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revista parênteses | edição especial #06 distribuição on-line gratuita MU LHE RES SUPERNOVAS

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revista parênteses | edição especial #06distribuição on-line gratuita

M ULHER ESSUPERNOVAS

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Pilar Bu

12Daisy

Serena

4

Julia Raiz

24

Estela Rosa

17

Caroline Policarpo

29

Maíra Mendes Galvão

58Rita

Isadora Pessoa

49

Editorial 3Créditos e contato 64

Yasmin Nigri

35

Priscilla Campos

41

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é um momento de crescimento na produção literá-

ria feita por mulheres brasileiras. Novos nomes sur-

gem a cada instante, alguns um tanto tímidos e outros

provocando burburinhos. Em ambos os casos, essas

escritoras trazem frescor ao que já foi pensado, feito,

discutido.

A Parênteses se arrisca a pinçar alguns destes no-

mes na Internet e arranjá-los nesta edição especial.

O trocadilho “supernovas” não diz respeito só à ida-

de das autoras. Na verdade, tem muito mais a ver com

o brilho estelar delas.

os editores

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Daisy Serena

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Tríplice encontro marítimopara Luedji Luna & Tiganá Santana

I - o encontro tem de ser foz.eu rio

no rasto

do teu

mar.

tu sal

oceânico

em

lagoa

de mim:

decanta!

III - o encontro: saliva própria da sede.espuma

derramada

origem própria

da língua.

passeia

submersa

em

corpos

ondas

e corais.

II - o encontro busca ser tromba d’água.não há margens

para alcance de

vistas & braços.

redemoinho

de nós

sem

embarcação.

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Eu sou a febre do ratosenhores

senhoras.

ensandecida ante

espelhos castos,

reflexo de fogueiras

que incineram séculos.

eu sou clichê

caricatura d’um humor

descartável.

bruxa,

puta,

preta,

macumbeira,

sou o que tu

discursa como

imoral

enquanto

me brinda

outra taça.

[que bela,

que samba,

mulata]

não há engano,

não são pra mim

os girassóis

não foi acaso

o dedo em riste

direcionando

os pratos.

eu sou a rima pobre,

benzinho,

o alvo pr’onde

seguem

certeiros dardos

sou a direção única

meio à turba,

é pra mim

a pedra

o pau

o silêncio

o disparo

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Trava-línguasPor João Victor e incontáveis-mais.

trava a línguae conta:

quantospretospobresprecisam

pra matara fomede tantorei-zinesfomeado?

trava e nosibilardoentre-dentes

risca a lousae mostra

onde que essaconta fecha.

[aguardo]

a balança não táequiparada,

não sinhô!

d’um ladoespanca’rrasta

doutro‘laudo médico’

e.. well, well, well

voltamos àquelaadivinhança

quem é que pode falar,afinal?

“eles têm fatos,nós temos opiniões.

eles têm conhecimento,nós temos experiência”

me calo, pois.

mas,vem e

travaessa tua línguatoda migalha de fartura

emediz

bem rapidinhotrês vezes:

quantos tigrestristes maisnas entranhasdas favelas?

quantascaçapascomcarcaçasescondidinhasem ruelas?

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sem gaguejar

com linguinha

travada

projeta a voz

do alto do

cadafalso

ou

silenciosamente

pisa-ligeiro

antes que

sabiá assobie

solto

anunciando

enxurrada.

quantas rimas

necessárias

pr’assumir teu

genocídio?

vamo-lá,

bem depressinha,

seu dotô,

que o relógio

dos

ratos

ruge

mais alto

qu’estalo

de ratoeira.

arredonda teu

argumento

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Pêndulo de búfalo & borboleta

epahei, oyá.

também para Alê Almeida & Bárbara Esmenia

no arrebate

da surpresa-força,

temporal que

não ouvi sinais

quiçá engodo

semiótico:

trovões antevistos

em vestimentas de

significante-riacho

era

alvoroço sem queda

de cachoeira,

rosto duplo

brisa/tufão,

intrínseca tempestade,

minha mãe!

tu veio

nas conchas em

jogo

entregue em

mãos de kianda

e eu, logo antes,

cobrindo campos

com óleos outros

que não pitangas

debandando

corpo-nau

quando não há

embarcação

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eu que,

de pronto,

choro_

espargido

peito_

descompasso

pés_

em tambor

finalmente

pude ver

no âmbar

dos teus mantos

no mover

d’uma dança

a fricção

do vento-água

tornado

labaredas.

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MétierEssa luz amarelada

farfalhando a cortina turva

não me diz nada.

Como o vaso chinês,

é só abstração,

momento-torpe,

manhã lânguida,

certa tendência

a romantismos pueris.

Mas não tem balanço

ou parque,

nem balões

e pezinhos de

solados grossos,

a sorveteria não abre

às segundas-feiras.

Pra cá do vidro

a tendinite aguarda

com risinho zombeteiro,

papéis acumulam-se

junto a versos

que não constam

no brainstorm,

mais café na máquina,

um pardal não

distingue seu

reflexo

do bico de

sua amada

e toc-toc

na janela

da baia ao lado,

imprime,

assina,

protocola,

Ninguém repara

a borboleta

que pousa

no meu beiral.

Dizem que traz

sorte,

não é?

Daisy Serena: ativista visual, poeta, prosadora, pisciana, filha da tempestade, amante de café, estu-

dante de sociologia e política pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo & integrante

do coletivo Dolores Boca Aberta Mecatrônica de Artes, entre coisas-outras e coisas-nenhumas.

http://cargocollective.com/daiserena

contato: [email protected]

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Pilar Bu

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Notívagacarros correm

apressados

para chegar

em lugar nenhum

a cidade

imersa em fantasmas

não tem espaço

para o afeto

silencio

na ponta de uma

das asas

à espera

de qualquer

anjo caído

estou oca

estou perdida

desencontrada

no meio das luzes

resta só a casca

no horizonte

encontro o vazio

O perdão não é compulsórioum abismo nos separa

já não dou risada

das suas piadas

já não conversamos

sobre banalidades

já não ouvimos juntos

a bateria da Vila tocar

queria tirar o véu

dos teus olhos dissimulados

protegidos pelos óculos de sol

mas estou cansada

demais

para conversar

enquanto desistimos de nós

a cachorra urra no cio

eu vou entregar afeto

enquanto você

me acusa de falsidade

já não há mais ferida

já não precisamos

nos recuperar

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Cacos de ventre partidorasgaram teu ventre

oco

trinta e três vezes

penduraram a carne

podre

na soleira da porta

perfuraram mil vezes

teu corpo

que vertido em sangue

e lágrimas

resistiu

mesmo às injúrias

milenares

habito teu ventre

oco

como fazem

tantas mulheres

e meninas

estou fraturada

nos teus pedaços

de sonhos perdidos

quando junto

todos os cacos

e me olho no espelho

é a ti que vejo

refletida

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Como quem compõe música no infernoeles disseram que minha escrita

era uterina

mas meus poemas

gritam os filhos

que eu nunca tive

eles disseram que eu seria

como uma sinfonia em branco

mas meus versos sangram

caos dor desobediência

rebeldia

qualquer homem medíocre

vende mais livros do que eu

qualquer homem medíocre

ganha mais prêmios do que eu

qualquer homem medíocre

escreve versos mais belos que os meus

eu não escrevo para ser

dócil

eu não escrevo para ser

submissa

eu não escrevo para ser

adorável

escrevo pelo direito inalienável de existir

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Ultraviolentaestou em processo

de troca de corpo

readequando unhas

pelos e músculos

tirando esse outro

que habitava

há um tempo por aqui…

estou trocando a lente

o sapato que já não cabe

estou trocando a pele

o pólen, a prole, o vazio

estou trocando as palavras

estou voando para…

me partir no chão

mudar o sangue

as gravatas obsoletas

as desculpas vis

os caminhos sem volta

estou mudando de endereço

de andar, de bicicleta

estou mudando de genealogia

porque eu gostava mais

quando eu me entendia menos

Pilar Bu: é vampira, leoa, sereia e mãe felina de

quatro gatos. Poeta e mestranda em Literatura

pela Universidade Federal de Goiás, já tendo

pulicado em diversas revistas eletrônicas. É

uma das mediadoras do #leiamulheres Goiânia,

além de uma das organizadoras do festival lite-

rário [Eu sou poeta] e integrante da equipe do

projeto E-cêntrica. Seu primeiro livro de poe-

mas, Ultraviolenta (Kotter Editorial) foi lançado

em Goiânia em 15 de abril. Sua área de estudos

é a representação e autorrepresentação de mu-

lheres na literatura, estudos de gênero, autoria

feminina e teorias feministas.

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Estela Rosa

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Um caroço de abóbora japonesaAprendi

Que se você joga um saco de terra no vaso

É incontrolável que surjam pequenas folhas

Plantas sem nome

Diria minha mãe

É tudo mato

Mas resolvi jogar terra em um vaso

E ali algumas sementes que iam pro lixo

Não me preocupei

Nada do que planto dá

Não tenho interesse em fertilidades

Mas aí brotou por entre o lixo

Uma folhinha

Puxei o mato

Mas ele saía do caroço da abóbora japonesa

Do purê de semana passada

Ela ali crescendo

Orientalíssima em meu vaso de lixo orgânico

Minha última tentativa de gratidão

Com o broto na mão

Fiquei pensando nos mestres japoneses

E naqueles samurais de coquezinho

Naquelas moças com pés cortados

Sapatos de madeira

Nos budas de porcelana

E aquela folha ali brotando

Então é isso, não dá

Não sei lidar com vidas pacientes

Com essa folha japonesa

Delicada rompendo o lixo

Feito um hexagrama de i-ching

Me ensinando a brotar

Mas não dá

É poesia demais pra mim

Logo eu que não sei meditar

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Chá de camomila Quando pequena, existia a taraPor crianças Johnson&JohnsonQue exibiam seus cabelos loirosVolumososCheios de propaganda na tvPor conta disso, as mandingas para cabelos loirosMe eram constantes

Eu não sabia que era pecado não ser loira

Naquela épocaMinha mãe exorcizava os piolhosE o cabelo que escurecia a passos largos

Na mandinga,Em cima da camaEla polvilhava neocidE depois me lavava com chá de camomilaE depois shampoo Johnson&Johnson para cabelos claros

Abafava os piolhos e meu cabelo acastanhado

Hoje, depois de anosDepois das desilusões com a mandingaTenho pavor ao loiro e ao chá de camomila

AgradecidaSó não me queixo dos piolhosQue foram embora cedoJunto com a inocência dos bebês Johnson&JohnsonE meus cabelos loiros

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Abismada

com a dimensão das coisas e a largura

das pernas e cintura desencaixada

caindo enviesadas feito

chuva de março pela janela

fico parada enquanto me atravesso

com aquele ar que vem direto

cortando a janela em duas

como cortaram em duas minhas pernas

Encaro a chuva e as pernas

como quem encara o abismo

Eu olho para ela

Ela me olha de volta

Estar abismada seria

uma questão fé?

Não

O abismo é uma mulher na rua

parada no meio da chuva confusa

se atravessa ou

se é atravessada.

Cortada em duasMesmo depois

de grande crescida

enorme em si as pernas

os braços com pelos

quadril largo ancas

ainda me pego contente

admirada que só

olhando a chuva

que cai do nada nos tetos

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Reflexos em banheiros públicosO espelho que me traduziu

pela primeira vez era

pintado em um banheiro largado

a mercê dos homens que estupram

em banheiros públicos independendo

se de primeiro segundo ou terceiro grau

foi o reflexo sujo que trouxe

à tona toda a clareza

de precisar ser

a que se defende

a que defende as outras

a que defende as unhas

os dentes

e os espelhos

todos eles quebrados

no chão

além muito além

das honras

estava

pela primeira vez eu

frente a um rosto

a mercê de tantos outros

a espreita esperando uma palavra

que melhor traduzisse o ruído

de uma mulher sozinha

frente a si mesma

escrita na porta

de um banheiro silencioso

o espelho que primeiro me traduziu

publicamente não tinha papel

como não tinha papel minha vida

antes do assombro

de se traduzir em outra.

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Suaves parcelasNão tenho posses

Nada de casas, cartas

de crédito, dinheiro

na poupança, rendendo

0,9% ao mês

Não tenho filhos

Nada de herança

de maridos ricos, propostas

de emprego, o carro do ano

com mecânico

sujo de graxa

Não tenho perspectivas

A não ser aquela

da luz oblíqua

que desce

pela janela nos dias

de abril dos versos

da Pizarnik que entortei

quando traduzi da nuca

e sua penugem

que lembra a serra

no ângulo certo do ônibus

no engarrafamento que parece

andar pra trás

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Estela Rosa é escritora, poeta e caipira, formada em Letras pela UFRJ. Teve poemas publicados na

Revista Grampo Canoa, da Luna Parque Edições, e ainda leva susto ao ler seu nome na capa. Em 2016

se juntou à iniciativa Mulheres que Escrevem, onde agora realiza um trabalho de curadoria de novas

colaboradoras e projetos.

numa vertigem cotidiana do olhar

do outro que atravessa

o meu quando o braço

arrepia

Há muita perspectiva na sala de espera

na rua, nos gritos, nas pernas bambas

nas minhas mulheres, nas desistências

nas letras tortas dos anúncios de búzios

nas cartas, no tarot, no ensopado de peixe

Há muita perspectiva não sendo

nada, mas isso, meu bem,

não dá lucro no banco.

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Julia Raiz

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the thorns are showinglendo pagu cheiro o livro lambo

o livro coloco ele no chão aberto

pra ele me ver quando escrevi

aquele texto do nascimento

da minha mãe em 1962 já sabia que a pagu

era minha filha que pregaram na cruz

gabriela gabriela o gabriela chamam ela

pra entrar porque está escuro ela voltou no corpo

reto de uma menina de 13 anos

mas os olhos flutuantes continuam balão de festa

sem suporte pagu um canto de pássaro triste

um pio dois pios um silvo longo ela também

fala a nossa língua relincha trelincha dá coice

em frente à trincheira vem sempre à retaguarda

se desenha nua enquanto corre a madrugada

esbarra num galã com quem visita o cemitério

dorme coxa colada com a irmã debaixo da terra

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Cartas aos cúmplicesEscreve como quem constrói uma cadeira que não serve para

sentar

Se atravessamos o século, o milênio, a era, temos a obrigação de

mudar os objetos da sua posição inicial, buscar novos materiais,

funcionalidades, meios. Rebatizar as velhas histórias, criá-las

novamente a partir da observação cuidadosa do céu. Formar

constelações inéditas, não com os formatos virtuais conhecidos,

mas desenterrando o que um dia fomos ao som dos tambores,

deixar que os espectros falem novamente, acreditar nos delí-

rios, conversar com os próprios órgãos e segurá-los pelas mãos

como se fazem com crianças, ouvir o artesão que trabalha en-

tre espaços. Já não podemos nos abandonar como fizemos da

última vez, existe um zumbido, que une todas as nossas vozes,

instalado no ouvido direito das pessoas que trabalham com as

mãos: aquele que cozinha, que costura, que toca, que escreve,

que constrói, que serra duas metades de coisas distintas e as

junta novamente para a formação não de uma terceira, mas de

uma quarta, quinta, sexta, infinita sinfonia.

VisitaEla diz que não fala pelos outros, os outros que falam sempre

por ela, nesta voz, estão sempre lançando flechas que voam pa-

ralelas a este corpo. Ela diz que pode levantar o dedo para cima

como uma antena e se preencher de ruído. Ela diz que é possível

usar a língua para escrever um poema do Blake que não é um

poema do Blake e nem a voz de um enorme rottweiler preto

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que a lambe com carinho. Ela diz que o

pacto que existe entre vocês, o que falam

sobre ela, o que dizem sobre as coisas ao

seu redor, como configuram os rostos, as

casas, os seus pertences, o que não falam,

o que enviam para os vizinhos em forma

de imagens à noite, o que ordenam aos

recém-nascidos, como batem suas cabe-

ças na parede, ela ouve tudo.

ÍtacaSempre achei estranho que um homem

amarelo pudesse levar um cachorro pela

coleira ou um homem jambo montar

um cavalo, sempre imaginei que apenas

os brancos pudessem estalar o chico-

te no picadeiro talvez para uma mulher

que equilibra uma bola na ponta do na-

riz. Diz Francisca sobre ser uma criatura

circense: como o cavalo de combate que

no picadeiro caminha até o touro com os

olhos vendados, conduzido por uma mão

escura, que não poderá associar àquela

outra que dá tapinhas na sua bunda com

carinho enquanto aproxima um torrão

de açúcar dos seus lábios, assim vou eu,

torpe animal, sem compreender a mão

que hoje me fere e sem reconhecê-la nes-

ta outra que com sabedoria cuida das

minhas feridas. Como o cavalo cego que

não sabe e ainda assim evita o ataque, eu,

besta que tateia, me volto ao canto da ver-

gonha tentando evitar a lança absurda,

tentando retroceder até eu mesma, até

o lugar onde só a angústia me visita, até

esse eco que ninguém reconhece, tentan-

do descer o degrau que um dia subi, ten-

tando voltar à madrugada fria e escon-

der em suas sombras o coração recuado

e triste.

Amor como o cair do solEssa é a história de uma mulher que

acendeu uma vela vermelha quase sem

pavio derretida sob o criado mudo uma

vela para alma da irmã da sua mãe, mor-

ta no estacionamento do parque mais fa-

moso do país, a chama ilumina o corpo

da mulher no chão, bochecha colada no

asfalto, respiração a toda antes de acabar,

aquele medo da tia aparecer no banheiro

ou na lavanderia quando de madrugada,

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um copo de água para matar a sede, aque-

le medo da tia voltar no corpo da vizinha,

a esquizofrênica. A mulher já viu de tudo,

a mão direita paralisada, queimada num

acidente de carro, o resto do corpo per-

feito só a mão, só a mão, o resto do cor-

po perfeito. Com a mão esquerda acende

a vela e observa enquanto a cera escorre

e pinga na mão direita, não sente nada,

uma mão direita paralisada comparada

a um corpo sem vida no chão, sussurra

no ouvido da morta, sente o medo que foi

embora, mais uma mulher, receia pelas

sobrinhas que ainda vão nascer e podem

ser a encarnação da mulher fria no esta-

cionamento e os seus futuros assassinos

também atingidos em confrontos com

a polícia, tem medo da reencarnação, a

vela pinga vermelho na mão morta, o

fogo que não atinge o resto do corpo, a

mão fria que queima, um sol a pino, dois

carros que se batem, a arma que dispara,

uma mulher no chão.

Julia Raiz é paulistana e mora há quatro anos em Curitiba, onde se for-

mou mestre em estudos literários pela Universidade Federal do Paraná

(UFPR) e atua como professora de português para estrangeiros. Tem tex-

tos publicados em revistas literárias como Mallarmargens, Zunái, Germina,

Raimundo, Escamandro. Também participa de projetos de incentivo à es-

crita e leitura como o Leia Mulheres e o coletivo Marianas.

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Caroline Policarpo

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como se meu corpo fosse o lar de um animal selvagemcomo se meu corpo fosse o lar de um animal selvagem

faminto

desesperado pra rasgar as paredes da minha pele

e ser livre

eu me vigio:

cerro os dentes

os punhos

tento ser grade

e detê-lo

tenho medo

ele é forte

insistente

a bicadas abre uma fenda

(ferida escancarada)

eu sangro

ele escapa

o voo me inunda os olhos

as asas crescem me arrebentam ossos

eu grito

cuidado

ave-mulher à solta

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tintaela tinha duas tatuagens bem pequenas, cada uma um pouco

abaixo de um dos ombros. era uma parte das costas que as rou-

pas sempre cobriam, e como nunca se deixava ver nua as asas

eram seu grande segredo. mas de que serve um segredo?

as asas serviriam muito melhor se fossem verdadeiras, se lhe

permitissem voar, mas aquelas eram pequenas asas feitas de

tinta, sem força alguma. incapazes de erguer do chão uma mu-

lher há décadas acostumada a pisar, anos e anos de não voo pe-

sando no seu corpo que já uns cinquenta e tantos quilos de os-

sos e carne e qualquer coisa mais de que sejam feitos os corpos.

ela morava em um apartamento aprisionante mas lá tinha uma

varanda à qual ia com uma xícara de café ou um sorvete ou com

seus pensamentos e às vezes apoiava as mãos nas beiradas ti-

rava os pés do chão e se pendurava um pouco, do lado de den-

tro. com a segurança do chão a poucos centímetros dos pés. mas

sempre a vontade de se sentar com as pernas para fora, apenas

para sentir a altura, não por esperança de que suas asas de tinta

servissem para voar, se saltasse.

como não tinha asas, ia andando de um lugar a outro. um pas-

so de cada vez, sempre com um dos pés firme no chão quando

outro se erguia.

um pé. o outro. um pé. o outro. um pé. o ar. o outro. o ar. um pé.

o ar. o outro.

com algum tempo de esforço aprendeu a usar as mãos para

sustentar o corpo e oferecer aos pés breves instantes de altura.

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instantes que iam cada vez mais demorando conforme ganha-

va força e jeito.

as mãos. um pé no ar. o outro, também. depois, um pé de cada

vez, no chão. de pé. um salto. pirueta, mão chão pé.

claro que as tentativas de acrobacias ficavam bem longe de ser

voo, mas a cada dia ela tinha mais controle e liberdade sobre a

maneira de estar no chão. desobrigava-se, um bem pouco, do

pisar obrigatório.

tinha, claro que, suas esperanças. de voo. talvez, por sorte, mági-

ca ou acidente, um dia. mas um como não conseguia inventar.

passava horas pensando: e se… … …e se o que?

nessas horas envolvia com a mão direita o pulso esquerdo. ali fi-

cava sua outra tatuagem, a mais antiga. era um fino risco preto

fechado a um dedo de distância do ossinho protuberante, uma

pulseira definitiva, para lembrá-la de que havia estado, e por

isso se sentia sempre, presa. metaforicamente. nem tanto.

o porquê dessa decisão de gravar na pele para sempre a corren-

te e as asas, seu inevitável e seu sonho, ela mesma mal sabia.

em parte eram uma mesma coisa, até: a corrente não deixava

esquecer a necessidade de liberdade, e as asas eram o meio para,

a urgência, a força. mas que voo?, que voo? como o voo? se para

nunca esquecer havia marcado no corpo a lembrança de seu

não poder (o voo), a dor que sempre doeria. mesmo que chegas-

se a voar, doeriam sempre os tantos anos de nenhum voo (mas

ela nunca, nunca).

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obsessãoela desenhava pássaros

esculpia pássaros

escrevia a palavra ‘pássaro’

nos guardanapos, nos cadernos, nos espacinhos em branco

nos livros

cantarolava a palavra ‘pássaros’ enquanto tomava banho

tirava fotos

de pássaros

comprava livros

sobre pássaros

deixava pedaços de pão ou maçã na varanda

para ver se os pássaros

vinham

gravava o canto dos pássaros

e ouvia o dia inteiro

quando não havia

pássaros

por perto

mas nunca havia pássaros

vivos

por perto

quando eles vinham

ela enfiava as unhas nos pescoços

quebrava as asas, furava os olhos,

depois jogava os corpos

no chão

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a emparedadora de pássaroshavia uma emparedadora de pássaros. ela tinha prazer no de-

sespero com que se debatiam em suas mãos aquelas coisinhas

dotadas de asas, tão vivas, tão livres. capturava deles a liberdade,

o voo, como se ao capturar passasse a possuir. não entendia que

os capturados deixam de ser o que eram.

nunca matava os pássaros antes de emparedá-los. talvez para

dizer a si mesma que não os matava, para fingir que podiam so-

breviver prensados entre tijolos, sem espaço pra mover-se sem

ar pra respirar. como se um pássaro emparedado ainda fosse

pássaro.

provavelmente fingia que dor de pássaro não era dor, que medo

de pássaro não era medo. e ia construindo sua imensa parede:

tijolos cimento pássaros tijolos cimento pássaros tijolos cimen-

to pássaros tijolos cimento pássaros tijolos cimento pássaros ti-

jolos cimento pássaros tijolos

(costumava desviar os olhos para não ter que encarar o pássaro

com sua vontade feroz de ser um pássaro

vivo)

se fosse possível… emparedaria a si mesma também, para estar

mais junto deles. como encerrar o próprio corpo entre tijolos

seria tarefa impossível, resolveu pintar a parede, quando esti-

vesse terminada, gigante e imponente. não poderia ser com o

vermelho vivo gritante que gostaria, ela sabia, o sangue quando

seca fica com uma cor bem morta, o vermelho vai empretecen-

do. de qualquer forma, derramaria sobre a parede o de dentro

das veias, pintaria-a de vermelho.

espelho:aquela

sou eu?

Caroline Policarpo tem 20 anos, cursa letras, e

escreve porque a literatura é janela, âncora e

asa. No projeto Autômatos Poéticos, inventou a

robô de conversação chamada Inventada. Tem

textos nas revistas Raimundo, Trasgo e Subversa.

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Yasmin Nigri

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MeteorosInspirado na obra ‘Meteorito’ de Letícia Ramos exposta no MAM

Encosto os olhos na luneta

Vejo uma escala cromática de brancos rasgar o breu

Seria a sombra furta-cor de um meteoro cruzando o espaço

Ou a Europa penetrando o continente africano?

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MemóriaNaquele som áspero

Senti a dor escaldante

Das lágrimas negras

Costurando as calçadas

Por onde hoje piso

Outros líquidos umedecem

Minhas roupas

Sinto que meus antepassados vivem

O verso de suas mãos

Escorregam pelo meu rosto

Basta tirar o chapéu e ouvir

Agora responda

- As vozes ecoam -

Ainda assim

Você é você mesma?

Imagine que o espelho

Foi quebrado

O que é refletido

Pelos seus pedaços?

Já não me lembro onde está

Aquele lugar seguro

Não tão profundo

E tenho me contorcido

Qual salmoura nas chagas

Por esse oceano difícil

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Pluma azulOs golpes de pincel já não dão conta. I keep always returning to black. Sou eu meu pró-

prio sintoma e é isso que me une ao mundo. Assisto uma pluma azul em queda ven-

cendo a resistência do ar. A força de resistência do ar me proporciona inúmeras emo-

ções. Admiro o movimento desse corpo, sua forma etérea. Enquanto cai se lança numa

coreografia virtuosa. Sua queda é um balé vertical de carícias com o vento. Sua queda

é seu triunfo. Pousa com majestade sobre o chão. Gostaria de reagir à queda como uma

pluma azul. Gostaria que meu corpo resistisse como o da pluma azul. Estou farta de

me contentar com esse tipo de prazer, farta de toda essa sensibilidade estéril. Há um

silêncio perturbador sobre a Palavra e as categorias. Há um silêncio perturbador que

vibra. Onde quer que eu vá sinto o grito profundo da natureza rasgando o céu com

sua língua de fogo. Quero montar uma peça. Quero criar um novo teatro. O ritmo não

será medida vazia de conteúdo. Estou certa que o ritmo nunca foi uma medida vazia

de conteúdo. Tudo isso será evidenciado numa ordem fulminante. Tal como acúmulo

da cultura cujo significado vivo avança sobre o negro. Estou mesmo desbussolada. Não

tenho mais a ambição de transformar o mundo. Abandonei o sonho em algum lugar

onde me encontro constantemente perdida. Arrefecer é tornar-se mais forte ou mais

fraca?

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Mais forte que o açoite dos feitoresUma sombra vespertina me contagiaNão se trata de mandar ou não notícias

O único modo de governar cada brechaDesse tempo falho é interrompendo-o

Minha boca é morada ácidaQuero uma figueira sem pássaros

Para gozar dos frutos e anseiosDe querer ser grande

A colher já não cabe no buleSua espada já não cabe em meu ventre

E atravessa cortando sua manhãPerpassa grades

Parte chavesAssim invisível incorpórea

Vou ao termo

Posto de pé o próprio amor inflamadoVai a pique

Você se queimaMas sou eu quem sai ferida

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Tudo precisa começar pelo gritoIniciada a amar o cânone e sua voz consciência sou capaz de

chorar por falta de algumas palavras. Aprendi a amar as vozes

femininas que se autorizam a dizer o amor outras e mais mu-

ralhas. Sou uma dessas vozes? Nós estamos tentando crescer o

bastante para viver sem vocês, entendem? Hesitantes e não sem

retraimento. É impressionante como ainda não engasguei. Há

dias que não consigo sair da noite. Ao que parece meus ovários

são duas luas. Onde eles se encaixam nessa estranha geografia

do tempo? Por que nos ensinam a fotografar o mundo, mas não

o modo de tocá-lo? Por que não nos emitem licenças para rees-

crever e apagar as linhas já escritas? Por que preciso escrever

sobre mim quando não escrevo sobre mim? Quanto mais luz

lanço sobre um assunto mais me curvam. Mesmo se disser que

escrevo sobre mim não escrevo sobre mim. Mesmo que eu me

ilumine o meu interior é sombra. O grito. Tudo deveria começar

pelo grito. Tudo precisa começar pelo grito insubmisso. Não vou

Yasmin Nigri (1990), é carioca, poeta, tradutora e bacharel em filosofia pela

UFF onde atualmente cursa o mestrado na linha de estética e filosofia da

arte. A família por parte de mãe veio de Manaus e a do pai é de origem

sírio libanesa. Começou a escrever poesia aos 24 anos. É co-fundadora e in-

tegrante do coletivo feminista Disk Musa e escreve para a revista Caliban.

Possui poemas publicados em diversas revistas digitais.

mais esperar que ele venha. Nós estamos aqui simplesmente

suportando. Não temos trilhas. Cortaram nossa onda. Ficamos

com os restos. E estamos aqui aceitando a provisoriedade que

perdura. A interrupção está por todos os lados. Buracos-ocos.

Vultos que fremem. Ostras sem pérolas. É nessa altura que não

minto. Máscaras ao chão. Vocês precisam suportar o nosso grito.

Vocês precisam suportar a intensidade do nosso grito antes de

nos dirigirem a palavra. Vocês precisam escutar o nosso grito.

Vocês precisam aprender a se comunicar com o nosso grito. Res-

peitar o nosso grito. Admirar o nosso grito. Amar o nosso grito.

Mulher vive na intempérie. Nossos escritos em areia levados

pela tempestade. O grito insano levantando palavras apagadas

pela ressaca. Só mesmo um homem diria: “poesia teu nome é

mulher”. Todos sabem que a poesia só se inscreve em pérolas as

mesmas que foram roubadas de nossas ostras.

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Priscilla Campos

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rio de janeirodiga aos elefantes

que encarei

a janela aberta

de nosso primeiro verão

como quem encara

um falcão no punho:

a iminência aérea da vitória

do princípio celeste

do Olho que vemos e do que

nos olha

do voo que se faz com a perna bamba

cabelos molhados e

a luz ambígua de

qualquer manhã na metrópole.

meu avô atropelado na Avenida Rio Branco

você de mãos dadas comigo em Copacabana

o sorvete de pistache derretido

calor papéis de presente

o disco do Chico Buarque

a cidade

o nosso inventário do possível

mensagem na garrafa que anuncia

eu sou teu ombro-guia

tua saída estreita entre os corais

e os bancos de areia

entre a Pasteur

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e a cabeceira da pista

queda livre pássaros

marinheiros-fantasmas

eu não sabia que era permitido

delimitar o mar da Urca

com braços tão finos

observar constelações brilhantes

nas clavículas de meu futuro amor

alcançar o ritmo do

coração alto

órgão de número um na linhagem

dos que acreditam na maestria

da navegação

na resistência do barco simples

impávido

inteiro nas águas-tranquilas

mais inteiro ainda diante

das novas ordens e repetições.

outro dia, o Gênio me disse:

a caça é o último refúgio

de quem segura a vida pela mão

dos que perseguem a febre

antes mesmo de compreender

a função de todas as casas

de todos os ventos

dos assentos finais de

cada ônibus

em direção à Gávea

ou dos seus óculos

em cima de

camas-estrangeira

tão nossas quanto

as calçadas e os quiosques

cariocas numa noite

de céu aberto.

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na praiaaprendi a exterminar

os dias

como o mar destrói

as pedras

os soluços

como a areia aborrece

os corpos

você

como a tempestade alveja

os morros

sua família

como os raios atingem

os edifícios.

quase sempre

eu penso nas cartas náuticas

na água ruim

no rio sem peixes

siglas

lápides portais esquecidos

linhas costeiras

correntezas fortes

no seu rosto desajustado

no seu quarto pegando fogo

na rotina dos recém-casados

na lança no alvo

nos feitiços de Rasputin

e os agentes soviéticos,

no físico hipotético

e o seu filho sufocado.

eu não volto

à beira-mar

sem antes interceder por

todas as memórias

benevolência

pelo seu apego à desgraça

um túnel em direção

ao desterro é o único

amuleto certeiro

a proteção permitida

para os meus invernos

pés tortos

cabelos curtos

pele jovem

coração vencido

protagonista aborrecido

ingênuo compassivo

às mentiras e mistérios

de um homem inadequado

tolo como um guarda-sol

voando, às 18h, na praia

de minha infância.

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toda noite

a banheira recebe

os seus braços

a sua bunda e

os seus olhos apaixonados

para uma cerimônia

de extermínio

a celebração do fim

do nosso contato

do limite entre

você deixar de existir

e eu esquecer de

testemunhar o seu

corpo desaparecido.

na banheiratoda noite

você engasga

com shampoo

te afogo com astúcia

e perseverança de

formigas em fila

tiro a sua

respiração

com amor e

dedicação de

arqueólogos

em escavação

de minas de diamantes.

observo a sua pele

enrugar

a sua temperatura

cair

o seu cabelo

flutuar

como o bote

que jamais

salvará os

passageiros do navio

em naufrágio.

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sala de músicana noite do primeiro enigma

o piano

pertencia à varanda

como os olhos da medusa

pertencem à morte

como o coração

pertence ao externo de

qualquer corpo

como a saída do amor

pertence ao aquário vazio

embaixo de cada cama.

nós tínhamos como

relevo possível

as almofadas pelo chão

o tapete sujo de vinho

o violão de seu pai

cães ausentes

fotografias antigas

um quadro

sem propósito

acima de nossas cabeças

sempre tão distantes

mas imediatas

na linha de sucessão

daquele palácio iluminado

onde os reis

não enxergam

que a soberania é só

mais uma forma de distrair

os nossos equívocos.

na noite do primeiro enigma

a minha palavra

esteve nas ruas

de sua infância

o seu sorriso

esteve no mapa

de uma cidade

portuária

o seu olhar

presença constante

no ponto de fuga

entre

o meu ombro

e o oboé partido

você me disse:

volto aqui porque

o lugar onde nascemos

é um fantasma obstinado

atento em disciplina

um fantasma-soldado

responsável por nossas

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fugas e revoltas

pronto para nos agarrar

não importa

a velocidade da disparada.

nós celebrávamos

a decadência da orquestra

fogos ruídos

beijos ciências

do som pratos

caídos violências

sem reparos

deslocamento de braços

vento forte o piano

sozinho

eu e você

investigadores do tempo

na procura do vulcão

(alerta em neon)

estruturas geológicas

são as provas finais

de que a terra

não espera retornos

egoísta e impaciente

como nós dois

cansados exaustos

ardendo no mesmo

ritmo do progresso

do sol.

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3.direciono os trampolins:

você me puxa para dançar

nomeio as luzes da Pompeia

a memória confunde os meus pés

alguém grita pelo banho de alecrim

seremos o engano na vida um do outro

minto seremos como dois pardais no

inverno espécies residentes

adaptáveis encantadas com a possibilidade

de dormir todas as noites no mesmo centro.

Priscilla Campos é jornalista e crítica literária. Mestranda em Teoria da Literatura pela Universidade

Federal de Pernambuco (UFPE), estuda as representações de cidade e espaço na literatura espanhola

contemporânea e latino-americana. Escreve para o Suplemento Pernambuco, Revista Continente, pei-

xe-elétrico, entre outros veículos. Seu site: www.estudodeneblina.wordpress.com..

três notas sobre a cidade

1.enumero os meus assombros:

a janela da lua cheia

a moça do vestido preto

ombros de fora

melancia e capim limão

o filme do Cazuza

2.te proponho alguns períodos de sol:

avenida São João

minhas pernas cruzando os seus

joelhos braços na cintura

viagens à costa do ouro

mapas do desaparecimento

há quanto tempo eu queria te dizer

dorme com a tua língua dobrada

porque assim as palavras destroem

umas às outras em silêncio

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Rita Isadora Pessoa

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das ruínas preliminaresou

“dos papéis individuais no fim do mundo”

Aquela sou eu esperando a catástrofe

com as mãos seraficamente pousadas

sobre o colo

a verdade é que só preciso

me agarrar violentamente

a um ponto fixo

na disco-voragem

deste sonho

e permanecer submersa

acontece que eu engulo tua indiscrição gulosa

descendo pelas minhas pernas

e devolvo delicadas ossadas

sob o signo da carnificina moderada

(uma forma de canibalismo contemporâneo?)

expostas em seu tutano todas as comissuras dos ossinhos

equilibrados sobre a porcelana

frágil do meu prato, porque uma coisa que acontece é que

o meu corpo

ele não se quebra

não quebra como se quebra um prato

ou um fêmur

não como se quebra uma linha

no fim de uma frase longa e deselegante

alinhada à esquerda

o que tenho a ser feito

pode até ser chamado de ofício

de linha e agulha

mas eu contenho hemorragias

é o que eu faço

— deveria ter sido médica

mas me coube ser dique

: eu contenho hemorragias

com as mãos

todos os dias

— um ofício que empresto

da pedra

para subjugar o rio

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a hora da estrelapara leonardo marona

esse é para você

morcego noctívago

que não reconhece nem teto nem parede

nem o próprio brilho

seguimos no nosso diadorim off-sertão

modernismo wannabe dos que vieram

diretamente da água

para matar a sede do rio

no fim prosaico da discussão de duas horas

sobre o copo quebrado ou o lixo vazando na cozinha

ou a panela de batata doce que cozinhou demais

você constata que, de nós dois, sim,

você é o mais romântico

e eu digo ‘mas nós somos românticos de formas diferentes’

e você graceja ‘é, de fato, eu sou da tradição

do romantismo inglês e alemão’

[sim, com tua solidão proporcionada pelo bosque

e a vastidão dos espaços naturais abertos,

você, oxóssi-caçador da bílis negra]

mas eu, no caso, segundo você, sou a tragédia!

você me diz, ‘você é a própria grécia’,

[cassandra, antígona e medeia

enfileiradas na cabeça da hidra, mais a fúria do olimpo

com raios de iansã e ingenuidade de macabea]

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você diz que sou a origem de todo o romantismo, de todo o

cinismo,

da neurose, perversão e da forclusão do nome-do-pai, da mãe

[...]

e aí, cá para nós, você há de me responder então como faremos

para cumprir a nossa parte, nosso fair share

na tarefa hercúlea de soçobrar

o mito do amor romântico,

essa bitch, essa marca indisputável --

fardo-sísifo da nossa geração pós-yuppie

-- se somos nós, meu amor, o próprio mito

se nós somos o amor romântico

o perverso, a amor perdido

[encenado reencontrado]

-- o amor com a faca na mão

e a própria sede do rio.

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eu, olga hepnarováé verão em praga

e o ano é 1973.

[você,

olga misantropová, com seu figurino de caminhoneira nouvelle vague, suas calças de veludo cotelê e a jaqueta de couro

craquelada, você, anna karina psicopata, ainda que visionária, você ignora o óbvio

: o avesso do amor não é o ódio]

é verão em praga

mas faz ainda muito frio

e o avesso do amor é o coração terminando de bater de encontro ao asfalto, fraturas expostas, intestinos a migrar da cavidade

abdominal como uma corda autônoma que sabe exatamente o destino que lhe é devido: o pescoço que espera a quebra

de parágrafo,

o cadafalso que espera

a quebra do pescoço

com a corda na mão.

[corta para] o caminhão de olga estacionado na calçada;

a fileira corpos estendidos como uma oferenda satânica, mas você não é satânica, olga, você é uma assassina em massa e isso é

diferente. satânico é outra coisa. planejar um assassinato simples requer um engodo fundamental, um paralaxe e você

escolheu ignorar que o avesso do amor

não é o ódio.

é verão em praga

e faz frio;

o avesso do amor

se faz por meio de grandes colapsos,

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colisões no concreto, no asfalto,

um embotamento brutalizado,

e você, olga hepnarová,

espera seraficamente

a polícia;

a bolsa no colo,

sentada em seu caminhão

você, a autora dessa carta perturbadora

para as gerações que virão:

“eu, olga hepnarová,

vítima de sua bestialidade,

condeno-os todos à morte.”

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diário do ano do macaco de fogo se como celan

eu tivesse a certeza

de que os poemas estão a caminho

se ao menos eu não tivesse

fundado toda uma mulher

[uma mulher inteira

garganta glote ancas

sexo tornozelos]

apenas em torno

de uma palavra infeccionada

se eu não tivesse

as mãos gretadas

como uma figura mitológica

mal-sucedida

em suas peripécias amorosas

eu poderia sim acreditar

[como se a minha vida

dependesse disso de fato]

no efeito de luz

na voragem súbita

no obscurecimento

que se segue

e se repete

e se repete

nesse projeto desconjuntado

de revolução

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mas é que eu vejo coisas

vejo coisas em ti e neles

constato o que há de cínico -- o símio

que mimetiza o desfecho ígneo

e não

eu não sei mesmo manusear o objeto isqueiro

não tenho habilidade

para os grandes gestos incendiários

estou aguardando

p a c i e n t e m e n t e

a grande água

como alguém que gesta

um filho querido

na cicatriz íntima

de seu próprio útero

mas se aterroriza diante

da perspectiva brutal

do nascimento

de um grito

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mefistófeles para iniciantesenquanto você está preocupado

com a musculatura do poema

eu limpei sua ossada

com os dentes

e povoada de arcos

e colunas e pilastras

aquieto uma arquitetura clássica

entre os braços

ensinando demonologia contemporânea

para a caravana medieval aqui do apartamento ao lado

jurando de pés juntos

que o século dezenove nem terminou ainda

enquanto você diz algo sobre fuzis acelerados

sobre não ir-se gentilmente para dentro da noite

eu me deito quieta nua

sobre a impenetrabilidade fumegante

deste chão de pedra

considerando

entrar na madrugada

como se entra num vestido

prensado a vácuo

[como se entrar em algo

fosse de fato

a questão

e não apenas o início cósmico

de um grande problema]

Rita Isadora Pessoa nasceu no Rio, em 1984, é graduada em Psicologia e não graduada em Estudos de Mídia. Estudou a poeta Sylvia Plath no mestrado em

Teoria Psicanalítica (UFRJ) e é atualmente doutoranda em Literatura Comparada (UFF), onde estuda o duplo em sua modalidade animal. Trabalha como

tradutora, revisora, astróloga e taróloga. Tem poemas publicados em revistas como Mallarmargens, Escamandro, Germina, entre outras. Seu primeiro livro

de poesia, a vida nos vulcões, foi lançado no final de agosto de 2016, pela Editora Oito e Meio.

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Maíra Mendes Galvão

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ressaca-rebôocarta selenográfica aponta em mare imbrium noturno a guarda

por enorco dragão (ou trono), assentada em provisões ou projeção

de uma horda de ex-votas, avivada pela moraça pelágica

a cabeça submersa, dioniso berrador, capitula pontos e copas

conservado em winedark sea minutos a fio, a contagem das noites

o engrandecimento das memórias ou vistas à distância baça

cratera em eterna formação aceita todavia objeto celeste

protoplaneta de substância coloidal e densa, e coesa

no seio palustre o impactor corpo que se encastra

em baía fervilhante, intenso bombardeio oportuno e auspício

de cornucópias desplangentes e néctares férteis de mina

a superfície rasgada, a vaga motor de vagas, além-vida

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scintilla animaenão ter a gravidade de duas patacas

que atingem o piso e tilintam

ter a gravidade sim de um crânio

plumbum,! ponderoso gongo

cujo grau de dureza veio do

crescimento endógeno do tempo

entremeando-se dobras sobre dobras

nos regos e axilas das curvas

dos 2 polos que mal sabem de suas

encruzilhadas nomeadas teimosamente

como relações de acesso

entrepostos de mundos possíveis

cancros de teoremas que são

agonia dialogia tritonia

ou broma rastelada de fulcro

do castelo da arcada de sonho

diaconisas em santidade forjada

bigorna sobre meu coro

enquanto imagem dobrada

como desdobrar os urros

de um desejo esquecido

dos pinotes avizinhados

selo grande, revém têmpera

alma grossa de ossatura

dos ritmos sincopados

disto que se diz fêmea

está tudo demasiado opaco

está tudo finalmente

finalmente enganado

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ersatzspielerinteimo em não acender a luz, encalhada

sem saber se quem – eu ou o mundo

é suplente de algo primevo

se o que existe é a tensão ou

degrau de recursividade.

o violento da memória é a retenção do vazio.

penso em palavras multiportantes, como não me escapa fazer:

merimnologia, ou: considerar é arder.

mermeridade, ou: ansiar é condenar-se.

metameridade, ou: a parte pelo todo.

palavras me procuram, procuram a nós

porque as salvamos de um desígnio adjunto

nos lançamos aos fins da tensão.

me vejo merócrina, exocito

e a elas entrego

qual impostora estertorada

o grau primeiro das coisas.

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refluxoa polaridade do tarugo

outrora atrator

se reverte e o torna

corpo centrífugo

cuja gravidade antiga

em resíduo ou miragem

esta touva sorveu.

monolito recumbente

tablete empunhado

(sua extensão rômbica

juntos entronizados)

ladrão de minutos

escondido nas horas

comutador de polos

se fez bode expiado.

gravidade era peso

furor era medo

olhar era fuga

buraco negro

do mistério alheio.

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o ser omisso- comemorando a nota de 5 reais encontrada no bolso, se esquece do contracheque

- sentado no chão do box durante o banho, pensando no corte de cabelo semanal

- apontando o dedo para si como forma de se adiantar aos dedos dos outros

- acreditando na entropia do universo, e também na ordem da própria clareza

- transformando em inimigo quem é menos real, ou seja, o resto do mundo

- rejeitando ser duplicado, alterado, sombreado

- temendo ser abandonado, temendo ser consumido

- sendo o centro do único e insustentável universo.

maíra mendes galvão é tradutora, revisora e

poeta. nasceu em brasília, estudou desenho in-

dustrial e filosofia e hoje mora em são paulo,

com um pé em alto paraíso de goiás. colabora

com a revista asymptote de literatura em tradu-

ção como editora-geral do brasil. seu primeiro

livro, jamanta na testa, deve ser lançado ainda

no primeiro semestre de 2017.

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Edição Bruno Palma e Silva

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