murmurios

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    Texto Pedro Elias, 2010

    Paginao electrnica: Pedro Elias

    Website do Romance: www.romance-murmurios.org

    Website do Autor: www.pedroelias.org

    Esta publicao, na presente forma, pode ser reproduzida e

    distribuida com total liberdade, desde que no seja alterado

    o seu contudo nem cobrado nenhuma taxa.

    ISBN: 9789728680350

    Depsito Legal n 241565/06

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    CAPTULO I .........................................................

    C II (250D.C) ..........................................

    C III (250D.C) ........................................

    C IV(250D.C) ........................................ 9

    C V(250D.C) ..........................................

    CAPTULO VI .......................................................

    C VII (250D.C) .......................................

    C VIII(250D.C)...................................... 6

    C IX(251 D.C)......................................... 6C X(251 D.C)..........................................

    CAPTULO XI .......................................................

    C XII (254D.C)....................................... 9

    C XIII(254D.C)

    ...................................... 9

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    C XIV(272D.C)...................................... 9

    C XV(272D.C)

    ...................................... CAPTULO XVI .......................................................

    C XVII (282D.C)..................................... 9

    C XVIII (282D.C).................................... 6

    C XIX(304D.C)....................................... 69

    C XX(304D.C) ........................................

    CAPTULO XXI .....................................................

    C XXII (313 D.C) ...................................... 99

    C XXIII (325D.C).....................................

    C XXIV(325D.C).....................................

    prximo romance:

    J M ...........................................

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    C I

    O gastas e velhas. Eu, de olhar perdido no horizonte, que a nvoa escondiana palidez de uma paisagem despida de gente, observava a plancie noseu deslizar rumo a um passado que eu tentava esquecer. Deixara a ci-

    dade logo aps ter concludo o curso de Belas-Artes. Era ali, no respirardos pssaros e do vento agreste, no sentir profundo da natureza, quepoderia mergulhar no silncio, despertando para a minha verdadeiraessncia.

    Eram onze da manh quando o comboio parou numa pequenaestao no sop de um monte. O dia tinha clareado sobre a nvoa que sedissipara, revelando o sol que me confortou num afago caloroso. Numpequeno carro de empurrar coloquei a bagagem, caminhando pelo ape-

    adeiro onde apenas o vento marcava presena. Era um lugar vazio, en-velhecido pelo tempo e pelo desgosto de no haver gente que lhe dessesignificado; um daqueles lugares donde as pessoas partem em vez dechegarem. E o comboio reiniciou a sua marcha, preso ao destino daslinhas. Com ele foi a civilizao; um passado sem histria, nem lugar.

    Fora da estao, num silncio marcado pelo vento que desciadesde a montanha, aguardei que o senhor Joaquim, a quem tinha com-prado a casa da serra, chegasse para me transportar at aldeia. Os ca-minhos eram feitos de terra, afugentando todos aqueles que desejasseml chegar de camioneta ou carro. Era mais um obstculo civilizao.

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    P E - ..

    E ele l chegou hora marcada. Vinha vestido com uma samarra quelhe envolvia o rosto, parando a carroa junto de mim num sorriso que

    no era de plstico, daqueles que se compram em supermercados paraservir convenincias e interesses, mas genuno na sinceridade de umcorao bom que se podia reconhecer na profundidade e na sabedoriado seu olhar.

    Bom dia, menina Vera disse ele descendo da carroa.

    Como est, senhor Joaquim.

    Fez boa viagem?

    Sim. Foi a melhor viagem que alguma vez fiz, sabe?... virpara um lugar como este foi tudo aquilo com que sempre sonhei.

    pena que os jovens daqui no pensem como a menina.Hoje s c esto os velhos.

    Deixe l! Um dia regressaro.

    Olhe que no sei! disse ele enquanto carregava a carroa. Muitos nem c vm pelas frias.

    E logo partimos serra acima ao ritmo lento de um burro sempressa, contornando os caminhos que se pronunciavam em arribas es-carpadas. L em baixo, por entre a falsia, um pequeno ribeiro saltavaem cascatas vrias, torneando as rochas em serpenteados cor de prataque lhe davam expresso. O cheiro dos arbustos e da terra impregna-vam-me de uma paz como nunca antes tinha sentido, tornando presen-te a saudade cultivada pelo desejo de um dia pertencer a um lugar comoaquele. E agora estava ali para sempre. Nada me poderia desmotivarde um sonho que soube preservar, escondendo-o do mundo para queeste no me o roubasse. Podia finalmente solt-lo como pomba branca,deixando que o tempo lhe desse razes.

    No fim daquele trilho de terra vermelha, bem no topo da serra,ficava a aldeia como promontrio verdadeira civilizao. Ali o tem-po era escravo e no senhor, submetendo-se vontade de quem delenecessitasse. Ao fundo existia um pequeno adro com um pelourinhoem runas onde os mais idosos, os nicos habitantes, confraternizavam.

    Os caminhos eram feitos de pedras que se espalhavam pelo cho emmosaicos de uma abstraco natural, de onde a erva selvagem sobressaacurvando-se com o vento que ganhava vida em cada esquina.

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    M T A - .-.

    E logo parmos em frente da casa do senhor Joaquim. A donaAna, ouvindo o ladrar do co que correu para ns satisfeito com a che-

    gada do dono, saiu ao nosso encontro, abraando-me assim que descida carroa.

    Que saudades, menina. Pensei que nunca mais viesse.

    Como est, dona Ana?

    C vamos andando, menina.

    E o seu reumtico?

    Oh, filha! Cada vez pior... Isto j no tem melhoras...

    No diga isso. Se acreditar o suficiente vai ver que melhorar sorri-lhe.

    F o que no me falta, menina... mas venha pra dentro...vai ficar uns dias connosco, no vai? perguntou ela.

    Agradeo, dona Ana, mas no posso.

    Vai pelo menos almoar connosco! ela ergueu os braos.

    Est bem disse eu, sorrindo. Aceito o almoo.

    Assim que entrmos, fui tocada pelo cheiro da sopa que fume-gava numa chamin rente ao cho, aguando-me o apetite. A decoraoda casa era simples e vazia de adornos suprfluos, realando as paredesde granito que tudo escureciam na timidez de duas pequenas janelas.

    A luz escassa que entrava na cozinha era reflectida pelos pratos pintadoscom motivos serranos que se equilibravam no parapeito da chamin epelos outros, mais pequenos, que se estendiam sobre a mesa colocada

    no centro da cozinha e em volta da qual nos sentmos. O cheiro da sopacontinuava presente, acolhendo-me no conforto de quem regressava acasa. E eu estava em casa.

    No tem medo de ficar sozinha na serra? perguntou adona Ana.

    No. Sempre vivi sozinha na cidade... Aqui no tenho nadaa recear, dona Ana.

    Acho que fez bem em deixar a cidade replicou o senhorJoaquim enquanto cortava o po. Tive l uma vez e jurei a mimmesmo pranunca mais.

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    Mas aqui a vida tambm deve ser difcil, no?

    Em tempos sim, menina. Mas hoje h pouco para fazer...

    vivemos da penso e das memrias. E tem saudades desses tempos?

    Ah, sim! Muitas! , o seu sorriso espelhava a alegria depoder partilhar aquelas memrias com algum que no as tinha vivi-do e assim ressuscit-las da sonolncia forada dos anos. Era umavida dura. Chegvamos a fazer longos quilmetros com o gado, s vezesdebaixo de tempestades de neve, para irmos vend-lo s feiras. Haviainvernos em que o frio era tal que at os rabos das vacas congelavam...o que ns no passmos nessa serra! Mas a vida era alegre, sabe? As ruasestavam sempre cheias de crianas, a taberna empilhada de gente... ago-ra apenas restam os fantasmas.

    Ele retirou do bolso um leno por desdobrar, enxugando osolhos.

    Espero que goste de sopa, menina disse a dona Ana, co-locando-a numa terrina.

    Gosto muito de sopa. Sempre foi um dos meus pratos favo-ritos.

    Ento vai provar uma das melhores sopas da regio.

    Pelo cheiro estou certa que sim. Sorri-lhe.

    Ela colocou a terrina sobre a mesa, servindo-nos. Sentou-se de-pois ao lado do marido.

    E ento, o que me diz? perguntou ela de olhos nos meus,depois de a ter provado.

    Muito boa. Vai ter que me ensinar a faz-la.

    Terei muito gosto nisso, menina... que no tenho a quemdeixar estas receitas...

    Continuei a comer aquela sopa deliciosa, repetindo uma segun-da vez.

    Temos que falar de negcios, senhor Joaquim disseeu a meio da refeio. Queria contratar os seus servios para queme levasse todas as semanas lenha, gasolina e as mercearias. Pode ser?

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    Claro que sim, menina.

    Agradeo-lhe sorri-lhe. Outra coisa que lhe que-

    ria pedir se no se importaria de ir buscar estao algumas telasque encomendei e que chegaro sempre no primeiro dia de cada ms.

    Claro, menina. No se preocupe.

    Pagarei bem, vai ver.

    Oh, menina! Mesmo que no pagasse seria um prazer.

    Aps o almoo, o senhor Joaquim aparelhou o burro para trans-portar as malas e as telas serra acima; um caminho de cabras que ser-

    penteava at um pequeno planalto onde ficava a casa que em temposfora sua. Depois de me despedir da dona Ana, prometendo regressar,partimos a p pelo carreiro, que nos levou at casa da serra que ficava acerca de um quilmetro da aldeia. Pelo caminho no pude deixar de tes-temunhar a beleza nica daquele lugar. Os arbustos rasteiros cresciam

    junto das bermas, ladeando o trilho de terra vermelha em toda a suaextenso. Do lado direito, algumas rvores volumosas elevavam-se na

    encosta, sombreando o caminho, enquanto do lado esquerdo as escar-pas ganhavam vida com os sons uivantes do vento. A aldeia tornava-sepequena diante dos nossos olhos soberbos pela altitude, isolada comoilha no meio de um mar feito de terra.

    Estamos a chegar, menina.

    No tem saudades desta casa? perguntei, olhando em volta.

    No, menina. Essa era a casa dos meus pais. Vivi aqui toda

    a minha juventude, mas quando casei fui morar na aldeia. Naquelestempos era triste viver na serra. Para um jovem ento! Foi uma alegriaquando mudei de casa.

    E as obras, como ficaram?

    Correu tudo bem, menina. Tive aqui vrias vezes a acom-panhar os pedreiros. Ficou muito bonita a casa. Tomara eu naquelestempos ter a casa assim!

    Ajudei-o a descarregar a bagagem, pagando pelo servio. Oh, menina! No havia necessidade disso.

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    No quero que se sinta constrangido em aceitar o dinheiro,senhor Joaquim. Voc prestou-me um servio e eu estou a pagar esse

    servio. Est muito certo, menina... mas como se tivesse a aceitardinheiro de um familiar, compreende?

    Mesmo assim tem todo o direito de receb-lo.

    Ele aceitou o dinheiro, subindo para cima do burro.

    Virei todas as semanas como ficou acordado.

    C o esperarei, senhor Joaquim.

    Se, entretanto, precisar de alguma coisa, j sabe! s apare-cer l por casa.

    Obrigado.

    E partiu deixando-me sozinha. Caminhei ento at varandaque se debruava sobre a encosta, contemplando o lago l em baixo. Ali,no espelho cristalino daquelas guas suaves, encontrava-se a porta deentrada para o reencontro com a minha essncia. E isso preenchia-me

    de uma paz difcil de expressar em pensamentos. Estava finalmente em casa.

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    C II(250 d.C.)

    A tudo cobria, lanando pelas ruas empedradas da cidade, tal como a guade um pequeno riacho, uma longa corrente que contornava as esquinasna fora alimentada pela tempestade. E no se via vivalma. A ausncia

    da populao era como um murmrio pressagiado na incerteza quenos atormentava, uma voz dorida que nos prometia tempos difceis.Vivamos na terceira cidade do imprio; a primeira da cristandade quecrescia vigorosa na sua f sincera e destemida. Fora ali, em Antioquia,que Paulo convertera os primeiros pagos, fazendo da cidade o beroda nova igreja. Mas o imprio, aps as comemoraes do milionsimoaniversrio de Roma, rejuvenescia na sua vocao pag e nada toleran-te, acentuando o mal-estar que se pressentia no ar como abutre sobre

    a plancie. Dcio, general feito imperador, iniciara novas perseguiesaos cristos, materializadas numa lei em que obrigava todos a prestarsacrifcio aos deuses do imprio.

    Eu caminhava de capuz na cabea e postura vergada, tentandopassar despercebida aos soldados que patrulhavam as ruas na procuradaqueles que no possussem o libellus1. Ao longe, para l da espessaneblina que parecia proteger-me, o som dos cascos dos cavalos romanosfazia-se ouvir num eco molhado. Como crist, convicta das certezas

    de uma religio que tinha como nica, no poderia nunca satisfazer os

    1 Certificado comprovativo de que se obedecera s ordens do imperador

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    desejos do imperador, j que prestar tal sacrifcio seria negar a minha f;a salvao em Cristo. Preferia a priso, a tortura, a prpria morte, a ter

    que negar aquele que se sacrificara por todos ns.Foi ento que tive a viso de um ser. Um ser esbelto, muito fino,de uma luminosidade translcida e longos cabelos brancos. Da sua auraluminosa irradiava uma profunda paz. Algo que nunca antes tinha sen-tido. E o ser falou na minha mente, dizendo: Ests preparada para serme? Ao que respondi mentalmente: Como posso ser me se renuncieiao casamento por amor a Cristo? E o ser respondeu: por esse mesmoamor que eu irei trazer-te uma filha. E logo desapareceu, deixando-me

    confusa.Nesse mesmo instante, como resposta s palavras daquele ser,

    ouvi o choro de uma criana, seguindo o seu rasto. Seria mesmo pos-svel!? No dobrar de uma esquina encontrei-a sentada no alpendre deuma casa. Ela chorava abraada aos joelhos, de olhar fechado e distante.Estava coberta no que restava de um vestido feito de retalhos encharca-dos, mergulhada na dor das suas lgrimas que me fizeram retroceder notempo.

    Tinha contado a meu pai, judeu devoto, que me converteraao cristianismo, sendo expulsa de casa. Com doze anos de idade, partipelas ruas da cidade tendo em Cristo a nica fonte de sustento. Depoisde muito caminhar, sentei-me no alpendre de uma casa como aquela.

    A chuva caa com a mesma intensidade de agora, chorando por quemno conseguia chorar num n que me apertava garganta. E foi um casalcristo que, ao passar por mim e vendo a dor que delineava todo o meu

    rosto em lgrimas que no fui capaz de libertar, me recolheu, adoptan-do-me como filha.

    Estava agora diante de uma criana que revelava, nos contornossofridos da sua expresso ausente, a imagem desse passado que se repetiauma vez mais. Ela fixou-me com os seus olhos vivos e bonitos, sorrindono cintilar das lgrimas que escorriam pela face rosada. No seu vestidode retalhos estava bordado um pequeno peixe, compreendendo eu quetambm ela era crist.

    Onde esto os teus pais? perguntei, agachando-me junto de si.

    Os homens... levaram respondeu ela, soluando.

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    Que homens, pequenina?

    Ela limpou as lgrimas.

    Os homens... maus. Os soldados?

    Sim.

    Como te chamas?

    Maria respondeu ela de expresso mais tranquila.

    Apertei-a nos braos, levantando-me com ela.

    Anda, pequenina. Precisas de comer e de dormir.Depois de atravessar ruas e ruelas, todas elas inundadas pelagua da tempestade, cheguei a casa com a criana nos meus braos,entrando completamente encharcada.

    Oh, filha! Quase que no chegavas disse-me minha me,segurando a capa. E esta criana, quem ?

    Encontrei-a na rua. Os pais foram levados pelos soldados.

    Estava sozinha!? perguntou ela de sobrancelhas vergadas. Sim.

    Coitada concluiu, passando a mo pelos seus cabelos mo-lhados.

    Preciso que a me me arranje alguma roupa lavada e comida.Deve estar cheia de fome.

    Claro que sim! Vou j tratar disso. Uma das nossas servas

    tem uma filha com a mesma idade. Ns estamos no meu quarto.

    Subi as escadas num rasto de gua que foi pingando pelo cho,indo at ao quarto. Retirei de seguida o vestido feito de retalhos que elausava, entrando na sala dos banhos. O vapor subia pelas paredes, saindopor uma chamin que se elevava no telhado, enquanto a gua quen-te brotava por um estreito orifcio. Ela, intimidada com a sua nudez,permanecia com o olhar fixo nos mosaicos do cho. Era-lhe tudo to

    estranho: a decorao, a casa, as roupas, a minha prpria presena. Quepoderia eu fazer para tranquilizar a sua mente assustada, para compen-sar a falta dos pais?

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    Depois de peg-la nos braos, coloquei-a no tanque. E sem queela esboasse a mnima resistncia, dei-lhe banho. Enquanto lavava o

    seu corpo frgil e sofrido, senti crescer em mim o lado materno quedesconhecia, mas que esteve sempre presente no desejo de o concretizar,vendo na doce Maria a filha apenas sonhada. Era uma bno de Deuspara com algum que tinha renunciado ao casamento e um presenteque aquele ser misterioso me tinha ofertado.

    Depois do banho, embrulhei-a numa toalha bordada de bran-co. Uma das servas entrou com a roupa, colocando-a sobre a cama.Iria ficar linda! Quando a vesti, olhei-a de expresso comovida. Tinha

    ganho uma filha. Prometo nunca te abandonar! disse eu de olhos humede-

    cidos, abraando-a.

    E logo descemos at sala. A mesa estava repleta de comida, oque despertou a sua ateno. Apesar da fome, no entanto, permaneceusentada com os olhos fixos nas mos que se entrelaavam sobre o colo.

    Ento, querida, no tens fome? perguntou minha me.

    Ela assentiu, permanecendo de olhar cado. V l, no estejas enver-gonhada.

    Passei a mo pelos seus cabelos ainda molhados.

    Podes comer tudo o que quiseres. Esta agora a tua casa.

    Coloquei alguma comida no prato, incitando-a. Ainda de ex-presso envergonhada, l comeou a comer. Como era reconfortantever o seu rosto sem as marcas da tristeza que tomara conta de si.

    Foi ento que ouvimos a porta de entrada ser aberta. Deve ser o teu pai.

    Vou receb-lo disse eu, levantando-me.

    Caminhei at porta onde o encontrei.

    Boa noite, meu pai.

    Sara! ele cumprimentou-me com o sculo santo.2 Como correram hoje os estudos?

    2Beijo na boca trocado entre os primeiros cristos como forma de cumprimento

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    Bem, meu pai. Sabe que vou ser baptizada daqui a quatro dias?

    Essa uma notcia que me alegra profundamente disse

    ele entrando comigo. H muito tempo que esperava por esse dia.J na sala, ele observou a Maria que comia timidamente, fixan-

    do-me de expresso interrogadora.

    Quem esta criana? perguntou enquanto se sentava.

    Encontrei-a na rua. Os soldados levaram os pais e ela ficousozinha. Resolvi acolh-la.

    Fizeste bem, filha. Os soldados no esto a dar trguas aos

    nossos irmos. Torna-se cada vez mais difcil andarmos pelas ruas semque sejamos espancados e chincados pelos pagos. Que Deus nos ajudea suportar tanta injustia. Maria parara de comer, intimidada com apresena de meu pai. No tenhas medo de mim, pequenina.

    Estou a pensar em adopt-la. O que acha disso?

    Acho bem, filha. Nunca mais ela ir ver os pais... aqui sem-pre ter uma casa e algum que cuide dela.

    Ficmos o resto da refeio em silncio, passando para a salado lado assim que terminmos. Ali, sentados sobre almofadas no cho,ouvimos meu pai recitar passagens das cartas de Paulo, dos Evangelhosde Felipe e Tom; palavras que me tocavam como na primeira vez emque as ouvi, alimentando-me na f que fui construindo com a idade.Quando terminou, subi com Maria at ao quarto, deitando-a. E alifiquei a olhar para ela.

    Iremos ficar juntas para sempre disse eu, sussurrando.

    Nada te ir faltar, prometo!Na manh seguinte acordmos as duas sincronizadas com o Sol

    que despertava. Assim que ela abriu os olhos e fixou os meus, sorriu-mede uma forma que me tranquilizou profundamente. Como era bom sa-ber que tambm ela me tinha adoptado. J na sala, sentmo-nos mesaonde se encontrava a minha me.

    Bom dia.

    Ol, Sara disse ela olhando depois para Maria. E tu,pequenina? J ests menos envergonhada?

    Ela ficou em silncio de olhar cado e expresso intimidada.

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    Tem que lhe dar mais algum tempo, me disse eu olhan-do para ela enquanto afagava os seus cabelos. Ainda lhe tudo muito

    estranho.Preparei o prato com alguns frutos que lhe entreguei e que elacomeu de cabea baixa e olhar recolhido.

    J chegaram os nossos irmos? perguntei, deixando Mariacomer em paz.

    Sim, filha. Esto tua espera.

    A me tome conta dela, est bem?

    Claro que sim. Eu volto j, querida. Come tudo aquilo que quiseres ela

    assentiu sem tirar os olhos do prato.

    Desloquei-me at sala onde todos se encontravam sobre almo-fadas de seda, ouvindo as palavras finais da orao que meu pai entoava.

    ... Livra-nos, senhor, do mal, aperfeioa-nos no Teu amor,santifica-nos e congrega-nos no reino que preparaste para ns, amm.

    Fizemos, todos, o sinal da cruz, repetindo o amm final. Comonos ensinou o nosso irmo Paulo, dizendo: Quando vos reunis, tenhacada um de vs um cntico, um ensinamento, uma revelao, um dis-curso em lnguas, uma interpretao. Seguindo este princpio, gostariade partilhar convosco aquilo que penso a respeito dos ltimos aconte-cimentos. Sei que se encontram assustados. A imposio do imperador desajustada com a nossa realidade, no entanto, gostaria de vos dizer

    que no considero errado prestar sacrifcio aos deuses pagos. Todos nssabemos que so deuses de pedra. Porqu arriscarmos a priso por causade um ritual que nada significa para ns...

    Estava indignada com a posio de meu pai. Como podia ele,que me ensinara tudo sobre Cristo, dizer tais coisas!

    No concordo, meu pai disse eu levantando-me bruscamente.

    Sara! Gostarias de acrescentar algo?

    Sim, meu pai. Gostaria de dizer que no concordo com essaposio, pois se Cristo se sacrificou por todos ns, tambm ns temos aobrigao de nos sacrificarmos por ele fiz uma breve pausa, encaran-

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    do nossos irmos. Ontem, quando vinha para casa, encontrei umacriana que chorava perdida de seus pais. Estes tinham sido levados pe-

    los soldados, vincando a sua f em Cristo, pois teria sido muito cmodopara eles prestar sacrifcio a esses deuses de pedra e assim continuaremem liberdade. Mas eles preferiram a priso, apesar de tudo. Lembrem-seda atitude do nosso bispo Incio. O quanto ele ficou alegre por lhe tersido dada a oportunidade de provar o seu amor por Cristo.

    Desloquei-me a uma das prateleira do armrio principal ondese encontravam os manuscritos, retirando aquele que relatava a vida dobispo de Antioquia.

    Ouam, irmos. Que estas palavras vos inspirem: Venha ofogo, venha a cruz; venham os ataques das feras, os golpes e as calandras;toram-me os ossos, mutilem-me os membros, esmaguem-me o corpointeiro; lancem sobre mim os tormentos cruis do demnio desdeque eu possa alcanar Jesus Cristo.

    No sejais to radical, filha. Esses so os nossos mrtires;pessoas santas. Ns... ns somos apenas pobres pecadores.

    Que no vos acomodeis a isso, meu pai. Tenham comoexemplo os pais dessa criana que tambm so pecadores, mas que mes-mo assim no negaram a sua f. Foi nosso senhor Jesus Cristo que disseque todo aquele que O negar diante dos homens ser negado diante deseu Pai.

    Nesse mesmo instante, o som de algum a bater porta invadiua casa num arrepio gelado. Como ningum abriu a porta, acabarampor arromb-la. Os soldados irromperam pela casa num passo apressa-do, tomando para si as sadas. Corri de imediato para junto da Maria,erguendo-a nos braos. Ela afundou a cabea no meu peito, evitandoolhar para os soldados que tinham levado os seus pais e que, agora, umavez mais, pareciam querer priv-la de uma nova famlia.

    O comandante desenrolou o dito proclamado por Dcio, len-do-o em voz alta:

    Todos os cidados so obrigados pela letra deste dito a prestarsacrifcio aos deuses do imprio. Quem se recusar ser preso.

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    Ficmos em priso domiciliria durante horas, enquanto os

    restantes soldados partiram na procura de outros cristos. Os nossosirmos estavam assustados e inquietos. Talvez a voz mais profunda dassuas conscincias os atormentasse pela deciso que tinham tomado, jque negar aquele que por ns se tinha sacrificado era negar a nossa pr-pria existncia. Como podiam os meus pais, que tudo me ensinaramsobre Cristo, esquecer aquele que nos dava vida, ternura e amor? Comopodiam neg-Lo diante dessas divindades pags que no passavam deesttuas de pedra, smbolos de uma civilizao alienada... iria ser difcil

    perdoar-lhes, embora os amasse como a ningum!Horas depois, sobre as ordens do chefe daquele batalho, fomos

    levados at ao quintal, pegando cada um de ns no animal que estava mo. Do pombal retirei uma pomba branca, segurando-a junto aopeito. Fomos depois obrigados a caminhar at ao templo onde se reali-zavam os sacrifcios. Nas ruas, a populao pag perseguia os cristos.Pude testemunhar a cegueira de um povo manipulado por uma natu-reza feita de iluses, pelo paganismo de doutrinas esculpidas no vazioe na luxria da pedra lapidada. Pude ouvir as gargalhadas entoadas aosom da embriaguez mais profunda, os gritos de raiva atormentados poruma cultura perdida de si mesma. Maria ia no meu colo, chorando.

    As suas lgrimas feriam-me bem fundo, pois estava prestes a quebrara promessa que lhe tinha feito. Mas no podia negar Cristo. Era neleque reconhecia a minha prpria existncia, trilhando um caminho quea todos estava predestinado. Negar a minha f era arruinar o futuro,

    pois tinha a responsabilidade de ajudar na edificao da nova igreja,no apenas pela minha salvao, mas pela salvao de todos os Homens.

    Diante do templo, milhares de cristos aguardavam serem cha-mados pelo nome para depois prestarem o sacrifcio. A populao pagapupava-nos de expresses enraivecidas, materializando a ignornciaque os tornava cegos. Tambm fora por eles que Cristo se sacrifica-ra, mesmo que disso no tivessem conscincia. E no rosto de muitoscristos vi uma tristeza difcil de esconder. Era como se fossem eles os

    sacrificados. De expresso distante, na agonia de um gesto contrariadopela f que alimentavam, subiam as escadas do templo de cabea baixae postura curvada, parando diante do sacerdote que recebia o animal,

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    colocando-o no altar. Aspergia-o depois com farinha e sal em movi-mentos ritualizados, dando-lhe de seguida uma violenta pancada que o

    atordoava. Era ento esquartejado, verificado e queimado sobre o altar.Quando chegou a nossa vez, subimos as escadas no meio daarruaa feita pelos pagos. Os soldados ainda tentavam segur-los nodesespero que os atormentava, no conseguindo, contudo, impedir quealgumas pedras nos atingissem. L em cima, junto do altar sacrificial,um longo fio de sangue escorria por uma vala estreita cavada na pedra,enquanto o sacerdote lavava as mos do sacrifcio anterior.

    Fui a primeira a ser chamada. Os meus olhos fixaram-se nos de

    minha me que chorava. Ela sabia que nunca iria negar a minha f emCristo e, no entanto, embora estivesse pronta para cumprir essa vontadeque no era s minha, algo fazia-me vacilar. Como poderia esquecer apromessa que tinha feito pequena Maria? Ela tambm chorava, pres-sentindo a minha partida.

    Aproximei-me da minha me, entregando-lhe Maria; a minhafilha Maria!

    Prometa-me que ir cuidar dela como cuidou de mim. Claro, filha. J como uma neta.

    Sorri-lhe, agachando-me junto dela.

    Desculpa, querida disse eu de olhos humedecidos. Prometo-te que um dia ficaremos juntas para sempre.

    Beijei-a na testa, levantando-me. Ela virou-se, afundando acabea no regao de minha me. Os seus soluos feriram-me profun-

    damente, rasgando o meu ser. Lentamente, de costas viradas para osacerdote e olhar fixo na Maria, aproximei-me deste com a pomba nasmos.

    Vejam! disse eu virando-me para a assistncia pag. Este o meu sacrifcio.

    E larguei a pomba que voou liberta...

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    P, , na majestade de sua postura altiva e soberba para com as terras circun-dantes. Era o ponto de convergncia de todas as caravanas vindas dasmticas terras do Oriente que alimentavam a luxria de um imprio

    decadente com pedras preciosas, tecidos, especiarias e outras coisas quetais. A cidade, Palmira de nome aps as invases do nosso grande im-perador Alexandre Magno, estendia-se numa longa avenida central queera ladeada por um corredor com a espessura de quatro colunas. Numdos extremos da avenida ficava o templo de Bel e o palcio do prncipeOdaenathus que reinava a pulso firme, forando Roma a apoi-lo nascampanhas contra os Persas.

    As ruas laterais levavam ao teatro h muito abandonado, ao

    mercado, s fontes vrias que por ali brotavam na abundncia daque-le osis, aos banhos pblicos e outros templos dedicados a divindadesorientais. Fora dos muros da cidade, vrias sepulturas erguiam-se namajestosidade dos seus adornos, vincando o estilo que caracterizavatoda a arquitectura e que fazia lembrar, nos contornos mais insignifi-cantes, todas as construes do pas que me vira nascer.

    Estava em Palmira para negociar boa mercadoria, comprandoalgumas das preciosidades raras das terras do Oriente que tanto fascniocausava na populao ocidental. Logo depois que carreguei os cameloscom os produtos que comprara, iniciei a longa jornada de volta a Ate-

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    nas. Uma viagem que iria demorar quatro dias atravs do deserto rido,terminando na rica cidade de Antioquia de onde partiramos de barco

    ao longo do rio Orontes.Tinha herdado os negcios de meu pai depois da sua morte,embora a minha grande paixo fosse a filosofia. Como era filho niconada pude fazer para impor a minha verdadeira vocao, deambulandona monotonia daquela profisso que tanta averso me provocava. Euqueria era estudar os grandes filsofos, dar aulas de retrica ou lnguas.Queria crescer na espiritualidade de uma divindade desconhecida, quetinha como nica, e nela encontrar uma parte da minha prpria essncia.

    Mas o destino, caprichoso nos seus gestos to pouco tolerantes,empurrara-me para aquela profisso onde os sonhos se diluam na rigi-dez de uma vida distante de tudo aquilo que sempre tive como impor-tante. Se continuasse a caminhar por aqueles trilhos, certamente quemorreria. Morreria no esprito, na essncia de uma vontade prostradadiante dos caprichos de um mundo que nada tinha de meu. Queria serconscincia liberta e no escravo de uma vida embriagada por iluses;pelas paixes de um mundo esquecido de si mesmo, mergulhado nossucessos efmeros dos prazeres mais obstinados; castrado de uma espiri-tualidade que se tornava, no caminhar sonolento de uma existncia semvida, distante e ausente.

    O deserto estendia-se na dormncia deixada pelo vento em seusuivos angustiados, marcando o ritmo das caravanas que se cruzavampor entre as dunas e que transportavam o suprfluo que alimentavaaquela civilizao. Eu prprio ajudava nessa decadncia, negando uma

    vontade que tudo desejava mudar. Mudar um mundo alienado pela ir-racionalidade de um povo que se esquecera de si, iludido pelos dogmasde um imprio feito imagem de uns quantos homens que, acobertospela presena de deuses de pedra que no se pronunciam, reinavamsobre a ignorncia e a superstio.

    Em pequeno tinha cultivado um fascnio particular pelos filso-fos da antiguidade como Plato e Aristteles, embora os que verdadei-ramente moldaram o meu pensamento fossem de escolas mais recentes

    como Plotino e Epicteto. No entanto, apesar de todas as influncias,reconhecia em mim uma verdade que necessitava despertar, reconhe-

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    cendo nesta a fonte da sabedoria. Faltava-me, contudo, a coragem ne-cessria para fazer desta o trilho principal da minha existncia, deixando

    a escravido de uma vida de mercador e partindo rumo a um futuroonde me tornaria, finalmente, consciente de mim mesmo.Quatro dias depois chegvamos a Antioquia, cidade cercada

    por altas muralhas que a circundavam na robustez de espessas pare-des, protegendo-a de possveis invases persas. Fundada como a capitalda provncia sria do imprio grego, aps as conquistas do nosso im-perador Alexandre Magno, a cidade crescera na majestosidade da suaarquitectura e na fora musculada de milhares de colonos atenienses e

    macednios que para ali emigraram no passado. Hoje, decadente comotodo o imprio romano, a cidade atrofia-se na promiscuidade que tudoconsome. As ruas, repletas de mendigos, so o sinal visvel da prepo-tncia de Roma, preocupada com as suas conquistas e pouco atenta snecessidades do povo.

    Assim que transpusemos os portes da cidade, apercebemo-noslogo que algo de estranho se passava. Os gritos, os espancamentos empraa pblica e a movimentao dos soldados em patrulhas denuncia-

    vam mudanas que desconhecamos. Dois soldados aproximaram-se de ns. Quem comanda esta caravana? perguntou um deles. Sou eu respondi serenamente.

    Mostrai-me o libellus. De que libellus falais? perguntei, confuso.

    No sabeis das ltimas ordens do imperador?

    Acabmos de chegar do deserto.Ele desenrolou ento um pergaminho, lendo em voz alta.

    Todos os cidados so obrigados pela letra deste dito aprestar sacrifcio aos deuses do imprio. Quem se recusar ser preso.O libellus o certificado comprovativo de que haveis cumprido as or-dens do imperador concluiu ele enrolando o pergaminho.

    Estava chocado. Como se atrevia o imperador a determinar ascrenas de cada um. O meu Deus era um Deus desconhecido, liberto de

    religies ou rituais. No podia prestar sacrifcio a esses deuses de pedrafeitos imagem do homem. Mas se recusasse seria preso.

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    Nada sei dessas ordens.

    Pois agora j estais informado.

    E o que esperais de ns? Que presteis o sacrifcio ordenado pelo imperador, claro!

    melhor aceitarmos, senhor disse um dos meus empre-gados. No vale a pena arriscarmos a priso por to pouco.

    No sabia o que pensar e, no entanto, via na possibilidade con-trria a fuga quela vida que tanto detestava... no, no teria a coragemde abandonar tudo pelos ideais que sempre desejei cultivar. E depois

    tinha uma famlia que dependia do esforo que colocasse naquele ne-gcio que herdara de meu pai. Resolvi acatar as ordens do imperador,silenciando a voz que em mim gritava por liberdade.

    Quando chegmos praa principal da cidade, conduzidos pe-los soldados que nos escoltaram, fomos confrontados com uma multi-do que se concentrava de forma compacta em torno do templo, gritan-do para uns quantos que se deslocavam sobre a proteco dos guardas.

    Quem so esses para quem gritam? perguntei ao acaso de-pois de ter dado o meu nome a um escriba que se encontrava na entradada praa.

    So cristos!? respondeu-me um homem de postura forte.

    E porque lhes gritais?

    Porque so hereges! ele encarou-me de expresso enruga-da. Como pode o imperador deixar esta gente prestar sacrifcio aosnossos Deuses. uma ofensa imperdovel! e logo se virou para ocentro da praa. Matem esses cristos!!!

    Pobres desgraados esses a quem chamavam cristos. Se recusas-sem seriam presos, se o fizessem, achincalhados. E muitos recusaram,revelando uma coragem que eu prprio desejava possuir. No conseguiaver os seus rostos l no alto do templo, mas j admirava a f que de-monstravam.

    E foi ento que ouvi uma voz suave que deslizou pela praacomo se fosse uma doce brisa que me tocou o corao. E disse ela l do alto:

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    Vejam! Este o meu sacrifcio.

    Uma pomba branca saiu das suas mos, voando liberta. Aquele

    gesto, aquelas palavras, fizeram crescer em mim a vontade extrema delhe seguir o exemplo; de libertar essa mesma pomba e, com ela, a minhaconscincia h muito aprisionada. Ainda tentei delinear a sua expresso,mas a distncia e as pessoas que cercavam o altar, esconderam-na domeu olhar curioso e encantado.

    A coragem demonstrada por esses tais cristos e, acima de tudo,o gesto deixado pela jovem no alto do templo, conseguiu despertar emmim o ser encarcerado pelo medo que atrofiava a voz da alma como ex-

    presso dessa essncia interior que reclamava pela liberdade. Mas agorairia ser diferente. Quando fui chamado presena do sacerdote nohesitei um nico instante, recusando o sacrifcio. Ele, sabendo que euno era cristo, ainda insistiu. Mas estava determinado.

    Recuso-me! disse de sorriso rasgado.

    E nunca me tinha sentido to em paz como naquela tarde.

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    D , -caram-me numa carroa que rapidamente se encheu com outros cris-tos. Todos expressavam alegria igual minha por se manterem leais palavra de nosso mestre Jesus. Os seus olhares leves e pacificados reflec-

    tiam a natureza profunda da f que nos dava fora, alento e esperana,preenchendo-nos de uma presena que nos tranquilizava.

    Os soldados escoltavam-nos at aos calabouos da cidade ondeiramos ficar: lugar sombrio onde se fazia desaparecer os proscritos dasociedade romana. Para trs ficaram os cristos que negaram aquele quepor eles se sacrificara, recusando a liberdade de estar junto de Cristo,onde a dor se torna alegria e o desespero, esperana. Se na graa doesprito Santo, que iluminara as suas conscincias, se fizeram cristos,

    era para que essa mesma graa fosse posta a render, no na palavra, masna postura sincera para com nosso mestre. Neg-lo era apunhalar a suaverdade, destruindo esse caminho por ele iniciado. Era hipotecar o fu-turo s mos do paganismo, pois se todos o negassem nada ficaria comotestemunho da nossa f. No podia perdo-los, pois estavam a condenara humanidade escravido de uma existncia sem futuro algum. Nemaos meus pais perdoaria aquele acto cobarde.

    J dentro dos calabouos fui levada presena do carcereiro. Eraum jovem de expresso vincada e olhar petrificado.

    Levamo-la para a cela? perguntou um dos soldados.

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    No disse ele sem me olhar. Dem-lhe vinte chicotadas.

    Eles conduziram-me para a sala em anexo, amarrando-me a um

    tronco de madeira. E sem hesitarem num resto de piedade que os pu-desse conter chicotearam-me de uma forma ritmada. A carne do meucorpo foi rasgada na indiferena daqueles jovens soldados, ferindo-menuma dor que aos poucos se tornava insuportvel. Mas nem por um sinstante lamentei a minha sorte, segurando a dor no ranger dos dentes.

    Acabei por desmaiar vergada sobre o peso do chicote, pois embora omeu esprito estivesse determinado em sofrer por Cristo, o corpo nadapodia fazer para ignorar o peso da tamanha tortura.

    Quando recuperei os sentidos, ainda atordoada pela dor, os sol-dados conversavam na ignorncia daquilo que diziam.

    Sabias que os cristos so canibais? replicou um deles,convicto das suas palavras.

    Sim, j ouvi falar. Parece que praticam rituais onde se comecarne humana, no ?

    E tambm praticam o incesto.

    So uns animais!O carcereiro entrou entretanto.

    J acabaram? perguntou ele num tom rgido e seco.

    que ela desmaiou...

    Tragam-na.

    Esbofetearam-me para que recuperasse os sentidos, levando-me

    para a outra sala. Quero saber se ainda te recusas a prestar sacrifcio aos deuses

    do imprio?

    Sim, recuso-me. Prefiro a morte! sussurrei.

    Levem-na! disse ele num grito sem eco. Amanh con-tinuaremos.

    Arrastaram-me por corredores subterrneos abertos na pedra

    dura de onde trilhos de gua abriam caminho at ao cho transformadoem pequenos regatos. Dentro da cela, os restantes cristos refugiavam-se nos cantos mais secos, fugindo dos soldados e da presena dos ratos

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    que por ali existiam em abundncia. Durante a noite, adivinhada pelocansao dos olhos, apenas o rosto da Maria se fazia presente. Ainda me

    doa o facto de a ter deixado, mas fi-lo tambm por ela; pela consolida-o daquela nova doutrina. Ela que surgira na minha vida como o teste-munho certo de uma existncia onde cada ser, diludo na continuidadede Deus, se torna filho pelo sacrifcio do seu primognito.

    No dia seguinte fui levada, uma vez mais, presena do carce-reiro. Nele vi um enorme bloco de pedra, brutalizado pela dormnciade uma vida ainda por despertar. Vi feridas mais profundas que as mi-nhas, abertas na razo deturpada de uma existncia feita de iluses. Era

    como se nele nada fosse real; um fantoche nas mos pouco escrupulosasde uma civilizao cega de si mesmo. Ainda caminhava na sua direcoquando ordenou, sem que mais alguma palavra fosse dita, vinte e cincochicotadas.

    Desta vez suportei a dor no ranger dos dentes, permanecendoconsciente. E no havia blsamo mais forte que a imagem da minhapequena Maria. Sentia-a como um anjo, como uma presena forte que

    me confortava de todo o sofrimento fortalecendo-me na f que abraarapor amor a Cristo.

    Minutos depois o carcereiro entrou, puxando-me os cabelos.

    Ento, cabra. Vais prestar sacrifcio aos deuses do imprio ou no?

    No disse em voz firme.

    Sabes que tenho todo o tempo do mundo?

    E eu tenho todo o tempo do Cu ao lado de Cristo, nossosenhor e mestre.

    Levem-na! gritou ele.

    Fui uma vez mais arrastada para a cela onde alguns dos nossosirmos choravam lgrimas de sangue. A f dilua-se lentamente no pesodas torturas, desmotivando-os daquela caminhada para Cristo. No po-dia deixar que se perdessem nos labirintos obscuros da razo, negando af por causa da dor. Era esta que nos ajudava a amadurecer como seresconscientes em Cristo, fortalecendo a esperana no futuro onde iremosdeixar de ser animais para nos tornarmos verdadeiramente humanos.

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    No aguento mais! gritou um deles. Vou prestar sacri-fcio a esses malditos deuses e sair daqui o mais depressa possvel!

    No! repliquei, indignada. No podem negar Cristo.Ele tambm se sacrificou por ns.

    No sou nenhum santo, irm.

    Ningum aqui santo, nem precisa de o ser. Somos o seurebanho e a ele devemos obedincia.

    Guardas! chamou ele seguro da sua deciso.

    No faais isso, irmo. Pesar-vos- para sempre na conscincia.

    Os guardas abriram a porta, levando-o. No conformada como gesto daquele nosso irmo, chamei todos para junto de mim. Tinhaque os motivar a permanecer firmes na f. Fortalec-los com o nimoque me alimentava e que desejava partilhar com eles.

    Quero-vos contar uma histria, irmos. A histria de Perp-tua e sua criada. Eles abriram os olhos no desejo de uma palavra quepudesse aliviar a dor que sentiam. Houve em tempos uma mrtir

    crist que ficou famosa pela f que demonstrou diante da prepotn-cia de Roma. Tinha ela vinte e dois anos quando foi presa com a suacriada Felicidade, sendo ambas condenadas morte numa arena. Ali,enquanto eram vaiadas pela assistncia, cantaram um salmo de louvora Deus. Uma vaca foi ento solta, deitando-a por terra. Ela, destemidae orgulhosa da sua condio de crist, ps-se de p, atou os cabelos quese soltaram e continuou a entoar o salmo. Logo depois trocou o beijoda paz com a sua criada, sendo ambas mortas pelos gladiadores. Fiz

    uma breve pausa, sorrindo. Que a coragem demonstrada por estasnossas irms vos fortalea, pois elas tambm no eram santas.

    Mas no ser a nossa morte um desperdcio? perguntouuma jovem de olhar to sereno quanto o meu.

    Porque dizeis isso, irm?

    Porque se estivssemos livres poderamos propagar a f pelapalavra do Esprito Santo. Aqui apenas morremos.

    Como vos chamais? Sofia.

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    Pois bem, Sofia. Ningum apenas morre. Lembrai-vos quemorrer em Cristo ressuscitar para o seu reino onde apenas existe amor.

    Para alm disso, atravs do nosso sacrifcio ajudamos a fortalecer umaf, que, por ser verdadeira, tudo suportar.

    Mas se todos forem sacrificados, ningum ficar para dar voza essa f insistiu ela.

    Se Cristo converteu o nosso irmo Paulo que nos perseguia,fazendo deste um dos apstolos, certamente que converter muitosmais. Um dia, quem sabe, at o prprio imperador ser cristo.

    Sorriram todos perante tal impossibilidade. Era, no entanto,um resto de esperana que nos ajudava a sonhar com um mundo melhor.

    No dia seguinte levaram-me presena do carcereiro. Desta vez,para minha surpresa, mandou-me sentar com um sorriso cnico, fixan-do-me de olhar contemplativo.

    Fiquei a saber por um dos teus... irmos, como vocs dizem,que andas a tentar convencer os outros a desobedecer ao imperador, verdade?

    No. Apenas quero que permaneam na sua f. Nesse caso, irei ser forado a colocar-te numa cela isolada.

    Ele olhou para o soldado. Levem-na. Mas primeiro dem-lhetrinta chicotadas.

    Enquanto me chicoteavam, lembrei-me da histria de Perptuae, tal como ela, entoei um salmo: O Senhor o meu pastor, nada me fal-tar. Os guardas pararam por alguns momentos, hesitando na surpresa

    daquela minha atitude, mas logo continuaram. Refrigera a minha alma;guia-me pelas veredas da justia, por amor do seu nome. Ainda que an-dasse pelo vale da sombra da morte, no temeria mal algum, porque tuests comigo; a tua vara e o teu cajado me consolam... certamente quea bondade e a misericrdia seguir-me-o todos os dias da minha vida: ehabitarei na casa do senhor por longos anos.

    Quando terminaram, levaram-me para uma das celas reservadasaos cidados romanos. Era uma forma de me afastarem dos meus ir-mos e assim desmotiv-los da sua f. A cela, ao contrrio do buraco deonde vinha, era cmoda, bem construda e sem recantos de pedra onde

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    os ratos se pudessem esconder. Junto do tecto uma pequena aberturaespreitava para a rua, diluindo a humidade que se fazia escassa.

    E ali fiquei de esperana fortalecida, dizendo em voz alta: Assim como o veado suspira pelas correntes de gua, assim

    tambm a minha alma suspira por Vs, meu Deus.

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    D soldados, parti rumo priso montado no meu cavalo. Era o nicono cristo que negara a vontade do imperador, tendo um tratamentodistinto dos outros. Tinha dado intruses a um dos meus empregados

    para relatar o sucedido a minha me. Doa-me imaginar os seus olhoscobertos de lgrimas quando fosse informada da minha deciso, masaqueles eram os trilhos que o destino me reservara na natureza concretada uma vontade j determinada.

    Os soldados, montados a meu lado em seus cavalos, escoltaram-me at aos calabouos da cidade onde fui levado presena do carcerei-ro, um jovem de olhar vazio e rosto vincado. Nele reconheci a frieza queo conduzira quela lugar, embora tentasse ser amvel.

    Sentai-vos disse ele num sorriso que logo se desfez. Obrigado. Porque vos haveis recusado a prestar sacrifcio aos nossos

    deuses? perguntou ele sem grandes rodeios. Por isso mesmo sorri-lhe. Por no serem os meus deuses. Sabe? Eu tambm no acredito em deuses. Mas se o impera-

    dor nos ordena esse sacrifcio s temos que lhe obedecer.

    Para quem no acredita o sacrifcio uma mera formalidade.Mas eu tenho um Deus.

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    O Deus cristo!? perguntou ele de sobrancelhas vergadas.

    Nada sei desse Deus. O meu Deus outro; um Deus desco-

    nhecido, impossvel de ser revelado. Essa sua teimosia vai forar-me a prend-lo.

    Eu sei e agradeo-lhe a preocupao.

    Quando quiser partir s ter que prestar o sacrifcio eleolhou para os soldados. Podem lev-lo.

    Fui colocado numa pequena cela reservada aos cidados roma-nos. Era razoavelmente confortvel, de paredes slidas e bem constru-

    das. Junto do tecto, na parede contrria da porta, uma abertura abriacaminho luz que preenchia todo o espao sem revelar o sol, enquantonas paredes laterais uma pequena grelha, no topo, ligava as vrias celas.

    E ali fiquei confortado pelas memrias que me ajudavam a es-quecer a monotonia que aos poucos se ia instalando. Apenas o solda-do que trouxera a comida interrompeu o silncio imposto pelas pare-des apertadas da cela. Mas logo partiu deixando-me com o passado.

    Em criana ia todos os dias com o meu pai at gora onde

    os comerciantes se juntavam. Em outros tempos, encenavam-se por alipeas teatrais, organizavam-se corridas e assembleias populares, mascom o passar dos anos os comerciantes foram tomando conta do lugar,transformando-o no mercado principal da cidade. Meu pai, dono departe das bancadas que se estendiam ao longo da praa, fazia questoque eu aprendesse os segredos da profisso, embora j nesses tempos de-monstrasse pouco interesse por aquela actividade. Mais tarde, na minhaadolescncia, preferia os passeios pela colina de Ares, onde se reuniam

    todos os filsofos, a ter que aturar o burburinho infernal dos preges edas discusses em voz alta.

    Era no meio destes que me sentia sintonizado comigo mesmo,discutindo com os mais velhos assuntos elaborados. E foi numa dessasincurses pela colina de Ares que conheci Plotino, um sbio mstico dequem se falava muito, e que, diante de uma assistncia atenta e silen-ciosa, revelava um pouco mais da sua filosofia neoplatnica. Fiquei toimpressionado com as suas palavras, que nesse mesmo dia me inscrevi

    numa escola de retrica e filosofia. Mas, com a morte de meu pai, tinhaeu vinte e dois anos, tive que deixar os estudos para cuidar dos interessesda famlia.

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    No terceiro dia, estava eu em sintonia com o passado, quandoouvi a porta da cela do lado ser aberta e logo fechada no telintar da

    chave. Fiquei na expectativa de quem ali tinha sido colocado, ouvindo,momentos depois, a voz doce da jovem que libertara a pomba no altodo templo:

    Assim como o veado suspira pelas correntes de gua, assimtambm a minha alma suspira por Vs, meu Deus.

    A sua voz... era como se conhecesse aquele som de outras pocase realidades. Senti-la to perto, no apenas na distncia, mas, acima detudo, nos gestos que lhe reconheci, era reencontrar algum perdido nos

    caminhos do tempo; o retorno a um parto partilhado. Quem sois vs? perguntei na curiosidade que transborda-

    va sobre a emoo que no conseguia conter.

    Quem est a? replicou ela surpreendida com a minha presena.

    Um amigo.

    Como bom ter algum com quem conversar disse elanum longo suspiro. Mas o que fazeis nestas celas, irmo?

    Creio que estas celas estejam reservadas aos cidados romanos!?

    No sois cristo!? o seu tom tornava-se defensivo.

    No.

    Ento porque estais aqui? perguntou ela desconfiada.

    Pela mesma razo que vs.

    Como assim!

    que tambm me recusei a prestar sacrifcio aos deuses do imprio.

    E porque tomastes tal atitude se no sois cristo?

    Sabei que o fiz depois de vos ter visto libertar aquela pombano alto do templo.

    E como sabeis que fui eu?

    Pela voz. Ficar-me- para sempre na memria.

    E tomastes tal atitude apenas por causa do meu gesto? elaparecia interrogar-me na tentativa de encontrar contradies no meu discurso.

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    No foi apenas pelo gesto, embora tenha sido ele a libertar aminha conscincia. que tambm no tenho os deuses romanos como

    meus. E quais so os vossos deuses? o seu tom continuava defensivo.

    O meu Deus apenas um. Um Deus desconhecido que estacima de todas as religies.

    Ah! Sois ateniense ela suspirou, descontraindo-se.

    A sua descontraco foi como o desabrochar de uma flor, lan-ando-me nos braos delicados de uma brisa que soprava em murm-

    rios deixados pelo passado. Nela podia reconhecer tantas coisas diferen-tes, sentir algo que nos transcendia na continuidade de uma existnciamaior que ns os dois. A sua voz era testemunho de um outro momen-to que partilhmos num qualquer lugar esquecido pelo tempo, preen-chendo-me numa alegria como nunca antes experimentara... mas nadasabia de si. Ignorava os contornos do seu rosto, os trilhos da sua vida.

    Porque achais que sou ateniense? perguntei logo de seguida.

    Porque o nosso irmo Paulo, ao visitar a cidade de Atenas,reparou na existncia de um altar dedicado ao Deus desconhecido, di-zendo que esse a quem os atenienses adoravam sem conhecer era aqueleque ele anunciava.

    No creio que seja possvel anunciar esse Deus. A sua exis-tncia transcende-nos. Estar sempre para alm da nossa razo.

    E o que fazeis vs por estas paragens do Oriente? o seu

    tom de voz tinha mudado radicalmente, revelando serenidade e algumaalegria. Teria tambm ela reconhecido em mim algum que lhe era fa-miliar?

    Sou comerciante por convenincia... por isso vim procurade boa mercadoria.

    E porque dizeis por convenincia?

    Porque a minha verdadeira vocao ser filsofo. Mas aps

    a morte de meu pai tive que tomar conta dos negcios da famlia. No podeis ser ambas as coisas?

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    No. A filosofia exige muita disciplina mental, algo que noconsigo durante as viagens que fao. Para alm disso, a distraco per-

    manente com as coisas mundanas da vida impede que me possa expres-sar em liberdade.

    E porque no abandonastes tudo quando esse destino seanunciou?

    Porque minha me dependia por completo do esforo quecolocasse nos negcios de meu pai. E depois tinha um casamento pro-metido desde a infncia... mas quando vos vi largar aquela pomba, tudomudou para mim. Era a liberdade que se pronunciava no voo suave

    daquela ave, soltando-me de uma vida que me mantinha embriagado...mas no falemos de mim. Quero saber de vs.

    Que posso eu dizer? senti que ela sorria.

    De onde sois, por exemplo?

    Sou judia de origem, nascida aqui e adoptada por uma famliacrist.

    Sois ento rf?

    Mais ou menos. que os meus pais de sangue me expulsa-ram de casa quando me converti ao cristianismo.

    E o que vos fez mudar de religio?

    Foram as palavras de um grande sbio chamado Orgenes.Conheci-o numa das praas da cidade quando ele falava multido. Oque ele disse tocou-me to profundamente que me converti nesse mes-mo dia.

    E que fora essa capaz de tal feito? perguntei, curioso.

    a fora do filho de Deus que se sacrificou pelos nossospecados.

    Nada sei da vossa religio.

    Da no vem mal algum. O mal est naqueles que nada sa-bendo, insistem em julgar-nos.

    Como acusando-vos de canibalismo e incesto? Tambm sabeis dessas histrias?

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    Sim. Ouvi na praa do templo quando aguardava a minha vez.

    Julgam-nos canibais porque comemos do corpo de Cristo e

    bebemos do seu sangue. S que ignoram que o corpo o po e o sangueo vinho. Que esse ritual apenas a forma de termos nosso mestre pre-sente nessa refeio sagrada; uma comunho eterna com a sua naturezadivina. Por outro lado, julgam-nos incestuosos porque nos tratamos porirmos.

    A ignorncia e o preconceito so os maiores males do mun-do, sabei! Ambas atrofiam a conscincia dos homens, condenando-os misria de uma existncia puramente animal...

    Nem sei o vosso nome disse ela aps uma breve pausa.

    Chamo-me Dionsio, e vs?

    Sara.

    Sara! Certamente que nunca esquecerei tal nome.

    O seu sorriso materializou-se na suavidade de uma expressoque lhe adivinhei. Aos poucos comeava a delinear os contornos de

    um sentimento mais apurado, pois apenas algo profundo e verdadeiropoderia justificar tudo aquilo que senti quando ouvi pela primeira vez asua voz no alto do templo.

    E os momentos sucederam-se em conversas que partilhmos naemoo de estarmos juntos; horas que ajudaram a solidificar um senti-mento cuja origem transcendia o tempo, o espao, a prpria existncia.Nela pude reconhecer o reflexo de uma imagem que espelhava o meuprprio ser; a unidade perfeita de um Eu que se fazia Ns, tornando-se

    depois um Eu ainda maior. A luz do Sol, como que adivinhando a espi-ritualidade profunda dos meus sentimentos, debruou-se sobre a janelajunto do tecto, projectando a sombra das grades na parede contrria.

    Haveis reparado que durante o pr-do-sol que a luz entranestas celas? disse eu arrepiado com a emoo daquele momento.

    Sim, vejo agora. a primeira vez que acontece. Nos outros dias o cu deveria

    estar nublado.

    a forma de o Sol abenoar esta nossa amizade disse elanum tom carinhoso.

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    Quem sabe se no mais do que isso? senti o seu sorrisocomo se ela estivesse diante dos meus olhos. Certamente que era mais

    que uma simples amizade!A noite acabou por despertar, escurecendo os contornos sperosdas paredes de pedra que nos envolviam num abrao apertado.

    Ests a dormir? perguntei eu num tom menos formal.

    No, Dionsio. Podes falar.

    Por que que te trouxeram para esta cela?

    Porque, segundo o carcereiro, estava a instigar os outros cris-

    tos a desobedecerem s ordens do imperador. Mas o que eu fiz foitentar segur-los na sua f.

    Trataram-te mal?

    Sim. Chicotearam-me vrias vezes... mas j no tem importncia.

    E conseguiste segur-los nessa f?

    Ouve um que desistiu... no lhe poderei perdoar, assim como

    a todos os cristos que se curvaram a esses deuses de pedra. No sejas to radical, Sara. Cada pessoa caminha no seu rit-mo. No temos o direito de julg-los s porque esses ritmos no estode acordo com os nossos.

    Isso que dizes de alguma forma um pensamento cristo, sabias?

    Ento porque no segues esse pensamento que dizes ser cristo?

    Porque difcil aceitar que aqueles que se dizem cristos

    recusem o sacrifcio para com aquele que tudo fez por ns. Talvez lhes tenha sido predestinado ficar l fora; dar conti-

    nuidade vossa religio.

    Sim. Acho que faz sentido o que dizes. Mas mesmo assim irser difcil eliminar este sentimento.

    No dia seguinte acordei com ela a entoar uma doce melodia.As suas palavras perfumavam todo o ambiente, pacificando-me profun-

    damente. Era como se fssemos irmos gmeos separados nascena. Que palavras so essas, Sara?

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    Ol, Dionsio. Fazem parte de um dos salmos de David.

    E quem esse David?

    Foi um grande rei judeu. Mas no s crist? perguntei confuso.

    Ela riu numa gargalhada que me encantou.

    que ambas as religies tm um mesmo passado. O nossomestre Jesus tambm professava os ensinamentos judaicos, embora asua doutrina tivesse posto fim primeira das duas alianas de Deus.

    E que aliana foi essa? estava cada vez mais curioso sobre

    a sua f. Foi a aliana que Deus fez com o povo hebreu, cedendo estas

    terras outrora de Can. Com essa aliana vrias leis foram reveladas aesse povo que passou a profess-las, sendo as principais as que foraminscritas nas tbuas de pedra que Moiss transportou desde o monteSinai. Antes que perguntes quem foi Moiss, digo-te que foi um grandeprofeta. Talvez o maior de todos eles.

    E o que estava escrito nessas tbuas? Os dez mandamentos de Deus.

    E quais so esses mandamentos?

    No ters outro Deus alm de mim. No fars para ti ima-gens esculpidas do que existe no alto dos cus. No pronunciars emvo o nome de Deus. Recorda-te do dia de sbado para o santificar.Honra o teu pai e a tua me. No matars. No cometers adultrio.

    No roubars. No dirs falso testemunho contra o teu prximo. Nocobiars a casa do teu prximo.

    Mas esses so preceitos morais que se aplicam a qualquersociedade equilibrada, Sara.

    Concordo. Mas com o fim da primeira aliana, toda a lei deMoiss tornou-se caduca. No falsa, mas caduca. Cristo, atravs do seuEvangelho, anuncia-nos a salvao, no pelas obras da lei, como no pas-sado, mas pela f. Agora a salvao no est apenas ao alcance daquelesque levaram uma vida de acordo com a lei, mas de todos os homens quese justifiquem pela f em Cristo. Isto no significa que anulemos a lei.

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    Atravs da f reforamos a prpria lei, mesmo que a esta no estejamosvinculados por obras. Muitas pessoas no tm a lei de Moiss como sua,

    por exemplo, mas se pela f forem justificadas diante de Cristo estaroa reforar essa lei qual no esto sujeitas.

    bastante interessante o que dizes, Sara. Mas no trouxeCristo novas leis?

    De todas saliento apenas uma.

    Qual?

    Amai o prximo como a ti mesmo.

    Como aquelas palavras me eram familiares. Sabes que durante muito tempo constru uma verdade que

    julgava minha, mas agora vejo que esta j foi materializada pela sabedo-ria de outra pessoa.

    Talvez sejas cristo sem o saber disse ela num tom risonho.

    Talvez! respondi eu perante a sua observao brincalhona.

    Momentos depois, o soldado entrou com a comida, saindo de

    seguida. Enquanto comia, tentei compreender um pouco de mim mes-mo na imagem unificada de ns os dois. Ela tinha surgido como a res-posta a uma vontade que sempre desejara expressar, pois aquele seu ges-to no alto do templo despertou em mim a minha verdadeira identidade.Era como se ela fosse a chave das catacumbas onde a minha conscinciase encontrava encarcerada, abrindo as portas e libertando-me.

    Depois de terminar aquela refeio inspida, continuei a con-versa, tentando compreender um pouco mais da sua religio.

    Sara!

    Sim, Dionsio.

    Como o princpio do mundo na tua religio?

    Comeou quando Deus criou a terra e o mar e todos os ani-mais e plantas. Depois criou o homem e a mulher, dando-lhes as terrasdo paraso. Disse que tudo lhes pertencia, mas que no deveriam tocar

    na rvore do bem e do mal. Eva, a primeira mulher, acabou por comerdesse fruto, levando Ado, o primeiro homem, a desrespeitar as ordensde Deus. Foram ento expulsos do paraso para sempre.

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    curioso! disse eu encantado com aquela histria. Na mitologia grega existe uma lenda semelhante.

    A srio!? Sim. a histria de Pandora.

    E como essa histria?

    Segundo a nossa mitologia, Pandora foi a primeira mulherda Terra criada por Zeus para castigar a humanidade. Para punir oshomens por terem aceite o presente de fogo que Prometheus rouboudo cu, Zeus ofereceu a Pandora uma caixa contendo o bem e o mal,

    advertindo-a para nunca a abrir. Ela, numa curiosidade desmedida, aca-bou por abrir a caixa, espalhando pelo mundo todo o bem e todo mal.Apenas a esperana ficou l dentro.

    curioso, essa semelhana entre as histrias.

    Talvez tenham um passado comum.

    Estou certa que sim, Dionsio.

    E essa segunda aliana que falaste, surgiu quando?

    Surgiu quando as promessas feitas pelos profetas da antigui-dade se cumpriram com a vinda de Cristo.

    E qual a histria desse vosso mestre, afinal? pergunteinuma curiosidade que crescia ao sabor das suas palavras.

    a histria daquele que encarnou pelo Esprito Santo e daVirgem Maria se fez homem. Que por nossa causa foi crucificado sobas ordens de Pncio Pilatos, padecendo na cruz por causa dos nossos

    pecados. Foi depois sepultado, ressuscitando ao terceiro dia. E assimsubiu aos cus onde est sentado direita de seu pai.

    uma religio estranha, essa em que acreditas!

    Porque dizes isso?

    Porque um ser divino crucificado algo de difcil compreenso.

    Para quem conhece os seus ensinamentos, Dionsio, a cru-cificao demonstra apenas a natureza fraterna de algum que o fez por

    todos ns. As suas palavras so o espelho disso mesmo. E que palavras so essas capazes de despertar tanta f?

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    So as palavras daquele que um dia disse: Bem- aventuradosvs, os pobres, porque vosso o reino dos cus. Bem-aventurados vs,

    que agora tendes fome, porque sereis fartos... Mas a vs, que ouvis,digo: Amai a vossos inimigos, fazei bem aos que vos aborrecem; Ben-dizei os que vos maldizem e orai pelos que vos caluniam... E, como vsquereis que os homens vos faam, da mesma maneira lhes fazei vs,tambm...

    Estava impressionado com tamanha sabedoria.

    So certamente palavras de um grande homem.

    So mais do que isso, Dionsio. Ele sabia o que lhe estavadestinado, mas no hesitou em sofrer pelos nossos pecados. Foi atravsdo seu gesto que as portas do futuro se abriram. Ele revelou-nos os ca-minhos iluminados de volta ao paraso perdido.

    No fim da tarde, o sol invadiu as nossas celas, despertando emns a voz de um sentimento maior que o mundo. Por alguns momentos,enquanto a luz delineava na parede contrria os contornos das grades,senti que estava dentro dela. Era como se respirasse pelos seus pulmes,pensasse pela sua mente; como se fssemos um nico corpo, uma mes-ma conscincia.

    Esta luz parece querer abenoar-nos disse ela num tomnostlgico.

    Sim, Sara. como se ela fosse a nossa prpria conscincia.

    pena que s dure breves momentos.

    verdade. Mas amanh estar a novamente.A sombra desapareceu momentos depois, anunciando a noiteque tudo cobriu. Apenas o silncio se fazia ouvir na escurido cerrada efria, embora a presena dela do outro lado da parede me confortasse detodo o mal-estar que pudesse sentir.

    Sara, ests a dormir?

    No, Dionsio. Podes falar.

    Que sentimento estranho este que sinto por ti? No sei, Dionsio. Mas tambm sinto o mesmo.

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    Nunca julguei possvel sentir algo semelhante e, no entanto,nem sequer nos conhecemos.

    Claro que nos conhecemos! Desconheo os contornos doteu rosto, certo, mas conheo-te como a mim mesmo.

    E com aquelas palavras adormeci leve como uma criana.

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    C VI

    O um sol alaranjado e a serra despertado no cintilar hmido do orvalhomatinal. Caminhava com uma enorme mochila nas costas, trilhando asfragrncias da manh que tudo cobriam na frescura dos seus aromas.

    No sop da serra, e pelos montes mais baixos, alguns aglomerados decasas sobressaam como ilhas dispersas num qualquer mar feito de terra,todas elas unidas por pequenos caminhos e pelo padro colorido doscampos cultivados. Das plantas escorriam gotas prateadas que mergu-lhavam no cho molhado, formando pequenas poas de gua.

    Tinha deixado a cidade devido demncia crescente que mesufocara a conscincia em espasmos de uma loucura quase concretizada,fugindo de um destino que me tentara derrotar. Era um solitrio por

    natureza e apenas ali, no meio dos montes, conseguia sintonizar-mecom a minha essncia. Desistira do curso de Filosofia aps ter reencon-trado a minha verdadeira vocao, descobrindo que no era nos con-ceitos abstractos do pensamento filosfico que poderia encontrar umdia a verdade. Acabei por me deixar seduzir por Deus que aos poucosfoi murmurando pensamentos inspirados, mas um dia abandonou-me,deixando-me confuso e perdido. E foi ali, no meio daquela naturezaque sempre me abraou, que compreendi que a ausncia por Ele pro-

    vocada tinha sido um teste f que deveria cultivar. A f demonstradana coragem de quem recebera uma notcia difcil de suportar; de quem

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    estava sujeito aos caprichos de uma vontade maior que a sua, resignadoa um destino que me tinha sido imposto.

    Do cho vinha um cheiro a terra molhada que despertava me-mrias que nunca tinha vivido. Era como se estivesse a usar uma mentemais vasta que a minha, onde essas sensaes mergulhavam na essn-cia mais profunda de uma nova conscincia que tinha que aprender areconhecer mesmo sendo Ela, eu prprio. No monte contrrio queleonde me encontrava estendia-se uma floresta de um verde vincado, quese prolongava para alm do meu olhar em salpicos coloridos e intensos,contornando os riachos, que deslizavam no serpentear do manto cor de

    prata, que lhes dava expresso e continuidade.Que privilgio poder sentir uma parte de mim no verde hmido

    daquelas terras, no perfume transparente das guas geladas e tranquilas,no olhar luxuoso de plantas e arbustos, no paladar doce das cores e dosgestos deixados pelo vento no dobrar dos montes. Era como se aquelaaragem vagueasse pelo tempo, entrelaando-o como fios num tear. Fiosde uma vontade liberta onde cada parte se fundia na outra, habitando

    um espao sem tempo nem lugar. Era ali que o meu esprito se encon-trava com a minha alma e a minha alma com o meu corpo. Era o lugaronde me sentia unido com tudo aquilo que me cercava, pois toda anatureza pronunciava paz e harmonia.

    Desci at um pequeno planalto, sentando-me junto de um lago.Ali o cu fundia-se com a terra, reflectindo a sua cor no olhar cristali-no das guas que repousavam na serenidade de quem no tinha pressanem destino. minha volta, uma floresta cerrada de rvores robustase delicadas cercava-me em cnticos melodiosos que os pssaros entoa-vam. Na outra margem do lago erguia-se um pequeno monte repleto demusgo por onde serpenteava um pequeno regato. Acabei por adormecernas margens do lago, vendo-me a mim mesmo num sonho estranho eprofundo. Ali, numa nvoa que se dissipava, tive breves vislumbres deuma memria que me transcendia, sentindo-me unificado com a ener-gia feminina que h muito procurava. Era como se tivssemos encarna-

    do toda a natureza, assimilando em ns as energias apostas do prprioplaneta.

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    Uma criana aproximou-se de mim com um lrio que me entregou.

    Porque me ds esta flor? perguntei criana.

    Porque em breve sers meu pai.E logo se afastou, deixando o meu olhar disperso na nvoa que

    cobria o lago. Enchi ento os pulmes com o perfume suave e docedaquela flor, mergulhando as mos no reflexo da minha imagem...

    Quando acordei, no fiquei esttico nas lembranas daque-le sonho, partindo de mochila s costas pelo vale que se espreguiavanos contornos dos montes, repousando sobre a plancie que l longe

    se estendia rumo ao horizonte. E j o sol intimidava a sombra que seescondia debaixo do meu andar sereno, quando voltei a parar junto dasmargens do lago, embora numa zona onde a sua extenso era maior. Alimontei a tenda, procurando depois lenha nos matos circundantes. Aps

    juntar um molho razovel que serviu para a fogueira do almoo, retireida mochila uma panela, um suporte, uma garrafa de gua e um saco dearroz, acendendo a fogueira com o isqueiro e com as pginas soltas deum velho jornal. Minutos depois, quando a gua j fervia, deitei o arroz

    na medida certa, retirando da mochila o po e a lata de atum que tinhacomprado na pequena aldeia por onde passara.

    Aproveitei o resto do dia para caminhar pela serra, tentandoconhecer aquele lugar. Num dos extremos, junto de uma falsia escar-pada, avistei uma pequena casa de madeira, interrogando-me se viverial algum. Acabei por regressar tenda sem me aproximar da casa, ob-servando, momentos depois, o pr do Sol que sempre fora um mistriopara mim. Via no seu brilho mais que os espargidos de luz que estedeixava no conforto dos seus raios. Era como se este murmurasse coisasque ainda no compreendia mas que faziam despertar em mim a belezade um gesto esquecido nas esquinas do tempo.

    Quando a noite caiu numa lua cheia magnfica, deixei-me ador-mecer na tranquilidade daquele lugar de paz. Nessa noite vi-me embre-nhado num sonho estranho e to confuso como o anterior. Caminhavapelo deserto sem um rumo definido, parando vrias vezes para observar

    o horizonte. Do alto de uma duna, envolto na areia que danava emtorno de mim levada pelo vento, vi um pequeno osis para onde fuilevado. Um riacho corria junto da vegetao rasteira e luxuosa, des-

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    cendo em cascata por um penhasco, onde uma casa de madeira se ele-vava como sentinela atenta, desaguando depois nas guas de um lago.

    Dentro da casa, na nica diviso, encontrei a mesma criana do sonhoanterior que chorava enrolada no seu corpo.

    Porque choras perguntei, aproximando-me.

    A minha me abandonou-me. respondeu ela de lgrimasnos olhos.

    E para onde foi a tua me?

    Foi com a pomba branca que a levou...

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    C VII(250 d.C)

    L -sa. Os seus longos braos, gelados pela proximidade do deserto, preen-chiam a cela com o desconforto que tentava afastar. Apenas a presenadele conseguia abafar o frio que a noite fizera cair sobre ns. Conhecia-o

    h to pouco tempo e, no entanto, sabia que o amava de uma forma queno julgava possvel. Era como se tivesse despertado para uma dimensoonde esse amor se tornava amplo e unificador.

    Levada pelos murmrios do vento, acabei por adormecer. Nessanoite sonhei com um lugar bonito; um lugar repleto por uma vegeta-o luxuriante. Ali, numa plancie florida em perfumes vrios, vi-mede mos dadas com a pequena Maria, caminhando ao lado de algumque s podia ser ele. No lhe conseguia ver o rosto, que se encontrava

    encoberto por uma nvoa fina; mas tambm no era pelo rosto que oconhecia.

    A pequena Maria ia no meio de ns de sorriso rasgado e olharcintilante. Era como se fssemos uma famlia. Mais frente, junto deum pequeno lago, avistmos uma casa com a forma de uma esfera cor-tada pela metade. Algumas janelas, amplas, de um s vidro, espreitavampara o exterior reflectindo a vegetao que nos cercava num doce abraomaternal. E foi ento que vi aquele ser de luz que anunciara a vinda daMaria. Ali pude ver melhor os seus contornos, percebendo que se tra-tava de uma mulher. E ela falou, dizendo: Um dia irs estar neste lugar

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    e aqui completars um longo ciclo de dedicao a nosso mestre. s aminha discpula amada e a ti confio a tarefa de fazer crescer no corao

    dos homens a Igreja que ajudei a fundar. E, dito isto, as imagens desa-pareceram num longo eco que tudo desvaneceu na turbulncia de umaespiral de luz... tinha acordado.

    Fiquei imvel durante alguns minutos, pensando em tudo aqui-lo que sonhara. Quem seria aquele ser? E que tarefa era essa que tinhaque realizar? Recordei tambm a imagem daquele lugar por onde cami-nhava de mo dada com a Maria junto com outro ser. Seria o Dionsio?Pensei ento nele e em ns, interrogando-me se seria possvel sentir algo

    to forte por algum que tinha acabado de conhecer. Dionsio, j acordaste?

    Sim, Sara. Podes falar.

    Tive um sonho to bonito, sabes?

    E como foi esse sonho?

    Caminhvamos os trs por uma plancie cheia de vida disse eu de expresso iluminada.

    Os trs?

    Ainda no te contei que tenho uma filha?

    No.

    verdade. Encontrei-a na rua, sozinha... Encostei-me parede que nos separava, visualizando a imagem carinhosa da pequenaMaria. Foi um presente de Deus.

    E como se chama? Maria, como a me e a companheira de Cristo.

    Ficmos em silncio. Um silncio que despertava os contornosde um sentimento to antigo quanto o prprio tempo, revelando umaverdade que nos transcendia na continuidade de um amor sereno e ver-dadeiro. E entre ns os dois era como se nenhuma parede nos separasse.

    E o que aconteceu no teu sonho? perguntou ele momen-

    tos depois. Nada de estranho. Acho que o sonho serviu apenas para memostrar que ns os trs poderamos formar uma famlia feliz.

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    Estou certo que sim, Sara.

    O seu tom afirmativo clareava pensamentos que ainda vague-

    avam nos trilhos confusos de uma imaginao desejosa de tais experi-ncias. Era como se uma porta se abrisse e deixasse passar alguma luz,mas nada se revelava dos segredos que se encontravam para l dos seuslimites.

    J falei tanto sobre aquilo em que acredito, Dionsio, e nadasei das tuas crenas.

    Que posso eu dizer?

    Falar da tua filosofia, por exemplo. Afinal, em que queacreditas?

    Acredito que pelo uso da razo que o homem pode veratravs das falsas aparncias. Que pelo poder do raciocnio que pode-mos mudar para melhor as coisas sobre as quais temos domnio.

    Quer dizer ento que vs o homem como um ser solitrio?

    No, de forma alguma!

    Mas se pela razo que ele pode melhorar o mundo, entono h a mo de Deus a moldar os seus caminhos.

    Existe na natureza, pois vivendo de acordo com esta quepodemos alcanar a verdade, o que de alguma forma o mesmo queseguir a vontade de Deus, pois Ele todo o universo. o princpio maiselevado que abrange o ser e o no-ser.

    assim que vs Deus?

    Sim. Para mim, Ele a fora imaterial que transborda paranveis de conscincia cada vez mais baixos. um ser transcendente, im-possvel de ser descrito, que governa o mundo espiritual, contrastandocom o nosso mundo material feito de ignorncia.

    E como alcanamos esse mundo espiritual?

    Pelo conhecimento, claro!

    E para ti esse mundo espiritual o universo?

    Para mim, Sara, o universo mais que um mundo. Ele umnico ser cujo essncia a conscincia de si.

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    o mesmo que dizer, Deus.

    Sim. S que esse Deus tambm somos ns.

    Como, assim? interroguei de expresso compenetrada. O uno no pode ser fraccionado. Ns, como partes dessa

    unidade, tambm somos ela prpria.

    Isso que dizes faz-me lembrar o que o nosso irmo Pauloescreveu numa das cartas que enviou igreja de Corinto.

    E o que disse ele nessa carta?

    Queres que cite textualmente?

    Sim.Porque, assim como o corpo um, e tem muitos membros,

    e todos os membros, sendo muitos, so um s corpo, assim Cristotambm. E vs sois o corpo de Cristo e seus membros em particular.

    Cada vez me surpreendo mais com a sabedoria que motiva atua religio. que nessas palavras est tudo aquilo que acabei de dizer,pois os membros de um corpo tambm so o prprio corpo.

    Herdaste todo esse conhecimento de quem? perguntei. De alguns filsofos mais recentes, como Plotino e Epitecto,

    embora a essncia daquilo em que acredito tenha sido forjado em mimmesmo.

    No tens, ento, como inspirao um profeta ou uma figuradivina?

    No, apesar do meu conhecimento ter sido influenciado por

    algumas doutrinas vindas das terras do Oriente. E que doutrinas so essas?

    Muitas so estranhas e difceis de compreender. Mas existeuma que me tocou particularmente. Nela encontrei uma sabedoria queaos poucos fui descobrindo em mim mesmo.

    E que doutrina essa? perguntei num entusiasmo tras-bordante.

    Foi professada por algum chamado Buda. Segundo ele, tra-zemos em ns prprios a chave da bem-aventurana, mas para usarmos

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    essa chave temos que compreender o mundo que nos cerca e que feitode sofrimento. Sofrimento, esse, que resulta da sede e do desejo pelo

    prazer. Segundo essa doutrina, s atravs da supresso dessa sede queo ser humano deixar de sofrer. Para que tal possa acontecer, cada umde ns ter que enveredar por oito caminhos distintos, sendo estes o daverdadeira crena, da deciso, da verdadeira palavra, do acto, da vida,do zelo, dos verdadeiros pensamentos e da meditao. O curioso quevejo agora que alguns dos seus ensinamentos tm semelhanas com atua religio, pois um dia esse tal ser chamado Buda disse coisas como:Tende compaixo. Dai e recebei com sinceridade, sem tomardes nada

    abusivamente. Nunca mintais, nem mesmo se a situao parecer des-culpar a mentira. Evitai os venenos do prazer. Estimai vossas mulherese no cometeis imoralidades. Cuidai de s alimentar sentimentos bonse de refrear as vossas iras. S assim se evitar a transmigrao da alma ese alcanar a paz eterna.

    Falvamos de religies diferentes e distantes e, no entanto, toiguais nas suas verdades mais profundas. Eu nada sabia dessa religio e

    ele nada sabia da minha, mas juntos compreendemos que ambas eramuma s. Como ns!

    Estou toda arrepiada.

    sinal que esta verdade tambm te pertence.

    to estranho que esses ensinamentos sejam semelhantesaos de Cristo, no ?

    Talvez no seja assim to estranho, Sara, pois a verdade

    uma s. O que estranho Cristo ter morrido na cruz por causa deuma verdade que outros ensinaram tranquilamente.

    Mas isso nada tem de estranho! disse eu, contrapondoaquela sua afirmao. O seu sacrifcio a essncia daquilo em queacredito. atravs desse sacrifcio que o mundo poder um dia alcanaro reino dos cus.

    Mas todos aqueles que professam essa doutrina do Oriente

    tambm alcanaro um dia o reino dos cus e, no entanto, Buda no foisacrificado.

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    Se certo que a verdade uma s, como tu mesmo dizes,a forma de a professar ter que ser diferente porque diferentes so as

    culturas e os povos. Para alm disso, o sacrifcio de Cristo foi para comtoda a humanidade, incluindo aqueles que nada sabem dos seus ensina-mentos.

    E esses a quem tu chamas apstolos, tambm so seres divinos?

    No sorri. Os apstolos foram homens como ns,escolhidos por Cristo, para darem continuidade sua misso. De todosdestaco o principal desses apstolos, aquele que o mestre mais amava:Madalena, que tambm foi sua companheira. Ela tambm foi mestrecomo Jesus e um ser por quem tenho uma profunda devoo. Foi elaquem lanou os outros apstolos na sua misso depois que o mestrepartiu. Era um ser de grande sabedoria. Em todos, no entanto, apesarde no serem divinos, habitou o Esprito Santo desde o dia do Pente-costes.

    E que dia esse?

    um dia festivo em que se celebra as colheitas do trigo, rea-lizando-se cinquenta dias aps a Pscoa. Para os judeus, o dia em queMoiss recebeu as tbuas da lei. Foi nesse dia que, estando os apstolosreunidos no templo de Jerusalm, algo de estranho chegou junto deles.Tinha o rudo do vento, como se fosse uma tempestade, e a forma delnguas de fogo que se dividiam sobre os apstolos, pousando em cadaum deles. Nesse mesmo instante, todos sentiram uma fora estranhaque os preencheu, saindo ao encontro da populao. Apesar de a cidade

    estar repleta de estrangeiros, quando eles falavam cada um ouvia na suaprpria lngua.

    E era o apstolo Paulo, que tantas vezes citas, o chefe dessegrupo de homens?

    No! Paulo um caso especial. Ele no fazia parte dessencleo que acompanhou Jesus. O lder sempre foi Madalena, algo quesempre incomodou os outros apstolos, ao ponto de se ter criado uma

    segunda faco liderada por Pedro que seguiu um caminho diferente. E porqu esse incmodo em relao a Madalena?

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    que Madalena, para alm de ter sido a companheira deJesus, foi tambm o ser que mais compreendeu a sua mensagem e isso

    atraa a inveja dos outros apstolos. Muitos dos Evangelhos relatam-nacomo algum que questionava permanentemente o mestre com per-guntas elaboradas e reflexes sobre os ensinamentos, algo que sempreincomodou os outros apstolos que no tinham uma compreenso toabrangente que lhes permitisse penetrar fundo na mensagem. Exceptu-ando Joo, que era o mais evoludo daquele grupo. E aqui comeou aser gerado esse incmodo nos apstolos que tinham cimes desta ascen-dncia de Madalena. Foi ela que os lanou na sua misso depois de o

    mestre ter partido e foi ela, tambm, quem fundou as nossas primeirasigrejas. Sinto uma ligao profunda com este ser, Dionsio. Como se asua misso fosse um pouco a minha misso tambm.

    E consensual essa viso que tens dela nas vossas comunida-des, sendo uma mulher?

    Infelizmente, no. A maioria tem dificuldade em aceitarMadalena como a principal dos apstolos e aquela que mais sabia dosensinamentos do mestre. So poucos, hoje, os devotos de Madalena eexistem alguns que tentam denegrir a sua imagem, mas eu estarei sem-pre pronta para a defender, mostrando que os Evangelhos, como o deMaria e o de Filipe, comprovam a sua verdadeira natureza.

    E esse Paulo, quem foi?

    Paulo era um fariseu fantico, que perseguia os cristos, atao dia em que Cristo lhe apareceu no caminho para Damasco e lhe per-guntou porque que ele o perseguia. A partir de ento Paulo tornou-se

    um dos apstolos, viajando pelo mundo em louvor de nosso mestre. E os outros tambm partiram pelo mundo?

    Sim. Mas enquanto os outros falavam aos judeus, Paulo fala-va a todos os homens. A sua misso era converter os gentios... no fundo,todos os povos da Terra.

    Ouvi ento o tilintar da chave na porta da cela. Por momentossustive a respirao, aguardando na expectativa de ser levada para mais

    uma sesso de chicotadas ou, pior ainda, de volta s catacumbas. Pre-feria que o meu corpo fosse rasgado pelo chicote a ter que deix-lo. Eleera agora a razo que me alimentava na esperana de um dia estarmos

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    juntos numa vida em comum. Partir era morrer pela metade. Quandoa porta se abriu, um enorme suspiro aliviou a tenso acumulada. Era

    apenas um soldado com a comida. Porque ser que nunca mais me vieram buscar? pergunteidepois do soldado ter sado.

    Talvez se tenham esquecido.

    No acredito! O carcereiro no pessoa de se esquecer.

    Ento ests a ser protegida pelo teu Deus.

    Sim. Tenho que agradecer esta bno.

    Enquanto comamos, tentei compreender aquela fora e aquelaalegria que me preenchiam desde a primeira vez que ouvi a sua voz. Eracomo se j tivesse vivido aqueles momentos... mais estranho, ainda, erater a certeza de conhec-lo, embora nunca nos tenhamos encontradoantes.

    Sara!

    Sim, Dionsio.

    No tens a sensao de j ter vivido tudo isto?No consegui conter o riso perante aquela estranha coincidn-

    cia. Era como se pensssemos por uma s mente, como se em ns habi-tasse uma s conscincia.

    Estava a pensar nisso mesmo, sabes?

    A srio!

    Sim. Mas mais estranho que isso ter a certeza de conhecer-te.

    Talvez conheas de outras vidas.

    De outras vidas? perguntei confusa.

    que alguns povos do Oriente, se no mesmo todos, acre-ditam que a existncia se processa ao longo de vrias vidas. Cada vida uma etapa de uma longa caminhada, terminando com a salvao.

    No compreendo isso que dizes, Dionsio. Como podemoster vrias vidas? A vida uma s.

    Nem eu mesmo sei se acredito. Mas um pensamento agra-dvel de se ouvir.

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    Eu acredito na ressurreio, mas no para voltar a este mun-do. No faria sentido.

    E se no herdares o cu depois da morte? Vou para o inferno.

    E j pensaste o que ser o inferno? certamente um lugar de grande sofrimento.

    E poder haver lugar de maior sofrimento que este mundoonde vivemos.

    O que queres dizer com isso? perguntei.

    Que talvez o inferno seja regressar. No! uma ideia estranha, essa!

    Eu no estou a tentar legitim-la, Sara. Apenas tento com-preend-la.

    E que explicao tens para o facto de parecer que j vivemostudo isto?

    Ah! Essa uma explicao pessoal.

    Qual? Que todos ns temos um destino. Um destino ao qual

    no estamos vinculados, pois podemos exercer o nosso livre-arbtrio.No entanto, quando regressamos de volta ao trilho desse destino, lem-bramo-nos dele como se j o tivssemos vivido, pois fomos ns que oescolhemos antes de descermos a este mundo.

    Queres dizer com