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revista parênteses | edição especial #06distribuição on-line gratuita
M ULHER ESSUPERNOVAS
Pilar Bu
12Daisy
Serena
4
Julia Raiz
24
Estela Rosa
17
Caroline Policarpo
29
Maíra Mendes Galvão
58Rita
Isadora Pessoa
49
Editorial 3Créditos e contato 64
Yasmin Nigri
35
Priscilla Campos
41
é um momento de crescimento na produção literá-
ria feita por mulheres brasileiras. Novos nomes sur-
gem a cada instante, alguns um tanto tímidos e outros
provocando burburinhos. Em ambos os casos, essas
escritoras trazem frescor ao que já foi pensado, feito,
discutido.
A Parênteses se arrisca a pinçar alguns destes no-
mes na Internet e arranjá-los nesta edição especial.
O trocadilho “supernovas” não diz respeito só à ida-
de das autoras. Na verdade, tem muito mais a ver com
o brilho estelar delas.
os editores
Daisy Serena
5
Tríplice encontro marítimopara Luedji Luna & Tiganá Santana
I - o encontro tem de ser foz.eu rio
no rasto
do teu
mar.
tu sal
oceânico
em
lagoa
de mim:
decanta!
III - o encontro: saliva própria da sede.espuma
derramada
origem própria
da língua.
passeia
submersa
em
corpos
ondas
e corais.
II - o encontro busca ser tromba d’água.não há margens
para alcance de
vistas & braços.
redemoinho
de nós
sem
embarcação.
6
Eu sou a febre do ratosenhores
senhoras.
ensandecida ante
espelhos castos,
reflexo de fogueiras
que incineram séculos.
eu sou clichê
caricatura d’um humor
descartável.
bruxa,
puta,
preta,
macumbeira,
sou o que tu
discursa como
imoral
enquanto
me brinda
outra taça.
[que bela,
que samba,
mulata]
não há engano,
não são pra mim
os girassóis
não foi acaso
o dedo em riste
direcionando
os pratos.
eu sou a rima pobre,
benzinho,
o alvo pr’onde
seguem
certeiros dardos
sou a direção única
meio à turba,
é pra mim
a pedra
o pau
o silêncio
o disparo
7
Trava-línguasPor João Victor e incontáveis-mais.
trava a línguae conta:
quantospretospobresprecisam
pra matara fomede tantorei-zinesfomeado?
trava e nosibilardoentre-dentes
risca a lousae mostra
onde que essaconta fecha.
[aguardo]
a balança não táequiparada,
não sinhô!
d’um ladoespanca’rrasta
doutro‘laudo médico’
e.. well, well, well
voltamos àquelaadivinhança
quem é que pode falar,afinal?
“eles têm fatos,nós temos opiniões.
eles têm conhecimento,nós temos experiência”
me calo, pois.
mas,vem e
travaessa tua línguatoda migalha de fartura
emediz
bem rapidinhotrês vezes:
quantos tigrestristes maisnas entranhasdas favelas?
quantascaçapascomcarcaçasescondidinhasem ruelas?
8
sem gaguejar
com linguinha
travada
projeta a voz
do alto do
cadafalso
ou
silenciosamente
pisa-ligeiro
antes que
sabiá assobie
solto
anunciando
enxurrada.
quantas rimas
necessárias
pr’assumir teu
genocídio?
vamo-lá,
bem depressinha,
seu dotô,
que o relógio
dos
ratos
ruge
mais alto
qu’estalo
de ratoeira.
arredonda teu
argumento
9
Pêndulo de búfalo & borboleta
epahei, oyá.
também para Alê Almeida & Bárbara Esmenia
no arrebate
da surpresa-força,
temporal que
não ouvi sinais
quiçá engodo
semiótico:
trovões antevistos
em vestimentas de
significante-riacho
era
alvoroço sem queda
de cachoeira,
rosto duplo
brisa/tufão,
intrínseca tempestade,
minha mãe!
tu veio
nas conchas em
jogo
entregue em
mãos de kianda
e eu, logo antes,
cobrindo campos
com óleos outros
que não pitangas
debandando
corpo-nau
quando não há
embarcação
10
eu que,
de pronto,
choro_
espargido
peito_
descompasso
pés_
em tambor
finalmente
pude ver
no âmbar
dos teus mantos
no mover
d’uma dança
a fricção
do vento-água
tornado
labaredas.
11
MétierEssa luz amarelada
farfalhando a cortina turva
não me diz nada.
Como o vaso chinês,
é só abstração,
momento-torpe,
manhã lânguida,
certa tendência
a romantismos pueris.
Mas não tem balanço
ou parque,
nem balões
e pezinhos de
solados grossos,
a sorveteria não abre
às segundas-feiras.
Pra cá do vidro
a tendinite aguarda
com risinho zombeteiro,
papéis acumulam-se
junto a versos
que não constam
no brainstorm,
mais café na máquina,
um pardal não
distingue seu
reflexo
do bico de
sua amada
e toc-toc
na janela
da baia ao lado,
imprime,
assina,
protocola,
Ninguém repara
a borboleta
que pousa
no meu beiral.
Dizem que traz
sorte,
não é?
Daisy Serena: ativista visual, poeta, prosadora, pisciana, filha da tempestade, amante de café, estu-
dante de sociologia e política pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo & integrante
do coletivo Dolores Boca Aberta Mecatrônica de Artes, entre coisas-outras e coisas-nenhumas.
http://cargocollective.com/daiserena
contato: [email protected]
Pilar Bu
13
Notívagacarros correm
apressados
para chegar
em lugar nenhum
a cidade
imersa em fantasmas
não tem espaço
para o afeto
silencio
na ponta de uma
das asas
à espera
de qualquer
anjo caído
estou oca
estou perdida
desencontrada
no meio das luzes
resta só a casca
no horizonte
encontro o vazio
O perdão não é compulsórioum abismo nos separa
já não dou risada
das suas piadas
já não conversamos
sobre banalidades
já não ouvimos juntos
a bateria da Vila tocar
queria tirar o véu
dos teus olhos dissimulados
protegidos pelos óculos de sol
mas estou cansada
demais
para conversar
enquanto desistimos de nós
a cachorra urra no cio
eu vou entregar afeto
enquanto você
me acusa de falsidade
já não há mais ferida
já não precisamos
nos recuperar
14
Cacos de ventre partidorasgaram teu ventre
oco
trinta e três vezes
penduraram a carne
podre
na soleira da porta
perfuraram mil vezes
teu corpo
que vertido em sangue
e lágrimas
resistiu
mesmo às injúrias
milenares
habito teu ventre
oco
como fazem
tantas mulheres
e meninas
estou fraturada
nos teus pedaços
de sonhos perdidos
quando junto
todos os cacos
e me olho no espelho
é a ti que vejo
refletida
15
Como quem compõe música no infernoeles disseram que minha escrita
era uterina
mas meus poemas
gritam os filhos
que eu nunca tive
eles disseram que eu seria
como uma sinfonia em branco
mas meus versos sangram
caos dor desobediência
rebeldia
qualquer homem medíocre
vende mais livros do que eu
qualquer homem medíocre
ganha mais prêmios do que eu
qualquer homem medíocre
escreve versos mais belos que os meus
eu não escrevo para ser
dócil
eu não escrevo para ser
submissa
eu não escrevo para ser
adorável
escrevo pelo direito inalienável de existir
16
Ultraviolentaestou em processo
de troca de corpo
readequando unhas
pelos e músculos
tirando esse outro
que habitava
há um tempo por aqui…
estou trocando a lente
o sapato que já não cabe
estou trocando a pele
o pólen, a prole, o vazio
estou trocando as palavras
estou voando para…
me partir no chão
mudar o sangue
as gravatas obsoletas
as desculpas vis
os caminhos sem volta
estou mudando de endereço
de andar, de bicicleta
estou mudando de genealogia
porque eu gostava mais
quando eu me entendia menos
Pilar Bu: é vampira, leoa, sereia e mãe felina de
quatro gatos. Poeta e mestranda em Literatura
pela Universidade Federal de Goiás, já tendo
pulicado em diversas revistas eletrônicas. É
uma das mediadoras do #leiamulheres Goiânia,
além de uma das organizadoras do festival lite-
rário [Eu sou poeta] e integrante da equipe do
projeto E-cêntrica. Seu primeiro livro de poe-
mas, Ultraviolenta (Kotter Editorial) foi lançado
em Goiânia em 15 de abril. Sua área de estudos
é a representação e autorrepresentação de mu-
lheres na literatura, estudos de gênero, autoria
feminina e teorias feministas.
Estela Rosa
18
Um caroço de abóbora japonesaAprendi
Que se você joga um saco de terra no vaso
É incontrolável que surjam pequenas folhas
Plantas sem nome
Diria minha mãe
É tudo mato
Mas resolvi jogar terra em um vaso
E ali algumas sementes que iam pro lixo
Não me preocupei
Nada do que planto dá
Não tenho interesse em fertilidades
Mas aí brotou por entre o lixo
Uma folhinha
Puxei o mato
Mas ele saía do caroço da abóbora japonesa
Do purê de semana passada
Ela ali crescendo
Orientalíssima em meu vaso de lixo orgânico
Minha última tentativa de gratidão
Com o broto na mão
Fiquei pensando nos mestres japoneses
E naqueles samurais de coquezinho
Naquelas moças com pés cortados
Sapatos de madeira
Nos budas de porcelana
E aquela folha ali brotando
Então é isso, não dá
Não sei lidar com vidas pacientes
Com essa folha japonesa
Delicada rompendo o lixo
Feito um hexagrama de i-ching
Me ensinando a brotar
Mas não dá
É poesia demais pra mim
Logo eu que não sei meditar
19
Chá de camomila Quando pequena, existia a taraPor crianças Johnson&JohnsonQue exibiam seus cabelos loirosVolumososCheios de propaganda na tvPor conta disso, as mandingas para cabelos loirosMe eram constantes
Eu não sabia que era pecado não ser loira
Naquela épocaMinha mãe exorcizava os piolhosE o cabelo que escurecia a passos largos
Na mandinga,Em cima da camaEla polvilhava neocidE depois me lavava com chá de camomilaE depois shampoo Johnson&Johnson para cabelos claros
Abafava os piolhos e meu cabelo acastanhado
Hoje, depois de anosDepois das desilusões com a mandingaTenho pavor ao loiro e ao chá de camomila
AgradecidaSó não me queixo dos piolhosQue foram embora cedoJunto com a inocência dos bebês Johnson&JohnsonE meus cabelos loiros
20
Abismada
com a dimensão das coisas e a largura
das pernas e cintura desencaixada
caindo enviesadas feito
chuva de março pela janela
fico parada enquanto me atravesso
com aquele ar que vem direto
cortando a janela em duas
como cortaram em duas minhas pernas
Encaro a chuva e as pernas
como quem encara o abismo
Eu olho para ela
Ela me olha de volta
Estar abismada seria
uma questão fé?
Não
O abismo é uma mulher na rua
parada no meio da chuva confusa
se atravessa ou
se é atravessada.
Cortada em duasMesmo depois
de grande crescida
enorme em si as pernas
os braços com pelos
quadril largo ancas
ainda me pego contente
admirada que só
olhando a chuva
que cai do nada nos tetos
21
Reflexos em banheiros públicosO espelho que me traduziu
pela primeira vez era
pintado em um banheiro largado
a mercê dos homens que estupram
em banheiros públicos independendo
se de primeiro segundo ou terceiro grau
foi o reflexo sujo que trouxe
à tona toda a clareza
de precisar ser
a que se defende
a que defende as outras
a que defende as unhas
os dentes
e os espelhos
todos eles quebrados
no chão
além muito além
das honras
estava
pela primeira vez eu
frente a um rosto
a mercê de tantos outros
a espreita esperando uma palavra
que melhor traduzisse o ruído
de uma mulher sozinha
frente a si mesma
escrita na porta
de um banheiro silencioso
o espelho que primeiro me traduziu
publicamente não tinha papel
como não tinha papel minha vida
antes do assombro
de se traduzir em outra.
22
Suaves parcelasNão tenho posses
Nada de casas, cartas
de crédito, dinheiro
na poupança, rendendo
0,9% ao mês
Não tenho filhos
Nada de herança
de maridos ricos, propostas
de emprego, o carro do ano
com mecânico
sujo de graxa
Não tenho perspectivas
A não ser aquela
da luz oblíqua
que desce
pela janela nos dias
de abril dos versos
da Pizarnik que entortei
quando traduzi da nuca
e sua penugem
que lembra a serra
no ângulo certo do ônibus
no engarrafamento que parece
andar pra trás
23
Estela Rosa é escritora, poeta e caipira, formada em Letras pela UFRJ. Teve poemas publicados na
Revista Grampo Canoa, da Luna Parque Edições, e ainda leva susto ao ler seu nome na capa. Em 2016
se juntou à iniciativa Mulheres que Escrevem, onde agora realiza um trabalho de curadoria de novas
colaboradoras e projetos.
numa vertigem cotidiana do olhar
do outro que atravessa
o meu quando o braço
arrepia
Há muita perspectiva na sala de espera
na rua, nos gritos, nas pernas bambas
nas minhas mulheres, nas desistências
nas letras tortas dos anúncios de búzios
nas cartas, no tarot, no ensopado de peixe
Há muita perspectiva não sendo
nada, mas isso, meu bem,
não dá lucro no banco.
Julia Raiz
25
the thorns are showinglendo pagu cheiro o livro lambo
o livro coloco ele no chão aberto
pra ele me ver quando escrevi
aquele texto do nascimento
da minha mãe em 1962 já sabia que a pagu
era minha filha que pregaram na cruz
gabriela gabriela o gabriela chamam ela
pra entrar porque está escuro ela voltou no corpo
reto de uma menina de 13 anos
mas os olhos flutuantes continuam balão de festa
sem suporte pagu um canto de pássaro triste
um pio dois pios um silvo longo ela também
fala a nossa língua relincha trelincha dá coice
em frente à trincheira vem sempre à retaguarda
se desenha nua enquanto corre a madrugada
esbarra num galã com quem visita o cemitério
dorme coxa colada com a irmã debaixo da terra
26
Cartas aos cúmplicesEscreve como quem constrói uma cadeira que não serve para
sentar
Se atravessamos o século, o milênio, a era, temos a obrigação de
mudar os objetos da sua posição inicial, buscar novos materiais,
funcionalidades, meios. Rebatizar as velhas histórias, criá-las
novamente a partir da observação cuidadosa do céu. Formar
constelações inéditas, não com os formatos virtuais conhecidos,
mas desenterrando o que um dia fomos ao som dos tambores,
deixar que os espectros falem novamente, acreditar nos delí-
rios, conversar com os próprios órgãos e segurá-los pelas mãos
como se fazem com crianças, ouvir o artesão que trabalha en-
tre espaços. Já não podemos nos abandonar como fizemos da
última vez, existe um zumbido, que une todas as nossas vozes,
instalado no ouvido direito das pessoas que trabalham com as
mãos: aquele que cozinha, que costura, que toca, que escreve,
que constrói, que serra duas metades de coisas distintas e as
junta novamente para a formação não de uma terceira, mas de
uma quarta, quinta, sexta, infinita sinfonia.
VisitaEla diz que não fala pelos outros, os outros que falam sempre
por ela, nesta voz, estão sempre lançando flechas que voam pa-
ralelas a este corpo. Ela diz que pode levantar o dedo para cima
como uma antena e se preencher de ruído. Ela diz que é possível
usar a língua para escrever um poema do Blake que não é um
poema do Blake e nem a voz de um enorme rottweiler preto
27
que a lambe com carinho. Ela diz que o
pacto que existe entre vocês, o que falam
sobre ela, o que dizem sobre as coisas ao
seu redor, como configuram os rostos, as
casas, os seus pertences, o que não falam,
o que enviam para os vizinhos em forma
de imagens à noite, o que ordenam aos
recém-nascidos, como batem suas cabe-
ças na parede, ela ouve tudo.
ÍtacaSempre achei estranho que um homem
amarelo pudesse levar um cachorro pela
coleira ou um homem jambo montar
um cavalo, sempre imaginei que apenas
os brancos pudessem estalar o chico-
te no picadeiro talvez para uma mulher
que equilibra uma bola na ponta do na-
riz. Diz Francisca sobre ser uma criatura
circense: como o cavalo de combate que
no picadeiro caminha até o touro com os
olhos vendados, conduzido por uma mão
escura, que não poderá associar àquela
outra que dá tapinhas na sua bunda com
carinho enquanto aproxima um torrão
de açúcar dos seus lábios, assim vou eu,
torpe animal, sem compreender a mão
que hoje me fere e sem reconhecê-la nes-
ta outra que com sabedoria cuida das
minhas feridas. Como o cavalo cego que
não sabe e ainda assim evita o ataque, eu,
besta que tateia, me volto ao canto da ver-
gonha tentando evitar a lança absurda,
tentando retroceder até eu mesma, até
o lugar onde só a angústia me visita, até
esse eco que ninguém reconhece, tentan-
do descer o degrau que um dia subi, ten-
tando voltar à madrugada fria e escon-
der em suas sombras o coração recuado
e triste.
Amor como o cair do solEssa é a história de uma mulher que
acendeu uma vela vermelha quase sem
pavio derretida sob o criado mudo uma
vela para alma da irmã da sua mãe, mor-
ta no estacionamento do parque mais fa-
moso do país, a chama ilumina o corpo
da mulher no chão, bochecha colada no
asfalto, respiração a toda antes de acabar,
aquele medo da tia aparecer no banheiro
ou na lavanderia quando de madrugada,
28
um copo de água para matar a sede, aque-
le medo da tia voltar no corpo da vizinha,
a esquizofrênica. A mulher já viu de tudo,
a mão direita paralisada, queimada num
acidente de carro, o resto do corpo per-
feito só a mão, só a mão, o resto do cor-
po perfeito. Com a mão esquerda acende
a vela e observa enquanto a cera escorre
e pinga na mão direita, não sente nada,
uma mão direita paralisada comparada
a um corpo sem vida no chão, sussurra
no ouvido da morta, sente o medo que foi
embora, mais uma mulher, receia pelas
sobrinhas que ainda vão nascer e podem
ser a encarnação da mulher fria no esta-
cionamento e os seus futuros assassinos
também atingidos em confrontos com
a polícia, tem medo da reencarnação, a
vela pinga vermelho na mão morta, o
fogo que não atinge o resto do corpo, a
mão fria que queima, um sol a pino, dois
carros que se batem, a arma que dispara,
uma mulher no chão.
Julia Raiz é paulistana e mora há quatro anos em Curitiba, onde se for-
mou mestre em estudos literários pela Universidade Federal do Paraná
(UFPR) e atua como professora de português para estrangeiros. Tem tex-
tos publicados em revistas literárias como Mallarmargens, Zunái, Germina,
Raimundo, Escamandro. Também participa de projetos de incentivo à es-
crita e leitura como o Leia Mulheres e o coletivo Marianas.
Caroline Policarpo
30
como se meu corpo fosse o lar de um animal selvagemcomo se meu corpo fosse o lar de um animal selvagem
faminto
desesperado pra rasgar as paredes da minha pele
e ser livre
eu me vigio:
cerro os dentes
os punhos
tento ser grade
e detê-lo
tenho medo
ele é forte
insistente
a bicadas abre uma fenda
(ferida escancarada)
eu sangro
ele escapa
o voo me inunda os olhos
as asas crescem me arrebentam ossos
eu grito
cuidado
ave-mulher à solta
31
tintaela tinha duas tatuagens bem pequenas, cada uma um pouco
abaixo de um dos ombros. era uma parte das costas que as rou-
pas sempre cobriam, e como nunca se deixava ver nua as asas
eram seu grande segredo. mas de que serve um segredo?
as asas serviriam muito melhor se fossem verdadeiras, se lhe
permitissem voar, mas aquelas eram pequenas asas feitas de
tinta, sem força alguma. incapazes de erguer do chão uma mu-
lher há décadas acostumada a pisar, anos e anos de não voo pe-
sando no seu corpo que já uns cinquenta e tantos quilos de os-
sos e carne e qualquer coisa mais de que sejam feitos os corpos.
ela morava em um apartamento aprisionante mas lá tinha uma
varanda à qual ia com uma xícara de café ou um sorvete ou com
seus pensamentos e às vezes apoiava as mãos nas beiradas ti-
rava os pés do chão e se pendurava um pouco, do lado de den-
tro. com a segurança do chão a poucos centímetros dos pés. mas
sempre a vontade de se sentar com as pernas para fora, apenas
para sentir a altura, não por esperança de que suas asas de tinta
servissem para voar, se saltasse.
como não tinha asas, ia andando de um lugar a outro. um pas-
so de cada vez, sempre com um dos pés firme no chão quando
outro se erguia.
um pé. o outro. um pé. o outro. um pé. o ar. o outro. o ar. um pé.
o ar. o outro.
com algum tempo de esforço aprendeu a usar as mãos para
sustentar o corpo e oferecer aos pés breves instantes de altura.
32
instantes que iam cada vez mais demorando conforme ganha-
va força e jeito.
as mãos. um pé no ar. o outro, também. depois, um pé de cada
vez, no chão. de pé. um salto. pirueta, mão chão pé.
claro que as tentativas de acrobacias ficavam bem longe de ser
voo, mas a cada dia ela tinha mais controle e liberdade sobre a
maneira de estar no chão. desobrigava-se, um bem pouco, do
pisar obrigatório.
tinha, claro que, suas esperanças. de voo. talvez, por sorte, mági-
ca ou acidente, um dia. mas um como não conseguia inventar.
passava horas pensando: e se… … …e se o que?
nessas horas envolvia com a mão direita o pulso esquerdo. ali fi-
cava sua outra tatuagem, a mais antiga. era um fino risco preto
fechado a um dedo de distância do ossinho protuberante, uma
pulseira definitiva, para lembrá-la de que havia estado, e por
isso se sentia sempre, presa. metaforicamente. nem tanto.
o porquê dessa decisão de gravar na pele para sempre a corren-
te e as asas, seu inevitável e seu sonho, ela mesma mal sabia.
em parte eram uma mesma coisa, até: a corrente não deixava
esquecer a necessidade de liberdade, e as asas eram o meio para,
a urgência, a força. mas que voo?, que voo? como o voo? se para
nunca esquecer havia marcado no corpo a lembrança de seu
não poder (o voo), a dor que sempre doeria. mesmo que chegas-
se a voar, doeriam sempre os tantos anos de nenhum voo (mas
ela nunca, nunca).
33
obsessãoela desenhava pássaros
esculpia pássaros
escrevia a palavra ‘pássaro’
nos guardanapos, nos cadernos, nos espacinhos em branco
nos livros
cantarolava a palavra ‘pássaros’ enquanto tomava banho
tirava fotos
de pássaros
comprava livros
sobre pássaros
deixava pedaços de pão ou maçã na varanda
para ver se os pássaros
vinham
gravava o canto dos pássaros
e ouvia o dia inteiro
quando não havia
pássaros
por perto
mas nunca havia pássaros
vivos
por perto
quando eles vinham
ela enfiava as unhas nos pescoços
quebrava as asas, furava os olhos,
depois jogava os corpos
no chão
34
a emparedadora de pássaroshavia uma emparedadora de pássaros. ela tinha prazer no de-
sespero com que se debatiam em suas mãos aquelas coisinhas
dotadas de asas, tão vivas, tão livres. capturava deles a liberdade,
o voo, como se ao capturar passasse a possuir. não entendia que
os capturados deixam de ser o que eram.
nunca matava os pássaros antes de emparedá-los. talvez para
dizer a si mesma que não os matava, para fingir que podiam so-
breviver prensados entre tijolos, sem espaço pra mover-se sem
ar pra respirar. como se um pássaro emparedado ainda fosse
pássaro.
provavelmente fingia que dor de pássaro não era dor, que medo
de pássaro não era medo. e ia construindo sua imensa parede:
tijolos cimento pássaros tijolos cimento pássaros tijolos cimen-
to pássaros tijolos cimento pássaros tijolos cimento pássaros ti-
jolos cimento pássaros tijolos
(costumava desviar os olhos para não ter que encarar o pássaro
com sua vontade feroz de ser um pássaro
vivo)
se fosse possível… emparedaria a si mesma também, para estar
mais junto deles. como encerrar o próprio corpo entre tijolos
seria tarefa impossível, resolveu pintar a parede, quando esti-
vesse terminada, gigante e imponente. não poderia ser com o
vermelho vivo gritante que gostaria, ela sabia, o sangue quando
seca fica com uma cor bem morta, o vermelho vai empretecen-
do. de qualquer forma, derramaria sobre a parede o de dentro
das veias, pintaria-a de vermelho.
espelho:aquela
sou eu?
Caroline Policarpo tem 20 anos, cursa letras, e
escreve porque a literatura é janela, âncora e
asa. No projeto Autômatos Poéticos, inventou a
robô de conversação chamada Inventada. Tem
textos nas revistas Raimundo, Trasgo e Subversa.
Yasmin Nigri
36
MeteorosInspirado na obra ‘Meteorito’ de Letícia Ramos exposta no MAM
Encosto os olhos na luneta
Vejo uma escala cromática de brancos rasgar o breu
Seria a sombra furta-cor de um meteoro cruzando o espaço
Ou a Europa penetrando o continente africano?
37
MemóriaNaquele som áspero
Senti a dor escaldante
Das lágrimas negras
Costurando as calçadas
Por onde hoje piso
Outros líquidos umedecem
Minhas roupas
Sinto que meus antepassados vivem
O verso de suas mãos
Escorregam pelo meu rosto
Basta tirar o chapéu e ouvir
Agora responda
- As vozes ecoam -
Ainda assim
Você é você mesma?
Imagine que o espelho
Foi quebrado
O que é refletido
Pelos seus pedaços?
Já não me lembro onde está
Aquele lugar seguro
Não tão profundo
E tenho me contorcido
Qual salmoura nas chagas
Por esse oceano difícil
38
Pluma azulOs golpes de pincel já não dão conta. I keep always returning to black. Sou eu meu pró-
prio sintoma e é isso que me une ao mundo. Assisto uma pluma azul em queda ven-
cendo a resistência do ar. A força de resistência do ar me proporciona inúmeras emo-
ções. Admiro o movimento desse corpo, sua forma etérea. Enquanto cai se lança numa
coreografia virtuosa. Sua queda é um balé vertical de carícias com o vento. Sua queda
é seu triunfo. Pousa com majestade sobre o chão. Gostaria de reagir à queda como uma
pluma azul. Gostaria que meu corpo resistisse como o da pluma azul. Estou farta de
me contentar com esse tipo de prazer, farta de toda essa sensibilidade estéril. Há um
silêncio perturbador sobre a Palavra e as categorias. Há um silêncio perturbador que
vibra. Onde quer que eu vá sinto o grito profundo da natureza rasgando o céu com
sua língua de fogo. Quero montar uma peça. Quero criar um novo teatro. O ritmo não
será medida vazia de conteúdo. Estou certa que o ritmo nunca foi uma medida vazia
de conteúdo. Tudo isso será evidenciado numa ordem fulminante. Tal como acúmulo
da cultura cujo significado vivo avança sobre o negro. Estou mesmo desbussolada. Não
tenho mais a ambição de transformar o mundo. Abandonei o sonho em algum lugar
onde me encontro constantemente perdida. Arrefecer é tornar-se mais forte ou mais
fraca?
39
Mais forte que o açoite dos feitoresUma sombra vespertina me contagiaNão se trata de mandar ou não notícias
O único modo de governar cada brechaDesse tempo falho é interrompendo-o
Minha boca é morada ácidaQuero uma figueira sem pássaros
Para gozar dos frutos e anseiosDe querer ser grande
A colher já não cabe no buleSua espada já não cabe em meu ventre
E atravessa cortando sua manhãPerpassa grades
Parte chavesAssim invisível incorpórea
Vou ao termo
Posto de pé o próprio amor inflamadoVai a pique
Você se queimaMas sou eu quem sai ferida
40
Tudo precisa começar pelo gritoIniciada a amar o cânone e sua voz consciência sou capaz de
chorar por falta de algumas palavras. Aprendi a amar as vozes
femininas que se autorizam a dizer o amor outras e mais mu-
ralhas. Sou uma dessas vozes? Nós estamos tentando crescer o
bastante para viver sem vocês, entendem? Hesitantes e não sem
retraimento. É impressionante como ainda não engasguei. Há
dias que não consigo sair da noite. Ao que parece meus ovários
são duas luas. Onde eles se encaixam nessa estranha geografia
do tempo? Por que nos ensinam a fotografar o mundo, mas não
o modo de tocá-lo? Por que não nos emitem licenças para rees-
crever e apagar as linhas já escritas? Por que preciso escrever
sobre mim quando não escrevo sobre mim? Quanto mais luz
lanço sobre um assunto mais me curvam. Mesmo se disser que
escrevo sobre mim não escrevo sobre mim. Mesmo que eu me
ilumine o meu interior é sombra. O grito. Tudo deveria começar
pelo grito. Tudo precisa começar pelo grito insubmisso. Não vou
Yasmin Nigri (1990), é carioca, poeta, tradutora e bacharel em filosofia pela
UFF onde atualmente cursa o mestrado na linha de estética e filosofia da
arte. A família por parte de mãe veio de Manaus e a do pai é de origem
sírio libanesa. Começou a escrever poesia aos 24 anos. É co-fundadora e in-
tegrante do coletivo feminista Disk Musa e escreve para a revista Caliban.
Possui poemas publicados em diversas revistas digitais.
mais esperar que ele venha. Nós estamos aqui simplesmente
suportando. Não temos trilhas. Cortaram nossa onda. Ficamos
com os restos. E estamos aqui aceitando a provisoriedade que
perdura. A interrupção está por todos os lados. Buracos-ocos.
Vultos que fremem. Ostras sem pérolas. É nessa altura que não
minto. Máscaras ao chão. Vocês precisam suportar o nosso grito.
Vocês precisam suportar a intensidade do nosso grito antes de
nos dirigirem a palavra. Vocês precisam escutar o nosso grito.
Vocês precisam aprender a se comunicar com o nosso grito. Res-
peitar o nosso grito. Admirar o nosso grito. Amar o nosso grito.
Mulher vive na intempérie. Nossos escritos em areia levados
pela tempestade. O grito insano levantando palavras apagadas
pela ressaca. Só mesmo um homem diria: “poesia teu nome é
mulher”. Todos sabem que a poesia só se inscreve em pérolas as
mesmas que foram roubadas de nossas ostras.
Priscilla Campos
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rio de janeirodiga aos elefantes
que encarei
a janela aberta
de nosso primeiro verão
como quem encara
um falcão no punho:
a iminência aérea da vitória
do princípio celeste
do Olho que vemos e do que
nos olha
do voo que se faz com a perna bamba
cabelos molhados e
a luz ambígua de
qualquer manhã na metrópole.
meu avô atropelado na Avenida Rio Branco
você de mãos dadas comigo em Copacabana
o sorvete de pistache derretido
calor papéis de presente
o disco do Chico Buarque
a cidade
o nosso inventário do possível
mensagem na garrafa que anuncia
eu sou teu ombro-guia
tua saída estreita entre os corais
e os bancos de areia
entre a Pasteur
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e a cabeceira da pista
queda livre pássaros
marinheiros-fantasmas
eu não sabia que era permitido
delimitar o mar da Urca
com braços tão finos
observar constelações brilhantes
nas clavículas de meu futuro amor
alcançar o ritmo do
coração alto
órgão de número um na linhagem
dos que acreditam na maestria
da navegação
na resistência do barco simples
impávido
inteiro nas águas-tranquilas
mais inteiro ainda diante
das novas ordens e repetições.
outro dia, o Gênio me disse:
a caça é o último refúgio
de quem segura a vida pela mão
dos que perseguem a febre
antes mesmo de compreender
a função de todas as casas
de todos os ventos
dos assentos finais de
cada ônibus
em direção à Gávea
ou dos seus óculos
em cima de
camas-estrangeira
tão nossas quanto
as calçadas e os quiosques
cariocas numa noite
de céu aberto.
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na praiaaprendi a exterminar
os dias
como o mar destrói
as pedras
os soluços
como a areia aborrece
os corpos
você
como a tempestade alveja
os morros
sua família
como os raios atingem
os edifícios.
quase sempre
eu penso nas cartas náuticas
na água ruim
no rio sem peixes
siglas
lápides portais esquecidos
linhas costeiras
correntezas fortes
no seu rosto desajustado
no seu quarto pegando fogo
na rotina dos recém-casados
na lança no alvo
nos feitiços de Rasputin
e os agentes soviéticos,
no físico hipotético
e o seu filho sufocado.
eu não volto
à beira-mar
sem antes interceder por
todas as memórias
benevolência
pelo seu apego à desgraça
um túnel em direção
ao desterro é o único
amuleto certeiro
a proteção permitida
para os meus invernos
pés tortos
cabelos curtos
pele jovem
coração vencido
protagonista aborrecido
ingênuo compassivo
às mentiras e mistérios
de um homem inadequado
tolo como um guarda-sol
voando, às 18h, na praia
de minha infância.
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toda noite
a banheira recebe
os seus braços
a sua bunda e
os seus olhos apaixonados
para uma cerimônia
de extermínio
a celebração do fim
do nosso contato
do limite entre
você deixar de existir
e eu esquecer de
testemunhar o seu
corpo desaparecido.
na banheiratoda noite
você engasga
com shampoo
te afogo com astúcia
e perseverança de
formigas em fila
tiro a sua
respiração
com amor e
dedicação de
arqueólogos
em escavação
de minas de diamantes.
observo a sua pele
enrugar
a sua temperatura
cair
o seu cabelo
flutuar
como o bote
que jamais
salvará os
passageiros do navio
em naufrágio.
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sala de músicana noite do primeiro enigma
o piano
pertencia à varanda
como os olhos da medusa
pertencem à morte
como o coração
pertence ao externo de
qualquer corpo
como a saída do amor
pertence ao aquário vazio
embaixo de cada cama.
nós tínhamos como
relevo possível
as almofadas pelo chão
o tapete sujo de vinho
o violão de seu pai
cães ausentes
fotografias antigas
um quadro
sem propósito
acima de nossas cabeças
sempre tão distantes
mas imediatas
na linha de sucessão
daquele palácio iluminado
onde os reis
não enxergam
que a soberania é só
mais uma forma de distrair
os nossos equívocos.
na noite do primeiro enigma
a minha palavra
esteve nas ruas
de sua infância
o seu sorriso
esteve no mapa
de uma cidade
portuária
o seu olhar
presença constante
no ponto de fuga
entre
o meu ombro
e o oboé partido
você me disse:
volto aqui porque
o lugar onde nascemos
é um fantasma obstinado
atento em disciplina
um fantasma-soldado
responsável por nossas
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fugas e revoltas
pronto para nos agarrar
não importa
a velocidade da disparada.
nós celebrávamos
a decadência da orquestra
fogos ruídos
beijos ciências
do som pratos
caídos violências
sem reparos
deslocamento de braços
vento forte o piano
sozinho
eu e você
investigadores do tempo
na procura do vulcão
(alerta em neon)
estruturas geológicas
são as provas finais
de que a terra
não espera retornos
egoísta e impaciente
como nós dois
cansados exaustos
ardendo no mesmo
ritmo do progresso
do sol.
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3.direciono os trampolins:
você me puxa para dançar
nomeio as luzes da Pompeia
a memória confunde os meus pés
alguém grita pelo banho de alecrim
seremos o engano na vida um do outro
minto seremos como dois pardais no
inverno espécies residentes
adaptáveis encantadas com a possibilidade
de dormir todas as noites no mesmo centro.
Priscilla Campos é jornalista e crítica literária. Mestranda em Teoria da Literatura pela Universidade
Federal de Pernambuco (UFPE), estuda as representações de cidade e espaço na literatura espanhola
contemporânea e latino-americana. Escreve para o Suplemento Pernambuco, Revista Continente, pei-
xe-elétrico, entre outros veículos. Seu site: www.estudodeneblina.wordpress.com..
três notas sobre a cidade
1.enumero os meus assombros:
a janela da lua cheia
a moça do vestido preto
ombros de fora
melancia e capim limão
o filme do Cazuza
2.te proponho alguns períodos de sol:
avenida São João
minhas pernas cruzando os seus
joelhos braços na cintura
viagens à costa do ouro
mapas do desaparecimento
há quanto tempo eu queria te dizer
dorme com a tua língua dobrada
porque assim as palavras destroem
umas às outras em silêncio
Rita Isadora Pessoa
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das ruínas preliminaresou
“dos papéis individuais no fim do mundo”
Aquela sou eu esperando a catástrofe
com as mãos seraficamente pousadas
sobre o colo
a verdade é que só preciso
me agarrar violentamente
a um ponto fixo
na disco-voragem
deste sonho
e permanecer submersa
acontece que eu engulo tua indiscrição gulosa
descendo pelas minhas pernas
e devolvo delicadas ossadas
sob o signo da carnificina moderada
(uma forma de canibalismo contemporâneo?)
expostas em seu tutano todas as comissuras dos ossinhos
equilibrados sobre a porcelana
frágil do meu prato, porque uma coisa que acontece é que
o meu corpo
ele não se quebra
não quebra como se quebra um prato
ou um fêmur
não como se quebra uma linha
no fim de uma frase longa e deselegante
alinhada à esquerda
o que tenho a ser feito
pode até ser chamado de ofício
de linha e agulha
mas eu contenho hemorragias
é o que eu faço
— deveria ter sido médica
mas me coube ser dique
: eu contenho hemorragias
com as mãos
todos os dias
— um ofício que empresto
da pedra
para subjugar o rio
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a hora da estrelapara leonardo marona
esse é para você
morcego noctívago
que não reconhece nem teto nem parede
nem o próprio brilho
seguimos no nosso diadorim off-sertão
modernismo wannabe dos que vieram
diretamente da água
para matar a sede do rio
no fim prosaico da discussão de duas horas
sobre o copo quebrado ou o lixo vazando na cozinha
ou a panela de batata doce que cozinhou demais
você constata que, de nós dois, sim,
você é o mais romântico
e eu digo ‘mas nós somos românticos de formas diferentes’
e você graceja ‘é, de fato, eu sou da tradição
do romantismo inglês e alemão’
[sim, com tua solidão proporcionada pelo bosque
e a vastidão dos espaços naturais abertos,
você, oxóssi-caçador da bílis negra]
mas eu, no caso, segundo você, sou a tragédia!
você me diz, ‘você é a própria grécia’,
[cassandra, antígona e medeia
enfileiradas na cabeça da hidra, mais a fúria do olimpo
com raios de iansã e ingenuidade de macabea]
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você diz que sou a origem de todo o romantismo, de todo o
cinismo,
da neurose, perversão e da forclusão do nome-do-pai, da mãe
[...]
e aí, cá para nós, você há de me responder então como faremos
para cumprir a nossa parte, nosso fair share
na tarefa hercúlea de soçobrar
o mito do amor romântico,
essa bitch, essa marca indisputável --
fardo-sísifo da nossa geração pós-yuppie
-- se somos nós, meu amor, o próprio mito
se nós somos o amor romântico
o perverso, a amor perdido
[encenado reencontrado]
-- o amor com a faca na mão
e a própria sede do rio.
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eu, olga hepnarováé verão em praga
e o ano é 1973.
[você,
olga misantropová, com seu figurino de caminhoneira nouvelle vague, suas calças de veludo cotelê e a jaqueta de couro
craquelada, você, anna karina psicopata, ainda que visionária, você ignora o óbvio
: o avesso do amor não é o ódio]
é verão em praga
mas faz ainda muito frio
e o avesso do amor é o coração terminando de bater de encontro ao asfalto, fraturas expostas, intestinos a migrar da cavidade
abdominal como uma corda autônoma que sabe exatamente o destino que lhe é devido: o pescoço que espera a quebra
de parágrafo,
o cadafalso que espera
a quebra do pescoço
com a corda na mão.
[corta para] o caminhão de olga estacionado na calçada;
a fileira corpos estendidos como uma oferenda satânica, mas você não é satânica, olga, você é uma assassina em massa e isso é
diferente. satânico é outra coisa. planejar um assassinato simples requer um engodo fundamental, um paralaxe e você
escolheu ignorar que o avesso do amor
não é o ódio.
é verão em praga
e faz frio;
o avesso do amor
se faz por meio de grandes colapsos,
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colisões no concreto, no asfalto,
um embotamento brutalizado,
e você, olga hepnarová,
espera seraficamente
a polícia;
a bolsa no colo,
sentada em seu caminhão
você, a autora dessa carta perturbadora
para as gerações que virão:
“eu, olga hepnarová,
vítima de sua bestialidade,
condeno-os todos à morte.”
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diário do ano do macaco de fogo se como celan
eu tivesse a certeza
de que os poemas estão a caminho
se ao menos eu não tivesse
fundado toda uma mulher
[uma mulher inteira
garganta glote ancas
sexo tornozelos]
apenas em torno
de uma palavra infeccionada
se eu não tivesse
as mãos gretadas
como uma figura mitológica
mal-sucedida
em suas peripécias amorosas
eu poderia sim acreditar
[como se a minha vida
dependesse disso de fato]
no efeito de luz
na voragem súbita
no obscurecimento
que se segue
e se repete
e se repete
nesse projeto desconjuntado
de revolução
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mas é que eu vejo coisas
vejo coisas em ti e neles
constato o que há de cínico -- o símio
que mimetiza o desfecho ígneo
e não
eu não sei mesmo manusear o objeto isqueiro
não tenho habilidade
para os grandes gestos incendiários
estou aguardando
p a c i e n t e m e n t e
a grande água
como alguém que gesta
um filho querido
na cicatriz íntima
de seu próprio útero
mas se aterroriza diante
da perspectiva brutal
do nascimento
de um grito
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mefistófeles para iniciantesenquanto você está preocupado
com a musculatura do poema
eu limpei sua ossada
com os dentes
e povoada de arcos
e colunas e pilastras
aquieto uma arquitetura clássica
entre os braços
ensinando demonologia contemporânea
para a caravana medieval aqui do apartamento ao lado
jurando de pés juntos
que o século dezenove nem terminou ainda
enquanto você diz algo sobre fuzis acelerados
sobre não ir-se gentilmente para dentro da noite
eu me deito quieta nua
sobre a impenetrabilidade fumegante
deste chão de pedra
considerando
entrar na madrugada
como se entra num vestido
prensado a vácuo
[como se entrar em algo
fosse de fato
a questão
e não apenas o início cósmico
de um grande problema]
Rita Isadora Pessoa nasceu no Rio, em 1984, é graduada em Psicologia e não graduada em Estudos de Mídia. Estudou a poeta Sylvia Plath no mestrado em
Teoria Psicanalítica (UFRJ) e é atualmente doutoranda em Literatura Comparada (UFF), onde estuda o duplo em sua modalidade animal. Trabalha como
tradutora, revisora, astróloga e taróloga. Tem poemas publicados em revistas como Mallarmargens, Escamandro, Germina, entre outras. Seu primeiro livro
de poesia, a vida nos vulcões, foi lançado no final de agosto de 2016, pela Editora Oito e Meio.
Maíra Mendes Galvão
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ressaca-rebôocarta selenográfica aponta em mare imbrium noturno a guarda
por enorco dragão (ou trono), assentada em provisões ou projeção
de uma horda de ex-votas, avivada pela moraça pelágica
a cabeça submersa, dioniso berrador, capitula pontos e copas
conservado em winedark sea minutos a fio, a contagem das noites
o engrandecimento das memórias ou vistas à distância baça
cratera em eterna formação aceita todavia objeto celeste
protoplaneta de substância coloidal e densa, e coesa
no seio palustre o impactor corpo que se encastra
em baía fervilhante, intenso bombardeio oportuno e auspício
de cornucópias desplangentes e néctares férteis de mina
a superfície rasgada, a vaga motor de vagas, além-vida
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scintilla animaenão ter a gravidade de duas patacas
que atingem o piso e tilintam
ter a gravidade sim de um crânio
plumbum,! ponderoso gongo
cujo grau de dureza veio do
crescimento endógeno do tempo
entremeando-se dobras sobre dobras
nos regos e axilas das curvas
dos 2 polos que mal sabem de suas
encruzilhadas nomeadas teimosamente
como relações de acesso
entrepostos de mundos possíveis
cancros de teoremas que são
agonia dialogia tritonia
ou broma rastelada de fulcro
do castelo da arcada de sonho
diaconisas em santidade forjada
bigorna sobre meu coro
enquanto imagem dobrada
como desdobrar os urros
de um desejo esquecido
dos pinotes avizinhados
selo grande, revém têmpera
alma grossa de ossatura
dos ritmos sincopados
disto que se diz fêmea
está tudo demasiado opaco
está tudo finalmente
finalmente enganado
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ersatzspielerinteimo em não acender a luz, encalhada
sem saber se quem – eu ou o mundo
é suplente de algo primevo
se o que existe é a tensão ou
degrau de recursividade.
o violento da memória é a retenção do vazio.
penso em palavras multiportantes, como não me escapa fazer:
merimnologia, ou: considerar é arder.
mermeridade, ou: ansiar é condenar-se.
metameridade, ou: a parte pelo todo.
palavras me procuram, procuram a nós
porque as salvamos de um desígnio adjunto
nos lançamos aos fins da tensão.
me vejo merócrina, exocito
e a elas entrego
qual impostora estertorada
o grau primeiro das coisas.
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refluxoa polaridade do tarugo
outrora atrator
se reverte e o torna
corpo centrífugo
cuja gravidade antiga
em resíduo ou miragem
esta touva sorveu.
monolito recumbente
tablete empunhado
(sua extensão rômbica
juntos entronizados)
ladrão de minutos
escondido nas horas
comutador de polos
se fez bode expiado.
gravidade era peso
furor era medo
olhar era fuga
–
buraco negro
do mistério alheio.
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o ser omisso- comemorando a nota de 5 reais encontrada no bolso, se esquece do contracheque
- sentado no chão do box durante o banho, pensando no corte de cabelo semanal
- apontando o dedo para si como forma de se adiantar aos dedos dos outros
- acreditando na entropia do universo, e também na ordem da própria clareza
- transformando em inimigo quem é menos real, ou seja, o resto do mundo
- rejeitando ser duplicado, alterado, sombreado
- temendo ser abandonado, temendo ser consumido
- sendo o centro do único e insustentável universo.
maíra mendes galvão é tradutora, revisora e
poeta. nasceu em brasília, estudou desenho in-
dustrial e filosofia e hoje mora em são paulo,
com um pé em alto paraíso de goiás. colabora
com a revista asymptote de literatura em tradu-
ção como editora-geral do brasil. seu primeiro
livro, jamanta na testa, deve ser lançado ainda
no primeiro semestre de 2017.
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Edição Bruno Palma e Silva
Lubi Prates
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