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MÚLTIPLAS REPRESENTAÇÕES DA FÉ DO ROMEIRO DA FESTA DE NOSSA SENHORA APARECIDA EM JOÃO PINHEIRO (MG) NA FORMAÇÃO DA IDENTIDADE LOCAL José Ivan Lopes * Maria Célia da Silva Gonçalves ** Introdução O culto Mariano sempre foi um vetor de identidade do povo brasileiro. As festas em homenagem a Nossa Senhora remontam ao início da colonização do Brasil. Elas foram introduzidas no país pelos portugueses que desde a Idade Média já cultuavam Maria. Em João Pinheiro, também não é diferente, a festa para Nossa Senhora Aparecida é uma das mais importantes do calendário católico local e congrega milhares de romeiros em uma peregrinação até a Igrejinha dedicada a Santa, situada às margens da BR 040, nas proximidades da cidade. João Pinheiro, universo dessa pesquisa é o maior município em extensão territorial do estado de Minas Gerais. Conta com uma área 10.727,471 km 2 computando uma população de 45.260 habitantes, sendo constituído em sua maior parte do bioma do cerrado, sua economia é baseada fundamentalmente na agropecuária, atualmente, pautada nos agronegócios emancipou-se politicamente há 103 anos. (IBGE, 2010) Insere-se na microrregião do Vale do Rio Paracatu 1 , localizada na mesorregião Noroeste 2 do Estado, distante 330 quilômetros de Brasília e 400 quilômetros de Belo Horizonte. * Mestre em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (2010). Especialista em Pedagogia Empresarial pela Faculdade do Noroeste de Minas - FINOM (2004). Bacharel em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (1997) e em Teologia pelo Instituto de Teologia São José, de Mariana, MG (1999). Atualmente é Diretor Acadêmico da Faculdade FINOM. E-mail: [email protected] ** Doutora em Sociologia e Mestre em História pela Universidade de Brasília - UnB. Especialista em História pela Universidade Federal de Minas Gerais- UFMG. Professora de Metodologia Científica e de Sociologia na Faculdade FINOM. Membro Laboratório Transdisciplinar de Estudos da Performance (TRANSE) SOL/UnB. E- mail: [email protected] 1 A microrregião do Vale do Rio Paracatu é uma das microrregiões do estado brasileiro de Minas Gerais pertencente à mesorregião Noroeste de Minas. Sua população foi estimada em 2010 pelo IBGE em 210.480 habitantes e está dividida em dez municípios. Possui uma área total de 34.997,251 km². 2 A mesorregião do Noroeste de Minas é uma das doze mesorregiões do estado brasileiro de Minas Gerais. É formada pela união de dezenove municípios agrupados em duas microrregiões.

MÚLTIPLAS REPRESENTAÇÕES DA FÉ DO ROMEIRO DA … · As identidades locais vão se forjando no viver, experimentar, fazer, sonhar, ... A festa de Coroação da imagem de Nossa

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MÚLTIPLAS REPRESENTAÇÕES DA FÉ DO ROMEIRO DA FESTA DE NOSSA

SENHORA APARECIDA EM JOÃO PINHEIRO (MG) NA FORMAÇÃO DA

IDENTIDADE LOCAL

José Ivan Lopes* Maria Célia da Silva Gonçalves**

Introdução

O culto Mariano sempre foi um vetor de identidade do povo brasileiro. As festas em

homenagem a Nossa Senhora remontam ao início da colonização do Brasil. Elas foram

introduzidas no país pelos portugueses que desde a Idade Média já cultuavam Maria. Em João

Pinheiro, também não é diferente, a festa para Nossa Senhora Aparecida é uma das mais

importantes do calendário católico local e congrega milhares de romeiros em uma

peregrinação até a Igrejinha dedicada a Santa, situada às margens da BR 040, nas

proximidades da cidade.

João Pinheiro, universo dessa pesquisa é o maior município em extensão territorial do

estado de Minas Gerais. Conta com uma área 10.727,471 km2 computando uma população de

45.260 habitantes, sendo constituído em sua maior parte do bioma do cerrado, sua economia é

baseada fundamentalmente na agropecuária, atualmente, pautada nos agronegócios

emancipou-se politicamente há 103 anos. (IBGE, 2010) Insere-se na microrregião do Vale do

Rio Paracatu1, localizada na mesorregião Noroeste2 do Estado, distante 330 quilômetros de

Brasília e 400 quilômetros de Belo Horizonte.

* Mestre em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (2010). Especialista em Pedagogia Empresarial pela Faculdade do Noroeste de Minas - FINOM (2004). Bacharel em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (1997) e em Teologia pelo Instituto de Teologia São José, de Mariana, MG (1999). Atualmente é Diretor Acadêmico da Faculdade FINOM. E-mail: [email protected] ** Doutora em Sociologia e Mestre em História pela Universidade de Brasília - UnB. Especialista em História pela Universidade Federal de Minas Gerais- UFMG. Professora de Metodologia Científica e de Sociologia na Faculdade FINOM. Membro Laboratório Transdisciplinar de Estudos da Performance (TRANSE) SOL/UnB. E-mail: [email protected] 1 A microrregião do Vale do Rio Paracatu é uma das microrregiões do estado brasileiro de Minas Gerais pertencente à mesorregião Noroeste de Minas. Sua população foi estimada em 2010 pelo IBGE em 210.480 habitantes e está dividida em dez municípios. Possui uma área total de 34.997,251 km². 2 A mesorregião do Noroeste de Minas é uma das doze mesorregiões do estado brasileiro de Minas Gerais. É formada pela união de dezenove municípios agrupados em duas microrregiões.

Talvez por sua posição geográfica e as longas distâncias dos grandes centros urbanos a

cidade guarda, até o início do século XXI, características do mundo rural no tocante aos seus

costumes e tradições. Nascida numa região de transição dos bandeirantes que, em suas

viagens interioranas, buscavam ouro nos estados de Goiás e de Mato Grosso. Durante muito

tempo o município serviu de hospedagem a estes transeuntes, antes que seguissem caminho

em direção às novas minas.

Fundado oficialmente em 1911, o município permaneceu relativamente isolado do

restante de Minas e do Brasil devido à sua localização geográfica e à falta de estradas, fato

que se manteve inalterado até a inauguração da rodovia BR 040, que foi construida no início

da década de 60, pelo então presidente Juscelino Kubitschek, momento em que o município

estabeleceu um contato maior com a capital mineira e o Distrito Federal, adquirindo, assim,

ares da modernidade. Município essencialmente católico, dos seus 45.260 habitantes, 39.207

se declararam da religião católica apostólica romana (IBGE, 2010). Fato que reforça uma das

hipóteses desse trabalho, a religiosidade é um fator de identidade pinheirense, e aqui

entendida como bem definiu Stuart Hall

A identidade torna-se uma “celebração móvel”: formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos apresentados ou interpretados nos sistemas culturais que nos rodeiam. É definida historicamente e , não biologicamente. O sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor do “eu” crescente. (HALL, 2006, p.13)

As identidades locais vão se forjando no viver, experimentar, fazer, sonhar, enfim com

tudo o que é partilhado, e a crença em Nossa Senhora Aparecida é esse fator de identidade

que reúne pessoas das mais diferentes faixa etárias, classes sociais, escolaridade, nos fazendo

concluir assim como Stuart Hall que “a identidade plenamente unificada, completa, segura e

coerente é uma fantasia (HALL, op.cit., p.13). Diante dessa observação, esse artigo pretende

responder ao seguinte questionamento: quem sãos os féis? Qual a sua faixa etária? A quais

classes sócias eles pertencem? Qual o significado da romaria em suas vidas? O que os

motivam aos sacrifícios como a caminhada, a doação de alimentos e outras manifestações da

fé em sua vida? Esse artigo também pretende investigar o início da romaria na cidade, quem

foram as pessoas que plantaram essa religiosidade e se ela é hoje um vetor indenitário para

João Pinheiro.

A abertura para o estudo de milagre, assim como outras manifestações da cultura

popular, se deu devido à ampliação das fontes históricas depois da famosa crise de

paradigmas da História e a afirmação da História Cultural, que passou a considerar não apenas

as fontes escritas, mas tudo o que revela sobre o vivido e experimentado pelo homem,

portanto o domínio da História utilizado nesse artigo foi o da História Cultural.

Nesse sentido, as fontes orais e icnografias foram privilegiadas nessa pesquisa, por

proporcionarem um contato mais enriquecedor como o vivido e experimentado pelos fiéis e

representados nos milagres. O uso da fotografia possibilitou uma maior interação com o

objeto. Nessa direção Maria Eliza Linhares Borges ressalta o objetivo do uso das imagens

visuais e fotográficas como fontes históricas:

[...] as imagens visuais, dentre elas a fotografia, são utilizadas como fontes de pesquisa histórica, é porque funcionam como mediadoras e não como reflexo de um dado universo sociocultural. Integram um sistema de significação que não pode ser reduzido ao nível das crenças formais e conscientes. (LINHARES, 2004, p.19)

Este artigo também se baseou na utilização de fontes orais. Foram entrevistados dez

moradores do município, de ambos os sexos e das mais diversas idades, pois cada milagre tem

um relato diferente, seu relato é extremamente pessoal e individual. Nas transcrições foram

feitas as correções gramaticais, ou seja, foi feito um aperfeiçoamento do texto, bem como a

supressão de falas, quando julgamos necessário, sem alterar o sentido das mesmas, mas

sabemos das incoerências de nosso texto, uma vez que o gravador não traduz os sentimentos,

emoções, como bem diz José Carlos Meihy:

Uma gravação não abriga lágrimas, pausas significativas, gestos, contexto do ambiente, é impossível pensar que a mera transcrição traduza tudo o que se passou na situação do encontro. Além do mais, há as entonações e as palavras de duplo sentido. Por esse conjunto de detalhes, assume-se que a entrevista deve ser corrigida e que o ideal é a manutenção do sentido intencional dado pelo narrador que articula seu raciocínio com as palavras. Assim, não são as palavras que interessam e sim o que elas contêm. (MEIHY, 1996, p.60).

Ao entrevistar os devotos de Nossa Senhora Aparecida, previamente foi preciso

esclarecer a eles o objetivo da pesquisa e a importância do registro de suas memórias. Além

disso, a abordagem foi realizada tendo como foco a experiência dos indivíduos pesquisados

bem como seus símbolos culturais. No entanto, a estratégia de pesquisa se baseou também nos

indícios, fragmentos e vestígios que fortaleceram as hipóteses defendidas. Através dos relatos,

do conhecimento prévio sobre o assunto e a análise de fontes, como fotos, foram associados

os diferentes dados obtidos, buscando assim esclarecer o significado da festa de Nossa

Senhora Aparecida sob a ótica de seus fiéis, uma vez que, os mesmos preservam dentro de si,

em suas memórias um grande acervo cultural, pois:

Sujeitos comuns e anônimos ao serem trazidos para a cena histórica, através de suas memórias, mostram que preservam outros poderes, rompem com vários silêncios do passado e do presente. No caso tratarei aqui de relatos de entrevistados que abrem para uma reflexão de que a pertinência a uma cultura e o direito à memória e a história incluem-se nas relações de sujeitos com a construção histórica de espaços rurais e urbanos que concebem a experiência como legado imemorial, transcendente, com excesso de significações. (MAGALHÃES, 2001, Apud, GONÇALVES, 2005, p. 4).

Segundo narrativas orais, a crença dos devotos de Nossa Senhora surgiu em

decorrência de um fato ocorrido em 1717, quando os pescadores João Alves, Felipe Pedroso e

Domingos Garcia, a pedido das autoridades, saíram para pescar. Devia trazer peixes para o

governador, o Conde de Assumar. Eles pescaram toda a noite sem nada conseguir. Chegando

ao porto de Itaguaçu, ao lançar a rede, João Alves puxou-a e nela veio o corpo de uma

imagem quebrada. “Foi um aviso do céu”. Daquela hora em diante pescaram muitos peixes.

Foi o começo da história de Nossa Senhora Aparecida.

Boing (2007) em seu livro relata que a imagem hoje símbolo da devoção dos católicos

brasileiros foi esculpida pelo monge Benedito, frei Agostinho de Piedade ou por seu

discípulo, frei Agostinho de Jesus, que vieram ao Brasil na metade do século XVIII. Feita de

barro paulista, ao ser cozida, deveria ter cor marrom claro, mas foram encontradas na

imagem, vestígios de tinta azul e vermelha, as cores oficiais da Nossa Senhora da Conceição.

Por causa do tempo que passou imersa no lodo do rio, e por que mais tarde ficou exposta a

fumaça de candeeiros e velas, a imagem adquiriu sua cor atual: castanho escuro.

Segundo frei Giribone, um dos pescadores o Felipe Pedroso ficou com a imagem em

sua casa onde recebia várias pessoas para rezar. No ano de 1735 o vigário de Guaratinguetá

construiu uma capela no alto do Morro dos Coqueiros. Como o número de fieis fosse cada vez

maior, teve início em 1834 a construção da Chamada “Basílica Velha”.3

A festa de Coroação da imagem de Nossa Senhora Aparecida ocorreu no dia 8 de

setembro de 1904, com a coroa de ouro e brilhantes doada pela Princesa Isabel. Segundo Pe.

Fernando Mancílio, a Coroação foi concedida pelo Cabido da Basílica de São Pedro, em

Roma, a pedido de Dom Joaquim Arcoverde de Albuquerque Cavalcante, Arcebispo do Rio

3 Comissão do Arcebispo Metropolitano de Aparecida, Pe. Fernando Mancílio, C. SS. R, e Clodoaldo Montoro, p. 15

de Janeiro na época. Foi uma grande festa religiosa, evento inaudito para aqueles tempos: uma

concentração de aproximadamente 15 mil pessoas reunidas na cidade de Aparecida. No ano

de 1929, o papa Pio XI proclamava a Santa como rainha do Brasil e sua padroeira oficial.

A opção pela utilização da metodologia da História Oral se justifica por observamos que

ela tem permitido a inclusão dos vários sujeitos sociais e suas experiências, além de valorizar

o sujeito e enriquecer a pesquisa. Ela tem sido fundamental no sentido de romper com os

estereótipos, ou seja, de mostrar que a história é sempre representação, ressaltando, portanto,

a distinção entre passado e história.

Atentamos ao uso dessa metodologia, uma vez que, trabalhar com a memória requer

cuidados e atenção, pois cada memória tem sua peculiaridade individual, de acordo com cada

experiência vivida, pois já se compreende que a memória não é linear, ela possuiu sua

dinamicidade, pois é a visão de alguém sobre determinado fato. É preciso lembrar ainda que o

ato de lembrar é moldado pelo meio social, nesse sentido, não há neutralidade.

2- A festa em perspectiva histórica

A religiosidade brasileira é bastante mítica e heterogênea, há uma tendência do povo brasileiro

em envolver-se com o sagrado e o profano. Portanto, é possível perceber a necessidade do homem

religioso em depositar a sua crença em algo como sinal de resposta a ação divina em sua vida.

Para os devotos de Nossa Senhora Aparecida no Brasil, ela é a padroeira do país, ou seja,

aquela que protege o Brasil de todos os males e que roga pelo povo perante Deus. Durante essa

festividade as pessoas se envolvem no mundo do Sagrado, com toda transparência que chegam a

esquecer de todas as divergências e contradições do mundo natural. Deste modo:

A festa é o espaço da novidade, do encantamento, da alucinação. Ela nega a carência, a precariedade, sem-negar a realidade; justamente ao contrário, a realidade é transfigurada e exacerbada por um realismo cômico que, mesmo reafirmando-a, dela-ri. [...] Festa é, portanto, definido, sacrifício, troca-dom, reciprocidade, ou seja, o ato mesmo de produção da vida. A festa “integra o homem na circulação geral dos seres”, faz parte dos atos sem finalidade, que não se reduzem ao jogo, que ocupam um lugar imenso no tempo da vida dos homens, que envelopa o que chamamos de “história” de uma trama sem a qual a história seria um jogo de marionetes... (PEREZ, 2002, pp.47/48)

Nas palavras da autora fica evidente a presença da religiosidade como ponto crucial para

representação e ressignificação da vida dos homens. A festa se torna assim em um momento de

produção histórica na qual o homem é o principal autor e personagem, lembrando que todas as pessoas

fazem história todo tempo e lugar.

Como todas as cidades do interior mineiro, mais pontualmente do Noroeste de Minas,

em João Pinheiro a sociedade se formou sob os auspícios da religião católica e, ainda hoje,

mantém os seus ritos e festas. Durante o ano são celebradas as festas em homenagem aos

santos devocionais, destacando-se, dentre elas, a festa em homenagem a Nossa Senhora

Aparecida realizada anualmente no dia da padroeira (12/10).

A Capela de Nossa Senhora Aparecida, mais conhecida por Capela da Coenge está

localizada no município de João Pinheiro (MG), nas imediações da BR 040, distanciando 5

km do centro da cidade, ficando esquecida por todo o ano, mas durante os dias que antecedem

ao da padroeira são realizadas novenas em preparação para a celebração da festa.

Figura 1: Placa de entrada no recinto da Igreja Fonte: Arquivo dos pesquisadores, 2013

Buscando uma explicação para a origem da celebração da festa, assim como da

construção da Igreja, indagamos os entrevistados sobre o surgimento da Capela:

Eu só sei que a capelinha surgiu na década de 50, tudo começou com uma

imagem que alguém levou e fez um oratório inicialmente, e depois virou

Capela, e a partir dai teve que aumentar porque veio muita gente”

(Entrevistado nº01)

“Eu me lembro muito pouco, eu ia lá rezar, sempre tinha novenas, e depois

fui crescendo, o povo foi indo cada vez mais, para pedir e para promessa

para Nossa Senhora Aparecida” (Entrevistado nº02)

“O nome Coenge tem a ver com o nome de uma empresa de asfalto que

tinha na época que foi construir a BR-040, ai tinha um moço que trabalhava

na outra e trouxe uma imagem de Nossa Senhora Aparecida, diz que cada

ele fazia assim, construía a capela e punha a imagem”. (Entrevistado nº03)

“O surgimento eu não me lembro bem, lembro de ir depois de certo tempo,

depois que ela já estava cheia e já tinha construída outra, sempre ia dia 12

de outubro a pé.” (Entrevistado nº04)

“Sinceramente tenho pouca lembrança, porque faz muito tempo e a minha

cabeça não anda boa, o que lembro era que sempre tinha reza e agora tá

tendo festa. (Entrevistado nº05)

O marco das memórias dos entrevistados sinaliza para o início das celebrações ainda

na década de 50 do século XX:

“Em 1957 quando Juscelino Kubitscheck era presidente da República, em

sua campanha havia prometido se eleito construir uma rodovia com asfalto

ligando Belo Horizonte a Goiás, porque ainda não existia Brasília-DF.

Passado pouco tempo chegou em nossa cidade a COENGE, uma companhia

de asfalto para construir a BR-040, por esse motivo a igrejinha recebeu esse

nome.” (Entrevistado nº08)

No ano de 2013, uma rede de televisão local noticiou que aproximadamente 8.000

romeiros peregrinaram até Igrejinha. Eram jovens, crianças, adultos e idosos que como os

primeiros raios de sol começaram a caminhada, oferecendo um rico espetáculo da fé e

tradição pinheirense.

Porém esse espetáculo carece de estudos dos pesquisadores locais, apoio do comércio,

cuidado do poder público municipal e da Igreja Católica, para que essa tradição possa

continuar existindo com segurança para todos os envolvidos e para que possa prosseguir

afirmando nossa identidade de moradores de João Pinheiro.

A visitação à Igrejinha já tem mais de 5 décadas e vem crescendo visivelmente a cada

ano. No ano de 2013 fomos surpreendidos com a beleza e a proporção da romaria, com a

infinidade de anjos pagando promessa. Eram desde bebês de colo até um jovem de nome

Marcus, 17 anos de idade, que com os pés no asfalto quente e equilibrando as asas se dirigia

para capela com a finalidade de agradecer uma graça alcançada.

Figura 2: Marcus vestido de anjo. Fonte: Arquivo dos pesquisadores, 2013

Outras formas de manifestar a fé e gratidão a Nossa Senhora Aparecida por um milagre recebido podem ser evidenciados nas fotografias abaixo:

Figura 3: Romeira pagando promessa Fonte: Arquivo dos Pesquisadores, 2013

A Fotografia acima retrata uma romeira de 55 anos de idade, dona de casa que relata

ter sofrido um Acidente Cárdico Vascular e ter perdido todos os movimentos das pernas,

ficando presa à cama por muitos dias, recorreu a Nossa Senhora Aparecida e voltou a

caminhar, por isso, no dia da festa, se levantou as 4:00 para fazer o percurso até a Igrejinha, a

pé carregando a Santa.

A busca pela cura através da prática votiva, como se pode observar na narrativa dessa

entrevistada e dos outros se dá em condições, em que os fiéis veem nos santos a intercessão

para que evite o pior: a deformação de uma parte do corpo, que precisa ser restaurado; a falta

do alimento que precisa ser suprido, a cura de uma enfermidade, do corpo, a fim de que se

evite a morte; a intercessão do santo, para o bom andamento da cirurgia, enfim uma infinidade

de causas, mas que aos olhos do fiéis, são momentos que só o poder divino pode solucionar e

não está ao acesso do homem.

Essa infinidade de situações, respaldadas no imaginário, ganham forma através das

promessas de andar descalços, de olhos vendados, carregando objetos sagrados, “a ideia de

preservação da vida remete de imediato à representação do corpo humano” (CASTRO, 1994

p.19), uma vez que o imaginário utiliza-se do símbolo para sua expressão e para sua própria

existência, conforme Castoriadis:

(...) o imaginário deve utilizar o símbolo não somente para exprimir-se o que é óbvio, mas para “existir” para passar do virtual a qualquer coisa a mais. O delírio mais elaborado bem com a fantasia mais secreta e mais vaga são feitos de imagens, mas estas imagens lá estão representando outra coisa, possuem , portanto, uma função simbólica. Mas também, inversamente, o simbolismo pressupõe a capacidade de ver em uma coisa o que ela não é, de vê-la diferente do que é. (CASTORIADIS, 1982, p.154)

Como entender essas ações humanas, integradas a um mundo sobrenatural imaginado,

a religiosidade, Clifford Geertz, entende “a religião como sistema de símbolos” (GEERTZ,

op.cit., p.104), mas não só a religião, toda vida funciona como sistema de símbolos, estes

projetam, criam verdades, fantasias, dá sentido as coisas. O símbolo para ele é inerente a

sociedade, tem significado e significação, e pode ser usado para designar várias coisas ao

mesmo tempo.

Para alguns, ele é usado para qualquer coisa que signifique uma outra coisa para alguém (...). Para outros é usado apenas em termos de sinais explicitamente convencionais de um outro tipo (...). Para outros, limita-se a algo que expressa de forma oblíqua e figurativa, aquilo que não pode ser afirmado de modo direto e lateral (...). Ele é usado para qualquer objeto, ato, acontecimento, qualidade ou relação que serve como vínculo a uma concepção - a concepção é o significado do símbolo. ( GEERTZ, op.cit; p. 105)

Tudo é símbolo em potencial, as instituições, a sociedades, sobrevivem a partir dele.

Ele designa algo de acordo com cada acepção, cada interpretação, cada cultura. Os Sacrifícios

do pagar a promessa podem ter outro significado para alguém, pode ser a forma figurativa de

representar o que aconteceu na vida dos fiéis e pode ser entendido como qualquer outro

objeto.

A romeira abaixo, uma senhora de 42 anos de idade, também caminhava pela BR-040

em direção à Igrejinha carregando uma imagem de Nossa Senhora Aparecida, quando

indagada, fez questão de ressaltar o motivo do sacrifício:

“Meu filho 20 anos de idade se envolveu com as drogas e foi preso,

ficou muito tempo lá, então eu peguei com Nossa Senhora, ele saiu e

hoje está trabalhando”. (Entrevistado Nº 07)

Figura 4: Romeira, 42 anos de Idade. Fonte: Arquivo dos pesquisadores, 2013

As múltiplas representações dos milagres vão aparecendo ao longo das entrevistas:

“Eu estava com uma doença e precisava ir a Paracatu, procurei várias

pessoas para ir comigo, mas não encontrei, pedi a Nossa Senhora que ela

fosse comigo. Ela foi, eu estava sentada no sofá esperando minha vez

quando, quando apareceu um casal e veio em minha frente. A senhora

estava grávida e me convidou para ir a almoçar com ela. Aceitei e fui, ela

me tratou muito bem[...] depois me declarou que era legionária de Maria.”

(Entrevistada Nº 06)

Ainda para Castoriadis:

Tudo o que nos apresenta, no mundo social-histórico, está indissociavelmente entrelaçado com o simbólico. Não que se esgote nele. Os atos reais, individuais ou coletivos - o trabalho, o consumo, a guerra, o amor, a natalidade – os inumeráveis produtos materiais sem os quais nenhuma sociedade poderia viver um só momento, não são (nem sempre, não diretamente símbolos). Mas uns e outros são impossíveis fora de uma rede simbólica (CASTORIADIS, 1982, p.142).

O Milagre dessa forma pode ser entendido como símbolo de que se utiliza o

imaginário, pois é a maneira de se mostrar que o milagre é real, concreto, o que é abstrato não

se vê, mas se sente. Ao propor o voto, ele representa a situação vivida, abstrata, é preciso dar-

lhe forma, para que aos olhos se torne real. Ascender velas, carregar imagens, vendar os

olhos, andar descalços pelo asfalto quente são formas de representar gratidão à Nossa

Senhora Aparecia.

Figura 5: fiéis ascendendo velas Fonte: Arquivo dos pesquisadores, 2013

Figura 6: Fiéis pagando promessa Fonte: Arquivo dos pesquisadores, 2013

3- Considerações Finais

Percebe-se, ao ouvir os relatos de alguns devotos que as representações e as tradições

da festa com o decorrer do tempo sofreram algumas alterações.

Os devotos mais novos incorporaram novidades à festa e algumas foram sendo esquecidas

pelos devotos. No entanto a força da religiosidade continua presente, fato que leva a refletir a

importância da memória na formação da identidade destes devotos.

A Festa de Nossa Senhora Aparecida é sem sombra de dúvida um grande vetor

identitário para o município de João Pinheiro, constituindo em um momento de pausa nos

afazeres e consequentemente de grande sociabilidade entre os moradores para a organização e

a execução dos festejos.

Os festeiros e fiéis são grandes guardiões da memória e da história local e são também

os condutores desse saberes para as gerações mais novas, por meio da oralidade eles

expressam religiosidade e assim vai repassando de geração em geração e perpetuando a

identidade do povo de João Pinheiro (MG).

Referências bibliográficas

BOING, Mafalda Pereira. Nossa Senhora Aparecida – A padroeira do Brasil. São Paulo: Edições Loiola, 2007.

CASTORIADIS, Corneluis. A instituição imaginária da sociedade. Trad. Guy Peynaud. Rio de janeiro: Paz e terra, 1982.

GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Livros técnicos e Cientificas, 1989. GONÇALES, Maria Célia da Silva. Territórios de símbolos: As irmandades negras na Paracatu Setecentista. 2003. 162f. (Mestrado em História) - Instituto de Ciências Humanas, Universidade de Brasília- UnB, Brasília, 2003. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva, Guarareira Lopes Louro. 11 ed. Rio de Janeiro: DP & A Editora, 2006. IBGE. Censo Demográfico 2010 - Resultados do universo. Disponível em: http://www.ibge.gov.br. Acesso em: 20 março 2014. MEIHY, José Carlos Sabe Bom. Manual de História. 3. ed. São Paulo: Loyola, 1996. PEREZ, Léo Freitas. Antropologia das efervescências coletivas. In: PASSOS, Mauro (ORG) A festa na vida: significado e imagem. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002. PESAVENTO, Sandra. História & história cultural. Belo Horizonte: Autêntica, 2004.