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!Museus,!lugares!de!morte!e!de!resistência:!a!estética!de!Hegel!e!as!
vanguardas!artísticas!!!!
Verónica!Inês!Manguito!da!Costa!Rodrigues!!
!!!!
!!!!!!!!!!!!!
!
Novembro!de!2017!
!Dissertação!de!Mestrado!em!Cultura!Contemporânea!e!Novas!
Tecnologias!
!
Dissertação apresentada para cumprimento dos requisitos necessários à obtenção do
grau de Mestre em Cultura Contemporânea e Novas Tecnologias, realizada sob a
orientação científica do Professor Doutor José Augusto Bragança de Miranda
!
MUSEUS DE ARTE, LUGARES DE MORTE E DE RESISTÊNCIA – A ESTÉTICA
DE HEGEL E AS VANGUARDAS ARTÍSTICAS
Verónica da Costa Rodrigues
RESUMO
Afirmar que o museu subtrai à arte a sua autenticidade implica olhar para a história e para a cultura
como esferas separadas na quais a obra de arte é colocada no momento de produção – aí e apenas aí a
arte encontra a sua essência – e portanto olhar para a arte como habitante e não produtora de
circunstâncias históricas. Perguntar pelo papel da arte – e do museu – na história, levar-nos-á quase
sempre a pensar na grande questão que nos últimos séculos alimenta os debates em relação a essa
figura a que chamamos cultura. Será da cultura a função de produzir enunciados ou apenas de
conservá-los? A presente investigação debruçar-se-á sobre a instituição do museu de arte - do século
XVIII aos dias de hoje – como fazedora de narrativas culturais e históricas, para as quais a estética de
Hegel, ela própria museal, funcionará como simultâneo ponto de partida e de chegada.
PALAVRAS-CHAVE: Hegel; museu de arte; Iluminismo; avant-garde; estética; Marcel
Broodthaers;
!
ART MUSEUMS, PLACES OF DEATH AND RESISTANCE – HEGEL’S
AESTHETICS AND THE ARTISTIC AVANT-GARDE
Verónica da Costa Rodrigues
ABSTRACT
To say that the museum detracts from the authenticity of the artwork relies upon regarding history and
culture as two separate spheres in which the artwork is positioned at the moment of production – only
there can art retain its essence - hence this means looking at art as inhabitant of historical
circumstances, rather than a producer of them. To ask about the role of art historically as well as that
of the museum, will almost always lead us to the old question that in past centuries has fueled debates
on that figure that we now call culture. Does culture produce something, or is its task simply that of
preserving what something/someone else has produced? Our investigation examines the institution of
the art museum as a cultural and historical narrative maker from the 18th century to the present days.
Hegel’s Aesthetics, museal in its own right, will serve as both the departure and arrival point for our
analysis.
KEYWORDS: Hegel; art museum; Enlightment; avant-garde; aesthetics; Marcel
Broodthaers;
!
ÍNDICE
Introdução 1
Hegel, filósofo da arrière-garde 6
Taxonomia do Museu de Arte 19
1. A Revolução do Museu, Museu como objecto revolucionário 20
2. Museu de Arte como espaço de representação 27
Museus e seus Críticos 36
1. Quatremère de Quincy 37
2. Martin Heidegger 41
3. Theodor Adorno 47
Do paradigma do Altes Museum à galeria de arte contemporânea 56
1. Altes Museum 57
2. Para além do século XIX, os artistas e o museu 66
3. O exemplo do Musée d’art moderne de Marcel Broodthaers 80
Conclusão Error! Bookmark not defined.
Bibliografia Error! Bookmark not defined.
! ! 1
Introdução
“Das estátuas sobraram apenas pedras, abandonadas da sua alma, tal como os hinos são agora
meras palavras das quais a crença se desprendeu (...) O destino não restaura o mundo das
obras de arte [Antiga], não nos oferece a Primavera e o Verão da vida ética na qual brotaram e
amadureceram, se não uma recordação velada desse mundo”1
É já no excurso final da última secção do penúltimo capítulo da Fenomenologia do
Espírito2 a que G. W. F. Hegel chamara Religião Revelada [Die offenbare Religion], que
encontramos estas palavras. Escolhê-las para abrir a nossa investigação não terá sido fortuito,
antes de qualquer outra coisa porque Hegel será a figura central deste projecto, funcionando
como estrela polar que orientará mais ou menos manifestamente os argumentos que
propomos. Porque estranhamos e nos entristece que Hegel funcione não raras vezes como
figura de passagem nos cursos de filosofia em Portugal, onde as traduções são escassas e nem
sempre rigorosas, nome marginal nos programas, vítima quase certa da duração dos
semestres, reduzido a conceitos operacionais e interpretações pobres. Não sendo nosso intuito
transformarmos esta investigação num manifesto pela leitura de Hegel, afinal, não estamos
também nós em capacidade de lhe fazer devida justiça, aproveitaremos, todavia, a
oportunidade que aqui se abre para lembrar a riqueza extraordinária do ideário hegeliano para
as filosofias da sensibilidade, para a estética e teorias da arte e, claro está, para pensar o
museu. Em segundo lugar, observamos que sobre a problemática concreta da museificação –
o nosso eixo fundamental de análise - dificilmente encontraríamos na obra de Hegel palavras
mais incisivas que estas; na verdade, alusões àquilo que aqui nos referimos por problemática
da museificação, são, na obra de Hegel, dispersas e relapsas a sistematizações. Em terceiro
lugar, se encontramos neste parágrafo uma oportunidade para pensar o transmutar do tempo e
do espaço que a museologia abre na arte, a escolha de palavras, lembrando-nos aquelas dos
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!1 Trad livre do inglês “The statues are now only stones from which the living soul has flown, just as the hymns are words from which belief has gone. (…) So Fate does not restore their world to us along with the works of antique Art, it gives not the spring and summer of the ethical life in which they blossomed and ripened, but only the veiled recollection of the actual word.” in Hegel, Phenomenology of Spirit, pp. 455 2 Por razões económicas referir-nos-emos, doravante, à Fenomenologia do Espírito pelo acrónimo PdG [Phänomenologie des Geistes] 2 Por razões económicas referir-nos-emos, doravante, à Fenomenologia do Espírito pelo acrónimo PdG [Phänomenologie des Geistes]
! ! 2
críticos dos primeiros tempos dos museus, serve ainda como portal para a grande questão que
alimentou os cépticos do museu nos últimos dois séculos – a des-espiritualização da arte no
mundo moderno, para a qual a cultura dos museus e salas de espéctaculo contribuiu
fatalmente. O que nos interessa verdadeiramente aqui, é o modo como uma mesma premissa,
aquela que Hegel tão belamente identifica nas linhas que seleccionámos, foi simultaneamente
lâmina e gume daquilo que se tem escrito sobre os museus ao longo dos séculos. Que o museu
abre na arte um novo capítulo, que a mundifica e que a torna livre ou então que a furta, lhe
retira a alma, a aura, a autenticidade ou o significado, por estes estarem imbuídos no contexto
de produção. Nuns e noutros – antecipemos desde já o crivo que nos guiará nos seguintes
capítulos - encontramos essa ideia de que o objecto de arte, assim que entra no museu,
permanece um objecto belo ao qual foi subtraído o espírito do seu tempo, ausência que
significa perda e, em última instância, morte ou, por outro lado, progresso e libertação. Na
verdade, o espírito do destino que Hegel evoca na PdG, como aquele que nos dá a ver as
obras de arte antiga, oferece-nos muito mais que a vida ética e o mundo do povo que as criou,
aquilo que aqui traduzimos por recordação velada [Erinnern], corresponde justamente à
substância do espírito consciente de si como espírito. Será então essa des-espiritualização da
obra de arte (conceptualizada pelo pensamento filosófico e exposta em museu) que indicará,
em Hegel, o estado de maturação da consciência, agora liberta das formas arcaicas de
projeção totémica. Se a arte deixou de ser vital a partir do momento em que passou das mãos
dos padres para as dos curadores, tal não é incoincidente, e significa, concomitantemente, que
o sujeito filosófico se tornou então capaz de transpor a distância entre realidade e categorias.
Passamos portanto a poder falar num mundo da arte, à medida que o corpo da arte, o
Kunstkörper lacerado do qual nos fala Goethe na introdução à primeira publicação da
Propyläen, foi sendo desmembrado e seus órgãos enviados e preservados em galerias ao redor
do mundo. O primeiro capítulo constituir-se-á então como uma aproximação – assumindo
desde já o risco de um projecto condenado à incompletude – àqueles que consideramos serem
os traços fundamentais da estética de Hegel que localizara o início da arte na “(…)tendência
da imaginação para se separar da natureza a fim de se orientar para a espiritualidade"3, ou
seja, na cesura originária da qual emergiu a cultura.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!3 Trad livre do inglês “(...) the urge of imagination consisted in striving out of nature into spirit” in Hegel, Aesthetics: Lectures on Fine Art I, pp. 517
! ! 3
No segundo capítulo - de todos o mais especulativo – procurar-se-á definir, pelo
menos em termos de fronteiras, o nosso objecto de investigação. Primeiro, o museu de arte
como instituição e não esses outros museus de nascimento paralelo e história igualmente
interessante; segundo, o museu de arte oitocentista, projectado no pensamento do Iluminismo
e consumado no Musée Central e não aquelas que podemos considerar terem sido as suas
formulações embrionárias, os wunderkammer e os kunstkammer, os studiolis ou os cabinets
de curiosités. Para daí ensaiarmos uma caracterização operacional da instituição do museu
como dispositivo ou aparelho, partindo de uma leitura da genealogia foucaultiana – que tem,
aliás, animado boa parte das críticas contemporâneas à museologia – para a partir dela nos
demarcarmos daquelas teorias que, ao optarem por uma concepção heterotópica do museu (a
par de outras instâncias como o barco ou o cemitério) se recusam a compreender que o
museu, ao operar essa mumificação dos objectos de arte, cria aos modernos as condições de
possibilidade de estabelecimento daquilo a que se pode chamar – pelo acoplar de dois
conceitos aos quais Hegel se dedicara - uma invenção da descoberta – e, portanto, que se no
museu a obra de arte morre, experimenta ainda uma espécie de parusia.
Lidas em conjunto, estas duas secções que perfazem o segundo capítulo, sugerem
aquela que será umas das premissas orientadoras da nossa investigação – que entre o museu
contemporâneo e o seu congénere oitocentista, encontramos curiosos correlactos que, com
mais ou menos força, têm resistido às múltiplas transformações que ocorreram quer no campo
da arte quer naquele das disciplinas que a estudam – a história e a filosofia, ou, a bem dizer, a
história da arte e a estética – o que nos permite pensar a figura do museu no contemporâneo
não como essencialmente disjuntiva mas quase como que consequencial daquela figura que
nasceu nos alvores da modernidade. É certo, como não poderia deixar de ser, que a expansão
histórica e territorial do museu – da restrita concepção oitocentista à sua disposição actual –
se dá em concordância com um conjunto de factores políticos que orientam para uma era
global (da qual advém, em primeiro plano, a desconfiança de alguns filósofos mais
pessimistas ou conservadores, aos quais dedicaremos um capítulo). Todavia,
epistemologicamente, o museu parece ter resistido a alterações profundas, mantendo-se
sempre como um espaço de ordenação das coisas do mundo e da representação e
compreensão do mundo ele próprio - as exposiçõs, as coleções, as trocas dumas e doutras,
revelam justamente essa recontextualização do global(izante) no local(izado).
! ! 4
Afirmar a capacidade do museu em permanecer não significa, porém, colocar o museu
junto das forças estáticas da tradição - os museus foram-se metamorfoseando, nalguns casos
para além das próprias características que os tornam reconhecíveis enquanto tal - nem
rebuscar o mesmo método historiográfico contra o qual Foucault se insurge. Há, todavia, algo
de suspeito quando a mesma narrativa ressurge ao longo dos tempos. Não há hoje quem
escreva sobre arte ou sobre estética do mesmo modo que se escrevia há meio século,
surpreende-nos todavia, que assim se continue a escrever sobre os museus – podemos então
antecipar a interrogação - não estará na origem disso a estabilidade essencial da instituição do
museu não apenas nos últimos cinquenta mas nos últimos duzentos anos? Atacado nos
areópagos da esquerda contra a direita, do conservadorismo e do avant-garde, dentro e fora
dos seus limites propriamente concretos, o museu soube resistir a estas investidas. No terceiro
capítulo, face a uma linhagem de críticos tão longa e tão diversa que teve início no justo
momento em que foi edificado o primeiro museu de arte e não parou de engrossar em número
e em género até aos dias de hoje, optámos pela selecção de três teóricos que consideramos
particularmente expressivos – Quatremère de Quincy, Martin Heidegger e Theodor Adorno.
O quarto e final capítulo procurará constituir-se como síntese das aproximações mais
ou menos hesitantes que foram sendo feitas nos corredores da investigação, da relação entre a
estética hegeliana e o primeiro museu de arte de Berlim, à resistência do museu do pré e pós-
guerra frente às empreitadas vanguardistas. Sabemos que a história da arte é tanto a história
das obras de arte, como a dos seus artistas, dos seus museus, dos seus espaços de acção, dos
seus teóricos, dos seus críticos, dos seus curadores, de uma estética, de várias estéticas, ou do
fim de todas as categorias de estetização. Curiosamente, encontramos quase sempre ausentes
– não porque irreconhecidos, mais porque tácitos ou adquiridos – os mecanismos através dos
quais a história se enforma, as ligações mais ou menos explícitas entre os enunciados que
apresentávamos há pouco, os modelos – porque vários – pelos quais se constrói a narrativa da
história da arte. Uma obra de arte, quando se abre ao público enquanto tal, nunca o faz de
modo solitário – a sua colocação espacial e temporal obedece a determinadas limitações
históricas ou regras de apresentação, talvez capazes de formar, por direito, a sua própria
categoria histórica. Por outro lado, o que nos é mostrado sobre um passado sob a forma de
história, ou, se quisermos, de memória colectiva, diz-nos tanto sobre uma cultura como aquilo
que, por trás dela, se esconde. Será então curioso debruçarmo-nos sobre uma vertente
! ! 5
constituinte da cultura que tem resistido às reestruturações históricas. Estaremos então perante
um mise-en-abyme monístico, onde se confundem fins e meios? Se o fim da arte deixa de
radicar em algo que a transgride então qual será o destino da arte com fim em si mesma? Tal
questão servir- nos-á para que se torne possível operar o salto lógico – tão inortodoxo quanto
necessário – e explorar o hegelianismo, mais ou menos assumido, do Musée d’Arte Moderne,
Departmente des Aigles de Marcel Broodthaers – uma ficção que permite apreender a
realidade e, ao mesmo tempo, aquilo que ela esconde4. Justamente por considerararmos que
este museu-posto-em-obra, forma um universo que cartografa, à maneira hegeliana, a
sociedade sob a forma de um museu de arte – as secções (Littéraire, Folklorique,
documentaire, cinéma, financière, des Figures, Publicité, XIXème Siècle (bis), XVIIème
siècle, d’Art moderne) feitas artefactos ou objectos, ocupam uma área cinzenta entre os
artefactos culturais e culturalmente determinados e o museu como instituição. Noutros
termos, o musée de Broodthaers leva-nos a questionar se haverá, afinal, um campo neste
mundo contemporâneo a que possamos chamar fora-do-museu.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!4 Trad livre do inglês “‘fiction allows us to grasp reality and at the same time what it hides” in Marcel Broodthaers: Cinéma, Tapiès Foundation, Barcelona, 1997, pp. 227
! ! 6
Hegel, filósofo da arrière-garde
Os problemas levantados pela estética de Hegel dificilmente serão subsumidos a uma
linguagem económica e facilmente escapam à mais atenta das leituras. Pela dimensão deste
projecto optámos por segui-los com cautela, considerando, por outro lado, que subtraí-los a
uma análise como esta, constituiria um acto de pena maior. Deste modo, as incursões estéticas
de Hegel, propriamente aquelas que encontramos nas suas Lições de Estética (1818-1829)
serão o objecto deste capítulo, o primeiro do nosso projecto mas que convida, na leitura, a
uma perspectiva ante-capitular.
Lembremos que a estética de Hegel encontrou, como de resto, toda a sua obra – que
fora considerada prosaica e mesmo deletéria para a filosofia da religião mas ainda assim
excessivamente cristã para o marxismo - um percurso tumultuoso entre as filiações
arrebatadas e as mais acérrimas condenações. Há que saber separar as palavras de Hegel
daquelas dos seus intérpretes, sobretudo porque os seus conceitos, digeridos pela glosa do
escárnio ou da paixão, surgem-nos um pouco por tudo aquilo que se produziu sobre arte no
século e meio que se seguiu à sua morte. Podemos mesmo – sem substancial pena científica -
forçar a premissa ao máximo afirmando que, depois de Hegel, raras, se algumas, foram as
filosofias da sensibilidade que sobreviveram sem o selo mais ou menos explícito ou mais ou
menos sincero, do hegelianismo. Kierkgaard5, o grande anti-hegeliano mas também
Heidegger, que de Kierkgaard cedo se proclamou herdeiro, são curiosos exemplos disso,
como o são também as incursões estéticas de Adorno e Benjamin, ou, noutra nota, as de
Deleuze e Merleau-Ponty, Derrida e Bataille (às quais não estamos em capacidade de dar a
merecida atenção). Todavia, tal não bastou para que Hegel se tornasse um favorito entre os
pensadores da arte no século XX, frente às extensas e prolixas teorias da arte que, à luz da
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!5 Jon Stewart, em Kierkegaard’s Relation to Hegel Reconsidered, oferece-nos uma das mais detalhadas argumentações histórico-filosóficas contra a premissa dominante na interpretação dos textos oitocentistas que traça uma barreira de betão entre a filosofia de Hegel e a de Kierkegaard, caracterizando-as como antitéticas em sua natureza. Afirmando, ainda, que o anti-hegelianismo de Kierkegaard se dirigiu menos a Hegel que aos seus intérpretes dinamarqueses como Hans Lassen Martensen ou Johan Ludvig Heiberg.
!
! ! 7
Crítica da Faculdade do Juízo, oferecem uma análise do belo e do gosto no percurso da arte
até ao contemporâneo. Afinal, a estética de Kant, para além de uma das mais completas,
ponderadas e frutíferas, oferece-nos uma definição do belo que é de tal modo abrangente –
sem ser por isso abstracta – que o seu potencial de aplicação é, se não infinito, pelo menos
infinitamente actualizável. O jogo livre que se dá entre a faculdade da imaginação e a do
conhecimento, que Kant localiza na origem do nosso prazer pelo belo, constitui-se como
invólucro de amplitude imensa no qual cabem os modos como experimentamos esteticamente
as cataratas do Niágara, uma vista área, a Vitória de Samotrácia, o Édipo Rei ou o Cristo
Amarelo. A estética de Hegel, na sistematização do desenvolvimento das artes no curso da
história, no próprio carácter histórico e transitório que atribui à arte, ao que se soma o seu
conservadorismo clássico e prelação pela música e poesia de entre todas as formas artísticas,
deixou pouca margem de desenvolvimento e relação com as novas práticas. Não significa
isto, porém, que se tenha deixado de ler Hegel, escrever sobre Hegel, ou pensar a
possibilidade de abarcar formas artísticas como o cinema, a fotografia, a pintura abstracta ou
mesmo a performance sem abandonar a estética hegeliana, ou pelo menos sem cair no abismo
da especulação absoluta. Os exemplos que demos há pouco a propósito da marca mais ou
menos assumida de Hegel nas estéticas que lhe sucederam, são cabeças de uma extensa lista
que nos prova justamente o contrário e à qual poderíamos juntar pelo menos uma dezena de
autores contemporâneos – Eva Geulen, Beat Wyss, Stephan Houlgate, Robert Pippin, Arthur
Danto, Jason Gaiger, ficando a lista incompleta e restrita à filosofia e teoria da arte – aos
quais regressaremos intermitentemente.
Na verdade, o que a estética de Hegel nos oferece de absolutamente original é
simultaneamente aquilo que nela há de menos avesso a olhar a arte contemporânea: o departir
do belo de que se ocupava o Idealismo desde a terceira crítica de Kant – o belo dos gestos, do
sol, das montanhas, da fauna e flora de lugares distantes – em relação ao belo construído pelo
homem, como aparência sensível da ideia (dassinnlich Scheinen der Idee) ou do espírito no
retorno da ideia a si mesma. Hegel refere-se à arte como um dos modos de aparecer do
espírito absoluto e portanto como veículo de educação do humano sobre si mesmo, sobre o
que significa ser livre e auto-determinado – e, neste sentido, quando Hegel localiza a função
da arte no “modo de trazer às nossas mentes e expressar o divino, os mais profundos
! ! 8
interesses da humanidade e as mais compreensíveis verdades do espírito”6, compreendemos
que o que está em causa na arte não é o representar da divindade, mas a sua expressão. Por
seu lado, a natureza é, em si, sem-espírito [geistlos], de modo a que qualquer representação
estética de um tema natural, lhe será superior. É justamente nesta distinção – a saber, a beleza
da arte é superior [höher] à da natureza7 e a arte é tão mais bela quanto mais afastada estiver
do mundo natural e seus fenómenos8 - que encontraremos a primeira clave hermenêutica que
nos permitirá compreender noções como a de aufheben (nas suas boas ou más traduções,
ratificações e polémicas) ou o próprio sistema categorial da estética hegeliana para o qual a
arte romântica, que não nos oferece a beleza helénica dos panejamentos perfeitamente
drapejados sobre corpos que não são se não a própria forma do espírito, está, por comparação
à arte clássica, mais perto da verdade. Isto é, que beleza e verdade, embora idênticas, não são
uma e a mesma coisa, “Nada poderá haver de mais belo” que a arte clássica, todavia, “Há algo
mais elevado que a bela aparência do espírito na sua forma imediata e sensível”9. O que Hegel
nos diz sobre a história mas que, dada a natureza do seu sistema filosófico, podemos aplicar à
arte, é que o nível de entendimento de uma civilização pode ser colocado numa relação quase
directa com o seu estado de progresso e liberdade – quanto mais desenvolvido este for, mais
próxima está uma civilização da liberdade. Na verdade, a abordagem hegeliana da arte e da
beleza estão de tal modo imbuídas na totalidade do seu sistema filosófico, que falar de uma
coisa sem a outra (ou julgar compreender uma, sem a outra) é quase impossível. Uma figura
fundamental à leitura da sua estética é a figura do ser [Sein], compreendido como um
processo em direcção à auto-consciência e ao regresso a si como espírito [Geist]. O processo
histórico obedece à mesma racionalidade dialética do ser e, portanto, não pode ser antecipado
ou controlado pelos seres humanos, embora se jogue e se dê através das suas acções. Trata-se
de pensar a história como esfera na qual os seres humanos habitam e agem, inconscientemente !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!6 Trad livre do alemão “(…) das Göttliche, die tiefsten Interessen des Menschen, die umfassendsten Wahrheiten des Geistes zum Bewußtsein zu bringen und auszusprechen” in Hegel, Vorlesungen über die Ästhetik I, pp. 21; 7 Trad livre do alemão “daß das Kunstschöne höher stehe als die Natur” in Hegel, Vorlesungen über die Ästhetik I, Bd.13, S.14 8 Entenda-se aqui, afastado da natureza por afastado do terrestre, na verdade, Hegel considera a mais alta das artes aquela capaz de trazer o espírito aos sentidos como o modo de aparecer da natureza. A indeterminabilidade do belo natural respeita a um estado originário da sensibilidade, pertencente à dimensão do indizível ou do impensável. Neste sentido, podemos dizer que a categoria do belo natural que Hegel rejeita na sua estética não se localiza num campo necessariamente extra-estético mas emerge da distinção fundacional entre natureza e cultura da qual emerge, entre outras coisas, a possibilidade da experiência do belo. 9 Trad livre do inglês “Nothing can be or become more beautiful (...) Yet there is something higher than the beautiful appearance of spirit in its immediate sensuous shape (...)” in Hegel, Aesthetics: Lectures on Fine Art I, pp. 517
! ! 9
aprofundando o conhecimento de si mesmos, e a sua progressão como reconhecimento
daquela que será a sua vocação última – a liberdade. O primeiro momento será o do espírito
subjectivo, do em-si da criação e o seu campo o das paixões humanas; o segundo, o da
existência ou da materialização e portanto o do espírito objectivo por-si, do edifício do Estado
e das instituições; o terceiro, o espírito absoluto, fruto da síntese de ambos e liberto das
querelas da finitude, o momento da identidade do ser em-si e para-si – quando o ser se torna
objecto do pensar. Deste modo, o conteúdo da arte corresponde ao estágio de
desenvolvimento da história a que pertence, e por isso será natural que no curso da história a
arte tenha assumido diferentes modelos de relação com a liberdade; em Hegel estes modelos
são três e sucedem-se cronologicamente, em simbólico, clássico e romântico. À arte simbólica
corresponderá o espaço-tempo da Pérsia, da Índia e da civilização egípcia, para o qual a
arquitectura terá sido a forma de arte capital, caracterizada por uma inadequação entre forma
e conteúdo, pela ideia abstracta da liberdade e domínio da natureza e suas matérias-primas. À
clássica, a Grécia Antiga e o primado da escultura, onde se alcançara a plena comunhão entre
a forma sensível e o espiritual, noutros termos, a humanização do divino. À romântica, a
Europa e o cristianismo, da Idade Média ao contemporâneo de Hegel, onde pinturas, árias e
poemas – correspondendo cada uma destas formas a um estágio específico da marcha do
espírito - tornam a interioridade concreta o seu conteúdo.
Pensemos, por agora, nas três formas de arte plástica, arquitectura, escultura e pintura.
A forma que a arquitectura, como primeira realização da arte, dá ao espírito, é, diz-nos Hegel,
uma forma imperfeita – embora seja produto da liberdade humana por se fazer da
transformação da matéria a partir de preceitos matemáticos, e, portanto, artificiais - o
resultado é demasiadamente abstracto, por radicar na ideia da totalidade como símbolo (onde
as duas metades estão separadas uma da outra), e deixa transparecer um desequilíbrio entre o
sensível e o espírito, ofuscado pela colossalidade da pedra. Ao contrário da escultura, que
retira da natureza a matéria em bruto e a transfigura numa forma que é explicitamente aquela
do espírito, na medida em que Hegel considera que a forma material da liberdade é, na terra, a
do corpo humano – o espírito impõe-se à pedra. Não será então surpreendente que Hegel
coloque o centro da arte [der Mittelpunkt der Kunst] na sua forma clássica, da qual a arte
como tal se aproxima ou se afasta ao longo dos séculos. Do mesmo modo que a arte clássica é
o centro do anel axial em torno do qual o todo da arte se organiza, a escultura será o centro da
! ! 10
arte clássica. Aí e só aí, o espírito perpassa pela arte - arte é a religião – aí e só aí, a arte
cumpre a sua vocação máxima. O caso da pintura é extraordinariamente curioso, no modo
como Hegel a trata por relação à escultura (clássica) e à música, “(...) a pintura não deve
introduzir no seu domínio senão o que, contrariamente à escultura, à poesia, à música, ela é
capaz de representar através das figuras e formas exteriores(...)”10, assim, o objecto pintado é
como que um espelho, uma imagem em si de algo interior, que se apresenta como interior,
isto é, como subjectivo. Noutros termos, é da pintura a função de lançar uma ponte entre as
representações inadequadas da exterioridade e interioridade pela música e pela escultura, e
por mais externa e concreta que seja a aparência visual na pintura, a própria imagem
permanece espiritual e não concreta, “É a vida interior do espírito que se compromete a
expressar-se como interior no espelho da exterioridade”11. A beleza romântica que
encontramos nas obras de van Eyck, Raphael ou Coreggio, não assume, assim, a forma
idealizada do corpo humano mas é um recorte dos seus sentimentos internos, não é portanto
pura beleza – como a da escultura grega – mas aquilo que Hegel chama “beleza da
interioridade”12 [Schönheit der Innigkeit]. Todavia, o período romântico encopassa não só a
era de Raphael – e aquela que lhe fora imediatamente anterior – mas os dois séculos
seguintes, prenhes em modificações estruturais no modo de relação da arte com o humano.
Ora, na arte cristã, na sua máxima forma, o que é revelado é a verdade íntima do espírito - isto
é, o espírito é recebido, tornado sensível, [versinnlicht] e o sensível é espiritualizado
[vergeistigt]. Encontramo-nos diante da ideia da encarnação e da crença de que Deus aparece
e pode ser incorporado esteticamente na forma humana. Nos termos de Hegel, “(…) a
imaginação Cristã poderá representar Deus na forma humana e a sua expressão do espírito,
apenas porque Deus se encontra completamente expresso como espírito”13. A particularidade
(Bestimmtheit) é, como foi, a ponte para a revelação. (die Bestimmtheit isto gleichsam die
Brücke our Erscheinung). Com o fim da Idade Média e o advento do protestantismo a arte –
no caso, a pintura - perde a proeminência na vida religiosa e cede o lugar à música, ao hino, à
poesia. Autónoma da religião, a pintura torna-se verdadeiramente secular e encontra o seu
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!10 in Hegel, Estética, Pintura e Música, Guimarães Editores, 1962, pp. 51; 11 Trad livre do inglês “It is the inner life of the spirit which undertakes to express itself as inner in the mirror of externality” in Hegel, Aesthetics: Lectures on Fine Art I, pp. 801-802; 12 vide Hegel, Aesthetics: Lectures on Fine Art, pp. 531; 13 Trad livre do inglês “(...) the Christian imagination will be able to represent God in human form and its expression of spirit, only because God himself is here completely known in himself as spirit ” in Ibidem, pp. 75
! ! 11
conteúdo na prosa da vida de todos os dias, já que a sua vocação deixara de ser a de fazer
aparecer o divino. Acrescentemos ainda que cada uma das formas artísticas tem os seus
recursos e limitações próprias – a arquitectura e a escultura, pela sua tridimensionalidade,
habitam o mesmo espaço que o observador; por seu lado, a pintura, também ela dependente
de um suporte material no qual imprime o seu conteúdo, não a pedra mas o pigmento, mas
que, sendo bidimensional, cria ela própria um espaço no qual não habitamos e que vale
justamente por essa descontinuidade com o mundo físico.
Recordemos que Hegel, contra o dualismo sujeito-objecto e o idealismo da coisa-em-
si como pura coisa, nos oferece uma definição da arte como aquilo que emerge do casamento
da forma [Gestalt] com o significado [Bedeutung] por um lado, e com o apresentar
[Darstellen] do significado em termos sensíveis, por outro. Noutros termos, é da arte a função
de trazer ao entendimento aquilo que de outra forma permaneceria velado. Este é, em todo o
caso, um casamento que merece uma atenção mais profunda, e cuja compreensão se
desdobrou quase sempre num impulso teleológico que nos abre na arte três cesuras
fundamentais: pré-arte, arte e pós-arte.14 O que observamos a partir desta decomposição das
formas históricas da arte é que essa tarefa ou destino da arte como enformar de um significado
cuja possibilidade de apreensão não é autónoma da expressão sensível, dá-se apenas no
enquadramento medial a que chamámos propriamente arte, para o qual os dois blocos que o
precedem ou sucedem – pré-arte e pós-arte – tendem a gravitar. Cesuras como esta, apesar de
essencialmente correctas (em relação à sistematização hegeliana das artes em simbólico,
clássico e romântico) e absolutamente úteis, arriscam a propagação infinita de meandros e
perfídias – afinal, nunca é tarde para lembrar a velha máxima de que os filósofos vivem ou
morrem pela mão dos seus intérpretes. Como já vimos, a aparência sensível [Scheinen] da
liberdade ou do espírito será aquilo a que Hegel chamará beleza – e por isso o artista não
escolhe fazer um objecto belo ou não, nem a relação do objecto artístico com a beleza tem
algo de acidental ou contingente, sendo, pelo contrário, pura condição de existência. A
consagração de alguma coisa como arte, advém, para Hegel, do pôr em obra do belo, e o belo
é algo que pede para ser experienciado, mais do que contemplado teoricamente.
Não sendo o nosso projecto o da análise da classificação hegeliana das artes, a não ser !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!14 Os termos remetem para interpretações do sistema hegeliano, entre as quais aquelas de Hans Belting ou Arthur Danto e protegem-nos, tanto quanto é possível, da parcialidade da escolha de uma, entre dezenas de designações possíveis.
! ! 12
por esse funil ou peneira a que aqui chamamos museu, consideramos justo lançar-lhe um
olhar, não tanto para as subdivisões a que nos referimos há pouco – a saber, simbólico,
clássico e romântico – mas para a hierarquização das artes a partir da forma-conteúdo. Ora, se
quiséssemos representar uma sistematização das artes à maneira hegeliana, seríamos tentados
a traçar uma linha cujo percurso iria do mais material ao mais espiritual, da arquitetura à
poesia, no qual a pintura, a primeira das artes românticas, assumiria um lugar intermediário,
para o qual um suporte tangível, não sendo existencial (como no caso da arquitetura ou da
escultura onde a arte é o suporte) é ainda necessário. Tal sistematização, embora correcta,
peca pelo mesmo simplismo com que alguns historiadores de arte olharam para a obra de
Hegel. Um olhar epidérmico diz-nos sobre esta escala que a lógica na qual opera não será
necessariamente extemporânea, afinal, a organização e validação das artes por suporte data da
antiguidade clássica e o século XIX já havia fixado a música como a mais alta das artes (e
mesmo antes disso, no Laocoonte, Lessing já previligiava a temporalidade da arte). O que está
aqui em causa não será, portanto, tanto o suporte no qual a obra de arte se enforma mas o
modo como esse suporte permite uma relação mais ou menos directa com o espírito. De um
modo que pouca justiça faz ao projecto hegeliano, podemos qualificar os três estados da arte
pela distância entre o conteúdo material e o espírito, onde o período simbólico é aquele no
qual as formas se sobrepõem ao espírito, o clássico sintetiza harmoniosamente uma coisa e
outra e no romântico o espírito perpassa, dominando a obra.
O termo-chave do qual nos temos vindo a aproximar será então o de espírito
absoluto15 e a lógica a da circularidade; espírito absoluto compreendido como síntese de um
passado realizado e rememorado num presente absoluto – que só ao sábio se revela, sendo sua
a tarefa de converter o material do espírito, puros pensamentos [reinen Gedanken], em
conceitos [Begriffe]. Na verdade, a circularidade dialéctica será a lógica motora da
fenomenologia de Hegel “O verdadeiro é o devir de si mesmo [das Werden seiner selbst], o
círculo que pressupõe e tem no princípio o seu próprio fim como seu objectivo final e que é
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!15 Pode dizer-se que em Hegel, Deus e espírito absoluto significam o mesmo mas as condições para o seu uso diferem. O espírito absoluto, diz-nos Hegel, é filosoficamente a mesma última realidade a que a veneração chama Deus e encontra-se por isso presente nos três modos de arte, religião e filosofia. Espírito absoluto é uma ideia religiosa na medida em que significa que os objectos da filosofia e da religião devem ser o mesmo. O uso do termo religião para Hegel surge para significar a realidade do espírito absoluto e para significar um modo particular de experienciar essa realidade.
! ! 13
efectivamente real apenas através da sua realização e do seu fim”.16 Como é sabido, a forma
do espírito absoluto que apresenta a verdade de modo mais límpido é, para Hegel, a filosofia;
tal não significa, porém, que outras formas menos articuladas do espírito sejam volvidas ao
redundante, pelo contrário. Os conceitos – a matéria-prima e o resultado da filosofia – nem
sempre foram em si suficientes para que o ser humano fosse capaz do entendimento último da
verdade. Hegel, assumidamente protestante, reconhece ter sido, a dada altura, a religião cristã,
o motor primário de compreensão, na medida em que a filosofia não era de entendimento
ecuménico, “É em termos de religião que um povo define aquilo que considera verdadeiro”17.
Todavia, conceitos e fé não nos oferecem ainda, sequer no seu conjunto, a mais alta
compreensão da verdade. Como seres concretos, cuja vocação última será a liberdade, os
seres humanos requerem uma expressão material que lhes permita apreender a verdade pelos
sentidos – a essa manifestação sensível da verdade/ ideia Hegel chamará beleza. E será
justamente daí que emerge o grande crivo entre a estética de Hegel e aquela de Kant a que
aludimos há pouco – se a beleza é a expressão da liberdade, isso implica que também ela seja
criada livremente pelos homens, excluindo-se desta condição tudo aquilo que encontramos na
natureza. A beleza é eminentemente estética, nela, conceitos e religião dão-se como
coordenadas cuja manifestação máxima se deu na arte helénica, onde se dá a pura expressão
do “(...) divino, os interesses últimos [Wahrheiten] da humanidade, e as mais compreensíveis
verdades do espírito.”.18 Terá sido justamente essa capacidade de representação puramente
estética do espírito que morreu, no momento em que a arte helénica foi substituída por outras
categorias histórico-artísticas. Isto é, que a arte clássica não só marca o advento da arte
completa em si mesma, como, ao alcançar o limite de possibilidades da arte, o ideal, menoriza
aquilo que lhe possa suceder. A verdade da arte não pode ser já articulada na arte mas só
através da filosofia, que permite relacioná-la com a consciente crítica moderna. A arte perdeu
o seu lugar central na cultura moderna mas a “ciência da arte” (Wissenschaft der Kunst) pode,
pelo menos parcialmente, preencher esse lugar. Importa, antes de avançarmos, recordar a
distinção fundamental entre representação (estética) da liberdade e apresentação da liberdade,
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!16 Trad livre do alemão “Es ist das Werden seiner selbst, der Kreis, der sein Ende als seinen Zweck voraussetzt und zum Anfange hat und nur durch die Ausführung und sein Ende wirklich ist.” in Hegel, PdG, pp. 23 17 Trad livre do inglês “It is in terms of religion that a nation defines what it considers to be true” in Hegel, Lectures on Philosophy of History, pp. 105 18 Trad livre do alemão “(…) das Göttliche, die tiefsten Interessen des Menschen, die umfassendsten Wahrheiten des Geistes zum Bewußtsein zu bringen und auszusprechen” in Hegel, Vorlesungen über die Ästhetik I, pp. 21
! ! 14
daquilo que significa ser livre – qualquer representação estética falha invariavelmente na
transmissão de conceitos e é justamente isso que faz dela estética. A compreensão clássica da
humanidade como individualidade múltipla e eminentemente livre, implicaria o transformar
do conflito cardeal entre humano e natureza num casamento harmonioso entre a
conceptualização humana e a natureza (teleologicamente estruturada), e o modo como os
gregos pensaram fazê-lo foi justamente através da arte. Quiasmaticamente, o que a arte
(clássica) dá a ver, são os próprios limites dessa concepção de liberdade, na medida em que a
solução que nos oferece é unicamente estética – a arte oferece a própria exegese, “A beleza
clássica contém internamente, em si, o significado da liberdade auto-suficiente [selbständig].
Não o significado disto ou daquilo mas o significado de si mesma e portanto as ferramentas
necessárias para se interpretar, isto é, o espiritual, que se faz a si mesmo como objecto para si
mesmo. É esta objectividade de si que contêm a forma externa e não o contrário; esta, idêntica
àquilo que lhe é interno, é por seu lado o significado de si mesma, conhecendo-se a si, aponta
para si.”19 Noutros termos, esta totalidade “sólida e simples” conduziu a um distanciamento
face ao conceito de espírito, e a arte clássica assim soçobra dando origem ao divórcio que
encontraremos no período romântico entre o ideal subjectivo e aquele da manifestação
exterior, desdobramento no qual o espírito adquire “(...) a consciência de ter em si mesmo o
seu outro, a sua existência enquanto espírito e de gozar a sua finitude e a sua liberdade”.20
Em todo o caso, esta morte da arte corresponde a um fim sem retorno, por mais voltas
que a história dê não existirá percurso conducente às alturas solitárias da arte clássica. E,
talvez por isso, na primeira tradução inglesa das lições de estética, na década de ’20 do século
XX, Osmatson tenha transformado aufheben, um termo riquíssimo no alemão, em morte
[death], abrindo um percurso de coloridos desvios semânticos que nas várias línguas
românicas e celtas transforma a observação de Hegel acerca da arte nos seus dias, numa tese
acerca da morte ou do fim da arte. Falamos, sem surpresa, da tese da dissolução do propósito
absoluto da arte, com que Hegel abre as suas lições quando observa que “a arte é, para nós,
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!19 Trad livre do alemão “Denn die klassische Schönheit hat zu ihrem Inneren die freie, selbständige Bedeutung, d. i. nicht eine Bedeutung von irgend etwas, sondern das sich selbst Bedeutende und damit auch sich selbst Deutend. Dies ist das Geistige, welches sich selbst zum Gegenstand seiner macht. An dieser Gegenständlichkeit ist auch die Form der Äußerlichkeit, die mit ihrer inneren Entsprechung verbunden ist, wobei auch ihre unmittelbare Bedeutung die Bedeutung ihrer selbst ist” in Hegel, Vorlesungen über die Ästhetik II, pp.13 20 Trad livre do inglês “(...) solid and substancial (...) cannot renouce his isolation and withdrawl into himself or tear himself free from this unsatisfied abstract inwardness” in Hegel, Aesthetics: Lectures on Fine Art I, pp. 66
! ! 15
coisa do passado”21. Olhar para esta observação, nas suas múltiplas variações no próprio
corpo das Vorslegen, obriga a uma certa prudência, quer a consideremos fulcro da estética de
Hegel, quer acidente acoplado à sua dialética para o qual contribuíram fatalmente as primeiras
traduções. As páginas de literatura analítica são, uma vez mais, copiosas e polissémicas,
datando as primeiras do mesmo Inverno de 1828 em que Hegel daria aquelas que viriam a ser
as suas últimas palestras na Universidade de Berlim. Como é sabido, Hegel não se refere
nunca a um fim ou a uma morte, diz-nos somente que algo é passado, está perdido ou
ultrapassado, noutros termos, que a arte se dissolveu. Estes processos ou momentos de
dissolução – encarados como exemplos de sublação no sistema hegeliano - correspondem a
intermeios entre dois períodos onde, por força da história, um passa a substituir o outro. E,
neste sentido, a arte não se dissolveu apenas uma e fatal vez, mas - entre simbólica, clássica e
romântica – ter-se-á dissolvido três vezes, sendo a última aquela em que a arte, subtraída da
sua imediaticidade, é substituída pela filosofia, pela história de arte, pela crítica e pela
estética. A entrada histórica da arte clássica e da arte romântica na sua compreensão filosófica
marcou o fim da essencialidade da arte. Amovida da sua união com a religião, a arte moderna
encontra o seu fim, continuando a existir apenas como arte, como produto do processo
cultural de secularização para o qual a arte passou a ser compreendida como história,
alcançando o oposto polar da Kunstreligion da Grécia Antiga, para a qual arte era religião,
mas distante também da arte religiosa da Idade Média. Alcançado o seu destino espiritual, a
arte entrega-se ao humano, a arte religiosa do passado passa então a bela aparência
desencantada pelo espírito, museu como casa das Musas, conclave privilegiado da educação
estética dos indivíduos modernos. Se nos perguntarmos se o que é passado é o carácter da arte
como objecto-existência, se o que se continuou a produzir após a conquista do mundo grego
no século IV a.c., já não é belo nem sequer arte, a resposta surge-nos clara – a arte continuará
a ser produzida e a cumprir a sua tarefa por milhares de anos. Lembremos ainda que a
observação de que a arte é coisa do passado, coincide com o advento da cultura dos museus e
salas de espéctaculo e, portanto, com a sua estetização. Todavia esta será uma estetização que
já não serve a reconciliação do sensível com o inteligível da estética pré-romântica, no sentido
em que a obra de arte na galeria perde essa capacidade mágica de ter imanente na sua
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!21 Trad livre do inglês “art (…) is and remains for us a thing of the past” in Hegel, Aesthetics: Lectures of Fine Art I, pp. 11
! ! 16
materialidade uma dimensão cognitiva, esse vínculo entre o sujeito e o objecto torna-se
espéctaculo histórico da própria insolvência. Noutros termos, aquilo que a certa altura era a
manifestação concreta da vida do espírito, torna-se apenas matéria na qual se acopla a
contemplação estética. E tal vale de modo igual para a arte deslocada para as salas de
exposições quanto para as formas de arte que começavam a ser produzidas nesta altura, tendo
ou não o museu em vista. Didier Maleuvre coloca este problema em termos muito lúcidos – se
as obras de arte nos parecem distantes, alienadas, ou intangíveis no museu, tal ocorre porque a
aparência moderna da obra de arte incorpora em si mesma a experiência de alienação entre o
sujeito e o objecto, ou entre o espírito e a experiência sensível que marcam a modernidade.
Acrescentemos ainda que a morte (como der Tod e não como aufheben) não raras vezes
acompanhada de palavras como nascimento ou re-nascimento [wiedergeboren] remete-nos na
estética de Hegel para aquilo a que podemos chamar a função mediadora da arte e que nada
tem a ver com as teses da dissolução da arte no mundo moderno. O que a arte medeia são os
reinos do natural e do espiritual, ou, se quisermos, do pensamento e sua exteriorização, do
significado e da forma. Esta é uma morte que ocorre propriamente na obra de arte e respeita à
realidade, à natureza, naquilo que tem de precário e transitório, pela obra e na obra
metamorfoseada em espírito. O que temos em mãos é um fenómeno de significado duplo,
como dupla é a relação da arte com o espírito – morte como o perecer imediato do puramente
natural e simultânea condição do nascimento do espiritual que contém na sua essência aquilo
que morreu, mas também o seu reverso, pelo retorno da beleza [wiedergeboren] em estética
como reconhecimento (filosófico) do belo. E, neste sentido, como Eva Geulen22 faz notar, a
morte da arte é o seu próprio processo.
A marcha do espírito é lânguida e lenta e a sua apreensão só é possível em
retrospectiva, pelo incorporar da memória como recolecção23. Será isto que encontraremos
nas últimas linhas da FdG, “Mas o outro lado do seu devir, a História, é um devir consciente e
auto-mediado - Espírito entregue ao Tempo; mas este entregar-se, esta kenosis, é igualmente
um entregar-se de si mesmo; o negativo é o negativo de si mesmo. Este devir apresenta uma
sucessão lenta e lânguida de espíritos, uma galeria de imagens, em que cada uma delas,
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!22 cf. Eva Geulen, The End of Art: Readings in a Rumor after Hegel, Stanford University Press, California, 2006 23 Para uma leitura interessante a propósito da recolecção vide Donald Verene, Hegel’s Recollection: A Study of Images in the Phenomenology of Spirit, State University of New York Press, 1985. Para uma análise extra-estética da figura da memória em Hegel recomenda-se a leitura de Peter Fuss e John Dobins, “Spirit as Recollection: Hegel’s Theory of Internalizing Experience”, Idealistic Studies II, nº2, 1981, pp 142-150.
! ! 17
dotada de todas as riquezas do Espírito, se move lentamente justamente porque o seu ser tem
que penetrar e digerir a total riqueza da sua substância. Aquilo que tem que cumprir reside em
saber perfeitamente aquilo que é, conhecer a sua substância, deste modo este conhecer é o
entregar-se a si mesmo, ir ao seu interior, no qual se abandona a sua existência externa e se
entrega a sua forma existencial à recolecção”.24 A figura da memória como recolecção
[Erinnerung], cuja operação Hegel curiosamente ilustra com aquela do sistema digestivo,
será, embora central na estética, candidato favorito a emendas e adendas na linha da filosofia
hegeliana. Tal ocorre a partir do momento em que Hegel, nas suas lições, se refere ao papel da
recolecção como capacidade de síntese entre descoberta e invenção mas que, paradoxalmente,
é estruturalmente falente. Será justamente pelo meio da digestão das formas históricas
recoleccionadas pelo espírito absoluto, que seremos capazes de uma compreensão racional da
realidade externa ou que se torna possível que um indivíduo incorpore e internalize os
diferendos da sua própria experiência, reconciliando uma imagem atemporal de si mesmo e
do mundo. É uma figura que encontramos, por exemplo, numa asserção das Vorlesungen
(cremos que a propósito da Antiguidade Clássica, embora não haja certeza pela natureza do
capítulo em que surge) em que Hegel afirma que terá sido nas “(...)obras de arte que as nações
depositaram as suas mais ricas intuições e ideias, e a arte é muitas vezes a chave, nalgumas
nações a única chave, para compreendermos a sua religião e filosofia.”25, justamente porque
fundadas na memória, as obras de arte podem, em determinadas circunstâncias, servir como
fontes de memória, de recolecção de uma continuidade que sobrevoa as fatias do tempo.
Sabemos que galeria de imagens de que nos fala Hegel na PdG remete para o próprio tecido
da realidade, todavia, há algo de irresistível na transposição eidética do processo da
erinnerung para a ideia de um arquivo universal capaz de encerrar em si todas as imagens
necessárias à experiência individual do mundo como auto-evidente. A essa representação
encontramo-la de modo manifesto na figura do museu, a que Gadamer se refere mesmo como !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!24 Trad livre do inglês “But the other side of its Becoming, History, is a conscious, self-mediating process—Spirit emptied out into Time; but this externalization, this kenosis, is equally an externalization of itself; the negative is the negative of itself. This Becoming presents a slow-moving succession of Spirits, a gallery of images, each of which, endowed with all the riches of Spirit, moves thus slowly just because the Self has to penetrate and digest this entire wealth of its substance. As its fulfillment consists in perfectly knowing what it is, in knowing its substance, this knowing is its withdrawal into itself in which it abandons its outer existence and gives its existential shape over to recollection” in Hegel, PdG, pp. 492 25 Trad livre do inglês “In works of art, the nations have deposited their richest inner intuitions and ideas, and art is often the key, and in many nations the sole key, to understanding their philosophy and religion” in Hegel, Aesthetics: Lectures on Fine Art I, pp. 7
! ! 18
“o arquivo dos arquivos” e, particularmente, pelas condições singulares que só a arte oferece
ao espírito, na figura do museu de arte.
! ! 19
Taxonomia do Museu de Arte
O nosso objectivo para este capítulo será o de perguntar pelo conjunto de coordenadas
que orientam a teoria e a prática do museu de arte nos últimos dois séculos. A história do
museu como instituição é prenhe em estórias de imperialismos, colonialismos, relações de
poder – os saques de artefactos egípcios formam uma espécie de lado negro da Revolução
Francesa em todos os livros de História – e a sua presença na literatura foi, se não mesmo
prévia e fixada nas grandes utopias do Ocidente, pelo menos imediata à construção do
primeiro museu. Afastamo-nos, em todo o caso, de quaisquer pretensões de sumarizar a
evolução histórico-filosófica de uma instituição com a complexidade do museu de arte, mas
justamente pelo seu lugar tão particular na história e na filosofia, sentimo-nos urgidos por
uma necessidade de clarificar aquilo que aqui nos referimos por museu, quer ao nível do que
consideramos ter sido a sua primeira concretização histórica, quer ao nível de uma
aproximação ontológica aos seus atributos fundamentais, que é o que nos permite distingui-lo
de tantas outras instituições de nascimento coincidente e compreendê-lo naquilo que tem (e
que conserva) de fundamentalmente original. Recordaremos, para tal, o momento de charneira
inaugurado pela Revolução Francesa e marcado pelo desejo de criar uma nova religião civil,
desafiando directamente a hegemonia da Igreja Católica e os ditames do ancien régime, que
encontrou realização concreta e simbólica na expropriação de propriedades pertencentes à
igreja e à monarquia, das quais a conversão da catedral de Saint-Geneviève no Panteão dos
heróis da Revolução, será a expressão mais célebre. Ora, terá sido justamente esta viragem
para um, se quisermos, novo sentido historicista da história, com a dupla função de tornar
públicos os tesouros do passado e celebrar o génio humano, que esteve na origem do museu.
Num segundo momento, procuraremos olhar para o museu num contexto mais laboratorial –
sem por isso omitir o seu passado Iluminista - para que lhe possamos reconhecer um conjunto
de conceitos fundamentais que são alicerces de práticas, discursos e políticas institucionais
das quais os museus emergem como 1. duplos do mundo, 2. modelos de reflexão. Noutros
termos, procuraremos compreender o modo através do qual os museus criam uma comunhão
através dos objectos que expõem e que, ao assumirem para si essa função, fazem nascer um
contexto que força a que os objectos artísticos passem a significar determinada coisa –
justamente por isso elegemos Michel Foucault e Jean-Louis Déotte para orientar as nossas
! ! 20
leituras. A partir do momento em que se atribui um significado aos objectos que se encontram
dentro do museu, está-se a criar uma separação com a experiência viva, criando um público e
assegurando uma cultura. Daí advém o enquadramento dos museus na mais abrangente
problemática do arquivo - cuja análise ficará para outra altura - que nos permite pensar outros
conceitos como o de monumentalidade, do museu e das obras de arte que abriga, ou o de
cesura histórica. Para os quais, uma vez mais, podemos recorrer a Hegel, e recordar que uma
obra de arte não é trazida à existência por respeitar as determinantes históricas do seu tempo,
mas que pertence ao seu tempo, justamente pela diferença em relação a este, sendo
representativa da dialética de forças pela qual uma era histórica se separa de si mesma. É
portanto como imagem de, que arte é um monumento, aparência de algo que passou e que se
preserva no presente como passado. E, deste modo, embora seja certo que a disposição dos
objectos em museu, pela proibição – tantas vezes excessiva - do contacto directo, convida a
uma distância contemplativa que se manifesta no plano espacial do museu de arte por meio de
mecanismos concretos, esta é ainda uma distância que se dá ao nível de uma disjunção
temporal - os objectos estão-nos distantes, justamente porque nos são distantes, na medida em
que se presentificam como monumentos de uma era histórica à qual nunca teremos acesso.
1. A Revolução do Museu, Museu como objecto revolucionário
“Os frutos do génio são património da liberdade... Por demasiado tempo estas obras-
primas têm sido manchadas pelo olhar da servidão. É no seio de um povo livre que deve estar
o legado dos grandes homens.”26
Museus são lugares de catalogação, organização, classificação, e não há operação de
catalogação, organização, classificação que não implique uma escolha, e, portanto, que não
seja política. Se essas operações e parametrizações são ainda características primárias à
prática da museologia nos dias de hoje – e sabemos que pelo mundo da arte contemporânea
pululam museus (sobretudo teóricos) que negam veementemente qualquer rótulo impositivo
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!26 Trad livre do inglês “The fruits of genius are the patrimony of liberty (…) For too long these masterpieces have been soiled by the gaze of servitude. It is in the bosom of a free people that the legacy of great men must come to rest.” Luc Barbier citado in Andrew McClellan, Inventing the Louvre - Art, Politics, and the Origins of the Modern Museum in Eighteenth-Century Paris, pp. 116
! ! 21
ou político – é questionável e aberto a debate. Todavia, se pensarmos em termos históricos,
podemos afirmar com relativa segurança que os museus são, por berço, fundamentalmente
políticos e a sua origem, no fogo cruzado da Revolução Francesa, sobejamente instrumental.
Não será pois surpreendente que os primeiros museus públicos, ao surgirem numa era de
ruptura epistémica, tenham herdado e servido de mostruário a um dos paradoxos mais
próprios das revoluções, aquele que se ergue entre as forças destrutivas e aquelas da
preservação. Neste sentido, o Musée Central27 (instalado no palácio do Louvre) e o Musée des
Monuments, dizem-nos tanto sobre os ideais da Revolução Francesa quanto a tomada da
Bastilha ou o seu reverso na utilização da La Conciergerie como purgatório com o destino
certo da guilhotina. A arte, que desde os primeiros tempos ocupara um lugar ao qual só teriam
acesso príncipes, clérigos e nobres, torna-se propriedade do estado e passa a ser compreendida
como autónoma e irredutível. Retratos e estátuas de aristocratas e seus palácios, os eróticos de
Fragonard, o dramatismo barroco das cenas da vida de Cristo e da Virgem, assim que
tomados dos lugares que habitavam e da teia de simbolismo religioso ou estatutário que os
esteava, passam a ser apenas isso, retratos e estátuas, e o seu valor um valor histórico e
estético. Sejamos cautelosos, embora o Louvre, que aqui consideramos o primeiro museu
público28, tenha oferecido à arte a sua estetização, o modo como o fez foi pela deslocação do
referente, do trono ou do altar, para o Estado, fazendo da sua função uma função política.
Terá sido, todavia, este salto referencial que esteve na origem da configuração moderna do
museu, e que nos permite compreender que o paradoxo fundamental ao qual nos dedicaremos
na secção seguinte, a saber, o estatuto simultaneamente temporal e atemporal da instituição do
museu, proveio da alteração na percepção estética das obras de arte a que deu abrigo e não se
constituiu como elemento primariamente configurador destas.
Se em Paris se montaram os primeiros museus modernos e se de Paris nos chegaram
as primeiras críticas, parece-nos compreensível que tomemos como exemplo o do Musée
Central, inaugurado no primeiro aniversário da República29, que passou a habitar as galerias
de um dos mais imponentes palacetes parisienses, na margem direita do Sena. Como é sabido,
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!27 Inaugurado em 1793 como Musée Central des Arts, o museu do Louvre viria a ser renomeado como Musée Napoleon em 1802. Para facilitar a leitura referir-nos-emos a este museu por Musée Central a não ser que falemos especificamente do Louvre do século XX. 28 Para argumentações a favor do Altes Museum como primeiro museu moderno cf. Douglas Crimp, On the Museum’s Ruins. Cambridge, MA: MIT Press, 1997 29 10 de Agosto de 1793
! ! 22
ao longo do século XVII e XVIII, o hábito de abrir coleções privadas a um público, em
determinados dias da semana, era prática corrente e símbolo de estatuto. Um pouco por toda a
Europa, os membros mais proeminentes de uma sociedade, abriam as suas casas para exibir
uma acumulação de artefactos raros usualmente recolhidos em viagens e ofertados por amigos
ou altos cargos de outros países. No caso dos reis e príncipes, esse estatuto era demonstrado
pelas valiosas colecções de arte, das quais a Kunstkammer de Augusto da Saxónia, em
Dresden (1560) ou a sempre-crescente colecção dos Médici na tribuna do palácio Uffizi em
Roma (1581) são os exemplos mais notáveis. Também em França, décadas antes da
Revolução, se criara o costume de abrir determinadas salas do Palácio de Versalhes para que
as classes mais altas da sociedade se deleitassem com a extensa coleção da família real, que
mais tarde passou a ser dividida, tal era a densidade de visitantes, entre a residência de Luís
XIV e o Palácio do Luxemburgo em Paris30 (1750). Curiosamente, no caso francês, sobretudo
após a inauguração da mostra de arte francesa na sala do trono do Palácio do Luxemburgo, a
exibição das obras dos grandes mestres conheceu, a par do evidente prestígio que concedia ao
monarca, uma segunda função, a de promover uma tradição artística nacional. Contrariamente
ao que havia sido feito até à data, a confusão de estilos, naturezas, escolas e eras, que marcava
as exposições setecentistas foi substituída por uma rígida organização temática, aproximando-
se da configuração museal que reconhecemos nos dias de hoje. Se retomarmos os exemplos
anteriores – o caso alemão e o italiano – a kunstkammer de Dresden, que à altura já
transbordava o castelo, foi aumentada para os estábulos adjacentes, ou a colecção da galeria
Uffizi, também ela aumentada e que fora descrita pela última dos Médici, Anna Maria Luisa,
como jóia de Florença, que deveria “(...) permanecer como decoração para o Estado, para a
utilidade do Público e para atrair Estrangeiros”,31 apercebemo-nos que ao longo do século
XVIII ambos cresceram em número de obras, em espaço, alteraram mesmo os seus propósitos
e procuram-se mais abertas, mas permaneceram lugares de acumulação.
Não estará então na organização ímpar da Galeria do Luxemburgo, símbolo do ancien
régime, e não nos seus sucedentes revolucionários – o Musée Central e o Musée des
Monuments – o protótipo do museu moderno? A resposta a esta questão está longe de ser
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!30 vide Andrew McClellan, op. cit. pp. 14-15
31 Trad. livre do inglês: “(...)they would remain as decoration for the State, for the utility of the Public and to attract the curiosity of Foreigners.” Anna Maria Luisa de’ Medici in “History of the Uffizi Gallery”, disponível em www.uffizi.org
! ! 23
evidente. Num sentido historicista, parece-nos claro que a disposição da Galeria de
Luxemburgo lançou os pilares dos museus modernos para os quais as exposições privadas e
cabinets de curiosités funcionam, na melhor hipótese, como meros embriões e na pior, como
coisas essencialmente distintas. Acreditamos, todavia, que o que marcou o estatuto do museu
da Revolução Francesa como primeiro museu moderno e que não encontramos em nenhum
dos exemplos acima dados, prende-se para além destas questões organizacionais – que, como
já vimos, antecederam em pelo menos duas décadas a inauguração do Louvre - com questões
sociais ou de intenção, derivadas da alteração do estatuto da obra de arte. Optámos, assim, por
excluir da nossa análise e do próprio termo “museu”, esses lugares de aglomeração de
objectos, que tantos nomes e funções receberam entre os séculos XVII e XVIII, os studioli
italianos, os cabinets des curiosités franceses e seus análogos alemães, os Wunderkammer ou
os kunstkammern, não apenas por razões de estreiteza temática mas por considerarmos que,
fora a afinidade superficial segundo a qual todos estes espaços são, como o museu, espaços de
exposição, pouco se aproximam da instituição moderna do museu. Nomeadamente na medida
em que cada uma destas instâncias se fazia orientar por dinâmicas de fechamento em tudo
distintas daqueles que guiam os museus públicos. Fechamento dos objectos entre si,
encerrados sobre si mesmos, como unicamente belos ou excêntricos e assim desfavoráveis à
possibilidade de relação uns com os outros, porque dispostos segundo lógicas pessoais, como
a do gosto; fechamento das galerias que os continham face ao seu exterior, pela restrição do
público sob os critérios do número e da pertença. Neste sentido, e se for nossa intenção pensar
uma sedimentação do conceito de museu que preceda a sua concepção prática, utopias como
Christianopolis (1619) de Johann Valentin Andrea ou New Atlantis (1627) de Sir Francis
Bacon, que descrevem comunidades orientadas para o conhecimento universal, não
encerradas sobre si mas abertas como microcosmos no qual se dá a ver e se aprende sobre
todas as coisas do mundo, estão mais próximas dos museus modernos do que os espaços de
acumulação há pouco descritos. Jean-Louis Déotte, sobre o mesmo Le Regard de George
Salles a que Benjamin dedicara aquela que viria a ser a sua última carta publicada, identifica,
com Salles, uma diferença entre o olhar do coleccionador e aquele do curador “(...)diante de
um grupo de objectos dispostos sem uma ordem particular o seu [do coleccionador] olhar
habituado é capaz de entre eles encontrar semelhanças [likenesses] empíricas, ao passo que o
curador, que não é mais que um historiador de arte com curso universitário, sujeitaria aqueles
! ! 24
objectos a um princípio de reconhecimento analítico de acordo com o esquema da igualdade
[sameness].”32
A transformação destes espaços em lugares abertos de educação e contemplação deu-
se a ritmos diferentes pela Europa. Se em França resultou, como veremos, de um único e
violento golpe, na Alemanha, em Inglaterra ou em Itália, foi fruto pacífico de reformas
graduais, nomeadamente pela recontextualização destes espaços de colecção privada em
edifícios que, paulatinamente, se foram abrindo a mais camadas da população. Se é claro o
paralelismo entre a Galeria do Luxemburgo e o Musée Central, (ou entre o Musée Central e
os planos de quatro décadas que para ele haviam sido concebidos pelo Conde d’Angiviller
sob os reinados de Luís XV e XVI),33 no que concerne ao privilégio da arte francesa, ainda
que um se guiasse por ideais absolutistas e o outro por aqueles da República, o intento com
que um e outro o fizeram, em pouco se assemelha. Tal ocorre, justamente, porque só a partir
da Revolução é que se deu o casamento entre a política e a filosofia do Iluminismo, sob o
signo da qual se forjaram os alicerces que desembocariam na construção dos primeiros
museus. Por outras palavras, no século XVII criaram-se as condições de possibilidade às
quais só a República deu concretização, lançando, por sua vez, as primeiras pedras do
caminho que a arte viria a percorrer em direção à autonomia, a uma arte pela arte. Isto é, que
o Louvre foi consequência directa do projecto revolucionário em curso, de preservar o
passado clamando os direitos do presente ao passado, constituindo-se, em simultâneo, como
causa do dispositivo artístico e museológico que lhe sucedeu. Os objectos passam a ser
valorizados pela sua beleza artística e significado histórico, de modo a que todas as coisas,
mesmo a própria beleza, se tornaram passíveis de classificação racional. Os membros da
Commission des Musées, fundada em Outubro de 1792 e conduzida a partir de 1802 por
Vivant Denon (Dominique Vivant) adoptaram a filosofia da Revolução como o critério
primeiro de selecção e organização das obras pelas galerias – idealmente, os objectos
escolhidos cumpririam a função de educar moralmente os cidadãos frente ao génio e grande !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!32 trad. livre do inglês “Salles describes the look of a collector in front of a group of objects laid out in no particular order: his practised eye is capable of picking out empirical likenesses where the museum curator, who is no more than a university-educated art historian, would be subjected to a principle of analytic recognition according to the schema of sameness.”Cf. Jean-Louis Déotte, The Museum an universal device, s/d, disponível em: ck.kein.org. Este ensaio de Deótte insere-se num programa de doutoramento com o título Curatorial/ Knowledge, da Goldsmith University of London. 33 Depois da Galeria do Luxemburgo fechar, o Conde d’ Angiviller, um militar com uma carreira invejável na corte de Luís XV, assume o novo papel de director da construção do Musée Central, no palácio do Louvre, com o propósito de o tornar um dos maiores museus da Europa.
! ! 25
destino da França revolucionária. Não será pois surpreendente, que a extensa coleção
confiscada de temas religiosos e retratos reais, tenha levantado acesos debates entre os
comissários do Louvre. A resolução desta controvérsia torna cristalina a definição da obra de
arte, como autónoma e irredutível, sob a qual se passara a operar e a que nos referimos nas
primeiras linhas do capítulo – o objecto artístico é apreciado pela sua capacidade de
transcender, pela beleza, os contornos da era histórica que lhe deu origem e, simultaneamente,
educar o espírito sobre esse momento da história. Denon escrevera a Napoleão que a sua ideia
para o Musée Central seria a de dar a ver “o curso histórico da arte da pintura” mas que na
Grande Galeria essa organização histórica seria suprimida a favor do “(...) desejo de alcançar
uma disposição simétrica e visualmente aprazível”. Povoando as paredes da Grande Galeria,
lugar que o público visitaria por último, com as obras da escola francesa, o Musée Central
edificou uma narrativa da origem para a qual a arte francesa seria a herdeira final dos feitos
artísticos dos últimos milénios, onde as várias etapas do passado formam um padrão que
culmina no presente, transformando o Louvre num estandarte de superioridade de uma nação
cuja instabilidade o resto da Europa olhava com suspeita.
A configuração de uma narrativa através da arte torna-se ainda mais manifesta no caso
do Musée des Monuments. Após o regicídio em 1792, dezenas de milhar de franceses
organizaram-se em multidões para destruir esculturas e edifícios de conotação religiosa ou
feudal, com o encorajamento mais ou menos tácito do governo. Em pouco menos de um ano,
os danos haviam sido de tal forma massivos que o mesmo governo que incentivara o povo
francês a participar na deposição de tudo o que lembrasse o ancien régime, viu-se obrigado a
substituir o velho decreto por um outro que passava a proibir expressamente a destruição de
propriedade. A este decreto acrescentou-se a formação de uma Commission des Monuments,
que ordenou que o património confiscado, sobretudo objectos eclesiásticos e arte medieval,
fosse transportado para um lugar seguro. Deveu-se esse gesto sobretudo a Abbé Grégoire, e às
críticas que fez acompanhar dos seus extensos relatórios a propósito do património destruído
– nelas, Grégoire argumenta que a violação da arte e de monumentos, mesmo aqueles que
uma vez tivessem servido a tirania do absolutismo, ou o gosto pobre e bacoco da Idade
Média, significaria a violação da própria história. De modo a persuadir o governo a adendar o
impreciso decreto e fundar uma comissão para os monumentos, Grégoire recorre à própria
fabulística da Revolução, designadamente à analogia-estandarte entre a República e o Império
! ! 26
Romano para lembrar que, do mesmo modo que o último sucumbira às invasões bárbaras,
após várias vagas de pilhagens e destruição, França poderia vir a sofrer igual destino. Serviu-
lhe esta heurística para cunhar o termo vandalisme, por relação à tribo germânica dos
Vândalos, e passar a aplicá-lo à situação coeva. Alexandre Lenoir, um jovem membro do
governo que participara activamente nesta campanha pela protecção do património,
concretizará o projecto de Grégoire, organizando uma extensa colecção de objectos que
haviam sido colocados num convento desactivado, com vista para o palácio do Louvre,
fundando assim o Musée des Monuments.
Talvez importe que nos debrucemos sucintamente sobre o termo monumento, por duas
razões fundamentais; em primeiro lugar por monument conservar na língua francesa um
significado amplo que em português se perdeu, mas também para reflectirmos acerca do
estatuto de monumento, nomeadamente na afinidade que encontra com o objecto de arte
exposto em museu e com o próprio museu como instituição. Quando nos referimos aqui a um
monumento, apontamos para algo construído em memória de alguém ou de um evento e que
pode ser um edifício ou uma estátua de vulto (como na definição portuguesa) mas também
qualquer outro objecto, móvel ou imóvel, produzido com a supracitada função – bustos e
pequenos grupos escultóricos, altos e baixos relevos, brasões ou insígnias, santuários em
miniatura (usualmente colocados junto aos púlpitos em dias de celebração), lápides, tumbas e
estatuária tumular. Como objecto em memória de, um monumento é, em si, uma estrutura
paradoxal, já que percebê-lo como objecto histórico implica negarmos a sua pertença
imanente à história, na qual o seu estatuto de monumento se dissolveria. E, neste sentido, todo
o monumento é monumento da impossibilidade de acesso à história. O monumento, como o
museu, e ainda mais um museu cujo interior se faz de monumentos, é um convite a olhar a
história de um modo que foi por muitos entendido como provocação capital ao próprio
conceito de história. Lembremos ainda que, ao contrário dos objectos que ocupavam as salas
do Musée Central, grande parte dos monumentos abrigados e expostos por Lenoir, sobretudo
esculturas e pinturas medievais, não tinham lugar no cânone da arte, sendo mesmo
considerados sórdidos e sem interesse científico. A importância que assumiam não era então a
de deslumbrar pela beleza ou educar formalmente, mas sim constituírem-se como opostos
polares à situação artística da França coeva. Esta disposição organizacional encantou milhares
de artistas e historiadores mas conheceu também o seu reverso – afinal, ao serem arrancados
! ! 27
do lugar a que pertenciam e transportados para o Musée des Monuments, os objectos expostos
foram privados do seu sentido e função originais, para se tornarem elementos de uma
narrativa arbitrária.
Serve-nos este aparte histórico para duas coisas, primeiro, para sustentar o nosso
argumento da marca instrumental dos museus públicos face à arbitrariedade dos cabinets de
curiosités e coleções privadas (mesmo aquelas abertas a visitas) existentes à época, sob a
premissa de que sem a concretização política (mais ou menos feliz) do racionalismo
iluminista, o museu como hoje o conhecemos seria impossível; em segundo lugar, para
mostrar que esta configuração do museu de arte – aquela que encontramos no Musée Central
e no Musée des Monuments – tem no seu âmago uma definição de arte a partir de duas
características fundamentais do objecto artístico 1. a sua capacidade de transcendência, que é
o que nos faz capazes de apreciarmos obras de arte de eras com concepções de beleza
diferentes das nossas; 2. a sua capacidade de permanência, como documento histórico, na
medida em que conserva em si algo do espírito do tempo em que foi criada; definição que virá
a tomar de rompante a literatura que imediatamente se produziu sobre os museus.
2. Museu de Arte como espaço de representação
“Museus e bibliotecas são heterotopias nas quais o tempo não cessa de se amontoar (...) a
ideia de construir uma espécie de arquivo geral, a vontade de conter num único lugar todos os
tempos, todas as épocas, todas as formas, todos os gostos (...) é característico da cultura
Ocidental do século XIX.”34
A dimensão política na qual o museu se fundou abalou imediatamente a crença de que
a arte pudesse ser exibida de modo neutro – preservação e exibição formam um processo
conceptual no qual aquela que seria a linguagem original da arte se converte na linguagem da
cultura que, em simultâneo, deixa de referir-se à produção para radicar na preservação. Quer
defendamos que a arte nunca procurou tornar-se material para o historiador ou que o museu
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!34 Trad livre do francês “(…) musées et bibliothèques sont des hétérotopies dans lesquelles le temps ne cesse de s’amonceler (…) l’idée de constituer une sorte d’archive générale, la volonté d’enfermer dans un lieu tous les temps, toutes les époques, toutes les formes, tous les goûts (…) qui sont propres à la culture occidentale du XIXe siècle” Michel Foucault, “Des espace autres” in Dits et Écrits 1980-1988, Tome IV, 1980 pp. 759
! ! 28
afastou cuidadosamente as obras de arte da história, somos de imediato remetidos para o
próprio conceito de histórico – e percebemos que o que há pouco perguntávamos acerca do
papel dos museus ou da função da cultura, está profundamente enraizado no debate, ainda
mais antigo, acerca do conceito de história. Será a história imanente e seu objecto a própria
vida ou, pelo contrário, é a história ela própria objectivação de uma imagem petrificada da
vida? Tomemos o exemplo de Benjamin Buchloch que, partindo da noção lyotardiana de
meta-narrativa, procura demonstrar o papel do museu no fazer da história; reposicionando-nos
fora da narrativa histórica, numa espécie de – ainda por definir – meta-narrativa, noções como
as de originalidade, individualidade, obra de arte ou artista, perdem a importância. Sendo
noções constituintes da história, a sua existência, se não irrelevante, será pelo menos marginal
numa meta-estória. E isto não é sem precedente. Quando a narrativa da História emerge ao
descolar-se, paulatinamente, da narrativa do cristianismo que dominara por milénios a Europa
Ocidental, ela não o faz se não pela re-contextualização desta. Se hoje nos deslocarmos a
Paris e observarmos a Última Ceia de Tintoretto na Igreja de S. Xavier, Cristo e os apóstolos
aparecer-nos-ão como as personagens principais – se, por outro lado, colocarmos a Última
Ceia no Louvre, observamos que Cristo e os apóstolos cedem o lugar de personagens
(formativas) principais, para quem os pintou, Tintoretto, e para a própria obra, A Última Ceia,
figuras centrais desta outra narrativa, a do museu, que é aquela a que chamamos história. O
que aprendemos na nossa curta viagem pelos museus de arte da Revolução, foi que ao museu
não lhe bastou ser um objecto da história, um ser-na-história, tornando-se, pela sua
configuração, um arquitecto da história, fundando, ou pelo menos incorporando, um novo
modo de relação com o histórico. Se nos seus primórdios o museu se fazia de justaposições
intempestivas de pedaços da história – máscaras, conchas, aguarelas, dispostas mediante um
príncipio em tudo distinto daquele da cronologia - rapidamente se compensou a si mesmo e
passou a organizar-se teleologicamente, e esta reivindicação da história pelo museu foi
prontamente compreendida como ameaça não apenas às obras (separadas da história) mas ao
verdadeiro conhecimento histórico. Por outro lado, se o museu no sentido moderno se ergueu
como um desses lieux de mémoire com a função de diagnosticar – idealmente de curar – os
diferendos e deslocamentos, contendo em si uma espécie de fórmula para a compreensão da
história da arte, podemos argumentar que tão cedo se abriu para além da resolução espacial e
concreta e passou a partilhar essa função com a teoria, sob a forma de análises que enquadram
! ! 29
os museus na mais ampla problemática do arquivo, caracterizado em termos da preocupação
ético-moral da filosofia contemporânea com a velha questão da perda da origem e dos
sentimentos de desabrigo ontológico. Todavia, quer o museu de arte de hoje, quer o museu na
sua formulação oitocentista, assentam sobre uma complexa tessitura de códigos nem sempre
anuentes uns dos outros, da qual emerge uma contradição essencial à qual Tony Benett
chamará inadequação representacional35. Esta é uma inadequação originada pela tentativa de
harmonizar dois pólos opostos e que se localiza entre a tão iluminista aspiração enciclopédica
à universalidade, para a qual a ordem das coisas expostas e do impacto sobre os indivíduos
será necessariamente representativa da totalidade humana, e a tendência intrínseca do museu à
parcialidade, à exposição das particularidades do génio humano e, concomitantemente, à
exclusão (de objectos de arte) e segregação (de camadas humanas).
Trouxemos Benett à discussão justamente para lançarmos um olhar para este segundo
momento de parcialidade, o da exclusão social propriamente dita, por se constituir como
nódulo de boa parte das abordagens contemporâneas ao museu de arte, a partir de uma teoria
foucaltiana das instituições. Sabemos que, embora criados sob o princípio do acesso
ecuménico – pelos preceitos do Iluminismo e o signo da Revolução – os museus emergem
como espaços de diferenciação ao nível do comportamento social que impõem. Será, aliás,
com este lamento, que Válery dará início ao seu ensaio de 1923 sobre o problema dos
museus, “O tom da minha voz muda, faz-se um pouco mais alta que na igreja mas um pouco
menos forte que na vida de todos os dias”.36 Podemos argumentar que tal ocorre, apesar da
sua abertura virtual, justamente porque os museus surgem, como já vimos, não como lugares
virados para a socialização mas para a contemplação, e, noutra nota, para a aprendizagem por
emulação, nos quais ao povo é dada a possibilidade de conviver com os cultos e adoptar as
suas práticas37. E, nesse sentido, embora claramente radicais, não nos parecem tão absurdas
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!35 cf. Bennet, Tony, The birth of the Museum: History, Theory, Politics, pp. 102
36 trad. livre do francês: “Ma voix change et s’établit un peu plus haute qu’à l’église, mais un peu moins forte qu’elle ne sonne dans l’ordinaire de la vie (...)” Paul Válery – “Le problème des musées”, in Œuvres, tome II, Pièces sur l’art, Gallimard, 1960. Disponível para consulta em linha em: classiques.uqac.ca. pp. 5 do ficheiro electrónico.
37 O caso da Inglaterra vitoriana, que estará ausente da nossa análise, é especialmente curioso na questão do museu como educador do público. Andrew McClellan em Art and its Public: Museum Studies at the Millennium, cita um relatório parlamentar de 1853 para mostrar que “Together with state schools and libraries, it was hoped that museums would contribute to the moral ant intelectual refinement of ‘all classes of the community’ and the formation of ‘common principles of taste’”.
! ! 30
aquelas comparações do museu com essas outras instituições burocráticas de controlo – como
a universidade, que educa mas também restringe pela exclusão categórica, mais ou menos
tácita, daquilo que não deve ter lugar na academia; ou ainda com instituições de fechamento/
separação propriamente ditas, como o hospital – asséptico como o museu, que separa os
doentes dos sãos; ou, se quisermos ir à raíz do extremismo, com a prisão, que isola e divide os
reclusos pela natureza do crime e que, no fundo, como o museu, forma um universo categorial
interno. Mas, se assim for, o museu separa a arte do quê? Podemos argumentar que separa a
arte digna da indigna (de exposição), a arte daquilo que não o é – em 1951 André Malraux38
escreve que é no museu que os objectos se elevam a obras de arte; que separa a arte da vida
política, por ser demasiadamente preciosa, como as relíquias católicas ou o intelecto que se
cultiva nas academias (proteção do interior face ao exterior), ou por ser perigosa, como os
criminosos e os loucos (proteção do exterior face ao interior); ou ainda, se quisermos
retroceder a Platão, podemos argumentar que as paredes do museu separam o modelo da
cópia, evitando que verdade e mimesis se confundam – e, neste sentido, a ideia do museu não
nasceu com o Iluminismo mas muito antes disso, com a metafísica. Não nos prolonguemos
muito sobre este assunto – a ele regressaremos quando abordarmos a crítica ao museu de arte
– para que não quedemos no perigo das leituras superficiais de Foucault (ou,
quiasmaticamente, naquelas leituras exacerbadamente politizadas). Beth Lord, num artigo em
que se ensaiam as possibilidades de uma genealogia foucaultiana do museu de arte, resume-
nos justamente este perigo: “Evocar Foucault para sugerir que o museu é o produto do “mau”
Iluminismo é olhar o museu como exemplo de uma determinada era histórica e dos seus
valores, e isso é converter a arqueologia foucaultiana das instituições numa tradicional
história dos objectos.”39
Se pensar os museus implica, logo de início, pensar a sua particular relação com a
história, parece-nos curioso cruzar a perspectiva de Hegel, o filósofo das grandes narrativas,
com aquela de Foucault. O que nos interessa sobretudo aqui é a ideia de história geral (por
oposição à de história total) que Foucault identifica na Arqueologia do Saber – como
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!38 vide André Malraux, O Museum Imaginário, Edições 70, Lisboa, 2013 39 Trad. livre do inglês “To use Foucault to suggest that the museum is the product of ‘bad’ Enlightenment thinking is to see the museum as an example of an assumed historical era and its values, and is thus to misconstrue Foucault’s archaeology of institutions as a traditional history of objects.” Beth Lord, “Foucault’s Museum: difference, representation and genealogy” in Museum and Society, vol. 4, No. 1, University of Dundee, Dundee, 2006. pp. 5
! ! 31
metodologia que permite a crítica das próprias condições de possibilidade de cada instância,
pela reflexão dos limites e sua transposição. Como é sabido, o método da história tradicional,
é o da reconstrução da unidade de uma civilização pela articulação da história em estágios
com princípios de coesão internos, teleologicamente orientados em direcção a um centro, a
um significado, a um espírito. Todavia, o que Foucault identifica neste processo é uma
transfiguração das rupturas e descontinuidades que perfazem a história numa unidade
recomposta do devir histórico que traz consigo a promessa de que “(...) o sujeito poderá um
dia - sob a forma da consciência histórica - apropriar-se novamente, de todas essas coisas
mantidas à distância pela diferença, restaurar o seu domínio sobre elas e encontrar o que se
pode chamar a sua morada”40. Por oposição a isto, o historiador geral, considera cada
acontecimento no jogo da sua instância, na sua dispersão, suspendendo noções tributárias de
uma teleologia escatológica como a de origem, progresso, espírito ou totalidade. Ao mesmo
tempo que rejeita as grandes narrativas, Foucault destaca um propósito progressivo na
genealogia – isto é, reflectir acerca das nossas condições de possibilidade, abre uma fratura na
noção do eu que nos permite contestar as estruturas que a ergueram. Nos termos de Foucault,
a genealogia “separar-nos-á da contingência que nos fez quem somos, a possibilidade de
deixar de ser, fazer ou pensar o que somos, fazemos ou pensamos”41; justamente por isso, a
genealogia faz-se segundo um método arqueológico – olhar as contingências do passado para
identificar as descontinuidades da história. Ora, observando a configuração do museu – que
neste ponto da análise restringimos ao museu oitocentista – somos tentados a identificar-lhe
uma metodologia totalizante, afinal, o museu cataloga e organiza, não raras vezes
cronologicamente, objectos como se pertencessem a uma temporalidade sequencial (ou
dialética). Sabemos, todavia, que tal não é o caso, pelo menos em termos absolutos, e será
ainda em Foucault que encontraremos evidência disso “(...) a história, na sua forma
tradicional, tinha a função de “memorizar” os monumentos do passado, transformá-los em
documentos” todavia, nos nossos dias, a história tende à arqueologia, transformando os
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!40 Trad livre do francês " (...) le sujet pourra un jour - sous la forme de la conscience historique - se les approprier derechef, y restaurer sa maîtrise et y trouver ce qu'on peut bien appeler sa demeure." in Foucault, L'Archéologie du Savoir, Gallimard, 1969. pp. 22
41 Trad. livre do francês “(…) mais elle dégagera de la contingence qui nous a fait être ce que nous sommes la possibilité de ne plus être, faire ou penser ce que nous sommes, faisons ou pensons” Michel Foucault, “Qu’est-ce que les Lumières?” in Dits et Écrits 1980-1988, Tome IV, 1980, pp. 574
! ! 32
documentos em monumentos42. Como vimos na secção passada, pela leitura do termo
monument, a tarefa do museu parece-nos quase análoga à do historiador geral, justamente a de
criar monumento pela análise dos documentos contingentes e descontínuos que formam uma
era histórica.
Por outro lado, quando entendemos o museu, não necessariamente como uma
heterotopia mas antes como um espaço de différence, torna-se clara a capacidade deste em
operar a própria metodologia genealógica foucaultiana. É neste sentido, sem abandonarmos a
crítica de Foucault, que podemos argumentar que o museu pode contribuir para o progresso,
também ele num sentido foucaultiano, não num sentido teleológico em direcção a um ideal,
mas no sentido do desenvolvimento de capacidades que permitam que se resista ou se
transgridam os sistemas que erigem os eventos históricos e as relações de poder como pólos
fixos e necessários da história. Neste sentido, podemos dizer que o museu é progressivo
justamente pelo seu passado iluminista – por se apresentar em relação crítica com um passado
que fez nascer a crítica. É este aparente paradoxo, levantado exemplarmente por Habermas,43
que nos permite localizar o museu na posição tensional do trabalho de Foucault entre a
renúncia dos valores iluministas de verdade, razão e subjectividade, e o reconhecimento da
impossibilidade de se criar espaços de justiça, liberdade e progresso sem, pelo menos em
parte, que estes sejam dependentes desses valores. Se nos afastamos da designação do museu
como heterotopia – sobretudo porque Foucault não foi claro em oferecer-nos critérios mas
também porque este tem sido um termo operacional, de utilização mais ou menos feliz, nos
Museum Studies – tomamos-lhe de empréstimo um outro conceito, ao qual temos feito
aproximações no presente capítulo, a primeira delas ao nível do título - o de espaço de
representação. Na verdade, pensar o museu como espaço de representação oferece-nos uma
aproximação à ideia do museu como heterotopia, como um desses cenários limítrofes, de
diferença, que se processam em malha dupla, fazendo-se central para a cultura ao mesmo
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!42 cf. Trad livre do francês "(...) l'histoire, dans sa forme traditionnelle, entreprenait de «mémoriser» les monuments du passé, de les transformer en documents (...)de nos jours, l'histoire (...) qui, là où on déchiffrait des traces laissées par les hommes (...) des traces inertes, des objets sans contexte et des choses laissées par le passé, tendait à l'histoire et ne prenait sens que par la restitution d'un discours historique (...) en jouant un peu sur les mots, que l'histoire, de nos jours, tend à l'archéologie - à la description intrinsèque du monument." in Foucault, L'Archéologie du Savoir, pp. 14-15
43 vide Jürgen Habermas, “Taking Aim at the Heart of the Present: On Foucault’s Lecture on Kant’s What is Enlightenment?” in Michael Kelly (ed.), Critique and Power: Recasting the Foucault/Habermas Debate, The MIT Press, London, 1994, pp. 149-154;
! ! 33
tempo que a neutraliza. Como espaço de representação o museu é um espaço de diferença – e
tal concepção permite-nos ainda pensar o museu como um lugar distinto, e abarcar as
propriedades inéditas da sua constituição como instituição. Todos os museus, mesmo aqueles
que se organizaram em torno da ideia de uma história universal, mesmo aqueles que nos
apresentam um esquema como incontestável, deixam ver a diferença que se abre entre as
palavras e as coisas. Noutros termos, a escolha de um esquema de representação deixa a nu os
corpos de regras usados para suturar essa diferença. O mais incauto dos visitantes, é capaz de
compreender que aquilo que tem diante de si num museu, corresponde a uma de uma miríade
de possibilidades representacionais. E foi neste sentido que recuperámos a noção foucaultiana
de história geral – como espaço de representação que põe a nu a dinâmica da relação entre as
palavras e as coisas, o museu surge, ele próprio, como documento das séries históricas que
constrói, fazendo-as abertas a contestação. Num mesmo espaço, e tal não se aplica somente ao
museu de arte, o museu abriga objectos de diferentes eras, protegendo-os da erosão do tempo,
encapsulando, em simultâneo, a temporalidade ela própria – tempo infinito num espaço finito,
um espaço que pretende uma representação da totalidade do tempo ou da história e que é, em
si, necessariamente atemporal. A pretensão de conter num invólucro todas as coisas, de todos
os tempos, e fazer esse invólucro impermeável ao tempo, constitui, como mais atentamente
veremos nos capítulos seguintes, o modelo do museu oitocentista. O que está aqui em causa
passa por compreender que o museu nos oferece objectos em diferença em relação às
estruturas conceptuais onde à partida seriam inseridos – a saber, o lugar histórico da sua
produção - e neste sentido, para além de nos serem apresentadas diferentes eras e objectos,
destacados do curso da história, o museu torna visível a diferença entre um objecto e as
palavras usadas para descrevê-lo, que é, em última análise, a diferença da qual emerge a
interpretação.
Assim que nasce, o museu instala-se, lembra-nos Jean-Louis Déotte, e com ele, de
resto, toda a modernidade, como peça da engrenagem erigida pela arquitectura e pelos
dispositivos de Brunelleschi, por um lado e pelo cogito cartesiano, por outro. Será justamente
dessa configuração operacional (e acrescentemos organizadora, orientadora, formadora,
impositiva, aparelhadora) que derivará a preferência de Déotte pela referência ao museu
através do termo appareil. Appareil é-nos definido por Déotte44 como uma espécie de
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!44 cf. “Le musée, un appareil universel” in Museum International, nº235, UNESCO, Paris, 2007, pp. 68-79
! ! 34
dispositivo técnico pelo qual se dá o aparecer do sensível, e que permite fazer época. Ao
contrário do dispositivo, como definido por Foucault, o appareil é capaz de configurar uma
sensibilidade à revelia de uma disposição ideológica imanente, constituindo-se como um
modo do aparecer do sensível que, através da técnica, encarna em determinadas instituições.
Através do appareil, configura-se a possibilidade de sujeito e contexto se reconhecerem como
produto da aparição do aparelho, que permite, assim, unificar aquilo que antes aparecia como
separado. Nesse sentido, Déotte destaca cinco appareils responsáveis pela configuração da
sensibilidade moderna; a perspectiva (mãe do cogito cartesiano), o museu (que separa a obra
do culto e a transforma em objecto estético); a fotografia (que emancipou a pintura e impôs
uma relação técnica com a história); o cinema (que, abrindo-se às massas, as configura como
individuais e colectivas). Havendo tantos appareils quantas cesuras sejamos capazes de fazer
na história (perspectiva, câmara escura, museu, cinema, fotografia etc.) o museu surge-nos
como um appareil fundamental na medida em que a sua tarefa será a de garantir que outros
appareils cumpram as suas tarefas, configurando-lhes um mundo, definindo-lhes uma
existência. Tal concepção de museu torna-se-nos absolutamente útil quando o nosso objectivo
passa por demonstrar que o museu conservou os seus traços essenciais desde a sua
configuração clássica às tentativas vanguardistas. Por mais que queiramos evocar um
nascimento platónico do museu – a sua existência potencial assim que a arte entrou no
discurso e se converteu em discurso estético – torna-se absolutamente claro que a existência
do museu foi dependente da ruptura epistémica de mil e setecentos, onde se dissolveu a
crença de uma ligação quasi-divina entre os signos e as coisas. De que modo as coisas da
natureza podem ser adequadamente representadas pelos conceitos da razão? Os museus
relegaram esta questão para a filosofia para emergirem, eles próprios, como sua corporização
- os sistemas de representação falharão sempre em fazer-se adequar às coisas do mundo, e
talvez tenha sido esta a certeza fundacional – certeza de ser-se incerto e aberto a contestação -
que permitiu a estabilidade do museu face às (muitas) transformações históricas, dos museus
“sem etiqueta” dos primeiros tempos, aos museus pedagogicamente autoritários do século
XIX nos quais tudo tem explicação, aos ecomuseus dos dias de hoje. Pensar o museu implica
sempre reflectir acerca da representação da ordem das coisas, e compreender que os museus –
como as bibliotecas, as livrarias, as universidades - precedem de certa forma a sua
espacialização, do mesmo modo que os objectos expostos num museu são, em última
! ! 35
instância, agregados essencialmente pela crença de que, dispostos de determinada maneira,
permitem uma compreensão coerente de um universo representacional. Os museus são os
lugares não-literários mais representativos da metonímia – fragmento por totalidade,
conjuntos de objectos por conjuntos de etiquetas – mas tal não é sem precedente, é, como
temos vindo a argumentar, produto da crença moderna na ordenação e classificação dos
objectos do mundo para compreensão deste último, que permeia as instituições e o fazer
político. As propostas pluralistas, como a do museu imaginário de Malraux ou a do pós-
museu de Hooper-Greenhill, assumem esta como a sua função central, falhando, todavia, em
reconhecer, que esta esteve sempre lá, cunhada nas fundações do primeiro museu.
! ! 36
Museus e seus Críticos
Numa simultaneidade a que a história nos tem já habituados, à medida que foram
sendo construídos museus foram-se erguendo discursos sobre eles, quase sempre fazendo
ouvir, uns mais timidamente que outros, o anúncio do periclito da desespiritualização da arte.
Se este argumento foi sendo apagado e acendido por filósofos e historiadores de arte pelo
menos desde a segunda metade do século XVIII às últimas décadas do século XX, importa
compreendê-lo na sua origem e olhar, pelo menos por agora, para o museu moderno como
uma forma historicamente localizada. Como sabemos, o museu funda o seu núcleo de acção
na identificação de determinados objectos e sua catalogação, com vista à criação de focos
ordenados de significado. Lembremos que tal gesto, embora não raras vezes camuflado de
uma ideia de naturalidade intrínseca, isto é, de que os objectos obedecem a uma determinada
disposição espacial porque tal lhes está inerente, provém sempre de um mapeamento
voluntário dos discursos a passar ao público. Deste modo, o que ocorre no museu, na
aparência de ilustrar determinados universos representacionais, é a manufactura desses
universos, participando na criação de categorias, sustentando e construindo narrativas cuja
coerência interna é conseguida pela imposição de um modelo representativo mas também
representacional (de uma determinada época, escola ou estilo em detrimento de outros), o
contexto museológico transforma aquilo que seriam imago agens em obras de arte, enchendo,
simultaneamente, os objectos seleccionados de um significado que à partida lhes seria
extrínseco. Entre o século XVIII e o século XX podemos identificar duas facções de
criticismo que comungam em torno de princípios distintos e que não obedecem a uma
localização cronológica exacta. Uma primeira, de pendor ontológico-metafísico e uma
segunda, materialista e eminentemente política. Na primeira encontramos autores como
Quatremère de Quincy, Martin Heidegger, os artistas do surrealismo e da arte conceptual, na
segunda, Theodor Adorno, Walter Benjamin ou artistas como Malevich e Marinetti, ficando a
lista incompleta. De cores políticas e filosofias tão distintas, uns e outros fundam as suas
críticas na ideia de que o museu se tornara, por excelência, lugar da cultura epígona,
embalsamada, do primado da vita contemplativa face à vita ativa – chaga que a filosofia
carregara desde os primeiros prenúncios.
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1. Quatremère de Quincy
A ideia de que os museus petrificam a cultura e, mais que isso, extinguem a
possibilidade de uma cultura autêntica, será um tema que encontraremos em vários
pensadores modernos, conservando a pertinência nos debates contemporâneos, e que foi
trazida à luz, no início do século XVIII, pelas incansáveis críticas de Quatremère de Quincy.
Podemos encontrar nas Considerações Morais a propósito do Destino das Obras de Arte45,
publicado em 1815, o marco manifesto das primeiras críticas à cultura dos museus. Este
pequeno texto de Quatremère de Quincy, ao qual podemos acrescentar as Cartas a Miranda46
(1796) virá a constituir o núcleo duro das críticas à museologia que lhe sucederão nos séculos
seguintes - a ideia é a de que o museu abre uma ferida incurável entre o objecto artístico e a
existência, a vida propriamente dita, e que tal se constitui como ameaça à cultura verdadeira.
Arte, cultura/ história e existência/ vida formam uma tríade de conceitos que, embora
assumam formulações distintas consoante o autor, o século, ou a corrente filosófica, se
reúnem quase sempre em torno de um outro termo-chave (também ele semanticamente
mutável) – o de autenticidade. Como tal consideramos necessário, mesmo antes de partirmos
para aquilo que Quatremère de Quincy nos dirá sobre os museus, explorar o modo como esta
tríade de relações irrompe no neo-platonismo de Quatremère e contamina muitas das
configurações vindouras.
A concepção de arte em Quatremère de Quincy, embora posterior à Crítica da
Faculdade de Julgar, ou às primeiras incursões estéticas de Schlegel e Schiller47 é, na
verdade, erguida quase na totalidade sobre a definição pré-romântica de Baumgarten, a saber,
Aesthetica como lugar onde se dá o casamento entre o sensível e o inteligível, para a qual o
objecto estético respeita a um objecto onde o pensamento está imanente na forma. A obra de
arte suscitaria, assim, dois focos de prazer, um moral ou espiritual e um outro, sensual/
sensível, correspondendo às duas faces da obra para a qual o primeiro, o prazer do espírito,
propriamente o seu significado durável e transcendente, protege a materialidade mais ou !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!45 Considerations Morales sur la destination des oevrages d’art (1815) 46 Lettres a Miranda sur le déplacement des monuménts de l’art de l’Italie (1836), resultado das adendas de um outro texto, de 1796 com o extenso título de Lettre sur le préjudice qu'occasionneraient aux arts et à la science le déplacement des monuments de l'art de l'Italie, le démembrement de ses écoles et la spoliation de ses collections, galeries, musées, etc 47 Referimo-nos aqui nomeadamente a Gespra ̈ch U ̈ber die Poesie de Friedrich Shlegel (1800) e Philosophie der Kunst de Friedrich Shelling (1802/ 3)
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menos perfeita, de cair naquilo a que Quatremère chamava o “capricho do gosto” ou, o seu
reverso, no racionalismo “estéril e frio”48 (pp.36-40). No esquema estético de Quatremère,
cada forma de arte representaria uma parte daquilo a que chamava o “modelo universal da
natureza”, compreendido como natura naturans, que o artista destilaria em cada obra.
Significa isto que o modelo universal da natureza não equivale a uma forma una mas antes a
uma pluralidade que não se materializa, necessariamente, num objecto; se tal sentimento
nostálgico era comum no platonismo enciclopédico da época, como aquele que encontramos
nos textos de Voltaire ou de Diderot, Quatremère acreditava que seria ainda possível criar um
modelo moderno que permitisse retornar a uma equivalência quasi-perfeita à da Grécia de
Péricles – devolver a arte à vida. Para tal, serve-se da comparação aristotélica entre arte e
natureza, para a qual a arte, como forma poética de um fazer com uma causa efficiens outra
que ela mesma, só ocorre quando lhe é possível conhecer a natureza, os fins e os meios.
Observando e selecionando determinados fragmentos da natureza, separando o contingente do
essencial, o artista será então capaz de reconhecer e assim representar um determinado
aspecto da natureza, de modo a que o seu produto, enquanto verdadeiro produto do génio, não
seja apenas coisa mas a sua totalidade – não apenas a escultura de um homem, mas uma
representação da escultura e da humanidade, não apenas um edifício mas a própria
arquitectura.49 O que nos lembra irremediavelmente um dos princípios da estética hegeliana -
do mesmo modo que não há arquitectura capaz de encapsular o movimento que a catedral
expressa como um todo, o movimento de reconhecimento do espírito moderno não se esgota
num determinado acto estilístico – porque falamos de arquitectura – na história. Por esta razão
poderíamos ser levados a crer que a concepção de arte de Quatremère de Quincy parece
depositar na obra uma certa autonomia que à partida não seria incompatível com a deslocação
das obras para fora do seu local de produção; sabemos, todavia, que tal não é o caso, e este é o
momento verdadeiramente aristotélico de Quatremère e aquele que, ao afastá-lo dos seus !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!48 Trad livre do francês “(…)stérile et froid (…)” in Quatremère de Quincy, Considérations morales sur la destination des ouvrages de l’art, pp. 37; 49 Importa aqui abrir um aparte – é justamente quando Quatremère explicita aquilo em que consistiria a arte como imitação da natureza, nomeadamente no caso da Arquitectura (sem equivalente no mundo natural mas que imita a natureza pelas suas leis) e nas representações do corpo humano, que mais manifestamente se afasta de Platão. A imitação é por Quatremère compreendida mais como analogia do que como transposição mimética, como observamos ao lermos as suas célebres passagens sobre o Tratado de Vitrúvio, onde põe em causa as razões que terão levado o segundo às associações entre as três tipologias de colunas e os corpos masculino e feminino. Uma coluna dórica poderia representar analogicamente a robustez de um corpo masculino como um capitel coríntio a leveza de uma cabeleira feminina, mas crer em transposições directas – como o fizera Vitrúvio – significaria um abuso do princípio da imitação.
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contemporâneos, se lança profético na filosofia moderna. A chave para compreendê-lo
repousa justamente naquilo a que nos referimos por contingência e que no acto de fazer arte é
removido para revelar o essencial. Ora, Quatremère é decisivo ao afirmar que esta remoção
não significa uma negação categórica da contingência, já que será sempre impossível ao
artista divorciar-se do transitório, das miudezas da própria vida e é com isso em mente que a
arte pode ser apreendida aristotelicamente como aquilo que poderia ser ou procura ser e não
apenas como aquilo que é. Precisamente porque a verdade (a natureza) e o contingente (o
real) estabelecem entre si uma relação de reciprocidade, sendo através do contingente, ou, nos
termos de Quatremère, das “impressões acessórias”, que o real se revela, e, neste sentido, o
propósito da arte será, idealmente, sempre outro que não ela própria, transgredindo a techné
do mesmo modo que o significado transcende o objecto-feito. E é precisamente no contexto
de criação da obra, com destino imanente em vista que está e, importa acrescentar, se
conserva, o significado. O caminho das obras de arte até aos museus é, assim, o caminho em
direção ao veredicto fatal da cultura como vita contemplativa - furtadas do seu contexto vivo
ou conteúdo experiencial, as obras de arte museificadas são apenas invólucro do que foram,
objecto da história e de contemplação alienada.
“Paremos de fingir que esses depósitos onde as colocamos preservam as obras de arte.
Podemos ter carregado o invólucro material para lá; mas é questionável que com ele tenha
sido transferida as rede de ideias e relações que tornavam as obras vivas... O seu mérito
essencial era dependente das crenças que as criaram, das ideias que as enredavam, das
circunstâncias que as explicavam, da comunidade de pensamento que lhes dera unidade. Mas
agora quem nos poderá dizer o que significam aquelas estátuas, sem propósito nas suas
atitudes, as suas expressões resumidas a caricaturas, as suas circunstâncias em enigmas? O
que é que essas efígies, que são agora mera matéria, significam para mim? O que são esses
mausoléus sem destino próprio, esses cenotáfios duplamente vazios, essas covas que até a
morte desertou?”50 A remoção dos artefactos do seu lugar original e sua colocação num
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!50 Trad livre do inglês “(…) You must stop pretending that artworks“that artworks are preserved in those depositories. You may have carried the material hull there; but it is doubtful you transferred the network of ideas and relations that made the works alive with interest. . . . Their essential merit depended on the beliefs that created them, on the ideas to which they were tied, to the circumstances that explained, to the community of thoughts which gave them their unity. But now who may tell us what those statues mean, purposeless in their attitudes, their expressions turning to caricatures, their circumstances turning into enigmas? What do those effigies, which are now mere matter, mean to me? What are those mausolea without a proper resting place, these
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espaço asséptico sob a crença de que aí seria possível, de alguma forma, restituir às obras algo
da sua rede de ideias e relações, da sua comunidade de pensamento, escreve Quatremère,
significa remover-lhes a existência, e tal é o maior sintoma de um presente – o seu - onde a
ligação com o passado se mostra gritantemente falente. Todavia, o desagrado de Quatremère,
não se esgota aí, as duas obras a que nos referimos são pontuadas por imagens de uma
preocupação de natureza outra, talvez ainda mais perigosa, que encontramos linearmente
apresentada nas primeiras linhas das Considérations e encapsulada no seguinte trecho da
quinta carta ao General Miranda: “Acredita? Que a nação que se apropria, supostamente para
seu benefício, de alguns daqueles modelos de beleza, como lotes de merchandise, encontrará
grande lucro?”51. Diz-nos Quatremère que uma obra de arte ou tem valor moral ou tem valor
comercial como “objet de prix”, o que significa dizer que não tem valor algum. E, por isso, o
museu de arte não é apenas visto como um lugar de exoneração das obras de arte – antiga,
oriental, medieval, renascentista – do espírito que as animava, mas ainda como ameaça à
produção de arte, no presente e no futuro, na medida em que põe em marcha um ciclo vicioso
onde a promoção de um julgamento que é técnico ou comercial e não espiritual, encoraja a
produção de obras de arte sem propósito moral. Prenúncio que Quatremère observa na arte
moderna, que começava por esta altura a ser criada ou com o museu ou com a venda em
horizonte, e que seria já uma arte sem destino ou propósito transcendentes, “ (...) a arte, os
artistas e as suas obras rodarão sem fim, para uso de uma sociedade que nunca saberá usá-
los”52 Noutros termos, Quatremère identifica na própria constituição do pensamento coevo,
uma sociedade tecnologizada, auto-referente, inauguradora de uma espécie de determinismo
monádico para a qual a arte (tecnológica e não poética) se torna ausente de finalidade -
encapsulando todos os meios, a ordem tecnológica torna-se o próprio fim e a necessidade de
mediação simbólica perde o propósito.
Por mais essencialistas que nos soem estas palavras, a verdade é que Quatremère de
Quincy foi lúcido no modo como assegurou a coerência da sua lógica interna, na medida em
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!cenotaphs twice empty, these graves which even death has deserted?” Quatremére de Quincy citado in Didier Maleuvre, Museum Memories: History, Technology, Art Cultural Memory in the Present, pp. 25-26; 51 Trad livre do francês “(...) croyez-vous que la nation qui se seroit adjugé à son pretendu profit, quelques-uns des modèles du beau, comme autant de ballots de marchandises (...)” Quatremère de Quincy, “Cinquième Lettre” in Lettres à Miranda sur le déplacement des monuments de l’art de l’Italie, 1796, pp. 43 52 Trad livre do francês “(…) les artistes et leurs ouvrages tourneraient sans fin pour l’usage de la société qui n’en userait jamais” in Quatremère de Quincy,, Considérations morales sur la destination des ouvrages de l’art, pp. 42
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que elegeu um enunciado-motor ao qual foi fiel em todos os seus textos – a arte é feita de
matéria e por isso é parte vivente do substrato material da existência, e, deste modo, o valor
das obras de arte está menos na sua capacidade em nos apresentarem perfeição formal, do que
na autenticidade dos seus usos e vida pública, isto é, que à arte bela é exigida utilidade moral,
e que, portanto, a arte não irrompe da cultura (como em Hegel) mas se inscreve na e se verga
à - cultura na qual é produzida. 53 Por outro lado, a sua crítica, por ter sido capaz de olhar o
museu de arte no enquadramento geral do seu tempo e no âmbito das transformações que à
altura a arte começara a anunciar, ilumina não só as teorias preocupadas com a perda da
essência da arte, como aquelas que se debruçam sobre a ameaça que os museus constituem em
termos sociais e económicos.
2. Martin Heidegger
Podemos nesta altura incluir Quatremère de Quincy naquela linhagem estética54 que
tivera início no século XVIII com Baumgarten e mais tarde com Schiller, estabelecida em
torno de dois princípios fundamentais, a função moral da beleza e a especial ligação da arte à
sua natureza concreta, à sua existência material, na qual se plasma e, mais que isso, se joga55
a vida, e que podemos sintetizar nas palavras de Schiller na sua décima segunda carta a
propósito daquilo a que chama o impulso sensível: “O primeiro destes impulsos, a que
pretendo chamar sensível, parte da existência física do ser humano, ou da natureza sensível
(...) o âmbito deste impulso estende-se até onde o homem é finito; e assim como toda a forma
só aparece numa matéria e todo o absoluto apenas por intermédio dos limites, o impulso
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!53 vide Ibidem, pp. 45-47 54 Podemos distinguir com clareza, entre os discursos estéticos dos séculos XVIII e XIX, duas grandes linhas teóricas. Embora os autores integrantes de uma e doutra apresentem pontos de aproximação e mesmo de contacto directo, elas são essencialmente diferentes na discussão ontológica da arte, no estatuto epistemológico que atribuem à arte e à beleza e à função prática da obra de arte. vide Kai Hammermeister, The German Tradition in Aesthetics, Cambridge University Press, Cambridge, 2002 55 Por razões de economia textual e grau de pertinência para o tema concreto da nossa tese, uma análise aprofundada da estética de Schiller ficará à margem da nossa investigação. Tomamos-lhe contudo de empréstimo o termo pulsão de jogo (Letter XIV in Schiller, Letters Upon the Aesthetic Education of Man, por lhe reconhecermos uma capacidade ímpar de descrever a relação específica das sensações provocadas pela aparência formal de um objecto de arte que se mantém válida no contexto de todas as estéticas que consideram a beleza uma propriedade objectiva.
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sensível é aquele ao qual se prende, por fim, toda a aparição da humanidade.”56. Embora
Schiller, que cedo transformou a sua empreitada pela aufklärung numa condenação à
Revolução Francesa, não se tenha pronunciado abertamente em relação ao que significaria
deslocar as obras da sua origem, somos capazes de adivinhar, por entre as linhas das suas
Cartas pela Educação Estética do Homem, a importância que colocava no vínculo da obra de
arte à sua morada original – só aí a arte se dá a ver como objecto inscrito na vida e cumpre a
sua vocação moral. Quer isto dizer que a museificação, como retirada das obras das suas
circunstâncias de produção, não apenas arrisca a ligação da arte à vida, como compromete
esse fazer sentir que só à arte seria próprio. Sentir será, aqui, o termo-chave, a arte aprisionada
no espaço estéril do museu, versada a topos do intelecto, torna-se incapaz de estimular as
sensações e, portanto, de originar a síntese entre o sujeito e o objecto, a consciência e a
envolvência, a mente e a matéria. Esta será a ideia dominante nos discursos estéticos do
século XVIII, malgrados os esforços de Immanuel Kant para distinguir claramente o objecto
estético dos sentimentos que provoca, e que persistirá pelo menos até à publicação da Estética
de Hegel – onde a arte será por fim resgatada da ideologia do objecto que faz sentir, para ser
descrita como aquilo que “não é ainda puro pensamento mas que, apesar da sua aparência
sensível, não é apenas pura existência material, como as pedras, as plantas e a vida
orgânica.”57 Ainda assim, este ponto de equilíbrio entre o materialismo e o idealismo, ou, se
quisermos, entre o concreto sensível da obra de arte e o pensamento transcendental da pura
abstracção, que ocorre na estética hegeliana, é de certa forma um equilíbrio frágil e algo hostil
a constituir-se como novo paradigma da crítica da natureza da arte e das suas obras. E talvez
por isso, da segunda metade do século XIX até à primeira do século XX, continuamos a
encontrar essa cesura que com Hegel poderíamos ter julgado ultrapassada. Cesura que se
torna absolutamente manifesta quando o assunto é a desconfiança em relação à cultura dos
museus e que não discrimina entre conservadorismo e vanguarda, fenomenologias e
materialismos. Didier Maleuvre58, numa obra que se inicia como taxonomia histórico-
filosófica dos museus de arte para desembocar numa belíssima análise de La Peau de chagrin
onde se pensa a musealidade a partir da viagem estética da curiosa figura balzaquiana de
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!56 Schiller, Sobre a Educação Estética do Ser Humano numa Série de Cartas e outros textos, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, pp. 54
57 Trad livre do inglês “It is not yet pure thought, but, despite its sensuousness, is no longer a purely material existent either, like stones, plants, and organic life” in Hegel, Aesthetics: Lectures on Fine Art I, pp. 38
58 vide Didier Maleuvre, Museum Memories: History, Technology, Art Cultural Memory in the Present,
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Raphaël, afirma mesmo que o museu de arte, pela sua particular configuração, alcançou um
invulgar lugar no discurso como doxa da filosofia moderna, capaz, como poucos outros, de
confundir posições filosóficas e afiliações políticas absolutamente distintas - Quatremère,
Heidegger e Adorno, Marinetti e Malevich.
Será em Martin Heidegger mais do que em qualquer outro filósofo, que encontraremos
o mais quatremeriano dos desagrados em relação ao museu de arte e, antes disso, à própria
disciplina da estética. Talvez importe em primeiro lugar, traçar uma introdução, ainda que
superficial, à filosofia de Heidegger pós-Sein und Zeit – que optámos por excluir da nossa
investigação, na medida em que SuZ59 não nos oferece categorias onde caiba a análise da obra
de arte, se não como conceito-limite à margem do Dasein60 – para nos focarmos naquela que é
considerada a sua obra seminal sobre arte – Der Ursprung des Kunstwerks.61 Apesar da
intensidade tortuosa da sua prosa, a obra de Heidegger é relativamente favorável à repartição,
assumindo SuZ como intermeio. Todavia, também aqui, a opinião dos intérpretes é dividida e
oscila entre o reconhecimento de três ou quatro estágios: o de Friburgo, caracterizado pelo
questionar das Investigações Lógicas de Husserl e repensar do aristotelismo; o do consolidar
da ontologia fundamental (por oposição à noção husserliana de ontologia formal ) com SuZ; a
viragem declarada na Brief über den Humanismus (1947) – a saber, da pura ontologia que
decreta a temporalidade como à priori transcendental, fundamental ao modo de ser específico
do Dasein, ao conceito de habitar (wohnen), que passa a marcar o ser-aí humano e já não
apenas o modo de estar-no-mundo como em SuZ, como aquele que permanece abrigado, que
se detém, mas liberto no seu próprio ser (habita aquele que se de-mora sobre a terra); para a
intensificação espacial que marca os escritos tardios - e que encontramos preliminarmente
formulada Beitrage zur Philosophie (Vom Ereignis) (1936-38, publicada apenas em 1989) e
consolidada em Bauen Wohnen Denken (1951), nos seus textos e palestras sobre a técnica e
naqueles sobre a arte, cujo culminar será a noção de quadratura [Geviert] que alguns teóricos
consideram ser já sintoma de um quarto e final estágio da ontologia heideggeriana. Se
Heidegger teve três ou quatro fases mais ou menos definidas, pouco nos interessa para o caso,
interessa-nos, porém, reconhecer que a sua viragem “estética” – para a qual não existem aspas
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!59 Por razões económicas referir-nos-emos, doravante a Sein und Zeit (1927) pelo acrónimo SuZ. 60 Heidegger descreve Dasein como “(…) uma entidade em que, no seu próprio ser, comporta em si em relação ao Ser (…)” sendo um conceito nuclear ao longo da sua obra, especialmente em Sein und Zeit. 61 Por razões económicas referir-nos-emos, doravante a Der Ursprung des Kunstwerks (1936) pelo acrónimo DUdK!
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suficientes - só foi possível através da evolução, ou viragem (die Kehre62) do seu pensamento
nas décadas que se seguiram a SuZ, nomeadamente pela introdução do conceito de Terra e
sua relação, aparentemente irreconciliável, com a ideia prévia de Mundo, mais tarde
convertida em Geviert - terra sobre a qual moramos, céu sob o qual moramos, entre os mortais
e ante os deuses. Ora, será justamente através de uma leitura hermenêutica da essência ou do
ser da obra de arte, que Heidegger será capaz de conciliar mundo e terra, por meio de um
outro conceito, o de verdade originária, pensada como jogo livre63 de encobrimento e
desocultamento, no qual se lança o ser-aí humano. Leitura essa que, importa acrescentar,
Heidegger enquadra no diagnóstico geral da condição do homem moderno ante o domínio da
técnica, que encontramos distintamente explicitada em Die frage nach der Technik.
Será então em DUdK, publicado em 1936, que encontraremos modularmente fundamentadas
as linhas orientadoras do questionar heideggeriano pela arte. Embora DUdK se constitua
como um dos textos mais completos (e menos polémicos) da filosofia de Heidegger, será
interessante cruzá-lo com um outro ensaio, Über die Sixtina, de 1955, que precede a segunda
edição (adendada e aquela à qual aqui nos referimos) de DUdK nas páginas da Holzwege e
que nos oferece uma análise apaixonada da Madona de S. Sixto, transladada para a galeria de
Dresden. A pergunta pela origem da obra de arte é, sem surpresa, a pergunta pela essência da
arte, pelo seu situar no enquadramento geral da condição humana, e será este salto do ôntico
para o ontológico que permite a Heidegger colocar a questão do ser. Isto é, para Heidegger,
aquilo que a arte é, não se esgota na coisalidade de cada obra, embora a arte seja também !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!62 “Die Kehre ist in erster Linie nicht ein Vorganf im fragenden Denken; sie gehört in den durch die Titel [Sein und Zeit / Zeit und Sein] genannten Sachverhalt selbst” [Kehre não é um processo de questionar o pensamento, mas sim respeitante aos factos mencionados nos títulos [[Ser e Tempo / Tempo e Ser]] Kehre foi, na verdade, um termo eleito pelo próprio Heidegger para designar o movimento de circularidade interna do pensamento, o descobrimento do pensar como um pensar giratório [kehriges Denken], análogo àquele da ontologia fundamental mas que, já na década de ’40, começara a ser utilizado a respeito do salto ontológico-ôntico-ontológico mas também estilístico que os leitores de Heidegger encontraram na sua obra. 63 Admitindo que uma abordagem da filosofia da arte em Heidegger seria merecedora, quer pela complexidade, quer pela própria auto-referencialidade, de uma extensão que esta dissertação não permite, consideramos importante, sobretudo para destacá-lo do conceito de jogo livre em Schiller, elucidar o significado deste jogo em Martin Heidegger a partir do príncipio de fundação [Gründung] . Em Ukw encontramos três sentidos de fundação (espacio-temporal, sintoma de um estágio tardio da ontologia heideggeriana): fundação como doação livre, como fundamentação ou auto-assentamento num solo projectado, e, finalmente, como início, lançamento em que, de uma vez só, se percebem príncipio e fim. Noutros termos, fundação corresponde ao espaço de jogo do tempo – jogo que une espaço e tempo, não se dão paralelos mas implicam-se mutuamente no acto de irromper do ser. A partir da noção de áion em Heráclito (fragmento 52) como uma criança que brinca face ao kronos e ao kairós, Heidegger terá concluído um das suas últimas palestras, postumamente organizadas sob o Der Satz vom Grund, com uma frase quase tão célebre como a resposta que dera na sua última entrevista à Der Spiegle “O destino [Geschick] do ser: um criança que joga.” (...) Porque brinca a criança que joga o jogo do mundo(...)? Joga porque joga. O porquê afunda-se no jogo. O jogo é sem porquê. Joga-se enquanto se joga”.
! ! 45
coisa, por ontologicamente carecer de materialidade; não se esgota sequer no ser-
manifestação ou produto de um sujeito, embora tal pese também na sua constituição; mas
apresenta a erupção de uma verdade originária e de um ser mais profundos que, embora
emanem do objecto e se deem no homem e através dele, abrem uma dimensão não definida,
não determinada, não entificada, aquilo a que Heidegger chamará propriamente o ser [Sein].
Isto é algo que vemos anunciado logo nas primeiras linhas de UdK e ao qual Heidegger
regressará assim que terminadas as elaborações mais práticas – a da definição do artista pela
obra, da obra pelo artista e de ambos pela arte e da arte por eles. Noutros termos, havendo
matéria na obra de arte, tal nada nos revela sobre o artístico, ao artístico encontrá-lo-emos
justamente na capacidade indexal da obra, de se abrir para dar a ver outra coisa – “A arte é
símbolo”64. Podemos então referir-nos a dois rostos da obra de arte – um visível e definido,
aquele dos conteúdos humanos da obra e outro, projectado neste, e que é oculto e invisível. O
ser-obra da obra de arte ou, se quisermos, a sua essência, dirá então respeito ao potencial da
arte em emergir da existência (elaborar a terra), enformando a imagem daquilo que é (levantar
um mundo).!Heidegger exemplifica esta operação com o templo grego, introduzindo o já
aludido conceito de Terra, para o qual mundo e terra são essencialmente distintos e, no
entanto, nunca estão separados - o mundo funda-se na terra e a terra irrompe pelo mundo. No
templo grego, como lugar no qual a cultura (como Paideia) se relaciona com o mundo e a
physis exprime a terra, ocorre esse erguer, em que a terra se oculta, para dar a ver o encontro
do Dasein (ser-no-mundo) com o ser. A eleição da arquitectura como forma de arte magna na
ontologia heideggeriana não é surpreendente, na medida em que expressa claramente o
enraizamento do mundo humano na terra – o vínculo ao espaço – cuja narrativa nos aparece
iluminada e guardada em cada obra de arte.!!
Retenhamos isto e retrocedamos um pouco - que o termo estética tenha sido cunhado
por Baumgarten e utilizado para designar um determinado campo da filosofia, não significa
que não se fizesse estética num momento prévio ao seu baptismo. Heidegger chega mesmo a
afirmar que não existiu nunca – após Platão e Aristóteles – uma tipologia de relação com a
arte que não fosse fundamentalmente estética65. Ora, se tal é o caso e se Heidegger se quedou
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!64 Martin Heidegger, “A Origem da Obra de Arte” in Laura de Borba Moosburger, A Origem da Obra de Arte de Martin Heidegger: Tradução, Comentários, Notas, pp. 7
65 cf. Martin Heidegger, Nietzsche cit in Didier Maleuvre, op. cit., pp. 46 onde se lê: “The name "aesthetics," meaning meditation on art and the beautiful, is recent. It arises in the eighteenth century. But the matter which
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incapaz de lançar alguma luz em direcção àquilo que seria a arte antes da estética, se não
negativamente – descrevendo aquilo que a arte pré-estética não é – de onde provém a sua
aversão à estética? A conclusão a que Heidegger chega ao levar a cabo este projecto é a de
que, desde Platão, o grande erro da filosofia Ocidental foi o do esquecimento do ser por
privilégio do estudo dos entes. O que Heidegger nos diz sobre a arte repousa naquilo que nos
diz sobre a técnica ou sobre a filosofia – formas temporalmente determinadas que chegaram
ao fim com a modernidade e com a vontade de controlar o futuro, não deixando que ele
simplesmente aconteça. Lembremos que, para Heidegger, a questão da arte corresponde à
questão da linguagem, como a da técnica à da política – através de uma operação silogística
simples, se a arte moderna representa a queda no meramente ôntico, se o museu é um espaço
de provocação da técnica como gestell, então o problema da arte é o da técnica e, por isso, o
da política, e deste modo enquadrará a situação da arte moderna na construção industrial e
tecnicizada do mundo, para a qual a morte da grosse kunst e o advento da disciplina da
estética funcionam como coordenadas fundamentais. Noutros termos, também a arte não foi
capaz de escapar à provocação da gestell.
O que a cultura dos museus inaugura de verdadeiramente perigoso é, assim, o
processo de estetização pelo qual se dá o silenciar do ser-obra pelo ser-objecto museificado –
no mundo da estética, a obra de arte perde esse capacidade de criar ser, ou de ser
acontecimento da verdade, o objectual triunfa sobre o essencial, a aparência museificada da
arte silencia a verdadeira obra de arte. O ser-obra da obra de arte foi justamente aquilo que a
estetização e, concomitantemente, a museificação, diluiram – na medida em que no mundo da
estética o ser-obra é substituído pela coisalidade da obra de arte. Heidegger argumentará então
que a ligação entre a arte e o ser – o ser-obra da arte que encontrou o seu florescer e a sua
morte na Grécia antiga – permanecerá indelevelmente no passado, ao contrário do que a
cultura do museu e da estética possam fazer crer. A arte tornou-se mero objecto, “Toda a
indústria da arte, não importa o quanto se tenha desenvolvido e que tudo movimente em prol
das próprias obras, alcançará apenas o ser-objeto das obras. Este, porém, não constitui o seu
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!the word so aptly names, the manner of inquiry into art and the beautiful on the basis of the state of feeling in enjoyers and producers, is old, as old as meditation on art and the beautiful in Western thought. Philosophical meditation on the essence of art and the beautiful even begins as aesthetics” !!
! ! 47
ser-obra.”66 Noutros termos, o ser-obra de uma obra de arte corresponde ao seu potencial de
imediaticidade – como no caso de Quatremère, a beleza de uma obra está no seu valor de uso
– de emergir da existência como sua formadora. Deste modo, também para Heidegger as
paredes do museu se erguem como barreira entre a obra de arte e aquilo que equaciona como
a verdadeira natureza artística, e o museu é-nos então descrito como mais um desses lugares
de provocação da técnica, da requisição da técnica como gestell. Situando todas as obras ao
mesmo nível o museu violaria a essência da obra de arte – na exposição apenas há lugares
[stelle] e não sítios [ort]. O destino da Madonna Sixtina, que apaixonou Heidegger pelas suas
características arquitectónicas, (alegadamente fundadora e consumadora da igreja de
Piacenza), torna-se o destino da arte ocidental – de bild a peça de museu, num desterro lógico
(a linguagem categorial que obriga a obra a ser determinada coisa) e geocultural, “As obras de
arte já não têm hoje a sua origem nas fronteiras de um mundo de povos e nações. Pertencem à
universalidade da civilização mundial. A sua constituição e organização são projectadas e
governadas pela técnica científica. É esta que decide acerca do modo e possibilidades da
estada do homem no mundo.”67
3. Theodor Adorno
A mesma questão preocupou críticos do pólo oposto do espectro político-filosófico,
nomeadamente os teóricos da escola de Frankfurt, dos quais se sublinha a intervenção de
Adorno sobre o museu como instituição alinhada com as forças da morte e, antes disso, como
instituição presa no jogo de forças entre as contradições da sua cultura, a cultura do
Iluminismo. Em primeiro lugar, há que destacar que a crítica cultural soube reconhecer no
museu de arte do século XX as mesmas características re-formadoras do seu análogo
Iluminista, que até à data teriam permanecido quase sempre à sombra das discussões acerca
da ameaça dos museus à vida e à essência das obras de arte. Todavia, afirmar que aquilo que
se observa é da ordem de uma deslocação de referente – a saber, da preocupação em relação
aos efeitos do museu, outrora colocados do lado das obras, agora pensados em termos da
sociedade – parece-nos demasiado redutor. Noutros termos, o que se observa não é o !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!66 Martin Heidegger, “A Origem da Obra de Arte” in Laura de Borba Moosburger, op. cit., pp. 27
67 Martin Heidegger, A proveniência da Arte e a determinação do Pensar/ Conferência de Atenas (Irene Borges-Duarte trad.) pp. 6 (disponível em linha: martin-heidegger.net)
! ! 48
abandonar de uma premissa, como aquela que encontrámos em Heidegger, para a qual o
museu silencia e neutraliza as obras de arte, mas antes a sua expansão pelo reconhecer do
museu como lugar de alienação, com o fim último de reformar o indivíduo, conformando-o,
ou, como lemos na secção das “indústrias culturais” da Dialektik der Aufklärung: “A barbárie
estética consuma hoje a ameaça que sempre pairou sobre as criações do espírito desde que
foram reunidas e neutralizadas a título de cultura"68. Formalmente aberto a todos – como o
museu iluminista – informalmente exclusivo e discriminatório, o problema dos museus e,
concomitantemente, o seu impacto, está tanto nos objectos que expõe quanto nesses processos
de exposição. Walter Benjamin explicita-nos isto muito claramente a propósito do
coleccionismo (que abordámos de soslaio no contexto da nossa análise histórica do
nascimento do museu de arte) quando nos diz que a preservação de um artefacto ou de um
objecto de arte depende da destruição do contexto de onde foi retirado e do qual surgiu
originalmente. Atentemos, para tal, que o termo alemão Bewahren, que aqui traduzimos por
preservar, deriva da raíz de Wahrheit [verdade] e deste modo obtemos uma definição de
preservar como aquilo que “dá a ver a verdade” e se aproxima de Aufbewahren [manter a
salvo] – uma construção contingente daqueles que decidem sobre aquilo que deve integrar
uma coleção. Curiosamente, e apesar das múltiplas afinidades – nomeadamente ao nível dos
ataques à suposta neutralidade política do espaço do museu - atemo-nos a considerar a
posição de Benjamin suficientemente representativa daquela da Escola de Frankfurt. Todavia,
talvez seja naquilo que diverge entre Adorno e Benjamin mais do que em qualquer tentativa
de conciliação que encontramos o que há de mais interessante para pensarmos o problema dos
museus.
Ao contrário do que ocorre com Benjamin, onde são escassas as referências à
instituição do museu de arte – o seu foco de interesse estaria mais do lado da prática do
colecionismo - Adorno dedicará ao problema dos museus um curto mas incisivo ensaio:
Válery, Proust, Museum. Porém, não nos parece justo para com Adorno, que se recusara a
pensar obra de arte e experiência estética como duas coisas separadas, olhar esse ensaio como
átomo deslocado do universo formado pela busca do pensar a arte na sua obra, que podemos
encapsular na questão, colocada por Adorno e por este (pelo menos parcialmente) respondida:
Qual deverá ser a posição da filosofia ante a obra de arte entendida como núcleo de !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!68 in Theodor W. Adorno & Max Horkheimer, Dialéctica do Esclarecimento, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1985, pp. 123!
! ! 49
objectividade própria? À síntese mais inteira de uma proposta que, de resto, nos surge quase
sempre repartida em meandros que recusam qualquer sistematização, encontrá-la-emos na
Ästhetische Theorie, publicada postumamente em 1970. No interior desta obra encontramos
detalhada a definição de arte de que nos serviremos para explorar a crítica adorniana à
musealidade – obra de arte como núcleo de objectividade, que abre uma possibilidade de
reflexão sobre si mesma onde subjaz a condição de possibilidade do seu ser como outro não-
idêntico e não-redutível, como modo-de-ser-pensamento e, ainda, como conteúdo de verdade.
Deste modo, a obra de arte é, em-si, objecto do pensamento filosófico, na medida em que é,
ela própria, pensamento. Assim, ante uma obra de arte particular, a indagação filosófica
debruça-se não apenas sobre o objecto de arte (subtraído a uma conceptualização subjectiva e
reverso à dissolução do seu ser próprio na identidade total) mas ainda sobre uma outra figura,
a que Adorno chamará racionalidade estética, também ela dimensão constitutiva do
pensamento. Como se começa a poder adivinhar, o movimento do pensar filosófico na
estética é, para Adorno, análogo àquele da filosofia em direção à auto-reflexão – perante a
exigência de uma intensificação crítica, o movimento do pensamento filosófico deverá ser o
de uma inflexão que reflicta acerca dos postulados que guiaram a tradição metafísica,
nomeadamente os de identidade e universalidade/ totalidade. Este é, portanto, um movimento
que se processa em malha dupla a partir do conceito de experiência [Erfahrung] da
irredutibilidade do outro como não-identidade [Nichtidentität] numa universalidade lógica;
por outras palavras, a experiência estética (como a experiência filosófica), é a do movimento
dialético entre a identidade e a não-identidade, ou entre o conceito universal e a concretude do
particular, entre o ontológico e o indelevelmente ôntico69. Dirigindo a crítica especificamente
a Hegel, Adorno escreve que “após a derrocada da tese geral do idealismo, o espírito é apenas
um momento nas obras de arte; (...)” e, embora sendo constitutivo da arte “(...)não está
presente sem o que lhe é oposto.”70 O conceito de espírito adquire uma curiosa tonalidade em
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!69 Adorno diz-nos ainda que “[o] mínimo resíduo ôntico nos conceitos [...] obriga a filosofia a incluir na sua reflexão o ente-aí. [...] O pensamento filosófico [...] [c]ristaliza no particular, no determinado no espaço e no tempo. O conceito de ente, sem mais, não é outra coisa que a sombra do falso conceito de ser.” Trad livre do espanhol “El mínimo residuo óntico en los conceptos (…) obliga a ésta a incluir en su reflexión el ente-ahí (…) El pensamiento filosófico (…) cristaliza en lo particular, en lo determinado en el espacio y el tiempo. El concepto de ente sin más no es otra cosa que la sombra del falso concepto de ser.” in Adorno, Dialéctica Negativa, (trad. Alfredo Brotos Muñoz) 2011, pp. 135-136 70 Trad livre do inglês “After the collapse of the general thesis of Idealism, (…) spirit is strictly one aspect of artworks; granted, it is that aspect that makes the artifact art, yet it is not in any way present without what is opposed to it.” in Adorno, Aesthetic Theory, Continuum, New York, 1997, pp. 343
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Adorno que, desafiando a acepção hegeliana, descreve o espírito de uma obra de arte como
“O que aparece (...) o que não pode ser separado do aparecimento, sem ao mesmo tempo se
identificar com ele – o não-fáctico na sua facticidade(...)”71. O binómio verdade-aparência
ocupa pois um lugar central na Teoria Estética de Adorno, essa aparência [Schein] da obra de
arte como totalidade ou identidade total, embora condição necessária para que cada coisa seja
uma coisa em si mesma, é apenas isso, aparência; nos termos de Adorno “As obras de arte,
embora pareçam um ente, são a cristalização do processo entre esse espírito e o seu outro.”
Pela obra de arte irrompe essa pretensão de semelhança que contém em si o modo de desvelar
o em-si não-idêntico que subjaz no sujeito filosófico – negando em simultâneo a subjetividade
enquanto centro lógico-abstracto da identidade total e incitando a uma compreensão de si pela
crítica auto-reflexiva. Deste modo, a aparência de uma obra de arte é, simultaneamente,
condição e obstrução do seu conteúdo de verdade. Todavia, há que saber separar esta
aparência, daquilo que ela suscita, noutros termos, da ilusão de que um absoluto aparece na
obra ou de que a obra é, em si, absoluta. E por isso Adorno discrimina entre aquela “aparência
necessária” a que cada obra seja uma coisa em si mesma e uma cert “aparência ideológica”,
nascida de uma concepção fetichista da autonomia e aquela que estará em causa na obra de
arte exposta em museu.
Em Valéry, Proust, Museum, Adorno identifica precisamente os dois princípios que
orientam a sua crítica – em primeiro lugar, que os museus subtraem às obras a sua vida e que
neutralizam a cultura; em segundo, que os museus são cúmplices da ideologia do absoluto,
por serem instâncias do operar da descontextualização como estratégia de poder. Adorno
inicia o ensaio com aquela célebre expressão que hoje se tornou topos discursivo em quase
todos os ensaios sobre a problemática dos museus: “O museu e o mausoléu estão conectados
além da sua associação fonética. São testemunhos da neutralização da cultura.”72 A ideia é sua
e lembra-nos as asserções quer de Quatremère, quer de Heidegger, o modo como a explora (e
a ela regressa) será feito, como o título indica, pelo confronto das vozes de duas personagens
consagradas na literatura do século XX, Paul Válery e Marcel Proust. Ao primeiro, Adorno
separá-lo-á como um elitista infeliz, ao segundo, como um diletante - de um, Le problème des
Musées (1923) do outro, À la Recherche des Temps Perdu (1913-1927). O que está em causa !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!71 Trad livre do inglês “What appears (…) and is neither to be separated from their appearance nor to be held simply identical with it - the nonfactual in their facticity (…)” in Adorno, Ibidem, pp. 87 72 Trad livre do inglês “Museum and mausoleum are connected by more than phonetic association. (…) They testify to the neutralization of culture” in Adorno, “Valéry, Proust, Museum” in Prism, pp. 175
! ! 51
é o binómio entre o prazer desinteressado e o prazer organizado, ou a organização do prazer,
que podemos albergar sob o já extenso dístico sensível/ científico que Valéry jocosamente
evoca quando descreve a sensação que lhe é despertada ao entrar na secção de pintura de um
qualquer museu – um horror sagrado, fruto de uma estranha desordem organizada. No museu
as obras competem pela atenção do visitante, “É um paradoxo; quanto mais estas maravilhas
independentes se tornam mutuamente antagonistas, mais se assemelham umas às outras... Esta
pintura, costuma dizer-se, mata as outras que a rodeiam”73. A arte, para Valéry, perdera-se no
momento em que o seu lugar no imediatismo, o seu contexto funcional, a abandonou à sua
carcaça de objecto decorativo. Adorno será crítico desta posição e dir-nos-à sobre Valéry que
este, ao elevar a l’art pour art ao extremo da sua negação, subsume a “pura obra de arte” a
objecto do absoluto, ameaçada pela neutralização e reificação - a obra de arte, dentro do
museu, perde a sua dignidade, a sua razão de ser. Por outro lado, o museu impede o
envolvimento da arte na praxis da história, reintroduzindo, simultaneamente, nas obras de
arte, algo que, embora tenha a aparência de histórico, não é se não aquilo a que Adorno chama
um sedimento historiográfico, daquilo que resta da história. A crítica lançada por Válery
assenta justamente nesta contradição – o museu ameaça a sacrossantidade da obra de arte
como núcleo único que em si condensa o belo e o histórico, sendo, todavia, o capacitante
fundamental de à arte ter sido dado esse status entre o belo e o histórico ou entre o sagrado e o
estético. Decerto que o museu separa tanto a arte da vida, quanto as obras de arte umas das
outras, porém é nessa insistência na universalidade que obriga a que as obras co-existam
justamente porque são todas belas e todas são únicas, que Valéry estabelece o seu lamento – o
museu protege a individualidade mas fá-lo por meio da sua neutralização. Esta abordagem dos
objectos no museu de arte como ruínas da história para as quais olhamos com distanciamento
olímpico (alienação historiográfica/ aparência da arte como totalidade) é retomada por
Adorno quando coloca o museu lado a lado com a gare (pintada por Manet e tão bem descrita
por Proust) naquilo que de um e doutro emerge e que os torna lugares de morte. Não nos
iludamos, todavia, naquilo que esta morte possa parecer ter de quatremeriano, Adorno refere-
se concretamente a uma morte inserida na experiência moderna e racionalizada; nestes
lugares, nucleares à movimentação livre das massas no século XIX, o sujeito verga-se a um !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!73 Trad livre do francês “C’est un paradoxe que ce rapprochement de merveilles indépendantes mais adverses, et même qui sont le plus ennemies l’une de l’autre, quand elles se ressemblent le plus. (…) Ce tableau, dit-on quelquefois, tue tous les autres autour de lui…” in Paul Valéry, “Le Problème des Musées” in Valéry, Œuvres II, pp. 1290-1293
! ! 52
trilho teleológico, ordenado pela cronologia da história num caso, e pelo relógio, no outro.
Face a isto, o que Valéry propõe é um enquadramento para a obra de arte que seja
simultaneamente impositivo e neutro – afinal, o museu de Valéry tem o veneno numa mão e o
antídoto na outra - ao que acrescentará, todavia, que apenas a arquitectura será capaz de
colocar as obras nos sítios certos. Em certos aspectos a visão de Adorno será mais
conservadora que aquela de Valéry, todavia Adorno não cessa - talvez mais por razões
comparativas - de nos dar a ver uma imagem de Valéry como representante do
conservadorismo, para o qual a cultura é uma pura coisa em si, ao passo que Proust, dada a
“sua extraordinária sensibilidade de mudanças, em modos de experiência”74, teria a habilidade
de olhar a história como se de uma paisagem se tratasse, justamente por reconhecer que a
história comanda as obras de arte como um processo de desintegração. Ao lamento de Válery,
Adorno contrapõe a celebração de Proust, que nos diz que a obra de arte está em “casa” no
justo momento em que faz parte da subjectividade do observador - “A necessidade objectiva
de que nos fala Valéry é realizada através do acto de espontaneidade subjectiva que Proust faz
o único repositório de todos os significados e felicidade”75. Adorno reconhece não só o erro
de Valéry como a sua irresolução, considerando a insubsumilidade da arte, Valéry terá
operado a redução da identidade do objecto artístico ao seu contexto de criação. Face a isto
Adorno argumentará que o que está perdido, a função originária da arte na vida, estará
irrevogavelmente perdido, e não apenas isso - qualquer tentativa de recuperar artificialmente
esse laço, exibindo, por exemplo, “(...)pinturas no seu contexto original ou noutro similar (...)
o resultado é ainda mais consternante que aquele provocado pelo arrancar das obras do seu
contexto original(...)”76 e sua exposição no museu. Neste aspecto, a posição de Adorno
aproxima-se mais da figura do burguês cristalizada em Proust, que em Recherche du temps
perdu escreve (e Adorno cita) que “(...) a obra-prima que se contempla durante o jantar, não
provoca a mesma alegria embriagadora que só se lhe deve exigir numa sala de museu, a qual
simboliza melhor, com sua nudez e seu despojamento de todas as particularidades, os espaços
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!74 Trad livre do inglês “(...) his extraordinary senstitivity to changes in modes of perception (...) in Ibidem, pp. 181 75 Trad livre do inglês “The objective necessity of which Valéry speaks is realized only through the act of subjective spontaneity which Proust makes the sole repository of all meaning and happiness” in Ibidem, pp. 184 76 Trad livre do inglês “paintings in their original surroundings or in ones similar (…) the result is even more distressing than when the works are wrenched from their original surroundings and then brought together.” in Adorno, “Valéry Proust Museum” pp. 175
! ! 53
interiores em que o artista se abstraiu para criar.”77 Para Proust, a arte perdeu o seu
imediatismo porque excedeu as suas qualidades estéticas, as obras de arte fazem parte da vida
do espectador, tornando-se mesmo um “elemento da sua consciência”78.
Adorno opera então uma síntese entre estes dois pólos distintos – aquele de Válery,
preocupado com as intenções do artista e do significado original da obra, e aquele de Proust,
celebratório do mundo que o museu abre ao espectador, capaz de reinterpretar e dar uma nova
vida à obra, encontrando-lhe significados que o artista não antecipara – para aproximar uma
definição dialética do modo de recepção da obra de arte, que se coaduna com a definição de
arte como vimos em Äesthetiks Thëorie. Na qual o significado da obra de arte não se esgota
nas intenções do artista mas também não se encontra na arbitrariedade do visitante que a si se
projecta na obra; noutros termos, o processo de recepção e, concomitantemente, o de
interpretação, exigem um envolvimento entre aquilo que a obra de arte objectivamente requer
e um acto de subjectividade, “A contradição segundo a qual toda a obra de arte quer se
compreendida nos seus próprios termos embora não possa, de facto, ser assim compreendida,
é a contradição da qual emerge o conteúdo de verdade”79, a verdade da obra de arte reside na
sua incapacidade de se fazer quer puramente autónoma quer totalmente heterónoma, e por
isso o conteúdo de verdade da arte não se constitui se não negativamente.
Na verdade, o pessimismo de Adorno que lamenta o dissolver da distância entre a obra
de arte e o empírico “...sem que, no entanto, a arte tenha sido restituída à vida livre que não
existe.” 80pinta um quadro negro da arte dos seus dias do qual não escapam nenhuma das
vanguardas artísticas que no seu tempo viu nascer. Diz-nos Adorno que os museus nunca irão
fechar nem que existirá qualquer desejo em fazê-lo, na medida em que as “colecções naturais-
históricas do espírito transformaram as obras de arte em hieróglifos da história”81
acrescentando-lhes um novo significado - o problema não é colocado apenas pelo museu de
arte como instituição alinhada com o exacerbar do racionalismo mas pela impossibilidade da !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!77 trad livre do inglês: “But the masterpiece observed during dinner no longer produces in us the exhilarating happiness that can be had only in a museum, where the rooms, in their sober abstinence from all decorative detail, symbolize the inner spaces into which the artist withdraws to create the work.” in ibidem pp. 178 78 Trad livre do inglês “(...) elements of his consciousness” in Ibidem,pp. 181 79 Trad livre do inglês “(...) which has compromised art with the lie throughout its history, becames an aversion to any resultant, without which art cannot conveived no more than it can be without the tensions out of which it emerges” in Adorno, Aesthetic Theory, pp. 53 80 Trad livre do inglês “(…) without however art’s thereby returning to a realm of freedom, which in any case does not exist.” in Adorno, Aesthetic Theory, pp. 253 81 Trad livre do inglês “The natural-history collections of the spirit have actually transformed works of art into hieroglyphics of history” in Adorno, “Valéry Proust Museum”, pp. 185
! ! 54
arte, alguma vez, tornar a ser autêntica, imediata como não-mediada. O luto pela
autenticidade aparece-nos, assim, numa quase sinonímia com a modernidade estética “como
se a mente moderna visse na arte uma última esperança na experiência autêntica”82, à qual
Adorno não escapa. É justamente aqui que cremos identificar o fulcro distintivo entre a visão
de Adorno sobre a arte dos seus dias e aquela de Benjamin, profundamente apaixonado pelo
novo, pelas vanguardas e pelas possibilidades da reprodução tecnológica. Sobre Benjamin,
Hannah Arendt escreve certa vez que "A sua erudição era grande, mas ele não foi um erudito;
o seu trabalho tinha a ver com os textos e a sua interpretação, mas não era um filólogo; sentia-
se extremamente atraído, não pela religião, mas pela teologia e pelo tipo de interpretação
teológica segundo o qual o próprio texto é sagrado, mas não era teólogo e não manifestou
especial interesse pela Bíblia; era um escritor nato, mas a sua maior ambição foi criar uma
obra exclusivamente composta de citações; foi o primeiro alemão a traduzir Proust e Saint-
John Perse, e já antes disso traduzira os Tableaux Parisiens de Baudelaire, mas não era um
tradutor; (...) ele pensava poeticamente mas não era poeta nem filósofo".83 Sabemos, todavia,
que terá sido em Das Kunstwerk im Zeitalter seiner technischen Reproduzierbarkeit,
infinitamente citado e apropriado, bem ou mal compreendido, que se dá o momento seminal
na filosofia benjaminiana da relação da arte com a sociedade. Para Benjamin, o modo de
recepção da arte em museu, envolveria uma espécie de transposição da relação
hierarquicamente desigual entre indivíduos de diferentes camadas sociais para a relação entre
o visitante e a obra da arte, na qual o primeiro, pela distância e carga simbólica do objecto
exposto, se subordina à autoridade do segundo. Esta operação dá-se então pela misteriosa
figura da aura, que em tempos residira nas forças ritualísticas de uma obra, e, portanto, no seu
valor de uso no contexto ritual e que, no caso da obra exposta em museu, a investe de um
valor como objecto de um culto outro, secular, a que podemos chamar o culto da beleza, do
génio ou do original. Essa semelhança das obras de arte em museu com a sua vida anterior no
seio do culto ou do ritual, seria ampliada pelos mecanismos de regulação comportamental do
museu – justamente aqueles a que alude Válery – e que despem o visitante de qualquer função
crítica, convertendo-o em sujeito de uma passividade contemplativa. Porém, as afinidades
entre Benjamin e Válery aí se esgotam, ou pelo menos entre o Benjamin da era da technischen !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!82 Trad livre do inglês “It is as though the embattled modern mind saw in art the last change of authentic experience” in Didier Maleuvre, Museum Memories: History, Technology, Art, pp. 20
83 Hannah Arendt, Homens em Tempos Sombrios (Ana Luísa Faria trad.), Relógio d’Água, Lisboa, 1991. pp.180!
! ! 55
Reproduzierbarkeit e o Valéry de Le Probleme des Musées. Enquanto Benjamin acusa o
museu de alienar as obras de arte do visitante por fazê-las únicas e insubstituíveis, Válery
censura a ausência de individualidade ou particularidade de cada obra, devorada por todas as
outras e pelas aspirações unificantes da própria colecção. Em todo o caso, o modo pelo qual
podemos julgar compreender o estatuto da obra de arte subtraída da sua aura pelas tecnologias
de reprodução, será sempre incompleto se nos abstrairmos do estatuto geral da obra de arte na
constelação benjaminiana. Em primeiro lugar, há que lembrar que a aura é algo que não pode
ser compreendido se não retrospectivamente – o reconhecimento da aura como aura só
emerge quando esta se perde. Sobre aquilo a que se refere quando refere a “aura”, Benjamin
será particularmente críptico: “a aparência única de uma distância, por mais perto que
estejamos dela”84, e oscila entre uma analogia com o conceito de autenticidade, uma
dimensão da percepção historicamente variável, o núcleo sensível do tempo da obra ou algo
que se destrói “despindo um objecto da sua capa.”85 Será, todavia, na sua analogia com a
autenticidade, que melhor podemos compreender a figura da obra de arte aurática cristalizada
como produto do génio nas paredes de um museu. Nos termos de Benjamin “Uma imagem
medieval da Madonna não era em seu tempo entendida como autêntica; apenas nos séculos
seguintes pôde ser pensada como tal e talvez ainda mais enfaticamente a partir do último
século.”86 e tal ocorre justamente por meio de um processo negativo - havendo reprodução, há
original. Benjamin é extraordinariamente lúcido no modo como expõe a fragilidade do termo
autenticidade, como algo que não teve origem em si mesmo mas somente por contraponto ao
seu contrário. Através da aura preserva-se a historicidade pela figura histórica de um “já não”,
suspensa sobre o presente, uma manifestação singular da distância entre as coisas. A obra de
arte museificada, monumentaliza-se pela sua relação com a história, ou com a sua era
histórica, por ser essencialmente disjuntiva.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!84! trad. livre do inglês “(...) unique phenomenon of a distance however close it may be.” In Walter Benjamin, “The Work of Art in the Age of Mechanical Reproduction” in Illuminations (Hannah Arendt org.), 1969, pp.21 85!trad. livre do inglês “To pry an object from its shell (...)” in Ibidem, pp.5 86 trad. livre do inglês: “(...) at the time of its origin a medieval picture of the Madonna could not yet be said to be ‘authentic’. It became ‘authentic’ only during the succeeding centuries and perhaps most strikingly so during the last one,” in Ibidem, pp.20
! ! 56
Do paradigma do Altes Museum à galeria de arte contemporânea
“O museu é o espelho colossal no qual o homem por fim se contempla, em todos os
aspectos, onde se vê literalmente admirável e se abandona ao êxtase expresso em todas as
críticas de arte.”87
Quer defendamos que foi pelo museu que a arte se inventou no sentido moderno da
estética88 ou que não existiu nunca, desde Platão e Aristóteles, um modo de relação com a arte
que não fosse já propriamente estético89, é certo que há desde pelo menos dois séculos, pensar
a arte fora do contexto do museu se tornou uma tarefa quase impossível. Se no capítulo
anterior operámos uma suspensão destas contendas para nos dedicarmos a uma análise das
principais vozes da crítica à museologia, encontramo-nos agora diante da urgência de
regressar uma vez mais à estética de Hegel, cristalizada no modelo do Altes Museum, para a
partir dela pensarmos a particular relação entre os museus e as obras de arte no modo como, a
par e a passo, foram evoluindo e fundando novas categorias. Este será também o momento em
que deslocaremos o foco para a recepção do museu de arte pelos artistas para
compreendermos que, à luz da dialética hegeliana, quer as posições dos teóricos quer as dos
artistas, repousam numa antinomia essencial que conhecerá singular concretização – não
como recusa mas como reconhecimento da irresolubilidade - no Musée d'art Moderne de
Marcel Broodthaers. Neste momento, mais do que em qualquer outro no curso da nossa
investigação, importa enquadrarmos as palavras de Hegel no quadro restrito da era em que
vivera, até porque entre a estética de Hegel e a tipologia moderna do museu de arte existem
afinidades muito práticas. Na história de arte ficou célebre a apreciação de Hans Belting90,
quando nos diz que a estética de Hegel firmara um sistema de fundamentação metafísica para
o museu de arte, na medida em que o museu torna concreta a ideia de olhar para as obras de
arte como obras da história da arte; máxima à qual poderíamos acrescentar que a arte se torna !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!87 Trad livre do inglês “The museum is the colossal mirror in which man finally contemplates himself to the ecstasy expressed in all the art reviews” in Neil Leach (editor) Rethinking Architecture: A Reader in Cultural Theory, pp.21 88 Cf. Jean-Louis Déotte, Le Musée, L’origine de l’Esthétique, Editions L’Harmattan, Paris, 2004 89 vide Martin Heidegger, Nietzsche, vol I, Routledge, London, 1981, pp. 80 onde Heidegger nos diz “Aesthetics begins with the Greeks at that moment when their great art and also the great philosophy that flourished along with it comes to an end. At that time, during the age of Plato and Aristotle, in connection with the organization of philosophy as a whole, those basic concepts are formed which mark off the boundaries for all future inquiry into art.” 90 vide Hans Belting, The End of the History of Art? ,The University of Chicago, Chicago, 1987
! ! 57
histórica e estética justamente quando morre, quando deixa de ter lugar na vida. Noutro tom,
Merleau-Ponty, que considerara Hegel o primeiro dos existencialistas,91 escreve em Signes
que “Hegel é o museu”92, não sem antes especular acerca da dupla natureza da função do
museu. A saber, a possibilidade de num só lugar, como “momentos de um único esforço”93
nos ser dado acesso a objectos tão distintos, que de outro modo estariam presos às
civilizações que lhes deram origem ou à experiência ritual que os animava, e portanto, que o
museu nos oferece uma história da arte ou a consciência da arte como arte. Mas que, por outro
lado, ao conceder uma espécie de falso prestígio às obras - lembremos que Merleau-Ponty
considera que a arte, (no seu exemplo, a pintura) está em estado puro apenas no artista que a
produz - o museu as compromete fatalmente. Noutros termos, que o museu furta à arte a sua
pureza originária, que muitas das obras que abriga “não estavam destinadas a reflectir um dia
a luz triste do Museu.”94, portanto, que se o museu permitiu que se traçasse uma história da
arte, fê-lo pela conversão daquilo a que Merleau-Ponty chama historicidade secreta e que
corresponde à vida mental que habita o artista, que o faz integrar determinado estilo unindo a
tradição que retoma com aquela que funda, como “a pulsação do seu coração”95, numa
história pomposa e oficial. E, neste sentido, afirmar que Hegel é o museu significa afirmar
que, como o museu, a filosofia de Hegel força um universo que só a partir de determinadas
regras - as suas - é que se torna compreensível.
1. Altes Museum
Retenhamos isto e recordemos que a faixa temporal concreta em que surgiu o museu
moderno, como o definimos no 2º capítulo, foi antecedida pela primeira publicação da FdG e
foi no seu quase imediato rescaldo que Hegel começara as palestras em Berlim. A estética de
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!91 Merleau-Ponty identifica a existência de duas fases distintas na obra de Hegel marcadas pela FdG como intermeio. Uma primeira que culminaria na Fdg, e que seria anacronicamente “existencialista”, por ser marcada pela alteridade e pelas tensões da experiência concreta. E uma segunda, depois 1807 de onde sobressai a ideia de que toda a oposição – porque epifenoménica – pode, em última análise, ser ultrapassada pela razão absoluta. Enquanto na primeira fase de Hegel, Merleau-Ponty encontra um sistema filosófico capaz de descrever a empreitada da filosofia moderna (Cf. Merleau-Ponty, “L’existentialisme chez Hegel” in Sens et Non-Sens, Les Éditions Nagel, Paris, 1966) , será todavia absolutamente crítico do segundo Hegel, como podemos observar quer na Phénoménologie de la Perception (1945) ou em Philosophie et non-philosophie depuis Hegel (1961). 92 Trad livre do francês “Hegel, c’est le Musée (…)”Merleau-Ponty, Signes, pp. 80 93 Trad livre do francês “(…) comme moments d'un seul effort (…)” Ibidem, pp. 62 94 Trad livre do francês “(…) n'étaient pas destinés à refléter un jour la lumière triste du Musée” Ibidem, pp. 62 95 Trad livre do francês “(…) la pulsation de son cœur (…)” Ibidem, pp. 62!
! ! 58
Hegel tem, sem surpresa, sido descrita como uma estética museológica, pela organização
museal da sua prosa, por saber compreender e antecipar a faceta prática do museu de arte,
dispondo a arte historicamente – que é o mesmo que dizer museologicamente - ou ainda,
como tem sido argumentado no último século, por propor ao museu de arte um novo
paradigma, concretizado na grande galeria do Altes Museum. Na verdade, entre a nossa
selecção de críticos, apenas Quatremère, pelas contingências do tempo em que vivera, dirige o
seu lamento ao museu do Louvre; Heidegger, Adorno e Benjamin escrevem-nos de um tempo
em que o museu de arte já evoluira para além dessa visão integrada como espaço político de
aprendizagem, preconizada pelo Iluminismo e pelas utopias de Francis Bacon ou Johann
Valentin Andrea, por um lado, e comparada à Biblioteca de Alexandria96 (Douglas Crimp,
Hooper-Greenhill, Beverly Butler), por outro. Menos de quatro décadas separam a
inauguração do Louvre (Musée Central) da abertura do Altes Museum em Berlim, trinta e sete
anos marcados pela abertura de outros museus públicos como o Museo del Prado em Madrid
(1820) ou a National Gallery em Londres (1824) que cimentam a edificação do museu como
instituição nos séculos seguintes, como lugar onde a arte já não surge como um imagem do
passado que paira sobre o presente, mas que para ele aponta e o contempla, do ponteiro final
da cronologia. Pela imposição do próprio museu como narrativa, tornou-se imperativo
compreender a arte para além da sua objectividade como representação visual e, portanto,
pela sua pertença à história como 1. produto de uma determinada era 2. instrumento
representativo da grandeza do povo que o possui. Neste sentido, a estruturação da história da
arte pelo museu, opera a aproximação de dois pólos da experiência moderna - a história dos
eventos (a história externa ou a história propriamente dita) que é no museu experienciada
como história do progresso das ideias e valores que perfazem a modernidade. A propósito do
museu que estava a ser construído em Berlim, Hegel terá dito aos seus alunos, numa
passagem agrupada na secção “Desenvolvimento Histórico da Pintura”, que naquela colecção
“(...)estará claramente reconhecível não apenas a história externa da pintura (...) mas o
progresso essencial da história interior (...)[sendo que] só um tal espectáculo vivo pode dar-
nos uma ideia do início da pintura (...) do seu tornar-se mais viva, ou da sua busca por
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!96 vide Beverley Butler, Return to Alexandria: An Ethnography of Cultural Heritage, Revivalism, and Museum Memory, Left Coast Press, California, 2007
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expressão e carácter individual.”97 Ante o Discóbolo, por exemplo, sabemos que a sua
existência nos precede em milénios, que aquela estátua participou de uma vida epocal numa
determinada era da história à qual não temos acesso empírico, todavia, a experiência que nos
toma ao olharmos para ela aponta para a sua presentificação como objecto histórico e
artístico. O museu, separado do mundo mas aberto a este como seu duplo, abre-nos um
paradoxo fundamental: é da secularização que advém a verdade constitutiva da arte moderna,
como arte fora-do-templo (pro-fanum) mas também a sua desverdade constitutiva, se arte não
é mais que apenas arte, é incapaz de reter os mais altos interesses.
No âmbito dos teóricos e historiadores de arte contemporâneos, Douglas Crimp é um
dos (se não aquele que) mais exaustivamente terá explorado a problemática dos museus de
arte. Embora a sua perspectiva, a propósito daquilo que prontamente identifica como o “fim
da arte”98, nem sempre coincida com a nossa (afinal, também Crimp descreve o espaço do
museu moderno como um lugar de clausura, sugerindo uma arqueologia do museu a partir da
análise foucaultiana do asilo ou da prisão – lugares de confinamento e de exclusão) há que
reconhecer o contributo do seu trabalho. The end of art and the origin of the Museum, o
ensaio a que aqui aludimos, remete-nos – embora seja questionável que tal se manifeste tanto
ao nível do conteúdo quanto o título parece indicar – para a antinomia basilar com a qual
podemos simultaneamente compreender e contrapor as críticas ao museu de arte como
inaugurador de um certo modo de relação (estético) com as obras. Douglas Crimp, não sendo
o primeiro, será o mais insistente a identificar entre o Altes Museum e a estética de Hegel, um
curioso correlato. Fora a coincidência cronológica (1823-1829) entre a construção de um e as
palestras do outro na Universidade de Berlim, Crimp argumenta que o Altes Museum, para
além de governado pela estética hegeliana, terá sido a concretização final da tese da
dissolução da arte em Hegel, para a qual a arte, ao ceder o seu lugar à filosofia, é versada a
seu objecto, de análise e contemplação [Wissenschaft]. Pois que ao cânone do museu moderno
encontrá-lo-emos no Altes Museum e não no Louvre, por duas razões fundamentais: em
primeiro lugar, porque o Altes Museum foi construído de raíz para ser um museu de arte, ao
passo que o Musée Central, como já vimos, se ergueu da transposição da colecção real e de
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!97 Trad livre do inglês “(...) there will be clearly recognizable not only the external history of painting, (...) but the essential progress of the inner history of painting (...) It is only such a living spectacle that can give us an idea of painting’s beginning (...) of its becoming more living, of its search for expression and individual character (...)” in Hegel, Aesthethics: Lectures on Fine Art II, pp. 870
98 cf. Douglas Crimp, The End of Art and the Origin of the Museum!
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outros objectos saqueados ou apreendidos, para o palácio do Louvre, moradia da família real
até Luís XIV se ter mudado para Versalhes; em segundo lugar, directamente devedor do
projecto Iluminista, o Musée Central teria um propósito ideológico que nunca procurou
esconder, e que não encontraremos na disposição organizacional do Altes Museum. Sabemos
que Karl Friedrich Schinkel99, arquitecto responsável pela concretização do Altes Museum,
fora leitor de Hegel. Sabemos ainda que Hegel, enquanto membro da Wissenschaftliche
Kunstverein de Berlim, participara nas discussões acerca da criação de um museu de arte, ou
que da janela do seu apartamento, com vista para o Lustgarten, poderia ter observado a
construção do Altes Museum; de modo a que discutir sobre a relação entre a estética de Hegel
e a disposição organizacional do Altes Museum, nos conduz para um plano além do
especulativo. Não se atrevendo a encontrar no Altes Museum a imposição de um novo
paradigma, Beat Wyss oferece-nos, por seu lado, uma narração da jornada de Hegel pelo seu
museu imaginário, cristalizado no museu de arte de Berlim. Wyss considera, todavia - no
reverso de Crimp - que o ethos da emergência do museu de arte no século XVIII pode ser
sentido nas lições de Hegel, e não que o Altes Museum foi devedor directo da sua estética.
Noutros termos, que foi justamente a descontextualização e a recontextualização dos objectos
de arte pelo museu (e Wyss refere-se especificamente às operações dos museus
revolucionários) que tornou simultaneamente possível e imperativo que se pensasse sobre
arte, ao que acrescenta que a filosofia da história de Hegel foi “(...)reconstruída como um
museu imaginário” na medida em que nela o presente surge destacado do passado já que
“apenas aquilo que tem a aura do histórico e passou pelo consenso social, tem lugar no seu
museu”100. Porém, em Wyss como em Crimp, encontramos um título que nos promete
determinada coisa - no caso de Wyss, A História de Arte de Hegel e a Crítica à Modernidade
- e que, de certa forma, acaba por apresentar-nos outra. Jason Gaiger, num ensaio ao qual
regressaremos, escreve mesmo que Wyss, na figura de Hegel que contempla o fim da história,
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!99 Para uma análise detalhada sobre as aspirações de Schinkel para o Altes Museum, recomenda-se a leitura do artigo de Sabine Spiero - “Schinkels Altes Museum in Berlin”: Seine Baugeschichte von den Anfängen bis zur Eröffnung, Philipps-Universität Marburg, Marburgo, 1933. Para uma análise mais recente e que engloba a relação entre Schinkel e Hegel recomenda-se a leitura de Beat Wyss, Hegel’s Art History and the Critique of Modernity, 1991 100 Trad livre do inglês “(...) reconstructed as an imaginary museum (...) Only what has the aura of the historical and what has been passed by the social consensus is admitted of this museum.” in Beat Wyss, Ibidem, pp. 104
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acabara por “encenar a mesma ossificação de Hegel que procurara criticar”.101 O que está aqui
em causa não é perguntar pelo que veio primeiro - a narrativa histórica sobre arte ou o museu
moderno, a estética de Hegel ou o Altes Museum? Outras mudanças haviam de ser referidas
na passagem do século XVIII para o século XIX, que levantariam questões semelhantes – o
que surgiu primeiro? A historiografia como disciplina, ou a objectualização do passado no
seio de uma era que se pensa a si mesma como em ruptura com a tradição? O que nos
interessa aqui, passa então por compreender que esse olhar para a arte na história surge
simultaneamente na história de arte, na estética e no museu, e que em muito se deve a uma
modernidade que se pensa a si mesma em fractura com o passado - é neste sentido que
Maleuvre afirma que “Criticar o museu por converter objectos em imagens mortas, implica
assumir erroneamente que o passado pode existir fora das estruturas discursivas do presente
que o designam como passado.” 102
Regressemos então à história; numa obra importantíssima para este capítulo103 (como
a de McClellan foi para a secção em que nos dedicámos ao Louvre), James J. Sheehan analisa
um conjunto de cartas e relatos, que considera exemplares da recepção do Louvre pelo
público alemão; nesta tarefa referir-se-á com especial incidência à posição do diplomata Karl
August Varnhagen von Ense e cruza-a com uma passagem de Goethe num poema do
Venetianische Epigramme. Embora tenho sido uma escolha algo insólita, a verdade é que “As
mais altas obras de arte e do espírito não podem ser apreciadas pelas multidões”104 condensa
exemplarmente a reação de boa parte do público germânico que visitara o Musée Central, e,
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!101 trad. livre do inglês “(...) enacts the very ossification of Hegel’s thought that is purports to criticize.” Jason Gaiger, “Catching up with History, Hegel and the Abstract Painting” in Hegel New Directions, Katerina Deligiorgi org., McGill-Queen's University Press, 2006. pp. 159-176 102 Trad livre do inglês “To criticize the museum for turning objects into dead images is to imply wrongly that the past may exist outside of the present discursive structure that designates it as past” in Didier Maleuvre, Museum Memories: History, Technology, Art, pp. 271
103 Referimo-nos aqui a Museums in the German Art World – From the End of the Old Regime to the Rise of Modernism, Oxford University Press, New York, 2000. 104 Trad livre do alemão “Schüler macht sichder Schwärmer genug und rühret die Menge/ Wenn der vernünftige Mann einzelne Liebende zählt. / Wunderthätige Bilder sind meist nur schlechte Gemälde, / Werke des Geists und der Kunst sind fü den Pöbel nicht das.” in George Henry Lewes, The Life and Works of Goethe, Aldine Press, London, 1959, pp. 323. NOTA: O nosso desconhecimento face à citação de Goethe referida por James Sheehan, levou-nos a investigar a sua proveniência. Após a consulta de The Life and Works of Goethe, a primeira grande biografia de Goethe para o público anglófono (1ª publicação de 1855) apercebemo-nos de que a referida citação terá sido, primeiramente, uma apreciação do editor de Goethe face ao insucesso da sua obra – inapreciável pelas multidões - e que mais tarde Goethe dela se apropriou para inclui-la no XV dos seus epigramas venezianos. Como tal, tomámos a decisão de traduzir no corpo do texto a passagem a que Sheehan se refere e oferecer a totalidade do epigrama (na língua original) em rodapé.
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particularmente o Musée des Monuments – apaixonados pela extensa colecção, afinal Paris
detinha o maior acervo de objectos artísticos da Europa, mas tomados por um certo
desconcerto em relação ao modo pelo qual se organizavam as exposições, onde cada objecto
brilhava como monumento da vitória revolucionária e não pela sua beleza artística, mas
também em relação à heterogeneidade absoluta de públicos que se passeavam pelas galerias.
Todavia, Sheehan diz-nos também, que Paris recebia anualmente milhares de académicos,
arquitectos, artistas e historiadores alemães, entre os quais se contaram Gustav Waagen, aluno
de Hegel em Heidelberg e Friedrich Schinkel, arquitecto da coroa, ambos responsáveis pelo
projecto do Altes Museum, que nos deixaram escritas inspiradas notas de deslumbramento.105
Proposto por Alois Hirt106 em 1797107, o projecto do Altes Museum seria o da construção de
um edifício no terreno anexo à Academia de Ciências, já existente à época, para abrigar uma
colecção heterogénea de objectos artísticos – esculturas antigas, fragmentos de ruínas, moedas
de bronze, moldes de gesso, joalharia e pinturas modernas – destinada à consulta e
investigação. Pouco desta proposta sobreviveu à efectiva construção do museu, trinta anos
depois - a Academia das Ciências recebeu duas novas alas mas nenhuma delas foi um museu
de arte, os fragmentos de ruínas, moldes de gesso, moedas e objectos de adorno que Hirt
considerava de capital importância para o estudo e que perfaziam parte substancial da sua
proposta para o museu de Berlim, ocuparam o menos nobre dos espaços do Altes Museum,
uma cave projectada por Schinkel, na qual coexistiam com os escritórios dos funcionários e
uma pequena biblioteca. Schinkel havia visitado o Louvre, conhecera a cultura do Iluminismo
mas também lhe reconhecera as pretensões desmedidas, era Berlim de 1820, apenas catorze
anos haviam passado desde a derrota da Prússia às mãos de Napoleão e a situação da cultura
passava por um momento de especial efervescência, cujas características tão idiossincráticas,
encontramos estranhamente ausentes da análise de Crimp. Figura central desta empreitada
cultural, terá sido a de Wilhelm von Humboldt, que, na esteira de Schiller, localizava a
importância moral da arte ao nível da sua autonomia face a quaisquer constrangimentos, de
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!105 Por exemplo a longa passagem que Georg von Dillis (pintor paisagista e diretor da Alte Pinakothek em Munique) no seu diário de viagem referente à sua estadia em Paris em 1806, onde celebra a organização “(...)sistemática de todos os géneros e o acesso ilimitado que satisfaz as aspirações tanto de connoisseurs como de artistas, [que] merece admiração universal.” Trad. livre do inglês, cit. in James J. Sheehan, Museums in the German Art World, From the End of the Old Regime to the Rise of Modernism, 2000, pp. 52 106 cf. Douglas Crimp, op. cit., pp. 261 107 Recorde-se a coincidência histórica da proposta de Hirt com a assinatura do tratado de paz entre a Prússia e a França de Napoleão que concedia à primeira uma década de paz à revelia das campanhas da Europa Central.
! ! 63
modo a que, quer a arte, quer o conhecimento em geral, deveriam ser vistos como um fim em
si mesmos, livres de qualquer restrição exterior e, portanto, impassíveis de serem dirigidos
pelo estado. Ora terá sido precisamente nesta idealização de uma relação entre a arte e
sociedade sem mediação do estado ou de quaisquer outras instâncias, que Schinkel ergueu o
seu projecto para o Altes Museu, neste aspecto sim, absolutamente distinto daquele que
governara o Musée Central.
A primeira alteração de Schinkel foi sugerida ao nível da localização; descontente com
a ideia de construir uma nova ala à Academia das Ciências, propõe a construção de um
majestoso edifício neoclássico no Lustgarten, onde estava instalado o palácio da cidade,
coração do estado da Prússia. Tal não terá sido incoincidente, ao colocar um museu de arte
junto ao palácio, à catedral e ao arsenal - Schinkel coloca a arte numa posição de paridade
simbólica frente ao governo, à igreja e ao exército, lembrando-nos uma vez mais quer Schiller
nas suas Cartas pela Educação Estética do Homem, “Se o homem alguma vez resolver o
problema da política na prática, terá de fazê-lo através do problema da estética, porque é
apenas pela beleza que o homem traça o seu caminho à liberdade”108 quer Humboldt, sobre a
concretização de Lenoir no Musée des Monuments “Assim que deixaram de ser valorizados
como monumentos históricos ou objectos de devoção, apenas a sua protecção os poderá
proteger dos abusos futuros.”109 Também Schinkel defendia que o lugar central da arte na
vida pública só seria possível mediante a protecção da arte face às distracções e contingências
do mundo exterior. Deste modo, como Durand fizera no Musée Central, Schinkel dividirá a
colecção do Altes Museum em quatro secções organizadas em torno de uma rotunda central.
Mas, ao contrário do que acontecia no caso francês, onde a rotunda corresponderia ao último
lugar visitado, o projecto de Schinkel carregara a sala central de uma função simbólica
distinta - a primeira vista do museu e o espaço liminar entre a secularidade do exterior e a
magnificência do interior, que compara àquela de “um santuário”.110 De um espaço público de
aparência sóbria, rodeado pelos pilares da dinastia, os visitantes ascenderiam pela escadaria
central e, passado o peristilo, estariam diante da rotunda que, pelas suas características
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!108 Trad. livre do inglês: “If man is ever to solve that problem of politics in practice he will have to approach it through the problem of the aesthetic, because it is only through Beauty that man makes his way to Freedom” Friedrich Schiller cit in James J. Sheehan, Museums in the German Art World, From the End of the Old Regime to the Rise of Modernism, 2000, pp. 45 109 trad. livre do inglês “As soon as they ceased being valued as historical monuments or devotional objects, only the protection of art could preserve them from future abuse” Ibidem, pp. 51-52 110 vide Douglas Crimp, op. cit., pp. 264!
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arquitectónicas e escultura clássica, os prepararia para a viagem estética que tinham em mãos
– no primeiro piso, monumentos do mundo antigo, no segundo, obras dos grandes mestres da
pintura Ocidental, organizadas cronologicamente. Um caminho pela história da arte do qual
irromperia o reconhecimento do poder destrutivo da história e a importância do museu para a
sua preservação, reaceso no momento em que o visitante se preparava para sair do museu e
regressar ao mundo, e encontrava diante de si uma série de frescos, inscritos em medalhões na
loggia sul do edifício, que retomavam a narrativa da história da arte, da relação da arte com a
religião na pintura nazarena, à redenção da arte à história sob a figura de Rafael, à
representação da pintura contemporânea. Crimp argumentará ainda que ambos os modelos co-
existem no Altes Museum de 1830 – o de Alexandria, na grande nave rotunda, onde o intuito
seria o de preservar “o mundo da perfeição clássica”, e o hegeliano, manifesto na Galeria
Principal, na qual as obras se deixavam ordenar cronologicamente, espelhando “a marcha do
homem pela história em direcção ao espírito absoluto”.111 Mais do que isso, Crimp crê
identificar a própria mudança de paradigma no caminho que o visitante percorreria desde o
deslumbramento da Rotunda, à galeria principal onde o que se pesa é a “irrevogabilidade do
fim da arte”112. Co-existência que Crimp identificará na temática museológica
contemporânea, presa entre o desejo de arquivar e tornar histórico e a busca por um arquétipo
universal, necessariamente a-histórico. Se reconhecemos a lucidez desta asserção ao nível da
museologia contemporânea, dos seus museus sem paredes ou arquivos universais,
reconhecemos também algo de incauto no decretar de uma mudança de paradigma no Altes
Museum.
Atentemos na imagem de uma rotunda central povoada por esculturas do período
clássico, que interrompe o inexorável progresso da história113; como observámos no primeiro
capítulo, a grandeza da arte helénica é-nos descrita em Hegel em termos da vida grega, do
carácter inédito da sua cultura e da sua religião. Aí e só a aí o Weltgeist (o Espírito, Deus, a
Ideia, a Razão) alcançara um estágio para o qual a arte seria a mais apropriada das expressões
- noutros termos, a religião grega é a religião da própria arte. Contrastando quer com a
abstracção das divindades egípcias quer com a humanidade individualizada dos santos do
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!111 Trad livre do inglês “(…) the spectator was ready of his march through the history of man’s striving for Absolute Spirit” in Ibidem., pp. 264 112 Trad livre do ingês “It is represented not the possibility of art’s rejuvenation but the irrevocability of art’s end.” in Ibidem, pp. 265 113 vide Beat Wyss, op. cit pp. 108!
! ! 65
cristianismo, os deuses gregos seriam o próprio material da arte, nos quais universal e
individual, poder simbólico e experiência particular, encontravam absoluta harmonia.
Todavia, tal não ocorreu em vácuo, nos termos de Hegel, a arte clássica procurara a
preservação dos deuses antigos, de um tempo em que a arte não era capaz de lhes dar forma
adequada. Deste modo, o que se inventa, funda e institui na arte clássica, face ao período
simbólico que encontramos ausente do Altes Museu, é a consciência da possibilidade de
coleccionar e convencionar. Como temos vindo a argumentar, o museu, como lar da
anacronia é o lugar por excelência quer da colecção quer da convenção, no qual convenções e
tradições são inventadas para serem celebradas, estudadas ou então rejeitadas, transformadas,
suprimidas. O modo como Hegel nos descreve a arte clássica é justamente sob a figura de um
museu, e, nesse sentido, se olharmos a arte clássica como museu para o período simbólico e
janela para a modernidade, compreendemos que a prelação pela arte clássica não perfaz,
como observamos na curiosa análise de Eva Geulen, o “colocar no caixão filosófico de
preconceitos idealistas , mas a exposição da modernidade, que é – de forma anacrónica – a
descoberta recolocada na antiguidade das possibilidades modernas de fundar tradição”114.
Como já vimos também, a arte clássica jaz solitária no alto da torre, face ao ainda não e ao já
não dos outros períodos artísticos, arte e espírito tomaram trajectos diferentes, sendo que a
longa marcha do espírito rumo à auto-consciência, primeiro no cristianismo depois na
filosofia, diminuiu o propósito da arte como instância de revelação do espírito absoluto – e é
isto que encontramos na grande galeria. Por outro lado, profunda e irreversível, esta cesura
terá alterado o modo como experienciamos as obras de arte – “não mais
nos ajoelhamos diante delas, pois elas já não manifestam, para nós, a presença do divino
(...)”115 - convertendo aquilo que seria a expressão imediata de um impulso em Wissenschaft,
numa apreciação mediada pela história e pela teoria, de modo a que a rotunda, embora
preservando a escultura helénica, não o faz se não pelo suscitar de uma doce recordação,
contendo em si a fórmula do que fora a sua dissolução. Forçando um pouco a nota, a arte só
“morre” no museu para que possa renascer com outro significado e, neste sentido, as obras de
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!114 Trad livre do inglês “Einsargung idealistischer Vorurteile, sondern die Ausstellung der Mode, die - anachronistisch - in die Antike zurückverlagerte Entdeckung moderner Möglichkeiten der Traditionsstiftung.” in Eva Geulen, Das Ende der Kunst: Lesarten eines Gerüchts nach Hegel, Suhrkamp Verlag, Berlin, 2002, pp. 59 115 Trad livre do inglês “[No matter how we excellent we find the statues of the Greek gods, no matter how we see God the Father, Christ, and Mary (...)] we bow the knee no longer” in Hegel, Aesthetics: Lectures on Fine Art I, pp. 103
! ! 66
arte só existem e significam porque lhes foi arrancada a vida. Curiosamente, será ainda na
FdG, que encontraremos, se quisermos, aquele que podemos considerar o primeiro argumento
de Hegel contra a ideia de museificação como mumificação, que serviu de ponto de partida à
nossa proposta, e que marca o primeiro momento do distanciamento entre as palavras de
Hegel e aquelas de Quatremère de Quincy. Se olharmos esse momento em que a auto-
consciência se torna conhecimento absoluto – o momento em que a filosofia torna possível ao
ser a incorporação dialética do objecto e se torna espírito absoluto, compreendemos que a
desespiritualização da obra de arte exposta em museu é um desses modos de indicar o estado
de maturação da consciência; ao que podemos acrescentar, pedindo de empréstimo a
apreciação jocosa de Didier Maleuvre, “Quatremère diz-nos que a arte está morta nos museus
e Hegel acrescenta que é justamente assim que deve estar.”116
2. Para além do século XIX, os artistas e o museu
Se, como Crimp, acreditarmos que em menos de meio século caiu um paradigma – o
da Biblioteca de Alexandria – e se ergueu um novo – o da estética hegeliana no Altes
Museum – o que podemos dizer acerca daquilo que aconteceu ao museu de arte no século e
meio que se seguiu? Germain Bazin, a propósito da campanha de recuperação dos
monumentos de Abu Simbel117, identifica uma afinidade entre a UNESCO e Alexandria –
considerando que a primeira parece mimetizar o projecto redentor, universalista, da segunda,
e atribui-o justamente a uma certa nostalgia helénica caracterizadora da Europa do pós-guerra.
Numa nota absolutamente diferente, Rosalind Krauss118 conta-nos a sua experiência ao visitar
uma exposição de arte contemporânea à altura patente no Musée d’Art Moderne de la Ville de
Paris, onde a tentativa de neutralizar o espaço do museu, ou qualquer organização histórica
das obras, deixara em evidência, não os Flavins ou os Andres, mas a estrutura do próprio
museu, estranhamente vazio, capaz de emergir como poderosa presença, tornando-se, ele
próprio, objecto. Não nos precipitemos a encontrar a resposta a esta questão, não sem antes !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!116 Trad livre do inglês “Quatremère says that art is dead in museums; Hegel adds that that is as it should be” in Didier Maleuvre, op. cit., pp. 24 117 cf. Germain Bazin, The Museum Age, Universe Books, Inc., New York, 1967 118 vide Rosalind Krauss, “The Cultural Logic of the Late Capitalistic Museum” in October, vol. 54, (Autumm, 1990), pp. 3-17
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compreender que o lugar dos museus na arte contemporânea passa necessariamente por
reconhecer o paradoxo que está na origem dessa relação, da qual a arte é, simultaneamente,
dependente e adversária.
No Verão de 1855, o visitante que se dirigisse à Exposição Universal de Paris,
deparar-se-ia, de costas para o Palais de l’Industrie, com uma estrutura improvisada onde se
lia “Pavillion du Realisme”119 - esta terá sido a resposta de Gustave Courbet à recusa das suas
obras pelo júri responsável pela ala das Belas Artes da Exposição Universal. As obras no
interior da tenda, quarenta quadros e dez esboços, gravitavam em torno de uma pintura de
dimensões monumentais – 3,61m de altura por 5,98 de largura - que cristalizava, mesmo ao
nível do próprio título, a temática da exposição - L'Atelier du peintre (Allégorie réelle
déterminant une phase de sept années de ma vie artistique et morale). Contrariamente ao que
este incidente nos poderia levar a crer, Courbet não era um artista marginal, embora detestado
por muitos pelo seu jeito bruto, grosseiro, de uma estranha arrogância campestre, as suas
capacidades artísticas encantavam mecenas e apreciadores de arte, e não foram raras as suas
telas expostas nos salões oitocentistas.120 O seu gesto, que inspiraria o Salão dos
Recusados121, que viria a integrar décadas mais tarde, ou a galeria dos Fauvistas122 terá sido
então, menos um gesto de revolta contra a preferência artística vigente do que um gesto de
revolta eminentemente político, o primeiro de uma sequência que não se deu, ainda hoje, por
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!119 Numa brochura que estaria à venda pelo correspondente actual a 10 cêntimos, lia-se aquilo que viria a ser conhecido como o manifesto realista de Courbet, que aqui transcrevemos no original "Le titre de réaliste m'a été imposé comme on a imposé aux hommes de 1830 le titre de romantiques. Les titres en aucun temps n'ont donné une idée juste de choses : s'il en était autrement les oeuvres seraient superflues. Sans m'expliquer sur la justesse plus ou moins grande d'une qualification que nul, il faut l'espérer, n'est tenu de bien comprendre, je me bornerai à quelques mots de développement pour couper court aux malentendus.J'ai étudié, en dehors de tout esprit de système et sans parti pris, l'art des anciens et des modernes. Je n'ai pas plus voulu imiter les uns que copier les autres : ma pensée n'a pas été davantage d'arriver au but oiseux de "l'art pour l'art". Non! J'ai voulu tout simplement puiser dans l'entière connaissance de la tradition le sentiment raisonné et indépendant de ma propre individualité.Savoir pour pouvoir, telle fut ma pensée. Etre à même de traduire les moeurs, les idées, l'aspect de mon époque, selon mon appréciation, être non seulement un peintre, mais comme un homme, en un mot faire de l'art vivant, tel est mon but". 120 Não trabalhamos o salão do mesmo modo que não analisamos os casos dos studioli italianos, sos cabinets des curiosités franceses e seus análogos alemães, os Wunderkammern ou os kunstkammern, não apenas por razões de estreiteza temática mas por considerarmos que, fora a afinidade superficial segundo a qual todos estes espaços são, como o museu, espaços de exposição, pouco se aproximam da instituição moderna do museu. 121 O salão dos Recusados (Salon des Refusés) foi uma exposição em Paris, 1863, com o selo de Napoleão III de modo a albergar os artistas que tinham sido recusados de participar na exposição no Salão de Paris. Entre esses artistas encontravam-se Edouard Manet onde expôs a sua famosa obra Le Déjeuner sur l’herbe.!122 O Salão de Outono (Salon d’Automne) nascido em 1903 como uma revolta ao já referido Salão de Paris, tornou-se um símbolo de um conjunto de várias exposições experimentaique fugiam ao cânone artístico. Será em 1905 que Henri Matisse, juntamente com outros artistas, expõe La femme au chapeau dando início ao movimento Fauvista.
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terminada, contra a cultura impositiva das salas de exposição. O caso de Coubert é
especialmente curioso na medida em que, insurgindo-se contra determinada coisa – o museu -
acaba ele próprio por conceber um duplo em miniatura deste, um duplo de um duplo – a
galeria. Hoje, já mais de um século depois, sabemos bem que entre galeria e museu existem
relações muito específicas e que a fronteira entre uma coisa e outra, já em si essencialmente
ténue, tenderá a uma permeabilidade quase absoluta. Na verdade, o universo que critica, o dos
museus, dos júris, da academia e dos salões, é justamente o único universo em que Coubert
pode existir enquanto artista. Não acreditamos que o gesto de Courbet tenha nascido da
ingenuidade pura de acreditar que o seu “Pavillon du Realisme” seria uma coisa outra,
essencialmente diferente daquela à qual se opunha. Todavia, é certo que a sua geração fora a
primeira com o percurso certo da academia ao salão ou ao museu, deste modo, à sua aparente
candura, soma-se o florescer de uma certa consciência, que encontramos expressa nas
palavras de Baudelaire em Le peintre de la vie moderne, “embora o estudo dos grandes
mestres seja, indubitavelmente, uma coisa excelente para se aprender como pintar... não
poderá ser mais que um desperdício de trabalho se a intenção for a de compreender a natureza
particular da beleza nos dias de hoje”123 e que marca um tempo em que o artista se torna
consciente da sua pertença ao mundo da arte. É também sobre isto que nos fala Foucault124 a
propósito do Déjeuner sur L’Herbe de Édouard Manet, que considera o primeiro quadro
verdadeiramente emergente da cultura do museu, por nele encontrarmos uma manifestação do
reconhecimento da pintura em relação a si mesma e à sua história, e, portanto, auto-consciente
da interdependência com o museu de arte. Tal não é surpreendente, na medida em que aquela
que viria a ser considerada a primeira obra do Impressionismo, fora pintada por Manet como
simultânea homenagem aos grandes mestres e crítica à veneração desmedida que ainda se lhes
prestava. A temática é tomada de empréstimo ao Concert campêtre de Tiziano (na altura
exposto no Louvre e atribuído a Giorgione) e a composição do grupo principal à gravura de
Marcantonio Raimondi, com base no Julgamento de Paris de Raphael. A junção de uma coisa
e outra, de figuras nuas e sua colocação no ambiente prosaico e citadino de um piquenique na
relva, perfaz uma crítica à cultura da adoração aos mestres. Este terá sido, de resto, um
reconhecimento parcial, com a ambiguidade típica de quem reconhece os contornos de uma !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!123 Trad livre do francês “Il est sans doute excellent d'apprendre les anciens maîtres pour apprendre à peindre, mais cela peut être un exercice superflu si votre mais est de comprendre le charactère de la beauté présente” in Charles Baudelaire, Le peintre de la vie moderne, pp. 70 124 cf. Foucault, “Fantasia of the Library” in Foucault, Language, Counter-Memory, Practice, pp. 92
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questão mas não alcançou ainda plena consciência das suas dimensões. Curiosamente, se
tomarmos o tratamento dos objectos de arte no “paradigma” do Altes Museum, como
referente dos ataques do modernismo – e é certo que o Louvre da segunda metade de 1800 já
em pouco era idêntico à sua formação inaugural, aproximando-se mais da organização do
museu de Schinkel – apercebemo-nos de uma outra lacuna na tese de Crimp da qual podemos
considerar, para questões comparativas, que emerge o fulcro do distanciamento da sua
imagem do Altes Museum face àquela que nos é oferecida por Wyss. Se Hegel valorizava o
papel do museu de arte - e acreditamos que sim - tal terá menos que ver com a sua
constituição como replicador da marcha do espírito – como na análise de Crimp – e mais com
a natureza do próprio objecto de arte, como descrito na sua estética. Simultaneamente sensível
e verdadeira, a arte emerge como “o meio termo entre puro pensamento e aquilo que é
meramente externo, sensual e transitório, entre a natureza e a realidade finita e a infinita
liberdade do pensamento conceptual”.125 A constante inquietação da arte entre o sensível e o
conceptual leva-nos a questionar o lugar a que pertence, já que não parece pertencer quer ao
campo fenoménico da natureza quer àquele do puro pensamento mas erguer-se no fronteiriço
entre uma coisa e outra - daqui emerge, por exemplo, o reconhecimento adorniano da
identidade da arte como não-identidade. Noutros termos, o museu não só abriga a inquietação
do acto artístico como esse abrigo é edificado em torno deste e não o contrário, fazendo
emergir o paradoxo essencial da museificação – catalogar o inquieto, o rebelde, o gesto
criativo – o que significa sempre a ruína daquilo que se quer preservar – e em simultâneo
fazê-lo exemplo, torná-lo universal; o que é, forçando um pouco a nota, o mesmo paradoxo no
qual repousa e do qual emerge toda a cultura Ocidental. Se nas palavras dos nossos críticos,
remover uma obra de arte do seu contexto original é problemático porque implica despi-la da
alma, tal significa assumir que a obra de arte se subsume ao princípio da identidade como
pertença (a um lugar, a um povo, a uma nação, a uma comunidade de pensamento), desígnio
do qual os museus se demarcaram desde a sua origem. O princípio primeiro do museu foi
sempre o do desenraizamento e, neste sentido, o seu propósito original foi essencialmente
revolucionário. Apenas quando pensadas em divórcio do contexto social em que foram
produzidas, do significado que aí tinham ou das funções que assumiram, é que se tornou
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!125 Trad livre do inglês “(...) as the first reconciling middle term between pure thought and what is merely external, sensuous, and transient, between nature and finite reality and the finite freedom of conceptual thinking” in Hegel, Aesthetics: Lectures on Fine Art I, pp. 8
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pensável colocar obras de arte tão distintas lado a lado – como se partilhassem uma essência
universal - numa instituição virada para a contemplação. Só assim se tornou possível
apreciarmos as pirâmides e os grandes colossos do período simbólico, ou a beleza da arte
clássica, dos seus templos também monumentais mas de uma perfeição contida, sem que nos
assombre a tão verdadeira quanto terrível imagem do sangue e do suor daqueles que os
construíram; Wyss descreve belamente este processo transfigurativo da história: “Quem ainda
se lembra das vítimas da batalha do Peloponeso? A peste vitimizou Péricles mas tal facto caiu
no esquecimento por entre a glória das paredes do Parthenon. O suor dos escravos diluído nos
mármores. (...) A evidência da violência, tortura e injustiça evaporou-se na harmonia das
figuras da arte clássica.”126 Nos termos de Gadamer, “Aquilo a que chamamos obra de arte e
experienciamos esteticamente depende de um processo de abstracção. Ignorando tudo aquilo
no qual a obra de arte está enraizada (...) esta torna-se visível como ‘pura obra de arte’”127. O
modo como se processa esta abstração é paralelo àquele através do qual o museu cria
universos representacionais. Tal é-nos mostrado, por exemplo, pelas mudanças de cânone e
adendas à história da arte a partir do século XIX. André Malraux ilustra-nos esta operação
com o caso da pintura de Rubens, que, no século XIX – onde a pintura italiana era o cânone, e
a apreciação da arte flamenca seria restrita à Flandres - eram admiradas pela sua similitude
com aquelas de Tiziano. Todavia, ante a colecção completa da obra de Rubens, tornou-se
claro que os princípios estéticos que a guiavam seriam em tudo distintos daqueles que
iluminavam o cânone renascentista, sem serem por isso inválidos. Apenas pela colecção e
exposição de um vasto número de obras de um mesmo autor é que se tornaram transparentes
os seus princípios estéticos e o seu estilo pessoal. Merleau-Ponty, sobre esse mesmo ensaio de
Malraux, sintetiza exemplarmente: “(...) esses contemporâneos inimigos, Delacroix e Ingres,
que a posterioridade tratará como gémeos, esses pintores que se pretenderam clássicos mas
que não são se não neoclássicos, ou dizendo o contrário, esses estilos que escapam ao olhar do
criador e se tornam visíveis apenas quando o Museu alinha as obras dispersas por toda a terra,
quando a fotografia amplia as miniaturas, transforma mediante seus enquadramentos um
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!126 Trad livre do inglês “Who still remembered the victims of the Peloponnesian War? The fact that Pericles died of the plague was lost behind the glorious temple precints of the Parthenon. The sweat of slaves had dried on the hero’s marble brow. (...) The evidence of violence, torture and injustice had vanished in the smooth figures of classical art.” in Beat Wyss, op. cit., pp. 126
127 Trad livre do inglês “What we call a work of art and experience aesthetically depends on a process of abstraction By disregarding everything in which a work is rooted (...) it becomes visible as the “pure work of art”” Hans-George Gadamer citado in Llewellyn Negrin, On the Museum’s Ruins: A Critical Appraisal, pp. 103
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fragmento em quadro, transforma em quadros os vitrais, os tapetes e as moedas, e oferece à
pintura uma consciência de si mesma que é sempre retrospectiva.”128
Como temos vindo a observar, as críticas têm sido surpreendentemente homogéneas,
comungando em torno do princípio fatalista para o qual museu ossifica as obras e mata a
cultura, embora dirigidas “(...) antes, ao museu como bastião da alta cultura, hoje (...) ao
museu como novo cabecilha da indústria cultural”129. Isto é também aquilo que observamos
na crítica das vanguardas ao museu de arte – por mais apaixonada e argumentativa, por mais
inventiva ou revolucionária, só no museu ou, se quisermos, no universo fundado pelo museu,
é que tem sentido. Podemos então compreender a pertinência do caso do Pavillon du
Réalisme sob três aspectos 1. Que o museu moderno não tem lugar para o modernismo; 2.
Que o modernismo, nascido no segundo momento dourado da cultura dos museus é
impensável sem esta – arte que não é exposta é arte que não existe 3. ao ser recusado e, mais
que isso, ao recusar o museu moderno, o modernismo lança a primeira pedra para a fundação
de um modelo de museu que culminaria no MoMA em 1929. Apercebemo-nos que esta tosca
estrutura tripartida tenderá a lançar-se peremptória para tempos mais recentes, nos termos de
Negrin, “Na medida em que o pós-modernismo também falhou em reconhecer a sua
dependência em relação ao museu, está condenado a repetir os mesmos erros que o
modernismo cometeu nos seus ataques à cultura dos museus.”130
Embora filho do Iluminismo e da Revolução Francesa foi só no século XIX que o
museu de arte conheceu a sua forma definitiva e se instalou como garante da autonomia das
obras de arte. A heurística museu-mausoléu, explícita em Adorno e presente em Quatremère
de Quincy, encontrou no Futurismo italiano uma expropriação radical. Museus são
comparados a cemitérios e as obras que abrigam a corpos defuntos, preservados à força em
formol. Como bastiões de uma cultura morta os museus surgem, para o Futurismo, como !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!128 Trad livre do francês “(...) ces contemporains ennemis, Delacroix et Ingres, en qui la postérité reconnaîtra des jumeaux, ces peintres qui se veulent classiques et ne sont que néo- classiques, c'est-à-dire le contraire, ces styles qui échappent au regard du créateur et ne deviennent visibles que quand le Musée rassemble des œuvres dispersées par toute la terre, quand la photographie agrandit les miniatures, transforme par ses cadrages un morceau de tableau, transforme en tableaux les vitraux, les tapis et les monnaies, et apporte à la peinture une conscience d'elle-même qui est toujours rétrospective... ” in Merleau-Ponty, Signs, pp. 59-60 129 Trad livre do inglês “then the museum as bastion of high culture, now (...) as the new kingpin of the culture industry.” in Andreas Huyssen, Twilight Memores: Marking Time in a Culture of Amnesia, Routledge, 1995, pp. 18 130 Trad livre do inglês “Likewise, insofar as postmodernism has also failed to recognize its dependence on the museum, it is doomed to repeat the same errors which modernism made in its attack on museum culture.” in Llewellya Negrin, “On the Museum’s Ruins: A Critical Appraisal” in Theory, Culture and Society 10, 1993 pp. 98
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ameaça à produção de arte, não no sentido nietzschiano (nem naquele de Baudelaire ou de
Quatremère de Quincy) para quem estudar os clássicos intimidaria o artista, incapaz de
ultrapassá-los131, mas na medida em que contribuem para a sedimentação de um
conservadorismo cultural. Os clássicos ou o passado não oferecem qualquer tipo de interesse
ao futurismo, não são presentes nem se presentificam no contexto da Europa na viragem do
século e será justamente isto que Marinetti apresenta no primeiro manifesto de 1909: “Nós
libertaremos a Itália dos seus inúmeros museus que a cobrem de incontáveis cemitérios.
Museus, cemitérios..! Idênticos até na promiscuidade de tantos objectos desconhecidos uns
dos outros”132. A originalidade da crítica das vanguardas radica na deslocação do alvo da
empreitada, do museu para a própria obra de arte - terminar com os museus significa terminar
a arte - e talvez derive daí uma certa vertente confrontacional e iconoclasta que encontramos
naquelas obras de vanguarda que contra a arte se insurgem. Historicamente, o caso russo,
pelas particulares características espácio-temporais – afinal, apenas na Rússia as vanguardas
artísticas coincidiram com uma verdadeira revolução política de tais dimensões - é um dos
mais representativos. Podemos nele distinguir duas fases distintas que acabariam por
coexistir: uma primeira, no imediato pós-revolução, marcada pelo confiscar das colecções
privadas e assinalada pela empreitada ideológica contra o museu e suas obras, e uma segunda,
virada para a reformulação do museu de arte ao serviço dos ideais revolucionários. Como
motor desta primeira fase encontramos, sem surpresa, a crítica à arte separada da vida, que
desembocaria na devolução da arte à praxis, pelo abandono das formas artísticas tradicionais
– a pintura e a escultura – em privilégio de novos modelos de produção como o poster, a
fotografia e muito particularmente o cinema, cujo lugar não seria o museu mas a fábrica, a
praça, a vida. Este é o momento dos agi-trains, da abertura das primeiras escolas de cinema
na Rússia, da necessidade de elevar a arte ao plano do discurso, de transformar imagens
transportadores de conteúdos estéticos em imagens transportadoras de conceitos. Luta à qual
os museus de arte representavam um natural impedimento - ao entrar no museu, do visitante
seria esperada uma reverência egrégia, a distância física entre a obra e o visitante abriria
assim uma distância psicológica, aquilo a que Benjamin chamaria aura e que promoveria
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!131 cf. Ibidem, pp. 97-125 132 Trad livre do inglês “We will free Italy from her numberless museums which cover her countless cemeteries. Museums, cemeteries …! Identical truly in the sinister promiscuousness of so many objects unknown to each other.” in Filippo Marinetti, “The Foundation and Manifesto of Futurism” in H.B. Chipp (ed.) Theories of Modern Art, University of California Press, Berkeley, 1984, pp. 287-288;
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aquilo a que os construtivistas se referiam como idealismo reacionário; noutros termos, o
museu faz da obra de arte símbolo do privilégio cultural das elites e do culto do génio, para o
qual o artista seria venerado como profeta. No modo como esta primeira fase conduziu e
soube coexistir com a segunda é que encontramos o que há de verdadeiramente original na
Rússia de Lenine. No curto período entre a Rússia Bolchevique e aquilo que viria a ser o
Socialismo Realista de Estaline, os debates pela função da arte e sua capacidade de fundar
uma nova cultura foram múltiplos e duradouros. Se lermos os manifestos das principais
vanguardas russas apercebemo-nos da crítica à complexa dimensão da tessitura na qual se
inscreve a arte, de um lado, e o museu, do outro, como se não perfizessem uma e a mesma
coisa. Nos anos ‘20 fundou-se o Museu da Cultura Pictórica133 em Moscovo - um museu
toldado e dirigido pela geração dos artistas que surgem depois da Revolução de Outubro -
tendo o seu objectivo o de “(…) popularizar a arte contemporânea, familiarizar o espectador
proletário com a sua história (…) ao introduzir a questão da construção da obra de arte”134 ,
sob o olhar do Cubismo, do Futurismo, do Suprematismo e da Arte não-Objectiva. O modelo
do museu vanguardista, surge então contra a ideia de uma organização cronológica,
recorrendo a objectos artísticos idênticos para servir uma educação didáctica capaz de evocar
o edifício do proletariado135, numa homogeneidade estranha aos outros museus da Europa.
Figuras como Malevich, Kandinsky ou Rodchenko, estariam encarregues de seleccionar,
catalogar e adquirir, objectos artísticos que pudessem ser incluídos neste museu mas também
obras que seriam enviadas para as províncias no interior da Rússia, “Para levar a cabo um
trabalho de educação cultural que passa pelo melhoramento de museus existentes (...) ou pela
construção de novos sob os princípios do desenvolvimento da forma artística”.136 No Museu
de Arte Contemporânea de Moscovo, como no museu revolucionário oitocentista, arte e
política caminhavam a par e a passo sob a crença de que a arte seria capaz de concretizar a
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!133 Anteriormente conhecido por Museu de Cultura Artística 134 Trad livre do inglês “[The museum was] to popularize contemporary art, familiarising the proletarian viewers with its history (…) introducing the issue of the construction of the work of art. ” Turowski, Andrzej, “ The Contemporary Museum is a Laboratory of Knowledge: The Origins of the Museum of Contemporary Art in Russia”, pp. 41 135 Trad livre do inglês “(…) works edifying to the proletariat, and it had to be purged of everything that might hinder that education”, Boris Groys, “The Struggle against the Museum; or, The Display of Art in Totalitarian Space” in Daniel J. Sherman, Irit Rogoff, Museum Culture: Histories, Discourses, Spectacles pp. 146; 136 Trad livre do inglês “To carry out a work of cultural education, consisting in the improvement of existing museums (...) and in the creation of new museums by following the principle of development of artistic form.” Aleksandr Rodchenko, “Thesis of Rodchenko’s Report on the “Museum of Artistic Culture” in Kynaston McShine, The Museum as Muse: Artists Reflect, pp. 201
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identidade política de uma nação, enformando-a e seleccionando momentos-chave da sua
história - noutros termos, reinventando a história não apenas como documento mas como
força disruptiva eminentemente viva e, em simultâneo, eminentemente histórica.
São lúcidas as palavras de Didier Maleuvre a propósito daquilo a que chama a
desautonomização do material artístico e que descreve como o momento no qual “a história
ela própria se comporta como a arte, inventando-se.” ao que acrescenta “(...) quando uma
revolução passa assentar num status quo político, está condenada a reprimir aquela arte na
qual ergueu o seu momentum: assim que Lenine se tornou em leninismo, os Construtivistas
russos foram silenciados”137. O exemplo russo oferece-nos uma representação em miniatura
daquilo que se passara no resto da Europa. As obras dos artistas de vanguarda, encontraram,
por fim, aquilo que mais temiam e contra o qual emergiram, a institucionalização. Não
significa isto, porém, que também elas se tenham tornado cúmplices da cultura dominante, ou
que a campanha que desenvolveram as devolveu ao mesmo exacto local a que viraram costas.
Porém, nesse ímpeto de destruir o passado, contrapondo abstractamente tradição e
modernidade, estes movimentos falharam em compreender a impossibilidade de se produzir o
novo em vácuo ou que a criação do novo pressupõe uma redefinição do passado e não a sua
absoluta rejeição. A inauguração do MoMA em 1929, com tudo aquilo que à partida possa
parecer ter de contraditório – a incompatibilidade entre a figura do museu como instituição
virada para a preservação e a arte moderna, tão sempre-presente e sempre-futura (ou pelo
menos futurizante) em permanente mutação – surge, na verdade, como o tornar concreto do
inevitável; o que era dissidente, revolucionário, tornara-se a norma, “O novo panteão quis
tudo e o seu contrário. Tendendo assim a diluir as tensões de todos os momentos sob o dístico
dos esforços do avant-garde, tornando-os históricos”138. Por seu lado, foi trazido à
consciência, que operações como a remoção das obras das galerias para devolvê-las à vida
não as libertaria da mesma função social que têm no museu – a partir do momento em que a
arte emergiu do mundo da estética, passou a deixar de valer pelas contingências
características do contexto que a originou. Se podemos afirmar, com relativa segurança, de
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!137 Trad livre do inglês “(...) history itself behaves like art, inventing itself. (...) When a revolution seettles into a political status quo, it is bound to repress the very art on which it relied for its momentum: as Lenin turned into Leninism, so Russian Constructivists were silenced.” in Didier Maleuvre, op. cit., pp. 86 138 Trad livre do inglês “The new pantheon wanted everything and its opposite. (...) tended to defuse the tensions of all moments within the struggles of the vanguards by rendering them historical.” in Robert Hughes, The Shock of the New, s. p.
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que à arte foi recusada essa vertente ontológica que lhe permitiu, em tempos idos, ser capaz
de fazer-mundo, apercebemo-nos também que este questionar modernista acerca dos modos
pelos quais a arte significa, ou mesmo ao nível do que é ser-se artista, como em Manet ou,
ainda mais fortemente, em Proust ou Pollock, onde o acto de criar se torna o objecto próprio
da criação, lembra-nos a narrativa hegeliana do caminho à auto-consciência.
Hegel deslocou o modo de apreciação estética do gosto, da beleza e do prazer, para a
crítica e para o significado - que a arte liberta o ser humano da imediaticidade sensível da
percepção e do gosto, da prisão da natureza. Se tal reconciliação for sequer possível, esta deve
ser alcançada e não recuperada, e um dos modos de alcançá-la será negar activamente o poder
do sensível. Não significa isto, porém, que Hegel proponha investir o mundo natural de um
significado humano ou divino, do mesmo modo que não atribui uma função religiosa à
experiência estética como revelação de um propósito divino em todas as coisas da natureza. O
que Hegel descreve, diz-nos Pippin139, é muito mais prático – é o alcançar de alguma forma
de independência verdadeira em relação ao determinismo natural que vemos reflectido nas
imagens manifestadas em arte – e, desta forma, que a experiência das limitações naturais deve
ser olhada como triunfo humano. Podemos assim compreender porque razão Pippin considera
que aquelas formas de arte fundadas em imagem ou conteúdo, a arte propriamente
representacional, perderam a importância no enquadramento prosaico e sem mistério do
mundo moderno. A limitação essencial da arte representacional repousa na sua inadequação
em expressar a total subjectividade da experiência. Por outro lado, a ideia não necessita de
aparecer sensivelmente porque pode ser apreendida conceptualmente, do mesmo modo que as
aparições sensíveis da vida ética moderna não são veículos adequados desse aparecer, na
medida em que as nossas vidas sensíveis, foram elas próprias reveladas e racionalizadas em
práticas, hábitos e instituições. Lembremos que um dos princípios pelos quais a taxonomia
hegeliana das artes se organiza é justamente o da materialidade, para a qual a forma de arte
mais desmaterializada – a música – é aquela mais próxima da liberdade do espírito. Hegel fala
em concretude, materialidade – o período em que viveu não permitiu que falasse em
abstração, e diz-nos também, face à arte do seu tempo que “O artista está acima das formas e
configurações consagradas, movendo-se livremente à sua conta [frei für sich], independente
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!139 cf Robert B. Pippin “What Was Abstract Art? (From the Point of View of Hegel)” in Steven Houlgate (ed.), Hegel and the Arts, Northwestern University Press, Illinois, 2007, pp. 244-270
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do sujeito-matéria e do modo de concepção no qual o sagrado e o eterno eram tornados
visíveis à apreensão humana. (...) Desde o início, antes de se lançar à produção, a sua alma
grandiosa e livre deve conhecer e possuir o seu próprio terreno, deve ser segura e confiante
em si mesma.”140 Neste sentido, não nos parecem tão absurdas as palavras de Pippin, quando
argumenta que Hegel terá previsto a alteração fundamental na percepção modernista da
experiência artística – do belo e sensível ao conceptual e reflexivo. Nos termos de Pippin,
bem mais interventivos que os nossos, “A narrativa básica da história da arte de Hegel dá-se
em direcção a algo a que poderíamos chamar a grande abstracção em termos de representação
– da arquitectura à escultura, em direção à pintura, à música e, finalmente, à poesia – e a uma
maior reflexividade de temas estéticos (...) o cluster de tópicos levantados pela questão do
significado da abstração, convida, naturalmente, a uma extensão da narrativa hegeliana.”141
Muito haveria de se acrescentar à pertinência da estética de Hegel para pensar as
metamorfoses que neste século e meio se deram sucessivamente nas várias formas artísticas e
nos modos de fazer arte, Pippin (como Houlgate) restringe a sua análise à pintura e muito
particularmente à pintura abstracta. A arquitectura, por exemplo, da qual a expressão máxima
no tempo de Hegel seria a catedral142, foi orgânica com Frank Loyd Wright, utilitária com a
Bauhaus, talvez um dia supraestrutural se o Superstudio alguma vez levasse a cabo o seu
projecto Il Monumento Continuo. Esse direito que a arte alcançou de formar um movimento
inverso ao da forma natural torna-se na arquitectura quase que um dever, e, na arquitectura
modernista, um dever que contra a própria materialidade se insurge, ao que podemos
perguntar - arquitectura desmaterializada é ainda arquitectura? Falamos da negação da
matéria, do peso, da densidade, da gravidade, diluídos em coisas como o significado ou a
intenção (Art as an idea, art comme un process, art comme production). Estaremos perante o
triunfo final do espírito? Não nos precipitemos para uma tomada de posição, devemos, !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!140 trad. livre do inglês “"The artist thus stands above specific consecrated forms and configurations and moves freely on his own account, independent of the subject-matter and mode of conception in which the holy and eternal was previously made visible to human apprehension. (...) From the very beginning, before he embarks on production, his great and free soul must know and possess its own ground, must be sure of itself and confident in itself." in Hegel, Aesthetics: Lectures on Fine Art I, pp. 605-606 141 trad. livre do inglês: (...)the basic narrative direction in Hegel’s history of art is towards what could be called something like greater abstraction in means of representation – from architecture and sculpture, towards painting, music, and finally poetry – and greater reflexivity in aesthetic themes (...) the cluster of topics raised by the question of the meaning of abstraction naturally invites an extension of Hegel’s narrative.” Pippin op cit pp. 48
142 Hegel diz-nos sobre a Catedral de Colónia: “Of course at the time when Gothic architecture blossomed most beautifully, e.g. at the time of Cologne cathedral (...)” in Hegel, Aesthetics: Lectures on Fine Art II, pp. 691
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todavia, reconhecer que Hegel talvez levantasse uma objecção – não será esse negar da
matéria uma forma de privar o espírito de uma das suas relações essenciais? E não acontecerá
que, ao tornar-se a materialidade leve e flexível, o significado não se torne ele opaco e
resistente?
Este será o enquadramento que os artistas da segunda vanguarda, ou da pós-
vanguarda, terão em mãos - tem sido uma brincadeira injusta, esta entre a arte e o museu, na
qual por mais que o artista fuja o museu não cessa de lhe acompanhar o passo. Na verdade, a
crítica em relação à autonomia da arte, a uma arte separada da vida, só tem sentido no interior
do único lugar em que a arte é verdadeiramente autónoma. Ao exemplo mais célebre disto
encontramo-lo nos ready-mades de Duchamp – na galeria, o urinol (Fountain por R. Mutt) é
em simultâneo uma obra de arte e uma tomada de posição em relação ao que é a arte; se
devolvido à praxis da vida, tornaria a ser apenas um urinol. Arthur Danto atribui a Hegel a
sublação da ideia “de que a arte tem algo de essencial a ver com a beleza”143, e, nesse sentido,
podemos atribuir a Duchamp a expansão em arte dessa ideia. Todavia, se Duchamp ao atacar
o belo artístico julgou alguma vez ter criado uma anti-estética, só no campo da estética - como
seu contraponto e eventual expansão - é que esta pôde ser compreendida. É justamente na
década de ‘60 - Duchamp expusera a sua última grande obra, Étant donnés, em 1966; dois
anos antes a Galleria Schwarz produzira oito réplicas de Foutain assinadas e numeradas - que
Danto crê identificar algo no ar que sussurrava o fim da arte. Que daí em diante, e Danto
escreve-nos da década de ‘80, a arte deixara de ser conduzida pelo telos que em tempos lhe
permitiu que se construísse uma narrativa coerente do seu progresso. O que está aqui em
causa, e julgamos que a apreciação de Danto face ao fim da arte em Hegel é, ainda que de
certa forma diferente da nossa, filosoficamente bem estruturada, não é então o fim da arte
própria mas o fim da possibilidade de inscrever a arte a partir da década de ‘60 no continuum
da história da arte. A ubiquidade do museu no mundo contemporâneo surge, deste modo, não
como enfraquecimento, mas como asserção desse mesmo fenómeno. Mesmo aquelas obras de
arte que desafiam o museu por se fazerem quer no seu exterior, quer na impossibilidade de
alguma vez serem para lá transladadas – a landart, por exemplo – encontram o seu lugar no
museu por meio da fotografia. Em 1983, face ao boom de museus de arte que ocorrera na
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!143 Trad livre do inglês “(...) what sort of sense the sense of beauty is (...)” in Arthur Danto, The Transfiguration of the Commonplace: A Philosophy of Art, Harvard University Press, Cambridge, 1981, pp. 96
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década de ’70, AA Bronson, artista e Peggy Gale, curadora, recolhem um conjunto de
testemunhos que publicam sob o título Museums by Artists. Embora tal não seja indicado em
lugar nenhum da colectânea, é certo que os textos que nela se reúnem, perfazem um retrato
distinto de um movimento que começara, justamente, entre os artistas da década de ’60 e que
hoje conhecemos por institutional critique.144 A institutional critique terá feito do seu
principal objectivo – analítico e político - uma tentativa de resolver a contradição entre o ideal
teórico da instituição da arte como auto-evidente e a formulação concreta das práticas sociais
e políticas que nela se fundam. Daniel Buren que, a par de Hans Haacke, tem sido
considerado um dos pais deste movimento – ambos tiveram peças das suas exposições
censuradas no Guggenheim em 1971145 - contribuiu para a antologia com três ensaios, “A
função do museu”, “A função do estúdio” e “A função da arquitectura”. Buren inicia o
primeiro dos seus três ensaios escrevendo que o museu é lugar privilegiado de três operações
fundamentais - estética, económica e mística - que se embrenham e se confundem. De todos
os textos selecionados – de Buchloch a Duchamp – este interessa-nos particularmente na
medida em que Buren, talvez iluminado pelos erros de Duchamp, encerra na sua obra artística
a ideia de que não há possibilidade de des-estetização. O traço mais característico da obra de
Buren será certamente a repetição de riscas verticais - mecanicamente impressas e com a
largura constante de 8,7 cm - onde o branco é intercalado com outra cor, e que podemos
encontrar nas múltiplas obras in situ que Buren instalou em museus e galerias ao redor do
mundo. Com as riscas, instaladas pela primeira vez em 1969 na White Wide Space
(Antuérpia), Buren pretendia lançar uma ponte entre o interior e o exterior (não raras vezes
instaladas na parte exterior de um museu ou galeria, contornando ou jogando com a sua
arquitectura), mas também entre o artístico (pela intenção) e o não-artístico (pela utilização da
impressão mecânica de um padrão sempre igual), sob a crença de que uma mesma coisa, um !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!144 Por motivos de estreiteza temática – para não nos afastarmos quer de Hegel quer de Broodthaers - optámos por excluir da nossa investigação uma análise pormenorizada da institutional critique. Para tal recomenda-se a leitura do já citado Museums by Artists (1983), que pode ser completada com aquela do catálogo da exposição Museum as Muse: artists reflect, organizada pelo MoMA em 1999 (Kynaston McShine org.). E ainda de Institutional Critique – an Anthology of Artists’ Writings, (Alexander Alberro e Blake Stimson org.), MIT press, Massachussets, 2009.
145 Na sua primeira retrospectiva no Guggenheim (1971), Haacke fora aconselhado a retirar duas obras suas por serem consideradas demasiado jornalísticas e políticas, a sua recusa a retirá-las valeu o cancelamento da exposição. Também em 1971, Buren fora obrigado a retirar a sua obra – um painel monumental com as suas já célebres riscas verticais - da sexta exposição internacional do Guggenheim, após alguns dos outros artistas representados terem apresentado queixa por considerarem que o painel de Buren, pelo seu tamanho e colocação, interferia com as suas obras.
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mesmo signo, seria percebido de diferentes maneiras, dependendo do local de exposição.
Lembremos que a instalação (installation art) se desenvolveu a par e passo com a
institutional critique e tal não é supreendente, na medida em que permite não apenas reflectir
acerca das condições instituicionais mas, de certa forma, resistir – quer pela transitoriedade,
quer pela sua própria ontologia in situ - às suas imposições. No mesmo ensaio, Buren escreve
que “(...)o museu deixa a sua ‘marca’, impõe a sua ‘moldura’ profunda e indelevelmente, em
tudo o que nele é exibido (...)” ao que acrescenta que tal ocorre na medida em que “(...)o
museu apenas expõe aquilo que é considerado e produzido com vista a nele ser colocado.”146
Todavia, assumir a impossibilidade de des-estetização pela produção de obras para as quais o
museu não é apenas o seu último e fatal lugar como é também o primeiro, o espaço de
produção, parece conter algos laivos de nostalgia face a um tempo em que a obra estaria ainda
imersa na vida. Maleuvre, sobre a estratégia de Buren diz-nos algo semelhante, que tratando
a“(...)arte como um afterthought, um ornamento da praxis histórica, em vez de percebê-la
como seu modelo essencial” o artista arrisca a “dimensão emancipatória da arte, como forte e
enfática pulsão história que transgride a mera documentação”.147 De qualquer modo, se o
grito das vanguardas foi contra a autonomia da arte e o seu maior desejo que esta fosse
devolvida à praxis da vida, então estas falharam quer na teoria, quer na prática. Todavia, a sua
institucionalização, como institucionalização desta fenda que se abre entre arte e vida para a
qual a arte nunca será capaz de conservar-se, ontologicamente, como pura vida, abriu a
possibilidade de movimentos como o da institutional critique, também ela prontamente
institucionalizada.
Há dois séculos que o museu ocupa o lugar da igreja ou do palácio em relação à arte,
várias vezes se anunciou a morte da arte para a qual o museu se inscreveu quer como causa -
Quatremère - quer como consequência – Adorno. O que aprendemos com Hegel não foi
apenas que a função da arte passou para a filosofia e assim surgiu o museu, mas que
exactamente apenas onde se mantêm tais mecanismos de convencionalização, portanto, onde
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!146 trad. livre do inglês: “(...)the Museum makes its ‘mark,’ imposes its ‘frame’. . . on everything that is exhibited in it, in a deep and indelible way (...) everything that the Museum shows is only considered and produced in view of being set in it.” Daniel Buren, “The function of the Museum” in Museums by artists (AA Bronson, Peggy Gale org.), Toronto, 1983. pp. 60 147 trad. livre do inglês: “[such strategy still treats] art as an afterthought or ornament to historical praxis, rather than its essential model. (...)[in the end it threatens] the emancipatory dimension of art, its strong, emphatic historical thrust that outstrips mere documentation.” Didier Maleuvre, Museum Memories: History, Technology, Art Cultural Memory in the Present, Stanford University Press, California, 1999 pp. 158.
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continua a haver museus, persiste a possibilidade de “coleccionar outras coisas”, ordená-las
maneiras diferentes, de seleccionar de maneiras diferentes, e até de “fugir”148. Neste sentido, a
estética de Hegel parece surgir como antídoto à morte que anuncia, e mais que a de Kant, a
sua teoria sustenta os desenvolvimentos modernistas, a partir do momento em que o artista se
tornou auto-consciente e a arte impensável fora da sua relação com o pensamento - os
impulsos teóricos dos quais emergem, umas vezes acompanham, outras substituem, as obras
de arte de vanguarda evidenciam justamente isso. Porém, poucos foram capazes de
compreender este estranho estatuto do convencionalizar tão bem como Duchamp, e, na sua
esteira, Marcel Broothaers.
3. O exemplo do Musée d’art moderne de Marcel Broodthaers
“Nasci em 1924./ Tornei-me artista em 1963./ Fundei um museu (Musée d’Art moderne –
Département des Aigles) em 1968./ Enterrei esse museu em 1972/ na Documenta de Kassel./
Retornei-me artista no mesmo ano.”149
Por entre aquilo que nos deixou escrito e se escreveu sobre ele, Marcel Broodthaers
surge-nos como um homem insólito, céptico, cínico, extraordinariamente culto e ainda assim
de um sentido de humor estranhamente infantil. Aos quarenta anos decidiu que seria artista,
aos quarenta e seis anunciou que abandonaria a prática para se tornar director de um museu, o
seu, que começara no seu apartamento em Bruxelas e o acompanhou nas suas viagens entre a
Bélgica e a Alemanha. O que está em causa neste museu não é, todavia, uma resposta crítica
aos museus de arte como aquelas com as quais nos temos vindo a cruzar até aqui, nem é,
sequer, num cinismo warholiano, a teatralização dos mecanismos comerciais ou institucionais
do mundo arte. Broodthaers encarava cepticamente a crença - tão forte na década de ‘60 que
talvez só a um punhado de artistas, entre eles Duchamp, escapava - de que seria ainda
possível que se produzissem obras de arte e, mais do que isso, contextos artísticos, capazes de !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!148 vide Eva Geulen, op cit, pp. 59-60 149 trad. livre do francês: «Je suis né en 1924./Je deviens artiste en 1963./Je fonde un musée (Musée d’Art moderne – Département des Aigles) en 1968./J’enterre ce musée en 1972/à Documenta à Kassel./Je redeviens artiste la même année» Marcel Broothaers cit. in “Marcel Broodthaers met le musée en cure de désintoxication”, Le Temps, Paris, 15 de Maio de 2015. disponível em linha em: https://www.letemps.ch (consultado pela última vez a 1 de Abril de 2017)
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dinamitar as relações entre os objectos artísticos, as instituições e os sistemas de classificação,
a não ser operando a partir do núcleo das estruturas elípticas a partir das quais a arte se
renova. Assim, o que está em causa no seu musée, não é tanto a renúncia ou a revolta, mas
justamente a exploração das limitações dos dispositivos de enquadramento, o que implica
lançar um olhar ao museu, não como receptáculo mas como instrumento. Lembremos ainda
que o modo através do qual esses dispositivos – ou appareils, como vimos com Déotte -
podem moldar e ordenar os conteúdos e os trâmites da sociedade, marcava a obra de
Broodthaers no período anterior a ’68. Encontramos especial representatividade, e alguma
força estilística que nos instiga a considerá-la uma espécie de metonímia do museu de arte,
numa peça exposta por Broodthaers ainda em ’64. Referimo-nos a uma escultura composta
por cinco dezenas de exemplares de Pense-Bête, aquela que seria a última antologia poética
de Broodthaers, ainda plastificados, como se trazidos directamente da fábrica para o museu, e
enterrados numa base informe de gesso – “o livro é um objecto de interdição... Aqui não
podemos ler o livro sem lhe destruirmos as suas qualidades plásticas.”150 Para sua surpresa,
nenhum visitante leu a obra se não como objecto de arte, ninguém foi afectado por esse
primeiro nível de interdição; Pense-Bête (escultura) remete-nos para a referência
mallarmeeana à beleza da inactividade dos livros, a graça pristina que os livros mudos,
passivos, neutros, conservam antes do toque do leitor. Talvez por isso, por essa afinidade com
Mallarmé (e acrescentemos que Broodthaers considerara Un Coup de dés jamais n’abolira le
hasard [1897] o tratado inaugural da arte dos seus dias), não nos precipitamos a pactuar com
as teorias151 que especulam que o engessamento dos últimos exemplares de Pense-Bête (livro)
terá funcionado como corporização do momento de charneira de uma carreira poética para
uma carreira artística – mesmo quando Broodthaers anuncia, aos quarenta anos, que daí em
diante será artista, não acreditamos que o seu desejo tenha alguma vez sido o de imobilizar a
poesia.
Por outro lado, o que Broodthaers nos oferece é uma abordagem dialéctica das !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!150 Trad livre do francês “(...) l’ objet d’une interdiction (...) On ne peut, ici, lie le livre sans détruire l’aspect plastique” Marcel Brooodthaers, “Dix Mille Francs de Recompense” in Ibidem, pp. 248-251; 151 Referimo-nos aqui à abordagem de Rachel Haidu em Absence of Work, cujo título justifica por analogia ao célebre ensaio de Foucault La Folie l’absence d’oeuvre, justamente por considerar que, da mesma forma que La Folie… remete para um dos primeiros momentos na carreira de Foucault em que este se apercebe de uma relação entre a literatura e os problemas de ordem social, no caso a loucura, também Broodthaers a certa altura da sua vida, terá abandonado aquele que seria o campo da sua oeuvre, a poesia, para se dedicar às artes plásticas. Acrescentemos, porém, que o estudo que Haidu dedica à obra de Broodthaers em 2010 será certamente um dos mais completos (e complexos) que encontrámos até hoje.
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condições de produção da arte contemporânea – ao princípio da arte como ideia, [art as an
idea] de Joseph Kosuth152, sobre cuja obra Broodthaers poderia desdobrar a sua crítica ao
cachimbo que não é um cachimbo de Magritte, por ter demasiado Magritte e pouco cachimbo
que o não é153, Broodthaers opunha a fórmula, moderadamente marxista, e, antes disso,
acerrimamente hegeliana, “art comme production”. Lembremos que nem a linguagem nem a
corporização de uma ideia no campo fenoménico do objecto artístico, existem em-si no
exterior de uma configuração mitológica (e acrescentemos histórica, teórica, ideológica) da
obra que enformam. Deste modo, Pense-Bête (escultura) dá-nos a ver essa mecânica essencial
da arte como processo de reificação – da fábrica para o gesso, os livros ganham uma nova
definição material que funciona como enquadramento institucional que os contém e conserva
– são para ser vistos, não para ser lidos, e, a partir do momento em que é consagrada a sua
existência como objectos estéticos, tornam-se invioláveis. Assim, se os museus verdadeiros
são os lugares não-literários mais representativos da metonímia, o musée de Broodthaers
comporta-se ainda como anamorfose, anamorfose das matrizes museológicas e arqueológicas
(pela disposição deliberadamente imberbe de factos e artefactos históricos). Talvez por isso
Michael Compton se tenha oposto à inclusão de Broodthaers na linhagem da institutional
criquite, defendendo que o trabalho de Broodthaers no seu MD’AM DA seria algo menos da
ordem de uma crítica às instituições do que de uma paródia às críticas, frutíferas e comuns na
época, à instituição do museu. Na verdade, há na obra de Broodthaers algo que o distingue
claramente de Hans Haacke e sobretudo de Daniel Buren, noutros termos, o musée de
Broodthaers constitui-se não como paródia ao museu mas, numa espécie de assunção de que
não há fora-de-museu, como paródia às teorias e sociologias do museu.
Documenta 5, 30 de Junho de 1972, Kassel. As paredes de um cubículo de 6m2 da
Neue Galerie, reiteram a informação – de resto já oferecida ao passante que olhasse através da
janela – de que o visitante está diante de um Museu de Arte Moderna. Pela sala vemos
dispostas as estruturas de vigilância e interdição básicas de uma galeria – uma cadeira
[perpetuamente à espera de guarda], as indicações “directoria, bengaleiro, caixa,
secretariado”, em francês e em alemão, posicionadas angularmente num dos cantos da sala,
apontando, por isso, duas direcções distintas; no centro, uma estrutura de correntes e pilares
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!152 Referimo-nos aqui particularmente a Titled (Art as Idea as Ideia) The Word “Definition”, 1966-68 de Joseph Kosuth; 153 cf. Marcel Broodthaers, “Ten Thousand Francs Reward in October, vol. 42 (Autumm, 1987) pp. 43
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brancos delimita o perímetro de um quadrado preto com a inscrição “propriedade privada”.
Não há neste museu absolutamente nada que reconheçamos imediatamente como obra de arte,
havendo, todavia, absolutamente tudo para que nele possamos reconhecer um museu de arte.
Esta seria a primeira parte do capítulo final do Gesellschaftsroman de Marcel Broodthaers, o
último ano de um projecto que começara em Setembro de 1968, quando Broodthaers abre ao
público o seu atelier na Rue de La Pépinière, em Bruxelas, inaugurando a Section XIXéme
Siècle, a primeira aparição do Musée d’Arte Moderne Département des Aigles154. O estúdio –
instalado em várias divisões do seu apartamento - lugar privado de produção da obra, agora
converso em museu, o lugar final da recepção da produção que nele tem lugar, fornece-nos a
primeira pista. Nos termos de Broodthaers: “Ocorreu-me então telefonar a uma companhia de
transportes, Menkès – muito conhecida em Bruxelas – e alugar uma série de caixas para que
os visitantes se pudessem sentar. Pareceu-me absolutamente lógico ocupar o lugar sobre esses
signos que referem ao facto de servirem para embalar arte, caixas nas quais se transportam
pinturas e esculturas. Recebi essas caixas e instalei-as aqui de uma maneira muito particular,
como se fossem, de facto, obras de arte. E então disse para mim: No fundo é isto, o museu é
isto. Aqui está a noção de museu.”155
Ao longo de quatro anos o Md’AM DA assumiu cinco localizações distintas e abriu-se
em doze secções. Ainda que apenas uma delas, aquela inaugurada em Bruxelas no Outono de
’68, tenha sido assumidamente dedicada ao século XIX, signos deste período pontuam de
modo mais ou menos explícito todas as configurações do musée de Broodthaers - tal não terá
sido nem um gesto inocente, nem uma simples decisão estilística. O século XIX representa,
como temos vindo a repetir exaustivamente, um período crucial na consolidação relacional de
um alargado conjunto de pares de coordenadas, como as de passado e presente, autoridade e
individualidade, comunidade e Estado, verbal e visível, não verbal e invisível, das quais o
museu como instituição emerge (ou pelo menos se cristaliza) e cuja manutenção promete
assegurar. Recordemos que os primeiros museus públicos nascem, na primeira metade do !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!154 Ao qual nos referiremos, doravante por Md’AM DA. 155 Trad livre do francês “L’idée m’est alors venue de téléphoner à une entreprise de transport, Menkès - assez connue à Bruxelles - et de louer quelques caisses pour que les visiteurs puissent s’asseoir. Cela me paraissait tout à fait logique de les faire prendre place sur ces “signes” qui font référence au fait d’emballer de l’art, caisses dans lesquelles on transporte des peintures et des sculptures. J’ai réceptionné ces caisses et je les ai installées ici d’une maniere finalement assez particuliere, en fait comme si elles étaient elles-mêmes de oeuvres d’art. Alors je me suis dit: mais au fond c’est ça, le musée c’est ça.” in Marcel Broodthaers. “Entretion avec Marcel Broodthaers, Freddy de Vree (1969)” in Anna Hakkens, Marcel Broodthaers par lui-même, Ludion/ Flamarion, Amsterdam, 1998, pp. 68-73;!!
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século XVIII, da crença na capacidade da razão humana para a organização do conhecimento
– que se queria enciclopédico – sob uma grelha de princípios universais.
Epistemologicamente, o museu parece resistir a alterações profundas, mantendo-se sempre
um espaço de ordenação das coisas do mundo e da representação e compreensão do mundo
ele próprio - mesmo quando auto-referencial, no caso do musée de Broodthaers, onde o que se
cataloga é, em última análise, o próprio museu. E por isso podemos dizer que, se o projecto de
Broodthaers fosse o da destruição do museu – e não cremos que tenha sido – então terá, como
um nado-morto, falhado logo à partida, um pouco como Duchamp que, ao recusar a estética,
não foi nunca capaz de exterminá-la, pelo contrário, a sua obra acabou por construir-se quase
como que a última grande estética do Ocidente. Em 1975, no catálogo da primeira exposição
de Broodthaers em Londres, Le Privilège de l’Art, Broodthaers pergunta a si mesmo: “O que
é a Arte?” e a si próprio responde que “Depois do século XIX, a pergunta é constantemente
colocada ao artista, ao director do museu, ao amador.(...) a Arte só pode ser seriamente
definida se olharmos primeiro para a transformação artística em mercadoria - um processo tão
rápido que acaba por desembocar numa sobreposição dos valores artísticos e comerciais”156.
Estas palavras de há cinco décadas lançam-se proféticas para os dias de hoje, para as
chamadas indústrias culturais, para a profissionalização do crítico de arte, para o ciclo
(círculo) de trocas económicas dinheiro-objecto-dinheiro. O objecto – o de arte e os outros -
inserido na lógica capitalista como extensão desse material, converte-se numa espécie de
intermediário - entre dinheiros - como um valor de troca. Ora, enquanto propriedade
económica, a “arte é também tributária para a lógica do lucro e, por isso, para uma
desproporção específica que opera em duas direcções, entre o valor representado na obra e o
pagamento pela mesma”157. As artes plásticas serão o terreno que Broodthaers privilegiará
para a exposição desta tendência comercial da arte e do seu mundo, todavia, a relação entre
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!156 Trad livre do francês “Qu’est-ce que l’Art? Depuis le XIXe siècle, la question est sans cesse posée tant à l’artiste, qu’au directeur de Musée, qu’à l’amateur. (...) je ne crois pas qui’il soit légitime de definir l’Art et de considérer la question sériusement, sinon au travers d’une constant, à savoir: la transformation de l’Art en merchandise (...) Ce processus s’accélère de nos jour au point qu’il y a superposition des valeurs artistiques et commerciales” Marcel Broodthaers “Être bien pensant ou ne pas être. Être aveugle (1975)” in Marcel Broodthaers, Galerie Nationale du Jeu de Paume, Paris, 1991, pp. 268 157 Trad livre do inglês “(...) art too is tributary to a logic of profit and thus to a specific disproportion, which operates in both directions, between the value represented by a work and the payment for that work” Brigit Pelzer,“Recourse to the Letter” (trad. Richard Miller) in Broodthaers: Writings, Interviews, Photographs, October, no 43, 1987, pp. 170;!!
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arte e mercado, estabelecida já no manifesto de 1964158 impresso sobre imagens garridas que
publicitavam produtos diversos em páginas de revistas e entregue como convite à sua
exposição inaugural na Galeria de Saint Laurent, só encontra uma manifestação definitiva na
abertura da Séction Financiére do Md’AM DA no ano de 1971 em Colónia.
“À vendre pour cause de faillite”, anunciava o catálogo da Feira de Arte de Colónia, o
que havia falido e estava à venda, era justamente o musée de Broodthaers. Não foi todavia
realmente necessário que o museu tenha sido – e acrescentemos que não foi – vendido como
um objecto em nada diferente dos outros objectos que o compõem, para que a vontade, mais
ou menos jocosa, de Broodthaers se visse concretizada, “ficção ou realidade, pouco importa, é
um contrato lógico. (...) Pura ou impura é uma função lógica”159. Sob a Séction Financiére
(1971-72) Broodthaers terá esboçado a publicação de um anúncio – a sua concretização
ocorreria postumamente, em 1987 - concernente à venda de lingotes de ouro puro nos quais
gravaria o emblema da águia. Lembra-nos Buchloh que a Séction Financiére coincide
cronologicamente com a crise económica que provocara a derrocada do sistema Bretton-
Woods e o fim da paridade do dólar – que então orientava as economias do mundo ocidental –
em ouro. Será esta a razão pela qual Broodthaers terá fixado o preço de cada lingote no dobro
do valor diário do ouro, num momento em que a sua associação directa com o numerário
havia colapsado. Cada lingote far-se-ia acompanhar de uma carta de autenticidade que
sugeria, ainda, a possibilidade de derreter a barra para resgatar a pureza do ouro. Uma das
obras mais representativas desta afinidade dos objectos com o ouro e deste com o numerário,
“[d]a reificação da arte em termos visuais e do igualar a arte com a mercadoria”160
encontramo-la nas impressões de Museum-Museum (1972). Numa destas impressões,
observamos um conjunto de barras de ouro às quais Broodthaers faz equivaler uma legenda
que inventaria cronologicamente alguns pintores, de Mantegna a Magritte; noutra, vemos !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!158 Neste manifesto, impresso nos convites para a exposição Moi aussi, je me suis demandé si je ne pouvais pas vendre quelque chose... na Galerie Saint-Laurent, Broodthaers anuncia a viragem da sua carreira da poesia para as artes plásticas. Nele lê-se: “Moi aussi je me suis demandé si je ne pouvais pas vendre quelque chose et réussir dans la vie. Cela fait un moment déjà que je ne suis bon à rien. Je suis âgé de quarante ans... L’idée enfin d’inventer quelque chose d’insincère me traversa l’esprit et je me mis aussitôt au travail. Au bout de trois mois, je montrai ma production à Ph. Edouard Toussaint le propriétaire de la Galerie Saint-Laurent.Mais c’est de l’art, dit-il, et j’exposerais volontiers tout ça. D’accord, lui répondis-je. Si je vends quelque chose il prendra 30%, Ce sont paraît-il des conditions normales. Certaines galeries prenant 75%. Ce que c’est ? En fait, des objets” 159 Trad. livre do francês “Fiction ou reálité, peu import, c’esc un contra logique (...) Pure ou impure, c’esc une fiction logique” Marcel Broodthaers in Keila Kern, Marcel Broodthaers, Museu de Arte Moderna Departamento da Águias agora em português, pp. 298 160 Trad. livre do inglês “the reification of visual arts and the equate with commodoties” Deborah Schultz, Marcel Broodthaers: Strategy and Dialogue, pp. 86;
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listados em alemão produtos de consumo - fleisch, tabak, benzin (...). Numa terceira placa, ao
inserir as palavras imitation, kopie, original, Broodthaers apropria-se de palavras que, não
raras vezes, entram no jogo do mercado artístico e que têm uma importância na definição do
valor de obra de arte em termos económicos – a lógica é a da correspondência entre os
correlactos abstractos da arte e do dinheiro. Cada uma das placas da série, Museum-museum é
então encabeçada com a palavra Museum que nos remete para a estrutura do museu na sua
disposição mais mercantil, deste sistema de trocas de bens.
Magritte = ouro / Mantegna = ouro / fleisch = ouro / original = ouro / kopie = ouro / /ouro =
ouro / /
Magritte = Mantegna = fleisch = original = kopie = ouro
Com Gedicht-poem-poème/change-exchange-Wechsel, de 1973, Broodhtaers vem
acentuar o papel da linguagem no sistema de mercados - uma placa é dividida em três colunas
- A, B, C – listando cada uma delas a repetição das suas iniciais (M.B.). A primeira coluna (A)
é encabeçada pela palavra poema em três línguas, Gedicht-poem-poème, cada coluna tem o
seu correspondente numérico; na coluna B, os números das iniciais não foram calculados, ao
passo que, na coluna C, onde se lê chance-exchange-Wechsel “as iniciais correspondem à
quantia em várias moedas - marcos, francos, libras e dólares.”161 Esta obra opera a conversão
da assinatura num signo ou numa moeda sem valor fixo - estamos perante uma relação entre
arte-moeda-assinatura e a própria indeterminação do signo. Broodthaers vai, assim, reduzir a
sua assinatura a um mínimo - M.B. - de modo a que seja ainda possível ser reconhecido como
um signo sem perder o seu valor. Nos termos de Broodthaers, “O objetivo da arte é comercial.
/ O meu objectivo é igualmente comercial. / O objectivo da crítica também é comercial.”162
Aqui importa relevar ainda a aproximação com o texto e sobretudo com a autoria, uma
linha orientadora da posição de Broodthaers no que toca às práticas de arte contemporânea,
nomeadamente à arte Conceptual163. O texto e a escrita em Broodthaers insurgem-se contra a
noção – tão em voga nas décadas de ’60 e ’70 – da insuperação da palavra pelo objecto no
campo da arte conceptual, onde o texto substitui o próprio objecto artístico, decantado em !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!161 Trad livre do inglês “the initials correspond to amounts in various currencies - German marks, French francs, pounds and dollars ”, Ibidem, pp. 86 162 Marcel Broodthaers “A MTL ou à BCD” in Keila Kern, Marcel Broodthaers, op. cit., pp. 302 163 vide Rachel Haidu, Marcel Broodthaers 1963-1972: or The Absence of Work, pp. 104
! ! 87
explicações, instruções ou descrições, sob a crença de que assim se resgataria a imaterialidade
da obra, o seu conteúdo espiritual. Quiasmaticamente, a escrita em Broodthaers surge como
uma investigação do processo de materialização do signo visual, transformado num objecto
artístico de abstinência e resistência. Lembrando-nos Duchamp, quando nos diz que o ateu
não é menos religioso que o crente, do mesmo modo que o anti-artista não é menos artista que
o artista, em entrevista à Trépied, quando interrogado sobre Le Courbeau et le Renard poder
ser uma espécie de anti-filme, Broodthaers responde “sim e não”, um anti-filme continua a ser
um filme, do mesmo modo que um anti-romance continua a ser escrito e a ser livro164 – e o
mesmo poderíamos estender ao seu Musée. Num caso ou noutro – e argumentamos que a arte
perde essa capacidade de fazer mundo assim que se mundifica, isto é, assim que com ela
surgem os mundos da estética, dos críticos, dos artistas, dos museus – num caso ou noutro,
recordemos, o que se cria é uma ficção. Broodthaers, um lírico apaixonado pela aspereza das
coisas concretas, é particularmente lúcido – ser artista implica admitir essa insinceridade
essencial. O Md’AM DA forma um universo que cartografa, à maneira hegeliana, a sociedade
como um museu de arte – as secções (Littéraire, Folklorique, documentaire, cinéma,
financière, des Figures, Publicité, XIXème Siècle (bis), XVIIème siècle, d’Art moderne) feitas
artefactos ou objectos, ocupam uma área cinzenta entre os artefactos culturais e culturalmente
determinados e o museu como instituição. Esta tendência arquivística, quase etnográfica - diz-
nos Broodthaers com a voz de Pierre Restany, num diálogo fictício que encenou entre eles,
que terá resultado da inutilidade fonética das letras [o, d, h, e] do seu apelido – permite-nos
lançar uma ponte entre a sua obra poética, anterior ao manifesto de 1964, e aquela obra que
podemos dizer ser a de um poeta a quem não bastou a literatura. A configuração do bestiário
nas suas antologias poéticas, La Bête Noire, Zodiaque, Pense-Bête e nos seus paralelos
plásticos, confere à crítica social de Broodthaers uma subtileza aguda, que encontra especial
expressão na 9ª aparição/ secção do seu Musée – a Séction des Figures. Na Séction des
Figures, em Düsseldorf, encontramos um reconhecido objecto que acompanhou todas as
secções do Md’AM DA - a águia – e que nos surge decantada em cerca de trezentas
representações diferentes, algumas delas emprestadas de outros museus, umas regateadas em
feiras e charity shops, outras criadas por Broodthaers. De datas e locais diferentes, ao entrar
na Séction des Figures, os “visitantes e os curiosos” encontrariam pinturas, impressões, vasos, !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!164 cf. “Trepied Entretien avec Marcel Broodthaers (1968)” in Marcel Broodthaers: Cinéma, Fundació Antoni Tàpies, Barcelona, 1997, pp. 59
! ! 88
jóias, utensílios domésticos, peças de roupa com ornamentos aquilinos, acompanhados pela
pequena legenda: “Ceci n’est pas un objet d’art/ This is not a work of art/ Dies ist kein
kunstwerk”. Sobre esta secção, diz-nos Reiner Borgemeister, que o visitante não seria capaz
de reconhecer imediatamente uma ordem temporal (histórica) ou geográfica sob a qual as
diferentes figuras de águias se agrupariam, como ocorre num “museu real”, ao que acrescenta
que, em última análise, as diferentes representações estariam organizadas pela clave da
distância entre a forma e o significado, entre a morfologia e a semântica165, ou, como vimos
no segundo capítulo desta investigação, entre as palavras e as coisas. Adaptando a célebre
deixa de Magritte ao afirmar que cada peça da Séction des Figures “(...) n’est pas un objet
d’art”, Broodthaers questiona, não apenas a “interrelação da imagem, do objecto e do seu
nome, ou mais precisamente, o seu significado”166 mas também o papel do artista na definição
“[d]o objecto de tal modo a que o seu futuro só possa ser o museu”.167 Deste modo, perante a
abrangência de obras de arte e objectos de diferente natureza expostos nesta Séction,
Broodthaers terá brincado com a (já) velha e estabelecida crença de que o destino final de
uma obra será sempre o museu. No catálogo desta exposição em Düsseldorf, Broodthaers
reanima a figura de Duchamp, numa asserção que remete para a nossa discussão na secção
anterior deste capítulo: “Quer seja um urinol assinado “R. Mutt” (1917) ou um objet trouvé,
qualquer objecto pode ser elevado ao estatuto de arte. O artista define o objecto de tal forma
que o seu futuro só poderá ser o museu. Desde Duchamp que o artista é autor de uma
definição. Dois factos são aqui trazidos à consideração: que no início o propósito de Duchamp
seria o de destabilizar o poder dos júris e das escolas, e que hoje, tendo-se tornado uma mera
sombra de si mesmo, domina toda uma área da arte contemporânea, aclamada por
colecionadores e negociantes”168. Esta brincadeira de anulamento que, uma vez mais, só no
museu tem sentido, opera então uma redução da identidade dessas obras à condição de meros !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!165 Pierre Restany, “Das Adler-Spiel” in Marcel Broodthaers, Museum Ludwig, Colónia, 1980, pp. 28 166 Trad. livre do inglês “(...) the interrelation of the image, the object, and its name, or more precisely, its meaning” Rainer Borgemeister- “Section des Figures: The Eagle from the Oligocene to the Present” in Marcel Broodthaers, Writings, Interviews, Photographs (ed. Benjamin H.D. Buchloh), pp. 140 167 Trad. livre do inglês “The artist defines this object in such a way that its future can lie only in the museum.” Marcel Broodthaers in Ibidem, pp. 142 168 trad. livre do inglês: “Whether a urinal signed “R. Mutt” (1917) or an objet trouvé, any object can be elevated to the status of art. The artist defines the object in such a way that its future can lie only in the museum. Since Duchamp, the artist is author of a definition. Two facts will be brought into focus here: that in the beginning Duchamp’s initiative was aimed at destabilizing the power of juries and schools, and that today - having become a mere shadow of itself - it dominates an entire area of contemporary art, supported by collectors and dealers” Marcel Broodthaers cit. in Anne Rorimer “The Exhibition at the MTL Gallery in Brussels, March 13-April 10, 1970”, in October, nº42, 1987. pp. 115
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objectos (o ser-objecto da ontologia heideggeriana), utilizando as pequenas placas, reforça-se
a ideia de que qualquer objecto exposto não é, necessariamente, quer dependente, quer
subjugado pela legitimação do museu. Há poucas dúvidas acerca do estatuto artístico de La
fountaine de jouvence de Magritte (um dos quadros que Broodthaers escolhera para a séction
des figures), mesmo que se faça acompanhar de uma legenda que nos indique o contrário. É
disto que nos fala Jürgen Harten, num curto ensaio a propósito do musée de Broodthaers -
embora as águias tenham adquirido o “status de peças de exposição”169 não funcionou isto, de
modo algum, como garantia do seu estatuto de obras de arte; Broodthaers procurara,
acrescenta Harten, compreender a “identidade da águia como ideia e a ideia de arte”170. A
organização anacrónica, jocosa, das várias representações da águia, oferece- nos uma figura à
qual se subtrai a mitologia e o valor ideológico, abrindo uma brecha na ideia iluminista de
hierarquia cultural, apresentando uma heterarquia onde se “assume a responsabilidade da
perda da dimensão histórica do próprio museu”171. O Musée d’Arte Moderne, Departmente
des Aigles, torna-se a base, no sentido lógico mas não menos no sentido militar, da campanha,
sob a égide da águia - símbolo milenar de poder e de autoridade - pelo terreno minado das
artes. Presença e ausência, localização e disseminação criam uma espécie de sistema de
coordenadas sobre o qual se orienta o musée de Broodthaers, para que se coloque em jogo a
ideia de uma representação inexistente, um “encontro com a ficção” que desponta e permite
uma “consciência da realidade”172. Sobre o Md’AM DA, Broodthaers diz certa vez que “não é
mais que uma fraude, uma mentira simples” - um museu que apenas aparenta ser um museu -
que o próprio admite não ser director de nenhum. Esta ideia de questionamento da verdade
passa pelo modo como Broodthaers coloca a ficcionalidade do seu museu, ao aumentar o
espectro de perguntas que o Maio de ’68 trouxera - “qual é, afinal, o papel daquilo que, na
nossa sociedade, representa a vida artística, ou seja, o papel do museu?”173- em confronto com
a sociedade e a máquina da vida artística mercantilizada, para observar a sua sobrevivência.
“Também é importante descobrir se um museu ficcional é capaz de lançar uma nova luz sobre !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!169 cf. Keila Kern, op. cit., pp. 354 170 Ibidem, pp. 354 171 Trad. livre do inglês “(...) which is responsible for the loss of the historical dimension, the museum itself (...)” Rainer Borgermeister, op. cit., pp.146 172 Trad livre do inglês “the situation of fiction (…) a stronger consciousness of reality”, Ibidem, pp. 151-152 173 Trad. livre do francês “Quel est à la limite le rôle de ce qui dans notre société représente la vie artistique, c’est-à-dire: quel est le rôle du musée?” Marcel Broothaers, “Jürgen Harten et Katarina Schmidt Fragment d’un Entretien avec Marcel Broodthaers (1972) in Anna Hakkens, Marcel Broodthaers par lui-même, Ludion / Flammarion, Amsterdam, 1998 pp. 80 – 83
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os mecanismos do mundo e da vida da arte. Através do meu museu eu coloco essa questão. E
é por isso que eu não preciso de dar a resposta.”174
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!174 Trad. livre do inglês “its also important to discover whether the fictitious museum shed new light on the mechanisms of art, artistic life, and society. With my museum I pose the question. I am therefore not required to provide the answer.” Marcel Broodthaers, “Section d’Arte Moderne (Private Property), 1972” in op. cit., pp. 359
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Conclusão
La Moule
Cette roublarde a évité le moule de la société.
Elle s’est coulée dans le sien propre.
D’autres, ressemblantes, partagent avec elle l’anti-mère.
Elle est parfaite.175
Nos últimos tempos, sobretudo a partir da década de ’90, no rescaldo do boom de
museus de arte nos anos 70 e 80, tem-se assistido a um desenvolvimento especialmente
enérgico de uma crítica que nestes novos museus crê encontrar algo que os torna
profundamente distintos das suas configurações tradicionais, depositando neles o dinamitar
(ou pelo menos o seu princípio) daquelas ligações que até então teriam alimentado a
cumplicidade entre o poder e o conhecimento, pelo modo como estabeleceram e mantiveram
relações de desigualdade entre público e privado, burguesia e classe operária, império e
colónia, homem e mulher. Estes teóricos – entre eles Tony Bennett ou Douglas Crimp, aos
quais nos temos vindo a referir, mas também Eilean Hooper-Greenhill ou Carol Duncan – que
poderiam ter tido direito a uma secção própria no capítulo dos Críticos, localizam o início da
caminhada do museu de arte precisamente no mesmo momento em que nós a identificámos –
na Revolução Francesa. As suas análises, partindo também elas da genealogia foucaultiana,
recusam-se, todavia, a ver para além da constituição da instituição do museu como torre de
controlo das tendências totalizantes do Iluminismo. Justamente por isso é que recuperámos,
logo nos primeiros capítulos, a noção foucaultiana de história geral – relembrando a sua
metodologia que nos permite anlisar as contingências do disperso, desenrolando, onde antes
se decifravam os traços deixados pelos homens, uma massa de elementos que, quando inter-
relacionados, são capazes de formar monumento176 - para compreendermos que o que
aparenta estar em causa nestas leituras, é algo mais da ordem da transformação de um !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!175!Marcel Broodthaers, La Moule (1964) in Broodthaers: Writings, Interviews, Photographs, October, no 42, 1987; pp.28!176!cf. Michele Focault, l'Archeologie du Savoir, !
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monumento – o Iluminismo – em documento – que é o museu como sua instituição modelar,
e, portanto, a operação de uma metodologia semelhante àquela contra a qual Foucault se
insurge. Análises como estas, quer com elas concordemos ou não, são evidência de que a
problemática dos museus está tão viva nos dias de hoje, como nos seus primeiros tempos. Na
verdade, ao longo do nosso percurso fomo-nos apercebendo da estreiteza da relação entre o
museu como instituição e a filosofia ou a crítica, que o museu não se tornou apenas, quase de
imediato, uma categoria filosófica, como passou a ser olhado como uma espécie de espelho da
própria filosofia (que desde cedo clamara para si o problema da origem mas também o do
destino) e que prontamente se acompanharam, nas suas mútuas transfigurações. Ao museu de
arte não fomos capazes de lhe encontrar uma definição unívoca, talvez porque ele próprio
configurador, tenha essa habilidade de resistir às tentativas externas de categorização ou de
controlo. Porém, expondo a ordem das coisas, apercebemo-nos de que os museus se tornam
mostruários de si próprios como espaços de representação – este alinhar do museu de arte sob
o dístico foucaultiano de espaço de representação, dá-nos a ver uma instituição que é
profundamente marcada pelo racionalismo iluminista mas que não se resume a mero artefacto
dessa era histórica.
Aproximámo-nos, ainda, quer pelo caminho da filosofia dialéctica de Hegel, quer pelo
caminho que a arte, a sua história ou a sua estética, percorreram nos últimos dois séculos, de
um parecer fundamental – que nenhuma ruptura é absoluta. Na Rússia bolchevique, confisca-
se o antigo, o tradicional, encerra-se a galeria do Palácio de Inverno e, simultaneamente,
produz-se arte nova, reproduz-se e distribui-se essa arte pelas fábricas, ruas e praças desse
extenso, e, em muitos casos, inóspito território, para finalmente ser colocada em museu.
Como o futurismo, que também acreditou nessa possibilidade de suspender o passado e
fundar um novo tempo, pondo em marcha uma quase tanatopraxis que teve início no
momento em que Marinetti lança o pedido que se queimem os museus e que termina,
fatalmente, com a apropriação da arte futurista pelos totalitarismos. Nas campanhas
vanguardistas, sobretudo depois desta primeira empreitada, e, muito concretamente, no
rescaldo da 2º guerra, terminar com museu implicou sempre agitar o núcleo da própria arte. A
questão da morte da arte, para a qual Hegel tenha talvez sido menos arauto que os seus
intérpretes, converte-se numa espécie de mito fundador da arte – será que é ainda possível
pensar a arte sem, sempre e logo, pensar o seu fim? Estas questões remetem para aquelas com
! ! 93
as quais iniciámos a nossa investigação, quando recordámos as leituras que decifram na
observação de Hegel acerca da arte dos seus dias, um lamento face à saturação absoluta das
possibilidades de se produzir arte e de nos relacionarmos com a arte, depois do fim do período
clássico. Sabemos, porém, que a história do mundo Ocidental é prenhe em momentos de
ressurreição (a de Cristo não terá sido a primeira nem será certamente a última) de novos fins
e de novos começos que, como temos vindo a mostrar, não ocorrem em vácuo. Se olhar o
contemporâneo como uma figura inédita, sem herança, é tão terrível quanto é sedutor – afinal
às guerras fizeram-nas sempre os outros – lembrar a permanência de certos modos de fazer (a
ruptura é certamente um deles) ou de instituições como os museus, é reconhecer a fragilidade
quer destas teorias, quer da própria temporalidade que perfaz o contemporâneo. Talvez por
isso tenhamos tantas vezes prescrito cautela, e talvez também por isso tenhamos sentido a
necessidade de rebuscar, em cada um dos nossos críticos, a definição de obra de arte à luz da
qual operam os ataques que dirigem aos museus. Por outro lado, se o museu impõe uma
distância olímpica entre o observador e a obra de arte – e parece-nos claro que assim seja – tal
não implica assumir que esse distanciamento é algo que se acopla aos objectos pelo modo de
exposição e que a cultura dos museus inaugura, como devotamente acreditava Quatremère de
Quincy e seus seguidores, mais ou menos assumidos, nos séculos XVIII e XIX. Mas antes,
que o museu e a sua cultura, se desenvolvem a par e a passo com um novo modelo
racionalista de pensar a arte, que nos leva a compreender que esse alheamento, essa distância,
é instrínseco à própria obra de arte – que da história irrompe justamente porque perdeu essa
capacidade de formar mundo. E neste sentido, o museu, ao separar os objectos da praxis da
história mimetiza (nalguns casos, exalta) a natureza a-histórica das obras que abriga e não é
ele próprio autor dessa cesura.
Lembremos ainda que, a partir de Hegel, o objecto da estética já não é o belo em si,
nem tampouco os juízos acerca da beleza mas o belo em-si e para-si, como resolução dialética
que possibilitou a tomada de consciência estética na modernidade. Deste modo, na esteira da
narrativa hegeliana, torna-se possível pensar a relação entre pontos, linhas, cores, formas,
densidades, a objectualidade do objecto de arte, como potencialidades. E assim equacionar
um significado para uma obra de arte que não radique na imagem sensível ou na ideia, e se
desloca para o núcleo do próprio conceito de fazer arte, construído colectivamente (como,
aliás, todas as normas) e compreendido como tal pelo modernismo; noutros termos, a arte
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transcende-se no seio da sua própria esfera - um Pollock, por exemplo, não representa lances
de tinta numa tela branca, antes tematiza o seu significado sensível, apresentando-o
materialmente no seu significado conceptual. Neste sentido, a estética de Hegel constitui-se
como uma espécie de ratificação histórica e filosófica da autonomia da arte, face à igreja ou
ao palácio mas sobretudo face à própria beleza. Porém, se a arte terminou a sua peregrinação
evolucionária, há que decretar o fim da possibilidade de se analisar a arte a partir de padrões
evolucionistas e, neste sentido, talvez o problema esteja menos nas obras de arte – quer
acreditemos que nelas permaneça algo de vital ou não – do que nas questões que se lhes
colocam. Algo de estranho parece emergir, num mundo em que tudo se controla e se quer
eficiente, onde entre sujeito e sujeito há quase sempre objecto (dispositivo, appareil), que se
continue a esperar da arte algo de subjectivo. Didier Maleuvre, chama-lhe um escapismo
ideológico, identificando na arte contemporânea o seu justo reverso, a ênfase no objecto, no
pré-estético (e, portanto, no pré-linguístico), “(...) na pura matéria e na pura forma, uma mera
quantidade de efeitos que não implicam o êxtase idealista.”,177 Maleuvre fala-nos do
expressionismo abstracto de Newman ou de Pollock, do noise de Boulez, ou da escultura
social de Beuys, que dramatizam a evaporação do sujeito – e do subjectivo – e do que ainda
escapa à dominação, o feio, o bruto, o mudo.
A história avança pelo que dela irrompe como diferente, que a desestabiliza ou a
transforma, mas também por aquilo que permanece, que resiste com mais ou menos força, que
não se destrói mas se adapta. À medida que fomos estreitando os corredores desta
investigação, apercebemo-nos que o museu de arte contém em si estes dois momentos do
fazer história – a difference que se abre no seu interior e que, em última análise, dá a ver a
arbitrariedade daquilo que normatiza e a sua permanência como instituição histórica que o
leva a comportar-se, em determinados casos, como a própria roda da história. La moule, o
poema com que abrimos a fase final da nossa investigação, integra a última antologia poética
de Broodthaers – justamente aquela que engessara na sua primeira exposição em 1964, na
Gallery Saint Laurent. Ao contrário do que temos vindo a fazer até aqui, em que procurámos
oferecer ao leitor a possibilidade de confrontar a nossa tradução com o original em rodapé,
optámos por deixar o francês no corpo do texto, assumindo a nossa inabilidade ante estes
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!177 trad. livre do inglês, “[The modern work of art corrects this tendecy by being mute, by wrapping itself] in pure matter, pure form, a mere quantity of affects with no idealist rapture implied in it.” Didier Maleuvre, Museum Memories, History, Technologie, Art, Stanford University Press, California, 1999. pp. 516
! ! 95
versos. O jogo de palavras - la moule (mexilhão) e le moule (molde) - é trazido para arena de
modo a que tentemos, uma última vez dentro das paredes deste projecto, compreender como é
que esta instituição resiste. No início da nossa investigação recordámos o ensaio de Jean-
Louis Déotte sobre o museu como ‘aparelho universal’. Neste momento da análise, mais do
que em qualquer outro, o termo appareil parece descrever, como poucos, a estrutura do
museu de arte que, como a moule de Broodthaers, é molde de si própria mas também molde
do (anti)mar que navega. Como molde, e portanto como algo que territorializa,
circunscrevendo-se a si mesmo e demarcando-se, simultaneamente, do universo que o integra,
o museu, o do século XVIII como o do século XXI, é sempre político. E neste sentido o
museu é, ele próprio, lugar da praxis e não da neutralização. Tal torna-se absolutamente claro
se atentarmos no que ocorreu nas últimas cinco décadas face ao happening, à performance ou
a obras como o urinol de Duchamp ou as Brillo Boxes de Warhol, não apenas aceites como
arte mas de certa forma canonizadas. Ou ainda se lembrarmos que há pouco mais de
cinquenta anos atrás, o mundo da arte viu surgir a primeira revolta verdadeiramente
sistemática, política e teórica, dirigida por artistas face aos museus, a institutional critique, e
que hoje são os próprios museus que organizam colóquios e palestras, onde o que se debate
são justamente essas questões. O museu não é esse monstro que tudo devora para tornar seu,
que fez refém primeiro a história (século XVIII), depois o avant-garde (década de ’30, século
XX) mas esse estranho organismo poliforme que se adapta, que se expande ou retrai, que
exclui ou inclui, na medida em que não só assegura a ontologia da obra de arte como objecto
estético mas é ele próprio moldado e expandido pela arte. Talvez por isso nenhum movimento
de revolta tenha resistido à sua musealização e talvez também por isso o museu tenha
resistido a tantas mortes quantas foram anunciadas à arte ou à história. Ainda no prefácio da
colectânea a que aludimos no úlimo capítulo, AA Bronson diz-nos justamente isso, “Os
museus, apesar do seu estatuto monumental, das suas grinaldas de universalidade que lhe
coroam as colunatas de burocracia, são sobretudo mecanismos de enquadramento, que
enquadram a ânsia multiforme de coleccionar. Como tal, e como as molduras, os museus
podem ser usados pelo artista contemporâneo, não apenas para clarificar, aumentar ou
contrastar a sua intenção mas também como o próprio conteúdo e meio de produção. Como
símbolos de poder tornam-se material de manipulação.”178
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!178 trad. livre do inglês “Museums, in spite of their monumental status, their Garland of universalities crowning
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