a mecanização,a preservação da natureza, a agrovila, a agroindústria, a belezanos assentamentos, as músicas, a mística, enfim, tudo o que

77777O MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a Cultura

existe ou acontece no assentamento é a cultura dos trabalhadoresSem Terra, que se manifesta e transforma-se em consciência socialna medida em que as pessoas passam a repetir tais manifestaçõesde forma consciente e se preocupam em desenvolver aspectospara aperfeiçoar a construção da existência social nas áreas dereforma agrária.

88888 Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34

1. O que é culturae como se apresenta

A definição da palavra é importante e devemos tomá-la comoponto de partida para iniciarmos nossa discussão. “Cultura, cultoe colonização derivam do mesmo verbo latino colo, cujo particípiopassado é cultus e o particípio futuro é culturus”. É o que nos dizAlfredo Bosi, concluindo que “colo significou na língua de Roma,eu moro, eu ocupo a terra, e, por extensão, eu trabalho, eu cultivoo campo”1 .

Portanto, em sua origem, a cultura está vinculada ao cultivoda terra e por decorrência, ao trabalho.

Verificando na história que a divisão social do trabalho sedeu justamente quando os seres humanos descobriram aagricultura e passaram a cultivar sementes, da produção destassementes é que dependia a existência das comunidades primitivas.

Logo chegamos a uma conclusão muito simples, que cultura,trabalho e existência estão interligados. Por isso definimos quecultura é tudo o que fazemos para produzir nossa existência.

Se fazemos coisas, dependemos do emprego da força físicae, portanto, do trabalho. Mas nada podemos fazer sem aplicaruma outra força que somente o ser humano tem: a capacidadepara criar. Logo, a cultura é também criatividade.

Mas ao fazermos as coisas também nos emocionamos,sentimos alegria, projetamos sonhos. Logo, a existência é produ-zida com emoção.

1 Alfredo Bosi, Dialética da Colonização.

99999O MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a Cultura

Dizemos isto para confirmar que cultura para nós significatudo o que criamos, fazemos e sentimos ao produzir nossaexistência.

Karl Marx ao estudar a questão, encontrou justamente esseselementos, em que o homem emprega para produzir um objeto,ou seja, emprega “força física e espiritual”. “Uma aranha executaoperações semelhantes às do tecelão, a abelha supera mais queum arquiteto ao construir sua colméia. Mas o que distingue opior arquiteto da melhor abelha é que ele figura em sua menteconstrução antes de transformá-la em realidade. No fim do pro-cesso de trabalho aparece um resultado que já existia antes ideal-mente na imaginação do trabalhador. Ele não transforma apenaso material sobre o qual opera; ele imprime ao material o projetoque tinha conscientemente em mira, o qual constitui a leideterminante do seu modo de operar e ao qual tem de subordinarsua vontade. E esta subordinação não é um ato fortuito. Alémdo esforço dos órgãos que trabalham, é mister a vontadeadequada que se manifesta através da atenção durante todo ocurso do trabalho. E isto é tanto mais necessário quanto menosse sinta o trabalhador atraído pelo conteúdo e pelo método deexecução de sua tarefa, que lhe oferece menos possibilidade defruir da aplicação das suas forças físicas e espirituais”2 .

Isto quer dizer que no processo de trabalho o ser humanoaltera a natureza e ao mesmo tempo a sua própria natureza,aperfeiçoando assim as qualidades humanas. Daí é que vem ateoria materialista e diz que foi “o trabalho quem criou o homem”.

O ser humano na sua essência é o resultado do trabalho.Além de o trabalho produzir o sustento humano, ele é respon-

2 Karl Marx. O Capital, T.1, p. 202.

1010101010 Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34

sável pelo relacionamento, afetividade, convivência, desenvol-vimento da consciência social, etc. Por isso é que se divide emprodutivo e improdutivo. O primeiro cria objetos materiais, osegundo possibilita o surgimento do conhecimento, da organi-zação social, formação e educação ideológica, etc. Isto tudo rela-cionado formará a cultura.

Os costumes, comportamentos, valores, ensinamentos sãoheranças culturais que recebemos de nossos antepassados comose fossem objetos de uso, os utilizamos sempre que necessitamose às vezes sem nos dar conta. Por isso é que há culturas diferentes,pois além de tudo ela é produzida em um certo lugar comdeterminadas condições que não existem em todos os lugares.

Isto pode ser empregado para se analisar um povo ousimplesmente uma organização social que vai modificando suascaracterísticas culturais com o passar do tempo.

1.1. A formação de nosso povo

Se as palavras “povo novo” ditas por Darcy Ribeiro, definemas características do povo brasileiro organizado em sociedade,que completa 500 anos de formação, o que dizer de nós quetemos menos de duas décadas de organização enquantotrabalhadores Sem Terra?

As características desse “povo novo” brasileiro estão relacio-nadas pela “confluência” de matrizes raciais diferentes, “tradiçõesculturais distintas”, que se encontrarão forçadamente para formaruma nova estrutura de sociedade. E que embora imperial, teráum novo modelo. “Novo porque surge como uma etnia nacional,diferenciada culturalmente de suas matrizes formadoras,fortemente mestiçada (...) porque vê a si mesmo e é visto como

1111111111O MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a Cultura

uma gente nova, um novo gênero humano diferente de quantosexistam”3 .

Do geral ao particular. Há uma seqüência idêntica ao processoque ocorreu na história da constituição do povo brasileiro com osurgimento da categoria social “sem-terra”, formada pela misturadas raças, para tornar-se “povo organizado” Sem Terra, sujeitos daprodução da própria história.

Agora, para concluir a miscigenação racial, mistura-se etniascom objetivos comuns, a serem alcançados através da luta pelalibertação da terra e do próprio ser humano, com suas cores,raças, costumes, práticas e valores.

Para realizar tal façanha, viemos de todas as penumbras.Trazemos conosco embrulhados em sacos e lonas, pedaços dahistória de exclusão, fragmentada e marcada, como se tivessesido (e foi) composta aos pedaços que não se combinaram; porisso percebe-se nesta imagem os desencontros das partesrompidas e emendadas pelo vigor do tempo.

As marcas desse tempo aparecem como olhos rasgados emforma de cicatrizes, abertos no corpo e na história de cadaretirante, por onde se vê os passos de uma dura trajetória nalinha do próprio destino, e no seu silêncio mostram a resistência,denunciam a perda de valores, pelo simples fato de termosacreditado demais e por muito tempo, em nossos dominadores.

Os mesmos preconceitos tingiram as consciências eobscureceram o espírito crítico, ajudando assim para que ospobres nem sempre ficassem do mesmo lado, por isso era precisoque surgisse essa possibilidade na história, para dizer a todosaqueles que estavam abaixo da linha da esperança, que não nos

3 Darcy Ribeiro. O povo Brasileiro. 1995, p. 19.

1212121212 Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34

dividimos por raças, nem por credos religiosos, mas sim porclasses, onde uma pequena quantidade de abastados coloca-seacima da linha divisória, imposta para diferenciar riqueza depobreza e a grande maioria fica abaixo dela, tentando compequenos saltos alcançar algumas pontas de privilégio, quependem como fios de algodão doce. Na tentativa de alcançá-lose subir por eles, não suportam o peso de quem quer subir equebram, ficando as pontas dessa tentação cada vez mais longedas mãos dos pobres.

Excluídos como seres sociais não tivemos história regular.As circunstâncias sempre foram irregulares, oscilando sempreentre os interesses e as vaidades da classe dominante. Sendo assim,a vontade dos senhores sempre foi superior aos direitos dosservos, e os primeiros determinam o destino dos segundos,imaginando que a força sempre tem primazia sobre a fraqueza.Desta forma, estruturaram a sociedade com seus hábitos,costumes, tradições e valores e os impuseram sem escrúpulos, alaço, ferro em brasa e baixos salários, determinando sempre aprodução da existência humana e social a seu modo, sem deixarde lado os privilégios.

Na verdade, as circunstâncias que encontramos já ao nascersão diversas e ao abrir os olhos, herdamos imagens fisionômicasquase sempre deformadas pelo sofrimento, miséria e esforçofísico demasiado. Mas sentimos por outro lado, carinho, acon-chego, gritos de felicitações de quase uma dezena de meninosque circulam ao redor da cama ou do berço, comemorando oaparecimento de mais um irmão ou de mais um brinquedo paraas meninas, que com 5 ou 6 anos de idade, aprendem a carregar,enforquilhado na cintura, o “objeto” querendo tornar-se gente.

Estas circunstâncias moldam os pobres como as vidraças das

1313131313O MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a Cultura

janelas que só podem ser talhadas daquele tamanho. As mãos dopoder pressionam para que se enquadrem dentro da “ordem”, sejamobedientes e esperem pelas recompensas que os anos vão engolindouma a uma; por fim, engolem também as esperanças, e deitadosnos levam para dormir o longo sono, cobrindo-nos com um lençolúmido e macio de terra, deixando para trás muitos rastros, queserão reconhecidos por algum tempo, pelos descendentes herdeirosdas mesmas circunstâncias, impostas e vigiadas para continuar ahistória que como castigo não se consegue renegar.

Mas existe outro caminho, onde as circunstâncias podemser feitas pelo homem?

Sim. Mas é preciso querer. Podemos intervir no rumoda história, e através do esforço coletivo, acrescentar a elatambém nossos interesses e fazer o presente nascer de outrossulcos abertos pelo arado da luta, plantando ali os sonhos,de início pequenos, mas vigorosos, em busca de produzir aexistência através dos próprios passos em outras circunstân-cias. “A formação do sem-terra, pois, não se dá pela assimila-ção de discursos, mas, fundamentalmente, pela vivênciapessoal em ações de luta social, cuja força educativa costumaser proporcional ao grau de ruptura que estabelece compadrões anteriores de existência social destes trabalhadores edestas trabalhadoras da terra, exatamente porque isto exige aelaboração de novas sínteses culturais”4 .

Então poderemos chamar tais passos de cultura consciente,que faz e que se deixa fazer pelos carinhos sinceros que nadaprometem, apenas estimulam para que se continue caminhando.

4 Caldart, Roseli Salete. Pedagogia do Movimento Sem Terra. Ed. Vozes, 2000, p. 106.

1414141414 Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34

Vivemos, portanto, para produzir nossa existência e coexistênciacom todos os demais tipos de vida e para preparar as condições daprodução da existência das futuras gerações. É como se as futurasgerações apenas nos emprestassem a terra e o tempo para vivermosnosso pedaço de existência, entregando-lhes como pagamento tudoo que conseguirmos produzir materialmente e espiritualmente emnossa curta existência. Receberão elas em quaisquer circunstânciasnossa herança cultural.

Essa herança cultural, produzida e repassada aos seresindividuais e sociais, não se limita apenas às descobertas einvenções, nem tampouco as futuras gerações se acomodarãoem torno do que as antigas gerações descobriram. Haverá altera-ções permanentes. Cada geração acrescenta nesta interligaçãode gerações, suas próprias características, formando suaidentidade, sempre com a responsabilidade de preparar oambiente onde viverão as gerações posteriores.

A cultura, portanto, representa a produção material eespiritual da existência, a produção da consciência e a formulaçãode objetivos que poderão ser alcançados pela sucessão de váriasgerações. Assim se sucedem os inventos, as descobertas científicas,as formulações metodológicas, as práticas e teorias organizativascom seus princípios e valores. Assim forjam-se os arquitetos daexistência, os poetas e seresteiros, que buscam apaixonadamentesubir os mais altos degraus na escada que leva à felicidade.

Assim brincam os cantadores com as cordas, arrancandodelas melodias. Jogam futebol os atletas como se fossem deusesrolando para o gol o universo que cabe sobre o pé. Sonham ascrianças com estórias ouvidas antes de dormir. Assim plantamose colhemos gerações que imprimem à história suas característicasreconhecidas, reproduzidas ou renegadas, dependendo de sua

1515151515O MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a Cultura

importância e serventia.De certa forma as gerações seguintes sempre nascem e se

forjam com o esforço das gerações passadas, tendo que levarconsigo como castigo ou como recompensa as impressões digitaisdas mãos que moldaram a realidade.

O que fica das gerações que passam é a cultura em suasdiferentes dimensões, mesmo que seja perversa e desestruturante,ainda é o resultado da existência de um grupo social. O fatormais belo e interessante desta interligação é que temos o direitode acrescentar ou retirar aspectos que não queremos carregar,embora muitas vezes fiquem cicatrizes que jamais se apagarão daface de nossa história. Por isso vale a pena viver através de gestosconscientes, que contribuam para que a humanidade siga suatrajetória na busca da utópica perfeição.

1.2. A cultura dos rejeitados

A perda de parte da identidade individual e grupal não ésuficiente para jogar para a indigência a existência já produzida.Podemos perder os documentos, mas com eles não perdemos aidentidade. Mudamos de categoria social, mas continuamos naclasse dos explorados. Desta forma, quem classifica um ser hu-mano de indigente é porque deseja identificá-lo pelos registros enão aprendeu a ler em sua face as marcas da construção histórica.

Esse corpo esquálido e refugado migra em busca do quefazer, empurrado mais pelos conselhos que pela determinação,poderá recompor e reiniciar a produção da existência com raízesculturais sólidas?

Muitas são as dúvidas e interrogações voltadas para areconstrução da cultura da população migrante. “A cultura

1616161616 Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34

dominada perde os meios materiais de expressar sua originalidade.(...) Como pensar em cultura popular num país de migrantes?”Isto porque, “o migrante perde a paisagem natal, a roça, as águas,as matas, a caça, a lenha, os animais, a casa, os vizinhos, as festas,a sua maneira de vestir, o entoado nativo de falar, de viver, delouvar a seu Deus. Suas múltiplas raízes se partem. Na cidade, asua fala é chamada “código restrito” pelos lingüistas; seu jeitode viver, “carência cultural”, sua religião, crendice ou folclore.Seria mais justo pensar a cultura de um povo migrante em termosde desenraizamento. Não buscar o que se perdeu: as raízes jáforam arrancadas, mas procurar o que pode renascer nessa terrade erosão” 5 .

Apesar da imagem real do migrante na cidade onde deverá“renascer na erosão” urbana, não devemos desprezar a possibilidadedo retorno para onde ficaram pedaços das raízes, isto porque, aterra tem o poder de conservá-las vivas por muito tempo. É o quedenominamos caminho de volta para compensar o êxodo criminosoque ocorreu no Brasil a partir da década de 60.

Embora sabendo que as circunstâncias mudam e que émuito difícil recolocar a mesma cepa sobre o resto da raiz cortadanessa fresta de tempo, acreditamos na força da terra e das pessoasquando buscamos nas periferias das cidades, gente que aindatem condições de religar suas raízes, pois há terra que ainda épossível cultivar com conhecimentos guardados na memória,antes que a erosão do tempo também descaracterize a sabedoriadeitada na consciência desses caminheiros.

Poderíamos dizer que quando renegamos às coisasconscientemente, estas se perdem rapidamente nos arquivos

5Ecléa Bosi. Cultura e Desenraizamento; in Cultura Brasileira: temas e Situações, p. 17.

1717171717O MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a Cultura

sentimentais da cultura popular. Ao contrário de quando somosforçados a separar-nos delas, as mantemos vivas através da saudade,e por mais que o tempo passe ou que sejamos obrigados a viverdiferentemente daquela situação antiga, propositadamente asmantemos vivas como feridas no coração. Mesmo doendo, nãoqueremos que sarem. As recordações são ainda o que de bom nosanima e faz-nos respirar a utopia.

Imaginemos que um camponês demitido do trabalho agrícola,da monocultura do cacau, eucalipto, café, etc busca emprego napecuária extensiva. Ao mudar de lugar social mudará também asrelações de produção e sentirá imediatamente a diferença no falar,no vestir, divertir, comercializar, etc. O vaqueiro é um ser “solitário”,fala pouco, e seu vocabulário gira em torno de datas, números, ida-des, nomes de remédios, sementes de capim e outras informaçõesrelacionadas com a pecuária.

As festas e diversões mudam as características, são rodeios,vaquejadas ou exposições que os patrões organizam e obrigam seuspeões a vestirem-se a rigor para encontrarem-se com os animais,figuras simbólicas e místicas centrais dos eventos.

Mas o jeito de produzir a existência desse peão esconderásuperficialmente as marcas deixadas pela produção da existênciapassada, quando era camponês ou empregado em outra atividadeagrícola. Muitas coisas são trazidas do passado que cabem nessanova situação e que ajudará na formação da identidade do peão,feitas de hábitos e valores como a lealdade, sinceridade, fran-queza, solidariedade, mas não poderá expor costumes, gostos eoutras características que ficarão adormecidas, para um dia, setiverem oportunidade, despertarem em uma nova realidade.

Portanto, embora “desenraizados”, os refugados do capitalmantêm vivas determinadas características que, forjadas na

1818181818 Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34

produção da existência individual e coletiva, em outras circuns-tâncias, e que em novas condições poderão renascer possivelmentede forma conservadora, podem servir como ponto de partida paraa produção de um novo pedaço de existência. A reforma agrária épor excelência a possibilidade de religamento das raízes cortadaspor diversos fatores no passado, por ser um resgate coletivo ecomunitário delas. Por uma ou outra razão, ou por uma energiainvisível mas sentida, tais raízes permanecem verdes à espera dopedaço que foi embora como o toco do jequitibá que fica ali,imaginando que um dia o tronco possa voltar a assentar-se sobreele, por não ter aprendido a viver em outro lugar. Assim é osertanejo, “às vezes, até ganhando dinheiro, mas sempre lutandocontra a nostalgia da roça, um banzo peculiar, que fez com que opovo saído do interior jamais se adaptasse inteiramente à vida nacidade grande”6.

O afastamento do camponês da atividade produtiva ocasionanum período histórico de descobrimentos tecnológicos, funda-mentalmente na mecânica e na genética, um certo descompassoentre o conhecimento empírico e o científico, mas não necessaria-mente o conhecimento empírico ou experiencial seja descartável,fundamentalmente na agricultura de subsistência.

Por mais tecnologias modernas que inventem, não há outraforma de produzir alimentos a não ser primeiramente enterrandosementes! Isto pode ser feito com moderníssimas máquinas deplantar, como também com o dedo indicador da mão direita. Oque muda é a rapidez, mas a quantidade pode chegar a ser a

6 Nepomuceno Rosa. Música Caipira: Da Roça ao Rodeio, 1999, p. 19.

1919191919O MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a Cultura

mesma. Há no Brasil essa disparidade tecnológica entre as dife-rentes regiões, onde em determinados lugares ignora-se a plan-tadeira mecânica usando-se a enxada para abrir covas e enterrarsementes, com a participação tríplice dos membros da família. Opai usa a enxada, a criança o adubo e a mãe joga em quantidadeexata, em cada cova as sementes. Com o pé cobre-as para quegerminem. Assim, todos trabalham e não há desemprego da mão-de-obra.

Desenvolve-se por outro lado, juntamente com a “cultura”da existência, a cultura da resistência, de não entregar-setotalmente aos embalos do cantarolar do consumismocapitalista.

Pelas iniciativas de resistência, podemos identificar sinais devida na existência da população refugada e desprezada pelas forçasprodutivas capitalistas. Podemos dizer mais, que a vontade deviver faz surgir novas categorias profissionais, como os catadoresde papelão que a cada cinqüenta quilos recolhidos salvam umaárvore. Catadores de latas, vendedores ambulantes, etc.

No campo da arte surgem grupos que mantêm a tradiçãobasicamente caipira, com suas músicas e rituais religiosos. Mesmovivendo fora do ambiente camponês, estas sobrevivem namemória e nas recordações por muitos anos.

Se permanecer no campo, significa resistência ainda maior, enão se desorganiza facilmente como diz Martins: “nessas condições,a institucionalização das relações de comercialização do excedentefaz-se de forma que o mundo caipira não se desorganizenecessariamente nem quando há uma crise econômica no conjuntoda sociedade (como em 1929 e suas conseqüências durante quasetoda a década de 30) nem quando há uma conjuntura favorável nomercado de produtos agropecuários, pois os setores propriamente

2020202020 Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34

urbanos absorvem a renda diferencial aí surgida”7.Se no setor produtivo, onde se engendram relações de

trabalho, é praticamente impossível crises abalarem esseintercâmbio de excedentes, muito mais difícil será arrancar asexperiências e aprendizados históricos, que se fixam noconhecimento humano como sinais que não se apagam, nemmesmo com a eliminação do corpo físico específico. Os conheci–mentos permanecerão por muito tempo na memória dosdescendentes. A cultura, portanto, é algo concreto que se movecomo uma força invisível no ambiente onde se produz a existênciade um determinado grupo social e influi profundamente em seucomportamento.

Desta maneira o ser humano buscará formas de adaptar-seaos ambientes, produzindo instrumentos e meios para garantir asobrevivência. Os animais, por sua vez, ao longo dos tempos sãoobrigados a modificarem características físicas e inclusivedesenvolverem órgãos para buscar garantir a sobrevivência. Acultura é o meio de adaptação8 dos seres ao meio ecológico,possibilitando a aproximação ou o afastamento de grupos sociais.

A cultura do caipira no momento em que se desloca para acidade, expulso do campo, não se extingue com a mudança doambiente físico, pelo contrário, permanece por certo tempopuramente caipira e é com ela que se defenderá no mundodesconhecido. Há reserva no falar, não faz inimigos e por outrolado, cultiva valores como a fidelidade, o compromisso, asolidariedade entre os amigos e assim por diante. Essa cultura

7 José de Souza Martins. Capitalismo e Tradicionalismo, 1975, p. 106.

8 Laraia Roque de Barros. Cultura um conceito Antropológico, 1986, p. 49.

2121212121O MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a Cultura

com aroma de sertão, com o decorrer do tempo mistura-se aoaroma produzido neste novo ambiente e se mantém, no imagi–nário, à procura de novos horizontes.

Porque isso acontece? Simplesmente porque a culturapopular usa a simbologia, os sentimentos e a palavra falada vin–culada com a ação concreta. Relaciona-se com signos paramaterializar-se em conhecimentos históricos. A cultura na suadefinição antropológica nos diz que é “o conjunto de modos deser, viver, pensar, falar de uma dada formação social”9 . Por issosua expansão se dá menos pela forma escrita e mais pela formaoral, visual, sentimental, etc.; por isso acreditamos nestaresistência da cultura dos refugados pelo capital, como fatordeterminante para retomar a luta pela terra na busca do“religamento” das raízes físicas e sentimentais. Estes dois pilaresnos fazem sentir atração, por exemplo, para conversar comdescendentes da luta de Canudos, onde Antônio Conselheirono sertão da Bahia desafiou todas as forças, inclusive as danatureza e em meio à miséria e a seca construiu no final doséculo XIX, a segunda maior cidade do Estado da Bahia. Ouentão com os descendentes do cangaço liderado por Lampião eMaria Bonita, sempre no sentido de resgatar conhecimentos eexperiências.

Da mesma forma que lembramos dos heróis revolucio–nários, recordamos nossos avós que viveram da produção, ligadosà terra e junto produziram conhecimentos que vamos passandolentamente como um carro de boi que se arrasta à procura dofuturo.

9 Alfredo Bosi. Dialética da Colonização, 1996, p. 319.

2222222222 Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34

Não podemos deixar de lembrar que nosso país, emboraesteja completando quinhentos anos de exploração colonial eimperial, tem menos de 50 anos de vida predominantementeurbana. Antes disso a população majoritariamente vivia nocampo e produzia sua existência ligada à terra. Isto possibilitafalar da agricultura e tocar no imaginário ainda latente de conhe-cimentos produzidos pelos avós deste povo, que mesmoatualmente urbanizados, foram feitos de terra e carregam o cheirodela para onde forem.

1.3. A cultura dos sem terra

Sem Terra deixa de ser categoria social para tornar-se nomepróprio quando identifica um grupo social que decidiu ser sujeitopara mudar de condição social através da organização política,forjando daí sua própria identidade, com ideologia e valores.

Há uma mistura profunda entre gente, terra e ideologia,na medida em que a caminhada provoca o encontro do serhomem com o ser terra. São dois corpos físicos materiais quepossuem características e identidades que agora irão resgatarreciprocamente a história das duas existências.

Embora sejam corpos físicos, é preciso entender que nãosão apenas matéria. Tanto o homem quanto a terra possuemaspectos que vão além das aparências, isto porque, não podemosconsiderar apenas as coisas visíveis e tocáveis como totalidadedas coisas materiais. Nelas e dentro delas, há coisas que podemostocar e coisas que não podemos tocar, mas existem.

“Cada um sabe, com efeito, que há na realidade coisas quepodemos ver, tocar, medir, são chamadas materiais. Por outrolado, há coisas que não podemos ver, nem tocar, nem medir,

2323232323O MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a Cultura

mas que, nem por isso, deixam de existir, como nossas idéias,nossos sentimentos, nossos desejos, nossas lembranças etc.; paraexprimir que não são materiais diz-se que são ideais. Dividimos,assim, tudo que existe, em dois domínios: o material e o ideal.Pode-se, também dizer, de maneira dialética, que o real apresentaum aspecto material e um aspecto ideal”10 .

Resta entender qual é a parte visível, que podemos tocar, equal é a parte invisível da terra que não podemos tocar, mas quepodemos sentir e que por isso mesmo existe. Assim tambémdevemos proceder com o ser humano.

A terra tem em sua origem, a energia que se transforma empotencial de ser mãe e gerar a vida de todas as espécies, sem sepreocupar com a convivência entre ambas, mas oferecendo comseu sopro alimento para todas elas sem distinção. Na medida emque as espécies não compreendem os ciclos da própria existênciae se destroem, a culpa não é da terra mas dos desequilíbrios daspróprias espécies, por não saberem conviver no mesmo espaço.As que conseguem locomover-se buscam alimentos, retirando-se, andando por sobre a terra, à procura de um espaço diferente.Para as espécies em deslocamento, poderá haver variação de clima,solo e temperatura, para a terra não. Ela se estende como umimenso tapete colocado dentro da casa do universo, que se compõede diferentes repartições. Os seres vivos que se deslocam é quevão da sala para o quarto, ou da sala para a varanda deste universo,mas todos os cômodos fazem parte da mesma casa.

As plantas e todos os tipos de vida têm sua trajetória exis-tencial. Teriam sua história escrita se esta possibilidade estivesse

10 Georges Polítzer. Princípios Fundamentais de Filosofia, p.108.

2424242424 Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34

no vocabulário destas espécies que convivem com a vida humana.Como não aprendemos falar a língua das plantas e das minhocas,e estas não usam nossa caligrafia, pensamos que elas nada têm deimportante a dizer sobre sua existência. Por isso derrubamos asplantas, matamos as minhocas e secamos a terra.

O ser humano por sua vez parece disputar com os demaistipos de vida, lugar para viver e se mover sobre a terra. Por isso,por onde passa destrói o que precisa e o que não precisa paraviver no momento.

Nossa cultura ainda deve assimilar a linguagem das plantas,dos animais e das águas para poder dialogar em pé de igualdadecom todas elas. Talvez tenhamos sido mal acostumados pela filosofiaidealista, que defendeu por muitos anos que a terra era o centro douniverso e por isso o “homem” deu-se a incumbência de tomarconta dela. “Crescer e multiplicar-se”, colocando-se acima das demaisespécies. Considerando-se o senhor da natureza.

Essa visão equivocada fez com que os seres humanos se mul-tiplicassem, mutilando as demais espécies, que também deve-riam multiplicar-se. Nesta competição fratricida, enquanto osseres humanos se multiplicaram progressivamente, muitasespécies subtraíram-se indiscriminadamente.

Talvez as duas espécies que mais evoluem no planeta sejama humana e a das bactérias, que de tempos em tempos causamna espécie humana epidemias incontroláveis.

Por isso, quando os Sem Terra resgatam dentro de si a von-tade de voltar a ser gente, buscam a terra, e num diálogo emo-cionado, às vezes com lágrimas e sangue vertido por balas,chegam a constatação que o esqueleto do homem se parececom o esqueleto do latifúndio, onde a carne de ambos foi comidapelo capital. Por isso, fome e latifúndio têm a mesma cara, a

2525252525O MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a Cultura

mesma origem e a mesma identidade. Não são sanguinários otempo todo. Preferem secar o corpo lentamente, até que oesqueleto se entregue e nada mais possa produzir. Então deiteos ossos em algum lugar para que a terra os recolha e através desua saliva os dissolva.

Terra e homem têm a mesma história de desconstrução daprópria existência. O capital inaugurou a era do descartável.Sobre a terra joga-se lixo, sobre os seres humanos joga-se o pre-conceito e a desocupação, por isso desconstrói-se o planeta e ocidadão. Desta maneira, parte da terra e parte dos seres humanossão jogados no berço da exclusão para chorarem a dor da faltade cuidado e de respeito.

Esta trajetória já se iniciou há 500 anos em nosso país.Enquanto grupos poderosos nacionais e internacionais torturame diminuem os seres humanos deixando-os sem trabalho, estudo,saúde e condições dignas de vida, a terra é despida de suas florestas,envenenada pelos poros, intoxicando as espécies de micro-organismos, que se debatem em seu ventre ou no leito seco dosrios como as lágrimas da mãe, que seca cansada de chorar pelador e sofrimento que não tem mais solução.

É esse encontro dos diminuídos, no final do segundomilênio, depois de 500 anos de torturas, que esqueletos hu-manos, despidos de todos os recursos, decidem se abraçar à terra,para extrair de seu corpo o perfume que move a dignidade deum povo em marcha, na defesa da vida e do planeta.

Este encontro é conflitivo. Por um lado há os acostumadosa desmatar e matar, sem respeitar a dor da consciência da terra,que vê o fogo queimar uma a uma as pernas das árvores, paradepois cobrir seu rosto com capim ou simplesmente nada plantar,ficando esta imensa ferida e cortes profundos feitos pela erosão,

2626262626 Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34

enquanto as florestas vão embora para serem desmanchadas pelosdentes afiados das máquinas; e com isso as nuvens entristecidas seretiram deixando que o sol quente endureça a crosta da machuca-dura ressecada, impedindo aparecer vegetação alguma. Estes tristeshábitos também compõem a cultura.

Estes velhos ensinamentos ainda permanecem em muitasconsciências de esqueletos agora assentados. Demoram a ser re-conhecidos pela terra, pois na pressa de fazê-la gerar o alimentoainda a maltratam. Buscam produzir a existência da mesmaforma com que os predadores fizeram no passado e por isso aterra fecha os olhos para não ver as sementes deixarem sair caulesenfraquecidos e raquíticos que não alimentam e nem satisfazemos anseios de quem as semearam, pois ainda desenvolvem acultura da mutilação.

Os emissários do capital, assim que percebem o ventotremular uma bandeira vermelha, entendem que há outroterritório conquistado. Correm com a saliva entre os dentes,pela ansiedade de vender máquinas possantes, insumos, venenose sementes para mover a indústria da destruição do solo e daesperança de vermos nascer daí novos camponeses libertos detodas as taras e vícios. Nestes casos a tentação ainda se sobrepõeà consciência e à lei do menor esforço, levando a consumir tecno-logias que não favorecem a recuperação da terra.

Há tecnologias que vêm para o bem da terra e do serhumano, devem ser abraçadas e utilizadas para fazer companhiaao desenvolvimento. Há as que vêm para destruir e prejudicar,devem ser rejeitadas e impossibilitadas de seguir em frente. Nemtudo o que se descobre e inventa está a favor da vida e dodesenvolvimento. A rigor, modernização tecnológica no campobrasileiro não chegou a ser sinônimo de desenvolvimento, porque

2727272727O MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a Cultura

como quintal do colonizador norte-americano, aprendemos aconsumir pacotes e não utilizar nossos próprios conhecimentos.Prova-se assim que, dependência, ao invés de desenvolvimento,significa deformação da existência.

Mas há os que se rebelaram contra os que desrespeitam abondade da vida e a resistência sempre marca novas etapas, enten-dendo-se que, para resgatar a dignidade do ser humano e da terra épreciso cuidar de três aspectos fundamentais; memória histórica,resgatar virtudes e desenvolver a consciência estética.

1.3.1. Memória histórica

Como ponto de partida podemos dizer que memória é aexistência já produzida com todas as suas dimensões. De outromodo, poderíamos dizer que memória é a experiência feita pordeterminado grupo social que se organizou para produzircoletivamente sua existência. Talvez mais do que isto, a memóriarepresente a ponte que vem do passado e nos leva rumo aconstrução do futuro. Memória é saber pertencer-se para poderentregar-se.

Há sabedoria na memória, e é esta sabedoria que alimentaas raízes existenciais de um povo. Sabedoria muitas vezes en-terrada nas covas do esquecimento pelas mãos interesseirasde grupos que não querem ver o povo se reconhecer nas entre-linhas das páginas escritas, contando a história a partir da vi-são do vencedor e não dos quase vencidos.

Dizemos, então, que há memória nos restos de raças que aindasobrevivem, e que lutaram em todas as gerações para manterem-sevivas e que os livros de história não deixam ver para que não apareçamnas cicatrizes do tempo, os nomes e os dizeres dos lutadores incan-sáveis, pela igualdade entre os seres humanos.

2828282828 Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34

Há memória para os camponeses nas fases da lua, em quebuscam plantar as sementes no período mais escuro para quegerminem e não apareçam carunchos na colheita. Mas as em-presas poluidoras preferem fazer nossa juventude acreditar quepara cada tipo de inseto ou erva daninha, existe um tipo deveneno que chamam carinhosamente de defensivos.

Há também memória no trabalho artesanal dos velhoscamponeses das gerações passadas, que obrigavam-se adesenvolver os próprios instrumentos de trabalho antes daindústria se apropriar deles, transformá-los, devolvê-los emodernizá-los, porém com custo elevado e manutençãoinsuportável.

Há memória na culinária das etnias, onde o conhecimentopassava-se afetivamente para as moças que se orgulhavam deestar prontas para casar, pois já sabiam cozinhar. Atualmente aindústria dos enlatados e temperados, roubou o gosto do paladarfamiliar e as pessoas se envenenam comendo sem controle todoo tipo de alimentos artificiais, fazendo com que vivamos a maiorcontradição jamais vista na história em causas de morte. Temosduas causas principais: morre-se de fome e morre-se de obesidade.Uns morrem sem sangue ou porque este que usamos tem “poucatinta”11 ; e outros morrem por terem colesterol alto, devido aoexcesso de gordura no sangue.

Há memória nas fotografias em preto e branco ondeaparecem os jardins, os pomares das velhas casas de madeira oubarro, onde enormes famílias reunidas até a quarta geração faziamsuas confraternizações. O tempo foi amarelando as fotografias,levando os conhecimentos, deixando em seu lugar o vazio e a

11 João Cabral de Melo Neto. Morte e Vida Severina, p. 71.

2929292929O MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a Cultura

falta de imaginação de como era naquele tempo.Nos livros também há memória, contadas pelas mãos hábeis

de escritores verdadeiramente humanos, que se empenharamem registrar detalhes daquilo que o pensamento não conseguiriaguardar, mas que o analfabetismo tira o direito de buscar nasletras a identidade perdida.

Nas lembranças há memória. Nos contos, fábulas e lendas.Na vida dos lutadores do povo entregue inteirinha na construçãode um sonho, mas que a classe dominante esconde, evitandomuitas vezes deixar sinais até onde esconderam seus ossos depoisde assassinados, porque temem que a voz do sentimento fale maisalto que as palavras e que o povo se reconheça em seus heróis equeira resgatar seus ideais de uma só vez.

Há memória na crença traduzida de geração em geração,que os oportunistas usam da boa vontade e da fé das pessoas,facilitando aos opressores enfiarem a espada da dominação naconsciência já sem cor, da classe trabalhadora e desempregada.

Há conhecimentos biológicos e farmacológicos, desen-volvidos naturalmente pelas nossas gerações passadas e quehoje as empresas multinacionais patenteiam os inventos comose tivessem surgido do nada.

Enfim, nos menores detalhes há memórias que fizeram parteda construção da existência de nossos antepassados e que dor-mem em alguma dobra do embrulho que traz a história. Aténossas mãos têm sabedoria e memória, mas cabe a nós ter cons-ciência da importância deste passado para sabermos como olharcorretamente para o futuro.

Quando vamos para a terra, esta memória nos acompanhae é com ela que principiamos a organização de um novo mo-mento histórico, procurando produzir uma nova existência.

3030303030 Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34

1.3.2. As virtudes extraordinárias

Virtude para nós é a capacidade que temos de fazer coisasextraordinárias permanentemente. Somente desenvolve virtudesaquele que tem capacidade de voltar-se para o bem.

Os poderosos temem as virtudes, porque elas têm o poderde provocar a resistência contra a dominação e contagiar aquelesque devem derrubar suas estruturas.

Se virtudes são capacidades extraordinárias, as conquistascoletivas sempre são vitórias extraordinárias. É por isso que oslutadores trazem o coração carregado de virtudes, onde o povoem marcha procura encostar-se para buscar ali a energia quelhes falta. O povo sente vontade de abraçar seus líderes por causadas virtudes que estes possuem e porque sentem que estaspertencem também a eles.

Muitas vezes na fraqueza se manifestam virtudes que jamaisimaginávamos existir, e elas têm o poder de alastramento quepodem impulsionar grandes mudanças em poucos momentos.Para ilustrar destacamos a história dos escravos romanos. Encon-tramos nos registros históricos que no ano 71 a.C. houve umarevolta de escravos na antiga Roma que durou cerca de doisanos. Essa revolta foi comandada por Spartacus, um escravo quedespertou para o sonho de liberdade, a seu redor conseguiu arre-banhar cerca de 20 mil escravos, um número pouco significativo seformos olhar o poder do império romano na época comandadopor Caius Crassus. As sucessivas batalhas iam cada vez mais dandomoral e referência aos escravos, que atraíam outros escravos para aluta, até o dia em que foram capturados e crucificados, pois oinstrumento da pena de morte da época era a cruz.

Durante o tempo que durou a revolta os poderosos tentavamde todos os meios dizer que já haviam dominado os escravos e

3131313131O MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a Cultura

durante o dia, espalhavam notícias procurando convencer apopulação desta mentira. Mas durante a noite o clarão das fo-gueiras acesas denunciavam que os escravos ainda estavam lá,resistindo, e este esplendor convidava os demais escravos a saíremdas mansões e dos palácios e somarem-se a eles. Portanto, não eraa força dos escravos que os poderosos temiam, mas sim as virtudesque eles apresentavam, e as fogueiras eram fundamentais paradesenvolver esta representação.

De onde vinha esta força? Vinha da virtude da confiança.“Não há uma definição clara para um homem que conduz outroshomens. O comando é uma coisa rara e intangível, sobretudo quan-do não se apóia nem na força nem na glória.Qualquer homempode dar ordens, mas dá-las de maneira a que outros obedeçamé uma qualidade, e esta qualidade Spartacus possuía”12 .

Na medida em que os trabalhadores Sem Terra decidemabandonar a vida de “indigência”, despertam em si o sonho deliberdade, e passam a desenvolver e apresentar virtudes queintimidam os poderosos que mentem, usando agora a televisãoe os jornais, dizendo que derrotaram os lutadores da reformaagrária. Mas à noite quando menos esperam, lá se vão legiões defamílias empilhadas em caminhões ocupar fazendas abandonadase dando-lhes a possibilidade de renascer. Aos poucos, o vermelhodas bandeiras, como se fosse o esplendor de uma grande fogueira,avisa que ali os escravos buscam a liberdade e convidam outrostantos a forjarem juntos o próprio destino.

Desta maneira cria-se uma nova cultura em torno dasvirtudes. Esquemas de organização são desenvolvidos e

12 Fast Howard. Spartacus. Publicações Europa-América, 1974, p. 118.

3232323232 Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34

experimentados. Pais e mães de famílias, que até pouco tempoeram apenas chamados pelos filhos, agora são anunciados aomicrofone para participarem de reuniões onde decidirão o futurode suas vidas. Passam a assumir responsabilidades, liderar pe-quenos grupos e desenvolver tarefas que beneficiam a cole-tividade. Acaba-se temporariamente o machismo e a dominaçãode um sobre o outro, porque na estabilidade podemos serdiferentes, mas no perigo somos todos iguais. A insegurançatransforma-se em desafio. A mãe outrora tímida e submissa,abraçada aos filhos, coloca-se em frente aos pelotões sanguiná-rios que se apresentam para manter a ordem apodrecida.

Permanecendo alguns dias já se vê nascer ali uma cidade,neblinada pela solidariedade. Nascem cabanas que servem decasas, escolas feitas de plástico e bancos de varas roliças, mas ascrianças aprendem o que tem de melhor na esfera da educaçãoinfantil. Em poucos dias estão falando frases de Anton S. Ma-karenko13 como a que diz que: “estou convencido de que o ob-jetivo da nossa educação consiste não só em formar um indivíduocriador, um indivíduo cidadão capaz de participar com a maioreficiência na construção do Estado. Nós devemos formar umapessoa que sem falta seja feliz”14. Assim como Paulo Freire eoutros educadores importantes.

Através de comissões, busca-se resolver os problemas que aprópria convivência social produz, como é o caso do lixo. Nascidades costuma-se atribuir a tarefa da limpeza à administraçãopública, e se o prefeito não tomar providências, a cidade fica

13 Anton Makarenco, renomado pedagogo Russo que se dedicou à educação de crianças de

rua de 1920 a 1935.14

Anton Makarenco. Problemas da Educação Escolar, 1986, p. 29.

3333333333O MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a Cultura

insuportável pelo simples fato de que as pessoas pagam impostos.Ora, os impostos não podem ter o direito de eliminar a solida-riedade entre as pessoas e o cuidado com a preservação da vida!Aqui surge uma virtude fundamental que é o da preocupaçãocom o zelo pelo que é nosso. Os conceitos de público e privado,sem diminuir a responsabilidade de ninguém, são su-perados,na medida em que o processo educativo reconstrói o ser humanoem outra direção, exigindo sua participação, e isto se tornacultura.

Há dizeres e pensamentos produzidos que se transformamem trincheiras ideológicas, buscando não só o melhoramento docomportamento, mas a limpeza dos vícios que se acumularamem cada consciência, como lixo de perversidades que endurecemas relações e por isso precisamos combatê-los com doçura e ener-gia. Vimos em uma escola esta criação ideológica: “Escola limpanão é a que mais se limpa, mas a que menos se suja”. É um verda-deiro chamado à responsabilidade com aquilo que é público.

Em poucos dias abrem-se cacimbas coletivas e inicia-se otratamento da água. Banheiros coletivos para homens e outrospara as mulheres. Estabelecem-se normas de convivência e assimreorganiza-se em poucos dias a nova forma de produzir a exis-tência humana, acordando as virtudes adormecidas no leito dotempo, que passam a povoar os sentimentos e controlar as von-tades que levam aos desequilíbrios na convivência social.

Os poderosos se espantam quando observam um enormeaglomerado de pessoas, onde não se requisita força policial paraintimidar e manter a ordem. Mas os próprios Sem Terra orga-nizam e tudo funciona sem prisões nem repressão.

Nas marchas organizam-se longas filas que causam invejaaos que assistem a passagem e emocionados esperam o momento

3434343434 Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34

para lançarem-se sobre as pessoas para abraçar e derramar lágrimasquentes nos ombros dos caminhantes, como bálsamo refrescanteque alivia as dores do caminho. Também nas marchas não se requi-sita força policial para orientar o trânsito.

É a força da terra que desperta virtudes, onde o comandonão emite ordens, solicita e recomenda cuidado pelo simplesfato de saber que ali vão seres humanos, que não são númerosnem tampouco indivíduos enfileirados, mas que possuem senti-mentos e levam no coração saudades dos filhos que ficaram nosacampamentos, cuidados por outros pais que não puderam seguira marcha.

Se a saudade na distância é forte, a vontade de chegar émaior. Com os olhos fixos no vazio do horizonte que se colocaà frente, cada um quer saber o que se esconde após o topo daladeira. Assim vivem as utopias. A cada topo alcançado, novotopo se deve alcançar, mas valeu a pena ter caminhado. Sem es-ta persistência a história não tem sentido.

Este é o caminho que leva à reconstrução e coloca a revo-lução em marcha. Não é fácil reconstruir-se quando já nostiraram o material mais precioso que é a dignidade de ser gente.Um ser humano reconstrói-se na medida em que acredita quedentro de si há material importante para colocar e tapar os vaziosque o tempo de dominação provocou. Não é fácil ser livrequando ainda não aprendemos pronunciar a palavra liberdade.

Caminhamos ocupando espaços que outrora temíamosocupar. Marchar é mais do que viajar, é caminhar em busca desurpresas. A cada passo uma emoção, um gesto de carinho, umamão estendida que parece querer esculpir em nós o novo homemou mulher que pretendemos ser, e como estátuas inacabadas,abraçamos os escultores, como a pedir ajuda para que encham

3535353535O MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a Cultura

os espaços vazios que descobrimos dentro de nós, pe-losopressores nos terem feito acreditar no passado, que nada maiséramos e nada mais poderíamos ser.

É caminhando que descobrimos o espaço vazio do anal-fabetismo que viaja conosco e nos provoca a perguntar aocaminhante ao lado o que dizem as letras em cada placa à beira daestrada. Ou quando alguém nos entrega um panfleto de soli-dariedade e envergonhados, o dobramos e o colocamos com respeitono bolso da mochila, que vai molhada sobre nossos ombros.

É caminhando que vemos o vazio do latifúndio, protegidopor cercas e a fome rondando as cidades.

É caminhando que vemos o medo nos olhos das janelas dascasas, escondidas atrás de grades, temendo que os pobres queiramfazer justiça pelos longos anos de violência aplicada para acu-mular riquezas.

É caminhando que vamos descobrindo e esculpindo emnós uma nova consciência, porque os olhos parecem ver não oque está ocupado, mas sim os espaços que se deve ocupar.

Há muitos espaços vazios que ao esculpir, vamos des-cobrindo. O latifúndio, em 500 anos de história do Brasil, nãodestruiu apenas a terra, mas também a consciência dos pobres etrabalhadores, por isso milhões deles andam como se estivessemcegos. Há um latifúndio em cada cabeça que não deixa produzirvirtudes e valores, que embrutece as relações sociais e humanas,que abre profundos rasgos de erosão na memória, fazendo-nosacreditar que a história começou com nosso nascimento indi-vidual, antes disso “nada” de importante existiu. É a cultura dovazio e do esquecimento.

Descobrimos também neste caminhar a importância da mãoamiga que nos arrasta para o futuro, e neste espaço vamos tran-

3636363636 Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34

çando experiências, conhecimentos, comportamentos, idéias,virtudes, enfim, vamos construindo uma verdadeira interação.“A existência do espaço interativo é fundamental para o processode construção do conhecimento, na formação dos sujeitos, epara o avanço da organização do movimento social. Pois é tam-bém nesse espaço, onde se desenvolvem as relações, articulaçõese alianças”15 .

Estas descobertas e vivências misturam-se às ansiedades econvidam para que produzamos nossa nova existência.

1.3.3. A consciência estética

A estética no seu sentido amplo deve significar a capacidadeque o ser humano tem de marcar sua existência no mundo,produzindo objetos úteis e belos para sua sobrevivência, dandoa eles um sentido de continuidade da própria existência. O belose eterniza na permanência dos objetos criados. Neste sentido,emanamos beleza que plenificam gestos e razões como identidadede um povo.

Na origem da palavra estética está o sentir. Ela vem do gregoaisthesis que significa a faculdade de sentir. Logo, a estética setorna importante para a vida humana, pois ela está ligada aodesenvolvimento da criatividade e da capacidade de sentir, esteselementos formarão as características da consciência estética.

Como a produção da existência consciente exige elevadacapacidade de criatividade, pois mesmo nos pequenos detalhesusamos o intelecto e as mãos para produzi-las e colocá-las emordem, podemos considerar todo e qualquer ser humano artistae arquiteto de sua própria história, para isto se torna fundamental

15 Bernardo Mançano Fernandes. MST: Formação e Territorialização, 1996, p. 223.

3737373737O MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a Cultura

a criação da consciência estética. Esta consciência estética seconfigura na qualidade de gostar. Desenvolve-se desta forma apedagogia do bom gosto. Este sentido acrescenta-se em nós damesma forma como qualquer outro, e deve ser exercitado dia-riamente, caso contrário atrofia e desaparece.

É a busca da beleza que nos faz pentear os cabelos todos odias, a cortá-los quando vemos que tiram a beleza dos traços daface, como se a moldura estivesse deformando-se.

A obra de arte de um camponês Sem Terra não se encontraem paisagens pintadas ou em escritos filosóficos que se tornamobras, mas na paisagem real que se torna poesia. Aquilo que énovidade na natureza para alguns, para um Sem Terra não é oupode ter outro significado. O pôr-do-sol para muitos pode repre-sentar um fenômeno artístico, pintado pelas mãos invisíveis docriador da natureza, para o camponês pode representar apenasfadiga de um dia duramente trabalhado, onde agora, ambos“vermelhos” de cansaço, no colo da noite adormecerão, pararenascerem no dia seguinte e dispostos, acordarem o amanhecer.

Nossa preocupação está então em saber valorizar o que debelo há na natureza e o que podemos tornar mais belo, usandoas próprias forças da natureza, para fazer mais bela a vidacotidiana a partir desta fonte de beleza que é a natureza.

A estética representada pela arte no mundo do capital setransforma em mercadoria, que se utiliza como elemento depoder para dominação e alienação das pessoas. A beleza emnossos assentamentos não é para ser comercializada, mas simpara demonstrar que caminhamos rumo à reconstrução da vidacom o perfume das flores cultivadas, com o único objetivo deperfumar o caminho neste quadro de arte pintado pelas mãosde um desconhecido, que usou a enxada e os dedos como

3838383838 Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34

instrumentos básicos da edificação desta grande obra. Assim, acor marrom está na própria terra e o verde está contido na pró-pria muda da flor, que se deita sobre o leito macio preparadopara a fecundação. Assim irá fazer parte da paisagem.

Nossa pintura tem mais sensibilidade por ser real, porquerespira e exala perfume, sensibilizando também nossa consciênciaestética.

Essa pintura é real. Acima de tudo porque o pintor nãopode imaginar-se fora. Está dentro, e sem ele a paisagem nãoterá a mesma beleza. Este ser social, transformado em pintor,existe na realidade objetiva e subjetiva. Ocupa um lugar de des-taque, movimentando-se de um lugar para outro, para assumirum posto de melhor ângulo e continuar sua obra. Esta pinturaé bela porque está em permanente movimento. Somente se podeolhar uma vez e fixar a imagem, no momento seguinte já não éa mesma paisagem porque muitos elementos mudaram de lugar,as nuvens foram para longe, os pássaros voaram em busca deoutros galhos e o homem abraçou-se à mulher para emergiremem uma nova relação de igualdade e prazer.

O contato com esta beleza natural educa os demais sentidos,como amar, gostar, admirar, sorrir e cantar. Desperta interessecoletivo de reproduzir esta obra de arte. A classe dominantequando vai aos leilões de arte, compra por altos preços obras dearte e as leva para casa, trancando-as em cofres, tirando a liber-dade da beleza poder tocar os sentimentos das pessoas e fazê-lassentirem-se mais humanas. Escondem as pinturas devido aoegoísmo que os amarra e porque são incapazes de reproduzi-las.Nessa insegurança oprimem-nas através da escuridão das paredesde aço, não deixando que falem e nem digam com seus traços,que para ser verdadeiramente gente, é preciso criar. Os

3939393939O MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a Cultura

dominadores não são puramente humanos, se assemelham àsmáquinas, sem sentimentos, sem alegria e sem imaginação.Criam os mundos de fantasias onde o capital lhes dá as ordenspara cada movimento que devem fazer. Eles não sabem construiruma paisagem livre e bela. Quando necessitam criar, chamamum trabalhador para desenhar-lhes algo que possam exibir aosseus colegas. É a cultura da frieza e da dominação.

Porque então damos flores de presente? É errado fazeristo? Não. Damos flores de presente porque somos incapazesde explicar com palavras o que sentimos. Precisamos daspétalas e do perfume para que as mãos possam externar nossossentimentos. Mas mesmo assim as flores murcham! Elas mur-cham para dizer que a beleza não está em um gesto isolado.É preciso continuar sensibilizando nossa consciência para queela não se acomode e crie sem limites novos gestos de carinhoe afeição.

Nós somos mais criativos porque somos mais livres, e criamosnossas paisagens sem medo que alguém as roube, pois sua grandezafísica e estética, torna impossível de transportar. Quando conseguemfazer isto, apenas levam pedaços e a beleza suporta poucos dias a ar-rogância humana e desaparece. Talvez seja por isso também que asflores murcham, porque não aceitam conviver com a insensibilidade,que ao retirá-las dos jardins para levá-las e colocá-las sobre as mesas,deixam para trás as raízes que lhes deram a vida. A beleza somentesobrevive quando estiver ligada às suas raízes.

Se somos nós que fazemos a história, significa dizer quenela ficam nossas impressões digitais. Seremos reconhecidos porelas quando nossos descendentes forem recordar do pedaço deexistência que nos coube viver e produzir.

As obras de “arte” estarão presentes em tudo, porque tudo

4040404040 Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34

foi feito com a imaginação, força física e a habilidade de nossasmãos, no espaço aberto da natureza.

Desta forma a estética está presente em tudo o que fazemos.Ela é a intermediação que existe entre o querer e o fazer, entre oservir e o sentir. Isto nos leva a aproveitar pedaços da grande paisa-gem já pronta, para apenas acrescentarmos aquilo que o imagináriohumano consegue inventar. Então plantamos entre as árvores, casascom chaminés fumegantes. Espalhamos animais domésticos porentre as árvores, aproximamos as flores das casas e semeamosalimentos por uma outra extensão; no fundo, o rio corre man-samente, e ao pé da montanha limpamos um lugar para banhar-nos, deixando que as águas levem embora nossas canseiras e mágoas.

Compõe-se assim as paisagens reais. Cada lote é um quadropintado pela capacidade de cada família de pintores.

Há desequilíbrios. São acidentes provocados por pintoresdescuidados que, na pressa de fazer sua paisagem, derramam maistinta do que o necessário, borrando parte da tela com venenos,queimadas e lixo, trazidos nas compras do supermercado.

Levam-se anos e às vezes várias gerações para se aprender apintar a obra imaginada por nossos sonhos, exatamente porqueo sonho não se realiza sem a recriação do homem e da natureza.Ao mesmo tempo em que criamos, nos recriamos. Pintar étambém se pintar nesta paisagem viva. A consciência estética élenta para se desenvolver, mas sem ela é impossível reconstruir apaisagem florida onde deverá multiplicar-se a vida humana eassim tornar-se existência.

Quando a estética se torna cultura?Quando os seres humanos descobrem que a beleza é parte

integrante do ambiente onde vivem, até o dia da partida e passá-lo para outros seres mais jovens.

4141414141O MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a Cultura

Quando o tempo determinar que não quer mais nos verandando sobre a terra, pede para nos retirarmos e nos deitarmosde barriga para cima, onde a terra num diálogo silencioso nos trans-formará e nos distribuirá para que as demais espécies possam sugarnossa energia e fortalecer sua existência, misturada a nossa novaforma de existir. Desta maneira é que a terra não é só terra nem aárvore é somente árvore, assim como o indivíduo não é somenteindivíduo. As células e os átomos que compõem a matéria sedeslocam em um movimento vivo, e introjetam-se, entrelaçando-se para formar uma “nova’ matéria. Há momentos em que pisamossobre a terra e comemos as plantas. No momento seguinte entramosna terra e as plantas nos comem com suas raízes e nos transformamem plantas. Este morrer e viver permanentemente é que possibilitounosso planeta estabelecer esta harmonia em milhões de anos deexistência.

Esta íntima relação não está nas conseqüências, mas na causaque originou a intimidade entre terra e homem. Esta origemestá no húmus. “Daí que homem vem de húmus”16. Somos estamistura de pó e água com características novas, nos locomo-vendo, sonhamos, pensamos, acreditamos e caminhamos emdireção à construção da utopia. Somos em resumo, esta terraboa em movimento.

Somos este húmus Sem Terra, andarilho, que se rebela porser violentamente afastado da terra, onde pode ter utilidadesomente voltando a ela; pela morte ou pela luta. Em ambas assituações há a retomada da terra, para tornar-se terra ou para tirardela o sustento e manter este húmus humano em movimento.

16Leonardo Boff. Saber Cuidar, 1999, p. 72.

4242424242 Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34

Por esta razão é que nossa consciência ecológica se revoltaquando há desrespeito com a natureza, porque na seiva das árvo-res há sinais de sangue de nossos antepassados que foram absor-vidos pelas raízes das plantas.

Na medida em que conquistamos a terra, há um desafioenorme de reconstituição da história desses locais. Nos sentimoschamados a reconstruir as florestas através do plantio de árvores,a edificar pomares e jardins, mesmo ao redor dos barracos delona crescem flores coloridas, plantadas pela simples vontadede tornar o local mais bonito e atraente.

Em uma ocupação, quando se finda o período de acampa-mento e a terra foi liberada, ficam resquícios de guerra, lonasrasgadas, varas enfileiradas que serviam de esteios para as casas,fogões de barro abandonados, restos de potes quebrados, sandáliasdesgastadas, esquecidas e tantos outros objetos que ajudaram naresistência física e sentimental. Mas nesta dispersão de coisas,aparecem árvores e flores plantadas no desespero da ameaça dodespejo, que psicologicamente ajudaram a imaginar que nas raízesdas árvores e das flores, estava a simbologia da resistência e daligação à terra, que os encarregados pelo despejo e pela violaçãodos lares, teriam que fazer força para arrancar-nos dali, e se passasseum tempo significativo, não nos arrancariam mais.

A consciência ecológica e estética nos diz que devemos co-locar ordem nos destroços e ao mesmo tempo em que partimospara a construção das novas casas, o terreno que serviu de tapetepara instalarmos nossos sonhos e preocupações, deverá ficarlimpo e organizado. No solo pisado e endurecido limpa-se paraplantar árvores e fazer renascer a vida, junto com a libertação daterra e das pessoas que acreditaram e venceram.

Chega o dia em que a luta vence a opressão. Chega o tempo

4343434343O MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a Cultura

de construir as casas em meio a um choque de interesses. O go-verno aposta que uma casa de 42 metros quadrados é suficientepara uma família morar, e para impossibilitar sugestões, impõeuma planta comum para todos. Na vontade de possuir a casa,cada família aceita a imposição, mas assim que passa a habitarnela, percebe que não satisfaz as necessidades, pois possui apenasquatro cômodos e às vezes o casal tem oito filhos e a vida ficaincômoda. A necessidade desafia a criatividade, e lá se vão todosse empenharem na construção de varanda para aumentar acozinha e os dormitórios, agora de forma rústica. Pode-se perderem beleza, mas ganha-se em criatividade, iniciativa e comodi-dade. É o anseio de se ter uma casa com condições de abrigar aspessoas da família com todo conforto possível que nos fazdesenvolver a criatividade.

Segue-se em frente, e percebe-se que o poder do criadoragora é humano. Animais são bem tratados e enfeitados, princi-palmente os cavalos que ganham novos apetrechos e ferraduras.Os pomares florescem. A bandeira do MST é pintada nas pa-redes dos galpões, casas e escolas. Não há uma praça de assen-tamento que não esteja lá uma bandeira dançado ao sopro dovento, contrastando com o verde da vegetação em terra. Osanimais domésticos passeiam entre as crianças de ventres livres,que correm em direção aos seus próprios brinquedos. Asmulheres recolhem dos varais as roupas secas e macias, já semremendos, após uma jornada de trabalho gratificante na coope-ração comunitária. As portas das casas se abrem uma a umalentamente, como se quisessem dizer boa noite aos jovens quesaem para ver a lua nascendo. Não há muros em frente às casas,as grades do medo e da exclusão ficaram em alguma dobra dopassado. E na linha da reconstrução e do desenvolvimento

4444444444 Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34

humano, vem os cuidados estéticos com o próprio ser humano.É a razão maior de produzir cada obra de arte em cada

área conquistada e em cada ser humano, buscando refletir sobrecada ruga estampada na face da existência, que distingue eque nos dá identidade. Desta forma melhora-se a aparência.Reconstituem-se dentaduras, melhora-se o vestuário, troca-seos móveis da casa, adquire-se eletrodomésticos novos, enfimtoma-se consciência da importância da aparência física comofilhos da terra, recriados por ela em busca da manutenção dadignidade.

O trabalho é desde o início o fator de produção do próprioser humano. No decorrer da história da humanidade o trabalhofoi se tornando algo punitivo e pouco prazeroso, devido a escra-vidão e a exploração do capital no desenvolvimento das forçasprodutivas.

No resgate do ser humano, resgata-se o sentido do trabalhoque possa reconstruir de forma voluntária o ser deformado.Também resgata-se o sentido das técnicas que mantenham aestética do corpo. Isto irá despertar o interesse pela beleza comométodo pedagógico na retificação da conduta. “O instrumentoprincipal da influência pedagógica deve ser o método intuitivodemonstrativo da beleza na arte, no trabalho e no comporta-mento dos homens”17. Essa criação antecipada como referência,influi para que os demais seres sociais Sem Terra, sintam influên-cia deste meio, e adquiram caraterísticas complementares, reti-ficando seus hábitos.

Pela urgência de produzir, muitas pessoas lançam mão deinstrumentos e insumos que prejudicam, mutilam e deformamo corpo humano, fruto de um método demonstrativo dotrabalho depredador. Carrega-se água na cabeça enquanto há

4545454545O MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a Cultura

múltiplas formas de fazer a água chegar sem esforço em cadacasa, e usa-se defensivos, “ofensivos” agrícolas, quando há deze-nas de formas de combater as pragas e doenças; fruto dodesconhecimento e alienação por parte das empresas de venenos,que estabelecem as bases de seus lucros sobre a depredação edestruição do ser humano e da natureza.

As tentações do passado às vezes nos obrigam a virar a cabeçapara ver o que não queremos mudar; é como se uma força mis-teriosa nos empurrasse para o lado de um coordenador e entregás-semos a ele o poder das ordens e ficássemos aguardando omomento de agir. Se não há ordens não haverá ação. Aí nasce acentralização do poder e a vontade de ser superior aos demaisseres humanos. Essa apatia se transforma em conformismo eassim morre a indignação.

O gosto pelo belo está em todos os aspectos da vida e daorganização social e política, por isso é que a estética está emtodos os sentidos orientando-nos que um simples gesto tem suabeleza. A forma de falar, de sorrir e dizer tem sua beleza. Hápessoas que falam muito e não cansam seus ouvintes, quandoterminam de falar parece ouvir-se um ruído de pena por terterminado. Há beleza na forma de organizar e dirigir. Muitoslíderes tem a perspicácia de indicar o caminho e sem muitasexplicações convencem seus companheiros e companheiras.Assim tornamos a estética parte de nossa existência, mas parteagradável que dá qualidade aos segundos que respiramos edesenvolvemos em nós, o gosto de viver e desenvolver a beleza.

É fundamental acreditar que desenvolvemos nossa existência

17 Verb, M. A . La Educación Estética de Los escolares. In Teoría y Metodología de La

Educación Comunista em La Escuela, p. 217 e 218.

4646464646 Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34

num cenário como se fosse uma tela de pintura, onde cada movi-mento nosso significa um traço na montagem desta paisagem. Aalegria significa as cores alegres, a tristeza e o mau humor as coresescuras e tristes. Revisando nossa história podemos perceberclaramente como está pintado o quadro da história particular decada um. Se foi bela, o quadro estará perfeitamente pintado comcores alegres, se foi uma vida atribulada será um quadro triste, ondepredominam as cores escuras. Importante é que não tenhamos medode expor na galeria de arte da história este quadro, e ter consciênciade que é possível melhorá-lo, agora que temos mais consciência daimportância de nossa existência.

Sobre as cores tristes é possível colocar cores alegres e fazero cenário de nossa história mudar. Por isso é preciso acreditarem nossa capacidade de pintores, adormecida em nossa cons-ciência. Dormem dentro de nós poetas, escritores, contadoresde fábulas, músicos e humoristas que somente nossa auto-estimapode acordar.

Temos nossos ideais políticos, organizativos, econômicos,etc. Precisamos estabelecer também ideais estéticos que pos-sibilitem nossa intervenção no cenário histórico para transformá-lo, a fim de que vivamos em harmonia com todos os tipos devida e socialmente felizes, bebendo nesta fonte limpa da beleza.

4747474747O MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a Cultura

2. A revolução cultural

Assunto delicado, em se tratando dos vários fatores que seinterligam no tratado da revolução, principalmente quando hádiferentes conceitos que desgastam a própria palavra, tendo emvista que com o decorrer do tempo, qualquer mudança signifi-cativa, em qualquer dimensão científica ou da vida social, recebea marca desse conceito.

Há também muitos desanimados que também desencami-nham as perspectivas e dificultam discutir o assunto.

Falar em revolução em uma época em que parece haveruma hegemonia absoluta do imperialismo norte-americano éatrever-se demais. Por outro lado, há uma acentuação muitogrande sobre determinadas questões que procuram descara-cterizar a luta de classes e destacar como pontos fundamentais,as questões de gênero, ecológicas, das minorias e tantas outras.

Aceitamos que, as contradições antagônicas estão locali-zadas no mesmo lugar, entre forças produtivas e relações sociaisde produção, onde uns produzem, outros se apropriam, unsconcentram renda e riqueza, outros miséria e pobreza. É nessesentido que devemos voltar nosso olhar e colocar as questõesimportantes sobre a situação de dominação, degeneração edestruição de tudo. Dentre todos os elementos que compõem ouniverso e que estão sendo destruídos, o ser humano é o prin-cipal deles, por ter a condição de poder desenvolver a consciênciae ser ele o principal instrumento de resistência, é com ele quedevemos lutar e buscar a solução dos problemas.

Mas resgatar o ser humano não significa deixar as árvores e

4848484848 Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34

as águas desaparecerem. Uma nova relação entre os diferentesatores no universo, deverá surgir e constituir as futuras relaçõesde produção, humanas e culturais.

A revolução estrutural da sociedade é o objetivo principaldaqueles que querem ver um país liberto de todas as torturas edesequilíbrios. “A revolução constitui uma realidade histórica;a contra-revolução é sempre o seu contrário (não apenas arevolução pelo avesso: é aquilo que impede ou adultera a revo-lução)”18. A luta entre as duas tendências, a favor e contra, consti-tuem um conflito permanente, entre classes antagônicas, mastambém dentro das próprias classes.

Devemos ter consciência de que essa revolução não dependeapenas da vontade humana, mas também das circunstâncias queformam e tornam este ambiente fecundo.

É nesta velha sociedade que se desenvolve o embrião denovas relações de produção, de trabalho e de cooperação. Oembrião de novas condutas, com mudanças de hábitos e valores,elevando-se assim o nível da consciência humana em relação aouniverso. A partir de nossa intervenção, estamos edificando ma-terialmente nossas intenções de construir uma nova sociedade,mas levaremos uma carga bastante pesada do lixo capitalista,que será transformado depois da tomada do poder.

2.1. O que é a revolução

Se tudo o que é feito de interessante passa a ser conhecidocomo revolução, nada mais poderemos fazer, pois o conceito foi

18 Fernandes Florestan. O que é Revolução, 1984, p. 9.

4949494949O MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a Cultura

deturpado. Precisamos então resgatar o entendimento e unificá-loentre os trabalhadores para que nos ajude a compreender a revoluçãocultural que procuramos desencadear internamente no MST.

Florestan Fernandes vai mais além na sua designação,alertando para a importância inclusive dos termos para se fazeruma revolução. Diz ele, “se a massa dos trabalhadores quiserdesempenhar tarefas práticas específicas e criadoras, ela tem dese apossar primeiro de certas palavras-chaves (que não podemser compartilhadas com outras classes, que não estão empenha-das ou que não podem realizar aquelas tarefas sem se destruíremou sem se prejudicarem irremediavelmente). Em seguida, devecalibrá-las cuidadosamente, porque o sentido daquelas palavrasterá de confundir-se, inexoravelmente, com o sentido das açõescoletivas envolvidas pelas mencionadas tarefas históricas”.19

Logo, a primeira tarefa que nos é delegada é resgatar o verdadeirosentido do termo em que tenha um só entendimento, contraria-mente do que pensa a classe dominante.

Fundamentalmente, essa definição nos municia com bonsargumentos, porque a revolução é uma postura criativa e autô-noma de uma parte da sociedade que pretende operar profundasmudanças na realidade.

Conseqüentemente não se pode resgatar o conceito e mantê-lo apenas no campo da teoria. As palavras somente adquiremforça e alcançam os objetivos teóricos quando se transformamem ação. Para tanto é preciso acreditar na força de uma orga-nização política. “A organização é a chave que permite agarraras iniciativas lançadas pelos líderes da revolução (...) Se não existir

19 Idem, p. 9 e 10.

5050505050 Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34

a organização, as idéias depois do primeiro momento de im-pulso, vão perdendo eficácia, vão caindo no conformismo eacabam por ser apenas uma recordação”20. Somente a organiza-ção da classe trabalhadora para lutar pelos seus objetivos podedar sentido às idéias e mantê-las em evidência. É isto que faz asociedade avançar e realizar profundas transformações. É istoque nos diz o Manifesto Comunista, escrito a mais de 150 anos.“A história de todas as sociedades que já existiram é a história daluta de classes”21. É ali, portanto, na luta revolucionária onde apalavra revolução irá adquirir seu conceito mais afinado comsua própria origem: a luta de classes.

Portanto, a revolução se realiza para resolver as diferençasentre as classes e reverter seu padrão de funcionamento. Nofundo, é fazer a maioria voltar-se contra a minoria para buscaratender as necessidades de todos, sem privilégios. Sendo assim,o conceito de revolução está ligado à revolta, indignação; é con-trária a idéia de passividade, de espera, de conformismo. É umesforço coletivo para desestabilizar a ordem, para elevá-la a umanova categoria, agora a ordem da maioria organizada através daditadura da maioria, fazendo nascer a verdadeira democracia.

Há porém uma longa marcha a ser feita para se chegar aessa revolução, que coloque a classe trabalhadora no poder epossa edificar as transformações sonhadas; isto desencadeará umverdadeiro processo de agitação da poeira da opressão, que seacumulou nos parapeitos das janelas da história e que agora osespanadores revolucionários deverão removê-la para começar apôr a casa em ordem.

20 Che Guevara In Textos Políticos, SP 1986 p. 49.

21 Karl Marx e FriedricEngels. O Manifesto Comunista, RJ 1998, p. 9.

5151515151O MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a Cultura

Paulo Freire, na ansiedade de contribuir com tal reflexão,já há várias décadas, destaca que neste processo deve-se tercoerência entre o discurso e a prática, e acima de tudo “adequarsua ação às condições históricas, realizando o possível de hojepara que possam viabilizar amanhã o impossível de hoje”22 .

É essa dinâmica que marca um processo revolucionário,onde seus condutores devem saber colocar frente a frente o pos-sível e o impossível e buscar as condições de alcançar a ambosdentro do tempo estabelecido.

Essa revolução contra a ordem, somente se legitima e con-firma seus objetivos se for levada até o final. Não é revoluçãoquando em determinado ponto do caminho, as ações passam apreservar o que deve ser destruído. Por exemplo, a força con-trária. Toda força contra-revolucionária preservada será uma ame-aça à trajetória da revolução. Mas somente irão até o fim com arevolução aqueles que precisam dela. Aqueles que não precisamdela, teimam em ir até onde serão satisfeitos seus anseios, nestecaso estão dispostos a fazer reformas e não revolução.

O processo revolucionário pode ser longo e traz essa contra-dição dentro de si; onde ao mesmo tempo em que aspira transfor-mações, obriga-se a lutar por reformas como: distribuir terra,aumentar salários, buscar avanços nos direitos sociais, etc. Casocontrário a população não se mobiliza. O problema dessa teseestá em que, muitos líderes e organizações comecem a gostarmais das reformas e percam o objetivo da revolução.

Entendemos por revolução, no sentido estrito do termoque “significa o processo histórico assinalado por reformas emodificações econômicas, sociais e políticas sucessivas que, con-

22 Paulo Freire. Ação cultural para a Liberdade, SP 1982, p. 80.

5252525252 Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34

centradas em período histórico relativamente curto, vão dar emtransformações estruturais da sociedade e em especial das relaçõeseconômicas e do equilíbrio recíproco das diferentes classes ecategorias sociais”23. Há os que preferem as reformas definitiva-mente (mesmo sendo conflitantes) e confundem-se com aspequenas conquistas, por isso são incapazes de levar o processoaté o fim.

Por esta razão é que muitos processos revolucionários desen-cadeados em determinados lugares, através de lutas por reformas,passam a ser reformistas; e isto não se deve simplesmente pelaamplitude das alianças feitas, mas sim pelos vacilos que cometema força principal e sua vanguarda.

Isto tudo não se pode perceber e nem julgar sem luta. Nessecaminhar para a frente é que aos poucos aparecem os que nãoquerem ir até o fim, e entram em choque com aqueles que que-rem ir em busca dos objetivos estratégicos.

Portanto, tudo depende do ponto de partida e das intençõesque alimentam a vanguarda neste processo. Por exemplo, não sepode construir um carro de Fórmula 1 com os moldes de peçasde uma motocicleta! De acordo com a estrutura que se tem e osobjetivos que se estabelece para serem alcançados é que se podevislumbrar até onde irá a organização e até quando sustentaráseus interesses de classe.

Antigamente quando se lutava por democracia era o mesmoque lutar por revolução, porque o conceito de democracia queriadizer revolucionar todos os meios de produção e a estrutura dedominação da sociedade e realmente democratizá-los tendo aces-so a todos os benefícios e direitos sociais. Por isso é que demo-

23 Caio Prado Júnior. A Revolução Brasileira, 1987, p. 11.

5353535353O MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a Cultura

cracia não pode ser entendida apenas como o processo departicipação no processo eleitoral. Ela deve estar enraizada emtodas as dimensões da vida da sociedade. De que vale votar naseleições se não conseguimos empregar nossa força de trabalho?Significa que “há democracia” na política eleitoral, mas não naeconomia e na política social. Não há democracia na educaçãonem no sistema de saúde, nem na liberdade de expressão, porquea mídia não ouve aqueles que estão fora do mundo da minoriaincluída no seu projeto de dominação.

Nas últimas décadas em nosso país, lutar por democraciatransformou-se em luta por algumas reformas ou menos do queisso garantir uma fatia deficiente no parlamento que significaapenas, onde se abre espaço parcial na participação do funciona-mento da estrutura administrativa do estado, e isto satisfaz muitagente, que deixou de lutar pela revolução e acomodou-se nocampo das reformas jurídicas e institucionais.

A revolução deve acontecer como “um nascimento”. Umaverdadeira revolução popular “é um processo incrivelmentecomplicado e doloroso, de morte da velha ordem social e nasci-mento da nova ordem social, do estilo de vida de dezenas demilhões de homens. A revolução é a luta de classes e a guerracivil mais agudas, mais furiosas, mais encarniçadas. Não tevelugar na história nem uma só grande revolução sem guerracivil”24. Ao produzirmos a organização da nova sociedade vamosproduzindo também a nova existência dos seres humanos, cujaobrigação é renascer para fazer acontecer a nova ordem.

Desencadeia-se uma revolução quando se consegue unir a

24 Oziel Gomes. Lenin e a Revolução Russa. SP 1999, p. 59.

5454545454 Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34

maioria da população em luta para garantir suas reivindicações.Isto somente será possível se essa população encontrar diante desi uma organização que lhe inspire confiança, caso contrárioocorre o que diz Lenin “a classe revolucionária órfã de conduçãocarece de vontade única” ou seja, esta não consegue sequer uni-ficar sua vontade, que representa o elemento fundamental dasubjetividade política. Não se faz guerra sem exército, por issocada classe terá o seu em permanente confronto. Do lado que apopulação pender se definirá a vitória dentro da criação dascondições adequadas.

Mas quais são as “transformações subjetivas” e “condiçõesobjetivas” que possibilitam unir a população e desencadear oprocesso revolucionário?

Supostamente a passagem das reivindicações econômicaspara as reivindicações políticas, levaria a uma transformação navisão, no comportamento e na consciência da população, cara-cterizando-se como transformação subjetiva. Mas somente essasubjetividade não basta, pois ela não se reduz à elevação do nívelde consciência ou da motivação da população em participar. Épreciso despertar a autoconfiança nas massas e estas sentiremsatisfação em participar e permanecer na luta. As pessoas devemsentir que são importantes nesse processo e que delas depende oavanço da história. Para isto é preciso compreender claramentede que lado estão, e isto somente se consegue através da ligaçãoíntima com as massas num trabalho de base permanente. Porque“não basta dizer que a vida é dura e incitar a revolta; isto qualquervociferador pode fazer, mas não serve para grande coisa. É preciso

25 V. Lenin. Aliança Operária Camponesa. Moscovo, 1983, p. 47.

5555555555O MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a Cultura

que o povo trabalhador compreenda claramente porque é que estána miséria e com quem se unir na luta para se libertar dessa miséria”25.Esse exército do povo deverá ser o impulsionador das mobilizaçõese o criador da consciência de que estamos do mesmo lado,buscando coisas parecidas: reformas e revolução, e no percorrerdo caminho, busca-se motivações para a maioria do povo ir atéo fim.

Dizemos então que essa revolução desencadeada é um pro-cesso consciente para uma parte da população, conduzido poruma vanguarda consciente e altamente qualificada; em perfeitasintonia com a participação da maioria do povo de um país, porsaber combinar reivindicações por reformas e por transforma-ções profundas nesta mesma sociedade, utilizando todas as for-mas de lutas e meios possíveis.

Mas não é somente o “exército” ou a vanguarda que deve estarorganizada. As pessoas da sociedade embora não façam parteoficialmente da organização desta força dirigente, devem ter suasreferências organizativas ao alcance da mão. Por isso deve-se multi-plicar em milhares as organizações de base, que reúna as pessoaspara lutar em seu espaço territorial para fazer as reformas imediatasque pretende. Essas lutas desencadeadas em cada local, ao mesmotempo, tornam-se lutas nacionais, por saúde, educação, moradia,etc., e a elas vão se incorporando as reivindicações políticas contrao Estado, a classe dominante e o imperialismo, que jamais serãoatendidas sem que aconteça a revolução e os retire do poder.

Para que “estoure” a revolução é necessário que a populaçãoexplorada não queira mais ser explorada e por outro lado, que osopressores não consigam conter a fúria do povo através da repressãoe das falsas promessas. Acontece então que a classe dominante setorna incapaz de “controlar o aparelho do Estado, de modo a

5656565656 Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34

continuar governando como haviam feito até então”26.Há também que haver causas externas que possibilitem uma

crise internacional, onde fundamentalmente as grandes potênciasimperialistas tenham que empenhar seus esforços para resolveremquestões entre si, como é o caso de guerras por disputas de domíniode um território, crise econômica grave e paralelamente, o aumentoda solidariedade de classe entre os trabalhadores. Não podemosesquecer que as duas revoluções mais significativas no mundoaconteceram, a primeira na Rússia em 1917 dentro da PrimeiraGuerra Mundial; e a segunda, a chinesa, quatro anos após a Se-gunda Guerra ter terminado. Ou seja, nas crises internacionais,os inimigos, as potências aliadas se dividem, e com isso perdem ocontrole sobre os países dominados.

Esse processo atualmente no Brasil está ameaçado pelaincapacidade das forças de esquerda de formular um projetoque combine com o momento histórico e o torne organicamenteviável, e que se constitua numa força de vanguarda, tirando aclasse trabalhadora da apatia.

O imperialismo através da globalização, ao mesmo tempoem que desestruturou a economia trouxe também uma crisepolítica nas esquerdas, que interrompeu o processo de lutas,levando à desorganização total dos trabalhadores. “A esquerdalatino-americana ficou desconcertada e sem projeto alternativo;está vivendo uma profunda crise que abrange três terrenos: oteórico, o programático e o orgânico”27. As entidades de classeperderam suas forças de convocação e os movimentos populares

26 Marta Harnecker. A Revolução Social, SP p.77.

27 Marta Harnecker. Tornar Possível o Impossível. SP p. 317.

5757575757O MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a Cultura

se encontram em um momento de “onda baixa”, devido tambéma esta paralisia que tomou conta das organizações históricas.

Houve mudanças na estrutura da economia, no caráter dedominação e na estrutura de composição das categorias sociais;mas não houve mudança de conteúdo dos programas, dosmétodos e das formulações estratégicas dos partidos e entidadesclassistas, chegando inclusive a negação de princípios e valoresfundamentais, como a solidariedade e a vinculação com as mas-sas. Por isso é que chegaram ao seu esgotamento, e muitas de-las perderam a credibilidade. Há espaço para o novo, masdepende da criatividade que recoloque o trem da luta de classesem movimento, para que se retome a ofensiva e se crie mo-mentos revolucionários através das lutas de massas. Depende-seapenas de uma faísca para incendiar a palha seca, neste casofeita de miséria e exclusão.

Os momentos revolucionários darão qualidade a esta parti-cipação, elevando o nível de consciência das massas e forjarámilitantes e dirigentes de novo tipo.

É importante compreender e separar a participação inicialdas massas pela reivindicação econômica, lutando por reformasportanto, com a qualidade da participação seguinte, quandoaparecem reivindicações políticas, onde as massas passam a sesentir donas do processo. Sentem-se bem, tocadas pela sensibi-lidade coletiva e unificadas em torno de objetivos, idéias esímbolos.

Esta transformação subjetiva determinará a razão de parti-cipar e de preparar o corpo e a mente para fazerem-se presentesnas ações que empurram a revolução para frente. Não participaré um incômodo, uma “gastura” que parece corroer a consciênciae os sentimentos. A isto iremos chamar de mística militante,

5858585858 Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34

que empurra as pessoas a participar por conta própria, inclusivecom a fabricação de seus próprios instrumentos de defesa eataque, sem esperar toda hora pelo chamado da vanguarda, nemreclamando da estrutura e condições de trabalho prático, conver-tendo tudo isso em disciplina consciente.

É desta forma que a subjetividade vai adquirindo importânciae se desenvolvendo como a vontade, indignação, organização e aconsciência, de acordo com as condições objetivas encontradasna realidade como a exploração, fome, miséria e crises. Sem criati-vidade não há revolução. Neste momento, as duas condições tantosubjetivas quanto objetivas, se unem em uma só objetividade, ouseja, tudo tem que tornar-se objetivo, estar em condições derealização. É neste momento que matéria e espírito, ou matéria eenergia, ou matéria e idéias, ou vice versa, se ligam para possibilitaro “nascimento” do novo. Como se o escultor concebes-se e inicias-se a construção de uma estátua. Deverá empenhar ali “faculdadesfísicas e espirituais” como diz Marx: “no fim do processo detrabalho aparece um resultado que já existia antes, idealmente naimaginação do trabalhador. Ele não transforma apenas o materialsobre o qual opera; ele imprime ao material o projeto que tinhaconscientemente em mira, o qual constitui a lei determinante doseu modo de operar e ao qual tem de subordinar sua vontade”28 .

O projeto de sociedade a ser construído deve nascer antesda revolução acontecer em sua totalidade, e ir sendo construídojá na luta concreta pela transformação total. Esta concepçãoantecipada que em sentido figurado se assemelha a uma estátuaa ser esculpida, é que motivará os revolucionários a irem até o

28 Karl Marx. O Capital, Livro 1, Vol. 1, 1996 p. 202.

5959595959O MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a Cultura

fim, para verem a imagem concebida estampada na própriarealidade da sociedade, em parte já construída.

Ao analisar o massacre de 9 de janeiro de 1905 na Rússia,quando as forças repressoras atiraram contra a população indefesaque desejava entregar ao governo do czar um manifesto contra afome e a miséria, Lenin nos dirá que “o governo impulsionou arevolução para frente” e que “a classe operária recebeu umalição de guerra civil; a educação revolucionária do proletariadotem avançado em um dia como não pudera fazer a meses e anosde vida monótona, cotidiana, de opressão”29. Despertou,portanto, através de uma ação brusca, a criatividade e aimaginação da necessidade da construção de um projeto re-al-mente consciente.

Esta análise levará Lenin mais adiante a afirmar que “oamadurecimento das condições econômicas apenas não pro-duzem de forma automática uma situação revolucionária. Paraque a revolução seja possível é requerida a presença de “mil fatoresa mais”30. São estes “mil fatores” que dão identidade às revo-luções específicas e que depende de seus forjadores para quenão deixem para trás aspectos importantes, tanto da subje-tividade, quanto dos aspectos objetivos que contribuem paraque a revolução seja vitoriosa.

Temos uma análise muito madura sobre estas circunstâncias,e a existência do MST. Somos uma força política importante eao mesmo tempo limitada. Nosso objetivo é lutar pela reformaagrária, embora saibamos que ela somente se realizará natotalidade em um sistema socialista, mas nem por isso, como

29 V. Lenin. Obras Completas, Progresso, T. 9 p. 205.

30 Marta Harnecker. A Revolução Social, p. 55.

6060606060 Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34

movimento social, temos a pretensão de impulsionar sozinhos aconstrução desta grande obra, a revolução política, pois demandade muito mais força e muito mais representatividade. Mas, oimportante não é reconhecer a fraqueza mas descobrir comoampliar as forças.

Este entendimento aliás é uma das teses fundamentais domarxismo. “Os elementos materiais de uma subversão total são,de um lado, as forças produtivas existentes e, de outro, a formaçãode uma massa revolucionária que se revolte, não só contra ascondições particulares da sociedade existente até então, mastambém contra a própria “produção da vida” vigente, contra a“atividade total” sobre a qual se baseia”31. Sem essa revolta gene-ralizada, a idéia de revolução não se fortalece e não é possívelconcretizá-la.

Podemos dizer que, por duas razões a reforma agrária estáligada à revolução. A primeira por ela estar no campo das “re-formas” onde obrigatoriamente deve impulsionar a revolução parafrente através da luta pelas necessidades imediatas dos trabalhadoresSem Terra e da sociedade. A segunda razão está vinculada a esteconcebimento antecipado da sociedade socialista que pretendemosconstruir, onde a propriedade privada sofrerá mudanças profundasna forma de sua existência. Por isso é preciso iniciar a suareformulação agora já na conquista da terra, para que o novomodelo de reforma agrária sirva para preparar as bases de umnovo modelo de propriedade e de agricultura na sociedadeemergente. É neste sentido que a reforma adquire um caráterideológico, reforça e aguça as contradições do capitalismo.

31 Marx K, Engels F. A Ideologia Alemã, 1986, p. 57.

6161616161O MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a Cultura

O momento histórico que vivemos se caracteriza como pré-revolucionário e pode permanecer assim por muito tempo, comotambém pode rapidamente tornar-se revolucionário, esses sãoos dois períodos clássicos possíveis, onde a “humanidadeabandona a marcha de carro de boi, para avançar na velocidadede uma locomotiva”32 .

Nesse período em que estamos indo a passos de “carro deboi” qual deve ser nossa preocupação? A de forjar lutas e novasconsciências. Dar a partir disso, novo conteúdo aos valores queformam a conduta social. Empreender uma nova forma de pro-duzir a existência dos trabalhadores Sem Terra e acumular for-ças e experiências, através das lutas por reformas, para o mo-mento seguinte. Internamente, nas fileiras do MST, chamaremosde revolução cultural, porque temos fisicamente, historicamente,organicamente, moralmente e ideologicamente esta oportu-nidade e condições objetivas preparadas.

2.2. As possibilidades da revolução cultural

Teoricamente a revolução cultural somente seria possível eteria viabilidade após a tomada do poder pela classe trabalhadora,para assim retificar determinadas deformações adquiridas antesou durante o processo revolucionário, visando a implantação dosocialismo.

Paulo Freire a quem todos os revolucionários devem prestarhomenagens, ao aprofundar esse assunto fez uma diferenciaçãomuito clara entre “ação cultural” e “revolução cultural”33. Segundo

32 Marta Harnecher. Obra cit p. 71

33 Paulo Freire. Ação Cultural Para a Liberdade, 1982, p. 80.

6262626262 Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34

ele, a ação cultural está ligada ao “anúncio do projeto históricoa ser concretizado pelas classes dominadas em cujo processoa consciência semi-intransitiva como a ingênua são sobrepassadas pela consciência crítica – “máximo de consciênciapossível”34. Isto é, o anúncio do projeto histórico que se trans-forma em consciência crítica ao mesmo tempo que se preparaa sua realização, realizando o próprio anúncio através da ação.Segue dizendo que “assim, a ação cultural para a libertação,que caracterizou o movimento que lutou pela realização doanúncio deve transformar-se em revolução cultural”.

Esta consciência crítica se formará no fazer refletido. Açãoe reflexão são os elementos geradores desta consciência crítica.A ação oferece os elementos da reflexão e não as informaçõesrecebidas passivamente.

E aí nos deparamos com um suposto complicador, poisafirma Freire que “a ação cultural para a libertação se realiza emoposição às classes dominantes, enquanto que a revolução cultu-ral se faz com a revolução já no poder”35. O que poderíamosdizer que a revolução cultural é a revolução dentro da revolução.Logo, nossa política deveria ser traçada em torno da idéia da“ação cultural” e não da “revolução cultural”, já que ainda nãoestamos com o poder hegemônico em nossas mãos.

Mesmo considerando isto, é sabido que nossa organizaçãocresceu fazendo “ações culturais” pela realização da reforma agrária,que é pela origem, uma reivindicação conflitante, mas reformista,por sua realização depender do interesse do Estado burguês, “dentroda ordem”. Não há, portanto, quebra da ordem nesta política de

34 Idem, p. 82.

35 Idem, p. 84.

6363636363O MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a Cultura

desconcentração da terra, a não ser no momento da ocupação atravésda contestação pública do direito de propriedade que não cumprefunção social. Portanto, deveríamos classificar esta “ação cultural”contra a classe latifundiária e o Estado brasileiro, de reforma e nãode revolução. Mas há uma elevação significativa do nível deconsciência das massas através desta ação, e o processo decontinuidade organizativa após a conquista da terra, que se diferenciade uma ação ou da ligação entre algumas ações contra a classedominante por uma reivindicação temporária.

Mesmo dentro dos limites da reforma, esta ação de tomada dolatifúndio, é desencadeada contra, e não a favor da ordem, por serdirigida contra a concentração da propriedade da terra e o estado,que mantém este direito para um grupo muito reduzido36 há quase500 anos, desde a criação das capitanias hereditárias que evoluírampara sesmarias e posteriormente para latifúndio. Os ideais sãorevolucionários e como disse Florestan Fernandes: “os quecombatem a ordem não podem substituir seus ideais revolucionáriospela salvação da ordem”. Somos, desta forma, lutadores contra aordem do latifúndio e consequentemente contra a ordem dapropriedade privada da terra.

Ocorre também, que segundo a teoria marxista, como vimosacima, temos dois períodos distintos na revolução, o pré-revolu-cionário (mais lento) “onde as massas seguem a passos de carro deboi” e o revolucionário (mais rápido), “onde as massas abandonamo carro de boi e seguem de locomotiva”. Desta forma podemosafirmar que, a nossa “reforma” não é a mesma reforma da classe

36 Estima-se hoje que apenas 40 mil proprietários concentram cerca de 400 milhões de

hectares de terra, que significa a soma de 10 mil hectares em média para cada um. VerStédile, O latifúndio, In 7 Pecados do Capital, Record, RJ.

6464646464 Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34

dominante, ela tem outros ideais e já se configura (embora a passoslentos) em uma revolução, ainda dentro do momento pré-revolu-cionário, enraizado nas lutas econômicas. Por isso se torna difícilclassificar o que é e o que não é revolucionário nesse estágio deluta. Mas, de qualquer forma, não é o caráter da ação que diz se oprocesso é ou não revolucionário, mas sim a direção para ondeestá apontando.

Se tomarmos como referência o conceito de acúmulo de for-ças e acrescer a ele, como exemplo, um elemento da arte militar,diríamos que um assentamento é um quartel de preparação detropas para novas ações a serem desencadeadas, até se conseguiratender todas as questões que compreendem a realização dareforma agrária, que vai além da distribuição da terra, e seguedaí para a esfera política, com a elevação do nível de consciência.

Por isso, aqui reside a fundamentação de nossa proposta.Entendemos que já temos mais de 15 anos de idade enquantoorganização, e muitas conquistas e experiências acumuladas. Háum poder instituído em determinadas regiões do país, atravésda conquista de territórios e da influência social.

Nesta trajetória, assistimos a muitas quedas, não só demuros, mas também de referências organizativas que perderamseu brilho, e nos deparamos com um momento histórico, ondeos recuos ideológicos e políticos fazem ondas e podem nos atingire descaracterizar nossos objetivos e nosso comportamento.

A nossa reforma, portanto, tem elementos de revolução ede preparação das forças para os passos seguintes, pois é umaexigência imposta ao estado que não tem interesse em fazer areforma agrária, por seus objetivos agropecuários “serematingidos” com outros métodos.

A terra passa a ser, neste momento, disputa e acúmulo de

6565656565O MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a Cultura

poder em três sentidos: o primeiro, é que ao conquistarmos aterra, derrotamos a classe latifundiária que durante 500 anos, desdea instalação das capitanias, onde o Estado através da Coroaportuguesa oficializou o latifúndio, vem controlando grande fatiada esfera do poder político no país, mas que começa a ficarenfraquecido pelo avanço da conquista da terra por parte dostrabalhadores. O segundo, porque o Estado brasileiro se vergaperante os desvalidos produzidos pela exclusão do capital e obriga-se a legitimar a organização deste contingente populacional que“unifica sua vontade” em torno da identidade de contestação e luta,e obriga-se a dividir o poder da solução de um problema estruturaldo país contra as orientações de seu modelo econômico. E terceiro,porque ao conquistarmos a terra, a organização dos Sem Terra,passa a ser uma referência política e social com condições de con-trolar o espaço geográfico, onde a conquista da terra e também oespaço social interno e ao redor de sua instalação comunitária.

Há portanto, uma estruturação permanente onde se repro-duzirá relações específicas, tanto sociais quanto de produção emnovas bases, neste momento em quase 20 milhões de hectares deterra conquistados pela luta direta. Por isso podemos dizer que háum poder territorial instituído através da conquista da terra, queapresenta características revolucionárias, porque os agentes destaconquista tendem a ligar a luta pela terra com o socialismo, ele-vando assim a qualidade da consciência.

Essa estrutura em formação no assentamento não deveriaser desmanchada com o alvorecer do socialismo, já é o embriãose constituindo através de novas relações e, portanto, de umnovo jeito de fazer acontecer a existência individual e social.

Não podemos, dentro da reforma, estabelecer uma políticade reformas simplesmente, pois estaríamos apenas nos propondo

6666666666 Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34

a permanecer dentro da ordem, colocando sobre as velhas relaçõeselementos das relações capitalistas atuais, simplesmente para nãosermos extintos enquanto produtores rurais. Seria o mesmo,voltando para a imagem do quartel, o indivíduo entrar para ele econtinuar com o mesmo comportamento anterior. Ocuparáespaço diferente, mas não haverá mudança qualitativa. De nadavalerá aumentar a quantidade sem aumentar a qualidade.

De certa forma já fizemos essa reforma dentro da reforma,no estágio da luta pela terra e em aspectos mais recentes, porqueas circunstâncias nos obrigavam a dar determinados passos. Embo-ra isto tenha significado grandes avanços, mas não foi o suficientepara impulsionarmos uma transformação consistente nas áreasconquistadas. Senão vejamos: instituindo a legalização chegamos àinstitucionalização através das cooperativas e estamos desenvolvendoa cultura do legalismo, através do cooperativismo. Reformandonosso comportamento através da reflexão sobre os valores, chegamosao trabalho “voluntário” esporádico no relacionamento com asociedade. Reformando nossa estética, chegamos até o “embele-zamento” deficiente de nossas casas e vilas. Reformando nossoconhecimento, chegamos até os cursos básicos das escolas e cursosnacionais sem muita criatividade na base. Reformando nossasrelações humanas, chegamos à composição do setor de gênero.Reformando nossa política de organicidade, chegamos até aconstituição dos núcleos de família, mas não aumentou a partici-pação nas mobilizações, etc. Chegamos assim a um tipo deorganização forte mas natural, controlável e suportável pela ordem.Pelo lado humano, forjamos um tipo de camponês adaptável aomeio regional que sofre junto com a destruição da natureza, e nasua passividade, não é um elemento aglutinador novo, a partir doterritório que ocupa e controla. De certa forma, podemos destacar,

6767676767O MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a Cultura

tomando como referência a história da águia e as galinhas,37 ondeos Sem Terra foram águias no momento do vôo para a ocupação,os que ficaram para trás foram as galinhas, mas aos poucos no meioem que estamos, voltamos a ser galinhas, pois paramos em umlugar fixo para “ciscar” em torno de nossos interesses e não dosinteresses da revolução. Desta forma, construímos nossa novaexistência com elementos da velha cultura, que nos faz perder ocaráter extraordinário do primeiro momento.

A revolução cultural deverá ser esse “nascimento” ou renas-cimento doloroso, para ao mesmo tempo, em que resistimos aocapitalismo, instalarmos uma nova ordem territorial, comelementos que não mudem apenas as aparências, mas tambéma essência do modo de produzir a existência pessoal e social dascomunidades camponesas. É preciso despontar com alternativasinovadoras e contestadoras, que se configurem em um novopadrão de comportamento.

É preciso porém reconhecer que em determinados aspectosjá avançamos muito independentemente da vontade do Estadoburguês, e especificamente contra a ordem, porque não é fácilgarantir educação para 200 mil crianças independente da políticaestatal, com uma proposta pedagógica própria. Não é comum seproduzir sementes agroecológicas sem recorrer a agrotóxicos enem adubos químicos, também não é comum colocar em viagempelo mundo em média 60 camponeses por mês, para estabelecerrelações e trocar experiências com outros povos. Não contandocom a composição de redes de apoio como advogados, pedagogos,médicos, etc. e a formação política e profissional de milhares de

37 Ver Ademar Bogo. In Valores de Uma Prática Militante, Caderno de formação da Consulta

Popular, 2000.

6868686868 Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34

pessoas, ao mesmo tempo em que se produz literatura com funda-mentação científica e revolucionária.

A preocupação atual é, portanto, despertar as contradiçõespara garantir o avanço do MST e sua sustentabilidade históricaatravés da “ação cultural” organizada externamente e antecipara “revolução cultural” interna mesmo sem termos chegado aopoder do país. Mas desta forma pretendemos contribuir com aclasse trabalhadora para chegarmos lá.

Afirmamos então ser possível realizar a revolução culturalno campo, antes mesmo de conquistar o poder do Estado nopaís, porque já estamos ou temos potencial de produzir nossaexistência de forma independente, dentro de nossos territóriosconquistados, fazendo ali não só plantações de árvores, mas umanova cultura com novas relações.

É possível estabelecer um novo tipo de propriedade da terra,produzir sem prejudicar a natureza, preservando as florestas e cuidarda vida das espécies; transformar os latifúndios em lugares agradáveis,bonitos e recompor as florestas, devolvendo a água aos córregossecos; estender para as comunidades próximas nossas conquistas;avançar nas relações pessoais e no aperfeiçoamento da democraciainterna; iniciar a gestação de um novo tipo camponês com novoshomens, novas mulheres, jovens e crianças; desenvolver a solida-riedade de classe; participar de todas as lutas contra a opressão;ensaiar a convivência de valores com novos conteúdos; enfim,estabelecer embriões do novo para que se antecipe as característicasda sociedade socialista e quando lá chegar, não tenhamos quedesmanchar tudo por estar contaminado com o vírus do capitalismoou então nunca chegar, porque o peso dos vícios, desvios e interessespessoais, dobram nossas pernas impedindo que demos passos emdireção á libertação, sempre aperfeiçoando e diversificando as formas

6969696969O MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a Cultura

de luta. É isto que entendemos por revolução cultural e acreditamosser possível desencadeá-la para, de fato, não sermos apenas referênciade força, mas também de alternativas, valores, virtudes e ternura.

O agrário para nós deve se transformar em agrado, agradável,para todas as espécies e para todos os seus descendentes.

Possivelmente seremos questionados por esse intento, masestamos justamente fazendo o possível de hoje para viabilizar ascondições da realização do impossível amanhã.

É neste período pré-revolucionário que buscamos, atravésda terra, recriar os seres humanos e os sonhos de libertação. Entãosonhamos com o poder? Claro que sonhamos; como qualquerser político sonha. Ele é a única possibilidade de pôr fim à tiraniaimplantada em nosso país há cinco séculos.

Neste longo caminho de dominação fomos acumulandoheranças. Obrigatoriamente somos induzidos a recebê-las já aonascer. Mas assim como as recebemos também podemos renunciá-las e devolvê-las a quem nos entregou.

Essa herança da miséria, do analfabetismo, da desnutrição, daindigência, da exclusão social, da deformação do comportamentoe das relações sociais foi o que nos legaram os precursores docapitalismo. Na medida em que nos conscientizamos, renunciamosa elas e nos tornamos desobedientes, para buscarmos por contaprópria o remédio para tais males, e se assim o fizer, venceremos.

Temos recebido muitas influências que nos fizeram errarneste processo de reconstrução da vida política, econômica esocial, e por isso ainda carregamos o peso da velha cultura dasociedade burguesa que nos ensinou que se “pode vencer so-zinhos”, por isso a cooperação e a solidariedade têm dificuldadesem desenvolver-se.

A busca da auto-estima é fundamental para reconstruir o

7070707070 Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34

ser humano que teima existir, embora as forças destruidoras, osvícios e os hábitos oportunistas se manifestem a todo momento.

Na vida política e organizativa também acumulamos defeitoscomo a máquina de plainar que vai acumulando a seus pés toda amaravilha esculpida da madeira que alisa. Ao mesmo tempo emque embeleza e dá forma de objeto à madeira, acumula a seuredor, lixo que deve ser eliminado para que a máquina não pareasfixiada pela montanha de detritos que ela mesma produziu.

O desconhecimento da ciência, da filosofia e da arte nos dáem certos momentos a sensação de que sabemos tudo e por isso àsvezes temos por um lado, receio dos intelectuais e por outro,arrogância, porque empenhamos a força e acreditamos que atravésdela tudo se resolve. Não se resolve. Há momentos em que ainteligência tem mais poder que a força, por isso é preciso partirdos conhecimentos elementares para posteriormente entrarmos noestudo mais avançado das ciências, das técnicas, filosofia, política.É fundamental eliminar a distância criada pelo capitalismo entretrabalho intelectual e trabalho manual. Nossa revolução cultural épela diminuição das diferenças e pela eliminação dos preconceitose desigualdades. Aquele que julga não saber deve provar porquenão sabe. Neste momento estará buscando a saída para saber.

Como disseram nossos antigos mestres “falar em revolucionaruma sociedade significa que, no bojo mesmo da velha sociedade,formaram-se elementos da nova sociedade e que a queda de velhosconceitos acompanham a queda das antigas condições de vida”38. Éesta relação que pretendemos estabelecer com a revolução cultural,mexendo na subjetividade para ir eliminando aos poucos, juntocom o desenvolvimento das forças produtivas, os desvios criadosna produção da existência em todos os tempos por onde passou ahistória da humanidade, sempre marcada pela luta de classes.

38 Marx, Engels. Manifesto do Partido Comunista, Global Editora, 1986, p. 34.

7171717171O MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a Cultura

3. Pilares de nossarevolução cultural

Chamamos de pilares as referências básicas que funda-mentam nossa revolução cultural em marcha. A partir de taisreferências se desdobram os métodos e as diretrizes que imple-mentam o projeto da revolução cultural. Quais são estes pilaresbásicos?

a) A autodeterminaçãoA autodeterminação é a condição fundamental para poder

construir e construir-se neste caminho na existência presente.Temos, porém, uma dicotomia política interna, que se mate-

rializa na contradição, ação-passividade. Quando organizamosuma ocupação de terra, estamos organizando para a ação, quandoorganizamos um assentamento, estamos organizando para apassividade; nesta passagem de um estágio para outro, diminuinossa autodeterminação em relação ao projeto de reforma agráriae regredimos na ação direta ao invés de progredir. Desta maneiraas pessoas vão perdendo a motivação, como um pássaro queperde a autonomia de vôo, a radicalidade, e o envolvimento nassoluções dos problemas.

É preciso considerar cada Sem Terra um guerreiro a qualquertempo, por ser este um ser social especial, forjado em novascondições sociais e políticas. Quebrar as cercas das limitações queimpedem o assentamento de se desenvolver em todas as dimensões.Influir por outro lado, nas comunidades vizinhas aosassentamentos para que se possa ampliar o raio de abrangência denossa revolução cultural. Ela deve ser camponesa e não somente

7272727272 Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34

Sem Terra. O campo precisa florescer de camponeses, e camponesessão todos aqueles que sofrem com a exploração capitalista.

Através da recriação das relações sociais e de produção,estaremos vislumbrando através das frestas do tempo, os sereshumanos que teremos no futuro como verdadeiros habitantesda terra. Que na sua autodeterminação saibam respeitar osdireitos das demais espécies que também terão direito a perseguirseus objetivos.

Sendo assim, não devemos temer em estender as conquistasa outros camponeses que supostamente não fazem parte de nossouniverso de Sem Terra. Nossa obrigação é desenvolver o interiordo país e contribuir com os conhecimentos extraídos daexperiência histórica.

A autodeterminação também está relacionada com a auto-sustentação. Quando as organizações populares não conseguemcaminhar com suas próprias pernas e escoram-se nos ombros deONGs, significa que pouca autonomia possuem e subordinam aidéia de liberdade aos interesses das entidades, dos governos e doimperialismo norte-americano. “De certo modo, as ONGsassumiram as funções anteriormente cumpridas pelas agênciasestatais, o que permitiu aos governos nacionais a redução da suaresponsabilidade pela promoção do bem-estar da população”39 .De qualquer forma, grande parte delas são instrumentos desubmissão que modificaram seus aparatos, mas que nãomodificaram a ideologia, embora utilizem métodos forjados naorganização da luta popular, agora para dominar o povo.

Autodeterminar significa, portanto, ter vontade e consciência

39 James Petras. Neoliberalismo: América Latina, Estados Unidos e Europa, 1999 p. 72.

7373737373O MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a Cultura

de escolher o caminho que se queira trilhar para alcançar asmudanças necessárias, para libertar da exploração milhares depessoas.

b) A inter-relação entre as espéciesHá uma relação muito íntima entre todos os elementos

que compõem nosso planeta. Estamos vivendo um momentohistórico importante e significativo para nossa geração. O motivoé que para determinadas coisas é como se a humanidade tivessepercorrido, até aqui, a metade exata do caminho da construçãoe destruição do planeta terra.

Desde que se formou o planeta Terra, há milhões de anos,até meados de 1950 a humanidade havia devastado metade dasflorestas do mundo. Nos últimos 30 anos foram devastados sóno Brasil 600 mil km2 da floresta amazônica; isto é equivalentea todo o território da Alemanha40. Significa que estamos fazendo,em poucas décadas, o que a humanidade não conseguiu fazerem milhões de anos: devastar o planeta matando as árvores.

Esta devastação e poluição produzem outros dois fatores, aerosão e o aquecimento da terra. Nos últimos 100 anos a terraesquentou 0,6o (zero virgula seis graus centígrados) e nos próxi-mos 100 anos poderá esquentar até 5,5o C (cinco vírgula cincograus centígrados). Isto significa que haverá enormes catástrofesporque com a destruição da camada de ozônio, não haverá maisfiltro solar, e os raios do sol que vinham beijar a terra, virão paraferi-la e queimar todas as espécies de vida.

Esses desequilíbrios estão levando a desertificação da terra.Somente a partir de 1972 o surgimento de desertos cresceu ao

40 Leonardo Boff. O Ecocídio e o Biocídio, In 7 Pecados do Capital. RJ 1999, p. 38.

7474747474 Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34

tamanho das terras agricultáveis da China e da Nigéria juntas, eperderam-se 480 milhões de toneladas de solo fértil41 por causada erosão.

Com a secagem dos córregos e rios, a água doce tambémdiminui rapidamente e em algumas partes do planeta, já beira aextinção. Os cientistas alertam que para o ano 2.025, haverácrise de água doce e as próximas guerras poderão acontecer paradisputar a água e não mais o petróleo.

Com todos estes desequilíbrios, produção de lixo em excessoque leva até 100 anos para se decompor – como é o caso dealguns tipos de plásticos –, e no caso do lixo radioativo, que levaaté 100 mil anos para se deteriorar, sendo um atentadopermanente contra a vida das espécies, onde estima-se que 10delas42 são extintas para sempre todos os dias.

A reforma agrária não pode ignorar esses desequilíbrios, e nossaintervenção deve ser para contestar e inverter tal ordem, inaugurandoum novo tempo para agricultura com características revolucionárias,despoluindo através de novos métodos de produzir deixando deenvenenar os rios, a terra e o ar, refazendo as florestas, produzindoassim um novo tipo de camponês, que saiba se relacionar com asdemais espécies de vida, respeitando seus direitos e coordenandosua reprodução para evitar desequilíbrios. Dentre todos os tipos deseres, os camponeses estão mais próximos da imagem e semelhançado criador, porque lidam diretamente com a terra e a água de ondeprovém a vida de todas as espécies. O que nos falta é saber comocomandar essa orquestra, para que a sinfonia da vida não desafine,mas que dê satisfação aos ouvidos de todos os seres vivos.

41 Idem, p.37.

42 Ibidem, p. 37.

7575757575O MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a Cultura

c) A continuidade históricaHá uma relação também íntima entre o presente e o passado,

deles depende a construção do futuro que ainda não existe mate-rialmente, por isso sempre se apresentam através de idéias,sonhos, esperanças e objetivos.

Todas as coisas e espécies possuem as matrizes que lhes deramorigem. A existência de todas as coisas tem memória registrada,que revelam a trajetória de cada uma em particular. Memória querevela sabedoria e foi forjada no fazer e no pensar, a qual chamamosde história.

Nada pode surgir do nada. Portanto, o resgate da memóriaserve para revelar a origem das coisas. Seu resgate possibilita nosorientar para prosseguir ou desviar caminhos, e aperfeiçoar ospassos, caso entendamos que nossos antepassados já passarampor essa experiência e ao viver, nos alertaram para não cair emciladas armadas pelas contradições concretas.

Esta existência produzida por outras mãos, que se trans-formou em cultura, é que nos interessa para edificar nossa própriaexistência, com características de uma nova cultura.

Somos portanto, continuadores e alimentadores de sonhosde nossos antepassados. Nossa obrigação é entregá-los aos nossosdescendentes como herança, para o aperfeiçoamento da huma-nidade. Quanto mais souber e fizer de bom, mais deixaremos deherança. Quanto menos souber, menos virtudes conhecerão nossosdescendentes.

Há também coisas negativas na memória histórica, que asgerações carregam sem perceber que este lixo de atitudes pesasobre as consciências mal formadas pela influência social. MáximoGorki relata de forma simples a herança deste lixo histórico quecarregamos. “Um domingo, quinze dias depois da morte do

7676767676 Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34

pai, Pavel Vlassov entrou bêbado em casa. Chegou cambaleandoao canto dos ícones e, dando um soco na mesa, como o paifazia, gritou:

- O jantar!A mãe aproximou-se, sentou-se ao lado dele e, abraçando-

o, aconchegou no peito a cabeça do filho. Este, apoiando umamão no ombro dela, afastou-a e gritou:

- Vamos, mãe, e despacha-te!...- Tontinho! – disse ela numa voz triste e carinhosa,

quebrando a resistência de Pavel.- E quero fumar! Dá-me o cachimbo do pai....

Era a primeira vez que se emborrachava. O álcool enfra-quecera-lhe o corpo, mas não perdera a consciência das coisas”43.

Esta memória negativa é que nos faz reagir de determinadasformas, às vezes incompreendidas, mas que a revolução culturalterá que priorizar para que de fato se possa modificar a realidadedos hábitos e comportamentos.

O que está na consciência social formada pela existênciasocial vivida anteriormente, deve ser analisado e na medida dopossível ultrapassado, colocando sobre este lixo de compor-tamentos errados, gestos com novos conteúdos.

d) A arte de fazer o beloA estética, como dissemos, é a área do conhecimento que

cuida da beleza. Isto quer dizer que nascemos para o belo eprecisamos descobri-lo para admirá-lo.

Mas a revolução cultural quer ir além de perceber o belo,quer buscá-lo e recolocá-lo como parte integrante da vida social.Encontrar o belo que existe dentro de cada pessoa, o belo que existe

43 Máximo Gorki. A mãe, Moscovo, 1987, p. 10.

7777777777O MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a Cultura

na convivência social, o belo das flores do campo, da natureza livre,o belo do modelo de nossas casas, dos quintais e dos jardins e funda-mentalmente, o belo da existência de nossos sonhos.

Há utopia também no belo, pois jamais o alcançaremos natotalidade. É preciso, portanto, despertar para sua importânciana luta de classes e na vida, para que renasça com a revoluçãoem circunstâncias agradáveis e sustentáveis.

O modelo adotado pela classe dominante, atualmente, nãoé mau propriamente pelas características da globalização, isto jáestava previsto que ocorreria pelo desenvolvimento natural docapital, que se move através do mercado. “A burguesia não podeexistir sem revolucionar, constantemente, os instrumentos deprodução e, desse modo, as relações de produção e, com elas,todas as relações da sociedade. (...) A necessidade de um mercadoem expansão constante para seus produtos persegue a burguesiapor toda a superfície do globo. Precisa instalar-se em todos oslugares, acomodar-se em todos os lugares, estabelecer conexõesem todos os lugares”44. A perversidade desse modelo vem dainibição da capacidade de criar, por isso as pessoas passam aacreditar que tudo já vem pronto, e perdemos a qualidade maisprofunda e digna do ser humano: sentir que somos criadores.

Cada um a seu modo somos todos artistas, pintores, poetasescultores e fundamentalmente arquitetos de nossos sonhos, porisso precisamos resgatar na juventude e em todas as pessoas estavontade de criar, para que aquilo que nossas mãos edificam tenhabeleza.

Este contato com a beleza ajuda a educar os demais sentimentos,

44 Marx. K. Engels F. O Manifesto Comunista, 1998, p. 13 e 14.

7878787878 Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34

como contemplar a natureza por ser a fonte da vida e de “todos osvalores de uso”45 e que muda permanentemente nas várias estaçõesdo ano. Somente os contemplativos conseguem perceber estasmudanças de caraterísticas da beleza natural. Com isso, despertaa capacidade da valorização das qualidades infinitas que há nacombinação da vida das espécies e também das pessoas nasociedade.

Podemos dizer que a estética é um lugar imaginário onde secruzam e se chocam distintas valorizações, onde constantementehá uma luta de idéias46. Para resolver estas contradições de idéiasa alternativa é formar “a consciência estética”.

Temos então a oportunidade de criar e sentir. A partir davisualização fazemos juízos de valor de acordo com a capacidadede agir e de analisar que temos, em contato com o belo. “Existemcapacidades artístico-executivas e artístico-criadoras. Asexecutivas dão possibilidades ao homem de reproduzir umas ououtras linhas da beleza das obras artísticas e do mundo que nosrodeia. Sobre a base das capacidades executivas se formam ascapacidades criativas, as quais ajudam o homem a produzir obrasoriginais ou dar a interpretação de outras obras de arte”.47 Estascapacidades, efetivamente, se entranham na formação dapersonalidade de cada ser humano e dela fará parte, atraindo asimpatia e a admiração dos seres sociais que com ele convivem.

Nascemos para o belo quando descobrimos sua importânciapara a vida humana. O gosto de fazer bem feito é apenas conse-

45 Marx. K. Crítica al Programa de Gotha. Moscou, 1979 p. 10.

46 M. A . Verb La Educacion Estética de Los Escolares. In Teoría Y Metodología de La

Educación. Comunista Em La Escuela. Editorial Pueblo y Educación. La Habana. 1978 p.220.47

Idem, p. 225 e 226.

7979797979O MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a Cultura

qüência desta consciência estética formada a partir da experimen-tação da beleza no fazer e no sentir quotidianamente.

Os artistas e poetas assumem nesta área, a condição de líderespolíticos, por isso a estética sendo a arte de desenvolver o belo,está profundamente ligada à ideologia, não existe obra de artesem representação, por onde a mensagem passa desenhada,esculpida ou musicada, dizendo algo que toca a profundidade daconsciência humana que sente prazer em poder chegar cada vezmais próximo da beleza.

e) A linguagemA linguagem está intimamente ligada à ideologia, isto porque

comunicar é transportar idéias de uma consciência para outra atravésde algo que represente para os seres humanos as coisas e relaçõesque existem entre elas, expressando vontades, sentimentos, interessesetc. No dizer das coisas entendemos o que devemos fazer contra oua seu favor.

“Tudo o que é ideológico possui um significado e remete aalgo situado fora de si mesmo. Em outros termos, tudo o que éideológico é um signo. Sem signos não existe ideologia”48.

A tese nos mostra que a ideologia não é algo abstrato, pelocontrário, é concreta; e os signos – que são objetos materiais –,também são instrumentos da linguagem. Por isso é que todo objetotem ideologia representada em si. A palavra passa a ser o elementofundamental, ela é o fenômeno ideológico por excelência,49 sendoesta o elemento aglutinador nas relações sociais.

A terra, para nós que lutamos por conquistá-la, tem lingua-gem e ideologia como objeto de disputa e é através dela que

48 Mikhail Bakhtin. Marxismo e Filosofia da Linguagem, 1997, p. 31.

49 Idem, p. 36

8080808080 Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34

impulsionamos a organização que se comunica através de pala-vras e signos.

Assim também as árvores, as águas, as cores, as casas, escolase a vida têm um profundo sentido ideológico quando se tornammotivo de luta. Marx e Engels interpretaram corretamente essaquestão ao dizer que: “a produção de idéias, de representações, daconsciência está, de início, diretamente entrelaçada com a atividadematerial e com o intercâmbio material dos homens como lingua-gem da vida real. O representar, o pensar, o intercâmbio espiritualdos homens, aparece aqui como emanação direta de seu compor-tamento material”50. Esta linguagem em formação permanenteque se desenvolve através da produção de idéias e coisas, faz ahistória seguir em frente.

Há uma onda de patenteamento dos inventos por paísesricos em países pobres que possuem matérias-primas muito maisdiversificadas que estes. Mesmo que aleguem o direito dapesquisa científica para poderem avançar nas descobertas, nãopodemos aceitar o patenteamento da vida que será controladapelos interesses do imperialismo que se instalará em nossoquintal, para expropriar o que temos de bom e fazer as empresasmultinacionais enriquecerem ainda mais, com aquilo quepertence a todo nosso povo. Além do mais, isto nos prejudica,porque aos poucos perdemos a memória histórica de nossos pró-prios inventos, descobertos pela força da experiência e momentosde necessidade de nossa classe.

Estes interesses falam sua própria linguagem e estabelecem umarelação de expropriação de algo que favorece o enriquecimento de

50 K. Marx F . Engels. A Ideologia Alemã, SP, 1986, p. 36.

8181818181O MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a Cultura

grupos econômicos, através dos novos nomes que darão à matériaprima transformada. Através de uma nova linguagem, ganhammuito dinheiro.

A linguagem ideologicamente definida adquire papel cadavez mais importante, porque nos ajuda a perceber as coisasque existem e a forma como existem. Além, é claro, de possi-bilitar a instalação de um diálogo franco, sincero e democráticocom todos os tipos de vida. A voz do corpo é semelhante à vozque sai da garganta. A voz dos pássaros é a mesma que a vozdos poetas. A voz das árvores é a mesma que a voz das crianças.A voz das cores é a mesma que a voz da luta, da resistência e datransformação, quem pode confirmar isto é a consciência esté-tica que desenvolvemos em nós. Todos os objetos se comunicamentre si ou com o ser humano. Ocorre que na maioria dasvezes essa comunicação é autoritária e sem respeito.

Não existe a ideologia do silêncio. Existe a ideologia darepressão que impõe o silêncio. Os revolucionários somente osão porque escutam todos os ruídos e aprendem a comunicar-secom todas as coisas, a partir de quando descobrem suaimportância para o fortalecimento da revolução.

Portanto, nossa revolução pretende libertar a linguagem paraque haja um franco diálogo entre todos os objetos, espécies ecores nesta integração da vida com o planeta.

f ) O conhecimentoO conhecimento é a apropriação concreta dos elementos

que compõem a realidade com a qual nos relacionamos ebuscamos a partir de nossos interesses meios e formas detransformá-la. Esta transformação da realidade concreta tambémserá uma autotransformação de quem a transforma.

A fragilidade humana obrigou, ao longo dos tempos, os

8282828282 Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34

seres humanos a organizarem-se em sociedade, essa descobertatransformou-se em cultura que se desenvolve através do contatofísico, social e sentimental.

O conhecimento é algo construído através do esforço e dareflexão humana que se acumula não somente no cérebro, mastambém nos demais órgãos do corpo que devem desenvolverestrutura e habilidades para executarem os movimentos sugeridospelo cérebro.

O conhecimento embora tenha no cérebro seu ponto dereferência de desenvolvimento não pode ser entendido comoalgo apenas racional. Coloca-se a vida em andamento para sebuscar conhecimento e a vida não é apenas força física e racio-cínio, mas também emoções, prazer e muito mais.

A busca do conhecimento deve emocionar o ser humanoatravés das descobertas que faz e isto deve lhes dar prazer, tantono nível do dever cumprido quanto na sensação de bem estarque faz do ser humano mais humano e o incentiva a seguirprocurando conhecimento.

A experiência individual e coletiva é a referência básica doconhecimento. Sempre que surgem dúvidas, o cérebro automa-ticamente liga-se ao passado, a tendência natural é comparar asituação atual com outra situação já vivificada, para daí tomaruma decisão.

Há o conhecimento que se desenvolve através dos sentidosque não pertence apenas ao ser humano. Há indícios de que hácerca de 250 milhões de anos o cérebro dos répteis era o quehavia de mais complexo,51 devido ao desenvolvimento da visão.

51 Laerthe Abreu Junior. Conhecimento Transdisciplinar, 1996, p. 131.

8383838383O MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a Cultura

Os mamíferos, da mesma forma, segundo a mesma fonte, foramobrigados a usar a noite para escapar dos ataques e por issodesenvolveram o sangue quente para poderem ficar acordados ànoite e assim desenvolveram a audição e o olfato, pela necessidadede andar no escuro.

As necessidades históricas fizeram com que o ser humanodesenvolve se cada vez mais a habilidade dos sentidos. Quandose sentiu limitado, passou a inventar instrumentos para aproveitá-los ainda mais, como lentes de grau, microscópios etc.

Essas descobertas das ciências vão se acumulando comopatrimônio da humanidade, colocado à disposição das geraçõesfuturas.

Mas tal conhecimento não vem de dentro do cérebro masfora dele. Isto quer dizer que os pensamentos, a consciência, sãoreflexos do mundo em que vivemos52. O cérebro tem a funçãode registrar o que está fora de si, assim é que se forma a expe-riência histórica. O ambiente que tivermos capacidade de edificarse tornará conhecimento pelo simples fato de estar localizadono espaço de nossa convivência.

Para nós o conhecimento deve ser um pilar fundamentalpara desenvolver nossa revolução cultural, pois devemos resgatarexperiências positivas e compará-las com nossa realidade parachegar a uma síntese exata do que devemos fazer, para evitarinfluências de conhecimentos atuais que prejudicam o avançoda organização social e de produção no campo.

g) A imaginaçãoNossa revolução cultural tem um pilar que é a imaginação.

52 Lenin. V.I. Materialismo e Empiriocriticismo, Lisboa, 1982, p. 7.

8484848484 Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34

É necessário imaginar o futuro que queremos para poder iniciarsua edificação no presente. As ciências nos ajudam a materializaratravés dos planos aquilo que desenhamos com os pensamentos.

Não podemos acreditar que desenho animado desperta acriatividade, muito pelo contrário “domestica” a consciênciainfantil, como faz a “família de patos trajados de gente”, nahistória em quadrinhos do Tio Patinhas. “Alojados na nossainteligência, esperam demarcar aí a posse ilícita do terreno emque pretendem vegetar na continuidade do imobilismo em queforam gerados e que constitui a razão de ser de sua existência”53.

Precisamos ensinar nossas crianças a animarem os própriosdesenhos reais que se transformam em brinquedos, dando-lhesnomes após tê-los fabricado. As fantasias são benéficas quandoincentivam a transformar a realidade, quando inibem a açãorevolucionária, são maléficas e devem ser combatidas.

A fantasia deve aproximar-se do mundo real para que aspessoas possam criar alternativas viáveis e sustentáveis. Porexemplo, cada família assentada tem direito, além da terra paratrabalhar, a uma casa para morar. Esta casa não poderá serconstruída baseada em plantas dos palácios que aparecem natelevisão, mas tão pouco devem ser aceitas as que o governopropõe que são de 42m2, independentemente do número depessoas que compõe a família, não contando que a planta deuma casa, serve para todas.

Desta forma a consciência imaginativa perde seu potencialde crescimento por não estar ligada a um projeto de criaçãoautônoma. Não se pode imaginar o que já está imaginado. Assim

53 José de Souza Martins. Sobre o Modo Capitalista de Pensar, 1982, p. 3.

8585858585O MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a Cultura

é o mundo de fantasias do capital, tudo já está imaginado, nãosobra espaço para imaginar, tudo está pronto para consumir.

A revolução cultural que pregamos é justamente para invertertal ordem, que se estabeleceu autoritariamente na sociedade e nostornou vítimas dela. Queremos inverter esta ordem através damudança nas relações sociais e produtivas, que se sustentem pelasua evolução e não pelo seu congelamento alienado.

A imaginação deve adquirir caráter “intuitivo” e se alimentarda sensibilidade nas relações sociais e humanas, fazendo-nosacreditar que cada revolucionário é um artista da revolução. “Overdadeiro artista intui a forma organizadora dos objetos oueventos sobre os quais focaliza sua atenção. Ele vê, ou ouve, oque está por trás da aparência exterior do mundo”54.

A imaginação deverá adquirir uma encarnação material, sejacomo objeto físico, som, melodia, corpo humano, etc. Osmonumentos criados para resgatar a história e simbolizar a existênciade um período significativo da vida de pessoas que entregaram seuesforço e sua vida para edificar as idéias imaginadas, cumprem umpapel altamente questionador da ordem e apontam para o futuro,como sinal de que ainda há história para ser feita.

Imaginar, portanto, é querer encontrar-se no tempo histó-rico construindo com as mãos o que dizem os sentimentos.

h) A utopiaA utopia é o pilar do combustível que alimenta o motor

desta revolução. Os passos dados emanam energia que incentivama seguir em frente. A razão desse caminho está na causa conscienteque se gestou coletivamente. Sendo assim, a energia como vontade

54 Aranha, Maria e Martins, Maria. Filosofando: Introdução a Filosofia, 1996, p. 345 e 346.

8686868686 Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34

e satisfação vem da própria realização.O fazer se torna ânimo, que estende sobre os construtores

da utopia seu manto de unidade e possibilita o entendimento ea doação de mais esforço – ou até a vida se preciso for –, parachegar ao local imaginado e desejado.

Com esse alimento, os construtores da causa utópica, quejamais se realiza na totalidade, entendem-se a si próprios e buscamna confiança mútua, acreditar também nos outros e na causa.

Peter McLaren ao nos explicar um conceito moderno,“Selfético”, que quer dizer “fazer-se a si próprio pela ética”, comoforma de resistir à cultura pós-moderna diz: “os selves éticos,diferentemente dos heróis, morrem pela dignidade de outrosseres humanos e pelo seu bem estar e, assim fazendo, não sãocapazes de justificar qualquer outro sacrifício que não os seus”55.Esta entrega consciente é a única possibilidade de justificar ossacrifícios no silêncio sem buscar projeções ou fama de herói.

Somente a utopia coloca à frente como horizonte maior,tendo a mística como energia real e imediata, consegue darsentido à coerência e mantê-la sem vacilos e titubeios, batendo-se de frente com o oportunismo, a corrupção, econômica,política, ideológica e moral que leva sempre e inevitavelmente àcooptação pela direita.

Os revolucionários somente conseguem manter-se nestacondição porque apesar de adormecerem com a consciênciatranqüila pelo dever cumprido, sabem que o sono é apenas umintervalo para recompor as energias e retomar o caminho daesperança que leva até a fonte da realização de todos os sonhos.

55 Peter McLaren. Multiculturalismo Revolucionário, p. 281.

8787878787O MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a Cultura

No ponto mais alto de cada sonho está a liberdade, mas jamaisa alcançaremos por inteiro, sempre haverá imperfeições emnosso comportamento que nos amarrarão e nos farão corar devergonha sempre que nos observar. Mas isto é a prova quesomos humanos e não deuses, por isso jamais realizaremosnossos desejos na totalidade, mas o importante é sentir prazerem buscar realizá-los.

Os revolucionários embora sintam satisfação em tudo quefazem, sempre estão insatisfeitos e indignados por aquilo que aindadevem fazer. É a dialética da plenitude e da insuficiência que sedebate em cada consciência. O tudo e o nada andam juntos,significando que enquanto houver vida há espaço de crescimento.

i) O cuidadoO cuidado é um pilar fundamental descoberto e sistematizado

por nosso mestre Leonardo Boff, como um elemento central paraser considerado na atualidade, isso se quiser não somente salvar oplaneta, mas todas as relações já estabelecidas, ele nos diz que“sonhamos com um mundo ainda por vir, onde não vamos maisprecisar de aparelhos eletrônicos com seres virtuais para superarnossa solidão e realizar nossa essência humana de cuidado e gentileza.Sonhamos com uma sociedade mundializada, na grande casacomum, a Terra, onde os valores estruturantes se construirão aoredor do cuidado com as pessoas, sobretudo com os diferentesculturalmente, com os penalizados pela natureza ou pela história,cuidado com os espoliados e excluídos, as crianças, os velhos, osmoribundos, cuidado com as plantas, os animais, as paisagensqueridas, especialmente cuidado com a nossa grande e generosaMãe, a terra”56.

56 Leonardo Boff. Saber Cuidar: Ética do Humano – Compaixão pela Terra, 1999, p. 13 e 14.

8888888888 Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34

Nossa revolução cultural se estruturará em torno dos cuidadose os transformará em valores, que adquirirão novas categoriasteóricas a partir de nossa prática, buscando sempre a construçãode um mundo melhor através do funcionamento de uma novasociedade.

Nossos valores têm forma e conteúdo diferentes de apre-sentarem-se que estes aos quais o capitalismo desenvolveu edeformou.

Somente edificaremos novas relações se os valores quediferenciam o bem do mal, estiverem desenhados como tatuagemna consciência de cada ser humano que emergirá desta revolução.Saber cuidar não se aprende fora da vida quotidiana, por isso éque a revolução se inicia pela transformação de pequenas coisas.

Quando falarmos do cuidado da honestidade como valor,não poderá significar apenas o cuidado das finanças coletivas,mas também a honestidade nas relações; que possibilita acontenção dos instintos que beneficiam a individualidade antesda coletividade, e que em tudo possamos ser proximamenteiguais, seja nos direitos, seja nos deveres. De nada valerá termosas finanças controladas se não controlarmos as relações com anatureza, se os idosos e as crianças não participam da construçãodeste novo sonho de libertação.

Na medida em que se desencadeia a revolução, o cuidadocomo fundamento básico, vai se tornando mais consciente eampliando seu significado a partir do respeito pelos demaissujeitos que compõem a vida de nosso planeta.

Não podemos intentar fazer uma revolução simplesmentepara buscarmos melhorias econômicas. Como vimos, nossoplaneta está comprometido; a vida está sendo dizimada em dezespécies diárias, a água doce está indo embora, a camada de ozônio

8989898989O MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a Cultura

se diluindo, a terra esquentando, os seres humanos morrendo emtorno de 40 milhões de pessoas por ano no mundo, somente defome. Somente com valores diferentes poderemos compreendera gravidade destes dados.

j) A luta de classesComo vimos em O Manifesto Comunista, “a história de

todas as sociedades que já existiram é a história da luta de classes”;devemos estar conscientes de que esta revolução não virá semesforços e sem conflitos.

É provável que Marx nunca tenha afirmado diretamente que“a luta de classes é o motor da história” como afirma Thompson57,mas tinha este muita clareza de que, do elemento da luta de classesdependia a história para se desenvolver. De qualquer maneira nolivro a ‘Ideologia Alemã’ encontramos com outras palavras amesma profecia: “não é a crítica, mas a revolução a força motrizda história”58. Ora, não há revolução sem luta de classes, por issoela é a força motriz e não as palavras. Por isso devemos acreditarque esta revolução mesmo que seja no comportamento individuale social, não virá sem esforço e sem conflitos.

Para aqueles que lutam, pouco importa se a afirmação nãofoi feita por Marx, pois a experiência histórica nos mostra quesem luta não se impõem mudanças sociais, isto porque a classeque está no poder procura sempre limitar o crescimento dasorganizações populares que lutam para garantir seus direitos.Sendo assim, acreditamos que a luta de classes é o motor dahistória, pois dela depende o nascimento da nova sociedade; épreciso acreditar na possibilidade de ajudar esta roda girar através

57 Thonpson. E. P. A miséria da Teoria. RJ. 1981, p. 113

58 Marx, K. Engels. F. A Ideologia Alemã. SP 1986, p. 56.

9090909090 Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34

da força das massas exploradas em luta permanente.Esta força motriz, ou este “motor” histórico, simbolicamente

transformado em impulsionador da história, leva a crer, que ondenão houver luta de classes não há verdadeiramente história, e aorganização de trabalhadores que não luta, já deixou de ser forçamotriz e por isso perde as condições de seguir em frente.

Nosso dever é lutar pela retirada do poder daqueles que go-vernam para os privilegiados, chegarmos ao poder e autogovernar.Assim disse Gandhi: “aquele que não é capaz de governar a simesmo, não será capaz de governar os outros”59. É sem dúvidaum desafio inicial, começar pelo convencimento de que devemosmudar individualmente e intervir sobre a realidade que conoscocoexiste para transformá-la e transformar-nos.

É necessário convencer-se de que tanto a revolução políticaquanto a revolução cultural, nos obrigarão a desfazer-nos demuitos caprichos, medos e comodidades. A luta deverá abrirnovas frentes de ataque e defesa. Precisamos estar preparados.

Ao mesmo tempo em que aprendemos, devemos ensinar alutar, sair das fronteiras de nossa categoria e buscar em outras forçasque também buscam a libertação. Desta forma é que a solidariedadese transforma em ação e elemento de integração entre ostrabalhadores.

59 Martim Claret. Gandhi: O Apóstolo da Não Violência, 1983, p. 83.

9191919191O MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a Cultura

4. Conclusão

Como conclusão é importante destacar aspectos queresumem o conteúdo exposto sem diminuir-lhe a importância.

Podemos dizer então que:- A cultura é tudo o que o ser humano imagina, sente

e faz para produzir sua existência em sintonia com asdemais espécies de vida.

- O desenvolvimento da cultura em uma organizaçãocomo o MST deve estar em sintonia com os objetivosestratégicos para que, de fato, se consiga implementaras mudanças estruturais que se pretende. Este esforçodeve transformar-se em valores permanentesconformando comportamentos em novas condutas.

- O trabalho é considerado elemento central no desen-volvimento da cultura e na construção de um novoser humano.

- A arte, a estética e demais expressões devem estar aserviço da educação ideológica dos trabalhadores.Cada vez mais devem ser incentivadas pelos militantese dirigentes.

- Devemos intensificar a preocupação em resgatar osvalores culturais e experiências históricas de geraçõespassadas como exemplo de criação cultural, quesirvam para educar as gerações atuais.

A produção da existência de forma consciente possibilita, em umcurto espaço de tempo, criar referências organizativas e aglutinar emtorno de si as pessoas que buscam a realização de objetivos comuns.

9292929292 Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34

Elimina-se a discriminação deixando nascer um sentimentode igualdade. Há respeito por tudo aquilo que as pessoas levamconsigo, sejam crenças, esperanças e sonhos.

Há, porém, muito lixo de cultura que vai se acumulandona produção da existência histórica e que devemos renegar namedida em que isto vai se tornando consciente. Temos comoexemplo as letras de muitas músicas que a classe dominante fazquestão em divulgar por nada conter de concreto e disfarçar aquestão ideológica. Há lixo no comportamento, no jeito de veras coisas, no hábito alimentar, na forma de vestir etc. Tudo istovai sendo parte da existência, mas não contribui para seumelhoramento.

É impossível rumar para a construção de uma novasociedade levando conosco este amontoado de lixo cultural quetenderá a ocupar grandes espaços na produção daquilo quedeveria ser a nova existência.

As novas relações devem iniciar agora para que no futuroseja mais fácil implementar as mudanças que queremos. O novohomem e a nova mulher nascerão destas velhas cepas retorcidaspelo modo de produção atual, como quando se toma a cepa deum limoeiro e enxerta-se nele o galho da laranjeira que se tornarábroto, crescerá e produzirá laranjas e não mais limão. Não háoutro caminho. A nova sociedade não pode surgir do nada, épreciso querer forjá-la através dos seres humanos.

Sofremos uma dominação cultural muito grande há séculosem nosso país, precisamos nos libertar dela se queremos ser livres.Para isto precisamos produzir nossas próprias idéias, nossaprópria literatura, dar conteúdo próprio aos valores e ver o futurocom nossos próprios olhos.

Disse José Martí sobre a dominação cultural estrangeira:

9393939393O MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a Cultura

60 José Martí. Versos Singelos, p. 26.

“há vida nacional sem literatura própria? Há vida para ainteligência pátria em uma cena sempre ocupada por débeis ourepugnantes criações estrangeiras? Por que na terra nova ameri-cana se há de viver a velha vida européia?”.

Esta invasão cada vez maior de nosso território pela influên-cia ideológica do imperialismo faz com que percamos a iniciativade pensar, elaborar e de sonhar. O FMI pensa os planoseconômicos e impõe medidas que obrigam nosso país a descartaraspectos fundamentais na produção da existência cultural denosso povo. Impõe o controle da natalidade, o valor do saláriomínimo, o que devemos consumir, o que devemos exportar, oque devemos assistir e apreciar na mídia, o que devemos estudare conhecer nas escolas, o que devemos rezar nas igrejas. Enfim,perdemos o direito de ser um verdadeiro povo.

Conclui conosco Martí: “ou a literatura é coisa vazia de sen-tido ou é a expressão de um povo que a cria; os que se limitam acopiar o espírito dos poetas de além mar, não vêem que com issoreconhecem que não têm pátria, nem espírito próprio, nem quenão são mais que sombras de si mesmos, que vivem de esmolassobre a terra? Ah! É que para cada século que os povos arrastamgrilhões, tarda pelo menos outro para tirá-los de cima”60.

Que o século da tirada dos grilhões esteja no fim e quepossamos, de fato, dar novo destino a nossa cultura.

Expediente:

Projeto gráfico, diagramação e capa: Zenaide Busanello

Revisão: Rogério Chaves

Desenho da capa: Daniel Alves

Apoio: Pronera e Incra

3ª edição 2006

Tiragem: 3 mil exemplares

Edição:

ITERRA - Instituto Técnico de Capacitação e Pesquisa da Reforma Agrária

Estrada municipal, 1140 - Bairro Parateí

08900-000 - Guararema - SP