8
1 Porto Alegre, setembro de 2012

Nação Z nº 02

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Edição comemorativa da Semana Farroupilha

Citation preview

Page 1: Nação Z nº 02

1P o r t o A l e g r e , s e t e m b r o d e 2 0 1 2

Page 2: Nação Z nº 02

2 P o r t o A l e g r e , s e t e m b r o d e 2 0 1 2

a história oficial brasileira e rio-grandense, os grandes feitos, assim como os he-róis, são sempre ressaltados, porém, durante décadas, as representações da comuni-

dade negra ficaram silenciadas, afirma o pro-fessor. “Figuras como Zumbi, João Cândido e os próprios Lanceiros Negros por muito tempo não foram lembradas. Isto ocorreu e ocorre em virtude das disputas existentes em torno da memória e, consequentemente, da produção histórica”, diz ele. No entanto, observa que os acontecimentos relativos à comunidade negra e aos seus heróis devem ser utilizados como referência de identidade. Ou seja, se fazer representar na história do Estado e do Brasil, sem ovacionar estes feitos como se fossem “ modelo a toda a terra”, mas como fatos im-portantes para a autoestima e a cultura de um grupo que ficou à margem da história. Grupo este, continua Arílson, que vem conquistando

O negro e a historiografia oficial do Rio Grande

Diretor EditorJuarez Ribeiro

Diretora FinanceiraSuzana Marisa Rodrigues Ribeiro

Assessoria AdministrativaDaniel Rodrigues Ribeiro

Jornalista ResponsávelLisandro Paim - Mtb. nº 12878

FotografiaTomas Edson Silveira

RevisãoSuzana Ribeiro

Rua Paulo Blaschke, 12/201 Jardim Planalto - Porto Alegre/RS Tel.: 51 3012 1086 Cel.: 51 9809 6857 www.nacaoz.com.br [email protected]

A invisibilidade do negro na formação da história econômica e cultural do Rio Grande do Sul vem de longa data. Um resgate dessa trajetória se faz necessá-rio, como frisa o historiador e professor Arílson dos Santos Gomes, não do ponto de vista da vitimização do negro, mas com o seu real protagonismo neste con-texto, principalmente a partir da nova realidade das políticas afirmativas. En-tre os negros proeminentes na história gaúcha, cita o ex-governador Carlos San-tos, Aurélio V. Bitencourt, secretário do governador positivista Julio de Castilhos e o próprio João Cândido, o Almirante Negro, que comandou a Revolta da Chi-bata. “Muitos estão sendo identificados, mas há muito a ser feito”, diz.

Arilson dos Santos GomesDoutorando em História - PUCRS

N

Edição de ArteJonas Furlan

Contato [email protected]

DistribuiçãoCPL - Revistas e Jornais

Correspondência [email protected]

As matérias assinadas e os artigos reproduzidos nesta edição são de exclusiva responsabilidade de seus autores.

por Emílio Chagas

o seu espaço na memória coletiva e na his-toriografia local e nacional, como agente, ao invés de vítima ou de coadjuvante. “Nesta ló-gica, deve-se pensar em uma história a partir das novas perspectivas teóricas, baseada em outras fontes de pesquisa”, afirma.

Em relação à história do estado, onde somen-te há poucos anos o negro começa a aparecer com um elemento importante na sua forma-ção, o professor Arílson também é taxativo: no seu entendimento, as distorções mais graves desse processo, são as constantes insistências, motivadas pela história tradicional, em deixar de lado a importante participação da comuni-dade negra na história deste Estado. “Como se esta trajetória não existisse”, ressalta. Um dos caminhos, sugere, é insistir, principalmente com os novos historiadores, para a utilização de novas metodologias de pesquisa. A utili-zação da história oral, por exemplo, seria um dos caminhos. Também lembra os acervos de famílias, como cartas pessoais, afetivas e as fontes imagéticas. “Fotografias localizadas nos álbuns de família são fundamentais para combater estas distorções. Com isto a história negra dificilmente cairá no esquecimento”, avalia.

Apesar de durante muito tempo prevalecer uma certa invisibilidade do negro na formação cultural e econômica gaúcha, sabe-se que ele desempenhou um importante papel nessas áreas. “Dificilmente pode-se falar em econo-mia do Rio Grande do Sul sem citar os braços escravizados nas charqueadas e os seus pen-samentos para a execução das mais variadas atividades de ganho no meio urbano”, diz

Arílson. Segundo ele, o escravizado de ganho fazia os serviços especializados como de car-pintaria, marcenaria, chaveiro. Já na questão cultural, afirma, o conceito de africanidades cunhado pelo Prof. Henrique Cunha Jr expres-sa o essencial destas influências, “já que as africanidades estão na corporeidade, na orali-dade, nos cantos, na culinária e no modo de ser daqueles povos que vieram para o país sem livros, mas que trouxeram na alma as bases de nossa formação cultural como brasileiros e sul--rio-grandenses”, completa o professor.

Para o resgate e afirmação de uma real historio-grafia negra gaúcha, o professor aponta uma série de medidas, como: qualidade e quantida-de de produções que tragam os negros como protagonistas dos processos históricos, inves-timento em bolsas de iniciação científica, au-mento das linhas de pesquisas nas Instituições de Ensino Superior que envolvam a temática e, principalmente, formação de base. “Objetiva-mente falando: a aplicabilidade da Lei 10.639 é condição sine qua non para esta historiografia, lá na frente, se constituir”, sintetiza. Para ele, para pensar na produção da história, deve-se primar pela formação escolar desde cedo. Isto é, fazer as pessoas compreenderem que exis-tem outras formas de se produzir e ver a histó-ria do negro no Rio Grande do Sul.

Débora Viera da Rocha, 16 anos, foi eleita a 2ª prenda ju-venil de 2012, como represen-tante da 1ª região Tradiciona-lista de Porto Alegre e mais 11 municípios. Natural de Porto Alegre, participa do DTG Berço Farroupilha, de Guaíba e pre-tende prosseguir na conquista de títulos. Sua meta para o fu-turo é de concorrer a 1ª Pren-da Estadual, título máximo de beleza no nativismo. Na vida profissional, assim que concluir o ensino médio quer fazer faculdade de administra-ção de empresas.

As mais graves distorções a respeito do negro no processo histórico

Os papéis do negro na formação econômica e cultural do Rio Grande

Uma verdadeira historiografia negra gaúcha

Fundado em 2002, por Claudio Es-pindola Rodrigues, falecido e Maria Elaine Rodrigues, 65 anos, professora aposentada da Rede Pública Estadu-al e autal patrona do DTG Mocam-bo - Núcleo de Resistência Negra, vem mantendo sua participação no Acampamento farroupilha, sendo o segundo grupo negro em atividade. O Mocambo, durante as festividades farroupilhas realiza atividades cultu-rais, palestras, cursos, apresentações artísticas e festas que movimentam o DTG, priorizando seu lema: “Luta, Negro” na preservação das tradições afro-riograndenses. Sua localização no Parque fica na antiga Cancha Reta, 253.

Informações: 8137-6198 - 3219-7796

Foto: Banco de Imagens/NaçãoZ

Foto: Banco de Imagens/NaçãoZ

DTG Mocambo

A Jovem Prenda

da Redação

da Redação

A Patroa, Maria Elaine Rodrigues

Page 3: Nação Z nº 02

3P o r t o A l e g r e , s e t e m b r o d e 2 0 1 2

Um quilombo gaudério

número 309 no Parque Harmonia é o endereço do Piquete Lanceiros Negros Contemporâneos, que desde 2003 vem fazendo uma série de atividades

para relembrar e resgatar a história do negro como formador da cultura que hoje traduz o Rio Grande do Sul. Este piquete foi formado por um grupo de pessoas preocupadas em manter as tradições regionais e, principal-mente, não deixar que a história gaúcha seja contada sem a participação dos negros.

O nome do piquete lembra os negros es-cravizados que participaram da guerra dos

Em 14 de setembro de 2003 foi fun-dado o Piquete e em 20 de novembro do mesmo ano aconteceu a primeira cavalgada, que percorreu os territó-rios negros em Porto Alegre. Além de participarem do acampamento e fazerem a cavalgada na semana da consciência negra, os componen-tes do Lanceiros Negros ministram palestras para contar a história, fa-zendo um resgate dos costumes dos negros que participaram da guerra.

por Tomas Edson Silveira

O Patrão, Luiz Fernando Centeno, segura a bandeira em frente ao piquete

farrapos na linha de frente. Montados em seus cavalos e portando lanças, os negros, escravizados e libertos, eram obrigados a lutar para defender os ideais dos líderes farrapos (elite pecuarista que se revoltou contra o poder imperial). Segundo os re-gistros da história, quando a guerra estava perto do fim, tropas imperiais atacaram soldados farroupilhas, matando e prenden-do principalmente os negros. Após o episó-dio, a descoberta de uma carta, que ficou conhecida como Carta dos Porongos, reve-lou um suposto acordo entre lideranças mi-litares para dizimar esses lanceiros. Uma sucessão de lutas ocorridas entre o império e os estancieiros gaúchos deu origem ao mais longo movimento armado do Brasil, que aconteceu entre 1835 a 1845.

Para o patrão Luiz Fernando Centeno, 58 anos, o nome do piquete é muito significa-tivo. “Nós escolhemos esse nome e estamos aqui hoje [no acampamento] para homena-gear os negros que foram covardemente mortos em Pinheiro Machado, em 14 de novembro de 1844, às 2h”, conta.

Centeno explica ainda que observava que muitas pessoas que fizeram parte da his-tória do Rio Grande do Sul eram homena-geadas e davam nomes a piquetes e os ne-gros que contribuíram para essa história não eram lembrados.

“A gente via muita gente sendo homenageada e não via homenagem aos Lanceiros Negros e ao Zumbi dos Palmares no meio do gauchis-mo. Eu sempre fui gaudério, nasci gaudério, mas isso não me afasta do samba. Porque eu acho que “quem não gosta de samba é ruim da cabeça ou doente do pé”, lembra.

Em 14 de setembro de 2003 foi fundado o Piquete e em 20 de novembro do mesmo ano aconteceu a primeira cavalgada, que percorreu os territórios negros em Porto Alegre. Além de participarem do acampa-mento e fazerem a cavalgada na semana da consciência negra, os componentes do Lanceiros Negros ministram palestras para contar a história, fazendo um resga-te dos costumes dos negros que participa-ram da guerra.

“A gente começou a notar que tinha que ter, dentro do Harmonia, negros para de-fender a nossa história, até porque muita coisa de nós, gaúchos negros, foi roubada, coisas que não aparecem. Hoje se fala em dança do facão, por exemplo, o que era a dança do facão? Era o maculelê que o negro já dançava na África. E quando se fala em polenta gaúcha, o que era a polenta gaú-cha? É o angu africano! Então estamos nós aqui dentro do piquete para defender a par-ticipação do negro dentro da nossa cultura, da cultura gaúcha”, relembra Centeno.

OA chama da liberdadeEntre as atividades realizadas pelos com-ponentes do piquete, umas chama a aten-ção pela sua representação, no momen-to em que a chama Crioula é extinta na cerimônia de encerramento da semana farroupilha, no dia 20 de setembro, ca-valeiros negros se deslocam até o local e retiram uma centelha da chama, gritando simbolicamente: “A chama da liberdade está em nosso poder”. Após a cerimônia a chama é preservada até a semana da consciência negra no mês de novembro. No evento uma fogueira é acesa e muitas pessoas, entre elas religiosos, fazem ritu-ais ao seu redor.

Uma turma de cavalarianos entra à noite no parque Harmonia trazendo a chama, que foi preservada por dois meses, para simbolizar a abertura da semana da consciência negra programada pelo piquete. Várias pessoas de diferentes etnias e religiões participam do ritual, ali se acende uma fogueira que, para muitos, tem um significado religioso.

“Essa fogueira é acesa para homenagear os negros que foram covardemente assas-sinados. Os religiosos cantam e dançam em volta da fogueira e ali a gente faz uma reflexão do que aconteceu na noite do dia 14 de setembro de 1844”, salienta Centeno.

A fundação do piquete foi a forma encon-trada de trazer à tona a história da cultu-ra negra gaúcha e de firmar a participação do negro no nativismo, relembrando entre outras coisas a real história de Porongos.

“Tudo que é nosso a gente quer resgatar”, Centeno.

“A gente via muita gente sendo homenageada e não via homenagem aos Lanceiros Negros e ao Zumbi dos Palmares no meio do gauchismo. Eu sempre fui gaudério, nasci gaudério, mas isso não me afasta do samba. Porque eu acho que “quem não gosta de samba é ruim da cabeça ou doente do pé”Luiz Fernando Centeno

Foto: Tomas Edson Silveira/N

açãoZ

Page 4: Nação Z nº 02

4 P o r t o A l e g r e , s e t e m b r o d e 2 0 1 2

O negro na formação cultural, econômica e histórica do RS

O historiador Luiz Cláudio Nunes Knierim, atual diretor técnico do IGTF, Instituto Gaúcho de Tradição e Folclore, há mais de 10 anos iniciou pesquisas sobre a contri-buição dos negros para a cultura gaúcha. “Como aluno de um curso de pós-gradua-ção em história na FAPA, Faculdade Porto--Alegrense, eu percebia nos livros que se falava da vasta contribuição dos lusitanos, dos espanhóis, dos índios guaranis e char-ruas, mas quando chegava no negro era um parágrafo apenas”,explica Knierim. A partir daí começou a desenvolver suas pesquisas para compreender melhor a identidade gauchesca.

“Não era possível ter tão pouco registro, quando sabíamos que os negros ocupa-ram este território e aqui estavam desde o início, com os espanhóis e portugueses”, avalia. Quando desceram de Laguna para o litoral norte do Rio Grande, na chama-da expedição Couto Magalhães, quem abriu as picadas e carregou as bagagens?

Nas comemorações tradicionalistas e gauchescas do 20 de setembro, es-pecialmente, quando é cultuada a figura do gaúcho e suas raízes, um elemento formador dessa história ainda não tem seu papel reconheci-do nessa trajetória: o negro. Tanto na formação cultural, como econômica do estado, sua presença ainda é mi-nimizada. Um quadro, contudo, que começa a mudar.

por Emílio Chagas

- pergunta-se o historiador. E ele mesmo responde: os negros. Assim, o historiador vai enumerando uma série de fatos histó-ricos, onde a presença negra é sonegada, como a construção do quartel Jesus Maria José, na fundação de Rio Grande, no século XVII, quando os portugueses desembarca-ram com 40 negros. E, antes disso, lembra, os portugueses tinham fundado a Colônia de Sacramento. “Existe um documento que diz que foi fundada em 1680, pelos portugueses que desembargaram com 60 negros, 20 dos quais negros soldados, considerados livres”. Ou seja, não existem dúvidas de que o negro estava desde o início na história do Rio Grande, ocupan-do espaços nas estâncias e sesmarias que eram dadas pelo Rei para os militares, que vinham com suas famílias com a missão de habitar e produzir nessas terras – jus-tamente onde vai entrar a mão produti-va do negro, fundamental também nos primeiros arrebanhamentos de gado. Diz Knierim: “Eles se juntaram com o grupo chamado gaúcho, um bando de homens, que desertavam dos exércitos espanhol e português e das estâncias, se juntavam com os charruas e caçavam gado selva-gem. Eram chamados gaúchos, índios vagos, changueiros. O Mário Maestri (his-toriador) chama este grupo de quilombos agro-pastoris. Esse grupo é o gaúcho pri-mitivo e o negro também estava lá”, re-memora Knierim. Em todo esse processo de ocupação da terra e estâncias, funda-ção dos primeiros povoamentos e nesses grupos do gaúcho primitivo, o negro par-ticipava, caçando gado selvagem, afirma. Os subprodutos desse gado - gordura, cri-na e couro, eram vendidos para os barcos ingleses que abasteciam a nascente revo-lução industrial. “Eles construíram uma espécie de matriz cultural e econômica e

nela está a marca do negro, no linguajar, na culinária regional e na musicalidade”, diz o historiador.

A pesquisa, além da história propria-mente dita, avançou pelos costumes da população negra, incluindo a culinária, o vocabulário e a música. “Temos mais de quatro mil palavras do bantus, língua dos primeiros negros que vieram para o Brasil, que era aquela região central da África, Congo, Angola e Moçambique”, registra. Elas fazem parte do linguajar gaúcho, desconhecidas por muitos, inclu-sive tradicionalistas. Ele exemplifica com algumas delas, como matungo – como era designado o cavalo velho, que so-brava para os negros; canga, fandango, (baile de pobres e negros) sanga, fuxicar, bombear, rengo, gambá, etc, são outras. Essas palavras acabaram se incorporan-do no vocabulário porque os brancos precisavam se comunicar com os negros usando, portando, vocábulos da sua lín-gua. Na culinária a contribuição do negro também é imensa. A alimentação está, tanto nas festas de religião, como nos galpões porque em ambos os lugares era o negro quem cozinhava, inclusive na “Casa Grande”. Diz Knierim: “Vamos ver muita mistura na culinária, com produ-tos nativos da América, mas com o feitio africano, como o milho do qual nasceu a canjica. Ou a polenta que é tida como ita-liana, mas muito antes já se comia angu de farinha de milho e o quibebe, feito de moranga, que é um prato 100% africano, assim como mocotó, que quer dizer pata de vaca”. Essa mistura faz com que as co-midas das religiões de matriz africana se-

jam muito semelhantes à comida dos gal-pões de CTG. Assim também é na música, onde os ritmos gauchescos têm muitas origens e influência negra, como é o caso da milonga, por exemplo, hoje um ritmo que domina os festivais nativistas e da pajada. Mas o caso mais expressivo é o da vaneira. Segundo Knierim, trata-se de um ritmo afro-cubano. “Veio de Havana, dos negros que plantavam cana de açúcar e era a habanera. Tem o mesmo compasso do samba, tanto que as primeiras grava-das pelos (irmãos) Bertussi nos anos 50 eram chamadas de samba campeiro ou samba gaúcho”, explica. Na verdade, ela servia para embalar os fandangos – “que eram de pobres e na da Casa Grande”. A própria dança do facão tem a mesma coreografia do maculelê, segundo pes-quisas de Paixão Cortes. Ele lembra ainda o sapateado, aqui chamado de chula, e o candombe, ritmo negro uruguaio.

O legado negro na cultura gaúcha

O negro no vocabulário, culinária e musicalidade do Sul

Luiz Cláudio Nunes Knierim,historiador

Foto: Banco de Imagens/NaçãoZ

Page 5: Nação Z nº 02

5P o r t o A l e g r e , s e t e m b r o d e 2 0 1 2

Origens do Piquete Lanceiros Negros e o resgate da cultura negra

oje não perce-bem que é uma cultura popular, expropriada e transformaram aquele gaúcho

que, como disse Sérgius Gonzaga, era um pá-ria e lhe deram ares aristocráticos, com ares civis e militares”, analisa ele. A partir de todas essas pesquisas, o historiador percebeu que nos acampamentos farroupilhas da Estância da Harmonia, os negros estavam espalhados em vários piquetes, mas sem consciência da sua cultura e papel neste universo. “A partir disso surge o primeiro piquete negro, o dos Lanceiros Negros Contemporâneos e posso dizer, com muito orgulho, que sou um dos fundadores, ao lado de Luiz Fernando Cen-teno, entre outros”. Ele lembra que o surgi-mento do Piquete se deu quando das come-morações dos 160 do massacre de Porongos. A partir disso, o Piquete também incorporou a sua cavalgada na programação da Semana da Consciência Negra, tendo sido a primeira em 2003.

Cavalgada dos Lanceiros Negros na Semana da Consciência NegraRoteiro da Cavalgada do Piquete dos Lan-ceiros Negros Contemporâneos baseado em dados da pesquisa do professor Giovanni Mesquita do Estreito, os locais de referência histórica dos negros, por onde passa a Caval-gada rememorando a história e memória da população negra de Porto Alegre.

1. Largo da Forca, atual Praça Brigadeiro SampaioLocal onde escravos e libertos eram enforca-dos por crimes. Após o enforcamento, o corpo permanecia pendurado por vários dias.

2. Pelourinho, em frente à Igreja da DoresErguido na praça principal da vila, o pelouri-nho era uma espécie de marco ou emblema da administração, servindo também como local de castigo de escravos.

3.Mercado PúblicoAté hoje referenciado por adeptos de religiões afro-brasileiras, essa é mais uma construção de trabalhadores negros escravizados.

O que houve no processo da história gaúcha? Esta é a pergunta que o his-toriador Knierim se faz. Para ele, é muito claro: foi feita uma expropria-ção da cultura das camadas popula-res, índios charruas e negros, prin-cipalmente, e “encoberta com um poncho”, para não dar visibilidade da sua contribuição.

por Emílio Chagas

4. Igreja do RosárioConstruída em 1817, a Igreja dos Pretos de Nossa Senhora do Rosário e inaugurada em 1827, ficou sendo centro de atração para os negros cativos ou libertos. Sob o manto de cultos católicos, sobreviviam os ritos negros.

5. Colônia Africana – Rua Castro AlvesNo século XIX, o bairro Rio Branco era co-nhecido como “Colônia Africana”, abrigando escravos alforriados. Nela os negros costumavam praticar seus cultos e festas. Os limites da “Colônia” eram demarcados pela rua Castro Alves, Casemiro de Abreu, Venân-cio Aires (atual Vasco da Gama), Boa Vista (hoje, Cabral) e Rua Liberdade. Com o tempo, a área foi se valorizan-do e os negros foram sendo expulsos pelo mercado imobiliário

6. RedençãoUm ano antes da alfor-ria, muitos senhores, prevendo a inevitável liberação dos escravos, antecipavam-se ao Im-pério. Em cerimônias públicas, para mostrar sua suposta bondade, libertavam escravos nos Campos Várzea. Por esse motivo, o lugar foi bati-zado como “Campos da Redenção”, que ficava fora dos limites da cidade, na época.

7. Centro desportivo TesourinhaOsmar Fortes Barcelos, o famoso Tesourinha, em 1945 foi conside-rado o melhor ponta direita das Américas. Em 1949 foi para o

“H

Vasco da Gama. Em fevereiro de 1952, por ato do Presidente Saturnino Vanzelotti, o Grêmio acabou com um preconceito de 50 anos: o de não aceitar negros. Tesourinha quebrou esta tradição germânica ao ser contratado.

8. IlhotaHabitada pelo povo negro após a abolição. Assim chamada por ficar entre as margens do Riacho Dilúvio e do Arroio Cascatinha, área alagadiça, sujeita a inundações e pou-co valorizada. Ali nasceu e viveu o maior compositor gaúcho: Lupicínio Rodrigues.

9. Quilombo Urbano Guaranha - Areal da BaronesaReduto negro pós-escravidão, onde está situ-ada a Comunidade do Areal - Vila Guaranha, que foi considerada “Quilombo Urbano” pela Fundação Palmares, em 30 de abril de 2004.

10. Travessa dos VenezianosA atual Joaquim Nabuco chamava-se Rua dos Venezianos, hoje reduzida a uma Travessa tombada pelo Patrimônio Histórico do Muni-cípio em 1980. Ali nasceu, em 1873, uma das primeiras escolas de samba da cidade, a Im-peradores do Samba.

11. Largo Zumbi dos PalmaresHomenagem a Zumbi dos Palmares, líder do Quilombo dos Palmares (1655-1695), símbolo da resistência negra contra a escravidão. Mor-to em 20 de novembro de 1695, data que pas-sou a ser reconhecida e comemorada como Dia Nacional da Consciência Negra.

12. Rua José do PatrocínioJosé Carlos do Patrocínio, jornalista e es-critor fluminense, filho de escrava, dono do jornal Gazeta da Tarde, escrevia sem-pre a favor da abolição da escravatura.

Foto

: Tom

as E

dson

Silv

eira

/Naç

ãoZ

Page 6: Nação Z nº 02

6 P o r t o A l e g r e , s e t e m b r o d e 2 0 1 2

A voz do 20 de setembro

uem participa ou assiste ao desfile de 20 de se-tembro, em Porto Alegre, certamente já ouviu uma voz feminina apresentan-do os CTGs e Piquetes.

Há 15 anos a mesma voz ecoa na avenida no desfile farroupilha: a de Liliana Cardoso. Atualmente a declamadora mais premiada na história do Rio Grande do Sul, ela é também a primeira declamadora negra. No dia em que completou 35 anos, Liliana recebeu o Nação Z na sede do CTG 35 no Parque Harmonia para uma conversa, que só foi possível depois de receber inúmeros abraços e felicitações, ta-manho o seu reconhecimento e popularidade no meio tradicionalista.

A história da declamadora começou aos 06 anos em um CTG no bairro Rubem Berta, em Porto Alegre. Incentivados por sua mãe, que tinha a vontade de ver os filhos inseridos em alguma atividade cultural, os cinco filhos da dona Dione e do seu José Luiz começaram a participar das atividades no pequeno gal-pão de madeira perto de casa. Cada um dos irmãos decidiu se dedicar a uma modalidade dentro da tradição gaúcha: o irmão mais ve-lho dançava chula, uma das irmãs era prenda e outra dançava na invernada e assim, um a um, escolhendo participar do que mais lhes interessava dentro do CTG, juntamente com outras pessoas criaram o CTG Coxilha Aberta. Liliana se interessou pela poesia e ali teve iní-cio a sua trajetória como declamadora.

No início, quando ainda era criança, partici-pou de muitas competições, sem ganhar. Até que seu pai, a quem ela atribui parte do seu sucesso, decidiu incentivá-la, dando o supor-te necessário para que ela seguisse fazendo aquilo que gostava.

“O meu pai é a mola propulsora de tudo isso. Ele foi atrás no sentido de pesquisar, viu que eu tinha força de vontade mas não ganhava. Ele me colocou na casa de cultura de Mário Quintana para fazer cursos, começou a com-prar livros para eu estudar e aí eu fui me dedi-cando à poesia e despontando nesses rodeios e concursos”, comenta.

Aos 15 anos, a primeira declamadora negra já era campeã estadual de declamação. Hoje tem mais de 250 prêmios, sendo a mulher mais premiada na história do Estado. No iní-cio da sua trajetória acredita ter sofrido um preconceito velado, pois por muitas vezes foi

Em meio a prendas, peões, oficinas de costumes tradicionalistas e ao preparo do churrasco, em comemo-ração ao seu aniversário no Acampa-mento Farroupilha, a declamadora mais premiada da história e primei-ra negra na modalidade da declama-ção contou para o Nação Z um pouco da sua história.

por Tomas Edson Silveira

preterida na escolha da representante do CTG em concursos de declamação quando ainda dava os primeiros passos, nessa performan-ce, mesmo sendo a melhor preparada.

“Eu fui persistente, sou resistente. Fui uma resistência do empoderamento da mulher ne-gra dentro do meio tradicionalista. E chegou a um ponto em que, de tanto me esforçar e de ter o talento que Deus me deu, o que eu agradeço todos os dias, eles cansaram e pen-saram: agora deu, não tem mais como segu-rar”, relembra.

Q

nosso legado. Uma vontade que eu tenho e eu vou conseguir é que a poesia do Oliveira seja trabalhada dentro do Centro de Tradição Gaúcha. Tem que haver essa descoberta. Nós temos um poeta negro que empodera a ne-gritude, com propriedade, que fala a verda-de e os CTGs têm que conhecer e trabalhar a obra de Oliveira Silveira”, salienta.

Para contar a trajetória da filha dentro do mo-vimento tradicionalista e da declamação, José Luiz Rodrigues dos Santos, 66 anos, adminis-trador aposentado, começou a pesquisar a

poesia dentro do movimento tradicionalista e lançou um livro chamado “A arte de decla-mar no gauchismo”. Com o conhecimento adquirido, viaja pelo Brasil afora para falar da história gaúcha. Orgulhoso, fala das conquis-tas da filha.

“Hoje só dois no Brasil ganharam tudo: a Li-liana e o Inter, e ela é uma negra. Dentro do movimento tradicionalista, nós temos um respeito, um nome. Sou conhecido no movi-mento como o pai da Liliana, é um orgulho pra mim [...]”.

“A declamação é um recital, é o dizer versos, é o dizer poesia. Uma modalidade de performance ,dentro do movimento tradicionalista gaúcho, individual e espontânea. É a modalidade que mais tem concorrência”Liliana Cardoso

A arte de declamar no gauchismo

Há 29 anos Liliana escreve a sua história nas páginas do tradicionalismo gaúcho. O en-volvimento e a paixão pela declamação são sentimentos muito fortes colocados pra fora quando declama. O mesmo sentimento ela tenta passar para os ouvintes nas suas apre-sentações, palestras e oficinas que ministra por todo o país.

“Em todas as oficinas que eu faço tento pas-sar para o ser humano, principalmente o ne-gro, que está ele ali para perceber e tirar do seu íntimo que ele pode, que nós temos um legado. Não existe voz mais linda que a do ne-gro. Eu trabalho dicção, voz e posso dizer com muita propriedade que não existe voz mais sonora e musical que a da negritude.”

Liliana começou declamando poetas gaú-chos: Dimas Costa, Aureliano de Figueiredo Pinto, Jaime Caetano Braun, Aparício Silva Rillo, Antônio Augusto Fagundes, Ciro Gavião, entre outros nomes importantes da poesia. Um dos autores que a declamadora lembrou e que faz parte do seu repertório é o poeta Oliveira Silveira, a quem ela quer fazer lem-brar dentro do movimento tradicionalista.

“O Oliveira que busca, na sua poesia, toda a forma do negro falar através do verso o que realmente é, sobre a nossa trajetória, sobre o

Liliana Cardoso, premiadíssima declamadora nativista

Foto: Tomas Edson Silveira/NaçãoZ

Page 7: Nação Z nº 02

7P o r t o A l e g r e , s e t e m b r o d e 2 0 1 2

O registro de uma grande cantora

os doze anos, no coral da escola, Loma Berenice Go-mes Pereira descobriu seu dom para o canto. Fasci-nada pela magia do palco e de toda a produção de

espetáculo,cedo ela decidiu que iria se-guir a carreira musical . Profissionalmen-te começou a carreira no grupo Pentagra-ma, em 1973, que foi o primeiro a mesclar música nativista e samba. O grupo inovou naquela época e levou a música produzi-da no Rio Grande do Sul para todo o país. Nessa fase Loma teve um contato maior com as canções tradicionalistas.

Filha de pai de ascendência africana e mãe de ascendência açoriana, Loma descobriu em Santo Antônio da Patrulha e na con-vivência com a negritude do litoral norte do Rio Grande do Sul suas raízes, a partir do Maçambique (manifestação sócio-cul-tural-religiosa criada pelos negros com o intuito de preservar suas origens em am-bientes diferentes do qual viviam na Áfri-ca há quase 400 anos).

“Naquela época, isso faz uns 40 anos, não se ouvia falar em Maçambique. Aí o Ivo La-dislau e o Carlos Catuípe decidiram fazer um resgate dessa Cultura, contar através das suas composições musicais a história do Maçambique”, relembra.

Desde a década de 1980 ela participa dos fes-tivais nativistas e passou a ser reconhecida como cantora. Ela e César Passarinho eram os únicos negros nesses festivais gaúchos. Ela lembra um festival para o qual levou o mestre Neri Caveira para fazer percussão.

“Eu comecei a delimitar o meu espaço como cantora e negra. Eu levei o mestre Neri Ca-veira para fazer percussão em um festival de música tradicionalista e aí nós fomos muito combatidos porque achavam que a gente es-tava levando escola de samba para o palco.

Dona de uma voz espetacular, Loma Pereira, cantora muito premiada, tra-duz um legado deixado pelos negros do litoral norte gaúcho.

por Tomas Edson Silveira

Ao mesmo tempo em que eles, donos da cul-tura do nosso estado, se esqueciam da diver-sidade cultural, étnica e de todas as manifes-tações que essa riqueza cultural proporciona ao Rio Grande do Sul”, lembra.

A partir daí Loma começou a interpretar mais frequentemente as letras de Ivo Ladis-lau e Carlos Catuípe, composições que tra-ziam a cultura do litoral à tona. Em pouco tempo de carreira, já era considerada pela imprensa do Rio Grande do Sul a melhor cantora do estado, o que aconteceu por três anos consecutivos (1978, 79 e 80).

No início da década de 1980, em uma in-cursão pelo país para conhecer outras

A

Loma Pereira, presidente do Conselho Estadual de Cultura do Rio Grande do Sul

culturas musicais, Loma cantou e gravou participações em discos de várias perso-nalidades da música brasileira, entre elas Gilberto Gil, Alceu Valença, Cristina Buar-que, Amelinha, Zé Ramalho, Elza Soares, entre outros. Em 1989 foi considerada pela crítica especializada a melhor canto-ra do século.

“Um Mate por Ti” , terceiro disco da sua carreira, lançado em 1992, rendeu-lhe a indicação para o prêmio nacional Sharp na categoria cantora regional, disputado por Loma, Margareth Menezes e Elba Rama-lho. No Rio grande do Sul, Loma acumula muitos prêmios conquistados em festivais regionais nativistas. Integrante do Grupo

Foto: Tomas Edson Silveira/NaçãoZ

Cantadores do Litoral há 10 anos, Loma e os outros integrantes vêm divulgando a cultura afro-açoriana, através de um re-pertório cheio de ritmos e sons entrelaça-dos ao lusitanismo e à africanidade.

Além de cantar, Loma Pereira sempre mi-litou pela causa dos músicos. Desde julho deste ano é a presidente do Conselho Es-tadual de Cultura do Rio Grande do Sul.

Discos individuais lançados por Loma: (1985), Um mate por ti (1992), Loma-Além fronteiras(1998) e Ziguezagueando (2005).

Page 8: Nação Z nº 02