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Não raras vezes, embrenho-me no coração da natureza sem uma razão inteligível ao meu entendimento. Que alegria infantil a de deambular por essas ruas virgens, escapar às exigências da civilização, suspender a “tirania do rosto humano” (Thomas de Quincey) e atenuar a sede de beleza que me dilacera. No entanto, como apreender a essência do silêncio, da imobilidade e da vastidão que caracterizam o mundo natural? A própria fleuma com que a natureza nos fita é assombrosa. A distância entre o homem e a natureza nunca foi tão grande como nos dias de hoje. Por vezes, penso que a actual distância físico-afectiva do homem relativamente à natureza está relacionada com o passado primitivo do homem. Isto é, durante milhões de anos a natureza foi desapiedada e inóspita, sendo a face visível da sujeição ilimitada do homem à natureza. À medida que o homem foi domesticando a natureza, através da sua inevitável destruição, foi adquirindo confiança. Na verdade, a progressiva subjugação do mundo natural ao homem, inculcou nele a noção da dimensão do seu poder. Ora, como o exercício do poder leva necessariamente à luta, independentemente da forma que ela assuma, não é de estranhar a fúria obscura contra a natureza pela qual o homem foi possuído. O que mais me repugna no relacionamento entre o homem e a natureza é o modo como o mundo natural foi convertido em mero capital. A imagem do homem que observa uma paisagem e vê nela somente um objecto passível de ser explorado comercialmente, irrita-me profundamente. O “homo economicus” impôs a sua concepção de mundo, triunfou. Hoje em dia, é extraordinariamente difícil não ser regido pelas leis propagadas por este tipo de homem. Crimes inexpiáveis, como a devastação de paisagens sublimes, são expiados através da utilização do argumento basilar na doutrina do “homo economicus”- O progresso. Aqueles que assumem uma posição céptica em relação ao modo como o progresso está a ser efectuado, são vistos como uns

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Não raras vezes, embrenho-me no coração da natureza sem uma razão inteligível ao meu entendimento. Que alegria infantil a de deambular por essas ruas virgens, escapar às exigências da civilização, suspender a “tirania do rosto humano” (Thomas de Quincey) e atenuar a sede de beleza que me dilacera. No entanto, como apreender a essência do silêncio, da imobilidade e da vastidão que caracterizam o mundo natural? A própria fleuma com que a natureza nos fita é assombrosa.A distância entre o homem e a natureza nunca foi tão grande como nos dias de hoje. Por vezes, penso que a actual distância físico-afectiva do homem relativamente à natureza está relacionada com o passado primitivo do homem. Isto é, durante milhões de anos a natureza foi desapiedada e inóspita, sendo a face visível da sujeição ilimitada do homem à natureza. À medida que o homem foi domesticando a natureza, através da sua inevitável destruição, foi adquirindo confiança. Na verdade, a progressiva subjugação do mundo natural ao homem, inculcou nele a noção da dimensão do seu poder. Ora, como o exercício do poder leva necessariamente à luta, independentemente da forma que ela assuma, não é de estranhar a fúria obscura contra a natureza pela qual o homem foi possuído. O que mais me repugna no relacionamento entre o homem e a natureza é o modo como o mundo natural foi convertido em mero capital. A imagem do homem que observa uma paisagem e vê nela somente um objecto passível de ser explorado comercialmente, irrita-me profundamente. O “homo economicus” impôs a sua concepção de mundo, triunfou. Hoje em dia, é extraordinariamente difícil não ser regido pelas leis propagadas por este tipo de homem. Crimes inexpiáveis, como a devastação de paisagens sublimes, são expiados através da utilização do argumento basilar na doutrina do “homo economicus”- O progresso. Aqueles que assumem uma posição céptica em relação ao modo como o progresso está a ser efectuado, são vistos como uns bárbaros. O progresso é simplesmente o maior dogma da era contemporânea.Por outro lado, quantos de nós fogem ao ritmo caótico e sobre-humano da vida contemporânea? Quantos de nós temos a capacidade de nos transportarmos para fora dos pensamentos utilitários que dominam o quotidiano (algo indispensável para a plena fruição da natureza) ? Um animal é o expoente máximo do utilitarismo na medida em que usa sempre a natureza como um meio para alcançar um fim. O homem tem outras potencialidades porque é capaz de olhar para a natureza como um fim em si mesmo. Como é óbvio, a contemplação da natureza distingue-nos enquanto espécie, é uma exclusividade do homem. O que há na natureza que me seduz? A beleza virginal, em estado bruto. Sobre a essencialidade da beleza, cito o livro “Os Demónios” de Doestoievski: “Mas sabeis vós, sabeis que a humanidade pode viver sem os ingleses, pode viver sem a Alemanha, pode viver até muito bem sem os russos, sem a ciência, sem pão, só não pode viver sem a beleza, porque então já não haverá nada a fazer no mundo!” Ler correctamente esta passagem implica ser fulminado por um clarão de verdade. Quando me abandono nos braços amorosos da natureza posso enriquecer o meu ser em várias vertentes: Intelectual, estética e moral. Kant sugeria que o contacto com a natureza levava a uma relação mais moral com o mundo. Em simultâneo, Kant dizia

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também que a experiência estética funcionaria também como uma introdução à sabedoria. Afigura-se-me necessária uma espécie de ressacralização do estatuto da natureza, temos de reaprender a coexistir com ela. Através do contacto com a natureza percebemos como com tão pouco se pode construir todo um mundo: Uma sombra de um galho com frio; Um rio que segue inabalavelmente o seu curso enquanto luta contra as margens que o comprimem; Um ermo cheio de vozes empoeiradas; Uma árvore corcovada pelo peso da solidão; O fragor de uma cascata. Na natureza nem um som dá voz ao êxtase universal das coisas. Ao contrário do que se passa nos assuntos humanos, esta é uma orgia de silêncio (Baudelaire). O esplendor dos olhos postos no coração da luz.Termino com um excerto do poema “A sombra do homem” de Teixeira de Pascoaes:“ Já de tanto sentir a Natureza,de tanto a amar, com ela me confundo!E agora, quem sou eu? Nesta incerteza,chamo por mim. Quem me responde? O mundo.”