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NA TRILHA DO DISCO Relatos sobre a indústria fonográfica no Brasil Organização Irineu Guerrini Jr. e Eduardo Vicente Rio de Janeiro, 2010

Na Trilha do Disco

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Livro organizado por Irineu Guerrini Jr e por mim com comunicações sobre a indústria fonográfica apresentadas no grupo de Rádio e Mídia Sonora da Intercom

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NA TRILHA DO DISCORelatos sobre a indústria fonográfica no Brasil

Organização

Irineu Guerrini Jr. e Eduardo Vicente

Rio de Janeiro, 2010

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© Irineu Guerrini Jr. e Eduardo Vicente (org.)/E-papers Serviços Editoriais Ltda., 2010.Todos os direitos reservados a Irineu Guerrini Jr. e Eduardo Vicente (org.)/E-papers Serviços Editoriais Ltda. É proibida a reprodução ou transmissão desta obra, ou parte dela, por qualquer meio, sem a prévia autorização dos editores.Impresso no Brasil.

ISBN 978-85-7650-264-7

Projeto grá co, diagramação e capaLivia Krykhtine

RevisãoHelô Castro

Imagem de capaurbancow

Esta publicação encontra-se à venda no site daE-papers Serviços Editoriais.http://www.e-papers.com.brE-papers Serviços Editoriais Ltda.Rua Mariz e Barros, 72, sala 202Praça da Bandeira – Rio de JaneiroCEP: 20.270-006Rio de Janeiro – Brasil

CIP-Brasil. Catalogação na Fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livro, RJ

N11Na trilha do disco : relatos sobre a indústria fonográ ca no Brasil/

organização Irineu Guerrini Jr. e Eduardo Vicente. - Rio de Janeiro : E-papers, 2010.

184p.Inclui bibliogra aISBN 978-85-7650-264-7

1. Registros sonoros - Indústria - Brasil - História. 2. Rádio - Brasil - História. 3. Música popular - Brasil. I. Guerrini Junior, Irineu. II. Vicente, Eduardo. III. Título: Relatos sobre a indústria fonográ ca no Brasil.

10-2899. CDD: 780.2660981 CDU: 681.84(81)

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SUMÁRIO

5 APRESENTAÇÃO

9 VACINADO COM AGULHA DE VITROLA: os anos dourados da Gravadora RGEJosé Eduardo Ribeiro de Paiva

23 SOM LIVRE E TRILHAS SONORAS DAS TELENOVELAS: pressupostos sobre o processo de difusão da músicaHeloísa Maria dos Santos Toledo

41 SOMZOOM: música para fazer a festaAndréa Pinheiro e Flávio Paiva

57 SELO EVOCAÇÃO: o pequeno notávelMarta Regina Maia

75 INDÚSTRIA FONOGRÁFICA EM MINAS GERAIS Angela de Moura, Nair Prata, Sônia Pessoa, Waldiane Fialho e Wanir Campelo

91 TRAJETÓRIA DA INDÚSTRIA FONOGRÁFICA NA BAHIAAyêska Paulafreitas

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111 MERCADO FONOGRÁFICO NACIONAL E A PRODUÇÃO DE MÚSICA ERUDITA Marcos Júlio Sergl e Eduardo Vicente

127 DISCOS EM BANCAS: da indústria cultural à guerrilha culturalIrineu Guerrini Jr.

149 RÁDIO, MEMÓRIA E INDÚSTRIA FONOGRÁFICA:um estudo sobre a Continental AM, de Porto Alegre, a partir de 1971Sergio Francisco Endler

165 REVALORIZAÇÃO DA MÚSICA AO VIVO E REESTRUTURAÇÃO DA INDÚSTRIA DA MÚSICAMicael Herschmann

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APRESENTAÇÃO 5

APRESENTAÇÃO

Os textos que se seguem foram produzidos por membros do NP de Rádio e Mídia Sonora da Intercom, Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação, e apresentados, em sua quase to-talidade, durante os Congressos da Sociedade realizados nos anos de 2007 e 2008 (em Santos e Natal, respectivamente). O Núcleo tem de-senvolvido, ao longo dos últimos anos, um extraordinário trabalho de pesquisa em relação ao rádio, contemplado por numerosas publicações. Nosso desejo é de que esse livro colabore para a consolidação, dentro do NP, também de uma frente de pesquisa expressiva nas áreas da Música Popular e da Fonografia.

Embora exista um volume bastante razoável de obras enfocando artistas e gêneros de nossa música popular, o tema da indústria fo-nográfica, ou seja, das condições materiais que foram determinantes para a gravação, divulgação e distribuição de suas obras, ainda é pouco explorado. Um trabalho coletivo, como o que apresentamos aqui é, até onde sabemos, uma iniciativa ainda inédita no país e entendemos que os temas escolhidos pelos diferentes autores oferecem um cenário bas-tante abrangente, tratando de aspectos como história, características regionais, distribuição, divulgação e perspectivas da indústria.

O livro é composto por 10 textos. Os quatro primeiros são dedicados às trajetórias de diferentes gravadoras nacionais do passado e do pre-sente. A paulistana RGE, objeto do trabalho de José Eduardo Ribeiro de Paiva, foi a gravadora responsável pelos primeiros trabalhos de artistas fundamentais para a música brasileira como Maísa, Miltinho e Chico Buarque, entre muitos outros. Já a carioca Som Livre, apresentada no texto de Heloísa Maria dos Santos Toledo, é o braço fonográfico da Rede Globo e tem respondido pela quase totalidade da produção de trilhas de novelas e minisséries que, há mais de três décadas, influencia o gos-

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to musical do público e os rumos do mercado fonográfico nacional. A SomZoom, apresentada por Andréa Pinheiro e Flávio Paiva, praticamen-te criou e manteve sob seu domínio, por longo tempo, o chamado Forró Eletrificado de Fortaleza �– demonstrando que o cenário independente também pode comportar forte concentração econômica e rígido con-trole sobre a produção cultural. O selo paulistano Evocação, analisado aqui por Marta Regina Maia, ilustra as possibilidades para a ação indi-vidual abertas pelo uso das novas tecnologias digitais, que permitiram a um aficcionado recuperar e distribuir as gravações originais de seus grandes ídolos.

Os dois próximos textos dão conta da grande segmentação regional da indústria. O primeiro deles, produzido pelas pesquisadoras Ângela de Moura, Nair Prata, Sonia Pessoa, Waldiane Fialho e Wanir Campelo, oferece um panorama atualizado da cena de Minas Gerais. Já Ayêska Paulafreitas, com seu brilhante relato, oferece-nos a trajetória das em-presas baianas de publicidade que responderam pelas primeiras pro-duções de artistas locais como Antonio Carlos & Jocafe, Sarajane e Luiz Caldas, entre muitos outros, que posteriormente alcançaram grande sucesso nacional através de grandes gravadoras.

No texto seguinte, Eduardo Vicente e Marcos Júlio Sergl apresentam um importante relato histórico sobre as últimas décadas da indústria do disco no país, detendo-se especialmente no modo pelo qual um seg-mento de menor peso mercadológico �– no caso, o da produção erudita �– tem enfrentado as agruras de um cenário marcado por crises e dese-quilíbrios. A seguir, Irineu Guerrini Jr. nos oferece um relato bastante abrangente sobre o modo pelo qual as bancas de jornais tornaram-se um importante espaço de distribuição tanto para selos independentes e artistas autônomos quanto para grandes grupos de comunicação.

O rádio, que não poderia estar ausente desse cenário, é enfocado na sequência através da Continental AM, emissora de Porto Alegre que, além de promover importantes artistas gaúchos dos anos 70 e 80 (como Hermes Aquino e Almôndegas), envolveu-se também na atividade de produção fonográfica. O texto é assinado por Sérgio Francisco Endler.

Fechando o livro, Micael Herschman discute o cenário atual, onde os shows ao vivo parecem estar se tornando mais centrais para os artistas do que a gravação e venda de seus discos.

Como organizadores da obra, gostaríamos de expressar nosso pro-fundo agradecimento aos autores acima citados, tanto pela confian-

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ça depositada em nosso trabalho como pelo compromisso assumido �– dentre os múltiplos que suas carreiras acadêmicas certamente lhes impõe �– com a produção dos textos aqui apresentados. Agradecemos ainda aos integrantes do Núcleo de Rádio e Mídia Sonora da Intercom que acompanharam nossas mesas e, muito especialmente, a Luiz Artur Ferraretto que, na condição de coordenador do Núcleo, apoiou esse pro-jeto de publicação desde o seu início.

São Paulo, janeiro de 2010.Irineu Guerrini Jr. e Eduardo Vicente

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VACINADO COM AGULHA DE VITROLA: os anos dourados da Gravadora RGE

José Eduardo Ribeiro de Paiva

Este trabalho pretende descrever o que se pode chamar de primeira fase da gravadora RGE (Rádio Gravações Especializadas), que abrange o período compreendido entre sua fundação, nos anos 50 até sua venda em 1965 à gravadora Fermata. A RGE tem características bastante pró-prias, e trouxe alguns procedimentos até então inexistentes em nosso mercado fonográfico, através de seu fundador, José Scatena, pioneiro na área de áudio no Brasil, que diz ter sido �“vacinado com agulha de vitrola�”.1 A RGE, de certo modo, pode ser considerada como decorrência de um contrato da Standart propaganda com a Colgate-Palmolive, que previa a montagem de um estúdio de gravação em São Paulo e outro no Rio de Janeiro para atender a propaganda do creme dental Colgate e do Sabonete Palmolive, e José Scatena foi convidado, �“pelo velho amigo José Roberto Whitaker Penteado�”,2 publicitário e seu colega na facul-dade de direito, a realizar um teste, ainda em 1941, juntamente com o Valdir Vei e a cantora Agnes Aires. �“Como eu disse a você, foi a minha primeira picada de agulha de gravação, foi nesse dia de manhã, lá nesse domingo�”.3 É nessa época que as rádios são autorizadas a ter 10% de sua programação em publicidade, o que permite a �“...alguns anuncian-tes se transformarem em verdadeiros produtores de publicidade, como

1. Entrevista concedida por José Scatena, em 18/11/2005.

2. Idem.

3. Idem.

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o caso da Standart Propaganda e da Colgate-Palmolive, que contrata-vam atores, escritores e tradutores de telenovelas�”.4

Aprovados, depois de realizarem o teste com �“As futuras aventuras do vingador e do seu fiel amigo índio Calunga�”, o trabalho começou a ser feito no pequeno estúdio da Standart.

Aí começaram as gravações e durante algum tempo nós gravamos nesse estúdio que era na rua perto da faculdade, uma ruazinha pequena que sai ao lado da faculdade...Era um prediozinho de sete andares. O séti-mo andar tinha uma coisa importante, que era o Ibope. O Ibope começou no sétimo andar desse prédio com o Auricélio Penteado, o fundador do Ibope.5

Muita coisa foi produzida nesse estúdio, além de peças publicitá-rias, como as aventuras do Vingador, as aventuras do Tarzan e diversas novelas, entre outras produções sonoras. Isso durou até 1948, quando finalizou o contrato com a Colgate-Palmolive, e o estúdio ficou sem uma função prática.

Era um empate de capital morto. Eu tive a ideia de pro-por ao Cícero Leuenroth que era o dono da Standart Propaganda, que morava no Rio, fazer uma sociedade, em que eu tocaria o estúdio, não em nome de Cícero nem de coisa nenhuma, era um estúdio independente que seria o primeiro estúdio de gravação para as agên-cias de propaganda de São Paulo.6

Até então, os serviços publicitários eram realizados nos estúdios da Rádio Nacional, no Rio de Janeiro, e o estúdio RGE pretendia cobrir essa lacuna e também ser um espaço para gravações musicais para outros clientes.

Em 1948 nós deixamos o prédio lá da Standart, que era muito pequeno e fomos montar um pequeno estúdio na Xavier de Toledo, continuando ainda a gravar para publicidade e já gravando com pequenos conjuntos

4. ORTIZ, R. A Moderna Tradição Brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1991, p. 140.

5. Entrevista concedida por José Scatena, em 18/11/2005.

6. Idem.

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musicais para terceiros. Lá gravávamos também os ca-louros da Rádio Cultura, que era o �“Calouro Rodine�”, uma marca de comprimido para dor de cabeça. E nós gravávamos e sintonizávamos num rádio a Rádio e de-pois os calouros sabiam que estava sendo gravado e iam lá para o estúdio querendo ouvir o que eles cantaram. E nós passamos a comercializar essa jogada, cobran-do dois cruzeiros, naquele tempo acho que eram dois mil réis. E calouro era gente pobre, não tinha dinheiro, então fazia sociedade com outro calouro, um dava mil réis, o outro, outro mil réis e cada um tinha 50% do disco, um era lado A e o outro era lado B.7

Logo depois, com a aquisição de um gravador de fita portátil, os estúdios RGE dão um salto de qualidade, e passam a gravar outros ma-teriais sonoros além da publicidade.

A primeira gravação realmente com possibilidades co-merciais foi feita com Cauby Peixoto e uma orquestra já bem desenvolvida. Como nós tínhamos um gravador, o primeiro gravador de fita que tinha chegado, portátil, nós levamos o gravador de fita para a Rádio Gazeta, e já tínhamos conseguido o beneplácito lá do pessoal para gravar, o auditório deles, a orquestra, e o Cauby Peixoto gravou a primeira gravação que saiu do estúdio RGE, era um baião e outra coisa que agora não me lembro.8

Posteriormente, os estúdios mudam para o prédio da Rádio Bandeirantes, na Rua Paula Souza número 181, a rua conhecida como a dos �“secos e molhados�”, e ocupam o segundo andar do prédio, onde �“... montamos um novo estúdio, agora amplo, grande, com capacidade para uma orquestra, e com uma novidade que não existia no Brasil: uma câmara de eco natural, que dava uma impressão de profundidade muito grande�”.9

As gravações ainda são realizadas em mono, agora no gravador Ampex, que veio da Columbia, deixado no estúdio com a condição de ser utilizado somente em gravações para ela.

7. Idem.

8. Idem.

9. Idem.

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A Columbia trouxe o gravador e deixou lá no estúdio, com a condição de gravar só para a Columbia. É lógico que logo depois nós estávamos comercializando com grande êxito as gravações com Ampex. Ele gravava ape-nas com um canal. Depois nós fizemos umas alterações e viemos a gravar com dois canais, a tomada de som do estúdio era feita diretamente do estúdio para a grava-ção, para a fita.10

Uma ginástica técnica gigantesca, realizar a gravação em mono com todos os participantes ao mesmo tempo. �“Era um negócio terrível. Posteriormente descobrimos que gravaríamos a orquestra e depois bo-távamos o gravador, o som no estúdio para o cantor, sem a orquestra, aí melhorou muito�”.11 Além das dificuldades técnicas inerentes aos pro-cessos de gravação da época, fosse aqui ou em qualquer grande estúdio do eixo EUA-Europa, existia também o descompasso do conhecimento tecnológico aqui existente na época, que dava bem a dimensão do de-safio enfrentado por eles.

Tudo empírico. Tinha um antigo grande amigo meu, que já faleceu, era o Sérgio Lara Campos...12 era um garoto curioso, que estava sempre lendo revistas e gostava de som, o Lara! Ele, garoto, já tinha algumas informações para melhorar a acústica de um estúdio. E nós fizemos isso à brasileira, fomos lá, achamos, riscamos no chão e no corredor onde atendia o expediente normal da RGE, tinham os microfones e o alto-falante captando o som. A câmara de eco era feita aí nesse local. Na hora da gra-vação não podia ninguém passar, não podia ninguém sair, porque atrapalhava a gravação. Jogava o som por um falante e captava esse mesmo som a 10, 12 passos para frente no microfone e esse som voltava para gra-vação. Então dava a sensação de uma câmara de eco.13

10. Idem.

11. Idem.

12. Sérgio Lara Campos teve uma intensa atuação como engenheiro de som na Columbia e em projetos da TVE.

13. Entrevista concedida por José Scatena, em 18/11/2005.

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Além do empirismo tecnológico, existia a questão da divulgação, de como distribuir e vender os discos. Não se deve esquecer que o mer-cado fonográfico da época era bastante restrito, e a visão comercial de Scatena, para a promoção do primeiro disco gravado pela RGE, em 1954, foi trágica.

O primeiro disco que foi gravado, foi em 1954, o hino do Corinthians, o famoso hino do Corinthians.14 Mas não ainda, não tínhamos nenhuma organização espe-cializada para isso, nem corpo de vendas, nem coisa nenhuma. O Corinthians em 1954 se tornou o campeão dos campeões, ganhou fora e ganhou o campeonato de São Paulo, então, no Pacaembú, eu julgava que podia vender facilmente 20 mil discos na porta do estádio. Depois, o que aconteceu, fui para a fábrica e pedi para a Continental, que tinha a fábrica, que eu queria de iní-cio 50 mil discos. O rapaz que atendia quase teve um desmaio: �“isso nunca aconteceu no Brasil...�”, �“ih, não é nada disso...�”. A conversa resultou que reduziu para 5 mil discos. Mandamos um caminhão pro estúdio, pro portão do Corinthians e tal, aquela coisa toda, com al-to-falante, e já tinha distribuído o disco também para ser tocado lá dentro do estádio, depois da vitória e nas estações de rádio também, e aconteceu que na euforia do futebol ninguém queria saber de disco e não vendeu coisa nenhuma.15

Em 1956, surgem os primeiros lançamentos da RGE no forma-to de 10 polegadas,16 sendo: Panorama Musical (RLP 001) �– Henrique Simonetti e Sua Orquestra, Jazz Festival no. 1 (Jam Session) (RLP 002) (com Dick Farney, gravado ao vivo no Teatro de Cultura Artística �– São Paulo, durante o Primeiro Festival Brasileiro de Jazz, organizado pelo

14. Apesar de mencionado em diversas entrevistas por José Scatena, este disco não consta entre o catálogo da gravadora RGE disponível no site www. jornalmusical.com.br. O pri-meiro disco do catálogo RGE é um 78 RPM, número 10.000-a, constando como Orquestra e Coro RGE/Hernani Franco, contando com as faixas �“Leão do Mar�” (Maugéri Neto/Maugeri Sobrinho) e �“Falam Os Campeões-Santos FC�” �– 1955.

15. Entrevista concedida por José Scatena, em 18/11/2005.

16. Conforme Sérgio Cabral.�“Os primeiros long-plays de 33 rotações, tinham 10 polegadas e ofereciam o máximo de 8 faixas�” in CABRAL, Sérgio. A MPB na era do rádio. SP, Moderna, 1996.

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Jazz Club de São Paulo) e Ritmos Latinos de Lina Pesce (RLP 003).17 É inte-ressante notar que �“se os anos 40 e 50 podem ser considerados como momentos de incipiência de uma sociedade de consumo, as décadas de 60 e 70 se definem pela consolidação do mercado de bens culturais�”,18 e é justamente no início dessa consolidação que a RGE se insere no mercado fonográfico de forma mais incisiva, apesar do empirismo que dominava boa parte das suas atitudes empresariais.19 Também é im-portante lembrar que em momento algum a RGE foi uma gravadora no sentido exato do termo como eram as que então dominavam o mercado fonográfico brasileiro, como Columbia, RCA, Odeon e Continental, que possuíam toda a estrutura necessária para a duplicação e distribuição das gravações. A RGE, antes de ser uma gravadora em seu sentido ple-no, era um selo de gravações criado a partir de um estúdio de gravação, que dependia de serviços terceirizados de prensagem e distribuição de discos, que acabaram sendo feitos pela RCA20 e pode ser chamada de �“gravadora independente�”. Isso já era uma forte tendência no mercado norte-americano que, em 1957, já possuía mais sucessos nas paradas oriundos das gravadoras independentes que das majors.21

Walter Silva trabalhava na Rádio Bandeirantes, dois andares acima da RGE, e foi contratado como o primeiro divulgador da gravadora. �“Eu tentei reunir o útil ao agradável. Falei com o Scatena se rolava um em-prego na gravadora dele, que era no mesmo prédio, e ele disse que es-tava precisando de um divulgador�”.22 Foi dele uma das ideias que proje-tou a RGE definitivamente no mercado fonográfico: o aniversário RGE.

Não era o aniversário da RGE, mas nós inventamos a data e, neste dia, todas as emissoras de São Paulo toca-riam discos RGE. Fiz um acerto com cada discotecário e

17. Segundo http://www.jornalmusical.com.br/gridGravadora.asp.

18 ORTIZ, R. A Moderna Tradição Brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1991, p. 113.

19. �“Eu era um poeta, sonhava muito, fiz tudo com a cara e a coragem. Neófito, não tinha a menor ideia de como colocar discos à venda no Brasil inteiro. A manutenção de um corpo de vendas era quase inviável, e acabei fazendo um acordo de distribuição com a RCA�”, entrevista de José Scatena citada em Souza, Tarik, �“Som Livre lança RGE Clássicos�”. Clube do Jazz, 21/09/2006. Disponível em: http://www.clubedejazz.com.br/noticias/noti-cia.php?noticia_id=380.

20 SOUZA, Tarik. Som Livre lança RGE Clássicos. Clube do Jazz, 21/09/2006.

21 SILVA, E. Origem e desenvolvimento da indústria fonográfica brasileira. In: http://repos-com.portcom.intercom.org.br/dspace/bitstream/1904/4609/1/NP6SILVA.pdf.

22. Entrevista concedida por Valter Silva em 11/04/2007.

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fizemos o dia da RGE, que terminava à noite com um baile no escritório da própria gravadora, onde todos os participantes se reuniam. Naquele dia, todas as rádios tocavam só discos RGE, da manhã à noite, todas as emis-soras, sem exceção, indo pelo dial, desde a Jovem Pan até à Rádio América. Foi um sucesso muito grande.23

Também foi o responsável pela divulgação feita para promover a então desconhecida cantora Maysa,24 que havia vendido, segundo ele, apenas 247 cópias de seu primeiro disco, e que, com um intenso traba-lho junto as rádios, inicialmente no Rio de Janeiro, tornou-se um gran-de sucesso. Alguns cronistas da época, como Ricardo Galeno, do Diário Carioca, e Antonio Maria também foram importantes para lançar seu trabalho junto ao grande público carioca,25 algo que se repetiu também em São Paulo. Provavelmente, a RGE tenha sido a primeira gravadora a contratar um profissional de rádio com boa penetração no mercado para atuar como divulgador, e isso com certeza, se refletiu nos resulta-dos de vendas e divulgação de seu catálogo.

Com o sucesso e um espaço crescente na mídia, diversos artistas de expressão tem seus trabalhos lançados lá na primeira metade dos anos 60, quando também principiam as primeiras gravações em esté-reo. Novamente, um gravador vindo da Columbia é utilizado, onde os trabalhos são gravados diretamente em estéreo criando um diferencial de sonoridade com os discos da época, algo que a RGE já vinha fazendo desde o final dos anos 50.

...no Rio de Janeiro gravava a Odeon, a RCA e a Continental, era tudo gravado no Rio de Janeiro, os es-túdios antiquados, com um som abafado....as fábricas começaram a gravar lá com a gente. E começou então nesse sentido �‘ah, esse som é som RGE�’, diferenciado do som da gravação do Rio de Janeiro.26

23. Idem.

24. Maysa registrou, na RGE, 21 de 78 RPM, 2 LPs de 10 polegadas e 10 LPs, entre materiais originais e coletâneas.

25. Walter Silva, com Maysa, �“correu todas as rádios do Rio e conseguiu junto a Henrique Pongetti um artigo de página na revista Manchete, cujo título era �“Quando Canta um Matarazzo�”, in http://www.waltersilvapicapau.com/radio.html, consulta em 14/04/2007.

26. Entrevista concedida por Valter Silva em 11/04/2007.

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O diferencial sonoro faz escola, e se torna algo a ser seguido pelos outros estúdios de gravação,27 mesmo com todos os problemas e buro-cracias legais para aquisição de equipamentos importados que vigora-va na época.28

O som dos discos RGE era escandalosamente melhor. Tinha um som perfeito, graças ao Sérgio de Lara Campos e ao Carlos Moura, que conseguiram dar um padrão de qualidade que ficou conhecido como �“o som da RGE�”. Todo mundo pedia na época para que seu disco ficasse com o som da RGE, que acabou sendo um padrão in-confundível.29

Tecnologicamente, o atraso dos estúdios de gravação no Brasil neste período era gritante. A própria câmera de eco mencionada por Scatena anteriormente já era largamente utilizada desde muito antes no exte-rior, e os sistemas de gravação multipistas de oito canais lançados em 1955, pela empresa Ampex, já estavam se tornando padrão. Em 1958, a gravadora norte-americana Atlantic (um selo de gravação independen-te) foi a primeira a possuir um estúdio neste formato,30 instalado por Tom Dowd, um dos maiores engenheiros de som da história,31 e cabe lembrar que no Brasil, muitas das grandes gravadoras somente passa-ram seus estúdios para oito canais a partir dos anos 70.

Maysa foi o primeiro grande sucesso da RGE, ao que se seguiu uma série de outros, oriundos também dos contratos internacionais firma-dos com gravadoras do México, Inglaterra, França, Estados Unidos. Mas o maior sucesso foi Miltinho.

O Miltinho que também era um sambista lá do Rio de Janeiro foi lançado por nós e se tornou o grande ven-dedor de disco e também de shows. Ele passou a ser

27. Os discos da RGE lançados neste período realmente possuem uma sonoridade bastan-te destacada em relação aos outros, principalmente por uma maior definição e transpa-rência dos instrumentos e vozes.

28. As restrições alfandegárias à importação de equipamentos vigorou até o início dos anos 90.

29. Entrevista concedida por Valter Silva em 11/04/2007.

30. In http://www.answers.com/topic/multitrack, consultado em 21/04/2007.

31. Como curiosidade, no filme Ray, sobre Ray Charles, a cena do que talvez tenha sido a primeira utilização de um gravador de oito canais em uma gravação comercial é recriada, quando o cantor faz todos os backing vocals de uma canção.

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uma figura muito interessante. Agora, o nosso vende-dor de disco que era marcante para nós era o mexica-no Bienvenido Granda, o bigode que canta! Era bolero, aquela coisa de música para cabaré, música para pros-tituta. Eu fiz algumas tentativas de lançamento de mú-sica brasileira com cantores e cantoras, mas ninguém colou assim para valer.32

Porém, a batalha era desigual, quando se compara a RGE com as multinacionais que atuavam no mercado, que possuíam estruturas de trabalho muito mais elaboradas e muito mais facilidade de acesso aos materiais dos selos internacionais que representavam.

As internacionais tinham muito mais facilidade para receber as matrizes que vinham do exterior para se-rem lançadas aqui. A RGE recebia um disco, e do disco transformávamos o disco em matriz, coisa que é um crime que se faz. Recebíamos um disco que não tinha sido tocado ainda. E depois transferia esse disco para o acetato, para ir pra fábrica.

O forte da RGE acabou sendo a produção da música brasileira, como mostra a série de 10 CDs lançados recentemente pelo selo Som Livre, em um projeto coordenado pelo produtor Carlos Alberto Sion, onde, além dos mais conhecidos, como Convite para Ouvir Maysa, pode-se en-contrar Embalo(1964), um inspirado trabalho de samba-jazz do pianista Tenório Jr. (tragicamente desaparecido nos anos 70 em meio à ditadura argentina), ou A música de Jobim e Vinícius (1962), da cantora paulista Elza Laranjeira, uma esmerada produção pouco conhecida pelo públi-co, além de outros trabalhos bastante significativos realizados após a aquisição da RGE pela Fermata, no ano de 1965. Provavelmente, um dos lançamentos mais significativos desse período tenha sido A Bossa no Paramount, gravado em 1964, lançado em 1965 (RGE XRLP 5268) e relançado em 1989 como 30 Anos de Bossa Nova �– vol. 3, a partir do show produzido por Valter Silva com a participação de Marcos Valle, Elis Regina, Vinicius de Moraes, Zimbo Trio, Oscar Castro Neves, entre outros.

32. Entrevista concedida por José Scatena, 23/11/2005.

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O catálogo do período compreendido entre os anos 1956-1965 abrange um número considerável de gravações, onde, com certeza, se encontram os lançamentos mais importantes da história da RGE. De acordo com o Instituto Memória Musical Brasileira,33 são, ao todo, 512 discos de 78 RPM, (lançados entre 1956 e 1963), 22 discos de 10�” e 248 discos LP. Fazendo parte de seu sólido catálogo de artistas brasileiros, pode-se encontrar, além dos citados Maysa e Tenório Jr., Agostinho dos Santos, Silvio Caldas, Paulinho Nogueira, Dick Farney, Toquinho, Juca Chaves, Zimbo Trio, Hector Costita, entre outros. De todos eles, Maysa tornou-se a mais famosa, conforme lembra Scatena:

Foi o produtor Roberto Corte-Real34 quem trouxe a Maysa Matarazzo, uma mulher da alta sociedade pau-lista, para gravar conosco. Como publicitário achei aquilo sensacional, mas deu tudo errado no início. O marido a proibiu de usar no disco o sobrenome e vetou fotos na capa. Fizemos uma loucura: lançamos um dez polegadas sem foto de capa, com oito músicas compos-tas e cantadas por uma desconhecida. Mas ela ganhou um programa de televisão, separou-se do marido e ex-plodiu para o sucesso.35

Esse era um dos diferenciais de Scatena: sua experiência como publicitário lhe permitia um outro olhar sobre as questões de produção fonográfica de sua época, dando importância a coisas ignoradas pelas outras gravadoras, sobretudo na divulgação dos discos de sua empresa. Poucos teriam arriscado lançar uma cantora como Maysa, desconhecida e sem passado musical.

Eu fui considerado pelos diretores de fábricas de dis-cos como a Odeon e a Columbia. Eles me consideravam muito porque eu mexi muito com o mercado, alterei muito o processo de divulgação de disco. Então, era considerado. Muito respeitado. Eu estava como se fosse um �“Ford de bigode�” fazendo muito barulho com aque-le pessoal.

33. http://www.memoriamusical.com.br/jm/gridGravadora.asp

34. Também diretor artístico da Columbia.

35. SOUZA, T. �“Som Livre lança RGE Clássicos�”. Clube do Jazz, 21/09/2006.

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Um dos artistas que mais gravaram por lá foi o regente e arran-jador Enrico Simonetti, que à frente da Orquestra de Câmera RGE, da Orquestra de Cordas RGE ou da sua própria, realizou 1 de 78 RPM, 1 compacto duplo, 2 LPs de 10�” e 17 LPs no período de 1958 até 1965.

�“Caravelle�” é uma fantasia musical do executante. Inicialmente ouve-se um fervilhante vozerio de um ae-roporto. Logo após, uma voz convida os passageiros a tomar seus lugares e, em seguida, o ruído dos reato-res, que tem como continuação a fantasia do maestro. Trata-se, evidentemente, de um sucesso brasileiríssimo que Enrico Simonetti vem lançar através do selo das três cores. Brasil a Jato apresenta na capa um aparelho Caravelle em vôo, da Varig.36

Existem outros discos do maestro onde os �“ganchos�” do momen-to são utilizados. Se em Brasil a Jato a homenagem era aos primeiros Caravelles recebidos pela Varig, Samba do 707 homenageava o pri-meiro Boeing 707 a ser incorporado à frota da mesma empresa aérea. Simonetti também era um arranjador talentoso, estando à frente de quase todos os grandes discos produzidos pela RGE, como os de Maysa, Juca Chaves e Agostinho dos Santos, entre outros, onde realizou traba-lhos notáveis.

Juca Chaves foi outro dos grandes sucessos da empresa, principal-mente pelo seu primeiro LP, onde ele registrou a antológica �“Presidente Bossa Nova�”, sátira do presidente Juscelino Kubitschek. Seu LP As duas faces de Juca Chaves37 �“é um marco da música popular brasileira, pois retoma um de nossos mais autênticos gêneros musicais. É o primei-ro disco de modinhas contemporâneas brasileiras, servindo também como marco fundador das sátiras da política moderna�”.38

Mensurar efetivamente a posição da RGE, nessa fase, dentro do mer-cado fonográfico é uma tarefa praticamente impossível, uma vez que somente a partir de 1965 surgiram os levantamentos dos discos mais

36. Matéria publicada na coluna Discovion, O Estado do Rio Grande, em 19-11-1959.

37. Juca Chaves gravou na RGE 9 de 78 RPM e 2 LPs.

38. LISBOA JUNIOR, L. Juca Chaves: As Duas Faces de Juca Chaves �– 1961. In: http://www.luizamerico.com.br/fundamentais-juca-chaves.php. Acesso em 2/05/2006.

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vendidos e produzidos pela empresa de pesquisa de mercado Nopem,39 quando a gravadora já havia sido incorporada à Fermata,40 sendo que desta incorporação surgiu o selo RGE-Fermata, adquirido pela Som Livre em 1980. Porém, examinando-se os dados do Nopem referente aos anos subsequentes, pode-se verificar uma participação de mercado razoavel-mente expressiva, principalmente em relação as gravadoras como RCA, Odeon ou CBS,41 mais bem estruturadas comercialmente e com longo tempo de atividade. Em 1965, na lista dos 50 discos mais vendidos, entre LPs, compactos simples e compactos duplos, encontra-se Miltinho (A Bossa é Nossa), quarto lugar; Chico Buarque (Quem te Viu, Quem te Vê), 23º e Erasmo Carlos (Festa de Arromba), 40º. Em 1966, Chico Buarque (A Banda), terceiro lugar; Erasmo Carlos (Festa de Arromba) 44º e Gilliard (Não Diga Nada), 50º. É interessante notar que nestas listagens, ainda não aparece a menção ao selo RGE-Fermata, mas apenas a RGE. Não se deve esquecer que uma contribuição definitiva para o sucesso da primeira fase da RGE foi justamente a efervescência da música popular brasileira da época com o surgimento da bossa nova, que trouxe toda uma série de novos procedimentos musicais e também toda uma gera-ção de artistas extremamente significativos, muitos dos quais procura-vam a RGE para serem contratados.

Posteriormente a venda da RGE, José Scatena dedicou-se aos estú-dios de gravação, tendo sido proprietário de vários estúdios que se tor-naram parte da história musical do Brasil, como o Estúdio Scatena e o Estúdio Prova, entre outros. Pode-se considerar a RGE como uma das pioneiras, que compreendeu de forma efetiva a transição da incipiên-cia dos anos 50 para a consolidação do mercado de bens culturais nos anos 60, conforme mencionado por Ortiz, inaugurando assim uma nova ótica para a moderna produção fonográfica, onde a mídia exerce um papel preponderante.42 Com isso, funções como gravação e divulgação

39. VICENTE, Eduardo. Organização, crescimento e crise: a indústria fonográfica brasi-leira nas décadas de 60 e 70. In: http://www.eptic.com.br/Revista%20EPTIC%20VIII-3_EduardoVicente.pdf

40. Segundo Scatena, a RGE foi vendida em 31/03/1965.

41. No ano de 1965, a RCA teve sete títulos entre os 50 mais vendidos, a CBS oito títulos e a Odeon 11.

42. Conforme José Scatena, �“um instinto publicitário que eu tinha, eu fui durante tanto tempo publicitário, eu tinha um instinto publicitário, e durante muito tempo fui publici-tário, e então, achava que tinha que fazer propaganda para poder... E é verdade, o disco só vende se ele for ouvido�”.

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passam a ter uma importância até então inédita na indústria fonográ-fica, ainda baseada na ideia da duplicação e distribuição. Além disso, pode-se especular que o surgimento de diversos selos de gravação que surgiram nos anos 60 e 70 a partir de estúdios de gravação existen-tes que não possuíam estrutura de duplicação ou distribuição, como o Eldorado ou Nosso Estúdio, é consequência do sucesso e da visibilidade que a RGE conseguiu nesta primeira fase.

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ORTIZ, Renato. A moderna tradição brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1991.

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Discos40 ANOS DE MÚSICA 1961. São Paulo: Comercial Fonográfica RGE, 1996. CD Áudio.

40 ANOS DE MÚSICA 1965. São Paulo: Comercial Fonográfica RGE, 1996. CD Áudio.

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EntrevistasSCATENA, José. Entrevista. 18 nov. 2005. Transcrição de Tânia Jacomini.

�—. Entrevista. 23 nov. 2005. Transcrição de Tânia Jacomini.

SILVA, Valter. Entrevista. 11 abr. 2007.

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SOM LIVRE E TRILHAS SONORAS DAS TELENOVELAS: pressupostos sobre

o processo de difusão da música

Heloísa Maria dos Santos Toledo

Sabe-se que em poucos países do mundo a canção popular ocupa um papel tão relevante na cultura, de uma maneira geral, como no caso brasileiro. Aqui, a música/canção possui um papel insólito; está forte-mente inserida no cotidiano das pessoas e representa, possivelmente, a principal forma artística pela qual os brasileiros se reconhecem e são re-conhecidos pelo mundo. É também a manifestação artística que, espe-cialmente a partir da segunda metade do século XX, mais interage com praticamente todas as outras formas da produção cultural, associando-se ao rádio, ao cinema, ao teatro, à televisão, às agências publicitárias, etc., possibilitando que o espaço de atuação da indústria fonográfica se expanda para outros setores da produção cultural. Numa dessas rela-ções, temos a associação da música com a novela, esta última que apa-rece, em tempos da cultura industrializada, como nosso produto mais bem acabado, de reconhecimento internacional e de grande penetração no imaginário popular. É dessa relação que resulta, pois, a trilha sonora ou trilha musical da telenovela, produto cultural específico da indústria, resultado de uma complexa rede de relações que envolve os interesses tanto da indústria televisiva quanto fonográfica e dos diversos agentes que delas fazem parte. Nessa imbricada relação que envolve o processo de produção e difusão da trilha sonora, nos deparamos não apenas com a falta de uma suficiente transparência dos elementos que compõem todo esse processo, como, também, das suas possíveis consequências

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nas esferas culturais, econômicas e artísticas da indústria fonográfica como um todo.

Entretanto, apesar de toda diversidade e tradição musical pelas quais o Brasil é reconhecido, os estudos sobre a consolidação e forma de atuação da indústria fonográfica, especialmente quando compara-dos às discussões em torno de outras mídias, como a televisão, o rádio e a imprensa, foram pouco privilegiados. Apenas mais recentemente alguns pesquisadores têm se dedicado ao tema e, ainda assim, são ra-ras as pesquisas que se propõem especificamente ao debate dos aspec-tos relativos à difusão das mercadorias musicais. Tal tema aparece, na maioria das vezes, dentro de uma discussão mais geral sobre a atuação da indústria fonográfica brasileira e mundial. Entretanto, penso que a complexidade e amplitude das questões relacionadas à difusão, es-pecialmente no caso das mercadorias musicais e, particularmente das trilhas sonoras como produto cultural inerente ao audiovisual, acabam por justificar um olhar mais atento aos seus aspectos.43

Quando fala da peculiaridade da produção das mercadorias culturais no contexto do que conhecemos como indústria cultural (aqui, entendi-da em seu sentido mais amplo), Thompson (1995, p. 290) ressalta o fato destas serem marcadas por uma espécie de �“indeterminação�”, causada pela �“ruptura entre a produção e a recepção dos bens simbólicos�”. Isto significa dizer que os receptores, não estão presentes fisicamente nem no lugar da produção nem no lugar da transmissão desses bens, fato este que impõe que o percurso entre as mercadorias culturais e seus possíveis consumidores seja permeado por uma complexa estrutura en-volvida por inúmeras mediações. Ora, se considerarmos que os conglo-merados e empresas da mídia, de uma forma geral, visam, sobretudo, a valorização econômica de seus produtos, são empregadas uma série de técnicas que buscam vencer, justamente, essa �“indeterminação�” da qual fala Thompson. É essa necessidade que caracteriza a especificida-de da difusão, pois é por meio de suas técnicas de marketing e promoção que é feito o elo entre o produtor e seu público potencial.

Podemos pensar nas trilhas sonoras das telenovelas como o resul-tado da sofisticação de todo este processo: é um produto específico

43. É comum entre alguns pesquisadores e, sobretudo, entre os profissionais que atuam neste segmento, a distinção entre trilhas sonoras e trilhas musicais. Trilha sonora englo-baria também, além do fundo musical, todos os ruídos, falas e a sonoplastia da cena. As trilhas musicais, por sua vez, diria respeito somente às músicas utilizadas como tema. No caso deste artigo, as duas serão usadas indistintamente.

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da produção cultural que, no caso das trilhas das telenovelas da Rede Globo, é de uso comercial exclusivo da gravadora Som Livre, braço fo-nográfico do conglomerado Globo. E, ao mesmo tempo, é também um veículo de divulgação maciça de artistas e canções diversas, pertencen-tes às outras grandes gravadoras que dominam o mercado fonográfico brasileiro.44 A interação entre televisão e indústria fonográfica acaba, dessa forma, sendo benéfica para ambos os lados. Além do mais, se lem-brarmos que estamos diante da performance de grandes conglomerados da mídia, o impacto sobre o mercado é bastante relevante. Apresento, nesta oportunidade, alguns elementos que permitem um olhar panorâ-mico sobre essa relação música e televisão, vista, especialmente, atra-vés das trilhas sonoras e da forma de atuação da gravadora Som Livre.

A especificidade da música na produção culturalÉ preciso ter em conta que a música tem se apresentado como uma mer-cadoria cultural de características muito particulares, não somente pela proximidade que tem com os indivíduos, mas, sobretudo, por sua ampla capacidade de se difundir. Graças ao desenvolvimento tecnológico que acompanha a história da sociedade contemporânea �– e que está intima-mente ligado ao desenvolvimento da indústria cultural �–, pode-se ouvir música praticamente em qualquer lugar e a qualquer hora: nos rádios portáteis ou não, no carro, no computador, no walkman, nos aparelhos celulares, nos iPods e aparelhos de MP3 (cada vez menores e com mais capacidade de armazenagem de canções), etc.

Ao mesmo tempo, a música tem se diferenciado de outras merca-dorias da indústria cultural justamente pela interação que consegue estabelecer com os outros setores da produção cultural, funcionando como pano de fundo a diferentes formas narrativas: publicidade, cine-ma, peças teatrais e à produção televisiva.

Temos, então, algumas características dessa produção cultural: o ca-ráter limitador, inerente a toda mercadoria cultural, a saber, a necessi-dade da mediação de algum equipamento técnico para sua reprodução

44. E que dominam também o mercado mundial de música. À exceção da Som Livre, todas as grandes gravadoras atuantes no Brasil são multinacionais: Sony, EMI, Warner e Universal.

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e para que o indivíduo possa consumi-la.45 Há ainda �– e isso é o que mais nos interessa aqui �–, o fato de que a indústria fonográfica, dife-rentemente de outros setores da indústria cultural não coloca sozinha seu produto no mercado, mas necessita dos diversos canais de divulga-ção (como televisão, rádio, revistas, jornais, cinema, etc.) para torná-lo conhecido. Graças à sua ampla capacidade de difusão, as mercadorias musicais são muito especiais no que diz respeito à integração entre as diferentes mídias. Tudo isso somado, constitui uma das principais razões que tornaram a indústria fonográfica um dos setores mais lucra-tivos de todo o sistema de produção dos bens culturais.46

No caso específico das trilhas sonoras das telenovelas, a hegemo-nia de sua produção e difusão no mercado brasileiro pertence à duas empresas do maior conglomerado de mídia do país e um dos maiores do mundo, a saber, as Organizações Globo.47 As empresas em questão, responsáveis pelas decisões que envolvem a escolha das trilhas sono-ras são a TV Globo, fundada em 1965 �– principal produtora de teleno-vela no Brasil e umas das principais do mundo �– e a gravadora Som Livre, criada em 1969 como parte da Sigla (Sistema Globo de Gravações Audiovisuais) a quem cabe o direito exclusivo de reproduzir e comercia-lizar as trilhas sonoras das novelas realizadas pela emissora de TV. Cabe aqui, nesse momento, explicitar o que estamos tomando como trilha sonora: trata-se do conjunto de canções conhecidas ou não, compostas e interpretadas por artistas conhecidos ou não, nacionais e internacio-nais e que durante o período de transmissão da telenovela servirá de fundo musical às cenas e aos personagens. É desse conjunto que resul-tará o disco da trilha sonora da novela, oferecido ao público na forma

45. Este é, certamente, um dos pontos centrais da crítica de Adorno à indústria cultural. Cf.: Theodor Adorno. A indústria cultural. São Paulo: Ática, 1984 (col. Grandes Cientistas Sociais).

46. De acordo com dados do IFPI (International Federation of the Phonografic Industry), no ano de 2004, a indústria fonográfica mundial movimentou US$ 33,6 bilhões (áudio e vídeo). No Brasil, contando apenas as grandes gravadoras, foram R$ 706 milhões, o que dá uma média de 66 milhões de unidades de discos vendidas. Dados da ABPD. Fonte: www.ifpi.org e www.abpd.org.br. Acesso em julho/2006.

47. O Grupo Globo, pertencente à família Marinho, atua em diversos segmentos extrarra-mos, porém, intrassetoriais: rádios, jornais, revistas, internet, cinema, televisão (aberta e paga), fonográfica, multiplicando, dessa forma, sua capacidade de ação, numa atitude análoga aos grandes oligopólios de mídia do mundo. A atual configuração do grupo é a reunião da TV Globo, da holding Globopar e do portal de internet Globo.com numa única empresa: Globo Participação e Comunicações. A Globosat, Editora Globo e a gravadora Som Livre atuam como suas subsidiárias integrais. Além delas, fazem parte do grupo o Sistema Globo de Rádio e o Infoglobo.

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de uma coletânea de canções de diferentes gêneros e intérpretes, na maioria das vezes em uma versão nacional e outra internacional, prá-tica essa que a TV Globo e a Som Livre mantêm desde 1971, quando, juntas, lançaram a primeira trilha sonora.48

Coube, então, a essas duas empresas a consolidação de um modelo que não apenas confirmou a especificidade da trilha sonora como mer-cadoria cultural, mas o fez, sobretudo, a partir de uma estratégia bas-tante peculiar e em consonância com a indústria fonográfica como um todo. Isso porque a gravadora Som Livre atua de uma maneira bastante sui generis, quando comparada às outras gravadoras: desde seu início priorizou o segmento das trilhas sonoras em sua estratégia de atuação em detrimento de trabalhos individuais de artistas.49 Para a composição dos discos de trilhas, a TV Globo e a Som Livre recorrem aos artistas e canções pertencentes aos quadros das demais gravadoras do mercado fonográfico, sobretudo as majors, criando com essas um processo de interação que perdura até os dias de hoje e possibilitando que a Som Livre tenha se consolidado como uma grande gravadora sem ser vista como uma rival pelas demais. Nesse sentido, para além das questões estéticas que se colocam quando discutimos um produto audiovisual, a junção entre imagem e som / novela e música acabou se revelando um espaço de difusão, por excelência, de artistas e canções na grade de pro-gramação da televisão, especialmente pelos altos índices de audiência que a novela detém. Música na novela desfruta, então, do que podemos chamar de promoção subliminar, ou seja, aquela cujo estímulo não é suficientemente intenso para que o ouvinte/consumidor tome consci-ência dele, mas, por conta do grau de repetição na qual é executada, atua no sentido de alcançar o efeito desejado. Provoca aquilo que Dias (2000) chamou de consumo aleatório; independe de o indivíduo gostar ou não de música, de consumi-la ou não: o fundo musical da novela é onipresente, faz parte do nosso cotidiano e proporciona à trilha sono-ra o status de um acontecimento cultural, econômico e estratégico ao mesmo tempo.

48. Trata-se da novela O Cafona. Antes disso, a TV Globo produzia suas trilhas sonoras des-de 1969 �– novela Véu de Noiva �– em parceria com a gravadora Phillips. Cf. Trilha Sonora, disponível em www.teledramaturgia.com.br. Acesso em 17/05/2007.

49. Desde 1985, a única contratada da Som Livre é a apresentadora de programas infantis Xuxa Meneghel, uma das artistas com maior número de vendagens de discos no mercado brasileiro.

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Música em cena: o impacto da presença de uma canção na novelaTomamos, então, alguns exemplos de como a presença de canções a ar-tistas nas trilhas sonoras das telenovelas podem causar uma espécie de efeito cascata que alcança a indústria fonográfica como um todo.

A novela Laços de Família, escrita por Manoel Carlos, exibida no ho-rário nobre pela Rede Globo entre junho de 2000 e fevereiro de 2001 e depois reprisada durante a tarde em 2005, teve como um dos seus pon-tos altos a cena em que a personagem Camila, interpretada pela atriz Carolina Dieckmann, decide raspar os cabelos por conta do tratamento quimioterápico que enfrentava contra a leucemia. A cena foi ao ar no final do capítulo de um sábado e foi reprisada na íntegra no dia seguin-te como matéria de abertura do Fantástico. Com duração de pouco mais de três minutos, foi um dos picos de audiência da novela, alcançando 61 pontos.50 Como fundo musical da cena, a música Love by Grace, in-terpretada pela belga Lara Fabian. De todas as repercussões que uma novela de tamanha audiência alcança nos diferentes meios da indústria cultural (como tema de debates ou matérias de outros programas da TV, até mesmo de outras emissoras; reportagens de revistas e jornais, etc.,) é essa ligação entre música e cena, indústria fonográfica e televisão que interessa nesse momento.

A cantora Lara Fabian era, até então, desconhecida do mercado e do público consumidor brasileiro. Depois de inserida como tema da personagem Camila, a situação se transforma: Love by Grace entra nas paradas de sucesso em 39º lugar e na semana seguinte já estava em 2º, atingindo depois o 1º lugar e permanecendo nesta posição por oito se-manas consecutivas. A música foi, ainda, a segunda mais executada nas rádios em 2001 e ajudou o CD da trilha sonora internacional da novela Laços de Família atingir a marca de dois milhões de cópias vendidas, tornando-se o disco mais vendido em 2001, número altamente expres-sivo num ano em que a indústria fonográfica sofria um dos seus piores índices de vendagem por conta da popularização dos CDs piratas.51 À

50. A média de audiência da novela foi de 50 pontos. Em sua reprise no sessão Vale a pena ver de novo, a novela alcançou 35 pontos, num horário em que a média da Rede Globo costuma ser a metade disso. Cf.: Cláudia Croitor. �“Sem grandes mistérios �‘Laços�’ tem o maior ibope do ano�”. Folha de São Paulo, 4/02/2001; Daniel Castro. �“Maior ibope de 2001 foi de novela de 2000�”. Folha de São Paulo, 28/12/2001.

51. Os dados são da ABPD �– Associação Brasileira de Produtores de Discos e podem ser consultados na página da associação na Internet: http://www.abpd.org.br.

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época de sua reprise, em 2005, a Som Livre lançou no mercado O melhor de Laços de Família, compilação das músicas das duas trilhas lançadas originalmente.

Há também casos em que o impacto da trilha musical no mercado fonográfico não se limitou ao aumento das vendagens de determinados artistas, canções ou da trilha sonora completa, mas, ultrapassou em alguma medida esses limites e acabou por impulsionar algumas modas musicais. Chama a atenção, por exemplo, a �“febre�” das discotecas no final dos anos 70, simultaneamente ao sucesso da novela Dancing�’ Days, escrita por Gilberto Braga e exibida entre julho de 1978 e janeiro de 1979. A trilha da novela, cujo carro-chefe era a música Dancing�’ Days, interpretada pelo grupo As Frenéticas, vendeu um milhão de cópias e fez parte de uma estratégia diferenciada de divulgação por parte da Som Livre. Até então, o disco com a trilha musical das novelas era co-mercializado dois meses após a estreia do folhetim. Dancing�’ Days, en-tretanto, foi lançado simultaneamente à novela e grande parte das mú-sicas que compunham a trilha já havia sido tocada exaustivamente no rádio, na TV e divulgada pela gravadora Warner, detentora dos direitos de comercialização das Frenéticas (WYLER; ROMAGNOLI, 8/12/1978). À época, acusado de escrever a novela somente para vender a moda das discotecas, estilo que a indústria fonográfica havia importado do mer-cado americano, Gilberto Braga se defendeu, queixando-se, inclusive, de não ter participação na escolha das trilhas de suas novelas, revelan-do a pouca autonomia que o autor dispunha na escolha das canções que comporiam a trilha sonora do folhetim:

Eu escrevo meu texto sem me preocupar com qualquer tipo de anúncio que venha a ser colocado no cenário da novela. Não sou obrigado a nada. Espero que na próxi-ma novela eu possa participar da escolha dos temas, pois acho importante a parte musical como marca das situações. E acho também que a intenção deveria ser vender discos por causa da novela, como acontece no cinema, e não o contrário, fazer novelas em função dos discos (WYLER; ROMAGNOLLI, 08/12/1978).

Podemos citar, ainda, outro exemplo de como a presença de deter-minado segmento musical acaba alavancando a indústria fonográfica como um todo. Similar ao fenômeno das discotecas citado acima, foi

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o que ocorreu com o gênero musical da lambada. Sua presença na tri-lha sonora de uma determinada novela acabou sendo decisivo para a prospecção do gênero de uma maneira mais geral por toda a indústria fonográfica. A canção chamariz desse processo foi Me chama que eu vou, do cantor Sidney Magal que figurou como tema de abertura da novela Rainha da Sucata, trama exibida às 21:00hs pela TV Globo, em 1990. O disco da trilha sonora da novela, em sua versão nacional, figurou entre os 50 discos mais vendidos, conforme os dados do Nopem52 e serviu para potencializar o gênero musical como um todo. A banda Kaoma teve duas músicas entre as mais executadas pelas rádios (8º e 52º); Beto Barbosa também repetiu o feito (21º e 66º); Banda Mel figurou com a quarta colocação entre as músicas mais executadas naquele ano (ECAD).53 No mesmo sentido, coletâneas e artistas das demais grava-doras que contemplassem o gênero constaram nessa mesma listagem de discos mais vendidos, única ocasião em que o segmento musical lambada apareceu em tal pesquisa. A gravadora CBS apostou, por exem-plo, nesse segmento, contratando, justamente, o cantor Sidney Magal (Folha de São Paulo, 30/mar/1990). Com o fim da novela e a exaustão da divulgação por todos os canais de difusão, a lambada e seus principais expoentes �– Beto Barbosa, Kaoma, Sarajane �– não voltaram mais a fi-gurar entre os discos mais vendidos ou as músicas mais executadas,54 dando fim a essa moda musical, então.

São exemplos que demonstram a bem-sucedida interação entre mú-sica e televisão, do quanto essa relação pode ser vantajosa para uma indústria que busca difundir ao máximo o seu produto. E resultados semelhantes aos citados logo acima são bastante comuns: não é raro encontrar artistas que participam da trilha da novela ou mesmo a trilha sonora completa figurando muitas vezes entre os discos mais vendidos. Da mesma forma, em alguns momentos específicos, a novela, por meio da sua trilha, impulsionou determinados gêneros e segmentos musi-cais, fazendo com que a indústria fonográfica investisse maciçamente em canções e discos de artistas que se enquadrassem em tais formas

52. Nopem �– Nelson Oliveira Pesquisa de Mercado �– é uma empresa voltada à análise das vendagens da indústria fonográfica. Agradeço a Eduardo Vicente a disponibilização dos dados.

53. ECAD �– Escritório Central de Arrecadação de Direitos Autorais �– é responsável pela medição dos valores referentes às execuções de obras musicais e o cálculo dos direitos autorais que dela decorrem.

54. A banda Kaoma teve duas músicas entre as mais executadas pelas rádios.

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musicais. Se as gravadoras puderam com isso vender grande quanti-dade de discos, é certo, porém, que na grande maioria das vezes, essas modas musicais duraram apenas o tempo de exibição da novela: é o caso das já citadas discoteca (Dancing�’ Days, 1978), da lambada (impul-sionada pela novela Rainha da Sucata, 1990) e da música italiana (Terra Nostra, 1999).

O �“lugar�” da música na TVA trilha sonora da novela, desde seu surgimento no final da década de 1960, é um dos produtos de maior repercussão da indústria fonográfica brasileira. Não há dúvidas de que isso está intimamente relacionado à importância que a televisão, no plano geral, e a novela, especificamen-te, têm entre nós. Divulgar a música através da cena é uma estratégia que acaba por permitir que seu consumo seja potencializado através de sua associação com personagens ou situações propostos por deter-minado enredo. Ademais, ter uma canção como tema de uma novela da Rede Globo significa adentrar diariamente e por meses em milhões de lares brasileiros.55

A eficácia de tal estratégia, do ponto de vista do consumo, fica in-questionável quando atentamos para o fato da posição privilegiada em que se encontra a gravadora Som Livre. A gravadora, a única brasileira entre as cinco transnacionais que dominam 85% do mercado de dis-cos no Brasil, foi criada quase que exclusivamente para lançar as tri-lhas sonoras nacionais e internacionais das telenovelas e minisséries produzidas pela Rede Globo. Historicamente, sua criação coincide com um processo de mudança do lugar ocupado pela música no conjun-to da programação televisiva: de atração principal para coadjuvante. Evidentemente, a canção ainda continua a desempenhar um papel im-portante enquanto parte da narrativa. Mas, o espaço destinado à divul-gação das canções na televisão ficou circunscrito quase que totalmente ao fundo musical da novela. Assim, o músico Luiz Tatit faz uma obser-vação muito interessante sobre este ponto:

55. Alguns pesquisadores apontam à contínua queda de audiência que as novelas globais sofreram especialmente na última década. Mesmo assim, ela continua sendo um dos pro-gramas mais vistos no Brasil. Cf.: Silvia Borelli e Gabriel Priolli (Orgs.). A deusa ferida. São Paulo: Summus, 2000.

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Nos anos 60 e começo de 70, toda música popular bra-sileira estava numa emissora de televisão: a Record. Fazia parte da programação, inclusive, todos os grupos antagônicos: eles tinham do Tropicalismo até a Jovem Guarda, a MPB de linha dura, de protesto, que não deixa-va passar nada que não fosse a música engajada. Tinha ainda a linha do tipo Simonal, do tipo Fino da Bossa, Ronnie Von, dissidências da Jovem Guarda, enfim, tudo estava na Record. Isso acabou durante os anos 70. [...] Depois disso, já não havia nenhuma emissora que con-gregasse todo mundo. Acabou a história de música em televisão. A televisão passou a ser o lugar da novela. O máximo que se tem hoje é o fundo musical da novela (TOLEDO, 2005, p.159).

Assim, é interessante notar como nos anos 60 e início de 70 à músi-ca, como produto específico da indústria fonográfica, era destinado um espaço privilegiado de divulgação na programação da televisão, her-dada de uma tradição já consolidada pelo rádio, marcada, sobretudo, pelos programas de calouros e os musicais. A TV seria palco, ainda, dos Festivais de Música Popular e dos programas musicais comandados por artistas, ambos consagrados, especialmente, pela TV Record.56 Dessa forma, o fato da novela já neste período dominar a grade de programa-ção da televisão brasileira, ainda não impedia que os programas exclu-sivamente musicais ocupassem também um espaço distinto.

Especificamente no caso da Rede Globo, salvo raras exceções, não há mais programas exclusivamente musicais. Nos últimos anos, a emisso-ra apostou no programa Fama, um reality show onde jovens aspirantes à carreira musical disputavam entre si, apresentando semanalmente, cada um, uma canção escolhida pela produção do programa. O público e um grupo de jurados formado por produtores musicais determina-vam quem saía e quem continuava no programa. A atração teve três edições.

No mais, cabe à novela o espaço de divulgação de artistas e canções no meio televisivo, de forma que é grande a disputa por um lugar na trilha sonora. Sem contar os grandes índices de audiência dos quais a

56. É o caso dos programas musicais criados para serem comandados por artistas oriun-dos destes festivais como, por exemplo, O Fino da Bossa, Bossaudade e Jovem Guarda. Sobre isso, cf.: Marcos Napolitano. Seguindo a canção: engajamento político e indústria cultural na MBP (1959-1969). São Paulo: Annablume, 2001.

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canção pode desfrutar; ter uma música em uma novela significa tam-bém ter acesso aos outros programas da emissora, como Domingão do Faustão, Xuxa, Caldeirão do Huck, Fantástico, Altas Horas. Num espaço altamente competitivo, o CD de um artista que tenha uma música na novela certamente se beneficia de toda essa divulgação e, com isso, atinge mais facilmente todos os outros meios de difusão: da programa-ção das rádios aos espaços de destaque nas lojas. Não há dúvidas de que o domínio sobre as trilhas sonoras confere à Rede Globo um alto poder na transação junto às gravadoras.

Rede Globo e Som Livre: maior racionalidade ao mercado fonográficoNos estudos sobre o desenvolvimento e consolidação da indústria cul-tural no Brasil há, com frequência, destaque ao papel que assumiu a televisão neste processo. Estudiosos como Ortiz (2001) e Dias (2005) apontam que, nesse contexto, assim como a chegada da Rede Globo transformou significativamente a televisão brasileira, o mesmo ocorreu com a Som Livre e o mercado fonográfico.

É num período de intensa manifestação cultural e, também, de ex-pansão dos mecanismos da indústria cultural no mercado brasileiro �– que favoreceu, entre outras coisas, a instalação no país das grandes empresas transnacionais do disco (DIAS, 2000) �–, que a Rede Globo ini-cia suas atividades e a consolidação de um padrão de atuação que se tornaria hegemônico até os dias de hoje. Estruturada no que é conhe-cido como um processo de dupla integração (vertical e horizontal), a emissora assegura os mais diversos mercados, atuando em segmentos extrarramos, porém, intrassetoriais: rádios, jornais, revistas, Internet, cinema, televisão (aberta e paga), fonográfico.

Especificamente no que diz respeito às trilhas sonoras, coube à Rede Globo, através da gravadora Som Livre, o mais bem-sucedido, do ponto de vista econômico e estratégico, �– processo de interação entre música e televisão. Na Globo, a telenovela faz parte da grade de programação desde sua fundação em 1965. A emissora também é a única entre as redes de TV brasileiras a manter, desde o início, um projeto regular de teledramaturgia, consolidando um padrão próprio de produção �– co-nhecido comumente como �“padrão Globo de qualidade�” �– e destinando

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vários horários à exibição de suas produções.57 Também está na novela um dos �“tripés�” (ao lado dos telejornais e dos programas de variedade) que sustenta toda a base de funcionamento da TV brasileira. A novida-de trazida pela emissora de Roberto Marinho foi que ela impingiu uma maior racionalidade ao setor, ao fixar uma grade horizontal e vertical de programação, com destaque ao horário prime-time: duas novelas e entre elas seu principal telejornal, o Jornal Nacional. Segundo Borelli e Priolli (2000) está na consolidação desse padrão de atuação um dos elementos fundamentais que explicaria a posição de quase monopólio de audiência, detida pela Globo, até o final dos anos 90.

A Som Livre, por sua vez, surge quase que simultaneamente à con-solidação do espaço e da importância que adquire a teledramaturgia na emissora carioca: no início, em 1969, como parte integrante da Sigla �– Sistema Globo de Gravações Audiovisuais �– e produzindo sua primeira trilha sonora em 1971.

Tratava-se, na verdade, de uma estratégia típica dos grandes conglo-merados de mídia que diz respeito, sobretudo, à integração dos diver-sos setores ligados à produção dos bens culturais. Nesse sentido, para as Organizações Globo, a gravadora funcionava como uma maneira de melhor gerenciar seus investimentos, apostando em um novo produto (no caso, as trilhas sonoras) a partir da integração áudio e vídeo, dando maior funcionalidade a um sistema que envolve o público consumidor de várias formas, impingindo, assim, maior racionalidade ao processo. Aliás, a exploração do filão da trilha sonora como um produto especí-fico era uma estratégia que a própria emissora já havia comprovado a eficácia, antes mesmo de iniciar essa atividade por meio da Som Livre, quando encomendou à gravadora Phillips a primeira trilha para uma novela (Véu de Noiva, 1970). O disco vendeu mais de 100 mil cópias, fato que motivou a criação da Som Livre. O produtor Nelson Motta, então responsável pela criação desta trilha, relata alguns detalhes do proces-so e as consequências depois do sucesso de vendas do disco:

O André Midani (então presidente da Phillips) havia trabalhado no México, onde já havia isso de lançar tri-lhas. Ele me chamou para a produção e eu tive que con-

57. Sílvia Borelli e Gabriel Priolli, op.cit. Embora a Globo tenha se consolidado como maior produtora de telenovela no país e uma das maiores do mundo, ela não é a pioneira na produção deste gênero. Em 1951, a TV Tupi colocou no ar a primeira novela Sua vida me pertence.

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vencer Caetano Veloso, Chico Buarque e Marcos Valle a fornecerem músicas inéditas. Havia muito preconceito contra a novela na época. Depois do sucesso que foi, eu tive que desligar o telefone de tanto artista pedindo pra entrar. [Mas] ninguém pensou em dinheiro; 3% das vendas ficaram para a Globo e o resto para a gravadora. Quando vendeu 100 mil cópias é que a Globo viu que podia ser um bom negócio. No fim do contrato de um ano com a Phillips, é claro que a Globo quis fazer ela própria. Foi pra isso que a Som Livre foi feita (SANCHES, 17/04/2001).

Em menos de um mês após sua criação, a Som Livre colocou no mercado a trilha da novela O Cafona que alcançou a marca de 200 mil cópias vendidas. A interação música e televisão se revelou uma estra-tégia compensadora e em menos de 10 anos de existência, a grava-dora já era líder de vendagens no país. Esta posição alcançada pela Som Livre fica mais interessante se atentarmos à configuração geral do mercado fonográfico neste período. Nos anos 70, as grandes compa-nhias transnacionais do disco já eram atuantes no mercado brasileiro. As maiores empresas fonográficas eram: Phonogram, Odeon, CBS, RCA, WEA, Continental, Copacabana e Som Livre (estas três últimas eram empresas nacionais). No que diz respeito à participação no mercado da música, em 1979, o cenário era o seguinte: Som Livre, 25%; CBS, 16%; Phonogram, 13%; RCA, 12%; WEA, 5%; Copacabana e Continental, 4,5% cada uma; Odeon, 2%; e outras 16%. (DIAS, 2000, p.74). O que chama atenção nesta configuração é que, exceto a Som Livre, todas as outras gravadoras (especialmente as transnacionais) desfrutavam de grandes vantagens técnicas, como estúdios, fábricas, publicidade, etc. Autores como Dias (2000) e Vicente (2001) chamam a atenção para este fato, destacando que justamente o domínio das condições técnicas da linha de produção é que caracterizava como �“grandes�” estas gravadoras (em oposição às gravadoras médias, pequenas e independentes) e acabava também por justificar a posição vantajosa destas empresas no mercado. Além disso, as transnacionais contavam também com o benefício das matrizes de músicas estrangeiras, gravadas no exterior, que eram dis-tribuídas aqui com todos os custos de produção amortizados.

Diante de todos esses fatores, como explicar a posição de lideran-ça da Som Livre, alcançada pouco tempo depois de seu surgimento,

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que não contava com nenhum destes suportes técnicos de produção? Parece adequada a hipótese de que isto relacionado, sobretudo, ao peso e à visibilidade do seu principal produto: as trilhas sonoras. Não por ou-tro motivo, a gravadora abriu mão da posse de um cast fixo de artistas;58 sua área de atuação concentra-se em coletâneas e, sobretudo, nas tri-lhas das novelas e minisséries que produz. Ante este cenário, parece plausível considerarmos que não mais o domínio sobre a esfera da pro-dução determina a sobrevivência e a liderança das grandes gravadoras no mercado de discos. A posição ocupada pela Som Livre é, ao contrário, reveladora de outra situação: o domínio sobre o mercado da música se faz, principalmente, pelo controle dos canais de divulgação e neste ponto a posição da Som Livre é estratégica.

Se a trajetória da Som Livre e sua forma de atuação são dignas de uma análise, principalmente se levarmos em conta que ela é a única gravadora nacional entre as maiores atuantes no mercado,59 a impor-tância das trilhas como meio difusor de artistas e canções e a sua re-lação com a promoção de músicos e segmentos no cenário nacional também merece um exame. De qualquer forma, apenas para apresentar alguns dados, ter uma música incluída como tema em alguma novela apresenta resultados muito favoráveis à indústria do disco. Conforme reportagem da revista Veja, depois de incluídas em trilhas sonoras das novelas da Globo, os discos, por exemplo, de Ivete Sangalo (1999) que havia vendido 200 mil cópias, vendeu mais 200 mil; Maurício Manieri (1998) com 12 mil cópias, vendeu mais 388 mil; e Caetano Veloso (1998) vendeu, além das 700 mil cópias, mais 800 mil.60 Para os músicos re-presenta a oportunidade de se tornarem conhecidos nacionalmente, conforme atesta o produtor musical Guto Graça Mello em reportagem à revista Época (9/04/2001):

Os CDs da Daniela Mercury e Ivete Sangalo só deco-laram depois que Como vai você e Se eu não te amasse

58. Já fizeram parte do cast fixo da Som Livre artistas como: Francis Hime, Oswaldo Montenegro, Elisete Cardoso, Quarteto em Cy, Jorge Ben e Alceu Valença, Rita Lee, Cazuza, Moraes Moreira. Desde o final da década de 1980, a única artista contratada é a apresen-tadora infantil Xuxa Meneghel.

59. A Copacabana deixou de funcionar em 1991; seu cast de artistas passou a ser divulga-do pela Sony. A Continental foi adquirida pela Warner em 1993.

60. �“Para de reclamar, João�”. Veja. São Paulo, p. 36, 2/08/2000. Caetano Veloso, aliás, e Gal Costa são os campeões de participação em trilhas sonoras das novelas globais: cada um já participou de quase 50.

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tanto assim entraram em trilhas. [...] A Vanessa Rangel nem tinha gravado Palpite quando a música estourou em Por Amor [novela exibida em 1997]. Mas onde está a Vanessa agora?

Se as trilhas têm representado para os artistas a oportunidade de veicularem maciçamente suas músicas, com relação a Som Livre, elas têm garantido a permanência da gravadora nas listas dos discos mais vendidos. Apenas para citar um exemplo, na relação dos CDs mais ven-didos em 2003, entre os 20 discos mais vendidos, cinco eram trilhas sonoras (ocupavam 1º, 6º, 8º, 14º, 20º). E parte dos outros CDs presen-tes nesta listagem era de artistas que tinham músicas veiculadas em novelas: Maria Rita, Roberto Carlos, Zezé di Camargo e Luciano, Bruno e Marrone, Zeca Pagodinho.61

À guisa de conclusãoNo início dos anos 90, descontente com o valor dos royalties pagos pela TV Globo para usar suas músicas e canções e impedindo a gravadora Som Livre de comercializar nos EUA o LP em espanhol da dupla serta-neja Chitãozinho e Xororó, a gravadora Universal (na época Polygram) viu seu cast de artistas ser impedido de participar de qualquer pro-grama veiculado pela TV Globo. A decisão partiu de José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, então vice-presidente da Globo �– e vetou a partici-pação, na grade de programação da emissora da família Marinho, de qualquer artista ou canção que fosse vinculado com a Universal, entre eles Caetano Veloso, Tom Jobim, João Gilberto, Maria Bethânia, além de U2, Elton John, Sting, Luciano Pavarotti e Faith No More, além de outros (Cezimbra, 11/08/1991). As duas empresas voltariam a se acertar for-mando inclusive um selo musical �– Globo/Polydor �– dois anos depois. A situação mostra, de certa forma, o que significava perder o espaço de difusão na maior emissora de TV do país num mercado altamente com-petitivo e concentrado. Tendo como principal vitrine as trilhas sonoras de suas novelas, a TV Globo possibilitou ao mercado produtor de discos no Brasil condições muitos particulares de divulgação: associação da

61. �“Resgatando as origens�”. Revista do Nopem, nº 26, abr/2001. Confira também Os CDs e DVDs mais vendidos em 2003. Disponível em http://www. universomusical.com.br. Acesso em 25/07/2005. Dados semelhantes foram divulgados pela ABPD.

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música com o personagem, exibição diária por meses e altos índices de audiência. Claro que como contrapartida, as empresas das Organizações Globo puderam contar com as produções das majors que garantiram em grande parte que a Som Livre permanecesse entre as principais grava-doras do país sem contar com os custos da produção de um disco.62 Essa interdependência entre a emissora de TV e as gravadoras do mercado fonográfico acabam revelando o círculo vicioso do processo de difusão de canções e artistas: nesse cenário, o espaço de divulgação da música passou a ser o da promoção inserida no conjunto da programação, mais especificamente, como fundo de música da novela, gerando o disco de trilha sonora, produto que tem garantido nesses anos seu lugar privi-legiado não apenas da TV Globo, mas de toda indústria fonográfica. A seleção de canções e artistas, feitas sob encomenda ou selecionadas a partir da diversidade de canções já gravadas, obedece a uma série de interesses tanto dos produtores de telenovelas como também da indús-tria fonográfica, que acabaram determinando quem participava ou não do grande mercado de música do país.

No mais, a importância assumida pela Som Livre no mercado fono-gráfico brasileiro é, sobretudo, consequência de uma maneira sui gene-ris de atuação. A gravadora assumiu, logo após sua criação, posição de destaque entre as principais �– e mais lucrativas �– empresas do mercado fonográfico, funcionando de maneira peculiar: diferentemente de todas as outras, a Som Livre não priorizou a ideia de �“concepção�” do produto dentro da empresa, ou seja, contratação de artistas e produção dos dis-cos e repertórios. A empresa nem sequer investiu em fábricas, estúdios e/ou em todo aparato necessário à gravação de um disco, numa época onde isso era quase uma regra entre as multinacionais. Ela fixou-se na distribuição de canções e artistas já gravados por outras empresas fa-zendo uso, dessa forma, de toda a estrutura favorável de divulgação em massa com a qual ela conta. A decisão em investir no segmento das compilações fez, inclusive, com que a Som Livre deixasse de investir em um elenco fixo de artistas, como faziam, por exemplo, as grandes gra-vadoras. Notadamente, tal estratégia tornou-se prática entre as multi-nacionais do disco somente em meados da década de 1990, quando a

62. Nos últimos dois anos, a gravadora Som Livre, por meio de um selo próprio, Slap (Som Livre Apresenta) voltou a gerenciar e divulgar discos individuais de artistas, além das trilhas sonoras, depois de ter desistido de seu cast fixo de artistas há mais de 20 anos. A estratégia que vem a reboque da troca de toda a diretoria da gravadora parece coadunar com esses novos tempos.

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popularização e barateamento dos meios de gravação criaram condi-ções favoráveis à produção independente, fazendo com que a grande gravadora abrisse mão do processo de produção, passando a terceirizá-lo. Podemos afirmar que a Som Livre antecipou em pelo menos duas décadas essa forma de atuação?

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SOMZOOM: música para fazer a festa

Andréa PinheiroFlávio Paiva

IntroduçãoNo início dos anos 90 pouco se ouvia no rádio a tradicional música nordestina brasileira. No campo do entretenimento, o balanço do fri-cote baiano ganhara destacada dimensão mercadológica, passando a ser chamado de �“axé music�” e extrapolando o calendário carnavalesco em sua propagação pelo País. No entanto, os ritmos que compõem o forró continuavam praticamente restritos aos períodos das festas juni-nas e a feiras populares como a de Caruaru, em Pernambuco, e de São Cristóvão, no Rio de Janeiro.

Mesmo nas rádios do Nordeste, via de regra, as músicas de forró eram consideradas �“bregas�” e �“cafonas�” e estavam ausentes da progra-mação das emissoras. Somente as rádios comprometidas com a difusão da autêntica música nordestina não se renderam ao poder dessas ad-jetivações.

Porém, a partir da primeira metade dos anos 90, a despeito da baixa qualidade artística, a sonoridade nordestina ganhou novas feições comer-ciais e passou a tomar conta do Brasil com os sucessos da banda Mastruz com Leite. É a estratégia comercial empreendida pelo grupo SomZoom, proprietário da Mastruz com Leite, que discutiremos em seguida.

Antes, contudo, convém lembrar que o conceito de forró, enquanto sinônimo de festa, é anterior à criação do �“baião�” (Humberto Teixeira / Luiz Gonzaga), nos anos 40. O Dicionário do Folclore Brasileiro (1972), de Câmara Cascudo, conceitua forró como sendo uma corruptela de for-robodó, que �“caracteriza uma festança em que tomam parte indivíduos de baixa esfera social, a ralé�”, também definido como �“festança, diver-

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timento, pagodeiro�”. O autor considera ainda que forró é o mesmo que arrasta-pé, sinônimo para designar �“baile reles�”(1972). Quer dizer, não diz respeito a um ritmo, mas designa um tipo de diversão popular.

Intuição empreendedoraA observação de que os salões que frequentava ficavam cheios quando as bandas tocavam uma sequência de xote e baião foi o que despertou o empresário Emanoel Gurgel para a criação da banda Mastruz com Leite, em 1992. Com esse achado, oriundo da intuição e não de qualquer conhecimento mercadológico da indústria da música, ele partiu para produzir uma inflexão no setor.

A cena do entretenimento ganhou uma banda com nome que ex-pressa uma inusitada mistura nordestina. A palavra mastruz é uma derivação de mastruço, planta medicinal muito conhecida no Nordeste e que misturada ao leite tem efeitos curativos para gripes e doenças respiratórias.

No mundo do �“axé music�” a combinação de nomes estranhos como nome de grupo musical já estava presente no mercado de bailes com a banda Chiclete com Banana, nome adotado pela banda Scorpius, a partir de uma história que os músicos inventaram, segundo a qual um dia, depois de um show, eles chegaram em uma barraca para comer e só tinha chiclete com banana.

O nome Mastruz com Leite, da SomZoom, também segue a linha mercadológica do humor na construção da diversão. Diferentemente da expressão �“Chiclete com Banana�” de Gordurinha, popularizada pelo rit-mista paraibano Jackson do Pandeiro (1919-1982), que tinha um cunho mais político, além de maior significado artístico: �“Eu só ponho bebop no meu samba / quando o Tio Sam pegar o tamborim / quando ele pegar no pandeiro e no zabumba / quando ele aprender que o samba não é rumba / Aí eu vou misturar Miami com Copacabana / Chiclete eu misturo com banana�”.

A forma que o empresário concebeu para organizar a Mastruz com Leite foi completamente diferente da que estava estabelecida no merca-do. Ao forró tradicional de triângulo, zabumba e sanfona, foram incor-porados outros instrumentos como sax, teclados e guitarra, nascendo aí o que inicialmente se convencionou chamar de �“oxente music�”, em uma referência à música comercial baiana.

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O modelo sonoro formatado pela SomZoom passou a ser identifi-cado posteriormente como �“forró eletrônico�” e, da mesma forma que incentivou o surgimento de um sem-número de bandas clonadas da Mastruz com Leite, contribuiu fortemente para que houvesse uma rea-ção dos defensores e amantes do �“forró de raiz�”, com a propagação de apresentações do tradicional forró pé-de-serra, e o nascimento do �“for-ró universitário�”, caracterizado pela participação de jovens de classe média, que passaram a formar grupos musicais inspirados em clássi-cos da música nordestina como Zé do Norte, Jackson do Pandeiro, Luiz Gonzaga, Anastácia, Marinês, Trio Nordestino e Dominguinhos, entre outros.

Essa movimentação generalizada em torno dos mais genuínos dos gêneros musicais nordestinos intensificou o processo de fusão de signi-ficados da palavra forró, no sentido de festa, como anteriormente havia sido identificado por Câmara Cascudo. E mais, o termo forró passou também a denominar uma síntese de ritmos nordestinos, ocultando as variantes de marcação de tempo próprias de gêneros musicais como o xote, o coco, o xaxado e o baião, que originalmente compõem o am-biente do forró.

Na sua condição de festeiro e de empresário, Gurgel percebeu que os intervalos esfriavam as festas e passou a realizar shows onde sua banda tocava quatro ou cinco horas sem parar. Para viabilizar esse tipo de jornada, desenvolveu uma estrutura interna de grupo, que não dava destaque ao vocalista, como era comum até então. Desse modo, a estra-tégia era formar grupos musicais, cujos membros pudessem ser substi-tuídos sem qualquer prejuízo para a festa.

Como grupos de mercado e não grupos artísticos, as bandas da SomZoom são na verdade marcas musicais direcionadas ao entreteni-mento. Não interessa quem é o cantor nem quem são os músicos, o que interessa é vender diversão.

A música é um produto igual a uma geladeira, igual a te-levisão, igual a qualquer negócio. Quando você roda uma música no Faustão, na televisão, numa rádio, você está fazendo um comercial de um produto. Porque da músi-ca vem o CD, vem o direito autoral, vem a festa, vem o

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comercial, vem o cachê, movimenta-se uma quantidade absurda de valores, gerada por uma música.63

O marketing intuitivo de Emanoel Gurgel inovou no mercado fono-gráfico quando as bandas da SomZoom passaram a mencionar seus pró-prios nomes no meio das faixas dos discos e durante as apresentações em shows (�“É o forró Mastruz com Leite�”). A identificação dos nomes das bandas dentro das músicas foi o jeito que ele encontrou para popu-larizar suas marcas, já que os comunicadores do rádio não costumam dar os créditos dos compositores e dos intérpretes.

Antes de montar o próprio negócio, tendo a música como produto, Gurgel, que era dono de uma fábrica de confecções e atuava como juiz de futebol, tentara convencer a Black Banda, grupo para a qual fazia as vezes de empresário, de que o modelo em que eles atuavam não teria sustentação comercial.

Visionário, ele conta que já percebia a importância de bancar a festa como o grande negócio. Enquanto as bandas faziam shows só em troca de cachê, ele queria uma participação maior, queria entrar com a banda e conseguir parceiros que entrassem com a estrutura de mídia, para no final dividir a bilheteria meio a meio. O empresário já tinha alguma experiência com organização de festas com grande retorno comercial e percebia o potencial desse filão.

Em 1992, a FM 93 teve prestes a perder o 1º lugar, en-tão propus ao Will Nogueira, que a gente fizesse trans-missão ao vivo diretamente dos forrós e foi um grande sucesso. Começou de graça e depois o ingresso da festa era uma embalagem do Café Santa Clara, que na época estava chegando no mercado. O sucesso foi tão grande que eu tinha um funcionário só para juntar embalagem de café.64

Depois da consolidação da Mastruz com Leite em Fortaleza, Gurgel partiu para ampliar o mercado, ocupando as praças dos estados vizi-nhos. Ele conta que o primeiro show que fez fora da capital cearense, onde a banda já era um sucesso, a bilheteria registrou apenas 49 pagan-tes. Para ele, o fracasso da bilheteria em Recife foi recebido como um

63. Emanoel Gurgel, em entrevista concedida aos autores em 26/05/2007.

64. Idem, ibidem.

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sinal de que era preciso ter uma estrutura que tocasse forró o ano todo e em todo lugar. Assim, nasceu a rede SomZoom Sat, da qual falaremos mais adiante.

Razões da gravadoraReportagem da revista Exame, publicada na edição de 22 de março de 2000, revela que em 1999, a gravadora SomZoom vendeu 2,5 milhões de CDs. Gurgel confirma que chegou a ter 8% do mercado brasileiro de venda de CDs, mas que hoje nem aparece nos índices de participação de mercado. Diz, com orgulho saudoso, que todas as multinacionais do disco o procuraram para comprar a sua empresa. Isso, antes de a pira-taria tomar conta do mercado, espalhando CDs a baixo custo pelas fei-ras populares do Brasil. Ele declara que, de 1999 a 2006, perdeu muito dinheiro com a pirataria e a falsificação e que, praticamente, teve que começar tudo de novo.

A SomZoom chegou a fazer até 3 CDs por ano da Mastruz com Leite. Era a forma encontrada para neutralizar as ações de falsificação. Gurgel explica que os chineses levavam cerca de quatro meses para pegar um disco no Brasil, levar para falsificar na China e trazer de volta para co-mercializar nas diversas regiões brasileiras.

Com essa estratégia ele neutralizava o efeito da falsificação, pois no momento em que o disco falsificado chegava ao mercado ele já estava fazendo o marketing de um novo produto. Além de muito cara, a mesma estratégia não serviu para evitar os efeitos da pirataria interna, que era muito mais ágil e, diferentemente da falsificação feita na China, não se preocupava com a reprodução do material de capa e encarte, �“os chine-ses copiavam até o código de barras�”, reclama.

O primeiro trabalho fonográfico da Mastruz com Leite foi lançado pela Continental, mas, segundo Gurgel, a gravadora não cumpriu o que havia sido acordado, então ele resolveu montar uma estrutura própria para editar, gravar e distribuir os trabalhos da banda.

A longo de 15 anos foram 39 discos gravados. Com o sucesso da música �“Meu vaqueiro, meu peão�”, o empresário conta que pagou o investimento de cerca de US$ 150 mil que havia feito para montar um moderno estúdio de gravação.

Com a popularização e o sucesso comercial da Mastruz com Leite novas bandas foram criadas, seguindo sempre o mesmo modelo. Assim

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nasceu Mel com Terra, Rabo de Saia, Cavalo de Pau, Catuaba com Amendoim e mais outras tantas, ao ponto da SomZoom chegar a ter 11 bandas em seu portfólio.

A pirataria, segundo Emanoel Gurgel, foi responsável pela redução na produção dos CDs das bandas do grupo SomZoom. Na verdade, esse fenômeno teve grandes repercussões em todas as gravadoras, não só no Brasil, mas em todo o mundo. O estímulo massivo ao consumo da música comercial encontrou, nas altas margens de lucro, praticadas no mercado fonográfico pelas multinacionais do disco, uma barreira para a grande maioria das pessoas que se motivaram a adquirir CDs e DVDs nas lojas de disco. Essa demanda reprimida contou com as facilidades dos recur-sos tecnológicos para gravações caseiras, criando, assim, uma excelente oportunidade para o surgimento da pirataria e da falsificação.

A venda ilegal de produtos musicais já assustava quando, em 1997, de cada 19 fitas cassetes vendidas no Brasil, só uma era fabricada legal-mente.65 O que começou com as fitas cassetes, rapidamente chegou ao CD e em 1998, o Brasil era o sexto maior mercado do mundo em pirata-ria, com vendas calculadas em US$ 1,4 bilhão.

No site da Associação Brasileira de Produtores de Discos(ABPD), gru-po que reúne as maiores gravadoras com atuação no país, os dados sobre o comércio ilegal de CDs são alarmantes. De acordo com os le-vantamentos, publicados no site pela Associação Protetora dos Direitos Intelectuais Fonográficos, em 2005, no período de janeiro a dezembro, �“mais de 31 milhões de unidades de CDs ilegais foram apreendidas no país, entre gravadas e virgens�”.66

Mais do que com a ação da pirataria e das falsificações, o merca-do da música passou a contar com o fenômeno da disponibilização de fonogramas em arquivos MP3. Pesquisa feita pela ABPD no primeiro semestre de 2006 com 1.209 pessoas, em 10 regiões metropolitanas do Brasil �– São Paulo, Rio de Janeiro, Ribeirão Preto, Belo Horizonte, Porto Alegre, Curitiba, Salvador, Fortaleza, Recife e Brasília �– �“revelou que 8,2% da população pesquisada, baixara música na internet no ano de 2005, contabilizando quase 1,1 bilhão de canções sendo baixadas da rede mundial de computadores�”.67

65. Dados publicados no jornal Folha de São Paulo em 4/02/1998.

66. Informação obtida na página www.abpd.org.br, acesso no dia 29 de maio de 2007.

67. Idem.

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O perfil dos internautas também é apresentado pela pesquisa. A maioria é jovem, tem entre 15 e 34 anos e tem ensino superior comple-to ou colegial completo/superior incompleto.

�“A indústria fonográfica está morta�”, sentencia o crítico de música, João Marcos Coelho, em artigo publicado no dia 27/5/2007 no jornal O Estado de São Paulo. Segundo ele, a tecnologia e a internet são respon-sáveis pelo fim do ciclo da música gravada e �“não há nada que se possa fazer sobre isso�”, conclui.

Emanoel Gurgel, tendo essa mesma visão, desistiu da venda de CD como impulsionadora dos negócios da SomZoom. �“O CD hoje é cartão de visita. A Mastruz está lançando o Arrocha o Nó II. São 100 mil cópias, dessas, 50 mil são para dar para as pessoas�”, explica. As mudanças no mercado fonográfico fizeram com que o CD, que já foi a principal fonte de ganho da SomZoom, passasse a servir basicamente de peça promo-cional da empresa.

Quanto mais músicas eu espalhar, mais tenho como le-var as pessoas para dançar os sucessos na festa. A festa é o negócio. Descobri isso há 15 anos. O segredo pra mim é não ter intermediário, eu banco tudo, da grava-ção, ao show.68

Em 1999, quando o Public Enemy, grupo de rap norte-americano co-nhecido pela postura agressiva com relação às gravadoras, disponibili-zou de graça para os fãs uma faixa, em MP3, do novo álbum que estava lançando, ninguém imaginaria que essa seria uma prática corriqueira de muitos grupos musicais. Na época, o grupo rompeu um contrato de 15 anos com a gravadora e lançou o novo trabalho pela internet e só meses depois o CD chegava às lojas.

A SomZoom tem adotado essa prática. O CD Arrocha o Nó II, do Mastruz com Leite, está integralmente disponível para download no endereço http://www.mastruz.com.br.69 A disponibilização das músicas para serem baixadas e copiadas sem custo segue a mesma lógica do uso promocional do CD. Ou seja, quanto mais tiver pessoas conhecen-do as músicas da banda, mais aumenta o potencial de frequentadores das festas por ela animadas. Além de trabalhar com casas noturnas de

68. Emanoel Gurgel, em entrevista concedida aos autores em 26/05/2007.

69. Acesso no dia 29/05/2007.

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terceiros, o empresário possui duas casas próprias, a Casa do Forró, o Parque do Vaqueiro e a Fazenda Mastruz com Leite, onde promove cir-cuitos de vaquejada.

Editora da casaA Editora Passaré, de propriedade de Emanoel Gurgel, tem atualmente 11.500 músicas editadas. A maioria delas, bem como os maiores suces-sos, são dos compositores cearenses Rita de Cássia e Luís Fidélis que cresceram junto com a SomZoom e suas bandas.

A opção por ter uma estrutura própria para editar as músicas gra-vadas pelas bandas nasceu da necessidade de ficar independente dos crivos estéticos para a obtenção das liberações para gravação e do valor cobrado pelas editoras. Segundo Gurgel, muitas editoras não liberavam as músicas para serem gravadas em ritmo de forró por mero preconcei-to. Para ele, a qualidade artística não interessa, o que vale no mercado é o produto ser bom ou não para fazer sucesso.

No começo, os sucessos das bandas foram as regravações de músi-cas conhecidas. Assim, Mastruz com Leite, gravou Teixeirinha, Roberto Carlos e músicas sertanejas em ritmo de forró, além de clássicos da música nordestina como Jackson do Pandeiro e Luiz Gonzaga.

Gurgel explica que percebeu que gravar �“música inédita era muito mais forte do que gravar sucesso dos outros�”. Sendo o dono do reper-tório ele poderia fazer o que quisesse com as músicas. Embora já tendo passado a administração dos negócios para os filhos, ainda hoje ele é o responsável pela escolha do repertório das bandas.

Não sei tocar uma nota musical, só sei dizer se dá certo ou não dá certo. Eu escolho música de um meio lógico, pegando um tema que serve pra todo mundo, digamos, universal. Porque só existem dois tipos de música, a que dá no pé e a que dá no coração. Por exemplo, música que fale em primeiro beijo, dá pra mim, dá pra você, dá pra veado, sapatão, velho, dá pra todo mundo.70

O sucesso de 2007 da Mastruz com Leite, �“Bomba de Cabaré�” (Dada di Moreno/Maninho Santana), foi escolhida pelo próprio empresário.

70. Emanoel Gurgel, em entrevista concedida aos autores em 26/05/2007.

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�“Eu estava aqui na fazenda, ia visitar uma irrigação, e o cara estava aqui comigo, cantou um pedacinho e eu disse: esse é boa, pode gravar. Essa as mulheres vão gostar por causa dos maridos e os veados também porque vai diminuir a concorrência�”, conta ele rindo.

A estratégia usada por Emanoel Gurgel é conhecida no mundo dos negócios como �“a lógica das emoções�”, conceito bem recente de-senvolvido por Clotaire Rapaille, mestre em Psicologia e doutor em Antropologia Médica. O especialista francês desenvolveu uma técnica para pesquisa de mercado a partir da sua atuação nas áreas de psiquia-tria, psicologia e antropologia cultural.

Em entrevista a revista SuperVarejo (abril/2007), o especialista expli-ca que o cérebro registra marcas e impressões inconscientes que serão utilizadas para o resto da vida e que essas �“impressões não existem sem emoção. Sem emoção, não há produção de neurotransmissores, portanto, não há memória�”, afirma. O pesquisador esclarece ainda que o código que possibilita acesso a esse sistema de referência do cérebro, é a cultura. �“A cultura não é somente a linguagem, mas as estruturas de aprendizagem na escola, nos supermercados, no cinema�”, explica.

O pensamento de Rapaille aplica-se bem na prática empresarial intuitiva de Emanoel Gurgel, considerando-se que ele trabalha com o produto música e com o serviço festa, menos por ser um conhecedor de qualquer modelo de excelência em gestão desse mercado e mais por ter no seu gosto pela dança, como diversão, um ponto de relevância cultural determinante em sua vida.

Via satélite e com toque localA criação de uma rede de rádio via satélite foi outra inovação do grupo SomZoom. O Nordeste, tradicionalmente, polo de recepção dos conteú-dos gerados pelas redes de rádio e televisão estabelecidas no Sudeste do país, passou a produzir e gerar programação musical 24 horas para praticamente todas as regiões brasileiras, com exceção apenas dos es-tados do Sul.

Todo o dinheiro ganho com a venda de CD era investido na SomZoom Sat em busca de mais emissoras. Em 1997, chegamos a possuir 71 afiliadas no Brasil tocando só

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forró. Hoje, são 51, mas cada afiliada tem que ter cinco ou seis horas de programação local.71

Gurgel diz que respeitar as peculiaridades de cada região é a melhor maneira de ser aceito nos mais diversos locais. Lembra que as pessoas de um lugar se interessam pelo que vem de fora, mas querem saber o que está acontecendo à sua volta. Ele não cobra nada para que as emis-soras retransmitam a programação da SomZoom.

Segundo o empresário, essas emissoras são parceiras nos shows das bandas e a opção pela programação em rede, muitas vezes, é uma maneira de baratear os custos das rádios. A parceria com as emissoras locais é feita principalmente para a realização de festas, dentro da visão de �“ganha-ganha�”. Ele entra com a banda e a emissora com a divulga-ção do evento e, no final, depois de tirarem todas as despesas, dividem a bilheteria em valores iguais para os dois.

A SomZoom Sat foi montada para tocar forró o ano todo e acabar com uma figura muito conhecida no meio mu-sical chamada jabá. Eu deixava aparelho de televisão para a rádio fazer promoção, para tocar as bandas da SomZoom, mas o retorno era duvidoso, porque o jabá ia para o dono da rádio e o radialista não tocava a música combinada.72

Da programação oferecida pela rede, o carro-chefe é o programa Só forró, veiculado de segunda à sexta no horário das 16h às 19h. Além desses horários, as emissoras afiliadas optam com frequência pela transmissão da meia-noite às seis da manhã. Em Fortaleza, onde está sua sede, a SomZoom transmite pela 90.7 FM.

A estratégia adotada pela SomZoom Sat é analisada por Lima sob a perspectiva do �“contrafluxo�” e apontada como uma experiência de mídia local com inserção regional e nacional.

A Rede SomZoom faz parte das novas tecnologias apli-cadas à mídia, além claramente, do processo de globa-lização que vai determinar o �“contrafluxo�” de um gru-po de mídia regional, enquanto negócio econômico e

71. Idem, ibidem.

72. Idem, ibidem.

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também cultural. (...) A emissora, além da proposta de uma identidade tipicamente nordestina �– ressaltando em sua programação a cultura segmentada e industrial do Nordeste, através do forró, �– também aponta para o cenário nacional, mas carregando uma programação tipicamente regional. No Brasil, não há condições de grupos regionais virem a apresentar uma dimensão nacional, enquanto formato, conteúdo, aceitação, dis-tribuição. Grupos regionais possuem alcance nacional, enquanto presença física em algumas partes do territó-rio, mas buscam comunidades específicas que os iden-tifiquem. (...) Neste ponto, o rádio é o meio através do qual o empresário Emanoel Gurgel promove seus ne-gócios: venda de discos, promoção de shows, produção (LIMA, 2005: 4/8).

Além dessa perspectiva, podemos compreender a experiência da transmissão de músicas e programas radiofônicos a partir de uma ma-triz situada no Nordeste para outros estados brasileiros, como uma ten-tativa de estabelecer vínculos com as populações migrantes.

Como é sabido, por razões econômicas e sociais, o povo nordestino viveu uma diáspora ao longo dos séculos XIX e XX e há levas de nordes-tinos espalhados por todo o país, especialmente no Acre, em Brasília e no eixo Rio de Janeiro-São Paulo.

Para Thompson (1998) as crenças e tradições acompanham as popu-lações que se deslocam do seu lugar de origem. E, segundo ele, cabe à mídia o papel de reconectar as tradições e os grupos de migrantes.

A mídia fornece os meios de sustentar a continuidade cultural, apesar do deslocamento espacial, e de renovar a tradição em novos e diversos contextos através da apropriação das formas simbólicas mediadas. Por isso, os meios de comunicação desempenham um papel im-portante na manutenção e no renovamento da tradição entre os migrantes e os grupos deslocados (THOMPSON, 1998:178).

Por esse ângulo, a experiência da Rede SomZoom pode ser encarada como esse meio de religação com os nordestinos que vivem fora da sua terra natal. Como explicitou Gurgel, ao focar na apresentação musical

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como seu espaço principal de negócios, o rádio passou a ser um instru-mento de mediação entre o público e os elementos da diversão nordes-tina, transmitidos sob o guarda-chuva da linguagem musical.

No entendimento do pesquisador Expedito Leandro Silva, para compre-ender a expansão do forró Brasil afora é preciso relacionar a música com a questão do fluxo migratório dos nordestinos para o centro-sul do país.

Para compreendermos o forró, é necessário procurar entender o migrante e seu imaginário, bem como a sua relação com a cidade grande e as pessoas que moram nela, sua busca de identidade. O forró é música urba-na, mas de origem rural, e funciona como uma ponte conectando culturas e gostos ecléticos distintos. Foi a cidade do Rio de Janeiro que abrigou pela primeira vez o xaxado e o baião. Mas com o tempo é a Grande São Paulo que se consagra como �“grande polo�” do forró e da música nordestina fora do Nordeste (SILVA, 2003:76).

Fazendo uma aproximação entre o universo musical de Luiz Gonzaga, que teve no rádio o seu principal divulgador, e as bandas de forró da atualidade, Honório e Chaves elegem o rádio como lugar de construção de uma nova identidade para o nordestino.

O rádio contribuiu para que houvesse o surgimento e a consolidação de uma nova cultura, um espaço propício para a construção de uma linguagem onde se entrecru-zam o tradicional e o moderno, carregada de significa-ções (SILVA e HONÓRIO, 2004:7).

É inegável a força do rádio na comunicação com os mais variados es-tilos de público. Desde a sua consolidação no Brasil, nos anos 40, como mídia massiva, o rádio tem permanecido como veículo estratégico. Tem sabido aproveitar a relação com as novas tecnologias e consolidado a sua forte característica de mídia regional.

Em Fortaleza, por exemplo, a audiência de rádio tem aumentado e a capital cearense tem se mantido como a terceira maior audiência pro-porcional de rádio no Brasil. Dados do Ibope73 apontam que no pico de

73. Informação disponível no folder feito pela Associação Cearense de Emissora de Rádio e Televisão(ACERT), em 2005, a partir de pesquisa realizada pelo IBOPE.

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audiência do rádio, entre 9h e 10h, Fortaleza alcança o maior índice do país com 43% da população ligada a esse meio de comunicação.

Uma informação relevante para as reflexões que vem sendo feitas ao longo desse trabalho, diz respeito ao crescimento, em Fortaleza, da audiên cia das emissoras de rádio associadas ao �“gênero�” musical forró.

Nos últimos anos, assim como a SomZoom Sat, muitas rádios estão diretamente associadas ao mercado musical das bandas de forró, como a Tropical FM e a Liderança FM, em cuja programação predomina a di-vulgação das músicas de forró, muitas vezes, transmitindo os progra-mas diretamente das casas de shows onde acontecem as apresentações das bandas.

Segundo dados do Ibope/Easy Media 3, de março de 2007, as rádios classificadas como do segmento popular, respondem juntas por 69% da participação de mercado das emissoras de Fortaleza, onde estão incluí-das as rádios alinhadas à divulgação do forró, como a SomZoom (90,7 FM). Só para termos um elemento de comparação, as rádios religiosas, segundo lugar em termos de participação, respondem por 13% da pre-ferência, seguidas pelos segmentos jovem, 11% e adulto, 6%.

Considerações finaisA SomZoom é uma experiência de negócio ancorada na música, que tem em sua trajetória a valorização da intuição, da inovação e do senso de oportunidade. Emanoel Gurgel montou o seu grupo empresarial ins-pirado na sua própria diversão, que é gostar de dançar, independente da qualidade artística da música executada. Em 15 anos de atividades, considerando a criação da banda Mastruz com Leite como o marco ini-cial do seu sucesso, ele comandou a empresa, acreditando que o que funciona é o que o coração sente e não o que podem dizer as pesquisas e os planejamentos estratégicos.

A gestão dos seus negócios é baseada na adaptabilidade das evidên-cias. Cada passo da montagem da indústria do forró no Brasil puxou o seguinte, até chegar no foco atual da empresa que é ganhar dinheiro com festa. Gurgel tem em suas mãos todos os elos da cadeia produtiva da música. Não para cuidar de música, mas para poder monitorar e garantir a geração de valor em todo o processo que culmina com a realização da festa.

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Depois de sofrer os efeitos da pirataria e da falsificação no mercado fonográfico, migrou para o conceito de que as bandas são marcas de diversão e passou a investir, normalmente em parceria com emissoras de rádio, para conquistar a fidelidade dos consumidores dos produtos (CDs/DVDs) e serviços (festas) de suas bandas. Pela imagem que pro-duziu nos últimos 15 anos, a banda Mastruz com Leite tornou-se um produto de grandes eventos públicos. Gurgel encerra a sua argumen-tação a respeito dessa dimensão atingida por sua banda mais famosa, relatando que na festa de 150 anos da forrozeira cidade de Caruaru, entre as bandas contratadas para arrebanhar uma multidão de pessoas estava a Mastruz com Leite. �“Um grande forró tem que ter Mastruz com Leite�”, proclama envaidecido.

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SELO EVOCAÇÃO:o pequeno notável

Marta Regina Maia

IntroduçãoDesde o período inicial da gravação mecânica, passando pela elétrica e agora com os mecanismos digitais de reprodução, além da distribuição aberta pela web, a história da indústria fonográfica no mundo passa por alterações relevantes e o Brasil acompanha estas mudanças. Esta evolu-ção tecnológica, entretanto, pelo menos no caso brasileiro, não é dire-tamente proporcional a democratização do acervo musical acumulado desde que Frederico Figner criou a Casa Edison que, a partir de 1902,74 iniciou o trabalho de divulgação de artistas nacionais.

Se no começo do século XXI há mais possibilidades tecnológicas, tanto para a produção quanto para a preservação da memória musi-cal brasileira, paradoxalmente alguns aspectos cruciais dificultam esta realidade em potencial: o direito de reprodução das obras e o direito autoral, tais como são definidos no Brasil,75 além da falta de vontade das transnacionais que detêm as matrizes da produção fonográfica da época de ouro da música brasileira e ainda a ausência de uma política pública de acervo mais consistente.

74. Ver Humberto M. FRANCESCHI. Registro sonoro por meios mecânicos no Brasil. Nesta obra, o autor prova que o primeiro catálogo brasileiro da Casa Edison surgiu em 1900, mas este não apresenta tantos detalhes como o de 1902.

75. O Ministério da Cultura colocou como uma de suas prioridades a discussão sobre o direito autoral, assunto polêmico que já foi motivo de seminário em dezembro de 2006 e contará com uma série de atividades durante 2007 com o intuito de equilibrar os diversos interesses em jogo. Ver site www. http://www.cultura.gov.br.

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Da história da música popular brasileira, por exemplo, é possível focar na época em que o disco e o rádio representavam elementos sig-nificativos da cartografia cultural, que são as décadas de 1930 a 1950 do século XX. A produção musical do período foi bastante expressiva e eclética, com o surgimento de compositores, arranjadores e intérpretes portadores de uma tradição simbólica reverenciada até os dias de hoje, ainda que de maneira restrita. Esta demanda musical conseguiu, inclu-sive, abrir algumas brechas no interior da própria indústria cultural, que já começava a se desenhar naquela época. Muitas destas produções participaram da construção de um projeto de identidade nacional, mas muitas também foram tidas como �“vozes dissonantes�” a uma perspec-tiva de homogeneização, mesmo durante a vigência do Estado Novo (1937-1945).76

Um suporte essencial para a disseminação das produções musicais são as gravadoras. Afinal, em paralelo ao aspecto subjetivo da com-posição musical, há a necessidade material de gravação, reprodução e distribuição da mesma. No Brasil, a evolução histórica das gravadoras comprova que somente algumas destas detêm o controle do processo produtivo musical, dificultando a proliferação de pequenas gravadoras que poderiam, por exemplo, contribuir para a produção e relançamen-tos de compositores e intérpretes brasileiros que passam pelo crivo do esquecimento cultural.77 No caso da história da indústria fonográfica em São Paulo, nota-se que não há muita diferença com a história dos de-mais estados brasileiros, pois as grandes gravadoras, ligadas ao capital internacional, sempre tiveram mais infraestrutura para garantir a sua permanência no mercado, já que a falta de condições materiais de al-guns selos que tentaram ingressar neste mercado impediram a sua per-manência, como é o caso do selo Evocação, criado em 1987 na capital do Estado de São Paulo, e que terá sua história contada neste artigo.

O que se observa, no cenário atual, é o vínculo cada vez mais es-treito entre a cultura e o comércio transnacional. Ao analisar os des-dobramentos da indústria fonográfica, a partir do processo econômico mais geral, Eduardo Vicente observa que �“no caso específico da indús-tria musical, o processo não só reduziu para apenas 5 o número de

76. Ver Adalberto PARANHOS. �“Vozes dissonantes ao regime de ordem unida�”, 2002.

77. Vale destacar o empenho de colecionadores que criaram os selos Revivendo, Moto Discos, Filigranas Musicais e Collector�’s, que contribuíram e ainda contribuem com a divulgação da música brasileira da época em foco.

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grandes gravadoras transnacionais que controlam o mercado mundial como associou praticamente todas elas a gigantescos conglomerados de comunicação�”.78

O selo Evocação no contexto cultural brasileiroNo início de 1980, o Brasil era o sétimo mercado mundial de televisão e publicidade e sexto na produção de discos.79 Segundo Renato Ortiz, as décadas de 1960 e 1970 são responsáveis pela consolidação do mercado de bens culturais no país. Ainda de acordo com ele, há um incremento nas vendas de aparelhos eletrônicos domésticos que, entre 1967 e 1980, crescem 813%. Igualmente elevado é o lucro das empresas fonográficas que têm o faturamento ampliado em 1.375% entre 1970 e 1976. Como consequência do desenvolvimento tecnológico, o preço dos LPs sofre re-dução e consegue atingir setores da sociedade com menor poder aqui-sitivo. Um dado significativo é que, além das transnacionais, o próprio mercado nacional, por intermédio da Som Livre, ligada a Rede Globo de Televisão, abocanha uma fatia considerável do mercado fonográfico, ao produzir LPs com as trilhas sonoras de suas novelas, o que representou em 1982, 25% do faturamento deste mercado.

Diante deste quadro, surge, em 1987, o selo Evocação. O colecio-nador de discos e pesquisador autônomo da música brasileira, Paulo Iabutti, resolve caminhar na contramão das produções musicais da época e decide criar o selo com o intuito de divulgar a chamada �“fase de ouro�” da MPB em suas gravações originais, já que as gravadoras da época, seguindo um esquema já consagrado internacionalmente,80 co-meçam a se voltar para a massificação de músicas estrangeiras.

As enormes dificuldades enfrentadas para a produção dos LPs do Evocação não impediriam o produtor independente de dar continui-dade ao selo, que terminou suas atividades em 1992. A divulgação da música nacional foi o objetivo maior da criação do Evocação, de acordo com seu idealizador. O problema é que Iabutti tinha uma capacidade

78. Eduardo VICENTE. Música e disco no Brasil: a trajetória da indústria nas décadas de 80 e 90, p. 18.

79. Renato ORTIZ. A moderna tradição brasileira. Os dados citados neste parágrafo foram extraídos deste livro.

80. Márcia Tosta DIAS. Os donos da voz: indústria fonográfica brasileira e mundialização da cultura, 2000.

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muito limitada de produção, pois realizava a pesquisa para a definição do repertório e informações que acompanhavam os discos, as próprias gravações, criava as ilustrações ou fotografias das capas e contracapas e até a embalagem, de maneira artesanal.

Este pequeno selo, durante os cinco anos de existência, lançou nove LPs, com uma tiragem média de 1.500 discos por edição. O pri-meiro disco lançado, com o título Lágrimas de rosa, foi o do �“cantor das multidões�” Orlando Silva, seguido do álbum Saudades de minha terra, com intérpretes notadamente paulistanos; o terceiro, Sempre presente, retoma as interpretações de Orlando Silva. O quarto LP, denominado Antigamente era assim, trouxe Carlos Galhardo e Sylvinha Mello, segui-do de Sou um namorado errante, com canções interpretadas por Sylvio Caldas e marchinhas cantadas por Januário de Oliveira. O sexto disco, Tanger do coração, veiculou músicas interpretadas por seis cantores, entre eles Nelson Gonçalves e Gilda de Abreu. Um disco louvado pela crítica,81 O Bando da Lua trouxe sambas de H. Cordovil, Assis Valente, entre outros. Os dois últimos LPs seguem outro rumo ao divulgar a mú-sica estrangeira da velha guarda, sendo o oitavo intitulado A severa �– de filme homônimo, com fados portugueses cantados por Dina Tereza �– e o último denominado Movie Stars, com músicas emblemáticas do cinema das décadas de 1930 a 1950.

Além do pagamento dos direitos de reprodução fonográfica das grandes gravadoras e dos direitos autorais, Paulo Iabutti ainda tinha uma outra batalha: a busca pela matriz original das músicas escolhidas. Ele não conseguiu localizar nenhuma matriz de todos os discos produ-zidos. Se o próprio Estado brasileiro não tem uma política pública de acervo eficaz, não é de se estranhar que as grandes gravadoras multi-nacionais não tivessem esse material arquivado.82

No processo de garimpagem, o produtor recorria ao seu acervo par-ticular e aos de outros colecionadores paulistanos. Ao encontrar um disco em ótimo estado de conservação, viajava para o Rio de Janeiro e, com a ajuda de um profissional da área, passava para a fita de rolo

81. Na coluna �“Artes e Espetáculos�” do Jornal da Tarde, s/d, há uma referência a alguns lançamentos do Evocação e da Revivendo, sendo o LP Bando da Lua definido pela coluna como �“um dos melhores de toda a MPB�”.

82. Matéria veiculada pela revista Carta Capital (http://www.cartacapital.com.br/edico-es/2004/09/307/1678/) exemplifica bem esta questão. Ela relata que a EMI foi obrigada a recorrer ao acervo de Leon Barg, da Revivendo, para poder lançar uma coleção de Carmem Miranda, em 1996, pois a gravadora não tinha mais as matrizes originais.

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de 10 polegadas. A prensagem dos discos era feita na BMG Ariola, em São Paulo, sendo a única exceção o disco Saudades de minha terra, com cantores paulistanos, que foi prensado na Continental. Além disso, o produtor, que trabalhou como engenheiro em uma grande empresa multinacional, tinha boas noções de desenho e fazia questão de ideali-zar e produzir as capas.

A distribuição, um dos momentos mais difíceis do processo, tam-bém era feita por Iabutti, que conhecia os principais estabelecimen-tos musicais do gênero. Ele conta que os dois discos de Orlando Silva esgotaram-se logo após o lançamento, o que demonstra a demanda da sociedade por este tipo de música.83 A respeito do segundo deles, um ál-bum duplo, Eduardo Martins, do jornal O Estado de S. Paulo, afirmou que sua grande vantagem residia �“na variedade do repertório. Se apenas cinco canções das 24 são inéditas em LP, as demais não figuram entre as já muito conhecidas de Orlando�”. E acrescentava: �“além da evocação, serve como documento precioso dos anos mais ricos da música popular brasileira e da arte de um intérprete que figura entre os dois ou três maiores do País em todos os tempos�”.84

Sobre este disco, Paulo Iabutti lembra que �“...tinha certeza que sen-do do Orlando Silva ia vender. Muitos dos meus amigos falaram que era um risco tremendo soltar um duplo, porque o custo é o dobro, mas acreditei na ideia, achei que ia vender, e já na primeira noite vendeu 200 LPs; depois de dois meses tinha esgotado�”.85

Outro aspecto pertinente ao trabalho deste pequeno selo era a perspectiva de relançar artistas paulistanos que não tinham e ainda não têm espaço na história da produção fonográfica. Foi o que ocorreu com o lançamento do segundo LP da gravadora, uma coletânea de anti-gos e raros 78 Rotações, com 12 intérpretes diferentes. Cantores como Moacyr Bueno Rocha, Jorge Amaral, Jurandyr Santos, pouco conhecidos até mesmo por alguns estudiosos da música popular, tiveram a opor-tunidade de ser relançados pelo Evocação. Um trecho do artigo de Rui Ribeiro, pesquisador de MPB, veiculado pelo jornal Folha de S. Paulo, tenta justificar o motivo desse anonimato: �“é provável que o motivo

83. Alguns filmes e espetáculos teatrais que retratam este período, produzidos no final do século XX e início do XXI, têm logrado êxito junto à população, o que mostra o interesse, de parcela da sociedade, sobre o assunto.

84. O Estado de S. Paulo, 27/9/1988.

85. Entrevista em 26/3/2007.

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do desconhecimento decorra do fato de alguns de seus intérpretes te-rem desaparecido de repente do cenário artístico, ou militarem à época no rádio paulista, que não alcançara ainda a penetração das emissoras cariocas�”.86

A bibliografia específica sobre a história das gravadoras e selos cria-dos em São Paulo ainda é escassa,87 entretanto, o surgimento destes ao longo da história não alterou muito o processo de produção fonográfica que está atrelado ao poderio das majors que dominam este mercado. O que interessa, neste caso, é que a repercussão advinda do chamado �“pe-ríodo de ouro�” das produções cariocas é muito mais amplificada do que a produção paulistana. Um aspecto essencial para a ocorrência deste fato é que, nesta época, o Rio de Janeiro era a capital federal e caixa de ressonância da cultura nacional. Alguns artistas, portanto, que optaram por desenvolver suas atividades em solo paulistano, não conseguiram alcançar muita visibilidade em seu trabalho.

Embora trabalhe especialmente com a produção musical na década de 1930, a pesquisadora Camila Koshiba Gonçalves evidencia estes as-pectos, ao analisar o caso paulistano:

Sob essa perspectiva, as pequenas gravadoras paulistas podem ser consideradas como um importante espaço de aprendizado e troca de experiências de artistas radi-cados na cidade (...) Além disso, estas empresas existi-ram por pouco tempo e contavam com poucos recursos financeiros, pois não faziam anúncios, nem �“eram no-tícia�” nos principais jornais da época. Assim, dados seu curto período de atuação, os poucos canais de distribui-ção de seus discos, e a peculiaridade da trilha sonora que compuseram, é possível supor que sua produção foi elaborada e difundida por e para um mercado cultural local paulistano.88

86. Folha de S. Paulo, 03/08/1988.

87. Há alguns trabalhos como o do Departamento de Informação e Documentação Artísticas (Idart). Disco em São Paulo. Org. Damiano Cozzella. São Paulo: Secretaria Municipal de Cultura: Centro de Pesquisa de Arte Brasileira, 1980 e a dissertação de mes-trado de Camila Koshiba GONÇALVES. Música em 78 rotações: �“discos a todos os preços�” na São Paulo dos anos 30, 2006.

88. Música em 78 rotações. Por uma história das gravadoras no Brasil, p. 5.

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Esta análise tem continuidade com as pesquisas realizadas por Renato Ortiz, ao avaliar que o rádio paulistano, nas décadas de 1930 a 1950, tinha �“características marcadamente locais, e se pautava segun-do um padrão regional�”.89

O produtor Paulo Iabutti, profundo conhecedor da história da mú-sica e do rádio, em particular a paulistana, apresenta três grandes em-pecilhos que o levaram a encerrar a curta existência do selo. O primei-ro refere-se ao tempo de manutenção do direito autoral que, para ele, deveria ser menor para a reprodução mais democrática. Atualmente, segundo o artigo 41, da Lei 9.610, de 1998, que atualiza o Decreto de 1973, �“os direitos patrimoniais do autor perduram por 70 anos conta-dos de 1º de janeiro do ano subsequente ao de seu falecimento, obede-cida a ordem sucessória da lei civil�”. A argumentação de Paulo Iabutti é bem contundente:

Uma das grandes invenções do século XX é a xerox, por-que permite a reprodução perfeita. Antes você era obri-gado a tirar uma fotocópia que ficava pronta em um ou dois dias, era um atraso de vida. Isso foi uma grande revolução. O inventor da xerox teve 20 anos para ex-plorar isso, quer dizer, o filho dele não teve o direito de explorar aquilo. Eu acho que na música, na literatura, é a mesma coisa, o artista fez aquela criatividade, ele tem 20 anos para ganhar, fora disso tinha que acabar com aquilo para os outros terem acesso. Por que eu digo isso? Porque a música popular brasileira ficou esqueci-da; Por que predomina a música internacional, especial-mente, a americana? Porque eles têm a mídia, têm o po-der econômico nas mãos, eles massificam, eles ganham muito dinheiro com isso. Elvis Presley, por exemplo, que é coisa antiga, ainda manda milhões de dólares para os Estados Unidos. E por que o Brasil é esquecido?... Eu an-tes perguntava assim: Por que uma grande gravadora não faz isso que eu fiz? Não interessa para eles tirar 5 mil cópias de disco, o que interessa para eles é tirar um milhão de cópias. Quer dizer, a gente teve que tomar esta iniciativa justamente para poder manter um pou-

89. Op. cit., p. 54.

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co da memória da cultura brasileira. Eu sou totalmente contra direito autoral dessa forma.90

As discussões sobre direito autoral são intermináveis. O Brasil tornou-se signatário de vários acordos internacionais, a começar pela Convenção de Berna de 1886, revista em Paris, em 1971, na medida em que os países perceberam a necessidade de se estabelecer algumas regras sobre estes direitos. A polêmica versa ainda sobre o próprio pa-gamento dos familiares dos artistas que, muitas vezes, dependem dele para garantir a preservação das obras. Por outro, levanta-se o problema de preços exorbitantes cobrados por familiares para a autorização de utilização destas obras. No caso dos discos, levanta-se ainda a impos-sibilidade de controle, por parte dos familiares, da produção, já que os mesmos não são numerados, o que dificulta a fiscalização. Além disso, Gilberto Gil, na condição de ministro da Cultura, afirmava que, �“com o advento da Internet, a legislação precisaria ser revista�”.91

Ao lado do problema autoral, uma segunda dificuldade apontada por Iabutti relaciona-se à chamada cultura do esquecimento.92 Na �“épo-ca de ouro�” do rádio houve uma grande produção nacional que depois não foi assimilada pelas novas gerações. E, nas décadas posteriores, a nova produção passava a atender as demandas de um mercado em rápi-da ampliação, com a instalação de inúmeras gravadoras transnacionais como demonstra Eduardo Vicente ao analisar a indústria do disco nas décadas de 1960 e 1970:

Diversas das majors transnacionais que hoje dominam o mercado iniciaram ou ampliaram suas atividades no país durante o período: a Phillips-Phonogram (depois PolyGram e, atualmente, parte da Universal Music) ins-talou-se em 1960 a partir da aquisição da CBD; a CBS (hoje Sony Music) �– instalada desde 1953 �– consolida-se a partir de 1963 com o sucesso da Jovem Guarda; a EMI faz-se presente a partir de 1969, através da aquisição da pioneira no país e também internacional Odeon (...)

90. Entrevista em 26/3/2007.

91. Ver discurso do ministro: http://www.cultura.gov.br/noticias/discursos/index.php?p=21815&more=1&c=1&pb=1.

92. Vale registrar o trabalho de preservação da memória musical brasileira realizado por algumas organizações privadas como o Instituto Moreira Sales que adquiriu várias cole-ções e disponibiliza as mesmas, publicamente.

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a subsidiária brasileira da WEA, o braço fonográfico do grupo Warner, é fundada em 1976 e a da Ariola �– pertencente ao conglomerado alemão Bertellsman �– em 1979. A RCA, que mais tarde seria adquirida pela Bertellsman tornando-se o núcleo da BMG, operava no país desde 1925 e completava o quadro das empresas internacionais mais significativas em nosso cenário do-méstico (...).93

A memória dos cantores do rádio acabou não sendo objeto de preo-cupação dessas grandes majors, que estavam mais interessadas em ampliar o mercado consumidor e assim aumentar o seu poder de pene-tração. Os dados da época mostram que houve um crescimento do con-sumo de música estrangeira, mas ainda não suficiente para se sobrepor à produção nacional. O pesquisador Eduardo Vicente, embora observe que não é possível afirmar que tenha havido uma maior internaciona-lização do consumo, pois a vendagem de discos com música brasileira era maior do que a estrangeira, admite uma forte influência da música internacional na década de 1970, que �“desempenhou um papel cultural e econômico significativo no sentido da massificação do consumo mu-sical (...) como importante via para a incorporação de novas camadas de consumidores ao mercado (...) esses consumidores eram, basicamente, jovens�”.94

Ao discutir o fenômeno da presentificação, característica da mo-dernidade, o historiador Eric Hobsbawm afirma que �“a destruição do passado �– ou melhor, dos mecanismos sociais que vinculam nossa ex-periência pessoal à das gerações passadas �– é um dos fenômenos mais característicos e lúgubres do final do século XX�”.95 Ao ter como objetivo principal a divulgação de uma época, por intermédio da chamada �“mú-sica da velha guarda�”, o selo Evocação tinha como uma de suas metas contribuir para a memória da cultura brasileira.

O terceiro aspecto apontado pelo produtor refere-se ao surgimento de gravadoras na mesma linha. Na década de 1990, por exemplo, ele estava com um LP praticamente pronto quando outra gravadora lançou um LP com músicas já escolhidas e definidas pelo Evocação. O produ-

93. Op. cit., p. 53.

94. Ibid., p. 58.

95. Eric HOBSBAWM, Era dos extremos: O breve século XX �– 1914-1991, p. 13.

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tor teve que refazer todo o caminho da pesquisa de repertório, alterar a parte gráfica já pronta, etc. Para contornar esse problema, Iabutti acabou lançando na sequência dois LPs com trilhas de filmes, mas aca-bou desistindo, pois o projeto original era o da divulgação da música brasileira mesmo, com destaque para a produzida em São Paulo. O que ele lamenta, entretanto, é que a memória da música regional paulistana corre o risco de se perder.

Evocar é precisoUma breve contextualização das décadas de 1930 a 1950 pode ajudar a compreender melhor o apogeu do rádio e da música popular neste período. As conquistas técnicas alcançadas no campo da radiodifusão e da produção dos discos levaram estes dois campos a uma integração intensa, especialmente após a década de 1930. Quando surgem as pri-meiras emissoras de rádio, tendo como precursora a Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, em 1923, ainda não há, de imediato, o interesse mais generalizado da sociedade por este veículo. Somente a partir da década seguinte é que o rádio provoca uma interação jamais vista na história da comunicação social. Com a indústria cultural ainda incipiente, é pos-sível afirmar que as emissoras radiofônicas representaram um elemen-to democratizador das práticas culturais. Afinal, antes do surgimento deste meio eletrônico, as pessoas necessitavam de habilidades espe-cíficas de leitura e escrita para ter acesso ao que era veiculado pelos meios impressos.96 Embora o rádio e o disco tenham participado do circuito comercial e contribuído para o estímulo do consumo de produ-tos, também participaram de um processo de construção simbólica que permeou a própria constituição da cultura de uma época.

Um dos aspectos mais importantes da memória radiofônica é a mú-sica. A chamada �“fase de ouro�” da MPB consagra compositores e intér-pretes que até hoje são apreciados não só por antigos radiouvintes, mas também por músicos e estudiosos como Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello:

A Época de Ouro [1929/1945] originou-se da conjunção de três fatores: a renovação musical iniciada no período

96. Raymond WILLIAMS (Ed.). Historia de la comunicación, p. 207.

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anterior com a criação do samba, da marchinha e de ou-tros gêneros; a chegada ao Brasil do rádio, da gravação eletromagnética do som e do cinema falado; e, principal-mente, a feliz coincidência do aparecimento de um consi-derável número de artistas talentosos numa mesma ge-ração. Foi a necessidade de preenchimento dos quadros das diversas rádios e gravadoras surgidas na ocasião que propiciou o aproveitamento desses talentos.97

É importante pensar que o rádio e o disco, em seu auge, podem ser vistos como meios amplificadores da diversidade musical. A populari-zação da programação radiofônica permitiu a ampliação do repertório musical dos ouvintes, o que possibilitou �“a diversificação e o alarga-mento das possibilidades de escolha dos artistas e dos ouvintes, prova-velmente ampliando e desenvolvendo seu universo de escuta ao invés de regredi-lo�”.98 A diversidade da programação é um componente fun-damental da prática radiofônica do período, já que havia emissoras com programas mais voltados para a elite e outras com uma programação mais popular. Muitas vezes, o rádio era a principal fonte de audição das músicas, já que inúmeras pessoas não tinham condições de adquirir todos os discos lançados pela indústria fonográfica.

Se a tradição pode ser fruto de um projeto político deliberado, ela também pode ser reinventada pela própria sociedade, desde que os me-canismos de reprodução estejam mais acessíveis. A gravação e conse-quente distribuição de obras lançadas em 78 rotações, por exemplo, precisam acontecer para que novas gerações tenham acesso a estas obras mesmo nas novas mídias de audição. Ao relacionar memória e mídia, a pesquisadora Heloísa Helena de Araújo Duarte Valente con-sidera que um signo musical pode ser recuperado por intermédio de diversos atores sociais. Para ela, é possível que uma canção possa ser rememorada, pois ocorre que �“signos musicais, por razões nem sempre facilmente verificáveis, reaparecerem graças ao esforço de um traba-lho individual ou de uma equipe destinada a desenvolver um projeto particular�”.99

97. A canção no tempo: 85 anos de músicas brasileiras, p. 85.

98. José Geraldo Vinci de MORAES, Rádio e música popular nos anos 30, p. 76.

99. As vozes da canção na mídia, p. 138.

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O projeto desenvolvido por Paulo Iabutti, este produtor obstinado, também é reconhecido por José Ramos Tinhorão, estudioso e profundo conhecedor da história da música popular brasileira. É interessante ci-tar um trecho escrito por ele na contracapa do primeiro LP lançado pelo Evocação:

Um desses apaixonados guardiães da chama do cantor Orlando Silva é o paulista Paulo Iabutti que, tendo ouvi-do pela primeira vez no rádio a voz que o deslumbraria em 1937, quando tinha apenas 11 anos de idade, de-cidiu agora, meio século depois, fazer ainda uma vez resplandecer para outros o canto luminoso que nunca mais se lhe apagou da memória. E a forma que encon-trou para isso foi a mais nobre e desinteressada: reti-rar do esquecimento algumas gravações originais de Orlando Silva nunca reeditadas, e financiar do próprio bolso um disco que já nasce raro, porque fazendo revi-ver o brilho da voz do Cantor das Multidões, é um disco que só a paixão pode explicar.100

Ao lançar o selo Evocação, Iabutti teve o intuito de contribuir para a disseminação da música popular brasileira como foco gerador de um lastro de identidade. O que reforça a noção de que a música popular, entre outras propriedades, pode ser considerada �“uma espécie de reper-tório de memória coletiva�”.101

Considerações finaisO circuito cultural que se formou nas décadas de 1930 a 1950, em espe-cial com o advento do rádio e o crescimento e consolidação da indústria do disco, projetou inúmeros compositores e intérpretes que ainda hoje sobrevivem no imaginário nacional. A valorização do artista ofereceria a possibilidade de participação dos excluídos nesse circuito. José Ramos Tinhorão, ao discutir o aspecto da profissionalização do músico, com expressiva contribuição do rádio, cita como exemplo a letra de uma

100. Contracapa LP Orlando Silva, Lágrimas de Rosa, 1987, Evocação.

101. Marcos Napolitano, A síncope das ideias: a questão da tradição na música popular, brasileira, p. 5.

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música composta por Germano Augusto e Gabriel Meira, intitulada �“Maestro caixa de fósforo�”:

Nunca ouvi seu nomeLá no microfoneSeu sambaNasce e morre no botequimQuanto tempo perdidoQuanto café pequenoQuanto papel rabiscadoQuantas noites de sereno...102

Este samba, ao reconhecer que o rádio estratifica o papel cultural do artista, reforça o poder da radiodifusão no período. As inúmeras pos-sibilidades oferecidas pelo binômio rádio-disco, embora construídas a partir da própria lógica de mercado, na medida que o consumo também era a meta dessa parceria, qualificam a produção cultural do período e podem ser percebidas por trabalhos que versam sobre esta época. Uma pesquisa de recepção midiática, realizada com radiouvintes paulistanos das décadas de 1930 a 1950, considera a música uma das mediações mais importantes da memória radiofônica: �“mesmo após várias déca-das, ouvintes conseguem cantarolar corretamente as canções ouvidas na juventude. E um grande respeito pelos cantores daquela época per-manece, independente dos gostos atuais no campo musical�”.103

É preciso evitar um certo ufanismo ao avaliar a produção cultural do período, pois as influências externas já começavam a se fazer presentes na sociedade. Afinal, não se pode esquecer a maior aproximação entre Brasil e EUA a partir da década de 1940. A música, evidentemente, tam-bém foi influenciada por esse processo. Entretanto, é possível afirmar que a música brasileira sempre teve seu espaço garantido, seja nos dis-cos lançados, seja nas emissões radiofônicas:

A música teria o mesmo potencial do cinema como via do americanismo? (...) As pesquisas realizadas pelo Ibope em julho 1944 confirmam que a música brasilei-ra era mais ouvida que a americana. Para ficarmos só

102. Música popular �– do gramofone ao rádio e TV, p. 131.

103. Marta R. Maia, Quadros radiofônicos: Memórias da comunidade radiouvinte paulistana (1930-1950), p. 127.

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com um exemplo: Bing Crosby era ouvido por 0,5% dos entrevistados, enquanto Carlos Galhardo tinha 26,7% da preferência. A música não foi o melhor veículo do americanismo.104

A quase inexistência de uma memória dos cantores do rádio passa por uma série de eventos culturais relacionados ao surgimento da te-levisão em 1950 e aos mecanismos de interesses dos produtores fono-gráficos. Estes aspectos podem ser associados ao surgimento da Jovem Guarda e da Bossa Nova, sendo esta última uma oportunidade ímpar do próprio mercado fonográfico de ver ampliada a sua possibilidade de in-serção no plano internacional, já que este movimento musical carrega elementos jazzísticos que permitiram seu ingresso no mercado exter-no.105 Outro aspecto relevante foi o surgimento das FMs e o advento das redes radiofônicas, o que contribuiu em muito para uma consequente padronização musical, em que pese o aspecto positivo da segmentação de algumas emissoras.

A ausência de uma memória cultural também é uma marca que identifica, paradoxalmente, a sociedade brasileira.

Um compromisso ético parece sobreviver junto àqueles poucos que não conseguem assistir impassíveis a tudo que se desenrola à sua frente e que acreditam que à cul-tura [deve ser dado] voto de confiança. Há um desenvol-vimento midiático contemporâneo na direção da des-truição do passado (niilismo, fragmentação, pilhagem, falsificação, descrédito, apagamento do passado), que atua no sentido de zerar a lembrança histórica e cultu-ral dos tempos. Tudo no sentido de se forjar um homem novo, leve, livre da �“doença histórica�”, absolutamente indiferente a tudo o que se passou. Uma máquina de triturar as experiências e as vivências de outros tempos e que substitui tudo isso por um Nada, uma ausência total de passado.106

104. Antonio Pedro Tota, O imperialismo sedutor: A americanização do Brasil na época da Segunda Guerra, p. 157.

105. Ver análise mais aprofundada desta discussão em Eduardo Vicente, op. cit.

106. Ciro Marcondes Filho, Contra a banalização da violência. A recuperação produtiva do passado como garantia contra a barbárie do futuro, p. 2.

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A constituição do mercado fonográfico que se verifica a partir da década de 1980, período em que surge o selo Evocação, tem como base a inserção do Brasil no contexto da modernidade, que busca no público jovem o seu perfil de consumidor. Neste sentido é extremamente perti-nente um exemplo dado por Eduardo Vicente, ao discutir a organização da indústria na década de 1970 e citar como destaque a saída de André Midani da direção da Polygram, em 1976, quando este tem a missão de fundar a WEA do Brasil: �“A afirmação de que o futuro da indústria está no rock e o cast de sua gravadora será formado apenas por artistas com menos de 30 anos, que saibam administrar suas carreiras, é sintomática do novo momento que se inicia�”.107 Para uma cultura da presentificação nada mais justo do que excluir aqueles que cantaram a história da mú-sica popular brasileira, movimento que está presente tanto no campo privado como na esfera pública.

Ao privilegiar a história deste selo paulistano, busca-se mostrar que mesmo um pequeno selo, com todas as dificuldades inerentes, pode ajudar a �“retirar do esquecimento�” inúmeros intérpretes e composito-res, depositários de parte da memória musical do país, e assim contri-buir para a circulação de sons que transitam no espaço etéreo que a música pode proporcionar.

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107. Op. cit, p. 86.

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INDÚSTRIA FONOGRÁFICA EM MINAS GERAIS

Angela de MouraNair Prata

Sônia PessoaWaldiane FialhoWanir Campelo

Este trabalho visa fazer um levantamento da indústria fonográfica em Minas Gerais, caracterizando-a no mercado brasileiro. A pesquisa traça um breve panorama do setor no Estado relacionando o tipo de ativida-de exercida, a infraestrutura, a rotina de promoção e divulgação de CDs, os artistas e os desafios diante das novas tecnologias. Além de levan-tamento bibliográfico, foram realizadas entrevistas e visitas técnicas às gravadoras em Belo Horizonte.

O mercado fonográfico brasileiro parece ser marcado, no final do século XX e início do XXI, por alguns fenômenos importantes, que têm sido objeto de estudo de pesquisadores ainda que o tema não ocupe muito espaço na academia. Assemany (2001) aponta dois movimentos relacionados à pirataria e ao advento da internet: a venda de cópias falsificadas e a transferência de músicas (fonogramas digitais) pela rede mundial de computadores. O autor não demonstra otimismo em rela-ção ao que ele considera os principais problemas ainda insolúveis da indústria fonográfica. Tanto a pirataria108 quanto a internet estariam tirando cifras consideráveis da receita do setor. De acordo com as esta-tísticas da Associação Protetora dos Direitos Intelectuais Fonográficos

108. Pirataria é entendida aqui como cópia indevida de programas de informática, de fitas de vídeo ou de som.

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(APDIF),109 o Brasil está entre os 10 países mais afetados pela pirataria de CDs. Ainda segundo a APDIF, a maior apreensão de cópias ilegais no Brasil teria ocorrido em 2006, quando mais de 47 milhões de CDs e DVDs foram recolhidos, um aumento de 57% em relação ao montante confiscado no ano anterior. Pesquisa realizada pelo Instituto Ipsos,110 em 10 regiões metropolitanas do Brasil, traça o perfil do consumidor brasileiro de CDs originais e piratas. Em Belo Horizonte, por exemplo, nosso cenário de pesquisa, metade dos entrevistados declarou, no le-vantamento do Ipsos, consumir CDs piratas.

Silva (2001) acredita que a globalização trouxe outro movimento mercadológico digno de registro: a fusão entre grandes empresas no cenário de produção e distribuição de discos, cuja consequência prin-cipal é a formação de conglomerados de mídia. As fusões provocam consequências paradoxais para o mercado, levando-se em consideração os jogadores envolvidos no processo: grandes corporações, funcioná-rios e prestadores de serviços. O impacto social não pode ser descon-siderado nesse processo cada vez mais frequente. Grosso modo, se por um lado, a concentração de empresas em um conglomerado permite às corporações aumentar lucros, reduzir despesas e compartilhar fatores mercadológicos de risco, por outro, pode significar demissões em massa (MORAES, 2004).

O Digital Music Report 2008 (DMR 2008), desenvolvido pela Federação Internacional da Indústria Fonográfica (IFPI), que agrega cerca de 1.400 gravadoras em 76 países, aponta novidades no setor. O documento111 indica outra mudança significativa nas atividades da indústria fonográ-fica: as gravadoras estariam se transformando em companhias digitais, uma vez que a venda de músicas on-line e via celular cresceu 185% no Brasil e 40% no mundo em 2007. São 2,9 bilhões de dólares movi-mentados no mundo com tais vendas, cifra superior aos 2,1 bilhões registrados em 2006. As vendas digitais representam atualmente, ainda segundo o DMR 2008, 15% do mercado musical no mundo. A indústria fonográfica estaria experimentando uma série de novidades de mode-los de negócios e de produtos de música digital. Quatro milhões de faixas musicais já estão disponíveis na internet em formatos diversos.

109. Publicada em www.abpd.org.br.

110. Publicada em www.abpd.org.br.

111. O relatório foi publicado nos sites da Federação Internacional da Indústria Fonográfica ( www.ifpi.org) e da Associação Brasileira de Produtores de Discos (www.abpd.org.br).

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Quinhentos serviços de música on-line são considerados legítimos pela IFPI em 40 países. No Brasil, a entidade relaciona 20 serviços, apontan-do os portais Terra e Uol como os dois maiores no segmento. De acordo com análise da Associação Brasileira de Produtores de Discos (ABPD), o relatório demonstra que a indústria fonográfica se adapta à combina-ção das habilidades tradicionais de comercialização da música com a tecnologia digital.

O mercado fonográfico brasileiro reúne 10 grandes gravadoras que fazem parte da Associação Brasileira dos Produtores de Discos (ABPD), criada em 1958, além de diversas outras gravadoras consideradas in-dependentes ou que não fazem parte da Associação. Com sede no Rio de Janeiro, a ABPD representa a EMI Music, Indie Records, Microservice Tecnologia Digital, MK Music, Paulinas, Som Livre, Sony, Sunshine Records, Universal e Warner Music. Quatro das 10 gravadoras associa-das à ABPD são empresas multinacionais: Sony, Warner Music, Universal Music e EMI Music. O restante é constituído por empresas de capital na-cional. O mercado de vendas on-line no Brasil vem crescendo de maneira significativa. O site da ABPD traz a informação de que 2,9 milhões de pessoas baixaram música da internet em 2005, representando 8,2% do universo pesquisado. O dado indica que foram extraídas da rede mun-dial de computadores 1,1 bilhão de canções. No ranking mundial da IFPI, o Brasil não figura entre os 10 primeiros colocados em vendas on-line, como acontece com a comercialização de fonogramas musicais.

Mapeamento da indústria fonográfica em Minas GeraisEsta pesquisa adotou os seguintes procedimentos, baseados em meto-dologia definida por Borges, Ferreira e Jambeiro (2006), que estudaram a indústria fonográfica de Salvador e sua inserção no mercado brasileiro: 1) Coleta e análise de dados sobre as empresas nacionais e/ou multina-cionais, que constituem a indústria fonográfica no Brasil e que têm es-critórios regionais em Belo Horizonte, baseando-se na relação disponi-bilizada pela Associação Brasileira de Produtores de Discos (ABPD) e da Associação Brasileira da Música Independente (ABMI); 2) Mapeamento das empresas produtoras de fonogramas sediadas em Belo Horizonte, a partir de informações de produtores culturais e funcionários de emis-soras de rádio sediadas na cidade; 3) Visitas técnicas à sede e/ou escri-tórios regionais das empresas com o objetivo de checar os dados; 4)

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Entrevistas,112 com aplicação de questionário, contendo perguntas obje-tivas e subjetivas sobre dados institucionais, funcionais, mercadológi-cos, técnicos e tecnológicos. Responderam ao questionário funcionários e representantes das empresas que constituem a indústria fonográfica mineira; 5) Sistematização dos dados e redação do trabalho.

A ideia do nosso grupo de pesquisa é que este seja um levantamento preliminar sobre a indústria fonográfica mineira que, posteriormente, possa ser detalhado e melhor explorado. Os dados apresentados neste trabalho foram coletados em 2007/2008. Entendemos como indústria fonográfica, ainda com base em Borges, Ferreira e Jambeiro (2006), o conjunto de empresas que:

(...) concebem, produzem, distribuem e comercializam gravações de som, em seus diversos formatos. Ela atua associada a editoras �– onde são registradas as autorias de textos e partituras �– e a um conjunto de organiza-ções industrial-comerciais. Todo o conjunto movimenta no mercado centenas de milhões de reais anualmente (BORGES, FERREIRA e JAMBEIRO, 2006, p. 1).

As multinacionais em MinasDas quatro maiores empresas da indústria fonográfica mundial, três delas estão representadas em Minas Gerais, com escritórios regionais localizados em Belo Horizonte: EMI Music, Universal Music e Sony. As atividades de cada uma estão relacionadas a seguir, a partir do depoi-mento dos profissionais que as representam e das informações publi-cadas nos sites das empresas. Um dos termômetros das gravadoras é o relatório diário da Crowley Broadcast Analysis do Brasil, empresa que monitora a quantidade de vezes que determinada música é veiculada em uma emissora. A empresa tem escritórios em diversos Estados bra-sileiros. A partir da gravação da programação, a Crowley emite rela-tórios nos quais se pode consultar a música, a emissora, o horário em que foi tocada e o número de execuções diárias. Para as gravadoras, o

112. A transcrição das entrevistas foi realizada por bolsistas e voluntários integrantes do Projeto de Extensão Radioescola Ponto Com, coordenado pela professora Wanir Campelo da Uni-BH: Juliana Garcia, Bianca Vargas, Michelle Leal, Rosânia Felipe, Marney Vilela e Thiago Pereira.

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monitoramento equivale ao Ibope diário da própria indústria fonográ-fica, apontando gravadoras, selos e bandas que aparecem na grade de programação. Para o produtor musical mineiro Rubem di Souza, que nos últimos sete anos produziu mais de 90 discos, o mercado fonográ-fico teve excelentes resultados entre 1992 e 2002, mas a consolidação da internet, da música digital e do MP3 modificou o cenário: �“O merca-do fonográfico, iludido e maravilhado com os lucros fáceis do CD, não prestou atenção neste fenômeno e não se preparou para esta crise que está enfrentando hoje, com o disco se tornando obsoleto e o mercado vivendo a sua pior crise dos últimos 50 anos�”.113

EMI MusicA EMI (Electric and Musical Industries) é uma das quatro maiores gra-vadoras do mundo. Sua sede fica em Londres e ela opera em 25 países. Em Minas, está há quase meio século e hoje é representada pelo pro-motor de vendas e divulgador Alessandro Adolfo Viriato,114 que traba-lha no setor há 19 anos e está na EMI há cinco. Fica também sob a responsabilidade dele representar a EMI nos Estados de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. O divulgador da EMI Music tem rotina atribula-da. Vive com um olho no dial para verificar as músicas mais tocadas e outro nas promoções realizadas em parceria com as emissoras. �“Levo o produto novo e apresento a intenção da companhia diante daquele produto. Como estou há muito tempo no mercado, conheço cada um em cada veículo dessa cidade e todos também já me conhecem. Temos uma relação muito respeitosa, mas muito informal também. Trocamos impressões, batemos um papo e discutimos estratégias�”, afirma Viriato. Ao representante de Belo Horizonte cabe o recebimento da música que, na maioria das vezes, chega por e-mail. Grava-se daí o CD, que será levado às emissoras de rádio para ser distribuído e executado. �“É uma negociação que pode depender de promoções com o artista, sua agenda de shows e uma série de outros fatores�”.

Todos têm metas a serem alcançadas. As de Viriato chegam mensal-mente e servem tanto para divulgação, quanto para venda. Para atingi-las, ele garante que mantém contato constante com os responsáveis

113. Entrevista ao grupo de pesquisa em 03/2007.

114. Entrevista ao grupo de pesquisa em 06/2008.

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pela seleção das músicas que vão compor a grade de programação das emissoras, fazendo visitas cordiais e atendendo a todos no instante em que é solicitado. Aqui em Belo Horizonte, Viriato é responsável pelas rádios BH FM, do Sistema Globo de Rádio, Alvorada, Transamérica, 98 e Rádio Inconfidência, mas a divulgação do trabalho, que inclui assesso-ria de imprensa e promoções em TV, é toda feita em São Paulo.

O monitoramento da execução das músicas pelas emissoras de rá-dio, realizado pela empresa Crowley, tem função dupla. Por um lado, serve como parâmetro para negociação com as rádios que, porventura, não estejam tocando de acordo com o interesse e a necessidade mer-cadológica da gravadora. Por outro lado, é um instrumento de pressão da gravadora. Afinal, se o artista não corresponde às expectativas da empresa no que diz respeito ao número de vezes em que a música é exe-cutada na rádio, o prejuízo é grande, pois houve um alto investimento e o retorno esperado teria que ser alcançado. Atualmente, a EMI tem em seus quadros cantores como Jorge Vercillo, Charlie Brown Júnior e Diogo Nogueira, além dos mineiros Milton Nascimento e Marina Machado.

Universal MusicAté 2007, as tarefas na Universal em Minas Gerais eram divididas. Havia um divulgador, um representante comercial para a capital e outro para o interior. Em 2008, a exemplo do que aconteceu com a EMI, todas essas funções se concentraram nas mãos de um único profissional: Sílvio Antônio de Moraes, que está há 30 anos na mesma gravadora. A Universal não tem mais a sala onde funcionava, em 2008, localizada na Avenida Afonso Pena, bem no coração da cidade. Hoje, Sílvio tem o seu escritório em casa mesmo. �“Passo a maior parte do meu tempo levando meu produto para as rádios. Minha missão é transformar a música lan-çada pela gravadora em um produto conhecido mundo afora.�”115

Os selos independentes e o grande número de artistas por eles re-presentados trouxeram duras consequências ao mercado fonográfico, entre elas a dificuldade para emplacar músicas no ranking das mais tocadas em emissoras de rádio. Percebe-se que não tem sido nada fácil conseguir esse espaço, mesmo que seja para um artista consagrado. Se antes se lançava uma música qualquer de um grande artista com

115. Entrevista ao grupo de pesquisa em 06/2008.

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a certeza do sucesso, hoje as gravadoras lançam muitos produtos e o mercado não assimila tudo que é disponibilizado. Convencer o radialis-ta a �“comprar�” um produto é tarefa árdua, mas, segundo Sílvio, é uma via de mão dupla, pois a rádio precisa tocar o sucesso, já que se torna impossível programar apenas aquilo que é de catálogo, ou seja, com-posições do passado. O rádio busca audiência e, para obter os índices exigidos, precisa tocar o sucesso atual. Segundo Moraes, esse sucesso é a fusão entre o bom artista e a boa música, opinião que contraria a forma de pensar de João Bosco Leite, antecessor de Moraes na Universal e que hoje trabalha em outra gravadora. Para Leite, só o nome de um artista, hoje, não faz mais sucesso. �“O que faz sucesso é a música. O mais importante para o radialista é o produto final. Tem radialista que não quer nem saber de quem é o produto. Ele quer saber se a música é boa. Se for condizente com a programação dele, ele toca, senão, ele não toca�”, explica.

Sílvio Moraes afirma que na Universal não existe a prática do jabá ou jabaculê, expressão que no meio radiofônico significa gorjeta, gra-tificação ou dinheiro utilizado para �“convencer�” alguém a tocar uma música em emissoras de rádio. �“A palavra é inapropriada para definir algo que realmente fazemos e que se chama promoção. Todo mundo utiliza esta ferramenta quando tem que mostrar um produto para al-guém. É uma estratégia de convencimento, para que as pessoas saibam qual é o produto mais vantajoso�”,116 diz ele. A estratégia à qual se refere o divulgador está relacionada ao sorteio de brindes, tais como bonés e camisas, entre outros, para os ouvintes da emissora, por ocasião do lan-çamento de determinado CD. �“Eu faço a distribuição dos CDs na rádio. E um gerente faz o contato com a emissora. O jabá é coisa do passado�”, revela Moraes. Ele diz ainda que a preocupação hoje é com o presente: é com a pirataria, responsável por quase 45% da queda das vendas de CDs. Moraes conta que a venda de fonogramas musicais pirateados traz resultados negativos tanto para as gravadoras, quanto para as lojas que comercializam os produtos originais. �“Muitas lojas desse segmento acabaram fechando suas portas, pois os prejuízos têm sido enormes nos últimos anos�”. Os principais artistas da Universal são Ivete Sangalo, Cláudia Leite, César Menotti e Fabiano, Rio Negro e Solimões e Zeca Pagodinho, entre outros.

116. Idem.

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Sony Music Entertainment IncA Sony, que tem sua sede brasileira no Rio de Janeiro, é resultado da fusão de duas gigantes do mercado fonográfico internacional. A em-presa se associou à gravadora BMG, em 2004, criando a joint venture Sony-BMG. Em 2008, a Sony anunciou a conclusão de um acordo de compra dessa segunda gravadora e a marca BMG desapareceu do mer-cado, com a empresa resultante passando a ser denominada Sony Music Entertainment Inc. (SMEI).117

O escritório regional em Belo Horizonte também funciona na casa do próprio divulgador da gravadora, Carlos Alberto Capurucho, que tra-balha no setor há quase 30 anos. Além dele, a empresa conta com um representante de vendas, responsável pela capital mineira e interior.

De acordo com Capurucho, a tecnologia é forte aliada para ganhar tempo na hora de fazer a divulgação dos produtos: �“Muitos trabalhos são apresentados pela gravadora às emissoras de rádio via internet para adiantar sua chegada até o destino�”.118 A ideia é que a Sony se beneficie da tecnologia ao adaptar-se à nova realidade do mercado. A digitalização do processo de divulgação dos fonogramas, no entanto, não faz com que as mídias tradicionais como o CD e o DVD sejam dei-xadas de lado.

De acordo com Capurucho, a sua rotina de trabalho é como a de qualquer divulgador, especialmente diante desse quadro imposto pela pirataria de CDs. �“É dedicação exclusiva. É um trabalho de corpo a cor-po para levar ao conhecimento das emissoras o lançamento de nossos artistas, para que elas se dediquem mais na execução da música x ou y. A partir de então, vamos ter reflexos no aumento das vendas e, conse-quentemente, na quantidade de shows contratados�”.

Para ele, o jabá não existe, nem nunca existiu, mas a resposta vem acompanhada de um sorriso. Capurucho afirma que é obrigação de uma emissora de rádio tocar a boa música. Os principais artistas da Sony Music são Zezé de Camargo e Luciano, Bruno e Marrone, Skank, J. Quest, Capital Inicial, Ana Carolina e Adriana Calcanhoto, entre outros.

117. Sony compra 50% restantes da gravadora Sony BMG por US$ 900 mi. Disponível em http://tecnologia.terra.com.br/interna/0,OI3054781-EI4795,00.html. Acesso em 5/08/2008.

118. Entrevista ao grupo de pesquisa em 07/2008.

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Gravadoras independentesDos cerca de cem sócios da Associação Brasileira da Música Independente (ABMI) listados no website da entidade, apenas um está localizado em BH. A gravadora é a Sonhos e Sons, que representa artistas mineiros como Marcus Vianna e Sagrado Coração da Terra. Além dela, levanta-mento preliminar realizado pelo nosso grupo de pesquisa entre pro-dutores culturais e profissionais do mercado fonográfico, mostrou que há, pelo menos, outras quatro gravadoras regionais com sede em Belo Horizonte: Cogumelo Discos e Fitas, Do Brasil Projetos e Eventos Ltda, Lapa Discos Ltda e Navegador Produções Fonográficas. É provável que muitas outras gravadoras independentes atuem em Belo Horizonte e apareçam em pesquisa posterior. O mercado fonográfico independente, em Minas Gerais, é considerado efervescente e promissor pelo produtor Rubem di Souza: �“Para mim é maravilhoso. Belo Horizonte é uma cidade que tem um movimento musical muito presente. (...) Tudo isso é inde-pendente e só acontece no planeta Minas�”.

Cogumelo Discos e FitasA Cogumelo Discos e Fitas conta com cinco funcionários que trabalham em uma loja alugada no centro de Belo Horizonte. Ali, são realizadas as atividades relacionadas às áreas administrativa, jurídica e de marke-ting. A atividade-fim da empresa é praticamente toda terceirizada, ou seja, produção, criação, gravação, fabricação e distribuição do material fonográfico.

A Cogumelo foi fundada em 1980, como uma loja de discos. Cinco anos depois, passou a abrigar a Cogumelo Records, a partir do lança-mento do LP do Sepultura e do Overdose, com um lado do disco para cada banda.119 Tem em seu catálogo artistas de todos os estilos mu-sicais, com destaque para a música underground, heavy metal, punk e hardcore. O administrador João Eduardo de Faria Neto,120 responsável pelo marketing da Cogumelo, explica que a empresa já recebeu prêmios como o Top of Mind, promovido pelo jornal Gazeta Mercantil, em 1996. Mas, segundo João Eduardo, o prêmio não foi significativo para reforçar

119. http://www.cogumelo.com/portuguese/gravadora.htm Acesso em 30/06/2008.

120. Em questionário respondido, por e-mail, ao grupo de pesquisa. Recebido em 04/2007.

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a imagem institucional da Cogumelo junto aos clientes, como era espe-rado pela equipe.

A rotina de fabricação dos CDs e de outros produtos comercializados pela empresa envolve relações com outros Estados. De Manaus chegam os produtos fonográficos já fabricados e um distribuidor do Paraná se responsabiliza por abastecer os pontos de venda em todo o país. A in-ternet possibilita a conexão de Belo Horizonte com o mundo e as ven-das para o exterior são realizadas pelo escritório central, via web. É por meio da internet também que se faz a comunicação interna e externa da gravadora.

O diretor financeiro da empresa, João Eduardo de Faria Filho,121 in-forma que a Cogumelo utiliza equipamentos analógicos e digitais em suas produções atuais. Por causa da falta de segurança na internet, a empresa mantém um site institucional desde 2000. Ele explica que par-te do acervo musical é disponibilizada pelo site www.imusica.com.br e que a Cogumelo está acompanhando de perto as mudanças tecnológi-cas do setor. Ele revela dois trunfos na atuação da gravadora: a remas-terização, em CD, de clássicos da música underground, e a retomada da produção de LPs a partir de 2008. O fato de trabalhar especialmente com música underground exige estratégias diferenciadas da gravadora. A Cogumelo reconhece que esse tipo de música não encontra espaço nas emissoras de rádio tradicionais. Por isso, a mídia escolhida pela em-presa para divulgar os produtos por ela representados é composta por revistas segmentadas, como fanzines e webzines. Shows realizados pela própria gravadora divulgam e promovem os artistas em Belo Horizonte, em outras cidades e até mesmo em outros Estados.

Do Brasil Projetos e Eventos LtdaEm 12 anos de existência, a gravadora Do Brasil coleciona alguns prêmios, que reforçam a credibilidade da empresa no mercado mineiro. Entre os prin-cipais estão o terceiro lugar no Prêmio Visa 2003, Prêmio Tim para Vander Lee e melhor cantora do Troféu Faísca e semifinalista do Prêmio Visa, em 2002, para Alda Rezende. O mais recente é o prêmio de Melhor Disco de Música Popular de 2007 pela Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA), concedido a Fernanda Takai pelo disco Onde brilhem os olhos seus.

121. Entrevista ao grupo de pesquisa em 07/2008.

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Vinte e quatro funcionários �– produtores artísticos, artista gráfico, secretária e office-boy, entre outros �– trabalham em casa alugada no bairro Santo Antônio, na zona Sul de Belo Horizonte. O fluxo de pro-dução se dá a partir da seleção do repertório musical do artista, da definição da equipe, com produtor musical, e do estúdio de gravação, além da geração do código ISRC122 para o controle dos direitos auto-rais. Em seguida, se dão a mixagem (processo ou resultado de combinar vários canais de som, amplificados e/ou gravados separadamente), a masterização (prensagem de discos fonográficos) e o planejamento de lançamento do CD. Para a divulgação do produto, a Do Brasil utiliza ferramentas convencionais como assessoria de imprensa, contatos com emissoras de rádio, internet e distribuição de flyers.

A publicitária Patrícia Ferreira Tavares, fundadora e sócia-diretora da Do Brasil, aposta no processo de digitalização da indústria fonográ-fica. Ela afirma que a empresa está atenta às novidades e vem imple-mentando novas estratégias de divulgação dos cantores após a chegada de ferramentas como a internet e o Ipod. Por outro lado, a publicitária faz questão de lembrar que a ética tende a ser ameaçada em função de algumas facilidades para se capturar músicas da internet. �“O merca-do, no momento, não tem ética, tentamos disponibilizar para as pes-soas escutarem o CD ao invés de baixá-lo na internet, mas é realmente difícil�”,123 admite.

Lapa Ação Cultural LtdaDuas empresas formam a Lapa Ação Cultural Ltda. A primeira delas foi fundada há 20 anos, a Lapa Discos, que é gravadora de discos e editora de livros infantis. A segunda, a Lapa Multishow, é uma casa de eventos culturais e artísticos, inaugurada há 10 anos. Ambas funcionam no bair-ro Santa Efigênia, zona Leste da capital mineira, em um galpão alugado, de importante valor simbólico para os profissionais da área cultural. No local, funcionava o antigo cine Santa Efigênia.

A Lapa Discos tenta um trabalho diferenciado das outras gravadoras mineiras. De acordo com o diretor da empresa, Guilardo Veloso,124 que

122. International Standard Recording Code (Código Internacional de Normatização de Gravações).

123. Entrevista ao grupo de pesquisa em 03/2007.

124. Entrevista ao grupo de pesquisa em 03/2007.

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atua como produtor artístico, a Lapa busca valorizar a música folclórica e regional. Ela chegou a ter vários funcionários e vendedores nas principais capitais brasileiras, mas os custos de manutenção da empresa a levaram à terceirização de serviços. Atualmente a Lapa não representa cantor al-gum, mas lançou, nos últimos anos, 22 discos de catálogo. A produção da empresa está parada no momento. O período de jejum na produção fonográfica é atribuído pelo diretor da Lapa Discos à crise conjuntural.

Navegador Produções Fonográficas A Navegador se desdobra em duas empresas: a Navegador Estúdio, criada há sete anos, é um estúdio de gravação que cuida de todo o processo de produção do disco. A Navegador Música, criada há cinco anos, é a responsá-vel pela distribuição, comercialização, promoção e divulgação dos artistas. A sede da Navegador Estúdio é uma casa própria, que fica no bairro Padre Eustáquio, região nordeste da capital mineira. Já a Navegador Música fun-ciona em uma casa alugada, na região central de Belo Horizonte.

Na Navegador Música, quatro profissionais realizam a comunicação da empresa via e-mails e fazem contatos diversos, além de cuidarem dos contratos e do gerenciamento de uma editora, que funciona como um banco de músicas. O artista que vai gravar um trabalho, mas não tem repertório próprio, pode fazer uso desse banco de músicas elaboradas por um compositor contratado. O fluxo de produção de um disco pela empresa leva de dois a três meses e o processo de divulgação consome de seis meses a um ano, dependendo da capacidade de investimento do artista.

O diretor artístico da Navegador, Eduardo Toledo, fundador das em-presas, explica que as gravações são realizadas em sistema digital, haven-do, inclusive, a utilização de unidades portáteis quando se faz necessário. �“A vantagem do digital é que te permite recursos de edição mais sofistica-dos do que o analógico. Por isso, hoje, eu só gravo com digital�”,125 afirma. Eduardo Toledo lembra, no entanto, que antes de se pensar em aparatos tecnológicos, é preciso ter bons equipamentos, como microfones, além de bons músicos e bons instrumentos musicais.

O mercado fonográfico brasileiro teria se tornado um feudo nas pa-lavras do diretor da Navegador. Ele explica que a cobrança em dinheiro

125. Entrevista ao grupo de pesquisa em 03/2007.

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por algumas emissoras de rádio para tocar determinadas músicas in-viabiliza o lançamento de novos artistas. Ainda assim, o caminho para a divulgação dos artistas são as promoções em rádio: �“No interior, se você quer tocar uma música, tem que dar um aparelho de DVD para a emissora. Há emissoras em São Paulo, por exemplo, que pra você tocar lá, fechar uma promoção por três meses, tem que pagar 60 ou 70 mil reais. Se aparece artista novo, ou é filho de artista ou é filho de rico.�” Uma das sócias da Navegador, Cristiane Abreu,126 diz que a empresa tem procurado alternativas para se diferenciar no mercado. �“Estamos apostando no fortalecimento da equipe e abrindo novos espaços como a criação de uma emissora na web .�”127

Sonhos & SonsO selo independente Sonhos & Sons, criado pelo músico Marcus Vianna, em 1982, tem sede no bairro Serra, zona Sul de Belo Horizonte. De acordo com a gerente comercial da empresa, Laura Teatini Viana,128 a Sonhos & Sons conta com 14 funcionários e se divide em duas áreas: estúdio (para gravação, mixagem e masterização) e distribuição de CDs. �“Atualmente, nossa demanda maior tem sido a elaboração de projetos para captação de recursos previstos na Lei de Incentivo à Cultura.�”

Além do compositor Marcus Vianna, o selo Sonhos & Sons é utilizado por artistas como Celso Adolfo, Geraldo Vianna, Tadeu Franco, Rubinho do Vale e o Grupo Uakti. Entre as trilhas sonoras da gravadora, o desta-que é para as produções televisivas Pantanal, Chiquinha Gonzaga, Terra Nostra, Aquarela do Brasil, O Clone, A Casa das Sete Mulheres, Olga e Filhas do Vento. O repertório da gravadora traz, ainda, músicas infantis, rock progressivo, música instrumental e colonial erudita.129

Considerações finaisPelo menos dois fenômenos provocam mudanças no mercado fonográfi-co mundial, com consequência, como não poderia deixar de ser, para as

126. Entrevista ao grupo de pesquisa em 07/2008.

127. www.delaswebradio.com.br

128. Entrevista ao grupo de pesquisa em 07/2008.

129. Cf site www.sonhosesons.com.br. Acesso em 06/2008.

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empresas que atuam em Minas Gerais: a pirataria e a internet. O Estado conta hoje com escritórios regionais de três das maiores empresas da indústria fonográfica mundial: EMI Music, Sony Music, e Universal Music. Todas têm estrutura física modesta, com poucos funcionários, geralmente um divulgador experiente que também é o representante comercial, e utilizam poucos recursos tecnológicos como ferramenta de trabalho. Entre as atividades constantes, estão a divulgação e a promo-ção dos artistas e das músicas, o relacionamento com as emissoras de rádio e o monitoramento das músicas tocadas nas emissoras por meio de uma empresa terceirizada, além da participação em shows dos artis-tas contratados. A internet é a ferramenta utilizada tanto para o envio de material às rádios quanto para o acompanhamento da execução das músicas pelas emissoras.

As gravadoras consideradas independentes encontram nichos de mercado para trabalhar no Estado. Registramos as atividades de pelo menos cinco delas em Belo Horizonte: Cogumelo, Do Brasil, Lapa, Navegador e Sonhos & Sons. Algumas se dedicam à música underground, como a Cogumelo, enquanto outras buscam valorizar a tradição minei-ra, como a Lapa. Por questão de sobrevivência, uma parece não atuar no segmento da outra. A terceirização foi o caminho encontrado pela Cogumelo e pela Lapa para garantir a produção e a industrialização de fonogramas musicais. Outras, no entanto, como a Navegador e a Sonhos & Sons, realizam todas as fases do processo de produção.

As grandes gravadoras não admitem, mas as pequenas enfrentam com frequência a tentativa de algumas emissoras de rádio de garantir recursos financeiros, o chamado jabaculê, para que determinados ar-tistas tenham espaço na programação. Por isso, como o próprio nome indica, as independentes costumam buscar formas alternativas de di-vulgação de suas produções.

Multinacionais e independentes se adaptam à nova realidade do mercado, lidando com a pirataria física e eletrônica, além de se moder-nizar para a geração de conteúdo digital. Algumas, como a EMI Music, lançam produtos exclusivamente on-line, sem a produção de CDs, con-firmando tendência apontada pela Associação Brasileira de Produtores de Discos (ABPD).

O registro da memória das gravadoras, especialmente das multina-cionais, praticamente inexiste em Minas Gerais. Como parece não haver preocupação com o resgate dos fatos que marcaram a trajetória dessas

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empresas, a história da indústria fonográfica em Minas tem passado despercebida, sem informações escritas ou audiovisuais. O pouco que se tem está na lembrança dos profissionais mais antigos no ramo.

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TRAJETÓRIA DA INDÚSTRIA FONOGRÁFICA NA BAHIA

Ayêska Paulafreitas

Este trabalho tem por objetivo apresentar um panorama da indústria fonográfica no estado da Bahia, situando-a no contexto nacional e mun-dial. Para tanto, abrange um período que inicia em 1960 �– com a criação da Gravações JS e do selo JS Discos, pioneiros e únicos até 1975 �– e che-ga à cena independente atual, na qual se encontram inúmeros selos e editoras, alguns criados para atender a um único artista ou segmento musical. Destaca-se a atuação dos Studios WR e do produtor Wesley Rangel, responsável pelo lançamento da maior parte dos artistas de sucesso da música baiana nas décadas de 1980 e 1990.

Salvador, anos 60 Desde a segunda metade da década de 1950, na esteira do desenvolvi-mentismo do governo JK, a cidade do Salvador vivia em ebulição cultu-ral. O reitor Edgard Santos, da Universidade da Bahia, compreendendo a vocação artística da cidade, criou os Seminários de Música (1954), para onde o maestro Kollreuter levou a dodecafonia; a Escola de Dança (1956) que viria a ser o primeiro curso superior de dança no Brasil, co-ordenado pela polonesa Yanka Rudzka, uma das pioneiras na dança mo-derna mundial; e a Escola de Teatro (1956), dirigida por Eros Martim Gonçalves, que contava com professores do Actor�’s Studio. Somando-se à antiga Escola de Belas Artes,130 esses cursos atraíam gente de todo

130. Criada em 1877 por Miguel Navarro y Cañizares e incorporada à Universidade por Edgard Santos em 1948.

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o país para uma cidade que começava a se modernizar e apostava na cultura �– nessa época surgiram, por exemplo, o Museu de Arte Popular, o Teatro Castro Alves e o cinema novo de Glauber Rocha. Em 1960, Salvador contava com cinco grandes jornais diários (A Tarde, Jornal da Bahia, Diário de Notícias, Estado da Bahia, Diário da Bahia), três emisso-ras de rádio (Rádio Sociedade da Bahia, Rádio Excelsior, Rádio Cultura)131 e preparava-se para receber sua primeira emissora de televisão, a TV Itapoan, inaugurada em novembro de 1960.

A década em que estourou a ditadura militar foi também a que re-velou nacionalmente os baianos Caetano Veloso, Gilberto Gil, Maria Bethânia, Tom Zé, Gal Costa �– os tropicalistas que saíram em busca do sucesso no eixo Rio-São Paulo. Mas permaneceram na Bahia artistas representativos da música local, alguns dos quais lançados nacional-mente nos festivais que marcaram a década. O principal espaço para divulgação do trabalho dos que ficaram eram as rádios locais e a TV Itapoan.

Gravações JSTrês meses antes da inauguração da TV, em agosto de 1960, o radia-lista e músico Jorge Santos,132 atento ao mercado que surgiria, criou a Gravações JS, que viria a ser a primeira gravadora e o primeiro selo mu-sical da Bahia, o JS Discos �– na época, só havia uma gravadora em todo o Norte-Nordeste: a Mocambo, em Pernambuco (Sousa; Maranhão Filho,

131. As emissoras de rádio apresentavam musicais com cantores nacionais e interna-cionais, acompanhados por pequenos conjuntos ou por grande orquestra com cordas e sopros, e revelaram artistas que permaneceram por muito tempo no cenário do show e do disco. Alguns migraram para a TV Itapoan que, como outras dos primórdios da televisão brasileira, apostou nos grandes musicais, a exemplo do Escada para o Sucesso, coman-dado por Nilton Paes, no qual foram revelados nomes como Maria Creuza e Tom Zé �– que subiu a escada por conta de uma música chamada �“Rampa para o Fracasso�”. José Jorge Randam, apresentador da televisão baiana, apresentava, em parceria com Jorge Santos, o programa J & J Comandam o Espetáculo, levado ao ar aos sábados, das 17:00 às 18:30, destacando-se um quadro de calouros chamado �“Céu ou Inferno�”.

132. Em 46, quando era aluno da Escola de Música do maestro Pedro Jatobá, Jorge Santos estreou no programa Caderno de Música, da Rádio Excelsior, onde acabou comandando um programa de auditório. Depois trabalhou na Cultura e na Sociedade e dirigiu a Piatã FM. Fundou em Salvador um sistema de música funcional, o Musifam �– Música Funcional Ambiente, por linha telefônica. A sua entrada no meio publicitário tem início nos anos 40, quando foi fazer teste para locutor da Rádio Excelsior, e Reinaldo Moura, o locutor-chefe, lhe disse: �“Você passou no teste, mas você só vai sentar na cabine pra ser locutor se vender anúncio�” (Santos, 2004).

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2007). Em seguida, junto com José Jorge Randam, criou a Publicidade Chama, agência produtora de comerciais que nasceu para atender à TV Itapoan e veio a ter uma filial em Sergipe: a Chama Aracaju.

Como a publicidade da época, quando não era feita ao vivo com garotas-propaganda, reproduzia o modelo radiofônico porque não havia videotape,133 Jorge Santos só precisava de um pequeno estúdio de gravação, e a JS funcionou inicialmente em uma sala de apenas 20 metros quadrados e sem ar refrigerado, por isso apelidada de �“estúdio de ar comprimido�”, no quinto andar do Edifício Sulacap, localizado na confluên cia das ruas Carlos Gomes e Sete de Setembro, bem defronte à Praça Castro Alves, centro da cidade. O equipamento restringia-se a uma mesa Supersom, fabricada em São Paulo, um gravador importado Ampex 600 de 4 canais, uma máquina de gravar acetato americana, marca Rek-O-Cut, e microfones Newman. Em 1964, a JS passou a ocu-par todo o terceiro andar do Edifício Martins Catharino, situado numa transversal da rua Chile, então o lugar mais chique da cidade, tornan-do-se capaz de acolher uma orquestra com 20 músicos. Recebeu trata-mento acústico, planejado e executado pelo engenheiro Jorge Coutinho, e teve como técnicos Américo Ribeiro e Djalma Bahia, sendo que este último trabalhou na empresa por cerca de 15 anos, até o encerramento das atividades, em 1982.

A expansão física da JS foi resultado do crescimento e diversificação da produção: além das locuções de spots, começaram a gravar jingles, o que abriu as portas para músicos, cantores e compositores, como aquele que chegou �“com uma sanfona debaixo do braço e o talento dos escolhidos por Deus: Gilberto Gil. Foi então que apareceram jingles deliciosos, um dos quais, da Calba, teria tudo para ser preservado, como memória�” (Berimbau, 2004).134 A passagem do jingle para a música se deu naturalmente:

133. Segundo Fred Souza Castro (2007), diretor da TV Itapoan nos seus primeiros anos, a publicidade veiculada, com produção local, era feita ao vivo ou com imagens em still e áudio em off, no formato do spot radiofônico. Os slides que surtiam melhor efeito na tela da TV eram os produzidos com letras amarelas em fundo preto, que ajudava a �“descolar�” as letras, dando a impressão de que saltavam. Raramente exibia-se um filmete, mas este não era produzido na Bahia.

134. �“Você pensava que fosse impossível/Mas afinal seu calçado chegou/ É mais durável, pois é flexível/ É bossa nova que a Calba criou�” �– era a letra do jingle. Mas, além dos Calçados Calba, havia outros clientes assíduos: lojas O Cruzeiro, Milisan, Polígono Filmes, Fratelli Vita, Casa Alberto, Laranja Turva, Envelopes de Ouro.

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O estúdio, às tardes, era uma maravilha. Pra ganhar dinheiro, eu tinha o estúdio, de manhã, para propagan-da. À tarde, a gente se via. Lacerda ia pra lá, ficava no piano, batendo, batendo, batendo... E tinha Tom e Dito, tinha toda uma raça bonita lá dentro. (Santos, 2004)

Nessa época, a música não era compreendida como um produto com valor de mercado, como o jingle, e a JS era também ponto de en-contro de artistas. Além do maestro Carlos Lacerda e do Trio Inema, que se transformou na dupla Tom & Dito após a saída de Douglas, gra-vavam na JS a cantora Maria Creuza, a dupla Antonio Carlos e Jocafi (depois famosa com a música Você Abusou), José Emmanuel, Ilma Gusmão, Luis Berimbau, Aloísio Silva, Ivan Reis, Oswaldo Fahel, Diana Pequeno, Carlos Gazineo, Celeste, Claudete Macedo, Gilberto Batista, José Canário, Odraude Silva, Antônio Moreira, Fernando Lona, Trio Xangô, As Três Baianas; os músicos Fernando Lopes, Tuzé de Abreu, Kennedy, maestro Chachá (Alberto Aquino), Perna Fróes, Jessildo Caribé, Toninho Lacerda, Cacau do Pandeiro, Vivaldo Conceição, Alcyvando Luz, Carlinhos Marques, Tom Tavares, Hermano Silva, Geraldo Nascimento, Perinho e Moacir Albuquerque, Edil Pacheco, Ederaldo Gentil, Walter Queiroz... Também deixaram registro os sambistas tradicionais da Bahia: Batatinha, Panela, Riachão e Tião Motorista,135 e a família de Osmar Macêdo, da dupla Dodô & Osmar que inventou o trio elétrico em 1950: a banda formada pelos filhos Aroldo, Betinho e André trazia como atração principal o caçula Armandinho.136 Outro espaço de concentra-ção de talentos eram os festivais que, a exemplo do Sudeste, também aconteciam na Bahia: Festival do Samba, Festival do Nordeste, seção Bahia de O Brasil canta no Rio, Festival de Música Popular da Bahia e outros no interior do estado, como o I Festival Regional da Canção, em Ilhéus (1968), que teve disco gravado na JS.

Nessa efervescência musical, Jorge Santos garimpava o cast da JS. Duas jovens cantoras vindas da cidade de Ibirataia, Cylene e Cynara, destacaram-se no programa Escada para o Sucesso e passaram a gravar

135. Batatinha é Oscar da Penha; Tião Motorista é Raimundo Cleto; Riachão é Clementino Rodrigues.

136. Revelação do programa A Caminho da Grande Chance (preliminar local do A Grande Chance, de Flávio Cavalcanti), Armandinho foi apontado como gênio do bandolim. Na década de 1970, criou com outros músicos a banda A Cor do Som e hoje é guitarrista mundialmente reconhecido.

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jingles. Como os grupos vocais estavam em voga, juntou à dupla a apre-sentadora Ana Lúcia e formou o trio As Três Baianas, que deu origem ao Quarteto em Cy. Com elas, Jorge Santos gravou o disco As Três Baianas cantando Gilberto Gil, em 1962, que inaugurou o selo JS Discos.

A primeira música que Gil compôs chama-se Bem deva-gar, que está desaparecida. Quinhentas cópias. E esse disco não existe. Gil acompanhou as meninas no acor-deon. Eu fiz o arranjo. Das nove músicas que ele gravou no estúdio só está faltando essa, no meu acervo só tem oito músicas. Depois eu negociei essas músicas, o direi-to do fonograma, com Marcelo Fróes, que é produtor de Gil, e recebi um presente dele espetacular. Eles pegaram as oito músicas, fizeram um CD, e quando lançaram o Baú do Gil eu recebi um CD único, com as oito músicas que foram gravadas na JS (Santos, 2004).

Nesse mesmo ano, Gilberto Gil fez sua primeira gravação como in-térprete em um 78 RPM em cera de carnaúba, com as músicas �“Coça, Coça Lacerdinha�” e �“Povo Petroleiro�”, uma homenagem de Everaldo Guedes, funcionário da Petrobras, aos colegas de profissão. Em 1963, gravou um compacto duplo em 33 RPM, Gilberto Gil: sua música, sua in-terpretação, no qual aparece como autor e intérprete de quatro músicas: �“Serenata do Telecoteco�”, �“Maria Tristeza�”, �“Meu Luar, Minhas Canções�” e �“Vontade de Amar�”. Nesse mesmo ano, saiu seu segundo disco pela JS, também em 78 RPM, com as músicas �“Decisão (Amor de Carnaval)�”, de sua autoria, e �“Vem Colombina�”, de Silvan Castelo Neto e Jorge Santos.

A JS era uma extensão da TV Itapoan, que foi responsável pela re-velação de praticamente todos os artistas da música surgidos naquela década. Ali, os talentos locais tinham oportunidade de encontrar ar-tistas vindos �“do Sul como Elis Regina, Jair Rodrigues, Silvio Caldas, Clara Nunes, Lana Bittencourt, Gregório Barrios e muitos outros, nos dava a oportunidade de comparar nosso valor, sentíamos quase sempre que estávamos no mesmo nível, entretanto, estávamos na Bahia�” (José Emmanuel, 2004). Estar na Bahia significava não ter acesso às gravado-ras, à divulgação, ao sucesso.137

137. Em seu lugar de origem, a música baiana sofria preconceito: �“Um dia apresentei a Lacerda, que era diretor musical, o Trio Inema, ele os colocou no programa, iriam cantar uma música minha. Miranda Filho [diretor da emissora] não gostava nem permitia que cantássemos músicas da Bahia desconhecidas, e quando perguntaram a eles de quem era

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Embora tenha dado o pontapé inicial no disco baiano e registrado em fonogramas os primeiros passos de artistas que chegaram a ter re-conhecimento nacional, a JS não foi adiante, segundo José Emmanuel, porque

Não havia divulgação, não havia um planejamento com as rádios para divulgação, mesmo sendo um ho-mem de rádio também, não acontecia nada, o próprio artista ia pedir às rádios para tocar o disco, nenhuma distribuição ou muito pouca era feita pela gravadora. (...) Teve que chegar a WR para dar início ao processo. (Emmanuel, 2004)

Studios WRNo que se refere à gravação de música e à existência de um selo, a JS foi pioneira e, durante toda a década de 1960, esteve sozinha no mer-cado de gravações da Bahia,138 mas em 1975 o administrador Wesley Rangel instalou um novo estúdio no edifício A Tarde, na Praça Castro Alves, para atender ao mercado publicitário.139 Até o início da década de 1980, a quase totalidade da produção dos Studios WR Gravações e Produções era de jingles para rádio e TV, com algumas raras exceções: os discos São Jorge dos Ilhéus, de um grupo de instrumentistas lidera-dos por Saul Barbosa; a música caatingueira de Ubiratan; Os Ingênuos; Osmar Pinheiro; Josmar Assis; Sertania: Sinfonia do Sertão (1983), de Ernest Widmer e o experimentalismo de Walter Smetak.

Para atender ao mercado de jingles, Rangel mantinha uma banda de estúdio, cuja base era formada por Toninho Lacerda nos teclados e arranjos, Carlinhos Marques no baixo e Leléu na bateria. Aos poucos a banda foi ampliando-se, com os vocalistas Silvinha Torres e Paulinho

a música, eles disseram que era de Vinicius de Moraes, assim cantaram �‘Menino do Acaçá�’ várias vezes sem problema. Lacerda se divertia�” (José Emmanuel, 2004).

138. Há notícia de gravações de jingles para campanhas políticas em estúdio de emissora de rádio no Centro Histórico de Salvador: �“Nós fizemos uma gravação, e não foi pra cá. Foi uma gravação pra político. Música. Era Leandro Maciel, que era sergipano. O maestro foi Aurindo, o saxofonista que toca com Roberto Carlos, ele vive no Rio. Eu me lembro que Deny Moreira estava cantando�” (Cacau, 2004).

139. A WR mudou-se depois para uma casa na rua Manoel Barreto, bairro da Graça, e hoje tem sede própria, com vários estúdios, na rua Maestro Carlos Lacerda Garibaldi, bairro do Rio Vermelho.

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Caldas, que trouxeram o guitarrista Luiz Caldas e a cantora Sarajane. Com a morte de Leléu em 1982 e a de Toninho Lacerda em 1984, a ban-da ganhou nova formação: �“Carlinhos no contrabaixo, guitarras Luiz Caldas (e vocais), Silvinha e Paulinho Caldas nos vocais, Toni Mola e Carlinhos Brown na percussão, Cesinha na bateria e Alfredo Moura re-vezando com Luizinho Assis nos teclados�” (Rangel, 2004). Era pratica-mente a banda Acordes Verdes, criada por Luiz Caldas.140

No início dos anos 80, a WR já havia lançado, com festa no Circo Troca de Segredos, o compacto Luiz Caldas e Acordes Verdes que tinha, no lado A, a música �“O Beijo�” (Acordes Verdes); no lado B, �“Como um Raio�”, uma canção em homenagem ao jogador de futebol Osny. Em 1984, Rangel iniciou as experiências com a ban-da de estúdio: gravou �“Mrs Robinson�”, em dueto de Luiz e Paulinho Caldas, �“Nouai�” e o reggae �“Visão do Cíclope�”,141 estas na voz de Luiz Caldas,142 e mandou em fita demo para as rádios. Nessa época, rádio baiana não tocava música baiana, mesmo porque a produção fonográfica local era praticamente inexistente desde que a JS fechara as portas em 1982. A programação era majoritariamente de música estrangeira romântica, à exceção da Educadora FM que, embora tivesse por slo-gan �“Só dá Brasil�”, fazia uma programação seletiva, que excluía segmentos populares como a música brega e a de carnaval. Mas na Itapoan FM, o experiente radialis-ta Cristóvão Rodrigues, atuante em rádio e TV, decidiu arriscar e expô-las ao público. Até então, a identidade

140. Nessa época houve uma certa mistura entre a Acordes Verdes, criada e batizada por Luiz Caldas em 1980, que se apresentava no trio elétrico Tapajós, e a banda de estúdio da WR, formada e contratada por Rangel. A maioria do músicos integrava uma e outra, e ambas sofreram mudanças em suas formações. A Acordes Verdes aliava a sonoridade de trio elétrico �– duas guitarras baianas e baixo �– às composições de artistas locais, que se inspiravam no movimento de corpo do próprio público e nos fatos do cotidiano de bairros populares. Tinha influências de outras bandas, especialmente a Chiclete com Banana, e de compositores da geração anterior, como Moraes Moreira e Caetano Veloso, que deram importantes contribuições ao carnaval baiano. Mas a banda de estúdio, dirigida por um empresário, estava voltada para o mercado e visava ao lucro.

141. �“Mrs Robinson�” (Paul Simon, 1968); �“Nouai�” (Val Macambira e Enzo); �“Visão do Cíclope�” (Jéferson Robson, Carlinhos Brown e Luiz Caldas).

142. Segundo Carlinhos Marques (2005), �“Luiz Caldas já era um personagem de destaque no [trio elétrico] Tapajós, como band leader, guitarrista e cantor, seguindo a trilha de Moraes Moreira�” e puxando o bloco Beijo com a banda que nominara de Acordes Verdes.

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da nova música baiana, aquela que viria a ser batizada por axé music, ainda não havia se constituído, mas, no carnaval de 1984, tocava nas barracas de rua a lambada �“Quero Você�”,143 um grande sucesso popular, e Rangel percebeu que a sensualidade daquela música chamava mais atenção do que o trio elétrico que passava com aqueles frevos tocando. Era mais sensual, era mais... era bom de paquerar, era mais... era bom de você dançar, de brincar o carnaval. Então, as pessoas da barraca, elas se deliciavam com essas músicas. Aí foi que eu pensei: vamos começar a gravar o disco de Luiz Caldas e vamos começar a encontrar músicas desse gênero (Rangel, 2004).

Essa música de forte sotaque caribenho encontrava solo arado por um grupo de instrumentistas de diversas partes do mundo �– alemão, sueco, chileno, argentino e baiano �– que se reuniam para tocar salsa em um bar frequentado por jornalistas, artistas e intelectuais atraídos principalmente por sua música marcada pela sensualidade, com uma sonoridade diferente, piano e sopros tocando �“autêntica música caribe-nha, mas com um forte tempero baiano�”:144 era a banda que veio a se chamar Rumbahiana.

O projeto do disco de Luiz Caldas, no entanto, só foi definido com o estouro da música �“Fricote (Nega do cabelo duro)�”, primeiro na Itapoan FM, depois nas festas de largo do verão. Nas barracas da Festa de Iemanjá, a música emparelhava com �“Escrito nas Estrelas�”, hit nacio-nal na voz de Tetê Espínola. O entusiasmo do público deu a Rangel a garantia de que poderia fazer o disco Magia145 (1985), que lançaria um novo ritmo: o ti-ti-ti, e que marcaria o nascimento da axé music. Esse disco, que foi o estopim dos bons negócios da WR, curiosamente não

143. �“Meu amor / Não se esqueça de mim / Por favor, diga que sim / Eu não consigo esque-cer você / Ouça meu bem o que eu vou lhe dizer // Quero você / Quero você / Quero você / Todinha pra mim // Meu amor / Só uma condição / Pra me poder fazer você feliz / Quero ser dono do seu coração / Você é a coisa que eu sempre quis // Quero você...�” (Quero você, de Carlos Santos e Alípio Martins).

144. Cf. http://www.salsa.com.br.

145. Faixas: �“Magia�” (L. Caldas), �“Tilintar�” (L. Caldas), �“Visão do Cíclope�” (Jeferson Robson, C. Brown, L. Caldas), �“Sonho bom�” (Silvinha Torres, Paulinho Caldas, Alfredo Moura), �“Nouai�” (Val Macambira, Enzo), �“Fricote�” (Paulinho Camafeu, Luiz Caldas), �“Pinta jamai-cana�” (Edmundo Carôzo, L. Caldas), �“A vida é assim�” (Zé Paulo), �“Contramão�” (Silvinha, Alfredo Moura), �“Nara�” (L. Caldas).

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levou o selo da gravadora. O processo foi assim resumido por Carlinhos Marques:

Um fato importante: a Acordes Verdes, com a explosão de uma música que não tinha característica nenhuma, não se identificava com nada que a gente fez nos dois ou três anos anteriores, foi escolhida pra fazer parte de um disco, do selo Nova República, uma sociedade entre Roberto Sant�’Ana e Brizolinha. Resolvemos rejeitar EMI, CBS, PolyGram, Som Livre, para fazer um trabalho com uma gravadora nova, que levava o símbolo da abertura, da democracia (Marques, 2005).

Nesse início dos anos 80, época de tantas aberturas, também co-meçavam a ganhar mais espaço no carnaval os blocos afro �– blocos carnavalescos de afirmação étnica e música de base percussiva �–, e o Olodum despontava com seus tambores sob o comando de Neguinho do Samba, mostrando uma ritmia própria que atraiu músicos estran-geiros como Paul Simon e Mickael Jackson ao Brasil para gravar seus clipes no Pelourinho. Essa levada �– denominada samba-reggae �– acabou contribuindo para a formação da identidade que iria ter a nova música baiana. O disco Magia, a banda Acordes Verdes e o reconhecimento da música dos blocos afro, especialmente o samba-reggae do Olodum, de-terminaram o carnaval de 1985 como o marco histórico do nascimento de um movimento de renovação da música popular de rua batizado pejorativamente de �“axé music�” por um jornalista adepto do rock.

Então, a música baiana, ela nasce com várias influên-cias genéticas, principalmente a influência da salsa, do merengue, do carimbó, e recebe, junto com isso, essa influência dos tambores do Olodum. Então, tudo isso resultou numa música extremamente rica, do ponto de vista rítmico, de letra simples, porque surgida basica-mente no povão (Rangel, 2004).

Das ruas, a axé music foi para o programa do Chacrinha, que apa-drinhou Luiz Caldas, Sarajane146 e Zé Paulo, dando visibilidade nacional a uma música que nascia associada a uma coreografia alegre e sensu-

146. Sarajane caiu nas graças da Rede Globo e participou também de 14 programas �“Os Trapalhões�”.

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al. O rádio baiano passou, então, a tocar música baiana, dando espaço a outros artistas. Em 1991, Daniela Mercury estourou com a música �“Swing da Cor�”147 e, no ano seguinte, fez um grande show na Praça da Apoteose, no Rio, no qual a canção �“Canto da Cidade�” se consagrou. O show, transmitido pela Rede Globo, contribuiu para o acesso da mú-sica produzida na Bahia a esta e outras emissoras. Os anos 90 foram a década da axé music, mas não é possível dizer que concentrava-se na Bahia o ciclo produção-circulação-consumo. Banda Reflexus, Banda Mel, Daniela Mercury, É o Tchan, TerraSamba, Companhia do Pagode, Timbalada, Araketu, As Meninas... segundo Rangel, �“100% dos sucessos da música da Bahia iniciaram suas gravações na WR�”. No entanto, essas gravações entraram no mercado com selos de gravadoras nacionais, como a Continental, a Eldorado, a PolyGram e a Nova República, porque a WR não tinha como fazer a distribuição de seus produtos.

Novos selos e editorasAcompanhando a tendência nacional, a cena independente na Bahia se mostra bastante movimentada desde meados dos anos 90, apesar de pulverizada em diversas entidades. A Associação Brasileira de Música Independente �– ABMI (São Paulo, 2002), por exemplo, tem poucos as-sociados na Bahia: a Cooper-arte, cooperativa de artistas de diversos segmentos, e os selos Estrela do Mar, Maianga Discos, Muralha Records e Caco Discos. No entanto, a ideia da criação da ABMI nasceu na Bahia, em 1994, durante a realização do Pré-ENGAI (Encontro Nacional de Gravadoras e Artistas Independentes), que veio a ter sua primeira edição no ano seguinte, com a participação de Tarik de Souza e Fernando Brandt (Santana, 2007). Quanto às editoras, embora a Associação Brasileira dos Editores de Música �– ABEM (1973) tenha apenas seis associados baia-nos �– Caco Discos Produção Ltda, Candyall Music Produções Artísticas Ltda, Duma Criações e Produções Artísticas, Fábrica da Música, Leke Empreendimentos Artísticos Ltda e Maianga Produções Culturais Ltda �– há outros editores e selos locais.

A cena do rock, por exemplo, é bem rica e já projetou nomes como Cascadura e Pitty, hoje celebridade nacional. Na primeira edição do Tomada Rock Festival, em 2005, cinco selos (Atalho Discos, Estopim

147. Do disco Daniela Mercury, produzido pela cantora e Wesley Rangel para a Eldorado.

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Records, BigBross Records, MUV Discos e Maniac Records)148 se reuni-ram para criar a ABASIN �– Associação Baiana de Selos Independentes, que agregava a maior parte das bandas baianas independentes do seg-mento, mas em 2008 só BigBross, Estopim e MUV continuavam em ati-vidade. A Maniac, criada em 1988, manteve uma loja de discos e aces-sórios, investiu em shows e, em 1990, lançou a Mystifier, banda de black metal que se tornou cult, faliu no ano seguinte e foi reaberta em 1999; em 2001, lançou a banda Carnified e depois se tornou produtora e gra-vadora. Segundo Janotti Jr. (2004), era o único selo baiano especializado em heavy metal em Salvador e o principal responsável pela divulgação da produção local em revistas nacionais. A Estopim nasceu em 1999 para distribuir material de bandas de hardcore em Salvador e tornou-se um dos maiores selos de hardcore do país, com 15 lançamentos em CD de bandas do Brasil, Chile e Estados Unidos. Além de loja e estúdio para ensaios e gravações, realizou shows em Salvador e em 2008 inaugurou o braço virtual do selo com a banda Veredicto. A BigBross, criada em 2002 pelo produtor de rock Rogério Britto (o Big) lançou, entre outras, as bandas Soma, Brinde, brincando de deus, Zambotronic e as que foram consideradas por Castro Jr. (2009) as mais importantes de Salvador: a Ronei Jorge e os Ladrões de Bicicleta, a Cascadura �– hoje com 17 anos de estrada, quatro discos e o DVD Efeito Bogary, recém-lançado pelo selo baiano independente Pianoforte �– e a Retrofoguetes. Em 2009, os produtores BigBross, Cássia Cardoso e Theo Filho, todos com larga expe-riência em shows e festivais, se reuniram para lançar o Coletivo Quina Cultural, com o propósito de levar o festival Grito do Rock para Salvador e fortalecer a agenda no interior do estado.

Nos demais segmentos, as editoras baianas têm um cast muito re-duzido; foram criadas para proteção da autoria de obras de poucos au-tores, caso da Páginas do Mar (Daniela Mercury), Cocobambu (Durval Lelys) e Candyall Music (Carlinhos Brown). O destaque fica para a edito-ra e selo Jupará Records (1995), situada no município de Itabuna, região sul do estado, que lançou coletâneas de música regional, editou cerca de 1.300 músicas e assinou projetos de bandas e cantores de sucesso local, como Cacau com Leite e Guiga Reis, e proporciona a seus artistas divulgação no exterior: �“Já tivemos 23 inclusões de músicas nossas no

148. A Atalho lançou as bandas Autômata, Cobalto, Malcom e Mirabolix (2005), Plane of Mine e The Honkers (2006). A MUV não está presa a um estilo; lançou a banda Flauer e administra uma casa de eventos.

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programa World Chart Show, produzido em Los Angeles e transmitido por 150 rádios mundo afora. Tivemos duas faixas incluídas em coletâ-neas latinas da TM Century, de Dallas, Texas�” (Leal, 2007). A venda é feita em pequenos pontos como bancas e padarias, mas em breve será exclusivamente pela internet.

Outro selo importante é o Pelourinho, criado em 1990 pelo músico Bira Santana (um dos responsáveis pelo Festival de Música Instrumental da Bahia, 16ª edição em 2009), que segue a linha cult e tem em seu portfólio mais de 20 CDs, a maioria de conceituados artistas locais da música instrumental, como Ataualba Meirelles, Sergio Souto, Aderbal Duarte e Zeca Freitas; mas também faz resgates históricos como os da obra do maestro Lindemberg Cardoso, os poemas musicados de Castro Alves, além de uma parceria com o Itaú Cultural para integrar a caixa Cartografia Musical Brasileira. A Maianga Discos149 tem o diferencial de não se ater à produção local: criada para valorizar artistas mais autorais e fora do padrão do mercado, respondeu por CDs de Elza Soares (Do cóccix até o pescoço, 2002), Zé Miguel Wisnik, Jussara Silveira e Joatan Nascimento, além de angolanos como Paulo Flores Vivo, Wysa e Carlitos Vieira Dias.

Seguindo a tendência contemporânea de pulverização das ações, esses selos e editoras não têm estúdio próprio. Tomando como exemplo Carlinhos Brown, embora ele grave no estúdio Ilha dos Sapos, de sua propriedade, este é independente da Candyall Music; e, por ser um dos mais bem equipados da América Latina, é utilizado para gravação de produtos de outros selos, independentes ou não. Outros estúdios muito usados são o Groove (Durval Lelys), o Base, Canto da Cidade (Daniela Mercury), Clave de Sol, além da pioneira WR.

Embora a fonografia baiana registre vários selos,150 sozinhos eles não conseguem dar conta da cadeia produção-distribuição-consumo. Muitos dos que conseguiram ultrapassar as fronteiras do estado fize-

149. A Maianga Discos e a Maianga Editora Musical são segmentos da Maianga Produções e Promoções (2000), empresa do publicitário e fotógrafo Sergio Guerra que atua também como editora de livros, produtora de vídeo e promotora de shows e eventos no Brasil e em Angola. Lançou 18 CDs/DVDs.

150. Foram encontradas, ainda, referências aos selos Frangote, Plataforma de Lançamento e Torto Fono Gramas (2006), este criado para bandas �“que mesmo dentro do cenário inde-pendente fazem um som nem um pouco fácil ou popular�” (Sergio Franco Filho, in: www.bahiarock.com.br). Em 2010, Paulo Brandão, do espaço Midialouca, onde se realizam shows e venda de música independente, lançou o selo Caramuru.

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ram parcerias com majors para distribuição. A Caco Discos,151 selo e editora que lança os produtos de Ivete Sangalo, Banda Eva, Netinho, Luiz Caldas e Adelmário Coelho, tem parceria com o Canal Multishow/Globosat e a Universal Music; a Candyall Music, selo e editora criados para editar e produzir álbuns fonográficos e audiovisuais interpreta-dos, concebidos ou produzidos por Carlinhos Brown, editou centenas de músicas e lançou produtos em CD e DVD do músico e da Timbalada, distribuídos por diferentes empresas, no Brasil e em outros países; a Cocobambu Records, criada para os produtos de Durval Lelys e ban-da Asa de Águia, já teve parcerias com a Abril Music, Unimar Music, Universal e, atualmente, com a Som Livre.

Merecem registro, ainda, iniciativas sazonais que obtiveram bons resultados. Em 2001, a Rede Bahia (a mais poderosa do estado, concen-trando jornal, gráfica, sites e emissoras de rádio e TV na capital e no interior, e filiada à Rede Globo) promoveu uma ampliação do segmento rádio e criou o selo Bahia Discos e a Bahia Edições Musicais. Embora hoje esteja desativado, o selo lançou coletâneas temáticas como Rádio Bazar �– o melhor do pop-rock baiano, Forró da Lua 1 e 2, Kaya no Reggae e Bahia Mania de Pagode, com distribuição da Som Livre e vendas em supermercados. A parceria da Bahia Discos com a Som Livre se deu tam-bém em discos das bandas Timbalada e Jammil e Uma Noites.

A extinta Secretaria de Cultura e Turismo do Estado da Bahia criou dois selos em 2004: o Emergentes da Madrugada, com artistas inician-tes, e o Sons da Bahia �– que estreou com a Banda de Boca (V Prêmio Visa-2002) e lançou desde Assis Valente e Orquestra Sinfônica da Bahia até Targino Gondim e Trio Elétrico Armandinho, Dodô & Osmar.

Balanço da fonografia baianaConsiderando-se a usual divisão do mercado fonográfico em indies e majors, a indústria fonográfica na Bahia sempre restringiu-se às indies. É conhecido o fato de Gilberto Gil ter gravado apenas violão e voz da música �“Aquele abraço�” na JS, porque problemas técnicos impossibi-litaram o acréscimo de outros instrumentos, e a fita seguiu para ser complementada por orquestra no Rio, com selo da Phillips. Já a WR,

151. Criada em 2005, por Jesus Sangalo, Fábio Almeida e Alexandre Lins, integra a holding Caco de Telha, que cuida da carreira de Ivete Sangalo.

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segundo o próprio Rangel, nunca teve um selo de fato, e foi sempre uma produtora: �“as pequenas produtoras, elas faziam seus produtos, mas não tinham condições de botar no mercado. Não tínhamos dinhei-ro para prensagem, não tínhamos dinheiro para distribuição, não tínha-mos nada, então, tínhamos que estar à mercê dessas grandes gravado-ras�” (Rangel, 2004). Gravava-se na WR e o produto levava o selo de uma gravadora nacional, como a Nova República (Luiz Caldas, Gerônimo), Eldorado (Daniela Mercury), Continental (Durval Lelys, Gerônimo, Banda Mel) �– esta a que mais lançou produtos baianos.

Por certo, ambas as gravadoras baianas nasceram em função da de-manda do mercado publicitário local, mas o contexto nacional também favoreceu o surgimento da WR. Como lembra Rita Morelli (1991), o pe-ríodo de linha dura, que começou em 1968 e fez crescer o cerceamento à liberdade de expressão, as perseguições e torturas, foi também o do �“milagre econômico�” do governo Geisel, que permitiu à classe média um aumento do seu poder aquisitivo e consequente acesso ao mercado de bens de consumo. O mercado fonográfico aumentou o número de lançamentos em LPs e compactos e estes, por serem mais baratos, con-tribuíram para facilitar o acesso ao disco por parte de classes de menor poder aquisitivo, especialmente os jovens. Diferente dos grandes mer-cados internacionais, onde tinham participação significativa, os jovens brasileiros só então começavam a se fazer presentes, em parte devido ao sucesso da Jovem Guarda.

A expansão do mercado, na verdade, beneficiou a música estran-geira porque, apesar dos impostos, era muito mais barato importar a gravação em fita master para ser prensada no Brasil, do que arcar com todos os custos de uma produção local. Embora houvesse uma lei que restringia em 50% a música estrangeira nas gravadoras, o lucro era fa-cilmente alcançado devido ao baixo custo. Por conta da estreita relação entre a indústria fonográfica e a mídia, a música estrangeira predomi-nava também nas rádios. Essa demanda justificou a entrada, no merca-do brasileiro, de grandes gravadoras transnacionais.

Acentuando esse quadro, a música nacional, perseguida pela cen-sura assim como as demais manifestações artísticas, representava um risco de investimento para as gravadoras, porque bastaria uma assina-tura e seria inutilizado todo um lote de discos. Essa mesma censura foi, aos poucos, minando o sucesso dos festivais da década de 1960, que tiveram seu último exemplar em 1972.

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Apesar dos riscos, é no transcorrer da década de 1970 que se começa a identificar cultura com mercado, e impulsiona-se o desenvolvimento da indústria nacional do entretenimento.152 No início dos anos 80, au-mentam os investimentos no cinema nacional, na publicação de livros de autores nacionais e na música popular brasileira, o que proporcionou o recuo de multinacionais e o avanço de novas gravadoras nacionais. Citando Patrice Flichy, que as denomina �“multinacionais discretas�”, Renato Ortiz explica que essas empresas �“atuam na periferia através de filiais cuja função é produzir discos com os cantores locais�” (Ortiz, 1995, p.194). É quando a WR passa a acreditar que �“santo de casa faz milagre�” e investe em equipamentos: �“os Studios WR, operando com 16 canais, estruturaram-se para a gravação de discos, com o nível das melhores gravadoras do sul do País e cria, com isso, um novo mercado de trabalho para técnicos, músicos, arranjadores, maestros, vocalistas�” (Tribuna da Bahia, 1983, p.18).

Peterson e Berger (1975), em trabalho sobre a ocorrência de ciclos na música popular norte-americana no período de 1948 a 1973, iden-tificam cinco períodos que alternam uma intensa concentração em oli-gopólios com uma segmentação da indústria e do mercado em selos in-dependentes.153 Os autores mostram como essas mudanças afetaram a

152. Segundo Ortiz (1995), o Estado autoritário da ditadura militar aprofunda medidas econômicas do governo JK, reorganiza a economia brasileira e consolida-se o �“capitalismo tardio�”. �“Em termos culturais, essa reorientação econômica traz consequências imedia-tas, pois, paralelamente ao crescimento do parque industrial e do mercado interno de bens culturais, fortalece-se o parque industrial de produção de cultura e o mercado de bens culturais�” (p. 114). Ortiz afirma que os interesses do Estado �– ao mesmo tempo re-pressor e incentivador das ações culturais �– e dos empresários da cultura são os mesmos, diferenciando-se na ideologia, moralista do Estado e mercadológica dos empresários. Estes se queixam do excessivo rigor da censura, que acarreta prejuízos materiais, o que permite deslocar a questão cultura/censura para o plano econômico (p.120). Ortiz acres-centa que �“o que caracteriza a situação cultural nos anos 60 e 70 é o volume e a dimensão do mercado de bens culturais�” (p. 121), cuja expansão podemos comprovar nos números: livros, de 43,6 milhões de exemplares (1966) para 112,5 milhões (1976); filmes, crescem de 13,9% do mercado (1971) para 35% (1982). O mercado fonográfico deu uma arrancada em 1970, em parte devido à facilidade de aquisição de eletrodomésticos: �“entre 1967 e 1980 a venda de toca-discos cresce 813%�” e o faturamento das empresas fonográficas cresce 1.375% entre 1970 e 1976 (p. 127). Em 1970 havia cerca de 4 milhões de domicílios com aparelho de TV; em 1982, eram mais de 15 milhões, e o hábito se disseminara por todas as classes sociais (p. 130).

153. 1) de 1948 a 1955, houve uma intensa concentração corporativa em quatro compa-nhias, com controle total do fluxo da produção; 2) de 1956 a 1959, selos independentes ganham maior expressão e novos artistas e segmentos não prestigiados ocupam posi-ções predominantes; 3) de 1959 a 1963, o cenário manteve-se estável; 4) de 1964 a 1969, uma re-arrumação no mercado, motivada pelo surgimento de uma segunda geração do rock, provoca a volta à concentração nas grandes gravadoras; 5) de 1969 a 1973, selos

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inovação e a diversificação da música popular e concluem que a grande concentração do mercado conduz à homogeneização e estandardização do produto. Os dois períodos nos quais há uma diversificação e expan-são de selos independentes �– 1956-1959 e 1969-1973 �– praticamente coincidem com o nascimento das duas gravadoras baianas, se consi-derarmos que, na época, a tendência internacional se refletia na esfera local com um certo retardo.

Os autores preveem, para depois de 1973, um longo período de in-tensa concentração em grandes companhias que controlariam todo o fluxo de produção e a consequente diminuição na inovação e diversi-dade de artistas e selos. No caso brasileiro, no entanto, o processo de segmentação do mercado nos anos 80 favoreceu a música nacional, oca-sionando tanto o relançamento de artistas tradicionais em CD, como o lançamento de música infantil, de segmentos ligados a identidades culturais locais �– a axé music, por exemplo �– e os influenciados por referências mundializadas, como o rap (Vicente, 2002). Nos anos 90, a estabilidade econômica se reflete no mercado fonográfico, e o Brasil ocupa o sexto lugar no mercado mundial, com acentuado crescimento no índice de música nacional (Canclini, 2003). O Brasil exporta música, e a Bahia também. Impulsionados pela alta tecnologia do trio elétrico e um esquema que envolve bandas, blocos, camarotes, produtoras, em-presas ligadas ao turismo e até o comércio informal, a axé music ganha o Brasil com a expansão dos carnavais fora-de-época. As principais ban-das integram o cast das transnacionais e se apoiam numa estrutura de divulgação que inclui programas de rádio e TV, videoclipes, sites e shows de palco.

A diversificação dos anos 80 implicou na adoção de um �“sistema aberto�”, que estabelece vínculos com selos independentes menores e produtores de discos independentes e garante não só grandes lucros pelo monopólio da fase final de produção e distribuição, como a segu-rança de poder atender à instabilidade do mercado no que se refere à demanda por novos produtos (Lopes, 1992). Este cenário favoreceu o lançamento dos inúmeros produtos da WR nos anos 80 e 90. No final da década de 1990, porém, a lógica do blockbuster usada pelas majors, que

independentes são adquiridos pelas majors, uma estratégia para atender a toda gama de gosto dos consumidores, com a ampliação do leque de artistas; no entanto, apostam que a tendência seria retornar à posição inicial, de concentração e total controle do fluxo pelas majors.

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se caracteriza por concentrar as ações e investimentos em poucos artis-tas, restringiu ainda mais as possibilidades das indies, que se limitaram a descobrir o talento e lançá-lo no âmbito local ou descobrir e passar seu contrato à major (Vicente, 1999). No entanto, as indies têm tido papel fundamental para o lançamento de artistas locais. Com o avan-ço da tecnologia digital, que possibilita a montagem de estúdios com baixo custo e boa qualidade de gravação, elas vêm se multiplicando, o que explica o sem-número de selos na Bahia. Uma pequena estrutura, como a da Jupará Records, garante produção e a divulgação de várias bandas regionais que dificilmente chegarão a constar do catálogo de uma major.

Em pouco mais de quatro décadas, muita coisa mudou na fonografia baiana. A JS começou com uma mesa, um gravador de 4 canais e uma máquina de gravar acetato. Segundo Jorge Santos, a gravadora encer-rou suas atividades em 1982 porque ficara impossível concorrer com o mercado do Sul e Sudeste. Reconhecia a necessidade de se atualizar, mas �“importar era caro e tinha restrições. Por exemplo: só podia vender depois de cinco anos. Tinha financiamento para equipamento de cine-ma, mas não havia para estúdio de som�” (Santos, 2004). A concorrência, no entanto, começava mesmo na Bahia, com a WR. Desde que entrou no mercado, em 1975, Wesley Rangel fez altos investimentos na estrutura física e em equipamentos, mas foi apanhado de surpresa por uma gui-nada no avanço tecnológico. Logo depois de adquirir uma sofisticada aparelhagem analógica, o mercado lançou equipamento digital e soft-wares que ofereciam mais recursos e custavam muito menos. Além de obrigá-lo a novo investimento, a inovação propiciou uma proliferação de estúdios caseiros. Paradoxalmente, embora a quase totalidade dos sucessos da música baiana das décadas de 1980 e 1990 tenha iniciado suas gravações na WR, raros levaram o seu selo, enquanto hoje nos per-demos em um mundo de pequenos selos da cena independente.

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MERCADO FONOGRÁFICO NACIONAL E A PRODUÇÃO DE MÚSICA ERUDITA

Marcos Júlio SerglEduardo Vicente

A pretensão desse artigo é discutir a questão da produção de músi-ca erudita no mercado fonográfico nacional. Para tanto, iniciaremos o texto discutindo o desenvolvimento desse segmento no país desde o seu início até a década de 1980. Em seguida, iremos nos voltar para o cenário mais geral da indústria fonográfica nacional, discutindo seu desenvolvimento da década de 1980 até o momento atual. Diante desse quadro, discutiremos então o quadro atual da produção de música eru-dita, tentando estabelecer algumas tendências que nos parecem domi-nantes e �– na medida em que isso seja possível dentro de um cenário tão conturbado �– perspectivas para o futuro dessa produção.

HistóricoO surgimento das sociedades e clubes musicais na segunda metade do século XIX, aliado ao hábito das serenatas e dos saraus importados da Europa pelos filhos dos fazendeiros que vão a Paris e Coimbra realizar seus estudos superiores, amplia o público receptor de música erudi-ta no Brasil. Entidades como o Club Mozart (1867), o Club Beethoven (1882) e a Sociedade de Concertos Clássicos (1883), no Rio de Janeiro, e o Club Haydn(1883), em São Paulo, ampliam o repertório executado e trazem virtuoses para essas cidades. Ainda em 1883, o público carioca

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presencia a montagem da ópera Tannhäuser, de Richard Wagner, am-pliando o leque de opções de escuta.

A constância de concertos, possibilitada pelas sociedades, cria há-bitos de escuta e, quando surgem os primeiros aparelhos reprodutores no Brasil, a procura por árias de óperas italianas, em particular inter-pretadas por Caruso, é grande. Vale dizer que o consumo de música erudita �– especialmente a produção operística �– foi uma tendência mais ou menos geral do início da produção fonográfica mundial. Já em 1901, Fred Gaisberg percorria a Europa, a serviço da Victor Machine Company, com o objetivo de gravar os cantores de maior destaque das principais companhias de ópera daquele continente. Assim, �“a série �‘Red Label�’, top line da Victor, incluía gravações de canções e árias em todas as lín-guas europeias e em muitas línguas orientais, bem como gravações da Ópera Imperial Russa�” (GAROFALO, 1993: 22).

O surgimento e a manutenção do rádio no Brasil, na segunda dé-cada do século XX, são possíveis graças à elite das grandes cidades, que mantém emissoras na formatação de sociedades, que pagam para escutar concertos. Os primeiros momentos de nosso rádio estão cal-cados predominantemente na escuta de música erudita. Vale lembrar que a Sociedade Rádio Educadora Paulista, primeira emissora de São Paulo, criada em novembro de 1923 possuía, já em 1928, uma orques-tra com cerca de 25 integrantes, a maioria membro da Sociedade de Concertos Sinfônicos ou do Teatro Municipal (GUERRINI Jr, 2009: 18). A Rádio Gazeta, surgida a partir da compra da emissora por Cásper Líbero, em 1943, manteria essa tradição, ampliando consideravelmente as proporções da orquestra e realizando grandes apresentações ao vivo de óperas e música de concerto (GUERRINI, 2009).

Ainda não tínhamos, porém, uma indústria de gravação de música erudita brasileira. Embora Frederico Figner, o pioneiro da indústria no país, tenha fundado a mitológica Casa Edison, no Rio de Janeiro, em 1897, passando rapidamente a atuar na gravação comercial de música, seu foco foi a música popular, sendo seus primeiros contratados os can-tores de serenata Antônio da Costa Moreira, o Cadete, e Manuel Pedro dos Santos, o Baiano.

Por conta disso, compositores como Heitor Villa-Lobos gravaram suas composições em selos estrangeiros como a RCA e a EMI, numa situação que iria perdurar por toda a primeira metade do século.

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É a partir do surgimento da Gravadora Festa, fundada no Rio de Janeiro em 1956, pelo jornalista Irineu Garcia, que esse cenário começa a mudar. Garcia criou a gravadora a partir da perspectiva de registrar e valorizar uma produção de menor apelo mercadológico, mas de grande relevância artística. Com esse objetivo, ele realizou importantes regis-tros de poesia, música popular e música erudita.154

Nessa última área, a Festa produziu discos de importantes compo-sitores brasileiros, que foram distribuídos pela Companhia Brasileira de Disco, o braço fonográfico da Philips no país.155 Dentre os títulos destacamos: a Missa de Réquiem, do padre José Maurício Nunes Garcia, com interpretação da Orquestra Sinfônica Brasileira e coro misto da Associação de Canto Coral do Rio de Janeiro; Antologia da Música Erudita Brasileira, obras para piano gravadas por Arnaldo Estrela; Sonatas de Cláudio Santoro e Camargo Guarnieri, interpretadas por Oscar Borgeth, violino, e Ilara Gomes Grosso, piano; Heitor Villa-Lobos, obra diversa; Do tempo do Império; interpretada pelo Collegium Musicum do Rio de Janeiro; Francisco Mignone, obra diversa interpretada pela Orquestra Sinfônica Brasileira, regida pelo autor; Sinfonia nº 5, de Cláudio Santoro, em performance da Orquestra Sinfônica Brasileira, regida pelo autor; Sonatas de Villa-Lobos e Radamés Gnattali, Iberê Gomes Grosso, violonce-lo, e Radamés Gnattali, piano, em 1968; Camargo Guarnieri, obras diver-sas interpretadas pela Orquestra Sinfônica Brasileira e Coro Feminino da Associação de Canto Coral do Rio de Janeiro; Alexandre Levy: Suíte Brasileira, executada pela Orquestra Sinfônica Brasileira; Radamés Gnattali: Concertos, interpretação da Orquestra Sinfônica Brasileira, re-gida por Radamés Gnattali; Sinfonia nº 6, de Cláudio Santoro, Orquestra Sinfônica Brasileira, regida pelo autor; Sinfonia em sol menor, Alberto Nepomuceno, interpretada pela Orquestra Sinfônica Brasileira, sob re-gência de Edoardo de Guarnieri; Suíte Brasileira, de Alberto Nepomuceno,

154. O registro de poesias, normalmente interpretadas por seus próprios autores, foi o aspecto mais importante da atuação da Festa, que gravou trabalhos de Carlos Drummond de Andrade, Manoel Bandeira, Pablo Neruda e Rafael Alberti, entre muitos outros. No campo da música popular, ela foi responsável pela gravação do álbum Canção do Amor Demais (Elizete Cardoso, 1958), considerado como o marco inaugural da Bossa Nova. A atuação da Festa na área da música erudita será discutida adiante.

155. A CBD, Companhia Brasileira de Discos, fora fundada em 1945 com o nome de Sinter. Pertencia à família Pittigliani desde 1955 e, em 1958, fora adquirida pela Philips, sendo a base a partir da qual essa gravadora (hoje parte da Universal Music) iniciou suas ativi-dades no Brasil.

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em execução da Orquestra Sinfônica Brasileira, regida por Souza Lima, em 1969, entre muitas gravações.

Pela produção da gravadora Festa nos anos de 1968 e 1969, po-demos deduzir que houve uma conscientização acerca do registro da produção musical da orquestra sinfônica brasileira mais importante do momento, em performances de obras fundamentais de compositores brasileiros conceituados. Com esta opção de gravar obras significativas do repertório erudito brasileiro, a gravadora Festa mostrou ser pioneira no registro da memória cultural brasileira. Em 1970, a Festa iniciou uma série especial de gravações de obras históricas. Nesse primeiro volume foi registrada A Missa a 8 vozes e instrumentos, de André da Silva Gomes, pela Orquestra �“Cordas de São Paulo�” e o Coro �“Vozes de São Paulo�”, sob a regência de Júlio Medaglia.

Sempre enaltecendo a iniciativa de Irineu Garcia na criação do selo, convém observar que o seu surgimento demarca o início de um perío-do de grande efervescência cultural em que, no dizer de Renato Ortiz, constituía-se no país um público consumidor que �“sem se transformar em massa�”, era constituído �“pelas camadas mais escolarizadas da so-ciedade�” (Ortiz, 1994: 102). Essa situação iria evidentemente ser rever-tida ao longo dos anos 60 das décadas seguintes mas, mesmo assim, o constante crescimento do mercado fonográfico até o final dos anos 70156 permitiu não apenas a manutenção de iniciativas como a de Irineu, mas também a realização de importantes investimentos em cultura por par-te de organizações oficiais. E será a nova onda de organização e inter-venção oficial na cultura, sustentada pela ditadura militar e associada à crescente presença do capital internacional no país, que norteará em grande parte os rumos da produção de música erudita a partir daí.

Esse novo quadro criará dificuldades para a manutenção de projetos independentes como o da gravadora Festa. Garcia, que por suas posições políticas enfrentava dificuldades com o novo regime, estabelecera em 1967 um contrato de três anos com a gravadora Philips para a comerciali-zação de seu acervo. O contrato, como se pode constatar pelos lançamen-tos citados aqui, foi bastante produtivo, mas acabou não sendo renovado em 1970, com Irineu seguindo para o autoexílio em Portugal naquele

156. Os índices de crescimento da indústria, conforme dados disponibilizados pela ABPD, Associação Brasileira dos Produtores de Discos, foram sempre positivos entre 1966 �– ano de início das estatísticas �– e 1979.

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mesmo ano.157 Também em 1970, o Serviço de Radiodifusão Educativa do Ministério de Educação e Cultura patrocinava a gravação de dois discos de Música de Câmara, com obras compostas por Marlos Nobre, Rinaldo Rossi, Nicolau Kokron, Edino Krieger, Ernst Widmer e J. Lins.

Ainda no campo das iniciativas de órgãos oficiais merecem destaque a do Museu da Imagem e do Som, de São Paulo, que em 1979, lança a série de seis discos Músicas e Músicos de São Paulo, com o intuito de di-vulgar a criação erudita paulista do momento.

Além dele, a Funarte, por meio do Instituto Nacional de Música, cria o projeto Memória Musical Brasileira �– Pro-Memus �– em julho de 1979, com o intuito de documentar e divulgar a criação musical brasileira, imprimindo partituras e gravando discos. A primeira série, intitulada Documentos da Música Brasileira, é destinada a fixar e divulgar grava-ções de caráter histórico-documental. Os 12 volumes iniciais surgem a partir de gravações originais realizadas pela Rádio MEC, entre os anos de 1958 e 1972, em seu próprio estúdio, para o programa �“Músicas e Músicos do Brasil�”, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro e na Sala Cecília Meireles. A partir dessa série, a Funarte lança dezenas de discos, durante cerca de 20 anos, tornando-se a mais significativa gravadora de música erudita brasileira. Também na década de 1970, o Museu Villa-Lobos, em parceria com a Funarte, patrocina o lançamento de diversos discos com obras de Heitor Villa-Lobos.

Mas o significativo crescimento econômico obtido nos anos do �“mi-lagre�” também irá propiciar o desenvolvimento de iniciativas privadas com um sentido mais fortemente cultural, em moldes semelhantes à de Irineu Garcia. E a mais importante dessas iniciativas será, sem dúvida, a criação da Gravadora Eldorado, que se tornará um marco fundamen-tal na produção nacional de música erudita. A gravadora praticamente surgiu como uma decorrência da criação, em 1972, do Estúdio Eldorado. Dedicado inicialmente à produção publicitária, o estúdio passou rapi-damente a ser utilizado também para a gravação de discos (por nomes como Milton Nascimento, Miles Davis, Roberto Carlos e Elis Regina, entre outros) e para a gravação de especiais para a Rádio Eldorado. A partir dessas experiências com a produção musical, a empresa acabou constituindo sua gravadora em 1977.158

157. Ele morreria em Lisboa, em 1984.

158. �“Selo Eldorado, alternativa que completa três anos�” (O Estado de São Paulo, 27/09/1980).

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Embora administrada de forma independente, a Eldorado �– que en-globa também duas rádios (AM 700 KHz e FM 92.9 MHz, em São Paulo) e uma editora musical �– é ligada ao Grupo Estado. A gravadora se carac-terizou, desde o seu início, pela gravação de música erudita, de música instrumental e de trabalhos de música popular de maior valor histórico e artístico.

A partir de 1978, a Eldorado FM passou a utilizar o seu auditório para promover a gravação de música erudita brasileira, passando a manter diversos programas dedicados ao segmento em sua programação. A seguir, desenvolveu o Prêmio Eldorado de Música, que revelou nomes da música erudita como o quarteto de clarinetes Sujeito a Guincho e o trompista Roberto Minczuk, vencedor da primeira edição do prêmio. A Eldorado alega ainda haver lançado o primeiro disco de uma orquestra sinfônica brasileira gravado em estúdio, com a Orquestra Sinfônica de Campinas, regida pelo maestro Benito Juarez.159

Além da Eldorado, merece menção a iniciativa da Edições Tacape que, sob a supervisão de Conrado Silva, lançou em 1979 a série Memória Musical, com gravações de obras inéditas do repertório das orquestras de São João del Rei e, posteriormente, a série Música Nova da América Latina, com um disco dedicado a Hans Koellreutter. Embora fora do âmbito desta pesquisa, gostaríamos de citar ainda o trabalho da Discos Marcus Pereira, por seus registros de música de raiz, música folclórica e compositores de fronteira entre a música popular e a música erudita, como Ernesto Nazareth, além de discos dedicados a Osvaldo Lacerda, interpretado por Isabel Mourão, e às Danças Brasileiras (para piano, também com perfor-mance de Isabel Mourão), entre os anos de 1973 a 1978.

Especialmente a partir dos anos 80, a produção de música erudita no país esteve também vinculada às ações promocionais de grandes empresas, que utilizavam esse recurso para agregar valor às suas mar-cas institucionais.

Nessa área merece destaque a atuação da Basf que, a partir de 1980, cria a série Discos de Cultura, como brinde aos clientes, com dois subtí-tulos: �“Música Sacra Brasileira�”, com três discos dedicados a André da Silva Gomes, Jesuíno do Monte Carmelo e Francisco de Paula Ferreira, músicos do período colonial paulista, e �“Música de Câmara�”, com dois discos dedicados a Henrique Oswald, Radamés Gnatalli e Waldemar Henrique. Outras empresas que também patrocinaram o lançamento de

159. http://distribuidoraindependente.uol.com.br/selo/index.jsp?id=452

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discos para distribuição entre os clientes foram a Sul América Unibanco Seguradora, com obras para piano de Camargo Guarnieri; o grupo Mannesmann, com o disco Matinas do Natal, de José Maurício Nunes Garcia, e a Petrobras, através de projetos como o Lubrax de Apoio à Cultura Brasileira, com o disco Missa e Credo a oito vozes, do padre João de Deus Castro Lobo. Todas essas obras são do ano de 1985.

Não temos elementos para considerar essas iniciativas de grandes empresas como uma possível substituição da ação de gravadoras no âmbito da música erudita, mas pode-se afirmar com certeza que, com o cenário de crise que se instala a partir da década de 1980, muitas difi-culdades surgirão para a sobrevivência das gravadoras (especialmente as de menor porte). Se o crescimento da indústria nunca fora interrom-pido entre 1966 e 1979, a partir de 1980 as quedas nas vendas irão se suceder e será somente no final da década, durante o Plano Cruzado, que a indústria encontrará algum alívio. Mas apenas para enfrentar no-vamente o abismo com o Plano Collor, em 1990. Nesse cenário, a indús-tria viverá um momento de grande racionalização de suas atividades, deixando pouquíssimo espaço para produções com finalidades menos imediatistas.160

Entendemos que essa crise estabelece um divisor de águas na his-tória da indústria. As mudanças ocorrerão em diversos campos. No âmbito tecnológico, ela passará a adotar o CD como mídia dominante, com o uso generalizado das tecnologias digitais de produção oferecen-do diversas alternativas tanto para a gravação independente de traba-lhos quanto para a recuperação e o relançamento de produções mais antigas. A segmentação do mercado se ampliará grandemente, ofere-cendo condições para o surgimento e sobrevivência de inúmeras em-presas independentes. Viveremos, ainda, um extraordinário processo de recuperação econômica da indústria a partir da metade da década de 1990 e, posteriormente, o surgimento de uma nova crise que se arrasta até hoje, mas que carrega algumas características únicas. Em função de todas essas mudanças, gostaríamos agora de proceder a uma breve discussão do cenário da indústria dos anos 1990 até o presente, antes de seguirmos com uma apresentação do segmento da música erudita dentro de seu contexto.

160. Uma discussão mais aprofundada sobre essa crise pode ser encontrada em VICENTE, Eduardo. Música e disco no Brasil: a trajetória da indústria nos anos 80 e 90. Tese de douto-rado. São Paulo, ECA/USP, 2002.

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O cenário atual da indústria Os percalços enfrentados pela indústria fonográfica no início da década de 1990 foram dramáticos. Em seu pior momento, as vendas recuaram, em 1993, para a casa dos 32 milhões de unidades, nível inferior ao de 1976. Após 1994, no entanto, tivemos um período de intensa recupera-ção em que as vendas, impelidas pelo Plano Real e pela consolidação do formato CD no país alcançaram, em 1997, os 103 milhões de unidades, elevando o país à condição de quinto mercado mundial de discos.

A partir do final do século, no entanto, o setor mergulha numa nova crise, onde parecem intervir diversos fatores locais e mundiais. Dentre eles, podemos considerar, além da estagnação econômica, o crescimen-to da pirataria digital e de formatos, as dificuldades de distribuição, o esgotamento de alguns dos segmentos de maior apelo popular e a redu-ção dos investimentos das grandes empresas. Além disso, talvez possa-mos falar em uma crise do próprio modelo de atuação da indústria, que não só enfrenta grandes dificuldades para estabelecer um modelo único (e pago) para a distribuição digital, como parece não conseguir manter seu padrão de venda massificada de uns poucos artistas e segmentos com a mesma intensidade observada nos anos 80 e 90.

Embora esse quadro de crise não pareça oferecer perspectivas de melhora para um futuro imediato, não podemos deixar de observar que ele também apresenta alguns aspectos positivos. O mais impor-tante deles parece ser o de que, apesar da retração geral do mercado, é possível verificar um avanço da participação das gravadoras de pequeno e médio porte �– as chamadas indies �– diante dos grandes conglomerados que controlam o setor. Os fatores para o crescimento da importância das indies parecem estar vinculados tanto às tec-nologias de produção e distribuição digital (que permitem a redu-ção dos custos de produção e a venda através da internet) quanto a uma pulverização do consumo, que amplia o leque de segmentos nos quais essas pequenas empresas podem atuar. Tornou-se comum, também, a atuação de artistas autônomos no mercado, que podem alcançar projeção e vendas significativas mesmo sem a estrutura de uma gravadora.

É importante salientar esse aspecto já que, tradicionalmente, o mercado fonográfico inclusive no Brasil �– tem sido controlado por um pequeno grupo de grandes empresas (majors) que estão, via de regra, integradas a conglomerados de atuação múltipla. Atualmente, são qua-

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tro as grandes empresas mundiais do setor: Universal Music (França), Warner Music (EUA), Sony (Japão) e EMI (Inglaterra). No nosso caso, po-demos acrescentar a esse grupo também a gravadora Som Livre, per-tencente à Rede Globo.

De qualquer modo, o crescimento dos independentes implica, ne-cessariamente, num aumento do número de empresas nacionais no setor, já que a quase totalidade das empresas independentes são na-cionais. Esse crescimento levou, inclusive, à criação em 2001 da ABMI, Associação Brasileira de Música Independente.

Mas gostaríamos de ressaltar o fato de que a crescente presença do capital transnacional no setor não significou, em momento algum, uma internacionalização decisiva do consumo musical no país. Deve-se salientar, inclusive, que o percentual brasileiro de consumo musical doméstico tem se mantido entre os maiores do mundo, tendo crescido de 61% para 73% entre 1991 e 1999, (IFPI, 2002).

Consideramos necessária essa breve introdução acerca do setor fonográfico como um todo para melhor contextualizar a produção de música erudita atualmente desenvolvida no país, que apresenta-remos a seguir.

O cenário atual da produção de música eruditaDe um modo geral, o segmento da música erudita é dominado, no país, pelo lançamento de catálogos internacionais. O lançamento desse tipo de coleções em bancas ainda é muito frequente e a pioneira nessa área parece ter sido a Abril Cultural que, em 1968, lançou para distribuição em bancas, a série Grandes Compositores da Música Universal que, como salienta Irineu Guerrini Jr., era a tradução de uma coleção lançada na Itália pela Editora Fratelli Fabbri e consistia �“de 48 fascículos com uma biografia ilustrada de um compositor e uma análise das obras grava-das, acompanhados de LPs de 10 polegadas, monofônicos�” (GUERRINI, 2007).161

Vale salientar que esse recurso ao lançamento de discos como encar-te de publicações apresenta no Brasil grandes vantagens fiscais, espe-cialmente a isenção do ICMS (idem).

161. O texto em questão também faz parte dessa coletânea.

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Por ocasião do lançamento do compact disc no país, o recurso aos catálogos internacionais foi utilizado, inclusive, para fortalecer o ca-ráter distintivo e a sofisticação do novo equipamento. Em 1991, por exemplo, a Sony anunciava o lançamento de um pacote de 11 álbuns (em fita cassete de cromo e em CD) de sua etiqueta Sony Classical, que reunia o acervo da CBS (adquirido pela Sony para a formação de sua gravadora) e era dirigida por Gunther Breest (ex-diretor da Deutsche Grammophon).162

Mas a líder no setor de lançamentos de coleções parece ser a Movieplay, empresa de origem portuguesa que chegou ao Brasil no final dos anos 80 já com a proposta de trabalhar exclusivamente com CDs. Ela não possui um elenco próprio de artistas e, atualmente, destaca-se por oferecer um vasto catálogo erudito, a preço bastante acessível, e eventualmente distribuído em bancas.

Embora tenham o mérito de ampliar o público do segmento, esses relançamentos podem apresentar alguns problemas. Em primeiro lugar, a baixa qualidade técnica e artística de algumas das produções, que re-sultaram de gravações precárias realizadas, normalmente, por orques-tras e regentes obscuros do Leste europeu. Adicionalmente, os encartes dos CDs são muito sumários, trazendo pouca (ou nenhuma) informação sobre autor, intérpretes e obra. Além do baixo custo dessas gravações, vale lembrar que o relançamento de música erudita é, normalmente, facilitado pelo fato da maioria das obras ser de domínio público e não exigir pagamento de direitos autorais para sua utilização.163

Em segundo lugar, as gravações visam normalmente umas poucas obras de um número limitado de autores, o que tende a limitar grande-mente a variedade do repertório que é oferecido ao público em geral. Além disso, os lançamentos nem sempre trazem as gravações integrais das obras, já que se tornou comum a produção de coletâneas de tre-chos, descontextualizando e banalizando passagens musicais que, em muitos casos, ficaram conhecidas pelo uso em filmes ou peças publici-tárias. Esse tipo de procedimento também ocorre em situações onde a produção musical erudita pode acabar, inclusive, incorporada por

162. A Sony Classical chega ao Brasil, com um pacote de primeira qualidade. Jornal da Tarde, 21/02/1991. O artigo é assinado por J. Jota de Moraes.

163. Pela legislação brasileira e internacional, uma obra musical torna-se de domínio público 70 anos após a morte do autor. Vale sublinhar que o domínio público refere-se à composição em si, e não ao registro fonográfico, que sempre necessita de autorização para ser utilizado.

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outros segmentos como o da música infantil (através de séries como a �“for babies�”, por exemplo, que reúne obras de Mozart e Beethoven, entre outros) e da New Age (onde algumas seleções são vendidas como �“música para relaxamento�”).

Fizemos referência a essas séries e coletâneas, das quais os intér-pretes e compositores nacionais �– com a exceção provavelmente úni-ca da �“Bachiana n. 4�” e do �“Trenzinho Caipira�”, de Villa-Lobos �– estão praticamente excluídos, porque elas representam uma parcela muito expressiva do repertório erudito consumido no país.

Assim, ao contrário do que acontece em relação à música popular, pode-se afirmar tranquilamente que o repertório internacional respon-de maciçamente pelo consumo de música erudita no país. Esse desin-teresse do consumidor por produtos nacionais foi, inclusive, constata-do em uma pesquisa encomendada pela Gravadora Eldorado e, como aponta Murilo Pontes, atual diretor da empresa, determinou sua de-cisão de se retirar desse mercado. Assim, a gravadora acabou abando-nando o segmento que, mesmo nas rádios do grupo, perdeu muito de sua relevância:164 o próprio Prêmio Eldorado tornou-se o Prêmio Visa de Música, voltando-se exclusivamente para a música popular.

Para a produção de novos artistas eruditos no país são pouquíssi-mos os espaços hoje disponíveis, sendo a gravadora Paulus a grande al-ternativa ainda disponível na área. A Paulus surgiu em 1993 e é ligada à Pia Sociedade de São Paulo, criada na Itália pelo padre Tiago Alberione, em 1914, e presente no Brasil desde 1931.165 O catálogo de repertório erudito nacional disponível no site da gravadora elenca 67 obras e reúne intérpretes como Roberto de Regina, Perez Dworecki, Gilberto Tinetti, Dorotéa Kerr, Sinfonia Cultura e Camerata Fukuda, entre outros, além de compositores como Guerra Peixe, Francisco Mignone e Alberto Nepomuceno.

Embora exista uma carência de gravadoras, abriu-se para os artistas nacionais a possibilidade de criar suas próprias produtoras e responder pela gravação e distribuição de seus discos, como é o caso de Amaral

164. Apesar disso, a Rádio Eldorado ainda inclui um programa de música erudita em sua programação radiofônica e mantém em catálogo algumas gravações antigas.

165. A Pia Sociedade Paulina, assim como a Pia Sociedade Filhas de São Paulo, criada um ano depois, em 1915, pertencem, assim, como outras instituições, à Família Paulina, que compreende o conjunto das Congregações e Institutos Religiosos fundados pelo Pe Alberione, conf. www.paulinos.org.br/site/quemsomos_6.jsp

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Vieira, com a Scorpius/Amadeus Empreendimentos Artísticos, e Ana Maria Kiefer, com a Akron.

De qualquer modo, as gravadoras internacionais mantém-se parti-cularmente atrativas para nossos artistas. Em 1995, a gravadora alemã Marco Pólo ostentava em seu catálogo 19 CDs de compositores bra-sileiros, como Villa-Lobos, Camargo Guarnieri e Alberto Nepomuceno, sendo várias das gravações executadas ou regidas por brasileiros (como Roberto Duarte, Clara Sverner e Maria Inês Guimarães, entre outros).166 E nomes com vendagem garantida como Marlos Nobre e Nelson Freire tem sua obra registrada em gravadoras internacionais como a EMI. Também a Osesp, Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, criada em 1954 pelo maestro Souza Lima para divulgar a música sinfônica entre os paulistas, optou por uma gravadora internacional.167 No caso, a BIS, da Suécia.

Pelo menos dois fatores pesam nessa escolha por gravadoras in-ternacionais. O mais evidente é, obviamente, a carreira internacional desses artistas e o grande potencial de consumo de seu público. Nesse sentido, vale atentar para os percentuais de consumo de repertório eru-dito no Brasil em comparação com outros países. Entre 1997 e 2001, esse percentual oscilou por aqui entre 1 e 3%, enquanto na Argentina esteve entre 4 e 9 % e, no Chile, entre 3 e 6%. Em mercados europeus, os números são também muito expressivos: entre 6 e 9% no Reino Unido, 4 e 9% em Portugal, 4 e 7% na Itália, 5 e 10% na França e 7 e 10% na Alemanha (IFPI, 2002).

Ao menos no caso da Osesp, também a questão técnica parece ter influenciado na opção por uma gravadora internacional. Nesse sentido, vale observar que, no Brasil, é escasso o número de engenheiros de gra-vação especializados nessa área, ou seja, com conhecimento de leitura musical e capazes de acompanhar a performance do intérprete, além de possuir o domínio das técnicas mais adequadas à gravação de cada instrumento, posicionamento dos microfones, etc.

De qualquer forma, o aspecto mais evidente do momento atual da produção fonográfica no país não parece ser o lançamento de novas produções, mas a possibilidade para a recuperação e relançamento de matrizes antigas viabilizada pelas tecnologias digitais. Esse foi o caso

166. �“A Marco Pólo e o Brasil�”, Jornal da Tarde, 16/05/1995. A matéria é assinada por Jota J. Moraes.

167. A orquestra é dirigida atualmente pelo maestro John Neschling.

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do relançamento do Acervo Funarte, realizado em parceria pela grava-dora paulista Atração Fonográfica e pelo Instituto Cultural Itaú. Por seu intermédio, voltaram a ser disponibilizadas obras de autores como Francisco Mignone, Carlos Gomes, Camargo Guarnieri e Guerra Peixe.

Outro projeto que merece menção é o da série Grandes Pianistas Brasileiros, lançada pela Master Class. A empresa tem uma origem bas-tante curiosa. Segundo Denis Wagner Molitsas, um de seus diretores, a Master Class surgiu das reuniões semanais iniciadas por cinco amigos em 1980. Ligados pela música erudita, todos eram colecionadores de gravações e traziam seus discos particulares para as audições. Sentindo as carências do país nessa área, eles criaram a Master Class em 1996, procurando lançar no mercado produtos que pudessem preencher as lacunas existentes através do conhecimento dos membros do grupo e de suas coleções particulares, que incluíam muitas gravações raras, realizadas ao vivo.

O primeiro lançamento do grupo foi a gravação completa em CD das óperas de Carlos Gomes (com exceção de Joana de Flandres, até hoje iné-dita). A série Grandes Pianistas também é caracterizada pelo ineditismo, já que nunca houve uma coleção dedicada especialmente a esses intér-pretes. Outro critério que orienta as ações da Master Class é o da rele-vância nacional e internacional das obras, de modo a garantir inclusive a repercussão do lançamento junto à mídia. Há também grande cuidado na apresentação gráfica dos trabalhos e na elaboração dos textos.

Ainda segundo Molitsas, a série Grandes Pianistas originou-se de um projeto apresentado à Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo por meio da LINC (Lei de Incentivo à Cultura). Após sua seleção e aprovação, o projeto recebeu da Secretaria uma subvenção equivalente a 70% de seu valor total, ficando a contrapartida de 30% por conta da Master Class. A série esgotou-se no final de 2006 mas o projeto deveria ter continuidade em 2008, quando foram comemorados os 200 anos da entrada dos primeiros pianos no Brasil, vindos com a comitiva de D. João VI.

ConclusãoDiante do impasse vivido atualmente pela indústria fonográfica como um todo, a produção musical erudita num país que, como o nosso, tem pouca tradição na área, vive um momento particularmente complexo.

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Praticamente ignorada pelas grandes gravadoras internacionais aqui instaladas, a cena vive das iniciativas de pequenos grupos ou empresas dispostos a atuar sem objetivos econômicos imediatistas. Ao contrário do que ocorria nos anos 60 e 70, quando chegamos a contar com um projeto nacional como o da Gravadora Festa ou uma atuação articula-da como a da Eldorado (que unia a rádio, o auditório, a gravadora e o concurso, além da previsível cobertura jornalística do grupo Estado), o mercado hoje é atendido primordialmente pela gravadora Paulus e por produções independentes no que se refere ao lançamento de novas gravações e artistas. Paralelamente, verifica-se uma distribuição massi-ficada de produtos no grande mercado, que não só ignora o repertório nacional como tende a banalizar e descontextualizar as obras, através da oferta de gravações sem maiores referências ou mesmo de coletâne-as de fragmentos musicais.

Embora seja um quadro difícil, considerando-se especialmente os bai-xos índices de consumo do repertório erudito no país, entendemos que o potencial oferecido pelas tecnologias digitais �– no sentido da redução dos custos de gravação e da facilidade nas ações de divulgação e distribuição �– aparentemente não tem sido plenamente utilizado no sentido do lan-çamento de novas produções. Talvez a articulação de um projeto coletivo envolvendo alguns dos grandes atores desse cenário �– como orquestras, universidades, grandes conservatórios, associações culturais, etc. �– pu-desse modificar essa situação, já que essas entidades não apenas reúnem muitos dos possíveis novos artistas como também um expressivo público potencial para o consumo das produções. Vale lembrar, também, que esse é um mercado que tende a não sofrer com alguns dos principais proble-mas do mercado convencional, como o caráter descartável de muitos dos artistas e segmentos e a ação intensiva da pirataria.

No campo da recuperação e relançamento de gravações históricas e/ou inéditas, vimos que ações concretas foram estabelecidas e que a atuação de instituições de fomento públicas e privadas foi fundamental (a Secretaria Estadual de Cultura, no caso da série Grandes Pianistas e o Instituto Cultural Itaú, no caso do Acervo Funarte).

Mesmo assim, parece ainda existir um vasto campo a ser explorado. O acervo da gravadora Festa, por exemplo, ao que parece jamais foi relançado, apesar de ter sido disponibilizado para gravadoras interes-sadas ainda em fevereiro de 1997.168

168. �“A Volta de um Fabuloso Acervo Musical�”, O Estado de São Paulo, 23/02/1997.

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DISCOS EM BANCAS: da indústria cultural à guerrilha cultural169

Irineu Guerrini Jr.

Este trabalho procura demonstrar a importância das gravações fono-gráficas vendidas em bancas de jornais. Inicia discorrendo sobre a pu-blicação de fascículos pela Livraria Martins Editora, e mais tarde pela Editora Abril que, após o êxito de algumas coleções, lança, em 1968, a primeira acompanhada de discos: Grandes Compositores da Música Universal, versão brasileira de um original italiano e, em 1970, História da Música Popular Brasileira, totalmente produzida no Brasil. Passa pelo Disco de Bolso, iniciativa de produção e distribuição independente de Sérgio Ricardo, comenta coleções de MPB, de jazz e de música clássica dos anos 80 e 90 e dos primeiros anos deste século, analisa os CDs mais recentes que acompanham a revista Caras e termina falando da expe-riência de outracoisa, revista também acompanhada de CD lançada pelo intérprete e compositor Lobão.

Introdução A expressão é usada até os dias de hoje: �“banca de jornais�”. Mas numa banca de jornais é comum encontrarmos, além de jornais e revistas, uma oferta dos mais variados produtos: livros, CDs, DVDs, objetos cole-cionáveis �– como canetas e relógios �– cigarros, balas, brinquedos... Até meados dos anos 50, entretanto, uma banca de jornais vendia somente jornais e revistas. Quando muito, um ou outro álbum de figurinhas. Em

169. Trabalho apresentado ao NP de Rádio e Mídia Sonora, do VII Encontro dos Núcleos de Pesquisa da Intercom.

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1956, a Livraria Martins Editora lançava Trópico �– Enciclopédia ilustrada em cores, traduzida e adaptada de originais italianos, vendida em ban-cas de jornais em formato de fascículos, colecionáveis e encadernáveis. Mais tarde, essa enciclopédia seria vendida já em formato de livro, a ser pago em prestações.170 Mas a mudança de escala nesse tipo de pu-blicação ocorre em maio de 1965: a poderosa Editora Abril, sediada em São Paulo e já muito presente em bancas de jornais com os quadrinhos da Disney e com as revistas Cláudia e Realidade, entre outras, lança a sua primeira coleção de fascículos: A Bíblia mais bela do mundo, ver-são brasileira de uma obra também vendida em fascículos, lançada na Itália pela Fratelli Fabbri Editori. Victor Civita, o proprietário da Abril, conhecia de perto o sucesso dos fascículos na Itália, e resolveu publicar no Brasil essa versão fartamente ilustrada da Bíblia mesmo contra as recomendações da sua equipe. A voz do patrão falou mais alto, como lembra Pedro Paulo Poppovic, na época conduzido ao cargo de diretor da Divisão de Fascículos:

Ele veio de uma viagem, reuniu a diretoria e disse: �“vi uma coisa formidável, são os fascículos, o sujeito paga em prestações na medida em que ele recebe pe-daços de uma obra�”. A diretoria foi contra, inclusive eu. Dizíamos: �“no Brasil, as pessoas estão acostumadas a primeiro receber o produto e depois pagar em pres-tações, e por que a Bíblia, que é distribuída de graça, como nos hotéis?�” E ele: �“as pessoas vão comprar, sim, porque é a Bíblia mais bela do mundo, com milhares de ilustrações. E, além disso, como eu tenho 51% das ações desta empresa, nós vamos fazer�”.171

Como em outras ocasiões, o tempo provou que Victor Civita es-tava certo, pois o êxito de A Bíblia mais bela do mundo foi tamanho que estimulou o lançamento de outras coleções de fascículos, até hoje na memória e nas estantes de muitos brasileiros: a enciclopédia Conhecer (1966) a coleção Gênios da Pintura (1967) e, em 1968, Grandes Compositores da Música Universal. De culinária (Bom Apetite, que vendeu

170. Informação prestada por José Fernando Martins, filho do editor José de Barros Martins, no dia 3 de outubro de 2007.

171. Entrevista concedida por Pedro Paulo Poppovic ao autor no dia 8 de fevereiro de 2007.

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um milhão e duzentos mil exemplares na primeira semana) à filosofia (Os Pensadores, coleção que foi concebida e só existe no Brasil, tendo tornado a Abril a maior editora de livros de filosofia do mundo!), os fascículos, nos primeiros anos, sustentavam a então deficitária Veja.172 Em nenhum outro país tiveram a importância que conseguiram obter no Brasil. Parte da classe média brasileira estava beneficiando-se com a política econômica do regime militar, e as coleções, devidamente en-cadernadas, eram um símbolo de status para essa parcela da população que havia melhorado de vida.

Discos em bancas, pela primeira vezAssim como A Bíblia mais bela do mundo, Conhecer e Gênios da Pintura, a coleção Grandes Compositores da Música Universal era uma versão de um original italiano, da mesma Fratelli Fabbri. Consistia de 48 fascículos com uma biografia ilustrada de um compositor e uma análise das obras gravadas, acompanhados de LPs de 10 polegadas, monofônicos. Com o primeiro vinha um encarte: A arte da música: a linguagem musical �– sua história �– uma orquestra sinfônica �– os instrumentos. Segundo Poppovic, embora os originais tivessem sido comprados da editora italiana, as ne-gociações dos direitos sobre as gravações tinham que ser feitas direta-mente pela Abril com editoras de partituras, intérpretes e herdeiros de compositores, o que dava muito trabalho, especialmente os herdeiros, �“que tinham mais apetite�”. E havia uma barreira legal a ser vencida, o que só foi conseguido pela importância política e econômica da editora e após um ano de negociações com o governo federal:

A legislação não previa essa possibilidade, porque discos, ao contrário de revistas, não eram isentos do Imposto sobre a Circulação de Mercadorias, o ICM. Exigência de Victor Civita: �“Eu quero um advogado com pelo no peito! Eu lhe digo o que quero fazer, ele me diz como�”. Solução: os advogados convenceram o ministro da Fazenda, Delfim Neto, a conversar com to-dos os secretários estaduais da Educação, e o Governo Federal passou a recolher o ICM na fonte (as bancas),

172. Para muitos fascículos, a Abril chegou a contratar o trabalho de intelectuais, muitos deles da USP, que estavam sendo perseguidos pela ditadura militar.

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redistribuindo-o para os Estados. O primeiro exemplar da coleção, o Concerto Nº. 1 para Piano e Orquestra, de Tchaikovsky, vendeu 270 mil exemplares.173

A RCA, encarregada da prensagem, inicialmente relutou em fabricar um número tão grande de discos: 270 mil exemplares representam uma cifra extraordinariamente alta para um disco de música clássica, mes-mo hoje, quando o país conta com o dobro da população que tinha no final dos anos 60. Mas o eficiente esquema de divulgação e distribuição, com comerciais no rádio e na TV e fascículos presentes em todas as ban-cas, funcionou: a coleção era vendida inclusive em muitas cidades que não dispunham de nenhuma loja de discos. Pedro Paulo conta que sua empregada, na época, gostava de música clássica, mas não tinha cora-gem de entrar numa loja e pedir um disco, pois não sabia pronunciar o nome dos compositores. Na banca, além de o preço ser muito mais em conta, era só pegar e pagar...174

Os fascículos, de música ou não, deram tão certo que, após os pri-meiros anos, a Abril resolver criá-los em casa, aproveitando a experi-ência adquirida com o lançamento de versões de originais italianos, e assim nasceu a coleção História da Música Popular Brasileira, também com 48 volumes, lançada em 1970, proposta por Pedro Paulo Poppovic. Para a sua realização, montou-se um esquema que funcionava assim: três assessores selecionavam consultores, tidos como especialistas em determinados aspectos da música popular brasileira, que indicavam a pauta do fascículo e as músicas a serem incluídas. Em seguida, vinha a fase de negociação de direitos. Segundo Pedro Paulo, no início os deten-tores dos direitos comportavam-se como quem estivesse fazendo um favor à editora; mas quando perceberam o tamanho das tiragens, come-çaram a fazer fila para oferecer as gravações. Negociados os direitos, o consultor indicava um pesquisador, com base na pauta já elaborada. O resultado da pesquisa voltava para o consultor, para aprovação do con-teúdo. Em seguida, ia para um redator dar a forma final. O trabalho do redator era checado pelo consultor, e depois ia para o diretor da Divisão de Fascículos. Em seguida, era encaminhado para o Departamento de Arte, para pesquisa iconográfica e elaboração das artes, a cargo de Elifas

173. www.abril.com.br/institucional/50anos/fasciculos.html. Último acesso em 28/5/2007.

174. Entrevista com Pedro Paulo Poppovic concedida ao autor no dia 8 de fevereiro de 2007.

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Andreato, que se notabilizaria pelo seu trabalho com capas de LPs. O resultado, antes de ir para a gráfica, passava novamente pelo diretor.

O primeiro fascículo foi dedicado a Noel Rosa e vinha acompanha-do de uma síntese ilustrada da história da música popular do Brasil �– O som brasileiro: do lundu à tropicália �– e de um encarte explicativo �– História da Música Popular Brasileira. Uma coleção que vai mudar o seu ritmo de vida.

Muitas gravações que fazem parte dessa coleção estavam inacessí-veis ao grande público e outras foram feitas especialmente para os fas-cículos. Houve até a transcrição de cilindros de cera.175 Logo no primei-ro volume, dedicado a Noel Rosa, são incluídos registros dos anos 30, como a de �“Palpite Infeliz�”, com Aracy de Almeida, de 1936, mas tam-bém duas versões de outros clássicos de Noel �– �“Conversa de Botequim e �“Com que Roupa�”, feitas especialmente por Martinho da Vila para a coleção. O segundo fascículo, dedicado a Pixinguinha, recupera uma gravação mecânica do chorinho �“Urubu�” feita pelos Oito Batutas, em Buenos Aires. O terceiro, com músicas de Dorival Caymmi, traz o re-gistro original de �“O que é que a baiana tem?�” com Caymmi e Carmen Miranda, de 1939. O sexto volume, com obras de Lamartine Babo, inclui uma gravação de �“O teu cabelo não nega�” de 1931, �“um milagre técnico de recuperação�”, como diz a publicação do fascículo (lembre-se que não havia processos digitais naquela época).

Assis Valente assina as músicas do fascículo número 13, e uma delas também foi gravada em Buenos Aires, em 1935, durante uma tempora-da do Bando da Lua naquela cidade. Já o de número 16 reúne músicas de Antônio Carlos Jobim, incluindo dois registros até então inéditos: �“Dindi�”, com Sílvia Telles, uma versão feita na Alemanha para a MPS �– Musik Produktion Schwarzwald, em 1966, que seria a sua última gra-vação, e �“A felicidade�”, com Agostinho dod Santos e apenas o piano de Jobim, considerada demasiadamente moderna na sua época (1959) para ser lançada no mercado.

O fascículo de Sérgio Ricardo (nº 37) traz um trecho da trilha sonora de Deus e o diabo na terra do sol, que havia sido lançada pela gravadora Forma em 1964. A estreia de Orlando Silva no disco está incluída no vo-lume de Catulo da Paixão/Cândido das Neves: �“Última estrofe�”, de 1935. No fascículo nº 40, dedicado a Ernesto Nazareth e Chiquinha Gonzaga,

175. Nos aparelhos que seguiam o modelo do fonógrafo de Edison, as gravações eram registradas em cilindros recobertos de cera.

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�“Apanhei-te cavaquinho�” aparece numa gravação com o próprio autor ao piano, de 1930, e �“Falena�”, de Chiquinha Gonzaga, num registro me-cânico recuperado, com o próprio grupo da compositora. No volume nº 43, com músicas de Johnny Alf, está incluída a primeira gravação de �“Rapaz de bem�”, de 1955, música precursora da Bossa Nova, interpre-tada pelo próprio autor.

Capiba e Nelson Ferreira são os nomes do fascículo nº 44, e nele incluem-se várias gravações especiais, feitas pelos Titulares do Ritmo e por coro e orquestra executando arranjos de Cyro Pereira. O volume seguinte �– Adoniran Barbosa e Paulo Vanzolini �– traz registros que só figuravam num álbum distribuído como brinde por uma empresa de financiamento. O último volume, de número 48, volta ao início da mú-sica popular brasileira gravada, com Donga e os primitivos. Nele, está incluí do o primeiro samba gravado: �“Pelo telefone�”, de 1917, além de registros com Radamés Gnatalli, Altamiro Carrilho e outros nomes im-portantes da música popular brasileira.

Além da recuperação de gravações raras e daquelas feitas especial-mente para a coleção, é de se notar a qualidade do texto e das capas, bem como a estatura e heterogeneidade de alguns colaboradores. Eram assessores: José Lino Grünewald, José Ramos Tinhorão e Tarik de Souza. O colégio de consultores era formado por nomes que iam de Aracy de Almeida a Augusto de Campos. Esse último assina um texto no fascículo nº 30, dedicado a Gilberto Gil, e, no mesmo volume, trava um diálogo com Rogério Duprat.

O fascículo nº 24, com músicas de Vinícius de Moraes, traz um tex-to sobre a trajetória literária do poeta assinado por Antônio Cândido, um dos nomes mais venerados da Universidade de São Paulo. E tanto o volume de Gil como o de Caetano (nº 22) apenas mencionam que eles estão em Londres, sem entrar em maiores detalhes. Era o auge da repressão da ditadura militar, e não poderia haver uma explicação do seu exílio. Também não podia ser dito, com todas as letras, o que levou Geraldo Vandré a sair do país (fascículo nº 34) depois da sua apresenta-ção da �“Pra não dizer que não falei de flores�” no Festival Internacional da Canção, promovido pela Globo, em 1968. Mas o texto fala das suas andanças, difíceis, pelo Chile e pela Europa. E da sua partida: a fita dei-xada num gravador cantava a nova despedida. O recomeço, o fim e o princípio: �“Vou-me embora. / Não chore não, amor, eu volto...�”176

176. História da Música Popular Brasileira. Fascículo nº 34, p. 9

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Esses discos foram importantes não somente para os colecionado-res particulares: nas emissoras de rádio e televisão era muito comum recorrer �“àqueles discos da Abril�” quando se precisava de uma música de Pixinguinha ou Ary Barroso que, de outra maneira, não seria encon-trável.

Em 1971, a Abril volta a lançar uma versão de original italiano: As Grandes Óperas. Os fascículos também eram acompanhados de um LP, este já de 12 polegadas e em estéreo. O primeiro trazia os principais trechos de Aida, de Verdi, e com ele vinha um encarte contendo uma Pequena História da Ópera e incluindo uma síntese da história da ópera no Brasil, com uma lista das óperas brasileiras levadas à cena de 1860 a 1952. Também marcando a versão brasileira, havia a versão para o português dos trechos do libreto correspondentes às gravações.

Em 1972, é lançada a coleção Povos e Países, composta de fascículos com informações históricas e geográficas sobre variados países e um compacto duplo (disco de vinil, com sete polegadas de diâmetro e duas músicas de cada lado) com músicas autênticas dos países focalizados. O número Mundo Árabe, por exemplo, traz um disco com �“Danças dos homens dos Oásis por ocasião das núpcias�” e �“Danças tradicionais dos beduínos�”, com o conjunto de música popular de Hamadi Laghbabi, e no outro lado, �“Yaboulid Essifa�”, com Cherif Khaeddam.

A série de MPB é relançada com algumas alterações em 1976, agora com o título Nova História da Música Popular Brasileira. Entre 1979 e 1984 são publicadas as coleções Mestres da Música e Música pelos Mestres, com ilustrações que vinham da Itália, textos ao menos parcialmente escritos por brasileiros (Luís Antônio Giron e J. Jota de Moraes) e que já incluíam obras de autores do século XX, como �“Petruchka�”, de Stravinsky, ou �“Alexander Nevsky�”, de Prokofiev. Alguns dos intérpretes estavam en-tre os mais prestigiados da época, como o pianista Lazar Berman, que executa obras de Liszt, e o conjunto de câmara I Musici, que interpreta Vivaldi. Os fascículos incluíam uma cronologia do compositor focali-zado, uma análise da sua produção dentro de um determinado gênero ou forma correspondente às obras registradas no disco, um guia do ouvinte, com uma análise das obras apresentadas e informações sobre os intérpretes. Em nenhuma das coleções de música clássica foi possí-vel incluir um autor como Villa-Lobos por causa das dificuldades com a editora Max Eschig, sediada em Paris, que detinha os direitos de muitas obras desse compositor.

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Em 1980/1981, mais uma versão de original italiano: Gigantes do Jazz, com volumes dedicados a Duke Ellington, Theloneous Monk, Art Tatum e outros �“gigantes�”. Além de uma biografia do intérprete e/ou compositor, os volumes incluíam um Guia do Disco e uma transcrição para partitura da melodia de uma das faixas.

Em 1982/1984, é lançada uma nova versão da História da Música Popular Brasileira, desta vez com o subtítulo Grandes Compositores. Como a primeira, contava com colaboradores tão diversos como J. Jota de Moraes, José Ramos Tinhorão, Maurício Kubrusly, Sérgio Cabral e Tarik de Souza. E acrescentava alguns compositores que não estavam presentes na primeira edição: Alceu Valença, Fagner, Bide, Marçal e Paulo da Portela, entre outros. E ainda, fascículos dedicados a gêneros e intérpretes. Um deles é o volume Música Sertaneja, que inclui alguns clássicos do gênero, como �“Beijinho doce�”, com as Irmãs Castro; �“O me-nino da porteira�”, com Tião Carreiro e Pardinho; �“Moda da Pinga�”, com Inezita Barroso; e �“Tristeza do Jeca�”, com Tonico e Tinoco.

O Disco de Bolso Se as coleções de fascículos da Abril representam o poder de uma das maiores editoras do país e foram realizadas num esquema altamente industrial, encontra-se no outro extremo uma iniciativa do cantor, com-positor e sempre rebelde Sérgio Ricardo, do ano de 1972: o Disco de Bolso. A proposta, que tinha a parceria do semanário O Pasquim, era, com recursos mínimos, romper as barreiras comerciais impostas por gravadoras, emissoras de rádio e TV, produzindo discos independentes, com gravações inéditas, para serem vendidos em bancas de jornais. O primeiro deles, um �“compacto simples�” (disco de vinil com sete pole-gadas de diâmetro e uma música de cada lado) tinha o título O tom de Antônio Carlos Jobim e o tal de João Bosco. A ideia era sempre reunir uma música desconhecida de um compositor consagrado e uma composi-ção também desconhecida de um autor promissor. Esse primeiro disco apresenta nada menos que a primeira gravação mundial de �“Águas de março�”, cantada pelo próprio Jobim, e a primeira gravação de uma com-posição �– �“Agnus Sei�” �– da então desconhecida dupla João Bosco (então com 24 anos) e Aldir Blanc. O disco vinha juntamente com uma peque-na revista, ao estilo do Pasquim, que trazia na sua primeira página um artigo do próprio Sérgio Ricardo: �“Qual é a do Disco de Bolso�”, em que

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ele afirma que o Disco de Bolso entrava na briga pra romper um círculo vicioso:

Do modo que as coisas andam, o autor (novo ou velho) quer gravar e procura a gravadora. Como ela tem que investir no disco, faz uma pesquisa de mercado. Aí o lojista diz que não vai ficar com o disco na prateleira porque não há procura daquele artista. A procura diz que não procura o artista porque não sabe nem que ele existe, não ouve nada dele no rádio nem na televisão. O rádio diz que não toca porque: primeiro, tem pouco tempo de música brasileira no ar; segundo, porque o artista é mascarado e não vem pedir pra tocar; terceiro, que esse cara não dá ibope; quarto, não tá na onda jo-vem, parará-pororó; quinto, por umas e outras fofocas; sexto, porque não vou com a cara dele; sétimo, a televi-são diz que é porque não tem muito programa musical; oitavo, que não vai ficar na geladeira por causa daque-le problema com a censura; e nove, o círculo se fecha quando a gravadora responde ao artista que por hora não tá dando pé.177

A gravação de �“Águas de março�” contou com um arranjo do próprio Tom Jobim e com conjunto de cinco flautas (uma delas tocada por Paulo Jobim, filho do compositor), percussão, contrabaixo e violão, além do vocal de Jobim. Na revista, é reproduzida uma partitura simplificada da composição para piano. �“Agnus sei�” foi gravada apenas com a voz e o violão de João Bosco �– padrão que o cantor/compositor iria adotar em muitos dos seus shows e gravações �– e também traz uma partitura, com a melodia e cifras. A revista também inclui desenhos de Jaguar, entrevistas e biografias dos compositores, além de um artigo de Sérgio Cabral marcando os 35 anos da morte de Noel Rosa.

Também lançado em 1972, o segundo número do Disco de Bolso traz o novato Fagner cantando �“Mucuripe�”, uma composição sua e de Belchior. No outro lado, Caetano Veloso interpreta �“A volta da Asa Branca�”, homenageando Luiz Gonzaga e Zé Dantas.

Esse número foi também o último: inexperiência dos administra-dores, pouca divulgação fora do Rio de Janeiro e uma crise n�’O Pasquim

177. Disco de Bolso: o tom de Antônio Carlos Jobim e o tal de João Bosco, p. 1

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fizeram com que mesmo duas gravações já prontas para o terceiro nú-mero �– com Geraldo Vandré e Elomar �– nunca fossem para as bancas. Conta Sérgio Ricardo:

Havia já uma fila de novos e conhecidos, alguns deles já gravados pelo DB [Disco de Bolso], quando o Pasquim pediu um tempo, devido a uma crise interna que quase o levou à falência. Interrompeu-se o projeto, para nun-ca mais ser retomado. Era uma ideia boa demais para permanecer no marasmo daquela mediocridade vigen-te. Lamentei sua interrupção, praticamente superável, porque teria sido mais uma arma de resistência contra a perda da memória de nossa música.178

Outras coleções aparecem Nos anos 80 e 90 outras coleções passam a frequentar as bancas de jor-nais, concentradas em jazz e música clássica, e sendo todas elas ideali-zadas no exterior. De início, abandonam o formato LP e passam a usar fitas cassete, pois os �“compact discs�” (CDs) ainda não tinham grande disseminação no Brasil: eram bem mais caros que um LP e os aparelhos reprodutores, também pelo seu custo, só podiam ser adquiridos por um público muito restrito. É dessa época a coleção Clássica: a história dos gê-nios da música, lançada pela Nova Cultural em 1988, versão de original italiano publicado dois anos antes pela Fabbri italiana. Cada unidade dessa coleção era composta por um livro de, aproximadamente, 50 pá-ginas dedicado a um compositor e uma caixa com quatro minicassetes contendo algumas de suas obras. Com a popularização do CD, espe-cialmente a partir dos anos 90, as coleções começam a aparecer nesse tipo de mídia. Mas, numa fase de globalização, nota-se que, na maioria dos casos, não são versões brasileiras de produções estrangeiras, muito menos produções nacionais: os textos são da Espanha e de Portugal, o material impresso já vem pronto de fora e, em algumas dessas coleções, também os CDs.

Em 1994, o público brasileiro toma contato com a Opera Collection, da Orbis Fabbri. São 41 óperas completas, gravadas em 91 CDs, com

178. Sérgio Ricardo. Quem quebrou meu violão, p. 231.

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gravações que já haviam sido lançadas em vinil pela Decca inglesa, uma das gravadoras mais importantes no campo da música clássica.

Uma série lançada em 1996 foi The Jazz Masters: 100 anos de Swing �– Folio Collection. Essa coleção foi publicada por Ediciones Folio, com sede em Barcelona. Criada em 1980, trabalhava apenas com livros, até que em 1992 lançou-se no mercado de vendas em bancas de jornais com a publicação de livros e fascículos acompanhados de CDs, CD-ROMs ou DVDs.179 Nos anos 90, a editora expandiu suas vendas para a América Latina, e é com essa iniciativa que a coleção The Jazz Masters aparece no Brasil, em 1996. Os fascículos em português foram impressos em Barcelona, e os CDs, como não contêm nenhuma palavra em português, nem mesmo aqueles avisos que proíbem a sua transmissão, duplicação, etc., (aparecem em inglês) provavelmente também foram fabricados no exterior.

O ano de 1996 foi rico em lançamentos: junta-se às anteriores a coleção Os grandes clássicos: história da música clássica, de Ediciones del Prado, de Madri, formada por 75 fascículos e CDs que já vieram pron-tos da Espanha e foram distribuídos pela Fernando Chinaglia Editores. Embora em português, nota-se que a revisão deixou escapar palavras que remetem ao original espanhol, como �“independientes�”, �“alternan-dose�” e �“herença�”.180

Ainda em 1996, uma coleção mais especializada é colocada nas ban-cas: Mestres do Blues, da espanhola Altaya, com 40 fascículos e CDs que, como no caso anterior, já vieram prontos do seu país de origem e tam-bém foram distribuídos pela Fernando Chinaglia.

Também em 1996 chegava ao Brasil outra coleção dedicada ao jazz, publicada por Ediciones del Prado, de Madri, que tinha como título sim-plesmente a palavra �“Jazz�”. A editora foi fundada em 1988 e sempre se especializou em fascículos vendidos em bancas de jornais.181 A co-leção era uma versão espanhola de original italiano: nos CDs, consta a informação: �“Licencia SAAR, Milano, 1994�” e os dizeres aparecem em espanhol, o que faz supor que também foram feitos no exterior. A parte impressa ficou a cargo de uma gráfica em Madri.

179. www.folio-sa.es/. Último acesso em 24/5/2007.

180. Fascículo 25, primeira contracapa e página 25.

181. www.delprado.com. Último acesso em 28/5/2007.

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Em 1996/1997 é lançada nas bancas brasileiras a coleção Música Sacra, por Ediciones Altaya,182 de Barcelona, composta de 75 fascículos e 75 CDs. Os fascículos foram impressos na Espanha e os CDs, aparente-mente, também vieram do exterior.

Uma importante coleção de música clássica vendida em bancas de jornais foi a Deutsche Grammophon Collection, composta de 75 volumes e 76 CDs (o primeiro contém dois CDs), também de Ediciones Altaya. A Deutsche Grammophon é uma gravadora que sempre trabalhou exclu-sivamente com música clássica, e em 1998 comemorou seu centenário. Em 1999, a coleção era lançada, reunindo intérpretes de grande cele-bridade: entre os solistas, Yehudi Menuhin, Sviatoslav Richter, Itzhak Perlman e Plácido Domingo; como regentes, Karajan, Giulini, Barenboim, Bernstein, entre outros; entre as orquestras, a Filarmônica de Berlim, a de Viena e a Sinfônica de Chicago figuravam entre as incluídas. Na verdade, assim como em outros casos, eram gravações que já haviam sido lançadas no mercado, e estavam sendo reeditadas para um público mais amplo. O fascículo introdutório dá uma ideia do planejamento de marketing para que a coleção fosse bem vendida, quando diz:

Os fascículos poderão ser encadernados em três volu-mes de 300 páginas cada um: o volume I apresenta o período da Antiguidade até o final do classicismo; o vo-lume II engloba o período romântico e o volume III, a música contemporânea [aqui entendida como música do século XX]. A coleção, de publicação semanal, inicia-se com os fascículos correspondentes ao segundo vo-lume, que serão seguidos pelos do terceiro e primeiro, respectivamente.183

Dessa forma, a coleção começava com os compositores do período romântico, mais apreciados pelo público. (Vale lembrar que a primei-ra coleção da Abril, de 1968, iniciava com o Concerto nº 1 para piano e orquestra de Tchaikovsky, uma das obras eruditas mais divulgadas em todo o mundo �– o gosto do grande público não mudou muito, mesmo de-pois de três décadas...) Mais uma vez, os fascículos foram impressos na Espanha, e no seu texto percebe-se que foram traduzidos em Portugal,

182. www.altaya.es. Último acesso em 28/05/07.

183. Deutshche Grammophon Collection. Fascículo de apresentação, p. 5.

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pois adotou-se a grafia desse país. Já a fabricação dos CDs ficou a cargo da empresa brasileira Videolar, no Polo Industrial de Manaus.

Grandes Compositores é uma coleção lançada em 2005 por outra edi-tora de Barcelona �– Editorial Sol90 �– que foi distribuída juntamente com jornais em vários países. A que apareceu nas bancas brasileiras é a edição portuguesa, vinculada ao jornal Expresso, de Lisboa, cuja marca aparece na capa. A mesma editora também lançou uma coleção de óperas, que foi vendida em bancas neste país. Em ambos os casos, os fascículos na verdade são pequenos livros, com cerca de 50 páginas cada um, que sintetizam a vida e a obra de um compositor e trazem um comentário sobre a obra que consta do CD.

Também em 2005, e seguindo a mesma linha de Grandes Compositores, o jornal Folha de S. Paulo lança a coleção Royal Philharmonic Orchestra. Reafirmando a hegemonia espanhola nessa área, os originais vieram do Mediasat Group, com sede em Madri. Esse grupo é especializado em produzir coleções sob medida para seus clientes, como afirma no seu site em inglês:

O repertório musical é selecionado de acordo com as necessidades individuais dos clientes. Preparamos dis-cos com compilações musicais para todas as ocasiões e para cada público-alvo dos clientes, fazendo uso de nosso bem provido catálogo musical. É sua decisão qual tipo de música e quais intérpretes será incluído num disco promocional (tradução minha).184

A coleção da Folha de S. Paulo é formada de 36 pequenos livros, com cerca de 60 páginas cada um, acompanhados de um CD. Os livros foram impressos no Brasil pela multinacional RR Donnelley Moore, e os CDs, fabricados no Polo Industrial de Manaus pela empresa alemã Sonopress. As informações para a divulgação são imprecisas, como quando dizem que cada CD trará �“as principais obras�”185 do compositor (num só CD? e suas obras não sinfônicas?). O volume dedicado a Chopin, por exemplo, traz seus dois concertos para piano, e ignora toda a sua produção para piano solo, muito mais importante.

184. www.mediasatgroup.com. Último acesso em 28/5/2007.

185. musicaclassica.folha.com.br. Último acesso em 28/5/2007.

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Nos últimos anos, a revista Caras, dedicada a falar da vida das cele-bridades, também tem lançado coleções de CDs (além de coleções em vídeo e objetos variados). Uma delas foi Jóias da Música, formada por 10 CDs que vinham acoplados à revista e, direcionados ao público de Caras, continham somente trechos das composições clássicas mais conhecidas, como a �“Valsa das flores�”, da suíte O quebra-nozes, de Tchaikovsky, ou �“Aleluia�”, do oratório O Messias, de Haendel. Essa série teve o apoio cultu-ral da Vinólia (provavelmente com a utilização de alguma lei de renúncia fiscal). A versão original é da Barsa Produciones, também da Espanha.

Outra coleção de Caras foi a Música do século, com clássicos da música popular norte-americana (somente estes constituem a �“música do sécu-lo�”?). Para tanto, a Editora Caras apelou para a HHO �– Henry Haddaway Organization Ltd �– �“o maior licenciador independente de material au-diovisual do mundo�”, segundo o seu site.186 Do mesmo modo que a ci-tada Mediasat, essa empresa, baseada em Londres, tem um catálogo do qual se pode licenciar músicas ao gosto do cliente. Os CDs contêm um �“bônus�”: reafirmando a vocação da revista, de alimentar o gosto do seu público pela vida das celebridades, um deles traz uma faixa multimídia sobre �“Edward e a Sra. Simpson�” (Eduardo VIII, tio da Rainha Elizabeth II, foi o rei britânico que renunciou ao trono em favor de seu irmão e casou-se com Walli Simpson, uma americana divorciada).

A coleção de fonogramas mais recente da revista Caras foi lançada em parceria com a Azul Music, gravadora criada em 1993 e que, ini-cialmente, se destacou no segmento de músicas para meditação e re-laxamento. Essa gravadora ultimamente vem incursionando em outros estilos musicais, como o lounge e a música eletrônica.187 A coleção dis-tribuída pela Caras e produzida pela Azul Music é composta de �“25 CDs, onde traços culturais e musicais de cada região foram retratados pelo cast de produtores e artistas da gravadora, e também por músicos e artistas convidados de todo o planeta�”, como diz a contracapa de todos os CDs. A música de Bali, A música da África, A música do Tibete e A música dos países árabes são os títulos de alguns CDs. Na verdade, trata-se de simulacros da música desses países. De modo muito diferente da citada coleção Povos e Países, muitas das faixas são interpretadas por artistas nacionais que adotam nomes exóticos, e todas apresentam um produto bastante pasteurizado, frequentemente com elementos de música pop,

186. www.hho.co.uk. Último acesso em 3/10/2007.

187. www.azulmusic.com.br Último acesso em 25/5/2007.

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lounge e new age. O CD com �“a música de Bali�”, por exemplo, apresen-ta faixas com títulos como �“Bali Sunrise�” (Crepúsculo de Bali) e �“Bali Nights�” (Noites de Bali), títulos que já sugerem um simulacro com um perfume de Hollywood. Parece destinar-se a um público que só aprecia entrar em contato com uma cultura diferente de longe e sem nenhum envolvimento �– como passageiros de um navio de cruzeiro observando os nativos da amurada da embarcação.

Em setembro de 2007 era lançada pela Folha de S. Paulo a coleção Clássicos do Jazz, composta de 20 pequenos livros, cada um com um CD, com gravações de um grande nome do jazz. O formato é muito seme-lhante ao da coleção Royal Philharmonic Orchestra, lançada pela mes-ma Folha, mas desta vez os textos são assinados pelo brasileiro Carlos Calado, crítico de jazz do jornal. O licenciamento dos fonogramas foi feito utilizando-se o catálogo da Mediafashion, empresa com sede em Portugal e escritórios em vários países europeus, Moçambique, México e Brasil, e que, como outras companhias já citadas, fornece música ao gosto do cliente para que este monte o seu produto.188 As seleções mu-sicais nem sempre são as melhores. Um exemplo é o primeiro CD da série, dedicado a Nat King Cole: embora o músico escolhido tenha sido um grande pianista de jazz e a coleção seja dedicada a esse gênero, 12 das 14 faixas trazem o Nat King Cole cantor, interpretando um reper-tório de música popular americana sem demonstrar as suas qualidades jazzísticas. E não as melhores versões que Cole gravou dessas canções, mas sim registros de um show em Las Vegas, em 1960.

Uma produção brasileira de 2009 foi a Coleção Folha 50 anos de Bossa Nova, composta também de pequenos livros, com bonitas fotos �– algu-mas muito pouco conhecidas �– e textos de Ruy Castro, um verdadeiro �“sacerdote�” da bossa nova, acompanhados, cada um, de um CD. O gran-de ausente dessa coleção é, sem dúvida, João Gilberto. Provavelmente tendo como causa questões de direitos autorais, trata-se de uma ausên-cia e tanto: João Gilberto foi quem estabeleceu um padrão de canto para o gênero, quem gravou pela primeira vez a famosa batida ao violão (num disco de Elizeth Cardoso) e quem registrou o primeiro disco do qual se pode dizer que é integralmente bossa nova (Chega de Saudade �– embora a primeira gravação tenha sido a de Elizeth) e que foi lançado no mer-cado, ainda em 78 RPM, em 1958. Nesta coleção, consta como editora a já citada empresa Mediafashion, mas as produtoras originais das gra-

188. www.mediafashion.com.pt. Último acesso em 03/10/2007.

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vações são citadas na última página de cada número, com a tradicional expressão �“fonogramas gentilmente cedidos por�” Sony BMG, Universal Music, etc. Embora aqui e ali se notem inclusões não muito importantes, e com a ressalva feita acima, de modo geral a coleção conta com grava-ções bastante representativas do gênero que propõe celebrar.

Uma importante coleção lançada em 2009 foi Tesouros da Ópera, edi-ção brasileira da coleção Los Clásicos de la Ópera: 400 años, publicada ori-ginalmente pela editora Altea na Espanha em 2006. São 25 livros com CDs que trazem gravações completas de óperas famosas, com obras que vão do Orfeo de Monteverdi a Wozzeck de Alban Berg. Os livros são visualmente atraentes, com textos de qualidade, oferecidos a um preço nas bancas que é uma pequena fração do que se paga pela gravação completa em CD de uma ópera, quase sempre importada. Trazem sem-pre o libreto original na íntegra, com uma competente tradução para o português, ao lado do texto original. As gravações, boa parte delas feita nos anos 50, passaram por uma digitalização que produziu, em muitos casos, uma surpreendente qualidade sonora: veja-se, por exemplo, o registro de Rusalka, de Dvorak, feito em Praga, em 1952. Se para os es-pecialistas no gênero nem sempre se trata das melhores gravações, ou a sua qualidade de áudio não se compara a de gravações posteriores, em alguns casos elas satisfazem mesmo os mais exigentes. É o caso de La Traviata, de Verdi, gravada em 1953, com Maria Callas no papel-título, de Tristão e Isolda, de Wagner, com Kirsten Flagstad, considerada uma das maiores intérpretes wagnerianas de todos os tempos, ou de Lucia de Lammermoor, de Donizzetti, com Renata Scotto e Luciano Pavarotti.

Deve-se mencionar, ainda, a coleção Grandes Compositores da Música Clássica, lançada pela revista Bravo!/Abril Coleções também em 2009. São 40 pequenos livros com um CD cada um. É uma coleção criada no Brasil, com textos de João Marcos Coelho e Leonardo Martinelli, e supervisão musical do maestro Roberto Minczuk. Os CDs trazem gra-vações da Naxos, gravadora que lançou no mercado, a preços baixos, numerosos registros de música clássica feitos na Europa Oriental. No Brasil, muitos desses títulos da Naxos foram lançados pela gravadora Movieplay. Curiosamente, o folheto de publicidade dessa coleção afir-ma que a Naxos é uma gravadora americana, mas no site da própria Naxos, informa-se que a �“Naxos é criação de Klaus Heymann, um em-presário alemão e amante da música, baseada em Hong Kong�”, e que suas atividades tiveram início em 1987.

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Os independentes nas bancas: o Disco de Bolso, versão atual?

Pierre Aderne, a Gol Records e a Panela Records Em sua tese de doutorado, Eduardo Vicente189 relata o trabalho do mú-sico e produtor Pierre Aderne. Um CD com hinos de clubes de futebol encartado na revista Placar foi o primeiro lançamento de Aderne para ser vendido nas bancas. O êxito foi tamanho �– 500 mil cópias vendidas �– que o levou a criar um selo, a Gol Records, especializada em produzir e distribuir CDs para serem encartados em jornais e revistas. Alguns números são astronômicos: foram vendidos 14 milhões de CDs com Cid Moreira lendo trechos da Bíblia que, somados às gravações de Miguel Falabela lendo poemas e às de um curso de inglês resultaram em 18 milhões de CDs! Mas Aderne queria viabilizar a produção de trabalhos independentes, e cria um novo selo �– o Panela Records.

Vicente lembra também que o primeiro álbum da Panela Records foi do grupo Blitz, distribuído juntamente com o jornal O Dia, do Rio de Janeiro. Segundo o site cliquemusic.uol.com.br esse CD, lançado em 1999, vendeu 50 mil cópias.190 Em seguida, segundo o mesmo site, Aderne inova mais uma vez pois, em vez de se limitar aos jornais e re-vistas do Rio ou de São Paulo, tem feito lançamentos acoplados a perió-dicos de cidades menores, como é o caso do CD de Oswaldo Montenegro, distribuído juntamente com o jornal Tribuna do Norte, de Natal. Numa semana, vendeu 10 mil cópias, número bastante expressivo para uma cidade relativamente pequena como aquela. Aderne assinou contratos com 440 jornais do interior do Brasil e outros 27 de capitais de estados para comercializar seus CDs.

Lobão e outracoisaCom a sua costumeira rebeldia, discordando dos critérios artísticos das grandes gravadoras e desconfiando da lisura das suas contabilidades, em 1999 o cantor e compositor Lobão resolveu lançar o seu CD A vida é doce em bancas de jornais (além de algumas megastores e sites de ven-das). O resultado não decepcionou: foram vendidos cem mil exemplares

189. Eduardo Vicente. Música e disco no Brasil: a trajetória da indústria nas décadas de 80 e 90.

190. www. cliquemusic.uol.com.br. Último acesso em 4 de outubro de 2007.

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dessa produção independente. Em 2002, ele foi um dos líderes do mo-vimento que batalhou pela aprovação da lei que tornou obrigatória a numeração de CDs lançados no Brasil, bem como a adoção, para cada música, do ISRC (International Standard Recording Code), um código alfanumérico que funciona como identificador básico de gravações fo-nográficas digitais, contribuindo para a moralização da arrecadação de direitos autorais.

Em 2003, Lobão punha nas bancas, em parceria com a editora L&C, do Rio de Janeiro, o primeiro número da revista outracoisa (assim mes-mo, em caixa baixa e com as duas palavras unidas), acompanhada de um CD inédito, com periodicidade bimestral e uma tiragem inicial de 20.000 exemplares. Ele dizia no editorial:

Uma revista? Um CD? Um projeto híbrido de cultura independente e guerrilha poética? Uma aposta em no-vas possibilidades de veiculação da expressão e de arte em geral? Sim. Tudo isso e muito mais paira por nossas cabeças, nossos corações e nossos sonhos. Nasce essa tal de outracoisa sob a égide do caos e processo, com o objetivo insuspeito de a gente se repensar, se reinven-tar, se reorganizar para se ter a liberdade de seduzir, apavorar, provocar, perceber, criar muitos problemas e, quem sabe, agenciar algumas soluções.191

A revista já lançou solistas e grupos de várias partes do país, como BNegão (Rio de Janeiro), Wander Wildner (Goiânia), Cachorro Grande (Porto Alegre), Mombojó (Recife) e Fauichecleres (Curitiba), além de um CD com Arnaldo Batista (ex-Mutantes) e outro com o próprio Lobão. Na sua busca por uma independência das gravadoras e das emissoras de rádio e TV, e pela distribuição em bancas de jornais, as produções in-dependentes de Aderne e da revista outracoisa não deixam de ter certa semelhança, no que se refere à produção e distribuição, com o Disco de Bolso dos anos 70. Mas situam-se em registro diferente em matéria de estilos musicais: o seu universo é o do pop e do rock.

191. revistaoutracoisa.com.br. Último acesso em 23/05/2007.

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Considerações finais Este pequeno estudo das coleções de fonogramas vendidos em ban-cas de jornais está longe de pretender esgotar o assunto. Uma ou ou-tra coleção pode ter sido deixada de lado e certamente haverá outras maneiras de abordar o tema. Mas a sua importância parece ter sido demonstrada: trata-se de milhões de exemplares discográficos, de va-riados gêneros que, há 40 anos, têm sido distribuídos até em regiões do país onde a banca de jornais é o único ponto onde se pode (ou se podia) encontrar música gravada. Deve-se registrar o pioneirismo da Editora Abril, primeiro lançando versões brasileiras de originais italianos e de-pois produzindo o que, para o autor deste texto, é a mais importante coleção já vendida em bancas: História da Música Popular Brasileira, não somente por se tratar de música brasileira, mas pelo extenso trabalho de pesquisa, elaboração de textos e recuperação de fonogramas, quan-do não, de gravações feitas especialmente para a série (por essa razão ela mereceu um espaço maior neste trabalho). Registre-se também a possibilidade que a banca de jornais tem oferecido para a distribuição de gravações independentes, de Sérgio Ricardo a Lobão.

Não foram incluídas neste artigo as gravações em VHS e DVD que têm sido distribuídas em bancas, pois isso o tornaria demasiado longo e abrangente: certamente esses produtos, com gravações musicais, mas também documentários, filmes de longa-metragem, etc., poderão ser objeto de outro trabalho.

CDs não musicais também mereceriam outra pesquisa: é o caso, por exemplo, das gravações do padre Marcelo Rossi que jornais como o Correio da Bahia ofereceram, em 2007, aos seus leitores �– mas estes não puderam adquiri-los nas bancas: apenas em dois postos do jornal em Salvador.192

Nestes tempos de distribuição de música pela web, quando se afir-ma que as próprias lojas de discos não sobreviverão, pode-se imaginar que discos em bancas de jornais (e as próprias bancas) daqui a algum tempo sejam coisa do passado. Mas nestas últimas décadas, a sua im-portância tem sido enorme.

192. Conforme recortes de 16 de setembro de 2007, p. 2, enviados pela pesquisadora Ayêska Paulafreitas.

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RÁDIO, MEMÓRIA E INDÚSTRIA FONOGRÁFICA:

um estudo sobre a Continental AM, de Porto Alegre, a partir de 1971

Sergio Francisco Endler

O som nosso de cada diaAté 1971, a Rádio Continental AM 1120, de Porto Alegre, embora inte-grante do Sistema Globo de Rádio, está isolada não somente na posição do dial. Com programação inexpressiva, apenas sobrevive, como rádio e empresa, no extremo sul da rede. Naquele ano, entretanto, tem início a renovação radical.

Coordenada pelo radialista e publicitário Fernando Westphalen, a nova programação da Continental surpreenderá a cidade com pro-gramação inovadora, quer no radiojornalismo, quer na programação musical ou, ainda, na customização da publicidade. Na Continental, a nova música da cidade ganha microfone, estúdio e gravação, ainda que artesanal. Logo, os novos artistas terão audiência, sempre crescente, formada pela programação diária da Continental.

Em apenas três meses, sob o slogan �“o som nosso de cada dia�”, ou-vintes e agências de publicidade já prestigiam, com a liderança no seg-mento, a programação daquela equipe formada pela mescla de radialis-tas experientes oriundos da então hegemônica Rádio Guaíba e jovens jornalistas, alguns ainda cursando Jornalismo.

Musicalidade atualizada pela inovação e radiojornalismo interpreta-tivo, com defesa da democracia, formam os pilares da programação da Continental, cuja linguagem é alinhavada com humor, com os sotaques

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da cidade, nos modos de fala do jovem porto-alegrense, agora, radio-fonizados.

Embora não seja a primeira emissora porto-alegrense com progra-mação segmentada, nem sequer seja a única a buscar o público jovem, a Continental inova ao selecionar o público estudantil e universitário, exclusivamente, como foco da programação. E inova, sobretudo, na lin-guagem e na oferta de cultura midiática ao público segmentado.

No contexto, a programação musical será o resultado otimizado de estratégia de comunicação de massa até ali inédita para a cidade. Com a Continental, o público estudantil e universitário sintoniza, ao mes-mo tempo, com atualização aos padrões da música internacional, com a inovação oportunizada pela nascente denominada MPB e, de modo particular, pela organização e programação diária da emergente música popular gaúcha (MPG), urbana e contemporânea, até ali desconhecida do grande público e ignorada pelas demais emissoras concorrentes.

As limitações para (SEM O �“a) o pleno desenvolvimento da progra-mação da Continental e publicização dos produtos gerados pela emisso-ra eram de diferentes grandezas. Primeiro, a restrição geográfica, pela rádio estar distante do eixo Rio-São Paulo. Segundo, a restrição técnica, a Continental possuía, inicialmente, equipamento defasado e pequena potência de antena. Terceiro, a limitação física, embora a sede da rádio estivesse no centro de Porto Alegre, o espaço físico era restrito a um conjunto comercial e, depois, dois. A quarta restrição era política, pois a rádio, sendo de oposição, operava sob a censura da ditadura militar imposta ao país.

A utilização maximizada do material discográfico existente e, logo, a produção de gravações caseiras próprias serão alternativas impor-tantes na estratégia da Continental. Era através dessa dupla articula-ção que a rádio conseguia, por exemplo, rodar lançamento de música de John Lennon apenas 24 horas após a música ter rodado na matriz. E, também, oferecer gravações exclusivas, inicialmente em fita mag-nética, de sucessos locais com Hermes Aquino, Almôndegas, Fernando Ribeiro, Nelson Coelho de Castro, Inconsciente Coletivo e Discocuecas, entre outros. A consequente contratação de gravadoras nacionais des-tes nomes surgidos na Continental contou com o trabalho de DJs como Mestre Julio e Cascalho e as gravações de Francisco Anele e Bertoldo Filho. As ações para garantir qualidade, criatividade e ineditismo ao som da Continental contavam, ainda, com arranjos como a colaboração

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do Agente 1120, na verdade, anônimo e amigo comissário de bordo da Varig, que garantia à emissora a colocação imediata de sucessos inter-nacionais.

A estratégia da Continental incluía o lançamento de nomes emer-gentes da MPB e não rodados em outras emissoras, como Milton Nascimento, Sergio Sampaio, Sá & Guarabira, Gonzaguinha e Sidnei Miller, entre outros. A programação contemplava, ainda, o Lado B de inúmeros artistas cujo sucesso obliterara a rodagem de segunda can-ção.

Enquanto a atualização do som internacional chegava, igualmente, pela assinatura de listas top ten, como Billboard e Clashbox, a emisso-ra alimentava a memória recente, rodando músicas no espaço �“Flash Back�”, sob o slogan �“jovem também tem saudade�”.

Mas foi pela ação dos DJs e pelas gravações na máquina de dois canais do chamado estúdio B que o grupo de radialistas e músicas ins-creveram a Continental como marco fundamental para a divulgação e memória da música popular gaúcha contemporânea. O quadro �“Pediu, rodou, ganhou�”, por exemplo, garantia ao ouvinte que tivesse sua carta sorteada, a programação da música preferida e o recebimento em casa daquela gravação exclusiva, em �“fitinha cassete�”.

Machu Pichu e Vento NegroO modelo de programação da Continental pode consolidar-se livre de concorrência antes do surgimento da primeira rádio em FM de Porto Alegre, que ocorre em 1975, com a estreia da Itaí FM. Aquele ano, tam-bém é a data-chave para o início da avalanche Continental, que se de-senvolve, em audiência e comercialização, programando a música local, com sucesso.

Em 1975, surge, como expressão de acordo comercial-operacional com a Lee, o personagem protagonizado por Julio Fürst, na condição de �“Mr. Lee�” que, em breve tempo, reunirá músicos locais de diferentes ten-dências, que passam a aparecer na programação diária da Rádio. Antes disto, numa articulação que envolve Francisco Anele, Hermes Aquino, grupo �“Almôndegas�”, entre outros, algumas músicas foram gravadas, em experimentação, utilizando-se gravadora de rolos, nos estúdios da própria Continental, em condições técnicas �“heróicas�”, dando início ao ciclo de músicas aqui produzidas, gravadas e lançadas pela emissora.

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O mestre artífice destas gravações é Francisco Anele, com supervisão técnica de Bertoldo Lauer Filho.

No ano de 1974, segundo entrevista de Anele para o autor, ele pre-cisará dispor os instrumentos em diferentes distâncias dos microfo-nes, para poder garantir efeitos de sonoridades desejadas para efetiva equalização dos instrumentos nos arranjos musicais. O arranjo dos ins-trumentos musicais, assim, nasce pela disposição física dos mesmos em estúdio. É particularmente difícil gravar, em apenas dois canais, o grupo Almôndegas. O resultado, entretanto, junto ao público, recom-pensa músicos e técnico. O mesmo ocorre com Hermes Aquino, à época, músico e compositor trabalhando como produtor de �“Cascalho Time�”. �“Machu Pichu�”, de Aquino, em que o músico consegue simular o som de um charango, utilizando uma viola de 12 cordas, �“Vento Negro�” e �“Até não mais�”, com os Almôndegas, inscrevem-se, então, entre as mais solicitadas músicas da Continental.

Na cidade de Porto Alegre, a juventude local contava, a partir daque-le ano de 1974, com uma articulação, com uma experiência de constru-ção de identidade, que ofertava música, rádio e, logo, shows, num espa-ço compartilhado, onde as significações de ser urbano, porto-alegrense, gaúcho, universitário e cosmopolita ganhavam corpo para milhares de jovens participantes, a partir da articulação empreendida pela Rádio Continental.

Na Rádio, aquele trabalho das gravações, segundo relatos do produ-tor musical Beto Roncaferro, era feito após o horário normal de traba-lho, altas horas da noite, em ritmo de mutirão. As produções ocorriam utilizando-se mesa de dois canais, gravadas em fitas-rolo, no espírito de �“vamos gravar para ouvir como é que fica�”. E foi um sucesso ines-perado.

Inicialmente, as gravações rodam apenas no programa de Julio Fürst. Daquelas exposições em parcos minutos, nos próximos meses, Julio aumentará o espaço para 30 minutos de apresentação e, logo, pre-cisará de uma hora exclusiva para a música local. O sucesso alcançado garantiria, depois, espaço para as mesmas músicas dentro da progra-mação normal de toda a emissora.

Depois deste sucesso local e regional, o próximo passo significou a assinatura de contratos com gravadoras do centro do país. No mesmo ano de 1974, as citadas �“Machu Pichu�”, de Hermes Aquino, e �“Vento Negro�” e �“Até não mais�”, com os Almôndegas, garantem contratos para

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gravações, respectivamente, pela Tapecar e pela Continental. Esta úl-tima gravadora contava com a coincidência de ser homônima à Rádio como fator de atratividade, embora fossem empresas diferentes, sem vínculos formais. Os artistas lançados pela Rádio Continental, a partir de 1975, ganham exposição nacional, através de programas massivos de televisão, como o Fantástico, na Globo, e igualmente, se transformam em sucesso nacional de vendas de discos.

O ex-diretor Fernando Westphalen, até hoje, orgulha-se pelo fato de ter a Continental �“apresentado os músicos gaúchos para o seu público�”. Logo, entretanto, aqueles artistas serão cooptados pela rede maior da indústria cultural nacional e, assim, no ano de 1976, tanto Almôndegas quanto Hermes Aquino conseguem furar o bloqueio Centro-Sul, colo-cando diferentes músicas em discos de telenovelas produzidas pela Rede Globo.

Hermes Aquino conta com o sucesso do disco compacto simples, que reúne �“Nuvem Passageira�” e �“Machu Pichu�”, pela Tapecar. Em 1976, a Som Livre inclui a primeira música no LP da trilha sonora da novela Casarão, de Lauro César Muniz.

Naquele mesmo ano, os Almôndegas têm a gravação da música �“Canção da Meia-Noite�”, composição de Zé Flávio de Oliveira, instru-mentista integrante do grupo, incluída no LP da trilha musical da te-lenovela Saramandaia, de Dias Gomes, na TV Globo. O grupo, a contar pela própria designação, que indica uma espécie de alimento compacto e reprocessado, na prática, mescla a riqueza de sons regionais gaúchos com a influência pop e rock, sem abrir mão do diálogo com a MPB da atualidade, desenvolvendo acurada sonoridade musical.

A Continental já dispõe de inúmeras fontes musicais que alimen-tariam, de modo distinguido, sua programação ao longo dos anos. O manancial está por toda a Porto Alegre que, além do Musipuc, conta, desde o início de 1975, com as chamadas �“Rodas de Som�”, organiza-das pelo músico e compositor Carlinhos Hartlieb. Naquele espaço do Teatro de Arena, Carlinhos convidaria, a cada sexta-feira, a partir da meia-noite, nomes como Nelson Coelho de Castro, Bebeto Alves, Mauro Kwitko, Mutuca, a banda Bixo da Seda (com alguns integrantes do an-tigo Liverpool), entre outros. Para todos os movimentos, para todas as tendências musicais, para todos os apreciadores de música, entretanto, ainda faltava mestre Julio Fürst lançar, ironicamente, dia 1º de abril, o aparecimento de Mr. Lee in Concert.

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�“Vivendo a vida de Lee�”Julio César Fürst sempre apreciou muito a música e, por isso, desde menino, esteve com ela, primeiro, por prazer e, logo, para trabalho. Fará breve carreira como músico, chegando a atuar, profissionalmen-te, antes do rádio, e, mesmo já profissional, como comunicador e DJ, terá carreira eclética, passando pela música jovem internacional, fará incursões pela black music and soul, investido no personagem �“Julius Brown�”. No ano de 1973, sempre a partir das 22 horas, na voz de Beto Roncaferro, a vinheta anunciava Mr. Julius com �“O som é uma viagem pra toda magrinhagem�”. Depois, na cronologia, seria a vez de �“Mr. Lee�” e, em seguida, Mestre Júlio.

Em 1972, Júlio iniciou carreira radialística, estreando na Rádio Pampa, no mesmo período em que dirigia a loja Mozart Discos, na rua 24 de Outubro, que iniciava descentralização da oferta de vendas de disco na cidade, até ali restrita ao centro de Porto Alegre, através da King�’s.

Julio Fürst, na época, gerenciava a loja e gravava fitas cassetes es-peciais para amigos. Indicado por amigo comum, será contratado por Otávio Dumit Gadret que, após enorme sucesso da programação seg-mentada na popularesca Rádio Caiçara, pretendia investir, também, no segmento jovem, através da recém-adquirida Rádio Pampa. Em 1972, Julio Fürst era contratado para ser o programador da primeira concor-rente no mercado da Continental. Fürst, apaixonado por rádio, desde os tempos em que tocava bateria no conjunto The Rockets, iniciava, ali, carreira como radialista. Com ele, estava o parceiro dos tempos de esco-la e da loja de discos, George Gilberto Dorsch, o Beto Roncaferro.

Em 1973, Fürst é contratado pela Continental, junto com Roncaferro, e leva consigo o personagem Julius Brown, com o qual apresentava, na Pampa, programa de black music e soul. A experiência dura até 1975, quando Brown será �“exportado para o Nepal�”, dando lugar ao novo personagem �“Mr. Lee�”, a partir do momento em que aquela marca de jeans recém-chegava ao Brasil, oficialmente.

Como profissional do rádio, Fürst, sobretudo, atuará movido pelo enorme talento pessoal, associado à curiosidade musical e pelo sen-so de oportunidade. Estas qualidades ensejam a oportunidade de ser contratado como DJ patrocinado por marca de jeans internacional. Inicialmente, embalado pela country music, Fürst será a nova voz radio-

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fônica que, definitivamente, reunirá, no mesmo espaço radiofônico, a maior amostragem da música jovem urbana gaúcha, a partir de 1975.

Aquele movimento de aproximação e consagração entre o artista local e o público representava uma imensa novidade para o rádio porto-alegrense. Até ali, o dial do rádio mostrara-se descuidado com o público jovem universitário, embora existissem opções mais popularescas.

Através da Continental, esta primeira parte daquele feito, responsá-vel pela música local em microfone da emissora de Porto Alegre, devia-se às ações de Julio Fürst. A outra parte, mais ampla e, igualmente, significativa, ficou com o público e suas construções simbólicas e iden-titárias de audiência, no acolhimento da programação diária e, depois, na aceitação das exibições em concertos públicos, reunindo milhares de ouvintes.

Entretanto, na origem do surgimento de �“Mr. Lee�”, existe uma cam-panha publicitária bem articulada e um contrato comercial, selando uma associação entre os fabricantes de jeans Lee e o grupo Renner, de indústria e comércio de confecções. A agência de publicidade contrata-da é a MPM, a mídia escolhida é a Rádio Continental e o DJ selecionado para viver o personagem �“Mr. Lee�” é Julio Fürst. No dia 1º de abril de 1975, o primeiro programa entra no ar pela Continental, revelando o �“cowboy do rádio�”, o �“mocinho da Porto City�”.

Os fabricantes da calça Lee, segundo entrevista para o autor Julio Fürst, escolheram iniciar campanha nacional, a partir de Porto Alegre. Certamente, contavam, nesta escolha, com a presença, aqui, do grupo Renner, tradicional no ramo do vestuário, atuando desde a fábrica até a oferta no balcão de lojas próprias, e, também, com a presença da MPM Propaganda, a maior do Estado e entre as detentoras de maiores contas no País. A Continental e Julio Fürst pegavam carona neste pool.

O projeto tivera protagonismo direto de Américo Bender, que per-cebera oportunidade de realização de negócio de representação da Lee, diante da demanda pelo vestuário jeans e pelo fato de não existir, a não ser através de contrabando, possibilidade de oferta daquele tipo de roupa para jovens.

Interpretamos que o fator regional possa ter auxiliado bastante para aquela aposta da Lee no solo gaúcho como porta de entrada no País. A tradição agropastoril do estado e o mito do gaúcho foram, tal-vez, dados considerados relevantes pelos investidores, estrangeiros e locais, quando da opção. Nos Estados Unidos, a Lee estava associada à

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figura do cowboy e, aqui no Brasil, trabalharia a mesma ideia, a partir de um Estado que construíra a figura do gaúcho. De resto, conforme localizamos na pesquisa, em passado recente, outra iniciativa seme-lhante havia sido realizada com boa eficácia empresarial, associando rádio, programa musical e roupa de brim.

Referimos, no caso, a associação entre programa de música e cultura regionalista da Rádio Farroupilha AM, de Porto Alegre, criado em 1955 e outro patrocinador fabricante de jeans. O programa �“Grande Rodeio�”, espaço para música, poesia e trova gauchesca, tornaria conhecida a linha de produtos denominada de �“Brim Coringa�”, sobretudo calças, produzidas, no Brasil, pela São Paulo Alpargatas. Ao longo da década iniciada em 1960, os apresentadores Darci Fagundes e Luiz Meneses consagrarão aquele espaço radiofônico, que passa a ser denominado �“Grande Rodeio Coringa�”, levado ao ar todos os domingos à noite.

No projeto da Continental, o �“Vivendo a vida de Lee�” será programa diário, sempre a partir das 22 horas. A emissora, antes, chega a divulgar teaser, onde anunciava: �“Não banque o bobo, não perca o 1º de abril�”. Na data indicada, em 1º de abril de 1975, o programa entrava no ar, pela primeira vez, conforme vinheta histórica, recuperada pelo acervo de Francisco Anele, tal como transcrevemos a seguir:193

TEC �– RODA TRILHA INSTRUMENTAL EM B.G. E FICA.

LOC 1 �– Primeiro de abril de 1975./ Um primeiro de abril diferente./ Sem dúvida, uma data histórica para a des-contraída moda da Brazuca./ A M.P.M. Propaganda e a Rádio Continental anunciam o início de uma nova vida para você./ A partir de hoje, você estará realmente viven-do com total autenticidade e liberdade, a Vida de LEE./

TEC �– RODA MÚSICA �“Living the Life of LEE�”. (TEMPO: 20 segundos). DESCE PARA BG e FICA.

LOC 1 �– Com vocês, o enviado especial da H. D. LEE Company./ MISTER LEE./

193. No roteiro de rádio, Loc é abreviação para locutor, assim como Tec indica acionamen-to da técnica de áudio. Neste roteiro, procuramos manter grafia e modo para apresenta-ção original.

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TEC �– SOBE TRILHA SONORA em CHICOTE. (ouvem-se efeitos de sons de tropel de cavalos, de tiros de revólver, de relinchos)

LOC 2 �– YAHOOO./ YAHOOO./ IORULEÍÍÍÍ./ IORULEÍÍÍÍ./ Respire fundo, Chará./ O Cowboy da LEE chegou./ Cheio de som e comunicação nos cartuchos./

LEE, a marca registrada na totalmente transistori-zada./ MISTER LEE, o Disk Jóquei batizado pela H. D. LEE Company./ Trazendo um mundo novo todo azul pra você./ Equipe técnica com MISTER LEE, o Cowboy do Rádio, o Mocinho da Porto City./ MISSIÊ ANELE, AUGUSTO ALMEIDA, e BERTOLDO LAUER FILHO./ É a es-treia nacional de MISTER LEE in Concert./////

A voz do Locutor 1 é de Marcus Aurélio Wesendonk, e a do Locutor 2, de Julio Fürst, que imitava, caricatamente, um falar de cowboy. Os efeitos de sonoplastia estão embutidos na trilha musical original, pro-duzida sob encomenda para a Lee, na campanha original nos Estados Unidos. A melodia é fortemente marcada pelo som de banjos, em estilo country music, e a letra da música, em inglês, sugere, em resumo, que viver a vida de Lee significa fazer tudo aquilo que se quer. A gravação, no conjunto, é uma amostra do estilo Continental de fazer chamadas, aberturas, peças institucionais e publicitárias, articulando gíria, língua estrangeira, certo humor e informalidade no trabalho de linguagem, em discurso marcado, também, pela autorreferência elogiosa (A peça tem cerca de 2 minutos e 20 segundos de tempo total).

Nos Estados Unidos, a estratégia da Lee estava organizada de modo a oferecer, uma vez por mês, shows ao vivo, com duas ou três bandas famosas, através de cadeia de rádio, coast to coast.

No Brasil, a ideia de formar rede nacional com �“Mr. Lee�” sempre existiu e, dessa forma, o programa �“Vivendo a vida de Lee�”, apresenta-do por Fürst, será também transmitido pela Rádio Iguaçu, de Curitiba. Naquele tempo, sem poder contar com serviços de satélites para trans-missão, Fürst gravava todos os programas para Curitiba, que eram apresentados no mesmo horário da edição porto-alegrense. Tratativas com emissoras de São Paulo e Rio de Janeiro chegam a ser firmadas.

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O acordo entre Renner e Lee baseava-se, do ponto de vista indus-trial, na fabricação de vestuário, utilizando a infraestrutura da sócia gaúcha, instalada em Porto Alegre. O marketing da Lee, inicialmente, conforme sugestão do responsável brasileiro, Américo Bender, apoiava-se na figura do personagem que subiria o Brasil, através de rede de rádio, conforme os produtos Lee fossem ganhando mercado, rumo ao centro e norte do Brasil.

No mesmo ano de 1975, Julio Fürst está sendo convidado para ser jurado do Musipuc, tradicional competição que reúne músicos e uni-versitários gaúchos, já em terceira edição. Igualmente, são jurados João Batista Schuler, então, pela Rádio Porto Alegre; Alice De Lorenzi, do Jornal Hoje; e Fernando Vieira, da TV Difusora, entre outros. Das 52 composições escritas, foram selecionadas 24, divididas entre duas noi-tes classificatórias, dias 5 e 6 de junho. A cada noite, seis músicas fo-ram selecionadas para a finalíssima, dia 7. Segundo o cronista do Jornal Minuano, na edição daquele mês, o público �“soube aceitar e aplaudir o resultado final�”, embora tenha chegado a vaiar o show de abertura do grupo �“Em Palpos de Aranha�”.

O grande vencedor foi o conjunto �“Status 4�”, grupo vocal misto, que apresentou a composição �“Violeiro cantador�”, com música de Edson Santos e letra de Roberto Gonçalves da Silva. O segundo lugar ficou para �“Em mar aberto�”, de Arnaldo Sisson e Fernando Ribeiro (ganhadores do II Musipuc). A terceira colocada foi �“Quem sabe?�”, de Mauro Rotemberg e Irineu Goldspan e, em quarto lugar, �“Lar doce lar�”, de Alexandre Vieira e José Antonio Araújo (que defenderam a canção acompanhados de Ângela Langaro, formando o Inconsciente Coletivo).

Julio Fürst relata que, em meio a todo o processo do Musipuc, ocor-reu com ele uma conscientização de como articular toda aquela riqueza musical ali mostrada, com o poderio da Rádio Continental e o interesse do público universitário. A partir desta conscientização, transmite pelo programa a participação dos finalistas. O sucesso é imediato. Então, convida os participantes para realizarem gravações na Continental.

Segundo o técnico responsável pelas gravações, Francisco Anele, a Continental ganha uma identificação imediata ao valorizar os músicos daqui. �“Havia naquilo uma coisa de porta a porta, porque, agora, era o vizinho, o amigo, o colega da universidade, o conhecido de alguém tocando sua música no rádio�”, relata Anele.

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Fürst recorda que o horário do programa, a partir das 22 horas, coin-cidia com o horário de saída dos estudantes, na Grande Porto Alegre, das universidades. �“Era uma ligação direta, entre a Rádio, os músicos daqui e os universitários nos rádios dos carros e radinhos individuais�”, conclui. O operador Anele refere que a Continental �“cedia o estúdio para os grupos sem cobrar nada, à noite, quando o estúdio não estava sendo usado. A gravação era feita em dois canais para reproduzir somente em mono�”.

Mesmo assim, o interesse crescente do público pelas gravações na programação da Continental levaria Julio Fürst para novas iniciativas: a realização dos �“concertos�”, shows em teatros e, depois, a utilização de uma hora inteira de programa tocando, então, somente músicas e músicos locais. Para colocar esta ideia em prática, Julio Fürst reporta-se ao responsável pelo marketing do programa �“Vivendo a vida de Lee�” e grande idealizador do próprio personagem �“Mr. Lee�”, Américo Bender. �“Fui falar com meu patrão imediato sobre as minhas ideias. Era muita novidade para fazer sozinho. A Lee com a ideia de cowboy e eu levando sugestão para fazer programa com música de Porto Alegre.�” Após argu-mentar, Fürst recebe sinal verde de Bender, incluindo-se, a ideia de logo fazer os chamados concertos, shows ao vivo com as bandas e músicos locais. Bender concorda, até onde houver sucesso da empreitada. Se fa-lhasse, ele retiraria o patrocínio. Os contratos para patrocínio exclusivo de �“Mr. Lee�” eram iguais aos regularmente celebrados em campanhas de rádio, isto é, com três meses de vigência, renováveis ou não.

Aquela ponte iniciada entre Rádio Continental, música de Porto Alegre e público, sob patrocínio da Lee, entretanto, duraria três anos in-tensos e marcantes. O rádio, a música e a cultura porto-alegrense, entre 1975 e 1978, ficaram marcados pelas estratégias e ações do �“Mocinho da Porto City�” e seus parceiros, nos palcos e microfones.

Os concertos e os �“Discocuecas�”A estratégia de visibilidade pelo oferecimento de shows de bandas e ar-tistas locais, na verdade, completava o conjunto de ações iniciadas com as aparições de Hermes Aquino, Fernando Ribeiro, Almôndegas, dentro da programação da Continental, anterior à organização do �“Vivendo a vida de Lee�”.

Pela ordem, primeiro fora necessário gravar as músicas, em muti-rão. Depois, obter espaço mínimo e ir ampliando-o para apresentações

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aos ouvintes na programação da Continental. A aceitação dos ouvintes garantia mais espaço na programação. Nenhuma outra rádio realizava aquilo na cidade. Agora, tudo em rápido espaço de tempo, chegava a vez de aparições em shows ao vivo nos teatros da cidade. Julio Fürst, sempre acompanhado pelo parceiro Beto Roncaferro e equipe, estava erguendo o �“Vivendo a vida de Lee�”, nas versões in concert.

Dia 13 de agosto de 1975, �“Mr. Lee�” leva ao palco do Teatro Presidente, que estava inteiramente lotado, 13 bandas. O segundo in concert ocorre dia 9 de novembro do mesmo ano, quando 18 bandas se apresentam no Auditório Araújo Viana lotado, numa mostra de som que iniciou às 17 horas daquele domingo e terminou, aproximadamente, às 2h30min da segunda-feira.

As edições do �“Vivendo a vida de Lee in concert�”, sempre transmiti-das ao vivo pela Continental, logo, ganhavam platéias em Caxias do Sul, Pelotas, Santa Maria e Passo Fundo, no interior gaúcho, e chegavam até Curitiba, onde a produção mesclou bandas gaúchas e paranaenses no show para cerca de seis mil pessoas.

Os esforços para movimentar a parafernália inteira levaram Julio Fürst a constituir uma produtora, associando-se a Bayard Steigger. �“A empresa de sonorização contratada era a Cotempo, e os iluminadores eram o Oscar, da equipe do Teatro Leopoldina e o Jerry�”, relembra Fürst. Segundo Julio, a �“Lee dava apoio de mídia não somente ao programa, mas dentro da Rádio e na mídia impressa e, ainda, alcançava algum recurso para custeio básico inicial. Depois, tínhamos o rateio das bilhe-terias para divisão entre todos os músicos, artistas e técnicos partici-pantes�”, segundo �“Mr. Lee�”.

O imenso prazer de reunir, no palco, artistas, bandas e grupos como Mantra, Bobo da Corte, Byzzarro, Palpos de Aranha, Fernando Ribeiro, Utopia, Gilberto Travi e Cálculo 4, Almôndegas, Hermes Aquino, Status 4, Mercado Livre, Nelson Coelho de Castro, Inconsciente Coletivo, Halai Halai não excluía tarefas tão enfadonhas quanto delicadas como sub-meter todo roteiro de cada show à Censura Federal: �“Submetíamos cada tomada de som, cada fala de artista ou minha no palco, cada letra de música. Tudo parava na Censura e ganhava carimbo de autorização, folha por folha.�” Segundo Fürst, ele foi chamado, mais de uma vez, à sede da Polícia Federal, porque �“o pessoal se entusiasmava no palco, ou para extravasar, ou por vontade de se manifestar mesmo, e terminava falando coisas que não estavam no roteiro�”, lembra �“Mr. Lee�”. Segundo

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ele, músicos como Fernando Ribeiro e Gilberto Travi, este último pelas músicas de humor e ironia, estiveram, também, explicando eventuais manifestações junto aos censores.

Quando chega o verão de 1978, os shows já não mais acontecem e o programa, na Continental, igualmente, teria carreira encerrada. Por questões comerciais e mercadológicas, segundo depoimento de Julio Fürst, a Lee decide retirar o patrocínio exclusivo e encerrar aquela campanha. No ar, morria �“Mr. Lee�” e nascia �“Mestre Júlio�”, que levaria para novo horário, a partir das 18 até às 19 horas, onde antes estivera �“Cascalho Time�”, novo programa somente de música popular brasileira, que continuaria a programar, também, músicos de Porto Alegre.

Segundo depoimento de Beto Roncaferro, a maioria dos artistas que participava do �“Vivendo a vida de Lee�” estava satisfeita. Havia boa exposição na mídia, alguns já estavam com discos gravados, mas ha-via muito trabalho, muita produção e esforços para deslocamentos e ensaios e o rateio de bilheteria não era milionário. No contexto, dois ou três grupos passaram a reclamar, pedindo melhor remuneração e, com o descontentamento de alguns chegando a aparecer em jornais da época, teria desgostado gestores da Lee que decidiram encerrar com o patrocínio e, em consequência, com os shows.

Enquanto durou o patrocínio exclusivo, entretanto, �“Mr. Lee�”, com ajuda na produção de Beto Roncaferro, e nas gravações com Francisco Anele e nas transmissões, com auxílio fundamental de Bertoldo Lauer Filho, todos eles associados a grande elenco de artistas locais, haviam construído uma ponte musical, até então, absurda de realizar, antes de existir a ação radiofônica da Continental, como afirmava o músico e compositor Kledir Ramil, em depoimento para o autor. �“A música de Porto Alegre até existiria sem a Continental, mas não seria aquilo que foi, nem seria aquilo que veio a ser, se não houvesse aquele espaço da Rádio�”, disse Kledir.

No mesmo ano de 1978, Beto e Julio serão escolhidos, respectiva-mente, melhor discotecário programador e melhor apresentador de pro-gramas musicais, ambos recebendo o troféu Negrinho do Pastoreio, na promoção �“Melhores do Rádio�”, da Secretaria de Turismo do Estado. Os dois amigos, em parceria com Gilberto Travi e João Antônio, davam início, ainda, à carreira do grupo musical e humorístico Discocuecas. O grupo ocupava os 15 minutos finais, diariamente, do novo programa de Mestre

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Júlio e, em 1978, ainda, lançava o primeiro LP pela gravadora gaúcha ISAEC.

A experiência do grupo Discocuecas possibilitou, no mesmo mo-vimento, organizar, na Continental, espécie de grupo espontâneo de radiocomédia, já utilizado para gravação de peças publicitárias, e, pos-teriormente, com ação na linha de programa de entretenimento. Assim, o grupo fazia humor paródico, a começar pelo nome, alusão à onda de música disco e a continuar com a criação de personagens que ganha-ram memória, como Anacleto Batata, o repórter da colônia, em que Gilberto Travi vivia uma recriação do típico �“colono�” alemão, e, ainda, a dupla Rancheirinho e Mári Farmacinha que ironizava a famosa dupla Teixeirinha e Meiry Terezinha, músicos regionalistas com programas de rádio sempre patrocinados por diferentes marcas de remédios.

�“Inconsciente Coletivo�”Ângela Lângaro, Alexandre Vieira e José Antônio Araújo são acadêmi-cos de Psicologia da UFRGS que decidem formar o grupo Inconsciente Coletivo, que ergue, na cidade, a trilha musical do grupo Halai Halai, investindo na criação local da música country e de protesto. Logo, Anginha, Xandi e Tonho conquistam o público pelos belos arranjos me-lódicos e pelas letras de inspiração sessentista, de linha aproximada, espelhada no proposto poético de Bob Dylan.

Naqueles dias, a pequena e brava sede do Diretório Acadêmico dos Institutos Unificados �– Daiu, antigo Instituto de Filosofia, Ciências Sociais e Letras, fica ao lado do famoso Bar do Antônio e serve como lo-cal para os primeiros encontros musicais, além de espaço para os deba-tes políticos, discussões de conjunturas e realização de peças escritas, à base do velho mimeógrafo.

Logo, a participação na mostra do III Musipuc levaria o �“Inconsciente�” para palcos e públicos maiores, até a gravação de disco, pela Tapecar, e novas excursões. Atualmente, Xandi continua a carreira como músico profissional, sendo também um dos sócios-proprietários, hoje, do pub Sgt. Pepper�’s. Tonho tornou-se profissional liberal, e Anginha é psicólo-ga clínica, tendo acrescido o sobrenome Becker do marido.

Além de peripécias, como acima apresentadas, o presente trabalho resgatou, parcialmente, a história da Rádio Continental e seu protago-nismo diante da indústria fonográfica. O trabalho é recorte de capítulo

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de pesquisa mais ampla, que pode ser consultada, na íntegra, no texto final de minha tese de doutoramento.

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DA MÚSICA194

Micael Herschmann

A música �– como outros produtos da indústria do entretenimento �– sem dúvida segue perdendo valor, e as grandes corporações não sabem, até o momento, ao certo como reagir e superar esta crise. Parte-se do pressuposto neste trabalho195 de que os concertos ao vivo vêm cres-cendo de importância dentro da indústria da música, e que isso está relacionado ao alto valor que esta �“experiência�” tem no mercado, isto é, à sua capacidade de mobilizar e seduzir os consumidores e aficionados a despeito: a) do preço pago (muitas vezes bastante alto) para assistir ao vivo às performances; b) e da alta competitividade que envolve as várias formas de lazer e entretenimento na disputa de um lugar junto ao público hoje no cotidiano.

Em uma entrevista concedida em 2007, Scott Ian, guitarrista da ban-da norte-americana Antrax, fez uma afirmação bastante sugestiva: �“(...) nosso disco é o cardápio, mas o show é a refeição�” (Sandall, 2007, p. 5). Diante da nova realidade de mercado que vem despontando, Edgar Brofam, diretor da Warner, sentenciou em um depoimento concedido recentemente: �“A indústria da música está crescendo, entretanto, a in-dústria fonográfica, não�” (Economist.com, 2007). Desenvolvendo um

194. Uma versão mais resumida deste artigo foi publicada na coletânea intitulada Novos Rumos da Cultura da Mídia (Ed. Mauad X), em 2007.

195. Agradeço não só ao CNPq e à Faperj pelo apoio a esta pesquisa, mas também às bolsistas de iniciação científica Carolina Leal e Taiane Linhares pela colaboração na ela-boração deste artigo.

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argumento similar, a artista Marisa Monte, estrela da MPB, afirmou em uma entrevista concedida em 2007 que pode vir a não lançar mais dis-cos daqui em diante, pois, segundo ela, o valor do CD não passa hoje de um real (Helal Filho, 2007).

Tecnologias/suportes e indústria da músicaOs formatos ou suportes196 são temas significativos para a música po-pular e proporcionam dados importantes aos pesquisadores que que-rem estudar a história dos ciclos de mercado, mudanças no gosto dos clientes e novas oportunidades que surgem para os músicos com as mu-danças. Os formatos exerceram influência, afetando significativamente a indústria da música (com reflexos especialmente sobre o marketing de gêneros e, consequentemente, sobre o comportamento do consumidor) e a cultura da música.

A primeira revolução foi deflagrada pela invenção da prensa, que permitiu o armazenamento das partituras musicais. As partituras não só deram um novo relevo à criação musical, passando a exigir uma capacidade de virtuosidade dos músicos, como também permitiram o desenvolvimento da indústria de edição e, consequen-temente, de empresas editoriais e de processos de re-gulação de direitos de autor. (...) A segunda resultou do desenvolvimento das tecnologias de gravação, que per-mitiram armazenamento em discos e cilindros. A partir daí se passou a ter música em casa, sem necessariamen-te se dominar o ofício de �“fazer música�”. Os proprietá-rios de direitos agora eram donos dos sons gravados e das obras musicais. Isso gerou ganhos sem precedentes na história da música e expandiu significativamente a indústria: no século XX, os ingressos obtidos pelos usos públicos da música passaram a ser tão importantes quanto aqueles derivados da venda de música gravada. Surgiram as supergravações �– �“perfeitas�” (fruto da ma-nipulação técnica em estúdio) �–, que já não eram ape-

196. Antes da era digital e em rede, a indústria fonográfica utilizou vários formatos, tais como cilindros, discos de vinil (álbuns simples e LPs) e as fitas K-7 (Shuker, 2005, p. 143-144).

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nas reproduções fidedignas de interpretações realizadas em concertos ao vivo. (...) A terceira revolução, a atual, está relacionada ao desenvolvimento e à aplicação da tecnologia digital ao universo musical. Essa tecnologia amplia a definição de proprietário de um produto mu-sical �– desde a obra em si (partitura), passando pela in-terpretação (disco), bem como pelos sons empregados (a informação digital) �– e as possibilidades de roubo e pirataria. Além disso, ao mudar a composição digital desde a criação até o processamento �– tornando o ato de criação musical uma prática multimídia �–, intensi-fica a crise da noção de autoria, tornando mais difícil distinguir os papéis de músico e engenheiro, ou mesmo de criador e consumidor. Esta tecnologia afeta também a circulação e comercialização, produzindo o fenômeno da �“des-intermediação�” (facilitando o contato direto do músico com o público) (Frith, 2006b, p. 56-61).

Frith enfatiza que escrever a história da cultura associada à música popular �– especialmente do século XX �– é analisar, por um lado, o seu deslocamento do plano coletivo para o individual, e, por outro, a cons-trução de uma aliança poderosa com os meios de comunicação.

O fonógrafo veio a significar que as atuações musicais públicas podiam agora ser escutadas no âmbito do-méstico. O gramofone portátil e o transístor de rádio deslocaram a experiência musical até o dormitório. O walkman da Sony possibilitou que cada indivíduo con-feccionasse seleções musicais para a sua audição pesso-al, inclusive, nos espaços públicos. Em termos gerais, o processo de industrialização da música, entendida em suas vertentes tecnológicas e econômicas, descreve como a música chegou a ser definida como uma expe-riência essencialmente individual, uma experiência que escolhemos para nós mesmos no mercado e se constitui em assunto de nossa autonomia cultural na vida diária. (Frith, 2006a, p. 55)

Evidentemente, o fato de ser um consumo musical individualizado �– pelo menos até o momento atual (em que existe ainda uma hegemo-nia da música gravada) �– não significa que não ocorra também uma

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contaminação dessa experiência de consumo no espaço público. Aliás, a música sempre teve uma função coletiva, e mesmo quando compramos discos e revistas ou escutamos rádio, fazemos isso com o objetivo tam-bém de nos sentir parte de uma determinada coletividade que compar-tilha gostos e códigos sociais. Podemos perguntar: ver concertos ou as-sistir a shows na televisão são realizações específicas do âmbito público ou privado? Nesse sentido, os meios de comunicação de massa tiveram um importante papel neste processo, ao construir fronteiras entre o espaço público e o privado relacionado a este tipo de consumo, o qual, quando analisado com atenção, deixa transparecer que essas esferas tendem a se embaralhar e contaminar. Na verdade, mais do que a pri-vatização, ocorreu até o final do século XX um processo de individuali-zação do consumo musical �– a popularização, especialmente através da mídia, da ideia de que a música é um bem de consumo, isto é, algo que as pessoas podem possuir �– que foi vital para o desenvolvimento des-sa indústria. Os meios de comunicação mais tradicionais tiveram um importante papel no desenvolvimento da indústria e na formação das comunidades de consumidores: por exemplo, a aliança desta indústria com a televisão (mesmo antes da existência de programas e emissoras ao estilo da MTV), mas principalmente com o rádio, foi fundamental para que essas empresas atingissem o mercado consumidor ao longo do século XX.

Curiosamente, apesar do seu poder e da forte presença na vida so-cial, os principais conglomerados de entretenimento que controlam o mercado fonográfico �– Universal (que detém 25,5% do mercado), Warner (11,3%), Sony-BMG (21,5%), EMI (13,4%)197 �– não vem conseguindo im-pedir que a tecnologia digital, no seu agenciamento pela sociedade, ve-nha gerando uma nova cultura da música em que não se dá tanto valor aos fonogramas. Esta cultura atual, que se apoia na popularização das novas tecnologias, está �– como veremos ao longo deste artigo �– impac-tando profundamente esta indústria.

Evidentemente, com este argumento não se está sugerindo uma maior autonomia dos consumidores e/ou se está relativizando o poder dos grandes conglomerados de comunicação e entretenimento sobre a sociedade contemporânea. Claro que, no mundo atual globalizado, é cada vez mais evidente não só a forte presença econômica e política

197. Nos dados divulgados pela IFPI em 2004, as indies detinham 28,4% do mercado (IFPI, 2005).

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dos grandes conglomerados de comunicação e cultura, mas também os processos de concentração de capitais (que oferecem inúmeros riscos à democracia e ao pluralismo nas etapas de criação, produção e distri-buição), o que poderia nos levar a conclusões simplistas: de que a tare-fa destas empresas é fácil, de que controlam o mercado, de que quase sempre obtêm êxito e assim por diante. Na realidade, a música sempre se constituiu em um business marcado mais pelo fracasso do que pelo êxito: quase 90% dos produtos geram perdas, o que acaba criando uma �“cultura da culpa�” nas empresas (com uma tensão frequente entre os departamentos de marketing e de Artistas & Repertório). Se já era com-plicado antes desta crise da indústria fonográfica, hoje é muito pior o ambiente dentro das gravadoras, especialmente no das majors: há uma enorme pressão por resultados financeiros expressivos.

Negus ressalta a complexidade da vida social e avalia de forma bas-tante crítica a tendência de alguns estudos conservadores em consi-derar os conglomerados como uma estrutura monolítica e os artistas, funcionários e consumidores como completamente guiados e absorvi-dos pela lógica da indústria do entretenimento (Negus, 2006). Assim, o que se constata �– analisando as estratégias desenvolvidas pelas majors nas últimas décadas �– é que para obterem êxito ou menos fracasso, elas vêm estabelecendo parcerias com as indies, a mídia, formadores de opinião e fãs.

Se, por um lado, constantemente nos deparamos com matérias jor-nalísticas que nos lembram que há uma crise da indústria da música, por outro, é possível constatar sem muito esforço que a música �– ao vivo e gravada �– é onipresente no cotidiano da sociedade contemporânea. Atualmente, a música gravada, em especial, acentuou sua capilaridade na vida social, e crescentemente vem sendo veiculada nos mais dife-rentes suportes analógicos e digitais, sendo comercializada não apenas como produto final, mas também como insumo para a composição de mercadorias ou na forma de produtos e serviços que são oferecidos di-reta e indiretamente aos consumidores.

Zallo ressalta que a indústria da música gravada se desenvolveu tan-to no século XX que, em determinado momento, passou a usar a música ao vivo praticamente apenas como forma de promover a música grava-da, invertendo a situação de centralidade que a música ao vivo gozava na atividade musical, até pelo menos as primeiras décadas do século XX. Ao lado das apresentações de música ao vivo �– em turnês e festi-

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vais �–, outra estratégia importante para a promoção dos fonogramas da grande indústria era a da utilização da aprovação ou do aval de árbitros do universo musical, tais como críticos de publicações musicais, pro-gramadores de rádio e televisão, DJs que atuam em diferentes espaços, promotores e comerciantes de discos, entre outros (Zallo, 1988).

Entretanto, analisando com mais cuidado as mudanças na cultura e na indústria da música que vêm ocorrendo recentemente, é possível atestar que a música ao vivo está recuperando um pouco do terreno que havia perdido para a música gravada, ou seja, a música ao vivo está ocupando, cada vez mais, um lugar menos periférico. E, em algumas situações encontradas na indústria da música hoje �– especialmente en-volvendo os selos independentes e pequenas gravadoras �– poder-se-ia dizer que os fonogramas gravados é que vêm se tornando um comple-mento, uma forma de reconhecer e rememorar uma experiência vivida (Herschmann, 2007). Pode-se considerar que parte dos consumidores mobilizados e que vão aos concertos de música dos mais variados gê-neros, na realidade, buscam vivenciar ali �“experiências�” e sensações consideradas por eles como sendo de significativa importância no coti-diano (Pine e Gilmore, 2001).

Uma produção fordista?Como já foi assinalado por boa parte dos estudos da indústria da mú-sica, vêm-se produzindo em grande medida, ao longo das últimas décadas, uma espécie de divisão de trabalho entre indies e majors: as gravadoras e os selos independentes se especializaram na exploração inicial de novos artistas, e as grandes companhias do disco controlam a produção musical dos artistas �“descobertos�” (em geral pelas indies) que tenham potencial para fazer sucesso em uma escala massiva (o que significa um amplo controle e exploração, por parte dessas empresas, das etapas de promoção, difusão e comercialização).

Podemos a esta altura perguntar: como está constituída a indústria da música atual? Quais são as suas características? Será que nesse novo contexto as indies vêm se tornando competitivas e alcançando êxito? Para entender isso, é preciso analisar as mudanças estruturais que ocor-reram na grande indústria e as dificuldades que essas empresas vêm enfrentando. Yúdice argumenta:

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(�…) a partir dos anos 1980, as grandes gravadoras já não se concebiam como simples produtoras e distribui-doras de música, mas sim como conglomerados globais de entretenimento integrado, que incluem a televisão, o cinema, as cadeias da indústria fonográfica, as redes de concertos e mais recentemente a internet, e a difu-são por cabo e via satélite (Yúdice, 1999, p. 116).

Nesse sentido, Negus também enfatiza que

(�…) a indústria fonográfica (�…) procura desenvolver personalidades globais que possam ser veiculadas atra-vés de vários meios �– gravações, vídeos, filmes, tele-visão, revistas, livros �– e mediante também a publici-dade, endossando produtos e o patrocínio de bens de consumo (�…). No final do século [XX], a indústria da música tornou-se um componente integral de uma rede globalizante de indústrias interconectadas de lazer e entretenimento (Negus, 2005, p. 1).

Aliás, Negus critica alguns pesquisadores que insistem em consi-derar a indústria da música como uma produção fordista. Este autor enfatiza que o cotidiano desta indústria parece indicar mais do que a lógica massiva de uma simples linha de montagem. Parece conviver nesse tipo de produção uma dinâmica também mais flexível, de cunho pós-fordista (Lash e Urry, 1994).

(...) desde sua aparição no século XIX, o negócio da mú-sica gravada (e a indústria editorial das partituras nas quais se baseiam muitas práticas de trabalho) foi orga-nizado nos moldes de uma produção de pequena escala e com vendas dirigidas a nichos de mercado instáveis, junto à elaboração de grandes êxitos bombásticos (a maioria das gravações que saíram à luz no século XX nunca se comercializou ou foi vendida a um público de massa). Além disso, desde seu início, a indústria fono-gráfica empregou diversas atividades de marketing e promocionais, legais e ilegais, em pequena escala e ba-seadas em equipes, como estratégia para se aproximar dos consumidores através de práticas que poderiam ser etiquetadas como flexíveis (Negus, 2005, p. 41).

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Nesse sentido, para Frith e Negus, há outros fatores que são deter-minantes para o sucesso da produção musical atual (tais como a infor-mação e o conhecimento que passam a ser utilizados como base para a atuação das empresas) crescentemente segmentada (Frith, 2006a, Negus, 2005). Aliás, nos últimos anos, alguns autores argumentam que, principalmente nos países mais desenvolvidos, vêm sendo feitas a gestão e a transição para uma nova economia, a qual se caracterizaria justamente pela aplicação da informação e do conhecimento na busca da geração de valores agregados associados aos produtos e serviços, produzindo assim importantes reflexos nos processos produtivos e ope-rações comerciais (Castells, 1999).

Nesse contexto �– de transição da produção �– constata-se que al-gumas empresas do setor da música vêm encontrando caminhos para alcançar a sustentabilidade. Ao mesmo tempo, inúmeras empresas de música que estão focadas apenas na produção em grande escala e que não estão empenhadas em perceber tendências e atuar em nichos de mercado maiores vêm tendo dificuldades de obter êxito. Grande par-te da �“cultura do fracasso�” da indústria da música está relacionada a uma incapacidade dos profissionais deste setor de entenderem e sa-berem enfrentar essas mudanças de paradigma produtivo. Não é sem motivo que um significativo número de majors adota como estratégia importante a busca de uma aliança com os selos independentes. O fato é que várias majors demonstram dificuldades de flexibilização e vêm buscando, através de sua articulação com as indies (mais flexíveis), in-corporar novas estratégias para enfrentar os novos desafios do mundo capitalista atual.

Assim, as indies investem na articulação com os atores sociais e na cultura local: DJs e produtores musicais locais fazem um trabalho cru-cial de mediação entre a produção independente e os nichos de mercado cada vez mais pulverizados em diferentes territórios. Assim, quando a EMI contrata uma cantora como Teresa Cristina da indie Deckdisc �– que está profundamente articulada à cultura local e ao território da Lapa (RJ) �–, está capitalizando o trabalho imaterial e a produção flexível já realizada por alguns profissionais e pelas pequenas empresas do setor (Herschmann, 2007).

Obviamente, não se está querendo dizer com isso que a tradicional estratégia das majors em investirem em artistas capazes de produzir

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�“supervendas�”198 �– em escala nacional/internacional �– não seja mais empregada de forma exitosa. Continua sendo a principal estratégia adotada por essa grande indústria em transformação hoje. A indústria que parece ter um perfil mais fordista quando lança um CD ou DVD do U2, da Madonna ou do Coldplay é a mesma que busca flexibilizar sua produção, articulando-se a pequenos selos independentes e/ou quando faz contratos (muitas vezes temporários) com jovens que foram capa-zes de mobilizar um público expressivo utilizando a internet, tais como Artic Monkeys (na Inglaterra) ou Bonde do Rolê e Cansei de ser Sexy (no Brasil). E é em razão disso que se parte do pressuposto de que este momento é mais de transição do que propriamente de ruptura de pa-radigma produtivo.

Mesmo com o êxito alcançado em vários momentos por essa tradi-cional estratégia das majors, é possível identificar algumas mudanças que sugerem a presença de uma lógica mais pós-fordista nas empresas do setor. Primeiramente, reduziu-se significativamente a ocorrência de �“supervendas�”, mesmo de artistas de renome. Nos últimos anos, o nú-mero de artistas que alcançam este nível de vendas reduziu drasticamen-te, a ponto de várias associações nacionais e internacionais de música terem reduzido os índices de vendas que eram associados às premia-ções dos discos (como, por exemplo, de ouro, platina ou diamante). Em segundo lugar, é cada vez mais evidente a dependência crescente das grandes empresas em relação aos profissionais que realizam trabalho imaterial de grande peso simbólico no imaginário dos consumidores, como os marqueteiros e designers (Lazzarato e Negri, 2001). E, finalmen-te, a constatação de que muitas das grandes empresas de música �– que hoje são setores dentro dos grandes conglomerados transnacionais de informação e entretenimento �– reduziram tanto suas dimensões (com a redução do cast de artistas contratados e da estrutura das empresas pelo emprego da prática do downsizing, bem como do estabelecimento de parcerias com os selos independentes) e praticamente terceirizam a maioria das suas atividades, seja na produção, distribuição ou vendas.

198. As majors investem em artistas que demonstram capacidade de sobrepujar a con-corrência, iniciando assim um �“círculo virtuoso�” que poderá converter um determinado disco em um campeão de vendas (que geralmente está nas listas dos mais vendidos). Com o aumento das vendas, cresce o espaço ocupado pelo artista ou pela banda nos veículos de comunicação e, consequentemente, seu protagonismo no público (Buquet, 2002, p. 79-80).

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Indústria da música �– crise e perspectivas Como já sugerimos no argumento desenvolvido até aqui, quando se faz referência à crise da indústria da música, na realidade está se consi-derando o atual contexto como sendo marcado pela reestruturação do grande business da música gravada. É notório que a indústria da músi-ca encolheu bastante desde 1997, não conseguindo atingir ainda o pa-tamar de 1996, quando vendeu 39 bilhões de doláres; evidentemente, vêm emergindo oportunidades de crescimento para as indies (tanto que em 2005 elas já ocupavam 28% do mercado mundial) �– especialmente para empreendimentos culturais, capitaneados por elas, que envolvam a música ao vivo; mas devemos evitar leituras ingênuas que sugerem a simples decadência irreversível das majors ou dos fonogramas. Ou seja, o contexto atual sugere mais um momento de transição e de reorgani-zação do mercado.

Apesar de uma maior articulação das associações de indies, o merca-do continua sendo controlado em grande medida pelas majors, e várias indies são sustentáveis em função de uma relação de complementarida-de com as majors. Alguns autores sugerem que ao consolidarem um mo-delo de negócio on-line as majors poderão estar completando o estágio atual de transição desta indústria: inclusive mostram que este processo está em curso �– destacando que inúmeras companhias transnacionais têm investido pesado no mercado on-line, apostando no seu potencial de crescimento num futuro próximo e comprando diversos empreendi-mentos culturais das ponto.com, da mesma forma que tradicionalmen-te ao longo de sua trajetória absorveram as empresas independentes, fora da rede.

Generalizando, pode-se dizer que a crise da indústria está relacio-nada aos seguintes fatores: a) um crescimento da competição entre os produtos culturais, entre as empresas que oferecem no mercado globa-lizado bens e serviços culturais �– há claramente um aumento da oferta, das opções de lazer e consumo; b) limites dados pelo poder aquisitivo da população, especialmente em países periféricos como o Brasil; c) e o crescimento da pirataria, não só aquela realizada através de downloads, na rede, mas também a concretizada fora da rede.

É importante ressaltar que, em boa medida, esta crise da indústria fonográfica, hoje em todo o mundo, refere-se em especial a uma perda de legitimidade das majors frente ao seu público. Segundo alguns auto-res, a pirataria bastante disseminada no mundo inteiro �– especialmente

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depois da popularização do MP3 �– é de certa forma uma �“resposta�” de um público que não quer pagar o preço dos fonogramas exigido pelas majors, através de um trust velado já estabelecido há algumas décadas no mundo inteiro. A música gravada, portanto, parece ter perdido valor, e a indústria até o momento tenta de alguma forma reagir a esta situa-ção e sair da �“crise�”, adotando estratégias de intensa repressão aos sites peer to peer (P2P), que oferecem trocas e downloads gratuitos de música, e ao mercado ilegal de venda de CDs �– aliadas ao emprego de ferramen-tas de controle de circulação e reprodução dos fonogramas, oferecidas pelas novas tecnologias.

Apesar dos esforços das gravadoras em mobilizar diversas entida-des em vários países, o mercado ilegal de música continua a crescer: estima-se que de cada três CDs vendidos no mundo um é pirata, totali-zando, em 2004, aproximadamente 1,2 bilhão de unidades. No caso dos downloads gratuitos, o levantamento é muito impreciso, mas trabalha-se com a estimativa de que, em 2004, existiam 870 milhões de arqui-vos de música circulando na internet (IFPI, 2005). Ao mesmo tempo, de acordo com a IFPI, o Brasil figura entre os países que mais praticam a pirataria no mundo (está na categoria daqueles países em que a atua-ção ilegal já domina mais do que 50% do mercado), o que tem levado diversas entidades a se empenharem em minimizar este quadro.

Curiosamente, mesmo as bandas e os cantores não parecem se opor muito a que a pirataria seja praticada. Apesar de a maioria não apoiar abertamente a livre circulação dos fonogramas, parece haver uma cons-ciência mais ou menos clara não só de que a rede é fundamental para a formação e a renovação de seu público, mas também de que os seus ga-nhos advirão principalmente da comercialização da música executada ao vivo, e que para isso precisam formar públicos. Em um polêmico arti-go, bastante conhecido na internet, um dos músicos do grupo espanhol Metallica,199 Ignácio Escolar (2002), argumenta que �“é mais lucrativo para ele ser pirateado�”.

Em outras palavras, o aumento do consumo de música através dos sites peer to peer (P2P) produz problemas para a grande indústria, mas não necessariamente efeitos negativos para os artistas, pois essas redes �“(...) ajudam a proporcionar mais informações aos fãs, que assim podem

199 Não confundir com a famosa banda de heavy metal norte-americana, cujo nome o grupo assumiu como forma de homenagem.

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descobrir músicas, artistas e selos fonográficos que não têm tanta difu-são como as majors (...)�” (Miguel de Bustos e Arregocés, 2006, p. 42).

Portanto, o quadro que vem se desenhando no Brasil não é muito diferente do que ocorre em outras partes do mundo �– com a vantagem (para a produção independente) de que a população aqui ouve mais música local. Com o pouco investimento das majors em repertórios, nota-se que há crescimento (ainda que limitado) da diversidade da pro-dução musical nacional. Mas, ao mesmo tempo, ainda que contando com as facilidades ofertadas pelas NTICs, o alcance destes fonogramas produzidos autonomamente pelos atores ou pelas indies é limitado: sua circulação se dá em certos nichos de mercado.

O fato novo dentro deste contexto de crise é que vem crescendo a consciência dos profissionais de que a produção de música ao vivo con-tinua valorizada e muito demandada pelo público. Os músicos, produ-tores e gestores de indies que têm concentrado seu poder nos eventos musicais têm tido não só um retorno interessante, mas também a pos-sibilidade de perceber que a questão da pirataria passa a ser incorpora-da não mais como um problema, mas uma oportunidade �– como uma estratégia para se angariar reconhecimento junto ao público. Se, por um lado, talvez no business das indies seja possível constatar de forma mais clara o crescimento da relevância da música ao vivo e a perda de importância dos fonogramas, por outro, Yúdice (2007) nos lembra que os concertos ao vivo �– mesmo no universo das majors �– vêm represen-tando um percentual cada vez maior dos rendimentos produzidos pela indústria da música: segundo dados da IFPI (de 2005), vêm crescendo, só nos Estados Unidos, algo em torno de 15% nos últimos anos.

Segundo dados divulgados pela revista norte-americana Pollstar, se é verdade que até bem pouco tempo os músicos conseguiam dois terços da sua renda através das gravadoras, isto é, das vendas de CDs (o ter-ço restante era obtido através de shows e publicidade/merchandising), é preciso ressaltar que atualmente esta proporção se inverteu. Só nos Estados Unidos as vendas de shows passaram de 1,7 bilhão de dólares em 2000 para mais de 3,1 bilhões em 2006. A publicação destaca ainda a preocupação das gravadoras, hoje, em garantir seus lucros: um núme-ro expressivo delas está fazendo seus artistas assinarem contratos mais abrangentes, ou seja, acordos de direitos plenos ou múltiplos (Revista Pollstar, 2007). Em outras palavras, como uma alternativa para enfren-tar o encolhimento de 30% do mercado de fonogramas dos últimos cin-

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co anos, as gravadoras vêm buscando adotar novas fórmulas, isto é, vêm adotando como medida compensatória às suas perdas a alteração dos contratos que preveem, entre outras coisas, a taxação de 10% das bilheterias de seus artistas (Ney, 2006).

Cabe destacar ainda que, evidentemente, o interesse pelos concer-tos ao vivo não vem impedindo que a reprodução on-line/off-line e o comércio ilegal venham contribuindo para a �“quebra�” da cadeia pro-dutiva da indústria da música. No contexto atual, fica difícil imaginar como compositores que não fazem execução ao vivo, empresários do mundo editorial-musical e outros profissionais vinculados aos grandes estúdios de gravação poderão garantir sua sustentabilidade nesta ca-deia de produção e consumo. É possível que, quando baixar a poeira e a indústria da música terminar de se reestruturar, constatemos que não só várias atividades profissionais do universo musical estarão em vias de desaparecer, mas também que outras novas estarão emergindo. Em resumo, poder-se-ia afirmar que atualmente a indústria da música vem redefinindo seus modelos de negócio e sua cadeia produtiva e isso cer-tamente trará implicações diretas para os profissionais que trabalham neste setor das indústrias da cultura.

Mesmo a relativa recuperação que a indústria está vivenciando des-de 2002 é consequência dos desdobramentos produzidos pela experi-ência de se consumir música ao vivo. Os dados de 2004 e 2005 indicam que o êxito das vendas dos DVDs tem permitido que a grande indústria da música respire e em parte se recupere um pouco nos últimos anos. Parece que o consumidor está de fato disposto a consumir e pagar por este tipo de �“experiência�”.

O crescente número de espetáculos realizados é um forte indicativo da importância econômica desses eventos para mover a indústria atual. Os megaeventos continuam sendo realizados, apesar dos altos cachês dos artistas e das bandas. Ao mesmo tempo, nunca se viram tantos pequenos concertos realizados em diferentes localidades do Brasil e do mundo. Segundo a Revista Forbes Brasil (edição de janeiro de 2003), o mercado de espetáculos �– de música ao vivo �– no Brasil vem crescendo significativamente. Além disso, examinando os números do mercado nota-se que há claramente, desde 2005, uma elevação expressiva dos preços dos ingressos, até hoje, bem acima da inflação registrada no Brasil. Basta examinarmos os preços que eram cobrados por alguns mú-sicos de renome do país �– tais como Marcelo D2, Marisa Monte, Caetano

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Veloso e constatamos isso facilmente. Para que se tenha uma ideia, an-tes da crise da indústria, o preço dos shows era praticamente o mesmo dos CDs.

Enquanto o preço dos CDs vem permanecendo bastante estável já há alguns anos, o preço das entradas de concertos de vários astros in-ternacionais vem atingindo preços estratosféricos: por exemplo, para assistir a um concerto da Madonna, do The Police ou dos Rolling Stones, um fã teve que pagar em 2006/2007, na Inglaterra, mais de 450 reais.200 A subida desses valores não afugentou o público e indica que este tipo de receita passou a ser fundamental para os artistas e, em geral, para os profissionais desta indústria.

Outra tendência no mercado é a realização de shows intimistas �– para um público VIP ou de superfãs �– com mega-astros da música mun-dial. Em 2007, o artista pop Prince, por exemplo, realizou um concerto para aproximadamente 200 pessoas no Roosevelt Hotel (em Hollywood) e as entradas para a performance custaram cerca de 3 mil reais cada. Apesar do elevadíssimo preço, o público, de modo geral, dizia-se satis-feito com o serviço, ou melhor, com a �“experiência�” ofertada.

Os shows de Prince no Roosevelt (...) atraíram uma mul-tidão completamente mesclada, formada não só pelos ricos e famosos, mas também por médicos, professores e antigos fãs, dispostos a fazer pelo menos uma extra-vagância na vida. Para Robert e Silvia Faris, delegado aposentado e professora de Orange County, a experi-ência incluiu Prince circulando por sua cabine, como se ele estivesse tocando na sala de estar do casal. �“Ele ficou dançando bem na nossa frente�”, disse Robert, 52. �“Daqui a 10 anos não vou me lembrar do preço dos in-gressos, mas vou me lembrar da experiência�” (Globo.com, 2007).

É possível que a indústria da música consolide em breve novos mo-delos de negócio e as vendas de música on-line venham a se constituir em uma alternativa mais efetiva para a atual crise da indústria fonográ-fica. É importante que se ressalte que as execuções ao vivo �– a realiza-

200. Não é um fenômeno apenas local: em 2006, a entrada para o show de Elton John em Las Vegas (EUA) custou em média 1.300 reais, e a de Robbie Williams, em Hong Kong, algo em torno de 600 reais (Sandall, 2007).

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ção de concertos, turnês e festivais �– continuam sendo uma importante estratégia de promoção porque auxiliam o processo de mobilização da mídia para a �“cobertura�” de um determinado trabalho musical, conso-lidando uma imagem do produto. Portanto, não se está afirmando aqui que a música gravada vá se tornar necessariamente complementar à música ao vivo, mas que certamente a música ao vivo não é mais tão periférica em relação à gravada como já foi no passado. Obviamente, os relatórios econômicos da indústria revelam que os maiores ganhos continuam relacionados à música gravada, mas essa proporção já foi bem maior em anos anteriores (IFPI, 2006).

Em suma, é preciso reconhecer que vem ocorrendo uma reestrutura-ção na indústria da música, na qual as experiências e sensações geradas pelas apresentações ao vivo vão adquirindo claramente maior relevo. Este dado é indicativo de mudanças mais profundas, que provavelmen-te tenderão a ocorrer na indústria do entretenimento e, em geral, nas atividades econômicas nos próximos anos.

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SOBRE OS AUTORES 181

SOBRE OS AUTORES

Andréa PinheiroMestre em Educação Brasileira (UFC) e professora da Universidade Federal do Ceará

Angela de MouraJornalista e mestre em Educação (PUC Minas). Professora do Centro Universitário de Belo Horizonte (Uni-BH). Coordenadora do Laboratório de Rádio do Uni-BH.

Ayêska PaulafreitasMestre em Letras (UFBA) e doutoranda em Ciências Sociais (Unicamp). Professora do Curso de Comunicação Social da UESC (BA).

Eduardo VicenteProfessor no Departamento de Cinema, Rádio e TV (CTR) da ECA/USP, vice-coordenador e professor do Programa de Pós-Graduação em Meios e Processos Audiovisuais do mesmo departamento. A pesquisa desen-volvida pelo autor para a produção desse texto foi realizada dentro do projeto �“O Outro Lado do Disco: a memória oral da indústria fonográfi-ca brasileira�”, desenvolvido entre 2007 e 2009 com o apoio da FAPESP �– Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo.

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182 SOBRE OS AUTORES

Flávio PaivaJornalista, articulista do Diário do Nordeste e compositor.

Heloísa Maria dos Santos ToledoMestre em Sociologia pela Universidade Estadual Paulista �– Unesp/ Araraquara, com o trabalho intitulado Produção Independente de Música �– 1979-2001. Doutoranda pela Universidade Estadual Paulista �– Unesp/ Araraquara, com o projeto Trilhas Sonoras das Telenovelas: uma discussão sobre os canais de difusão da música. Projeto apoiado pela FAPESP. [email protected]

Irineu Guerrini Jr.Doutor pela USP. Professor de graduação e pós-graduação da Fac. Cásper Líbero e da FAAP/SP. Funções já exercidas: produtor/diretor/narrador de programas da TV Cultura de SP; diretor das emissoras Cultura AM e FM de São Paulo; produtor/diretor/apresentador de programas de rádio da BBC Brasil em Londres; apresentador da TV Bandeirantes, avaliador e negociador de programas para a TV Cultura; diretor de programação e aquisições da TV Escola, do MEC; idealizador e co-organizador do currí-culo do curso de Tecnologia Musical, a ser implantado na USP Leste.

José Eduardo Ribeiro de PaivaProfessor do Departamento de Multimeios, Mídia e Comunicação e dos programas de pós-graduação em Artes e em Música do Instituto de Artes da Unicamp. Atualmente, é diretor da Rádio e TV Unicamp.

Marcos Júlio SerglPós-doutor em Comunicação pela ECA/USP, professor do curso de Rádio e Televisão na FAPCOM �– Faculdade Paulus de Tecnologia e Comunicação e na Unisa �– Universidade de Santo Amaro, e do curso de Produção Musical na Universidade Anhembi-Morumbi. Líder do Grupo de Estudos de Comunicação da Unisa.

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SOBRE OS AUTORES 183

Marta Regina MaiaDoutora em Ciências da Comunicação pela ECA/USP e presidente do Colegiado do Curso de Comunicação Social �– Jornalismo, da Universidade Federal de Ouro Preto.

Micael HerschmannProfessor e pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro e coordenador do NEPCOM-ECO/UFRJ.

Nair PrataJornalista e doutora em Linguística Aplicada (UFMG). No Centro Universitário de Belo Horizonte (Uni-BH) é professora do curso de Jornalismo e do curso de especialização Criação e Produção em Mídia Eletrônica �– Rádio e TV e coordenadora do Núcleo de Imprensa.

Sergio Francisco EndlerDoutor em Comunicação Social e professor no Curso de Comunicação Social da Unisinos,RS.

Sônia PessoaJornalista e mestre em Linguística (UFMG). Professora do Centro Universitário Newton Paiva e da Faculdade Estácio de Sá. Professora do curso de especialização Criação e Produção em Mídia Eletrônica �– Rádio e TV do Centro Universitário de Belo Horizonte (Uni-BH).

Waldiane FialhoPublicitária e mestre em Artes Visuais (UFMG). Professora e pesquisa-dora do curso de Publicidade e Propaganda da Faculdade Estácio de Sá de Belo Horizonte. Professora dos cursos de especialização Criação e

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184 SOBRE OS AUTORES

Produção em Mídia Eletrônica �– Rádio e TV e Comunicação Empresarial do Centro Universitário de Belo Horizonte (Uni-BH).

Wanir CampeloJornalista e mestre em Comunicação (Universidade São Marcos-SP). Professora do curso de Jornalismo do Centro Universitário de Belo Horizonte (Uni-BH). Coordenadora do projeto de extensão Radioescola Ponto Com do Centro Universitário de Belo Horizonte (Uni-BH). Coordenadora e professora do curso de especialização Criação e Produção em Mídia Eletrônica �– Rádio e TV do Centro Universitário de Belo Horizonte (Uni-BH).