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revista parênteses | edição especial #05 distribuição on-line gratuita MU LHE RES

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revista parênteses | edição especial #05distribuição on-line gratuita

M ULHER ES

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Marilia Kubota

4

Ledusha

15

Marize Castro

9

Jandira Zanchi

20

Luci Collin

45Jussara Salazar

38Editorial 3

Créditos e contato 51

Conceição Evaristo

25

Luíza Mendes

Furia

33

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impossível negar que vivemos um período den-

tro da Literatura brasileira de crescente produção das

mulheres. Muitos novos nomes de escritoras têm sur-

gido, muitos livros têm sido publicados, assim como

festivais e antologias têm sido organizados com intui-

to mostrar a potência desta produção.

Se chegamos até este período, considerando que

mulheres sempre escreveram, mas que faltava este

reconhecimento, quem arrombou as portas? Auta de

Sousa, Gilka Machado, Alba Valdez, Francisca Júlia

e Benedita Delazari são alguns destes nomes, mas e

se considerarmos as escritoras que estão vivas e pro-

duzindo atualmente? Reunimos aqui alguns nomes

e prestamos nossa reverência a estas mulheres que

mostram o caminho.

os editores

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Marilia Kubota

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corpono corpo habita

a fome, no corpo

desespera

o sono, no corpo

circula

a sede, no corpo

o sol

é seda, no corpo

é pouco

o sexo, no corpo

se veste

a noite, no corpo

se pensa

o poço, no corpo

tatua

o sonho, no corpo

a vida

extingue.

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solidão na cidadea cidade é habitada por gentes

que vivem sós

como vivem sós os bichos

e as árvores.

mesmo a gente em multidão

está só

a solidão é um cachorro

passeando na praça

mulheres dentro da igreja

homens bebendo no bar.

a cidade é habitada por gentes

que buscam amor

em varandas ensolaradas

em conversas sobre os jornais

em filmes de gentes

que buscam amor.

o amor pode estar

numa concha

colhida ao acaso na praia

que a mulher só encontra

na praça ao meio-dia:

ela tenta ouvir o barulho do mar

ouve um amante se afogando

num copo d´água.

de repente a concha cospe

o afogado em seus braços.

a mulher febril o abraça

a homem febril a abraça

de repente

não estão mais sós

na cidade de gentes sós.

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notíciaestamos sendo seguidos

perseguidos, controlados,

estamos todos perdidos

achando monstros na rua

enquanto o tempo flutua

lá no alto o sorriso luminoso .

num espetáculo estrondoso

mais uma vez aparece

pra quem jamais agradece

circomeu circo está armado

você nunca vem ver

por que não tem estado

à vontade em viver

meu circo é todo dia

chova ou faça sol

só alegria, alegria

fisga o anzol

meu circo tem a cor

da dor e da solidão

você vê só a flor

que abre do pendão

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desmedidaquanto de teu ar

ainda é meu mar

quanto teu espanto

cala meu canto

quanto pouco sinto

neste labirinto

quanto preciso

pra soltar o riso

quanto improviso

leva ao paraíso

Marilia Kubota (Paranaguá, 06/04/1964) é jornalista e mestre em Estudos Literários pela Universidade Federal do Paraná. Publicou os livros de poesia

Diário da vertigem (2016), micropolis (2014), Esperando as Bárbaras (2012) e Selva de Sentidos (2008) e organizou as antologias Blasfêmeas. Mulheres de Palavra

(2016) e Retratos Japoneses no Brasil (2010). Participou de 13 antologias de poesia e ficção e de exposições de artes no Museu da Língua Portuguesa (SP),

Bienal de Artes de Curitiba, Casa de Cultura Monsenhor Celso (Paranaguá) e Museu Oscar Niemeyer.

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Marize Castro

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não escrevo como mulher porque não sou mulher.

sou um destroço que bóia. um relato lendário.

alguém que tem a dor nas mãos e negrumes secretos no sexo.

estou secando e ouço gritos.

uma desesperada louçã se anuncia:

– o melhor do mundo é não viver nele.

em um escabelo sento a contemplar uma sede sem fim.

mrs. dalloway, você está aí?

senhora d., posso chorar ao seu lado?

euricléia, quando eu voltar você me lavará os pés?

sra. ramsay, então o farol é isso, só isso?

em contínua tristeza os forasteiros vivem.

hoje dormi com batom nos lábios.

o cansaço era tanto que esqueci que também sou homem.

e não canso. e não choro. nunca.

deslindo-me e me desarrumo porque sou gaveta.

telhado. quase cratera. olhicerúlea.

ah, teseu, qual o tesouro secreto que o pai te revelou?

hades me quer. eu digo não. ainda não.

é urgente falar com tirésias.

ir de uma ponta a outra do tâmisa. sozinha.

com uma alegria insuportável.

em mim, femíneos simulacros:

macabéa, qual o tamanho da solidão dos domingos?

blanche, também já dependi da bondade de estranhos.

cabíria, você me ouve?

choro contigo o sentimento trágico da vida.

clitemnestra assassinou cassandra.

mesmo assim eu a amo.

amo as arestas. o que é subterrâneo:

plutão. dioniso. osíris.

estou respirando e tudo é silêncio.

não deslembro mais. simulo.

já sou pélago.

poço. festim. mosaico.

esmerada forma de arder.

In: poço. festim. mosaico, 1996

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mulheres se matam porque cansaram do cheiro do açafrão.

e vivem molhadas. medonhas. invadidas de poesia e pedra.

mulheres viram pássaros

porque do alto têm a certeza que serão salvas.

de lá, contemplam o mundo.

escrevem livros. constroem casas. parques. elipses.

pintam quadros. dão aula. vão para o palco.

dirigem carro. motocicleta.

lêem homero. dante. vieira. camões. platão. pessoa.

são crianças e desejam o inferno.

depois o céu. e novamente o inferno.

andarilhas, herdam vestígios.

e são preciosas. perfumadas.

olham dentro dos olhos dos peixes

e os retiram da água para serem seus companheiros.

planetas delicados são as mulheres.

engravidam de balões. de profundidades.

sentem cólicas. a placenta rompe. o útero se revira.

os ovários se mantêm em segredo. preenchidos.

mulheres choram nas tardes de chuva.

andam de ônibus e são olhadas.

adornam-se de arbustos.

tornam-se perigosas. camufladas.

com leite derramando da alma.

têm tetas. asas.

dívidas. agendas. mapas. bússolas. dor.

aprenderam a ouvir o canto do homem com a língua de

madeira.

são antigas. milenares. pertencem a templos.

consultam oráculos. fazem preces ajoelhadas.

oram pela felicidade do mundo e têm certezas guardadas.

mulheres são alquimistas: transformam topázio em

esmeralda.

esmeralda em safira. safira em rubi. rubi em ametista.

ametista em orvalho. orvalho em anêmona. anêmona em

girassol.

girassol em cassidônia. cassidônia em ágata.

ágata em nave. nave em águia. águia em águia.

mulheres cortam os pulsos. abrem o gás. caem de edifícios.

sobem montanhas. andam de bicicleta. barco. avião.

sentem medo. atravessam paredes.

e se tornam metáforas. anáforas. foguetes.

esmerada forma de arder.

In: poço. festim. mosaico, 1996

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FamintaEstou sem comer

e permaneço à margem

fazendo o que dizem ser pequenas coisas:

alimentar e vermifugar cães e gatos

regar plantas

orientar podas de árvores.

Estou sem comer

e resisto.

Em uma nação semidestruída

a palavra do perverso governante ecoa

(multidões se dão as mãos

e lhe dizem não)

cisnes transfiguram-se em furiosas fêmeas

e a hipocrisia ainda cínica

sepulta a flor.

Inacabada e faminta permaneço:

nébulas de granito servem-me

de cama.

In: A Mesma Fome, 2016

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InteiraIluminada por oráculos

alimento anjos com asas quebradas.

Não é de vendaval que eu preciso

mas da língua do amor guardada à beira-mar.

Não entendo de círios

mas de verões e sargaços bailarinos.

Acolhida pela província

arrisco-me a enlaçar orquídeas em árvores.

Sempre sofri.

Sempre tive febre.

Sempre estive inteira em todos os infernos.

Nunca quis ser abandonada.

Mas aprendi a perder.

O naufrágio me ensinou a ternura dos afogados.

In: Esperado ouro, 2005

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Cássia. Janis. NinaDeliciosas mortas cantam nesta casa.

O delicado espelho revela

o que se apagou por hipocrisia

acidez

babaquice

indulgência

horror.

Deveríamos vir aqui mais vezes

neste lugar onde a gentileza

é uma montanha que desmorona

e se ergue a cada festa

devolvendo aos olhos do mundo

o pequeno-grande sol

– seu primeiro filho.

Somente aqui

(não mais em nenhum outro lugar)

deliciosas mortas reinventam

a vida.

In: A Mesma Fome, 2016

Marize Castro (Natal/RN, 1962) é autora dos livros de poemas Marrons Crepons Marfins (1984); Rito (1993); poço. festim. mosaico (1996); Esperado ouro (2005);

Lábios-espelhos (2009); Habitar teu nome (2011) e A Mesma Fome (2016). É graduada em Jornalismo, tem mestrado em Educação e doutorado em Estudos da

Linguagem. Editou nos anos 1980 o jornal O Galo e, nos anos 1990, a revista Odisseia. Edita seus livros por sua própria editora, a Una, o que define como

“deliciosa e desamparada viagem”. Sobre ela, escreveu Nelly Novaes Coelho no Dicionário Crítico de Escritoras Brasileiras: “Poeta em tom maior, expert em

Comunicação, jornalista, editora e uma das fortes vozes femininas da poesia brasileira contemporânea, revelou-se em livro, em 1984, com a publicação de

Marrons Crepons Marfins que surpreendeu crítica e público pela força e originalidade de sua palavra”. Sobre Marize Castro, afirmou Haroldo de Campos:

“Em seus versos há algo de fundamental, algo entre o belo e o verum, a verdade em beleza, um cuidado especial com a síntese, um encontro com a poesia”.

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Ledusha

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IlhasCá estamos, finalmente. Chegamos com a madrugada e mal pudemos esperar

para ouvir a areia fluida cantando sob nossos pés. Buscamos tantas vezes distância

das alegrias bizarras sem sucesso! Na bagagem odores delicados, nossos vinhos prediletos,

queijos, pães, frutas, cigarros, contos de Silvina Ocampo, e o judiado volume de poemas

de Paul Élouard que comprei no Galeão no dia em que nosso Glauber deu o pinote dessa terra tosca.

Com os solavancos da estrada, os melõezinhos acabaram com as polpas expostas,

o mesmo laranja róseo do amanhecer que nos recebe sem ruído. Levemente perturbados

aspiramos o perfume insular, o mesmo que veio nos indicando o caminho. Nas curvas,

usávamos a primeira pessoa do plural, como já juramos nunca. Soa singular. Pelo estilo do vento,

o dia será magnífico.

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afasto esse poema que vaga pelo quarto

passional como um postal

carioca

nefasto esse poema que detesto

como detesto

os dias lindos de maio

teço e desteço

tal e qual aquela

e permaneço

surda às naves de rapina

nesta ítaca de nuncas

ponto sobre ponto

o teor do meu tear

não desafina

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casinhafronhas, toalhas, calcinhas

espanam a paisagem no varal de arame

onde às vezes também pousam pássaros

sobrevive a poeta em mim

graças aos olhos e às nuvens inquietas

que o vento azul esculpe

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palavras de neve azularam como por encanto

da nossa paisagem

e naves rubras de febre aportam no açúcar da tarde

o sol ganha uma coroa de espinhos

e a paixão é uma romã a cuspir faíscas de rubi

Ledusha ou Leda Beatriz Abreu Spinardi nasceu em Assis, SP, em julho de 1953. Cursou Pedagogia e

Letras na USP até o terceiro ano. Viveu do final dos anos 70 ao início dos 90 no Rio de Janeiro, onde

publicou seu primeiro livro, Risco no Disco (edição independente, 1981). Em seguida vieram Finesse &

Fissura (Ed. Brasiliense, São Paulo, 1984, na Coleção Cantadas Literárias); 40 Graus (Ed. Francisco Alves,

Rio de Janeiro, 1990,); Exercícios de Levitação (Ed. 7 Letras, Rio, 2002); Notícias da Ilha – 31 anos de poesia

(Ed 7 Letras, Rio, 2012). Em 2016 a Luna Parque Edições publicou a segunda edição de Risco no Disco,

celebrando seus 35 anos.

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Jandira Zanchi

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Laicaspoente poemário

enviesado de langores

e latitudes

laicas

armações estiradas no pó

das lentes/lentilhas

alvissareiras

dos domingos desmaiados

fresco andor dessas gaivotas brandas

bramidas em hóstias caídas

quase, quase redimidas

enlouquecidas são as tardes sudárias

sólidas de suas superfícies (metal e metano)

mácula gerada em fronteiras turcas

enquanto cedo cézares de espanto e esperanto

lágrimas avulsas tremidas do desejo

espremidas da dor, dionísias de veracidades

degeneradas de sentimentos.

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Meio diapérolas colhidas em todos os jardins

e madrepérolas enviadas e cozidas

no tecido virgem de cada anoitecer

perseguem a alvorada e se benzem da luminosidade

ardil sem lembranças – ocas – amarelas de prazer

e risíveis desses cânticos de meio dia.

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EscaldanteAMORES SE ACUMULAM COMO AMÊNDOAS

LIBERAM SEU RITUAL DE BELEZA

DINÂMICA ESCALDANTE

EM OITAVA DE ESCALA.

Roteiroroteiro redigido com regia

fé (faísca ferida)

fascinado e feroz

íntegro de sua semente

sedimentado de suposições.

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Pirâmidefloreio uma floricultura no movimento das

mandíbulas

empurradas no empuxo de criaturas sem palavras

atos e gestos gastos em seus olhos fundos

ferozes de vida e movimento

fronteira e beira do cálice

pirâmide erguida de sangue e sal

salgando as rendas e os caminhos dos seres

seqüestrados em espreitas e martírios

grade trincada construída no precipício

chamam isso A Virada para 1/7, 1/8, 1/20

enquanto que para olhos esquecidos ensangüentados

esse céu não corresponde.

Jandira Zanchi é poeta, ficcionista e editora, autora de Área de Corte (Patuá,

2016), Gume de Gueixa (Patuá,2013), Balão de Ensaio (Protexto, 2007) e do li-

vro virtual A Janela dos Ventos (Emooby, 2012). Integra o conselho editorial

de mallarmargens revista de literatura e arte contemporânea e da Editora

Singularidade.

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Conceição Evaristo

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Natalina SoledadNatalina Soledad, a mulher que havia criado o seu próprio

nome, provocou o meu desejo de escuta, justamente pelo fato

dela ter conseguido se auto-nomear. Depois de petições e jus-

tificativas, ela conseguira se desfazer do nome anterior, aquele

do batismo e do registro, para conceber um outro nome para

si. Mudança aceita pelas autoridades do cartório da pequena

cidade em que ela morava. E, a partir desse feito, Natalina So-

ledad começou a narração de sua história, para quem quisesse

escutá-la. E eu, viciada em ouvir histórias alheias, não me con-

tive quando soube da facilidade que me esperava. Digo, porém,

que a história de Natalina Soledad, era muito maior e, como em

outras, escolhi só alguns fatos, repito, elegi e registrei, aqui, so-

mente estas passagens:

Natalina Soledad, tendo nascido mulher, a sétima, depois dos

seis filhos homens, não foi bem recebida pelo pai e não encon-

trou acolhida no colo da mãe. O homem garboso de sua mascu-

linidade, que, a seu ver, ficava comprovada a cada filho homem

nascido, ficou decepcionado quando lhe deram a notícia que o

seu sétimo rebento era uma menina. Como podia ser? – pensa-

va ele – de sua rija vara só saía varão! Estaria falhando? Seria a

idade? Não, não podia ser... Seu avô, pai de seu pai, mesmo com

a idade avançada, na quinta mulher havia feito um menino ho-

mem. E todos os treze filhos do velho, nascidos dos casamentos

anteriores, tinham nascido meninos homens. Seu pai, o mais

velho dos treze, não havia seguido a mesma trajetória do velho

Arlindo Silveira, tivera um único filho, ele. Mas também mor-

rera cedo, antes dos vinte e, devido a esse fato, ele tinha mais

lembranças do avô do que do pai. Fora criado pelo velho. Talvez,

se Arlindo Silveira Filho tivesse vivido o mesmo tempo que o

patriarca vivera, quem sabe não se igualaria ao outro, na faça-

nha de conceber filhos machos, pensava Arlindo Silveira Neto.

E ele, o neto mais velho, que tanto queria retomar a façanha do

avô, vê agora um troço menina, que vinha ser sua filha. Traição

de seu corpo? Ou, quem sabe do corpo de sua mulher? Traição,

traição de primeira! De seu corpo não podia ser, de sua rija se-

mente jamais brotaria uma coisa menina. Sua mulher devia ter

se metido com alguém e ali estava a prova. Uma menina! Só

podia ser filha de outro! E, desde o nascimento da menina, Sil-

veira Neto, que até então cumpria fielmente o seu dever de ma-

rido, - segundo a visão dele - deixou de se aproximar da mulher,

tomou nojo do corpo desobediente dela, do corpo traidor de sua

esposa. E Maria Anita Silveira, entre lamentos e desejos, mal

amamentou a criança. Descuidou-se propositalmente dela e

até concordou que o pai nomeasse a filha de Troçoléia Malvina

Silveira. A criança só herdou o Silveira no sobrenome, porque

a ausência desse indicador familiar poderia levantar a suspei-

ta de algo desonroso manchava a autoridade dele. E, como não

queria passar por mais esse vexame, permitiu que a coisa meni-

na, mal-vinda ao seio familiar, fizesse parte da prole dele, mas

só no nome. Com o tempo, haveria de descobrir uma maneira

de mantê-la longe, bem longe de casa. Nada de deixar alguma

herança para ela. A coisa só pedia e merecia o esquecimento, a

mãe também. A esposa, desassossegada diante do desprezo do

marido, não percebia que, no crescimento da menina, uma ex-

pressão igual à de Arlindo Silveira Neto, marcava o rosto e o

jeito da filha. Nem os meninos homens tinham tanta parecença

com o pai. Ele raivosamente intuía.

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A menina Silveira crescia a contragosto dos pais. Solitária,

aprendera quase tudo por si mesma, desde o pentear dos cabe-

los até os mais difíceis exercícios de matemática, assim como

se cuidar no período dos intímos sangramentos. Dos cadernos

e dos livros velhos desprezados pela prole masculina, que co-

meçava os estudos, ainda quando cada um precisava de auxílio

para suspender a cueca, sozinha ela recolhia suas lições. Silvei-

rinha, como era chamada por alguns, de maneira autodidata, ia

construindo seu aprendizado e ganhando uma sapiência inco-

mum para a sua idade. Só mais tarde, depois de ter como cúm-

plice a voz de um de seus irmãos, obteve a concordância do pai e

consequentemente a da mãe, para frequentar a escola. E foi en-

tão, na ambiência escolar, ao ser vítima do deboches dos colegas,

que a menina Silveira atinou com a carga de desprezo que o pai

e a mãe lhe devotavam e que se traduzia no nome que haviam

lhe imposto. Mas para a surpresa da família, a menina Silvei-

rinha se negava a responder qualquer chamado, em que o seu

nome, aquele de registro e de batismo não fosse inteiramente

dito. Na escola, em casa, na vizinhança, na igreja e em qualquer

lugar que fosse, ela se desconhecia como Silveirinha. Enfatica-

mente, anunciava a todas as pessoas, grandes e pequenas, que o

seu nome era: Troçoléia Malvina Silveira. Pronunciamento fei-

to em todas as ocasiões, inclusive para os namorados que veio

a ter mais tarde. Para o pai e para a mãe, tal atitude lhes permi-

tiu, nas poucas vezes em que se dirigiam a ela, pronunciarem a

antiga raiva, o doloroso incômodo que o nascimento dela havia

causado. Entretanto, a menina Silveira, ali por volta dos doze

anos, momentos de sua entronização na rua, passou a ignorar a

existência dos seus.

Cultivar um sentimento de desprezo pelos pais, na mesma

proporção em que eles não lhe ofereciam nenhum abraço de

resguardo, se tornou, para a menina Silveira, um modo simul-

tâneo de ataque e defesa. Ostensivamente, ignorava a presença

dos dois, não só na intimidade familiar, mas fora dela também.

Dentro de casa, muitas vezes tateava o espaço, como se estivesse

no escuro, ou melhor, no escuro estava, pois andava de olhos

fechados, quando percebia qualquer proximidade dos dois. Não

suportava vê-los. Recusava sentar-se à mesa, alimentava-se no

quarto ou na cozinha e, como uma sombra, quase invisível,

transitava em silêncio, de seu quarto ao banheiro e à cozinha,

mesmo entre os seus irmãos. Da voz, da fala de seus familiares,

não criou necessidade alguma. Bastavam-lhe os resumidos ges-

tos que compunham a comunicação entre ela e a única domés-

tica da casa. O carinho morava na cozinha. Vinha de Margarida,

o lenitivo para a dura existência da menina, mesmo assim, um

dia tudo acabou. A moça, à custa de muito sofrimento, se viu

obrigada a romper o elo fraterno que havia entre ela e Silveri-

nha. Era impossível continuar trabalhando em uma casa, onde

o dono, a dona e seus filhos, aos berros, como se surda ela fosse,

ditavam todas as ordens, com gestos de quem brame um chico-

te no ar. E receber um salário minguado que não compensava

nenhum trabalho e, muito menos qualquer sofrimento. Sentia

pela menina e a solidão de gente grande que ela experimentava

desde pequenina, desde sempre. Silveirinha, mesmo perceben-

do o acolhimento da outra moça, que chegou mais tarde para

trabalhar no lugar de Margarida, continuou acomodada em sua

solidão. Tinha um só propósito. Um grande propósito. Inventar

para si outro nome. E, para criar outro nome, para se rebatizar,

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antes era preciso esgotar, acabar, triturar, esfarinhar aquele que haviam lhe imposto. Pacientemente a menina Silveirinha esperou.

A moça Silveirinha esperou. A mulher Silveirinha esperou. E, nas diversas andanças do tempo sobre o corpo dela, muitos aconteci-

mentos. Os irmãos cresceram mais e mais. Sobrinhas e sobrinhos chegaram. Pai e mãe envelheceram. O desprezo recíproco, entre

ela e seus, continuou e respingou sobre a prole infantil que se formava. Tia esquisita aquela, - diziam os sobrinhos - desde o nome

– Tia que pouco saia de seu quarto. Não tão jovem, não tão velha. Quantos anos teria a Tia Troçoléia Malvina Silveira? Que nome!

Que nome! Tão esquecita essa tia! Talvez por isso o vó e a vô tivessem lhe dado esse nome... E as crianças cresciam rejeitando a tia,

que também rejeitava os sobrinhos.

Silveirinha, já adulta, depois de alguns pouquíssimos amores, - aliás, nem amores eram, e sim raríssimos encontros sem graça

alguma, com homens de belos nomes, desistiu também do amor a dois. Dos amores múltiplos de família, ela não experimentava

lembrança alguma. Pouco se importava, só o único desejo a perseguia: o de se rebaltizar, o de se auto nomear. Em suas leituras, das

mais diversas, entendia que o direito que ela havia desejado desde criança, na prática, existia. Aos dezoito anos - dizia para ela mes-

ma - toda pessoa, vitima de seu próprio nome, pode trocá-lo. Mas Silverinha, somente aos trinta, decidiu. Nem ela sabia explicar por

que aguardou tanto tempo. Talvez - penso eu - apesar de tudo, por um inexplicável respeito aos pais. Sim, pois só depois que os dois,

vítimas de um desastre de carro, morreram, foi que Silveirinha tomou a decisão. Rumou ao cartório para se despir do nome e da

condição antiga. Abdicou da parte da herança que lhe caberia. O pai resolvera não lhe deserdar, deixou-lhe algumas casinhas que

lhe forneceriam rendas para viver. Rejeitou também a incorporação do sobrenome familiar – Silveira - ao seu novo nome. E, sono-

ramente, quando o escrivão lhe perguntou qual nome adotaria, se seria mesmo aquele que aparecia escrito na petição de troca, ela

respondeu feliz e com veemência na voz e no gesto: Natalina Soledad. O tabelião, não crendo, tentou argumentar que aquele nome

destoava da denominação familiar dos Silveiras e que era meio esquisito também. Por que Natalina Soledad? Por quê?

Natalina Soledad - nome, o qual me chamo - repetiu a mulher que escolhera o seu próprio nome.

In: Insubmissas Lágrimas de Mulheres, Contos, Rio de Janeiro, Editora Malê, 2016,pag 18-24

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MariaMaria estava parada há mais de meia hora no ponto do ôni-

bus. Estava cansada de esperar. Se a distância fosse menor, te-

ria ido a pé. Era preciso mesmo ir se acostumando com a cami-

nhada. O preço da passagem estava aumentando tanto! Além

do cansaço, a sacola estava pesada. No dia anterior, no domingo,

havia tido festa na casa da patroa. Ela levava para casa os res-

tos. O osso do pernil e as frutas que tinham enfeitado a mesa.

Ganhara as frutas e uma gorjeta. O osso a patroa ia jogar fora.

Estava feliz, apesar do cansaço. A gorjeta chegara numa hora

boa. Os dois filhos menores estavam muito gripados. Precisava

comprar xarope e aquele remedinho de desentupir nariz. Daria

para comprar também uma lata de Toddy. As frutas estavam

ótimas e havia melão. As crianças nunca tinham comido melão.

Serás que os meninos iriam gostar de melão?

A palma de uma de suas mãos doía. Tinha sofrido um corte,

bem no meio, enquanto cortava o pernil para a patroa. Que coi-

sa! Faca-laser corta até a vida!

Quando o ônibus apontou lá na esquina, Maria abaixou o

corpo, pegando a sacola que estava no chão entre as suas pernas.

O ônibus não estava cheio, havia lugares. Ela poderia descansar

um pouco, cochilar até a hora da descida. Ao entrar, um homem

levantou lá de trás, do último banco, fazendo um sinal para o tro-

cador. Passou em silêncio, pagando a passagem dele e de Maria.

Ela reconheceu o homem. Quanto tempo, que saudades! Como

era difícil continuar a vida sem ele. Maria sentou-se na frente.

O homem assentou-se ao lado dela. Ela se lembrou do passado.

Do homem deitado com ela. Da vida dos dois no barraco. Dos

primeiros enjoos. Da barriga enorme que todos diziam gêmeos,

e da alegria dele. Que bom! Nasceu! Era um menino! E haveria

de se tornar um homem. Maria viu, sem olhar, que era o pai

de seu filho. Ele continuava o mesmo. Bonito, grande, o olhar

assustado não se fixando em nada e em ninguém. Sentiu uma

mágoa imensa. Por que não podia ser de uma outra forma? Por

que não podiam ser felizes? E o menino, Maria? Como vai o me-

nino? cochichou o homem. Sabe que sinto falta de vocês? Te-

nho um buraco no peito, tamanha a saudade! Tou sozinho! Não

arrumei, não quis mais ninguém. Você já teve outros... outros

filhos? A mulher baixou os olhos como que pedindo perdão. É.

Ela teve mais dois filhos, mas não tinha ninguém também. Fica-

va, apenas de vez em quando, com um ou outro homem. Era tão

difícil ficar sozinha! E dessas deitadas repentinas, loucas, sur-

giram os dois filhos menores. E veja só, homens também! Ho-

mens também? Eles haveriam de ter outra vida. Com eles tudo

haveria de ser diferente. Maria, não te esqueci! Tá tudo aqui no

buraco do peito...

O homem falava, mas continuava estático, preso, fixo no

banco. Cochichava com Maria as palavras, sem entretanto vi-

rar para o lado dela. Ela sabia o que o homem dizia. Ele estava

dizendo de dor, de prazer, de alegria, de filho, de vida, de morte,

de despedida. Do burraco-saudade no peito dele... Desta vez ele

cochichou um pouquinho mais alto. Ela, ainda sem ouvir di-

reito, adivinhou a fala dele: um abraço, um beijo, um carinho

no filho. E logo após, levantou rápido sacando a arma. Outro lá

atrás gritou que era um assalto. Maria estava com muito medo.

Não dos assaltantes. Não da morte. Sim da vida. Tinha três fi-

lhos. O mais velho, com onze anos, era filho daquele homem

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que estava ali na frente com uma arma na mão. O de lá de trás

vinha recolhendo tudo. O motorista seguia a viagem. Havia o

silêncio de todos no ônibus. Apenas a voz do outro se ouvia pe-

dindo aos passageiros que entregassem tudo rapidamente. O

medo da vida em Maria ia aumentando. Meu Deus, como seria

a vida dos seus filhos? Era a primeira vez que ela via um assalto

no ônibus. Imaginava o terror das pessoas. O comparsa de seu

ex-homem passou por ela e não pediu nada. Se fossem outros os

assaltantes? Ela teria para dar uma sacola de frutas, um osso de

pernil e uma gorjeta de mil cruzeiros. Não tinha relógio algum

no braço. Nas mãos nenhum anel ou aliança. Aliás, nas mãos

tinha sim! Tinha um profundo corte feito com faca-laser que

parecia cortar até a vida.

Os assaltantes desceram rápido. Maria olhou saudosa e de-

sesperada para o primeiro. Foi quando uma voz acordou a co-

ragem dos demais. Alguém gritou que aquela puta safada lá da

frente conhecia os assaltantes. Maria assustou-se. Ela não co-

nhecia assaltante algum. Conhecia o pai de seu primeiro filho.

Conhecia o homem que tinha sido dela e que ela ainda amava

tanto. Ouviu uma voz: Negra safada, vai ver que estava de coleio

com os dois. Outra voz vinda lá do fundo do ônibus acrescentou:

Calma gente! Se ela estivesse junto com eles, teria descido tam-

bém. Alguém argumentou que ela não tinha descido só para

disfarçar. Estava mesmo com os ladrões. Foi a única a não ser

assaltada. Mentira, eu não fui e não sei porquê. Maria olhou na

direção de onde vinha a voz e viu um rapazinho negro e magro,

com feições de menino e que relembravam vagamente o seu

filho. A primeira voz, a que acordou a coragem de todos, tor-

nou-se um grito: Aquela puta, aquela negra safada estava com

os ladrões! O dono da voz levantou e se encaminhou em direção

à Maria. A mulher teve medo e raiva. Que merda! Não conhe-

cia assaltante algum. Não devia satisfação a ninguém. Olha só,

negra ainda é atrevida, disse o homem, lascando um tapa no

rosto da mulher. Alguém gritou: Lincha! Lincha! Lincha!... Uns

passageiros desceram e outros voaram em direção à Maria. O

motorista tinha parado o ônibus para defender a passageira:

- Calma pessoal! Que loucura é esta? Eu conheço esta mulher

de vista. Todos os dias, mais ou menos neste horário, ela toma o

ônibus comigo. Está vindo do trabalho, da luta para sustentar os

filhos... Lincha! Lincha! Lincha! Maria punha sangue pela boca,

pelo nariz e pelos ouvidos. A sacola havia arrebentado e as fru-

tas rolavam pelo chão. Será que os meninos gostam de melão?

Tudo foi tão rápido, tão breve, Maria tinha saudades de seu

ex-homem. Por que estavam fazendo isto com ela? O homem

havia segredado um abraço, um beijo, um carinho no filho. Ela

precisava chegar em casa para transmitir o recado. Estavam to-

dos armados com facas-laser que cortam até a vida. Quando o

ônibus esvaziou, quando chegou a polícia, o corpo da mulher

estava todo dilacerado, todo pisoteado.

Maria queria tanto dizer ao filho que o pai havia mandado

um abraço, um beijo, um carinho.

In: Olhos D’água, contos, Rio de Janeiro, Editora Pallas, 2014, pag 39-42.

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Ei, ArdocaO barulhar seco e cortante do trem irritava os ouvidos de

Ardoca. O atrito da máquina nos trilhos ecoava constantemen-

te no fundo de seus tímpanos. Aos domingos, dentro de casa,

no silêncio da mulher, nas vozes e brincadeiras dos filhos, ele

ouvia o arranhado grito do aço espichado sobre o solo. Grito

lancinante e cortante debaixo do comboio pesadão que parecia

massacrar a linha férrea inerte. Ardoca nascera quase que den-

tro daquela máquina. Sua mãe, moradora do subúrbio, fazia a

viagem diária rumo ao trabalho. Ela grávida, ele estufando na

barriga materna respondia aos solavancos do trem, com chutes

internos. Depois, cá fora, no mundo, no colo da mãe, acordava

e chorava durante todo o tempo da viagem. Cresceu em meios

aos solavancos, ao empurra-empurra, aos gritos dos camelôs, às

rezas dos crentes, às vozes dos bêbados, aos lamentos e cochilos

dos trabalhadores e trabalhadoras cansadas. Assistiu inúmeras

vezes, como testemunha cega e muda a assaltos, assassinatos,

tráfego e uso de droga nos vagões superlotados. A cada viagem

Ardoca mais estranhava e desacostumava à vida do trem. Que-

ria viajar com o mesmo descuido de alguns que jogavam por-

rinha ou dormiam durante o percurso, mas permanecia sem-

pre desesperadamente acordado. Estava sempre atento, tenso,

como se o trem, a qualquer momento, pudesse se autocolidir,

se autoembarafunhar.Tinha a sensação de que o último vagão

ia se fechar em círculo sobre o primeiro, soltando tudo e todos

pelos ares.

E foi então, que naquela tarde, Ardoca caminhou com passos

lentos em direção a estação. Era sábado. O movimento menor

de passageiros não garantiu porém a possibilidade de um lu-

gar vazio. Ele se sentia cansado por todos os dias, todos os traba-

lhos, e por toda a vida. Entrou na fila para a compra do bilhete.

O funcionário deu-lhe o troco. Ardoca com um gesto recusou.

Olhou a máquina, a composição pareceu-lhe mais longa ain-

da. Subiu com dificuldades, encostou-se na parede do vagão e

foi lentamente escorregando até chegar ao chão. Algumas pes-

soas riram. Alguém gritou que o homem estava bêbado. Outro

completou a observação dizendo que o dinheiro do pobre não

dava para o alimento, mas dava para a cachaça. O trem continu-

ava parado, entretanto a barulheira sobre os trilhos alcançava

e feria os ouvidos de Ardoca. Ele sorria um pouco. Um suor frio

escorria sobre a sua face. Um grupo de crente cantava olhando

para ele como se quisesse comovê-lo. Aleluiavam aos altos bra-

dos a um Senhor, que segundo eles, falava em silêncio aos ho-

mens. Ardoca abandonava o corpo que pendia lentamente para

um lado. O passageiro do banco próximo encolheu o pé. Um

camelô, que vendia água, pulou por cima dele, para atender a

um outro passageiro. Ardoca respirava com dificuldade, debai-

xo do negro de sua pele, um amarelo desbotado aparecia. Uma

mulher levantou, comprou um copo d’água e deu-lhe de beber

tentando reanimá-lo. Os crentes continuavam bradando o hino.

O vendedor de água buscando um espaço para fazer valer a sua

fala anunciava o seu produto em altíssima voz. O trem para-

do continuava mortificando os ouvidos fragilizados de Ardoca.

Enquanto isso, sua vida ia se aprofundando mais e mais no dis-

sentir de tudo.. Ele buscava a respiração lá no fundo. A mulher

que lhe socorreu parecia querer chorar. Neste momento en-

trou no vagão um passageiro correndo e gritando. Desesperado,

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empurrou as pessoas buscando passagem em direção ao rapaz

desfalecido. Chama por ele:

_ Ei, Ardoca! Ei, Ardoca!

Rapidamente o tomou no colo, desceu do trem e o depositou

no banco da estação. A composição iniciou lentamente a parti-

da. Cá de dentro, a mulher que se condoera de Ardoca e alguns

outros passageiros ainda puderam ver. Aquele que socorrera o

rapaz, estava a meter-lhe a mão nos bolsos, a arrancar-lhe os

sapatos e o relógio que ele trazia no pulso. Ardoca estava sendo

assaltado. A mulher fez menção de descer, mas a máquina ga-

nhou velocidade e partiu. Não era preciso, porém nem dor, nem

lágrimas. O outro podia levar os poucos pertences de Ardoca.

Podia tomar-lhe tudo. Ardoca não tinha mais nada, nem a vida.

Naquela tarde, ainda no trabalho ele resolvera tudo. Num gesto

desesperado e solitário bebera lentamente um veneno e decidi-

ra levantar para morrer no trem. O outro levava os pertences de

alguém que já despertencia à vida e jazia no banco da estação.

O barulho da máquina sobre os trilhos entoava uma música

réquiem de descanso eterno para Ardoca, Amém.

In: Olhos D’água, contos, Rio de Janeiro, Editora Pallas, 2014, pag 95-97.

Conceição Evaristo, ficcionista e ensaísta. Mestre em Literatura Brasileira/

PUC/Rio, Doutora em Literatura Comparada/UFF. Sua primeira publica-

ção (1990) foi na série Cadernos Negros, grupo Quilombhoje, coletivo de es-

critores afro-brasileiros de /SP. Participa das antologias: Schwarze prosa e

Schwarze poesie (Alemanha); Moving beyond boundaries: international di-

mension of black women’s writing; Women righting – Afro-brazilian Women’s

Short Fiction, (Inglaterra), Finally Us: contemporary black brazilian women

writers; Fourteen female voices from Brazil (Estados Unidos); Chimurenga

People (África do Sul). É autora das seguintes obras individuais: Ponciá

Vicêncio (romance) traduzido para o inglês, francês e espanhol; Becos da

memória (romance) traduzido para o francês; Poemas da recordação e ou-

tros movimentos (poesia) Insubmissas lágrimas de mulheres (contos) Olhos

d’água (contos) e Histórias de leves enganos e parecenças. Em 2015, foi agra-

ciada com o Prêmio Jabuti, na categoria contos. Contemplada com o prê-

mio Faz a Diferença – Globo, 2016, na categoria prosa.

Tem participação em vários eventos internacionais como convidada,

proferindo palestras em diversas Universidades nos Estados Unidos, no

México, em Costa Rica, em Cuba, em Moçambique, em São Tomé e Príncipe,

na França, Inglaterra e Áustria.

A produção de Conceição Evaristo é ampla, se inscreve no campo da poe-

sia, da prosa e ainda no ensaio literário. A escritora escreve sobre assuntos

relacionados á educação, gênero e relações étnicas na sociedade brasileira.

Tanto a sua obra literária, como a ensaística tem sido pesquisada por estu-

diosos de vários campos de conhecimentos.

Além de participar de eventos propostos nos meios acadêmicos,

Conceição Evaristo tem marcado a sua presença nos movimentos sociais,

notadamente nos que se relacionam com a luta dos afro-descendentes. Ela

tem se apresentado ainda em vários eventos, contando histórias de sua

própria autoria, assim como de outros/as autores/as, buscando inspirar-se

na oralidade da cultura afro-brasileira.

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Luíza Mendes

Furia

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XNão. Não há nenhuma emoção.

Apenas uma folha seca sob a blusa.

E no lugar do sexo uma concha oca.

Prazeres calcinados

Paixão cauterizada

como uterina ferida.

Nenhuma emoção. Nenhuma voz

a sacudir o corpo em fogo ou lágrimas

ternura ou espasmos.

Apenas a esperança muda

de que ninguém pise na folha seca

sob a blusa. XIAbandona teu corpo às minhas mãos.Mar sereno

serei ou, se quiseres,onda impetuosa tangida

pelo vento.

Pétala de rosa serei

sobre a anêmona do teu ventre

ou espada de água entre tuas algas tépidas.

Por testemunha – e cúmplice –

teremos apenas a noite

silenciosa e ardente.

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XIIIEscrevo o que me vem ao pensamento

Para falar de ti esqueço a hora

Amor, amada minha, flor do tempo

girando entre os ponteiros da demora.

Estive à tua espera e este momento

é a síntese da morte que estertora

Amor meu, nego a morte, vou constante

em busca desse amor a vida afora

Os meus minutos são teus, rosa silente,

prenunciando pétalas ardentes

que quero aspirar nas profundezas

Depois chegar ao cerne docemente

roçando a língua quente com destreza

até que tu te entregues e floresça.

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MoradaErgui minha casa na noite

sem muros

Ao longe o rio da infância

e seu eterno murmúrio

Cultivei jardins rebeldes

amantes da água e do vento

e neles passeio os olhos

quando estou sedenta.

Ergui minha casa na noite

de translúcidas janelas

Ao longe a cidade ecoa

uma canção que é só dela.

No alto a solidão

enluarando tudo.

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Enquanto o desespero

reverbera a dor

nas ondas do silêncio

no marulhar do vento

a noite vai e vem

regurgitando gritos

redondos e obesos

fora do tom.

Um bicho com medo

o coração.

Mas no tambor das horas

o susto da canção.

Luíza Mendes Furia (21/11/1961, Caçapava/SP) escreve desde menina. Aos 16 anos publicou em edição particular Madrugada e Outros Poemas. Em 1980, mu-

dou-se para São Paulo, onde se formou em jornalismo, profissão que exerce há 35 anos. É autora, ainda, de Inventário da Solidão (poemas, Giordano, 1998),

O Travesseiro Mágico (infantil, Giostri, 2013) e Vênus em Escorpião (poemas, Patuá, 2016). Participou de várias antologias, sendo as mais recentes a Coletânea

Prêmio Off Flip de Literatura (2015) e a Antologia Inaugural Patuscada (2016). Em 1990, ficou em 2º lugar no Concurso Nacional de Literatura Cidade de Belo

Horizonte.

Tem poemas em publicações do Brasil e de Portugal, em sites e blogs, como o Alguma Poesia (www.algumapoesia.com.br/poesia3/poesianet370.htm), a

São Paulo Review (https://saopauloreview.com.br/alguns-poemas-de-venus-em-escorpiao-de-malu-furia/) e a revista on-line Germina (www.germina-

literatura.com.br/erot_ mai06_lmf.htm). Um breve comentário sobre seu trabalho consta do Dicionário Crítico de Escritoras Brasileiras, de Nelly Novaes

Coelho (Escrituras, 2002). A autora mantém um site – https://malufuria.wordpress.com/ e lançou em 2016 a www.prazerdeler.net – a revista dos livros.

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Jussara Salazar

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a casa:aquele corpo sentimentalparedes

prateleiras

armários

são paisagens

linhas de um horizonte

arabescos íntimos. Como não imaginá-la

a casa – esse corpo sentimental?

paredes vazias revelam a outra casa

a que se esconde

a verdadeira pele da casa

na imperfeição de seu relevo

revelação de si mesma

última página. A derradeira casca da cebola

agora alvejada

por uma rajada de balas cegas. Um front.

Paredes em silêncio

marcas

vestígios de guerras

corpos irregulares. Espaço nulo

buracos escavados. Talvez recordem o

dia em que você acordou feliz

e dançou um samba na sala

depois de um gin tônica

se não me engano. A música

e o olhar para as grandes janelas

voltadas para um mar de outras janelas

mar de pequenas luzes

sirenes

sinos

alardes de crianças ao anoitecer.

Agora os móveis perfurados

desfeitos

desarmados

o outro lado

o inútil. Visto de um ponto atrás do palco

onde a entrada é proibida ao público

pedaços de avesso

escombros inacabados

improvisos. Restos de madeira

de uma antiga demolição

sem nexo e sem passado

chegarão ao novo destino

sujas, encharcadas pela chuva

que sem aviso cairá sobre o caminhão.

A casa

agora vazia de objetos e risos

calará com teus segredos entre frestas

no reflexo do velho espelho. E o teu riso

sem que ninguém perceba

soará do nada

como um guarda-chuva esquecido

para desaparecer outra vez

como o cão que segue um rosto anônimo

e some sem deixar vestígios

por esta rua

desconhecida e luminosa

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um animal deitado à beira do rioSerei sutil, digo, não me espere para o jantar

madame bovary? não

ou madame bovary c’est moi

e não serei sutil como clara

atirando cascas de amendoim no garçon

clara gargalhando em santelmo

no palco a atriz repete hay cadáveres

perlongher é um fantasma

e vaga perlongher vaga

entre a corrientes y a 9 de julio, clara

dormindo no trem para o cohglan

onde no supermercado a bolsa de todos os clientes

será revistada - mas serei sutil

ainda que mamãe diga: “poetas mentem”

e eu, eu mesma, não diga nada

se da janela não vejo

da janela vejo pasárgada,

lugar do azul inconsequente

e ainda eu, joana a louca de espanha

rainha e falsa demente

a que rasga

papeis ao vento

avance com meus cavalos quando o azul for silêncio

um silêncio tedioso

sobre o vidro que escurece e não mente

porque agora estou deitada na beira de um rio

e morro como um velho elefante, eu

esse bandeira menino

pois já sei que não há mais azul

nem telefone automático

sequer há reinado nem as histórias de rosa

da janela vejo já não vejo pasárgada

“mas nem tudo está perdido,

Luiza acordou sem febre”

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os olhos de teresaolhos abertos

cigarras tontas

de sono e bebida

e nenhum beijo amansa

os cavalos em fúria

soltos

na cidade vazia

move-se um mundo

o teu cavalo são ossos

o teu cavalo sem nervos

o teu cavalo-moça

trota

reino de lobos

sem heróis ou dentes

apenas

um olho de unicórnio

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[Jovita feitosa. outra tarifa de embarque]

[em memória de wally Salomão e para Ricardo Domeneck em Modo de Usar & Co]

Não te decepciones ao pisares a estrada real de damasco

Não te decepciones

Não apunhales o peito

Sei que

A estrada real não mais existe

Desde que derramaram cortinas fantasmagóricas

Desde que cobriram camadas de ouro folheado

Do oriente

Com a fumaça de obuses

Águas de flor não mais perfumam tecidos e almofadas

Tambores e pegis se calaram

Desde África

Tauá, Jaicós

Ceará e Pernambuco

E tuas flores, vestidos, uniformes

Desastres de guerra. Cartões de amor extraviados

Reinos de lá e de cá

[gravuras do Allepo, Latakkia, Tartus, Arward]

Agora gente a vagar pelo mundo

Mensagens soando dos tambores

Não te decepciones

Por entre os homens onde caminhastes como diadorim

Solitária

Entre guarnições granadas projeteis fardos. Naquele vapor

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Que saiu de teresina até parnaíba

A casa de zâmbi e as pedras sagradas te ungiram

E guerra nenhuma se igualou a ti

Ao teu sangue

Negado pelos mesmos homens que agora destroem

Cantigas de criança desgarradas como bezerros

Cobertas de pó e mudez

Perdidas

Sobre esses pastos pisoteados

Sem deuses

Não te decepciones

Porque o ouro seiscentista permanece em todas as casas que habitamos

Oculto em meio à sala

Acordando o turíbulo com seus vapores de alecrim

Enquanto o jasmim da pérsia vai perfumando as noites

Nunca viste minha avó Dionysia

[a negra juremeira]

Frente ao espelho e vestida como um fantasma em sua camisola branca

Quando desatava o cabelo e caminhava

Candeeiro à mão

Atravessando os vãos da velha casa com suas janelas e portas altas

Não te decepciones ao pisares o chão desta guerra

Que guerra nenhuma se iguala a ti

Ao teu sonho e a tua carne

Frente ao tempo em que novas guerras nos chegam

De um estranho mundo de botas e corpos

Curtumes em silêncio. Sem a tua natureza

Carne apunhalada aos dezenove. Depois

Esquecida

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vagandoas ondas

o tule

do mar

do extremo amor

devolveu a

cabeça do querubim

perdido

Jussara Salazar é poeta e artista visual. Publicou Inscritos da casa de Alice [1999], Baobá, poemas de

Leticia Volpi, [2002], Natália [2004], Coraurissonoros [Buenos Aires, 2008], Carpideiras [2011] com a Bolsa

Funarte, ficando entre os finalistas do Prêmio Portugal Telecom na edição de 2012, e O gato de porcela-

na, o peixe de cera e as coníferas [2014]. Tem sua obra publicada em diversas revistas e traduzida para

o inglês, o espanhol e o alemão. É doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC/São Paulo e Mestre

em Estudos Literários pela Universidade Federal do Paraná.

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Luci Collin

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OntivoNos encontraremos e eu estarei atarefada

e você estará imerecível

e eu estarei cansada para o cafezinho

e você estará exausto para um cinema

e eu estarei amorfa

e você palimpsesto

e eu estarei rendida às evidências mais ocultas

e você descompassado às vivências absolutas

e eu estarei com pressa

e você naquela hora imprevisível

e eu estarei naquela hora portentosa

e você estará naquele momento incrível

e eu estarei naquela manhã chuvosa

e você estará naquela noite audível

e eu retrocederei até auroras

e você avançará aos ocidentes

e eu compreenderei infinitudes

e você desvestirá os contratempos

e eu deslizo pela superfície e vou embora

e você mergulha mar adentro e refloresce

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Uma tarde que caiQuando o vemos está sentado no banco da praça

Ela está em casa presa à trama silenciosa

Na praça pássaros e flores são sinceros

Na janela pássaros são fantasmagóricos

Com o lenço do bolso ele seca o suor da testa

Ela enxuga os olhos com a manga

Ele rosna mas só por dentro

Ela supura mas nunca aos domingos

Ele lastima porque o pão é azul

Ela suspira e a tarde muda se avelhanta

Ele pergunta se as janelas são sinceras

Ela pensa em se atirar nalguma água

São fantasmagóricos os azuis que saem dos olhos

A gangrena e a borra são absolutos

Quando o vemos está em frente à TV imaterial

Ela está de costas de bruços de borco

Ele está palitando os dentes à espera

Ela vazia

Ele está entardecente e flama

Ela boia sobre a água azulíssima

Ele tosse cospe resmunga lanceia vage

Ela fez as unhas e o bolo simples

A previsão do tempo anuncia chuva

Ela toca a pedra friíssima

Ele se ofende

Ela se ofélia

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Álbumcomo são enormes

as ossadas de animais no museu nacional

(“Não se diz ‘ossos’”, advertiu a tia solteirona

formada em filosofia pura)

quando descobri o imenso livro de anatomia

de crustáceos e moluscos

sob impulso científico enclausurei

insetos nos vidrinhos de remédio

da bisavó

a bisavó chorava à toa, aliás,

e zanzava pela casa ralhando (em vêneto)

com fantasmas que a haviam

abandonado

bem ali

como são enormes

as lembranças

quando meu pai me perdeu no mar

quando minha mãe me perdeu na saída do cinema

deve ter durado trinta segundos

e até hoje

quando o carrilhão dá cinco

(que era a hora do bolinho de polvilho)

sento-me pro chá solitário

e folheio um atlas de imagens decorridas

que se debatem como insetos

e o gole tem um gosto desabitado e ermo

porque perdi o código

com que se argumenta

com os fantasmas

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Deveras o poeta finge

e enquanto isso

cigarras estouram

pontes caem

azaleias claudicam

édipos ressonam

vacinas vencem

a bolsa quebra e

o poeta finge

e enquanto isso

vagalhões explodem

o pão adoece

astros desviam-se

manadas inteiras se perdem

a noite range

o vento derruba ninhos e

o poeta finge

e enquanto isso

vozes racham

veias entopem

galeões afundam

medeias abatem crias

turvam-se as corredeiras

o sapato aperta e

o poeta finge

que as mãos cheias de súbitos

não são as suas

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Sinopsetodas as histórias são de amor portanto: todas as histórias serão nossas portanto: todas as histórias serão tristes portanto: todas as

histórias serão começo e meio portanto: todas as histórias se repetem portanto: todas as histórias serão únicas portanto: todas

as histórias serão filmes portanto: em todas as histórias estamos no escuro portanto: todas as histórias são saudade portanto:

todas as histórias são um livro portanto: todas as histórias nunca contam portanto: os acontecimentos são segredo portanto:

aqui só encontramos vagas cenas portanto: aqui só encontramos cenas mudas portanto: todas as histórias são retratos

portanto: aqui nós acatamos simulacro portanto: aqui vamos fingir portanto: que todas as histórias se repetem portanto: que

todas as histórias são começo e meio portanto: que todas as histórias valem deixas portanto: que todas as histórias são a nossa

portanto: que todas as histórias são de amor portanto: que todas as histórias têm um

fim

Luci Collin, poeta e ficcionista curitibana, tem 15 livros publicados.

Traduziu Gertrude Stein, Gary Snyder, e. e. cummings, Vachel Lindsay,

Jerome Rothenberg e Eiléan Ní Chuilleanaín, entre outros. Tem pós-dou-

torado em Literatura Irlandesa e leciona na UFPR.

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