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Métodos da arquitetura militar em Portugal: manuscritos da Biblioteca Nacional
de Portugal (1700-1750)
Methods of military architecture in Portugal: manuscripts of the National Library of
Portugal (1700-1750)
Luiza Nascimento de Oliveira da Silva*
Resumo
No início do século XVIII, após as invasões francesas, melhores fortificações para
resguardar o porto da cidade do Rio de Janeiro são solicitadas à corte portuguesa, o que
implica questionarmos em quais parâmetros as Aulas de fortificação ministradas
passariam a ser balizadas, no que diz respeito ao ensinado em Portugal e ministrado em
solo luso-americano por figuras como os engenheiros Gregório Gomes Henrique, o
primeiro mestre dessa Aula, em 1699, e José Fernandes Pinto Alpoim, já em 1738.
Estariam esses homens focados em aplicar os conhecimentos para uma defesa apenas de
matriz francesa, o principal inimigo? Difícil de acreditar. Por isso, a necessidade de
relativizarmos tanto a ideia de que foi com Manuel de Azevedo Fortes que houve uma
viragem no ensino da defesa em Portugal – não estamos negando a sua importância,
deixemos claro, o fato é que antes dele muitos outros foram formados, pelo próprio Luís
Serrão Pimentel, e também forjaram a resignificação desse saber –, quanto de
problematizarmos a aplicação quase que exclusiva de uma defesa com características do
método francês. O que é uma falácia que não se sustenta na própria abordagem de
Fortes que apresentava em suas obras as diversas Escolas – francesa, holandesa, inglesa,
espanhola, italiana – para que o engenheiro optasse pela melhor técnica em cada caso, a
partir da possibilidade de melhor defesa do território do rei.
Portanto, o objetivo de nossa proposta é esquadrinhar o discurso de defesa, a
linha argumentativa de Luís Serrão Pimentel e de Manuel de Azevedo Fortes e de seus
alunos por meio do cotejamento de um conjunto de manuscritos consultados na seção de
reservados da Biblioteca Nacional de Portugal. Além dos argumentos teóricos que
dizem respeito ao governo do soberano, bem como perceber quais concepções teóricas
prevaleceram na construção defensiva da cidade do Rio de Janeiro através da
observação dos pareceres que foram ou não aprovados por nomes como o próprio Fortes
e Francisco Pimentel, filho de Luís Serrão.
Palavras-chave: arquitetura militar; Rio de Janeiro; manuscritos; Biblioteca Nacional
de Portugal; Arquivo Histórico Ultramarino
Abstract
At the beginning of the eighteenth century, after the French invasions, better
fortifications to protect the port of the city of Rio de Janeiro are requested to the
Portuguese court, which implies questioning in which parameters the classes of
fortification given would be marked, with respect taught in Portugal and taught on
Portuguese-American soil by figures such as engineers Gregório Gomes Henrique, the
first master of this Class in 1699 and José Fernandes Pinto Alpoim, as early as 1738.
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These men would be focused on applying the knowledge to a defense only French
matrix, the main enemy? Hard to believe. Therefore, the need to relativize so much the
idea that it was with Manuel de Azevedo Fortes that there was a turning point in defense
education in Portugal - we are not denying its importance, let's be clear, the fact is that
before him many others were formed, by Luís Serrão Pimentel himself, and also forged
the reframing of this knowledge - as well as to problematize the almost exclusive
application of a defense with characteristics of the French method. What is a fallacy that
does not support the very approach of Fortes that presented in its works the different
Schools - French, Dutch, English, Spanish, Italian - so that the engineer opts for the best
technique in each case, from the possibility of best defense of the king's territory.
Therefore, the purpose of our proposal is to review the defense discourse, the
argumentative line of Luís Serrão Pimentel and Manuel de Azevedo Fortes and his
students through the comparison of a set of manuscripts consulted in the reserved
section of the National Library of Portugal . In addition to the theoretical arguments that
concern the government of the sovereign, as well as to realize which theoretical
conceptions prevailed in the defensive construction of the city of Rio de Janeiro through
the observation of the opinions that were or not approved by names like Fortes himself
and Francisco Pimentel, son of Luís Serrão.
Keywords: military architecture; Rio de Janeiro; manuscripts; National Library of
Portugal; Historical Archive Overseas
1. Introdução
O discurso de defesa diz respeito à todo o aporte teórico-metodológico
necessário para que o engenheiro pudesse confeccionar a planta de fortificação. Estamos
falando de tratados de arquitetura militar, bem como das discussões em pareceres, cartas
e ofícios da dinâmica administrativa oriundas da documentação do Arquivo Histórico
Ultramarino, que lança mão daquela teoria para colocar em prática o governo do
território, atendendo justamente ao que estamos denominando de demandas políticas
práticas. O papel político dos engenheiros responsáveis por assinar os pareceres denota
o quanto a teoria de defesa esteve imbricada com a administração da cidade do Rio de
Janeiro e no desenvolvimento de uma cultura política de defesa.
No artigo "O engenheiro setecentista luso-brasileiro José Fernandes Pinto
Alpoim", publicado na Revista Pombalina Coimbra University Press, em 2011, os
autores Carlos Filgueiras e Teresa Piva 1 discutem a noção de iluminismo português a
* Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ). Bolsista CNPq. E-mail: [email protected].
Este trabalho é parte de um dos capítulos de minha tese de doutorado em andamento.
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partir da figura do engenheiro Manuel de Azevedo Fortes. Com o seu conteúdo
direcionado para os alunos da Academia Militar, diferente de Luís Serrão Pimentel, que
busca um modelo de fácil acesso a todos, esses autores portugueses são comparados. No
entanto, Filgueiras e Piva, juntamente com alguns historiadores 2, afirmam que Fortes
destaca a importância do método e do uso de figuras em seu ensino para a comparação
de situações e a escolha da melhor opção como uma inovação. O que é idêntico ao
movimento desenvolvido por Pimentel em seu "Método Lusitânico".
Já em relação ao foco principal daqueles autores, a trajetória e prática do
engenheiro que atuou no Rio de Janeiro, José Fernandes Pinto Alpoim, o texto não
avança na problemática de argumentos sobre a defesa da cidade do Rio de Janeiro nos
anos iniciais do Setecentos, apenas abarca os anos posteriores à chegada de Pinto
Alpoim, trabalhando com a ideia de que só com a Aula do Terço, em 1738, a cidade do
Rio de Janeiro pode contar com o ensino sistemático.
No entanto, não se pode menosprezar a circulação de tratados sobre a defesa, dos
desenhos de plantas de fortificação, pois o envio de engenheiros foi uma realidade antes
mesmo dessa data, e a prática de defesa engendrada merece ser melhor compreendida
para que possamos entender até que ponto os princípios de defesa estiveram atrelados às
estratégias de governo e de urbanização da cidade. Exemplo do que estamos afirmando
foi o envio dos engenheiros Diogo Soares, Gregório Gomes, Pedro Gomes Chaves e o
papel do próprio governador interino e engenheiro José da Silva Paes. Nesse sentido,
afirmativas como a que destacaremos a seguir merecem ser revistas: "O cultivo das
ciências modernas ainda estava um longo tempo por surgir no panorama do ensino
português, e só viria a ser implantado definitivamente por iniciativa do Marquês de
Pombal durante o reinado de D. José I, filho do soberano que nomeara Alpoim" 3.
O primeiro questionamento plausível é sobre o que os autores estão chamando
de ciências modernas, pois o ensino português sobre a defesa, antes mesmo do século
XVIII, estava muito bem pautado e fundamentado no que se refere ao que podemos
denominar de mundo moderno europeu na medida em que, os tratados eram frutos de
1 FILGUEIRAS, Carlos; PIVA, Teresa. "O engenheiro setecentista luso-brasileiro José Fernandes Pinto
Alpoim". Revista Pombalina Coimbra University Press. Imprensa da Universidade de Coimbra, 2011. 2 Por exemplo, Antônio Alberto de Andrade, Luís Manuel Bernardo e Margarida Valla. 3 FILGUEIRAS, Carlos; PIVA, Teresa. "O engenheiro setecentista luso-brasileiro José Fernandes Pinto
Alpoim". Revista Pombalina Coimbra University Press. Imprensa da Universidade de Coimbra, 2011, p.
125.
465
aulas de engenheiros, dialogavam com o que era de mais atual na ciência da arquitetura
militar, demonstrando conhecimento com o que circulava na Europa, questionando as
matrizes teóricas vigentes. O que também insere esses homens em uma perspectiva
coetânea com as demais localidades européias. Podemos inferir que essa categorização
realizada por Carlos Filgueiras e Teresa Piva ocorreu pela lógica de associar a ausência
do moderno sem questionamentos, sem um estudo mais aprofundado dos textos do
período, no caso do século XVII e da primeira metade do século XVIII. Os autores
indicam como ponto fundamental e de distinção na obra de Pinto Alpoim o fato desse
engenheiro expressar um "espírito analítico", por ensinar em termos de perguntas e
repostas e a partir de diversos sub-itens. Elementos recorrentes nos manuscritos
pesquisados do séculos XVII e XVIII. Outra questão que passou desapercebida foi que
a formação de Pinto Alpoim aconteceu muito provavelmente com nomes como o de
Luís Serrão Pimentel ou por meio de seus escritos.
2. Dos manuscritos: breve resumo
Iara Lis Schiavinatto e Ermelinda Moutinho Pataca no artigo "Entre imagens e
textos: os manuais como práxis de saber" 4 exploram textos escritos no Iluminismo em
Portugal como manuais de saber, a partir dos sentidos das imagens e da circulação no
mundo luso. Ao identificarem a clareza dos conceitos elaborados no período, o vínculo
entre a teoria e a prática, e a relação com a política do mundo colonial, estamos nós
também na ceara de nossa pesquisa.
Nos manuscritos de arquitetura militar pesquisados, perceber quais foram os
conceitos postos em pauta para definir o significado de defesa a ser posta em prática, e a
relação destes com o cultura política do período se torna fundamental. O uso das
imagens, das plantas de fortificação e de suas figuras geométricas, diz muito sobre a
lógica iluminista:
a intensificação no uso das imagens no período porta um forte caráter
de instrução, característico do ideário iluminista. Dessa forma,
acreditamos que seria mais válido considerar o amplo quadro de
relações entre arte, ciência e técnica nos círculos letrados do período
4 SCHIAVINATTO Iara Lis; PATACA Ermelinda Moutinho. "Entre imagens e textos: os manuais como
práxis de saber". Revista Manguinhos. Imagens, 2016.
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para verificar como se davam as práticas disciplinares entremeadas
por princípios técnicos comuns 5
O modo de instrução através da imagem, ou ainda, a ideia de instruir presente no
conjunto de manuscritos de arquitetura militar, já nos indica o quanto estamos falando
de uma matriz voltada para os ideais iluministas. Os princípios comuns da prática desse
saber serão analisados quando da interpretação do desenho da planta de fortificação,
momento em que poderemos explorar as diferentes teorias da arte e ciência em
perspectiva. Estamos abordando a compilação da produção de conhecimento e
necessidade de divulgação, no caso, o ensino, as aulas, que foram condensadas em
tratados. "A elaboração dos manuais se associava à formação e à atuação dos autores,
suas visões de mundo, a disponibilidade de referenciais teóricos, a atuação prática e a
formação de uma comunidade científica com expressões sociais, políticas e culturais" 6.
O que corrobora a nossa noção de cultura política de defesa na medida em que, como
será exposto, a cidade do Rio de Janeiro fora governada por meio do suporte da matriz
defensiva, pois muitos dos referências teóricos de governo eram oriundos da ciência da
arquitetura militar.
Os autores dos códices 7 consultados priorizaram uma lógica de ensino
especifica e similar entre si, qual seja, a manutenção da dinâmica imperial voltada para
a defesa do território pautada no desenvolvimento de uma defesa celestial 8 e vitruvina,
seguindo os seis termos de Vitrúvio (ordem, disposição, euritmia, simetria, decoro e
distribuição).
A matemática é apresentada como o cerne do saber em estudo, composição
voltada para a geometria e indispensável para o desenvolvimento da ciência de defesa
na medida em que, a disposição dos elementos estariam sempre voltados para que a
ordem respondesse à regra, ou máxima, dessa ciência de não haver lugar sem defesa no
espaço da fortificação.
5 SCHIAVINATTO Iara Lis; PATACA Ermelinda Moutinho. "Entre imagens e textos: os manuais como
práxis de saber". Revista Manguinhos. Imagens, 2016, p. 552. 6 SCHIAVINATTO Iara Lis; PATACA Ermelinda Moutinho. "Entre imagens e textos: os manuais como
práxis de saber". Revista Manguinhos. Imagens, 2016, p. 552. 7 Tabela no anexo I. 8 Tal temática já foi desenvolvida de um modo mais detalhado em outros trabalhos.
467
De um modo geral, as guerras bíblicas ou profanas foram servindo de exemplos
para o desenvolvimento teórico da ciência da arquitetura militar. Em outra
oportunidade, os textos serão minuciosamente trabalhados. Por enquanto, basta dizer
que os autores citados, bem como suas escolas (francesa, holandesa, inglesa, espanhola)
serão por nos problematizados.
3. Teorias e métodos:
Retornemos à questão teórico-metodológica. Primeiro é importante
questionarmos se certo predomínio das técnicas dos franceses em Manuel de Azevedo
Fortes e das dos holandeses em Luís Serrão Pimentel quer mesmo dizer um atraso das
luzes nesse último. Quando o francês Pfefinger 9 cita as demais escolas em pé de
igualdade no início do Setecentos, em 1713, podemos supor que não há a menor
hierarquia de saberes realizada por esses homens a respeito de uma classificação de
métodos. Antes de definir o que seria antigo ou moderno, precisamos compreender o
que os engenheiros dos séculos XVII e XVIII compreendiam por lógica moderna, para
não cometermos anacronismos. Como dito, uma lógica que não abandona as teorias
antigas. Para tanto, importa tecermos algumas considerações acerca das concepções
teóricas de Manuel de Azevedo Fortes, bem como compreender algumas de suas visões
de mundo. Na obra sobre as Cartas Geográficas 10, para legitimar a sua escrita, Fortes
lança mão de uma argumentação comparativa a respeito da semeadura, e o fruto
produzido.
Através de uma ciência ensinada por meio da história como matriz retórica, esse
autor demonstra o caminho das diversas conquistas portuguesas. Apesar de estarmos
falando de um texto sobre Cartas Geográficas, podemos abordar o que Fortes ensinava
sobre método e sobre o governo do monarca, bem como o que esse engenheiro entendia
por moderno, ou não. Além do mais, o que unia a geografia e a arquitetura militar era a
9 BNP, Res 4556P. Johann Friedrich Pfeffinger. “Fortificaçam moderna ou recopilaçam de differentes
methodos de fortificar de que se usão na Europa os espanhoes, francezes, italianos e hollandezes”, 1713.
Traduzido por: Maia, Manuel da, 1677-1768, trad.; Deslandes, Valentim da Costa, fl. 1703-1715, impr. 10 BNP, F 7698. Tratado do Modo de Fazer as Cartas Geográficas, 1722.
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própria ciência da matemática. O que esse autor concebia sobre aquele saber nos diz
muito sobre a sua perspectiva teórica quanto as temáticas por nos discutidas.
Outro documento que nos auxilia a dialogar em termos de uma percepção
teórico-metodológica do ensino de Manuel de Azevedo Fortes é a "Oração Acadêmica"
11, que traz para o debate uma temática que está presente no conteúdo de todos os
manuscritos cotejados, qual seja, o uso do referencial bíblico para legitimar a prática da
ciência da arquiteta militar na manutenção do governo do Príncipe. Isso que dizer que o
conhecimento bíblico funcionava como matriz política, de acesso ao poder político ao
fazer parte do discurso dos engenheiros, tanto para exaltar a Matemática, no caso dessa
Oração, quanto para ser definida como modelo de experiência defensiva, quando no
tema dos Tratados da arquitetura militar.
Sendo certo que os Céus, e os seus Astros (como diz o Profeta)
anunciam a todo o Universo a Glória do seu Criador 12 [...] O método
exato, e severo, que a Matemática inviolavelmente prescreve, obriga a
expor simplesmente a verdade, sem mais ornato, que o da luz, e da
evidência, que a acompanha.
Isto suposto; devemos primeiramente assentar, que Deus
mesmo é o principio da matemática, e o primeiro mestre que a ensinou
ao homem; porque de toda a eternidade conheceu as Ideias dos
Números, das Figuras, e dos movimentos; e quando gravou sobre o
homem a sua Imagem, lhe imprimiu na alma um raio daquela
brilhante luz, e com ela recebeu as ideias dos Números, e da
Geometria, e por estas ideias, como por degraus infinitos, se levanta o
entendimento humano para passar do tempo à eternidade: do ponto ao
infinito: do nada ao todo, e de si mesmo até o seu Autor.
O certo é que não há Ciência natural, nem tão clara, nem tão
exata, nem por conseqüência tão perfeita, como a Ciência dos
Números, e da Geometria; e assim devemos confessar, que Ciências
tão nobres, e tão perfeitas, são um dom o mais estimável, que o
homem tem recebido do seu Criador, que parece tomou na mão o
compasso para descrever todos os imensos Círculos, que as Estrelas
parecem correr cada dia, e imprimiu em todos os Astros aqueles
movimentos perpétuos, tão regulares 13.
Fortes vai além, não é apenas a arquitetura militar que possuía uma origem
celeste, mas a própria matemática também seria dotada de uma matriz cósmica, divina,
11 Oração Acadêmica que pronunciou Manoel de Azevedo Fortes, na presença de suas majestades, indo a
Academia ao Paço em 22 de Outubro de 1739. 12 Livro Bíblico. Salmo 19. 13 Oração Acadêmica que pronunciou Manoel de Azevedo Fortes, na presença de suas majestades, indo a
Academia ao Paço em 22 de Outubro de 1739, p. 8 e 9.
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isto é, oriunda de uma divindade. Mesmo que a perfeição estivesse na exatidão, a
origem da matemática estava em Deus. E, a ciência era tida como um dom do Criador.
Tais apontamentos devem ser analisados em perspectiva à temática da origem da
arquitetura militar posta no conjunto dos tratados em Adão, e a primeira cidade
defendida Enoquia, para o ensino de um modelo de defesa perfeita.
O que nos introduz no ensino de Luís Serrão Pimentel. Em termos teóricos, os
elementos ensinados, os autores citados e a matriz metodológica, estamos diante de um
mesmo aporte, tanto em Fortes, quanto em Pimentel. Podemos começar analisando as
máximas da ciência em estudo, autores e escolas citados, até a explanação em pareceres
do Arquivo Histórico Ultramarino de Fortes e dos alunos de Pimentel, como seu filho e
neto, Manuel e Francisco Pimentel, para os desenhos das plantas de fortificação.
4. A cidade do Rio de Janeiro: a defesa pelos debates administrativos
Em consulta do Conselho Ultramarino de 1712, sobre as fortalezas necessárias
para a defesa do Rio de Janeiro, há a informação do Cosmógrafo Manuel Pimentel sobre
as fortificações do Rio de Janeiro 14.
Mas como ambos os governadores (Antonio de Albuquerque Coelho e
Francisco de Castro de Moraes) com parecer dos Engenheiros
concordo que será útil este Forte (o da Lage), também eu convenho no
mesmo, com declaração que se deve acudir ao mais necessário que é
aperfeiçoar as Fortalezas de Santa Cruz e de São João da barra,
fortificar a Ilha das Cobras, e acabar o Forte de São Sebastião, que são
defensas mais importantes. Ao tocante aos mais redutos e Fortins me
parece o mesmo que ao Governador Antonio de Albuquerque Coelho,
a saber que são escusados, e que não servem mais que de divertir a
guarnição, exceto o Forte da Ilha de Vilheganhon que lá chamam
corruptamente de Virgalhão, o da Boa Viagem, e o da Praia Vermelha.
E que a obra que se houver de fazer na Ilha das Cobras seja a que
aponta o Engenheiro Pedro Gomes Chaves 15.
Manuel Pimentel indica a utilidade de se edificar a fortaleza da Laje, fortificar a
Ilha das Cobras e aperfeiçoar as Fortalezas de Santa Cruz e São João. Além da
necessidade de finalizar o Forte de São Sebastião, o da Ilha de Vilheganhon, o da Boa
14 AHU_ACL_CU_017-1, Cx. 16, Doc. 3287. 15 AHU_ACL_CU_017-1, Cx. 16, Doc. 3287.
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Viagem e o da Praia Vermelha. Para esse ensaio, nos deteremos nesse último sítio.
Antes, porém, importante é destacarmos a noção de uma defesa mútua, um sistema
integrado e interligado da Baía de Guanabara com o seu entorno e montes descrito por
Pimentel.
Sobre a eleição desse sítio da Praia Vermelha e da ruína das fortificações,
Gregório Gomes afirma, em 1694, em informação ao Conselho Ultramarino:
Senhor,
O capitão engenheiro da Capitania do Rio de Janeiro Gregório Gomes
em carta de 10 de Junho [?] deste ano dá conta a Vossa Majestade em
como havendo visto pessoalmente as praças daquela Conquista as
achara com considerável ruina incapazes de impedir com suas forças a
entrada do inimigo maiormente quando que este é feito nem a
guarnição e menos a forma em que existiam podiam conseguir o fim
para que se estabeleceram estando por esta causa aquela cidade
exposta a qualquer assalto do inimigo podendo fazer sem contradição
alguma por um sítio chamado praia vermelha, que ficava próximo a
barra, que por não poder se defendido das Fortalezas dela em razão de
não ser visto das mesmas pela oposição de um monte chamado Pão de
açúcar era sem dúvida fazer o inimigo eleição deste sítio para a
conquista, oferecendo lhe o mesmo surgidouro conveniente para
qualquer armada e lançando gente em senão senhorear-se daquela
cidade sem dificuldades e nestes termos era necessário fortificar-se
aquele sítio com uma boa defensa sem lardança alguma, e reparar as
outras praças que estavam com bastantes ruinas [...]
Ao Conselho parece que pelo que escreve o Capitão Engenheiro
da Capitania do Rio de Janeiro, e pelas notícias que dão outras muitas
pessoas práticas da [?]; que convém muito que se faça a Fortaleza na
praia vermelha, por ser o sítio que não tem defensa, e em que os
inimigos poderão desembarcar, e ocuparem a cidade sem se lhe poder
fazer resistência 16.
O sítio da Praia Vermelha não tinha defesa, por isso, a urgência em executar a
obra e impedir a ocupação da cidade através de seu domínio por essa entrada lateral.
Além disso, o Conselho salienta a respeito do financiamento da obra, que o governador,
mesmo que a coroa tenha enviado o valor correspondente para o começo da obra,
observasse se a Fazenda Real possuía condições de financiá-la, do contrário devia
chamar aos oficiais da Câmara daquela mesma Capitania, ensinando
lhes como bons vassalos e como empenhados na sua própria
conservação, em que a terra em que vivem esteja com toda a
16 AHU_ACL_CU_017-1, Cx. 10, D. 1948.
471
segurança na ocasião em que forem invadidos pelos inimigos desta
costa, queiram concorrer para esta obra que se avalia por tão
necessária e útil para a sua conservação; e no que toca ao que pede é
necessário para se dar princípio a esta Fortaleza, se lhe remete 17.
Ao serem responsabilizados por garantir a segurança da terra em que vivem
contra o inimigo comum, a conservação do território é posta como vínculo entre o bom
vassalo e a monarquia. O que fazia parte dessa manutenção territorial era o ideal de
necessidade e utilidade. Tais dimensões argumentativas também podem ser encontradas
nos discursos manuscritos de ensino da arquitetura militar, quando um dos principais
tópicos fazia parte da indicação do que chamamos da tríade necessidade, utilidade e
conveniência. O fato do Conselho recuperar essa modo, ou de observamos lógica
semelhante no ensino dos tratados nos remete para a dimensão política da prática da
arquitetura militar.
Em parecer de 14 de Novembro de 1698, os engenheiros portugueses Manuel de
Azevedo Fortes e Manoel do Couto aprovaram o quarto desenho inscrito na planta de
fortificação da Praia Vermelha, em anexo 18. Com o intuito de problematizarmos os
elementos defensivos, ou seja, as figuras geométricas escolhidas por Gregório Gomes
para esse sítio em relação aos teóricos que foram ou não por ele assimilados, poderemos
compreender a quais linhas metodológicas a estrutura defensiva mais se aproximou.
Sendo vista a planta feita pelo Engenheiro Gregório Gomes para
defensa da praia vermelha do Rio de Janeiro e considerados os quatro
modos de a fortificar descritos no desenho Pareceu que não havendo
inconveniente em largar ou ganhar sítio (o que se não mostra na
planta) se deve ocupar o que naturalmente se oferece que deve de ser
o que está chegado ao mar; porque servindo só de bateria não tem
ataques que lhe impeçam as defensas por ser obra feita sobre o mar;
mas que no caso que esta praia seja livre em que o mar entre e saia
sem impedimento parece melhor o quarto desenho porque além de ser
da arte tem a mutua correspondência das defensas, e a defesa será
menor e o desenho ficará mais robusto. Lisboa 14, de Novembro de
1698.
Manoel do Couto
Manoel de Azevedo Fortes 19.
17 AHU_ACL_CU_017-1, Cx. 10, D. 1948. 18 Anexo II. 19 AHU_ACL_CU_017-1, Cx. 16, Doc. 3287.
472
No caso da obra realizada sobre o mar, as baterias seriam suficientes, mas para
uma melhor adequação ao terreno do sítio, para o sistema concomitante de defesas e
para uma proteção mais restrita, a proposta foi outra. O objetivo é mapear, seguir as
pistas da construção do desenho, o processo de confecção, de possibilidades de defesa, e
a que foi fixada na planta de fortificação e recebeu o aval de Fortes e Manuel do Couto.
Confirmando em quais teorias se basearam para a formação do quadro teórico de cada
desenho de planta de fortificação. O que nos ajuda a compreender que a política de
defesa esteve em discussão, e a formação de uma cultura política de defesa perpassou o
discurso político no ensino dessa ciência, que reverberou na prática das discussões
administrativas.
Portanto, vejamos o atestado de 1724, em que o engenheiro Tenente General
Manuel de Mello de Castro realiza algumas considerações acerca do desenho da
fortaleza para a praia vermelha.
Manoel de Mello de Castro Tenente General engenheiro desta
Capitania do Rio de Janeiro por Sua Majestade que Deus guarde [...].
Certifico que a fortificação da fortaleza da praia Vermelha de que é
Capitão Francisco Gomes Barbosa consta de uma tenalha com seus
[...] de muralha de pedra e cal, que fechava praia entre dois outeiros
por detrás do [...] fora da barra, na qual se acham quinze peças
montadas nos dois baluartes, e em uma Cortina que fica de baluarte
a baluarte se pode montar mais de outras quinze; tem seus quartéis, e
o armazém de pólvora é lugar muito principal que se deve segurar
em qualquer ocasião de inimigo, assim pela parte de terra, como do
mar, porque se o inimigo se senhorear dela se pode comunicar com
seus navios, sem ofensa das mais fortalezas, e se pode fazer senhor de
todo o distrito da lagoa, [...], e para a parte da cidade com estrada
Real e praia, donde muito a se[r] salvo poderá investir e combater a
cidade e retirar-se para seus navios com pouco detrimento e ainda
valendo-se da artilharia da mesma fortaleza, senhoreando-se dela
donde também pode fazer muito mal à fortaleza de S. João to[r]nando
a ficar senhor de toda aquela parte e da barra, o que tudo são causas
muito principais para que neste sítio e fortaleza se tenha grande
cuidado, em qualquer ocasião de guerra, porque assim a entendo em
razão do meu posto, exercício que tenho nesta praça a mais e vinte
anos e o afirmo e juro aos Santos Evangelhos e pelo Capitão da
Fortaleza Francisco Gomes Barbosa me pedir esta certidão lhe passei
e assinei em o Rio de Janeiro aos vinte de novembro de mil setecentos
e vinte e quatro.
473
Manoel de Mello de Castro 20.
As figuras geométricas destacadas por Mello de Castro são a tenalha, o baluarte,
e a cortina, que declara por afirmação e juramento em certidão, importante destacar.
Antes desse fato, em carta de 26 de maio de 1696, ao rei D. Pedro II 21, o
governador do Rio de Janeiro, Sebastião de Castro e Caldas destaca questões referentes
à praia Vermelha e que para se construir uma fortaleza naquele local, algumas obras
eram necessárias. Ao mencionar as cortaduras, parapeitos e revelim,
E quanto, a Praia Vermelha, havia dado [?] a Vossa Majestade; que
com uma bateria ao pé do pão de açúcar, que fica na Fortaleza de São
João, ficava bem defendida, cujo sítio descobri, depois de partida a
frota, com bastante trabalho, por dentro da mesma fortaleza, era uma
lage, com toda a capacidade, para se poder obrar, com [?] altura que
os parapeitos, por ter Eminência sobre a dita Praia, e ter pedra, com
que se poder obrar, e a terraplanície, com facilidade, com que faça
mui pouca despesa, e se fará ter capacidade, de seis peças, de
artilharia 22.
Ao falar de todas as outras edificações defensivas, o governador mostra a
dimensão do sistema como um todo, não as fortalezas sendo percebidas isoladamente.
Além disso, os governadores e engenheiros dialogavam munidos das técnicas da
arquitetura militar, o que mais uma vez corrobora a nossa perspectiva de correlacionar o
discurso político, da administração da cidade, com a defesa de seu território, até em
termos urbanísticos.
5. Considerações finais
O objetivo do presente trabalho foi relacionar o discurso de defesa presente nos
tratados manuscritos de arquitetura militar consultados no acervo da Biblioteca
Nacional de Portugal com as demandas políticas práticas, através das solicitações de
engenheiros e o papel dos que aprovavam ou não, como Manuel de Azevedo Fortes e
Manuel Pimentel, o que apontou para a formação de redes e circulação de ideias para a
20 AHU_ACL_CU_017-1, Cx. 38, Doc. 8834. 21 AHU_ACL_CU_017, Cx. 6, Doc. 612. 22 AHU_ACL_CU_017, Cx. 6, Doc. 612.
474
prática defensiva. Desse modo, esquadrinhar a linha argumentativa de Luis Serrão
Pimentel e de Fortes, bem como de seus alunos, e identificar ou não a sua presença nos
desenhos de plantas de fortificação constitui ponto fundamental de nossa análise.
6. Bibliografia consultada
Documentos
- BNP, Res 4556P. Johann Friedrich Pfeffinger. “Fortificaçam moderna ou recopilaçam
de differentes methodos de fortificar de que se usão na Europa os espanhoes, francezes,
italianos e hollandezes”, 1713. Traduzido por: Maia, Manuel da, 1677-1768, trad.;
Deslandes, Valentim da Costa, fl. 1703-1715, impr.
- Oração Acadêmica que pronunciou Manoel de Azevedo Fortes, na presença de suas
majestades, indo a Academia ao Paço em 22 de Outubro de 1739.
- BNP, F 7698. Tratado do Modo de Fazer as Cartas Geográficas, 1722.
AHU_ACL_CU_017-1, Cx. 16, Doc. 3287.
AHU_ACL_CU_017-1, Cx. 10, D. 1948.
AHU_ACL_CU_017-1, Cx. 38, Doc. 8834.
AHU_ACL_CU_017, Cx. 6, Doc. 612.
Revistas
FILGUEIRAS, Carlos; PIVA, Teresa. "O engenheiro setecentista luso-brasileiro José
Fernandes Pinto Alpoim". Revista Pombalina Coimbra University Press. Imprensa da
Universidade de Coimbra, 2011.
SCHIAVINATTO Iara Lis; PATACA Ermelinda Moutinho. "Entre imagens e textos: os
manuais como práxis de saber". Revista Manguinhos. Imagens, 2016.
7. Anexos:
I.
475
Tratados Ano Autor Academia
Militar
Aula de
Esfera
Base
Bíblica
Cód. 2146 1663 Sem autoria - - Sim
Cód. 5209 1719 Estevão Luis X Sim
Cód.
5176
Idêntico ao
"Tratado de
Arquitetônica"
- ANTT,
Manuscritos
de Livraria,
1809.
1709 Manuel
Antonio de
Mattos sendo
Lente
Domingos
Vieyra
X Sim
Cód. 2144
[Discurso
Militar]
1675 Sem autoria - - Não
476
Cód. 1640 d. c. 1664 Luís Serrão
Pimentel
Capitão,
Coronel João
Thomaz
Correa:
possuidor ou
copiador?
X X Sim
Cód. 13473 1661 Luís Serrão
Pimentel;
João Nunes
Tinoco
[escriba]
X X Sim
Cód. 6408 1659 Luís Serrão
Pimentel
X X Sim
Cód. 5174 1679 Luís Serrão
Pimentel;
Francisco
Pimentel
X X Sim
PBA 105//27
[pertenceu ao
Marquês de
Pombal]
1705 Manoel
Antonio de
Mattos
X Não
II.
Planta da Praia Vermelha do engenheiro Gregório Gomes [ca. 1698]
477
Fonte: BN-RJ (ref. cat. 268 - AHU RJ 1058)