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ALEXANDRE MACHADO DE SÁ NARRATIVA E INTERATIVIDADE em meios audiovisuais Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação, da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo como exigência parcial para obtenção de Título de Mestre. Área de concentração: Estudos dos Meios da Produção Midiática Orientador: Prof. Dr. Roberto Franco Moreira São Paulo 2007

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ALEXANDRE MACHADO DE S NARRATIVA E INTERATIVIDADE em meios audiovisuais Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em CinciasdaComunicao,daEscoladeComunicaese Artes da Universidade de So Paulo como exigncia parcial para obteno de Ttulo de Mestre. readeconcentrao:EstudosdosMeiosdaProduo MiditicaOrientador: Prof. Dr. Roberto Franco Moreira So Paulo 2007 FOLHA DE APROVAO Alexandre Machado de S Narrativa e Interatividade em meios audiovisuais DissertaoapresentadaEscolade Comunicaes e Artes da Universidade de So Paulo para obteno do titulo de mestre. readeConcentrao:EstudosdosMeiosda Produo Miditica Aprovado em: Banca Examinadora: Prof. Dr. ____________________________________________________________________ Instituio:______________________________ Assinatura:__________________________ Prof. Dr. ____________________________________________________________________ Instituio:______________________________ Assinatura:__________________________ Prof. Dr. ____________________________________________________________________ Instituio:______________________________ Assinatura:__________________________ RESUMO Em O Discurso da Narrativa Gerrard Genette faz uma anlise de La Recherche du Temps Perdude Proust, destrinchando a potica narrativa e fornecendo elementos eficazes para a compreenso e estudo de qualquer outra obra narrativa. Genette sugere a anlise atravs de 3chaves: Tempo (que pode ser subdividido em Ordem, Durao e Freqncia), Modos de Narrativae Voz. A narrativa cada vez mais presente nos videogames e para compreender as congruncias e diferenas entre a narrativa literria e a narrativa que permite interao, prpria dos jogos eletrnicos,o jogo de aventura Full Throttle , de Tim Schafer, foi observado sob a tica de O Discurso da Narrativa. A partir dos elementos fornecidos pelo estudo, esse trabalho prope a criao de uma obra: LIMBO, um jogo eletrnico com a aplicao objetiva dos recursos narrativos observados. O documento de produo do jogo, apresentado de forma completa, procurando abordar o maior nmero de caractersticas que devero ser implementadas atravs dos seguintes tpicos: viso geral, sinopse, descrio dos personagens, descrio do universo onde se passa a histria, argumento, descrio do funcionamento do jogo, mecnica do jogo, descrio progressiva fase a fase,descrio do espao e descrio da direo de arte. Palavras-chave: Narrativa. Interatividade. Jogos eletrnicos. Videogame. ABSTRACT In Narrative Discourse Grrard Genette makes an analyze of La Recherche du Temps Perduby Proust, breaking apart the poetic narrative and bringing new effective elements to comprehend and study any other kind of narrative. Genette suggests that this analyze should be taken by three basic keys: Time (could be divided in Order, Duration and Frequency), Mode and Voice. The narrative have been more and more common in the videogames and to comprehend the congruencies and differences between the literature narrative and a narrative that allows interaction, of the electronic games, the adventure Full Throttle from 1994, by Tim Schafer, was observed by the eye of Narrative Discourse. Using the elements found in this study, this work consists on the creation of a new product: LIMBO, an electronic game with the objective application of this narrative features observed. The Game Document is presented in a completed way, trying to approach the biggest number of characteristics that will be implemented by the topics: overview, synopsis, characters description, description of the universe where the story happens, argument, game play, level design and concept arts. Keyword: Narrative. Interactivity. Electronic games. Videogames. SUMRIO 1 INTRODUO 7 2 GRARD GENETTE ENCONTRA FULL THROTTLE10 2.1 ORDEM 15 2.2 DURAO 21 2.3 FREQNCIA27 2.4 MODO34 2.5 VOZ45 2.6 REFLEXES DO ENCONTRO58 3 LIMBO DOCUMENTO DE PRODUO DO JOGO59 3.1 VISO GERAL 59 3.2 SINOPSE59 3.3 DESCRIO DOS PERSONAGENS60 3.4 DESCRIO DO MUNDO64 3.5 DESCRIO GERAL DO FUNCIONAMENTO DO JOGO65 3.6 MECNICA DO JOGO68 3.6.1 OBJETIVOS E REGRAS68 3.6.2 SISTEMA DE PONTUAO70 3.6.3 DESCRIO DA INTERFACE 70 3.6.4 DESCRIO DE COMANDOS72 3.6.4.1 CONTROLE DE MOVIMENTAO72 3.6.4.2 CONTROLE VISUAL72 3.6.4.3CONTROLE DE HABILIDADES AVANADAS73 3.7 ARGUMENTO74 3.8 DESCRIO PROGRESSIVA FASE A FASE83 3.9 DESCRIO DO ESPAO NAVEGVEL (LEVEL DESIGN) 89 3.10 DIREO DE ARTE92 4 CONCLUSO98 LISTA DE OBRAS UTILIZADAS102 ANEXO FLUXOGRAMA DE EVENTOS DE LIMBO 103 7 1INTRODUO Em todos os trabalhos artsticos que produzi curtas-metragens, histrias em quadrinhos, multimdia ou jogos h sempre uma caracterstica que os une: minha vontade de contar histrias. Meu interesse pela narrativa o fio que alinhava todas as formas de expresso que tenho trabalhado. A questo que mais me intriga : como, e at que ponto, a narrativa deve ser usada nas mdias interativas em especial, nos jogos? Ser que a interao diminuiria as possibilidades narrativas? Insatisfeito com as solues que tenho encontrado para o uso da narrativa nos meus trabalhos interativos, pretendo exploraras fronteiras entre interatividade e narrativa. A partir desse questionamento decidi dividir essa pesquisa em duas partes. A primeira delas prope analisar e discutir um jogo eletrnico a partir da tica de um terico da narrativa literria. Com esse trabalho pretendo elucidar os principais pontos de convergncia entre os vdeo games e a narrativa. Ao abordar as questes narrativas, Salen; Zimmerman, (2004. p. 379) constatam que A interseco dos termos narrativa e jogo vem sendo surpreendentemente abordada no estudo e no design de jogos. Nos ltimos anos, estudiosos e acadmicos da literatura, cinema, e narrativa eletrnica, como o hipertexto, tm se voltado diretamente para o estudo dos jogos para computador. Diciplinas alheias ao design de jogos tem estudado jogos sob perspectivas de seus prprios campos, o debate chegou a quem tem o direito de fazer definies sobre os jogos e a narrativa. Essa disputa turva sintomtica da dificuldade inerente do estudo de uma mdia externa no contexto prprio de uma outra disciplina. 8 Por isso, meu objetivo com esse estudo no apenas a anlise dos jogos sob a perspectiva narrativa e sim explorar, atravs dessa pesquisa, como as questes narrativas podem ser utilizadas na criao de jogos. No pretendo provar que jogos so (ou no so) narrativos ou definir os limites entre a narrativa e os jogos eletrnicos. Meu foco descobrir como os jogos podem usar os fundamentos que estruturam as narrativas de formas mais interessantes, utilizando esses elementos de um modo criativo, levando os suas ltimas conseqncias. Para o desenvolvimento dessa pesquisa, optei por analisar o jogo Full Throttle, de Tim Schaffer, sob a perspectiva de Grard Genette, autor do livro O Discurso da Narrativa, em que ele se utiliza do livro La Recherche du Temps Perdu, de Marcel Proust e elabora uma metodologia eficaz para o estudo de qualquer obra narrativa. Atravs dessa confrontao de meios, pretendo destrinchar alguns elementos da potica narrativa. Aps esse levantamento proveniente do estudo realizado na primeira parte desse trabalho, um projeto de um jogo eletrnico (Documento de produo do jogo.)1 ser desenvolvido levando em conta os elementos narrativos que julgar pertinentes. Acredito que ao utilizar tais elementos narrativos descobertos, no documento de produo do jogo proposto, passarei a trabalhar com novos paradigmas, munido de um repertrio indito no meu trabalho pessoal de designer de jogos. Se at hoje desenvolvi jogos que foram escritos intuitivamente sem uma compreenso maior da potica narrativa, tenho certeza que a partir dessa pesquisa poderei propor algo diferente, buscando uma nova forma que alie a narrativa 9 ao jogo de um modo mais simbitico, explorando possibilidades estticas que tenho deixado escapar. Para que qualquer percepo de presuno a respeito do que pretendo realizar seja desfeita, quero esclarecer que os limites que pretendo ultrapassar so pessoais e esto ligados ao meu trabalho artstico como desenvolvedor de jogos eletrnicos. Porm acredito que ao propor esse jogo com to forte ligao narrativa, vou contribuir com outros designers de jogos ao oferecer uma forma especfica de documentar projetos de jogos, j que no h um padro formal de como um documento de produo do jogo deve ser apresentado. A temtica e a histria desse projeto vo ser definidas a partir dos elementos levantados durante a pesquisa do primeiro captulo. O jogo a ser criado ser uma metfora a respeito do ato de contar histrias e de como a participao do jogador interfere na percepo e no desenvolvimento da trama. Por isso, apesar da diferena formal e de uma certa desconexo entre os dois captulos dessa dissertao, atravs da ligao dessas duas partes que o trabalho construdo. Deixando que as relaes entre os pontos levantados no primeiro capitulo possam ser reconhecidas no segundo captulo: o documento de produo do jogo. 1Game Doc o nome dado ao projeto de um jogo a ser produzido com todas as informaes pertinentes a execuo da obra esto descritas e esquematizadas. Para evitar o uso de expresses estrangeiras, sugiro aqui a traduo: Documento de produo do jogo. 10 CAPTULO 1 2 GRARD GENETTE ENCONTRA FULL THROTTLE Em O Discurso da Narrativa, de Genette. La Recherche du Temps Perdu de Proust tratado como um pretexto, reservatrio de exemplos e lugar de ilustrao para uma potica narrativa, onde seus traos especficos se perderiam na transcendncia das leis do gnero (GENETTE, 1985, p.20). Procurando o especfico encontra-se o universal, sugere o autor, e esse mtodo universal, no restrito exclusivamente Recherche ou mesmo s obras literrias, que usarei como base de meu estudo. O ponto de partida de Genette na anlise do discurso narrativo a diviso de Tzevetan Todorov, de 1966, em que so propostas trs categorias: tempo, que aborda as relaes entre tempo da histria e o tempo de discurso; o aspecto, maneira pela qual a histria percebida pelo narrador; e o modo, tipo de discurso utilizado pelo narrador. Todorov ilustrava a primeira categoria atravs das deformaes temporais: infidelidades ordem cronolgica dos acontecimentos. O aspecto recolheria as questes do ponto de vista sob o qual feita a narrao, e o modo, os problemas de distncia entre o narrador e sua narrao. Genette props uma reorganizao dessas trs classes fundamentais de determinao da seguinte forma: tempo, ligada s relaes temporais entre o discurso e diegse; modos de narrativa, ligada s modalidades de representao, uma reunio do aspecto e do modo na diviso criada por Todorov; por fim, Genette cria uma nova determinao que enfoca as questes ligadas narrao, definindo a situao ou instncia narrativa: avoz. Tempo e modo funcionam ambos no nvel das relaes entre histria e narrativa, enquanto voz designa ao mesmo tempo as relaes entre narrao e narrativa, e entre narrao e histria(GENETTE, 1985, p. 30). 11 Essas trs classes propostas determinam a posio dos captulos do livro O Discurso da Narrativa, dividido em ordem, durao, freqncia, modo e voz. Munido das ferramentas fornecidas por Genette em O Discurso da Narrativa, pretendo fazer uma anlise do jogo Full Throttle e descobrir como a teoria narrativa foi aplicada (e como pode ser aplicada) nesta nova forma de contar histrias: o videogame. Minha primeira idia, ao pesquisar esta nova linguagem, foi utilizar a teoria da narrativa cinematogrfica, j que a proximidade entre jogos e cinema notria; porm julguei ser mais prudente ir direto teoria literria acredito que encontrarei conceitos mais adequados, que me ajudaro a compreender mais claramente a metodologia ao narrar uma histria, mesmo que haja a interferncia do destinatrio da narrao: o narratrio2. Por que Full Throttle No incio da dcada de 90 um gnero de jogos se tornou extremamente popular os jogos de aventura com grficos que, ao contrrio dos outros gneros, privilegiava a histria em relao ao. Por essa caracterstica tais jogos ficaram conhecidos como interactive storytelling (narraes interativas). Dentre as produtoras que se especializavam nesse gnero especfico, a Lucas Arts se destacou. No por acaso a Lucas Arts ligada a uma empresa cinematogrfica a Lucas Films, ambas de George Lucas. O gnero desenvolveu-se rapidamente, numa seqncia de ttulos que exemplificam sua evoluo.O uso da linguagem cinematogrfica como recurso narrativo era maior a cada novo lanamento. A utilizao de dispositivos como o corte, a montagem contnua, a trilha sonora e principalmente o roteiro ficaram cada vez mais evidentes. Junto com a evoluo dos jogos de aventura com grficos, um autor se destacava Tim Schafer. Em quase todas as equipes dos jogos lanados pela 2 Termo usado por Genette ao tratar do destinatrio da narrao. 12 Lucas Arts, Schaffer era integrante. Em 93 estreou como autor no jogo Day of the Tentacle, que ajudou a consolidar o novo gnero, tornando-se um dos mais aclamados game designers mundiais. Esse autor de jogos foi um dos primeiros criadores de jogos a ganhar status de artista como um diretor de cinema; sua assinatura em um trabalho atestava a qualidade da obra e seu nome ajudava a vender os jogos. Em 1995, a Lucas Arts lana Full Throttle, que rapidamente se torna uma referncia dos jogos de aventura com grficos, mostrando a possibilidade de um jogo contar uma histria complexa, sem que a jogabilidade fosse comprometida. O argumento do jogo Full Throttle se passa num futuro prximo e conta a histria de Ben, lder dos polecats, uma gangue de motoqueiros procura de trabalho. Malcon Corley, proprietrio da maior fabricante de motocicletas dos Estados Unidos, a Corley Motors, e o vice-presidente da companhia, Ripburger, oferecem um trabalho gangue escolt-los prxima reunio dos acionistas da empresa. Ben no aceita a proposta e os capangas de Ripburger o deixam desmaiado em uma caixa de lixo. A gangue acredita que seu lder acabou aceitando o trabalho e junta-se aos empresrios como escolta. Ao acordar, Ben descobre que uma armadilha e tenta interceptar a comitiva antes que cheguem ao destino. Enquanto tenta alcan-los, Ben descobre que os parafusos que prendem a roda dianteira ao garfo de sua moto foram soltos e sofre um acidente. Miranda, uma jornalista fotogrfica, o encontra desacordado e o leva a Maureen, uma mecnica local. Ben acorda na casa de Maureen, que tenta consertar a moto dele. O motoqueiro a ajuda a encontrar peas e, com a motocicleta recuperada, volta estrada. Mas j tarde demais: Ripburger assassina Malcon Corley e os polecats so incriminados. Miranda consegue fotografar os golpes que mataram o velho Corley, mas descoberta antes 13 de fugir, deixando a cmera nas mos dos capangas de Ripburger. Ao encontrar Malcon, Ben ainda consegue ouvir suas ltimas palavras, e fica sabendo que o empresrio tem uma filha bastarda: Maureen. Ripburger pede aos capangas que eliminema herdeira e as fotos. Maureen est consertando uma torradeira quando v o reflexo do assassino; ela aperta um boto que abre um alapo sob os ps do bandido, derrubando e o deixando inconsiente. Maureen pega o filme da cmera que estava com o assassino e foge; quando Ben volta oficina, j no h ningum. Ben decide procur-la no lugar onde a garota aparece numa fotografia num porta-retrato. Porm, como acusado de ter sido o assassino de Malcon Corley, ao chegar no esconderijo de Maureen, ela foge mais uma vez. Pensando em atrair Maureen para uma cilada, Ripburger cria uma competio de destruio de carros que premiar o vencedor com a primeira motocicleta de Malcon Corley, veculo que havia sido consertado por Maureen e seu pai. Maureen membro de outra gangue, os vultures, e esconde-se na caverna do bando. Ben a encontra mais uma vez, mas dessa vez preso pelos vultures. Maureen o est torturando, quando descobre que ele no o responsvel pela morte de seu pai. Ao revelarem as fotos tudo se esclarece e os dois elaboram um plano para desmascarar Ripburger. Ambos se inscrevem na competio de destruio de carros e conseguem enganar Ripburger, fazendo-o acreditar que foram mortos por seus capangas. Com a motocicleta recuperada, Maureen descobre a chave de um cofre de seu pai escondida no motor. Esse cofre guarda uma fita com o testamento de Malcon Corley. Durante a cerimnia de posse de Ripburger, na Corley Motors, Ben interrompe a projeo da apresentao dos novos planos do novo presidente e exibe no telo a seqncia de fotos que mostram o assassinato de Malcon Corley. Em seguida reproduz a fita com o testamento narrado pelo prprio Malcon. Desmascarado na frente da multido, Ripburger se desespera e foge, roubando um caminho da companhia. Ben e Maureen voltam para a estrada, quando um enorme caminho se aproxima e tenta atropel-los. Numa emocionante seqncia final, Ben 14 enfrenta Ripburger, conseguindo salvar Maureen e deixando o vilo cair num enorme precipcio. Histrias como a de Ben no so comuns nos jogos eletrnicos, mesmo quase dez anos aps o lanamento de Full Throttle. Poucos so os jogos com roteiros to elaborados, personagens interessantes e tramas to bem engendradas. Essa poderia bem ser a sinopse de um filme, uma histria em quadrinhos, ou at mesmo de um conto; a diferena que nessa histria o narratrio convidado a uma participao ativa e a continuidade da histria depende de suas aes. A histria de Full Throttle contada dividindo-se em trechos interativos e no-interativos. O jogo comea com um longo trecho no-interativo uma locuo em off: Quando sinto o cheiro de asfalto eu penso em Maureen. Essa foi a ltima sensao que tive antes de apagar, e a primeira imagem que vi quando acordei foi seu rosto. Ela disse que consertaria minha moto. Enquanto ouvimos esse texto introdutrio a cmera faz uma pan mostrando um vale no deserto, por onde passa uma estreita estrada de asfalto. A partir da os personagens e a trama vo sendo apresentados at que finalmente alcanamos o primeiro trecho interativo, em que somos solicitados a participar da histria e controlar as aes de Ben, tentando resolver os problemas propostos. Conforme atingimos os objetivos de cada trecho interativo do jogo,voltamos a uma nova seqncia no-interativa, que apresenta mais desafios que devero ser solucionados no trecho interativo seguinte. A histria contada dessa maneira, intercalando trechos com e sem interatividade. 15 2.1 ORDEM No primeiro captulo de O Discurso da Narrativa, Genette aborda a questo temporal relacionada s distores temporais da narrativa. Numa narrativa h dois tempos: o tempo da histria contada e o tempo que se leva para contar essa histria uma das funes da narrativa transformar o tempo em um outro tempo (METZ, 1968, p. 27). Essa oposio entre essas duas temporalidades um trao caracterstico em qualquer tipo de narrativa cinematogrfica, oral, literria...3. Porm a narrativa literria escrita tem um espao mais difcil de se precisar do que as narrativas orais e flmicas, j que seu consumo se faz no tempo varivel da leitura. Essa relao de dualidade temporal nas histrias contadas por jogos acaba se assemelhando ao que acontece na narrativa literria. Se o tempo de leitura depende da velocidade de cada leitor, o mesmo podemos dizer dos jogos, que tero os tempos da narrativa variveis dependendo de quo rpido os jogadores solucionam os desafios. Por outro lado, nos trechos onde no exigido interao do jogador, a histria contada como num filme, em cenas de transio. Poderamos dizer que os jogos acabam misturando uma temporalidade varivel prpria da literatura com a temporalidade fixa oral e cinematogrfica. As questes da ordem tratam das relaes entre ordem temporal de sucesso dos acontecimentos na histria contada e a ordem pseudo-temporal da disposio narrativa. O estudo da ordem temporal confronta a ordem em que os acontecimentos so dispostos no discurso narrativo com a ordem da histria. A discordncia entre esses dois aspectos chamado de anacronia um dos recursos tradicionais da narrao literria. O incio de uma histria, por exemplo, j com uma ao em pleno desenvolvimento, seguido de um voltar atrs explicativo um pilar tradicional do gnero pico (prtica conhecida como in Media 3 Genette julgava essa questo menos pertinente nas histrias em quadrinhos; porm, se considerarmos que o tempo na narrativa grfica marcado pelo espao e no pelo tempo, veremos que mesmo aqui essa oposio se faz presente. 16 res). Genette prope o uso de novos termos para a anlise dessas relaes temporais: prolepse toda a manobra narrativa consistindo em evocar ou contar de antemo um acontecimento ulterior; analepse Toda ulterior evocao de um acontecimento anterior ao ponto que se est da histria; anacronia esse termo geral reservado a quaisquer outras formas de discordncia que no sejam prolepses ou analepses. A elipse, que um avano sem recuo, no uma anacronia e sim uma simples acelerao da narrativa; apesar de afetar o tempo, a ordem cronolgica preservada. Toda anacronia constitui, em relao narrativa na qual se insere, uma narrativa temporalmente segunda, subordinada primeira. Podendo ir ao passado ou ao futuro, mais ou menos longe do momento presente (momento da histria interrompido para dar lugar), o alcance da anacronia se refere a essa distncia temporal E a amplitude refere-se a durao de histria na anacronia. Analepses Genette classifica vrios tipos de analepses, que podem ser: externas a amplitude total permanece exterior narrativa primeira; por isso, esse tipo de analepse jamais interfere na narrativa primeira; sua funo se restringe a um esclarecimento sobre algum antecedente. Genette denomina essas analepses de heterodiegticas, pois reportam-se a linhas de histrias e a um contedo diegtico diferente da narrativa primeira; 17 internas o alcance no anterior ao incio da narrativa, referindo-se a mesma linha de ao da narrativa primeira; portanto, analepses homodiegticas. A interferncia na narrativa primeira, neste caso, praticamente inevitvel, assim como a redundncia, j que um regresso a algo que j foi dito. A funo mais freqente deste recurso a modificao posterior de eventos passados. Essa dupla interpretao propicia-nos uma espcie de narrativa dupla, dando novo ponto de vista e significado a um acontecimento j abordado pela narrativa;mistas o ponto de alcance anterior ao incio da narrativa primeira, mas a amplitude posterior; completivas (ou reenvios) compreendem segmentos retrospectivos que preenchem uma lacuna deixada pela narrativa primeira;parciais retrospeco que termina numa elipse, sem alcanar a narrativa primeira; completas a amplitude alcana a narrativa primeira, cobrindo toda a sua durao; esse recurso est ligado prtica de iniciar uma histria j com a ao em desenvolvimento. Uma analepse mista vai ao encontro da narrativa primeira no no incio, mas no prprio ponto onde havia sido interrompida para dar-lhe lugar. A amplitude igual ao alcance, por isso podemos cham-las de analepses internas completas. A narrativa analptica interrompe-se numa elipse e a narrativa primeira retomada onde havia sido abandonada. Prolepses Bem menos usuais do que as analepses so as prolepses. A antecipao muito pouco freqente na tradio narrativa ocidental. A preocupao com o suspense narrativo prpria da concepo clssica do romance no se ajusta a tal prtica. Do mesmo modo, as prolepses se dividem em externas e internas. Certas prolepses externas pem em jogo a prpria 18 instncia narrativa, por isso essas antecipaes no presente no afetam apenas a temporalidade da narrativa, mas tambm questes relacionadas voz. As prolepses internas tm as mesmas caractersticas das analepses desse tipo. As prolepses completivas compensam futuras elipses, enquanto as prolepses repetitivas dobram um segmento narrativo a vir um anncio , assim como as analepses repetitivas, um retorno. A funo das prolepses repetitivas est ligada expectativa que criam no esprito do leitor. importante no confundir esses anncios explcitos com sugestes, que no so mais do que esboos para preparar os leitores. H tambm o recurso de lograr falsos esboos para induzir o leitor a uma projeo falsa. Genette no encontra exemplos de prolepses completas, que se prolongassem at o momento do desenlace ou at o momento narrativo, apontando que prolepses so sempre parciais, porque mesmo com todas as anacronias, a direo temporal sempre respeitada. Enquanto numa analepse o tempo corre ao encontro da narrativa primeira, numa prolepse o tempo se distancia do ponto onde a narrativa deu lugar a esse novo segmento, ficando impossvel um reencontro. Anacronias Em la Recherche du Temps PerduGenette encontra anacronias duplas, que criam verdadeiros ziguezagues: analepses sobre prolepses e prolepses sobre analepses. Analepses abertas, cuja terminao no identificvel, provam a existncia de segmentos narrativos temporalmente indefinidos. Nos captulos seguintes Genette expe outros critrios para 19 agrupamentos sem que a ordem cronolgica dos acontecimentos seja a dominante por exemplo, agrupamentos de eventos que acontecem em um mesmo local. A ordem em jogo Mesmo tendo Grard Genette direcionado O Discurso da Narrativa para uma anlise de uma obra literria, os conceitos que menciono acima so perfeitamente aplicveis a qualqueroutra forma narrativa. No difcil encontrar exemplos dessas anacronias no cinema, no teatro ou mesmo em histrias em quadrinhos. Alis, o conhecimento dessas questes beneficia a compreenso de inmeras narrativas. Porm raramente essas distores de ordem temporal so exploradas nos jogos. Em geral as histrias contadas em videogames so simples e lineares, no tendo nenhuma alterao da ordem cronolgica. Mesmo nas produes em que a histria ganha destaque a narrativa mantm essa caracterstica. Esse tipo delinguagem est diretamente ligado ao momento presente, em que o jogador controla um personagem em tempo real, respeitando uma seqncia de acontecimentos interligados por causalidade. Criar uma obra onde o jogador controla um personagem noutro tempo que no seja o presente no tarefa fcil, pois conceitualmente o controle do personagem est diretamente ligado a idia da ao e reao instantnea4.Bem mais simples de se imaginar o uso de anacronias nos trechos no-interativos dos jogos, que nada mais so do que seqncias audiovisuais sem nenhuma interferncia do jogador. Tal recurso seria extremamente eficaz para explicar eventos anteriores ao tempo presente, ou mesmo mostrar como as aes do jogador interferiro no futuro. Mesmo assim, raros so os jogos que utilizam as cenas no-interativas para abordar um tempo que fuja ao da cronologia da histria. 4 Podemos encontrar jogos que distorcem a ordem cronolgica e que mostram relaes entre aes em diferentes pontos temporais, como em Day of The Tentacle, tambm de Tim Schaffer, ou mesmo o recente Onimusha 3.Porm em ambos os jogos a distoro do tempo faz parte da diegse, pois tratam-se de histrias sobre viagens no tempo, em que algo feito no 20 Full Throttle inicia a histria num tempo posterior ao da histria, com uma locuo que indica que a narrao feita por algum que viveu os fatos e conta o que se passou. Aps essa locuo introdutria, feita pelo prprio Ben, retornamos no tempo em um salto com alcance indeterminado. Porm no se trata exatamente de uma analepse, pois jamais esse instante inicial em que feita a locuo recuperado. Por outro lado, esse incio num tempo que no aquele em que vamos vivenciar a aventura muito inovador para a poca em que foi apresentado, alm de trazer questes que sero novamente abordadas quando tratarmos das questes do modo e da voz. Estrutura narrativa semelhante apresentada por Full Throttle utilizada no game Deus da Guerra (2004), com a diferena que desta vez as cenas no-interativas retrocedem temporalmente em analepses heterodiegticas parciais que vo contando eventos que explicam a histria pregressa do personagem que controlamos. Do mesmo modo, a narrao tem incio num tempo posterior ao da histria que vamos vivenciar, mas desta vez, ao final do jogo reencontramos esse ponto inicial: analepse completa. Deus da Guerra de longe uma das mais competentes formas de narrar uma histria num jogo, mas claro que a contribuio da estrutura proposta nos jogos de aventura dez anos antes foi uma das grandes colaboraes para que a narrativa dos jogos se desenvolvessem. Porm nos trechos interativos de Deus da Guerra o enredo elaborado se dilui e o controle que o jogador exerce no heri se restringe rpida manipulao de botes que disparam golpes de espada ao enfrentar inimigos que tentam abat-lo e o acionamento de alguns dispositivos espalhados pelos caminhos trilhados por ele. O mesmo no acontece em Full Throttle, que por no ter caractersticas de jogo de ao, mantm o enredo como o principal dos elementos que estabelecem os desafios do jogo. Apesar dos exemplos de desordens temporais encontrados em jogos, a presena de passado enquanto controlamos determinado personagem interfere num futuro quando controlamos outro personagem. 21 anacronias ainda rara e tmida, distantes do verdadeiro potencial oferecido por essa nova mdia. Imagino que tais recursos, to eficazes em quaisquer formas narrativas, dariam aos autores de jogos possibilidades inditas que os levariam criao de obras muito mais ricas. 2.2 DURAO Numa narrativa temos o tempo da histria e o tempo que se leva para cont-la. Na literatura no podemos medir com exatido a durao de uma narrativa, diferente do que acontece no cinema ou na msica, e no possvel fixar uma velocidade normal de execuo. O tempo da leitura sempre varivel. Grau zero, ou ponto de referncia, a isocronia rigorosa, a coincidncia entre o tempo da histria (sucesso diegtica) e da narrativa. Na literatura poderamos atribu-la um dilogo sem interveno do narrador e sem elipses uma espcie de igualdade entre o segmento narrativo e o fictcio. Ainda assim, esse no seria um indicador temporal rigoroso, j que no recria a velocidade com que as palavras foram pronunciadas. Por essa impossibilidade mtrica na literatura renuncia-se medir as variaes de durao em relao a uma inacessvel igualdade de durao entre narrativa e histria. Assim, a velocidade da narrativa definida pela relao entre a durao da histria, medida em unidade de tempo, e uma extenso espacial o texto , medido em linhas ou pginas. A narrativa isocrnica jamais poderia existir na literatura.Uma narrativa pode passar sem efeitos de anacronias, mas jamais poder existir sem efeitos de ritmos ou anisocronias. Genette verifica os efeitos do ritmo na narrativa proustiana claro que tal estudo sempre 22 desenvolvido com pouca preciso, pois o tempo diegtico quase nunca indicado com rigor e constata que h um afrouxamento progressivo da rapidez da narrativa; a cada vez aumenta-se a presena de longas cenas que cobrem apenas uma durao curta da histria. Esse afrouxamento compensado pela presena cada vez maior de elipses, criando uma narrativa constituda de enormes cenas separadas por lacunas temporais. Existem gradaes contnuas entre a velocidade infinita que criaria uma lacuna na temporalidade diegtica a elipse e a absoluta lentido a pausa descritiva. A tradio romanesca resume essas gradaes em apenas quatro movimentos narrativos: os extremos elipse e pausa descritiva; cena, que convencionalmente teria igualdade entre o tempo da narrativa e o da histria; e a narrativa sumria, que uma forma de movimento de grande adaptabilidade de regime, cobrindo todo o campo entre a cena e a elipse. Grard Genette sugere frmulas que exemplificam esses quatro movimentos narrativos: TH = Tempo da Histria, TN = Tempo convencional da Narrativa (pseudotempo). Pausa: TH = n, TN=0, logo TN!>TH Cena: TN = TH / TN > TH, seria uma cena retardada Sumrio: TN < TH Elipse: TN = 0, TH = n, logo TN; o nmero de vezes que uma ocorrncia foi verificada o mesmo nmero de vezes a ser contado. Minha 32 tendncia inicial era assumir que esses dois tipos de freqncia narrativa resumiam a grande maioria dos momentos interativos5 das produes de jogos eletrnicos. Isso porque, como j mencionei anteriormente, um dos fundamentos da linguagem dos games o conceito de momento presente durante o controle do avatar, simulando que tudo est acontecendo no exato momento que o jogador comanda cada uma das de suas aes. Porm, um olhar mais atento desvenda o uso da narrativa de repetio para simular a prpria narrativa singulativa. Em Full Throttle quando necessrio o cumprimento de uma tarefa especfica podemos tentar e falhar infinitas vezes at sermos bem sucedidos e desencadear um novo status. Na primeira fase do jogo, por exemplo, depois de receber o objetivo de encontrar peas para a moto quebrada, temos trs objetivos primrios:conseguir um garfo de motocicleta, um maarico e gasolina. Para cada um desses objetos teremos um enigma a ser desvendado. Para conseguir o maarico precisamos, exatamente nesta ordem, levar Ben at uma casa onde uma janela emana flashes de luz, bater na porta e aguardar o exato momento em que o proprietrio usa o olho mgico; ento Ben deve chutar a porta, derrubando o homem. O maarico est no andar debaixo, ao lado das esculturas de metal. Mas se ao invs disso, fizssemos Ben bater na porta mas no chutar no momento oportuno, o proprietrio apenas gritaria e voltaria ao seu trabalho. Isso no quer dizer que o jogo foi perdido e que deveramos recome-lo; ao contrrio, Ben pode retornar ao local de qualquer misso incompleta e repeti-la at que o objetivo seja finalmente atingido. Enquanto isso no acontecer toda misso incompleta volta automaticamente ao seu status inicial, repetindo cada passo at ser concluda. O roteiro engenhosamente escrito e as repeties acabam nos iludindo com a idia de que mais uma tentativa do protagonista e de que no estamos revendo uma mesma ao n vezes, mas sim 5 Os trechos no interativos dos jogos, por funcionarem como tradicionais seqncias cinematogrficas, so muito mais livres para utilizar as variaes narrativas de freqncia como o prprio cinema o faz. Acredito que questo maior encontra-se ao procurar esses recursos no jogo em si durante o controle exercido pelo interador. 33 que essa ao acontece n vezes (nN/nH)6. Sem dvida a narrativa iterativa cobre a grande maioria dos romances e por isso mesmo recebe um estudo mais detalhado no livro de Genette. Nos jogos, entretanto, acredito que a narrativa de repetio tambm importante. A repetio esta presente na simulao de uma temporalidade contnua, como exemplifiquei em Full Throttle, ou ainda na utilizao comum maioria dos games do salva jogo. Com esse recurso, sempre que uma ao mal sucedida acontece, o jogador pode reiniciar no momento em que o jogo foi salvo e repetir a ao at que ele obtenha o resultado necessrio para o progresso da histria. De fato no h grande diferena conceitual entre esses dois modos repetitivos; tanto Full Throttle como os jogos que permitam o salva jogo, utilizam-se da repetio para possibilitar novas tentativas.Mas se a repetio fosse aliada a novos pontos de vista a cada vez que a narrativa regressasse, como Genette menciona referindo-se aosromances modernos, os jogos apresentariam novas possibilidades narrativas, e tal recurso, aliado interatividade prpria da mdia, possibilitaria desdobramentos impensveis para a literatura, o teatro ou o prprio cinema. A narrativa iterativa parece estar distante dos jogos, mas acredito que h uma forte relao entre a iterao e a repetio dos jogos de ao, em que o protagonista enfrenta vrias vezes inimigos idnticos ou desvia do mesmo obstculos por fases inteiras. Apesar da aparente isonomia (nN/nH) dessa relao de freqncia, parece-me que aqui a repetio funciona como mero enunciado que nos informa que o heri passou por muitos desafios at chegar ao final daquele mdulo. Em um jogo de ao como Mrio Bros , o protagonista precisa superar ou derrotar uma infinidade de opositores iguais, repetindo as mesmas aes. Ao final da fase, no 6 Vale lembrar que no caso de um jogo a ao j est pr-programada na memria e exatamente a mesma ao ser repetida, respondendo a um mesmo comando armazenado em um trecho da mdia. Num livro, para descrever uma ocorrncia repetitiva no seriam usadas as mesmas palavras e mesmo que fossem, no estariam na mesma pgina. 34 h como saber o numero certo de viles derrotados. Sugiro que o nmero de obstculos vencidos no representaria necessariamente o nmero exato de obstculos na histria, servindo apenas de representao para indicarque o protagonista superou um grande nmero de dificuldades. Teramos ento uma nova frmula: n1N/n2H, onde n1 PERSONAGEM, em que o narrador sabe mais do que o personagem. O segundo tipo trata da narrativa em que o narrador diz somente o que determinado personagem sabe. Esse tipo seria simbolizado pela frmula NARRADOR = PERSONAGEM. O terceiro a narrativa objetiva, em que o narrador diz menos do que sabe o personagem, simbolizado por NARRADOR < PERSONAGEM. Genette rebatiza esses trs tipos a partir da focalizao; assim, o primeiro tipo passa a ser a narrativa no-focalizada ou de focalizao zero. O segundo ser a narrativa de focalizao interna, podendo ser fixa - com restrio de campo, varivel em que o personagem central muda no decorrer da histria, ou mltipla, em que o mesmo acontecimento pode ser evocado vrias vezes com alteraes de pontos de vistas de personagens diferentes. O terceiro tipo ser a focalizao externa, em que o heri age nossa frente sem que possamos partilhar seus sentimentos e pensamentos. Apesar de a focalizao ser essencialmente uma restrio, a deciso da focalizao no obrigatoriamente constante em toda a narrativa. Michel Raimond expe que os romances de intriga ou aventura baseiam seu ponto de interesse no fato da existncia de um mistrio. Por 39 isso o autor deixa de dizer tudo o que sabe de um momento para o outro. No toa que grande nmero nos romances de aventura as primeiras pginas so focalizadas externamente. A frmula de focalizao se aplica a segmentos narrativos que podem ser muito curtos. No poderamos falar de uma focalizao interna no sentido estrito, pois raramente sua aplicao totalmente rigorosa. Por princpio esse modo narrativo implicaria um absoluto rigor que no permitiria que o personagem fosse descrito externamente, do mesmo modo como seus pensamentos e sentimentos jamais poderiam ser analisados pelo narrador. A focalizao interna s encontraria de fato na narrativa em monlogo interior. A focalizao externa, ao contrrio, marca a ignorncia do narrador em relao aos pensamentos autnticos do personagem.Mas esse critrio no deve criar confuso s instncias da focalizao e da narrao, que continuam distintas at mesmo na narrativa da primeira pessoa, quando as duas instncias so assumidas pela mesma pessoa. O narrador sabe, quase sempre, mais que o heri mesmo que esse heri seja ele mesmo. A focalizao sobre o heri , para o narrador, uma restrio de campo artificial na primeira ou na terceira pessoa. Alteraes Mudanas de focalizao isoladas em contextos coerentes so infraes momentneas ao cdigo que rege o contexto da narrao e no colocam em questo a existncia desse cdigo. Essas alteraes so infraes isoladas e concebveis de duas formas: Dar menos informao do que aquela que seria requerida omisso lateral, conhecida como paralipse. 40 Dar mais informao do que seria autorizado pelo cdigo de focalizao que rege a narrativa; o fornecimento de uma informao que deveria ser deixada de lado paralepse. A paralipse pode ser encontrada no mais clssico dos romances policiais mesmo que seja focalizado pelo detetive investigador, deixa de nos informar todas as suas descobertas at a revelao climtica do final. Muitas paralipses so descobertas apenas ulteriormente por revelaes feitas pelo narrador. A paralepse pode ser verificada, por exemplo, numa incurso na conscincia de um determinado personagem durante o desenrolar de uma narrativa que vinha sendo estabelecida em focalizao externa. A narrativa diz sempre menos do que aquilo que sabe, mas faz muitas vezes saber mais do que aquilo que diz , conclui Grard Genette. Polimodalidade O emprego daprimeira pessoa no implica nenhuma focalizao da narrativa sobre o heri. O narrador autobiogrfico tem maior autonomia para falar em seu prprio nome do que o narrador em terceira pessoa. O narrador autobiogrfico no responde a qualquer suposta discrio, ao contrrio do narrador pessoal. A opo pela focalizao interna do ponto de vista de um personagem ao mesmo tempo explicita sua psicologia e deixa numa completa obscuridade os pensamentos dos demais; assim, acaba por constituir-lhe uma personalidade misteriosa. Incurses na psicologia de personagens que no seja a do heri so indcios de focalizao que a narrativa pratica sob 41 uma forma hipottica. A experincia posterior do heri pode ser revelada por expresses como vim depois a saber.... Essas intervenes no devem ser atribudas ao autor onisciente. Entre a informao do heri e a oniscincia do romancista h a informao do narrador, define Genette. Criando uma analogia entre a msica e a narrativa, o sistema tonal equivaleria ao sistema modal. Um sistema narrativo livre poderia ser chamado de amodal quando as infraes (paralipses e paralepses) alterassem o cdigo que rege a narrativa, estendendo a analogia ao atonal, em que nenhum cdigo prevalece. Genette traa tal paralelo para mencionar que Recherche estaria num estgio intermedirio, a polimodalidade. O modo do jogo O modo narrativo num jogo funciona com funes semelhantes s que estabelecem a distncia e perspectiva abordadas por Genette. O jogo uma forma de narrativa dramtica e, portanto, no se trata de imitao; a narrativa de um jogo diegtica7. Do ponto de vista da distncia, os jogos funcionam de forma semelhante ao teatro e ao cinema, mas acredito que os jogos passam a potencializar maiores variaes narrativas em relao perspectiva. A confuso entre modo e voz a que Grard Genette se refere em seu livro no privilgio da literatura; a mdia especializada em jogos eletrnicos compartilha essa mesma confuso. A viso de um jogo definida como em primeira pessoa quando enxergamos a partir dos olhos 7 Salvo jogos que no fazem uso de imagens em movimento como os adventures em texto, em que o jogador resolve os problemas propostos de forma escrita, podendo haver em seu enunciado dilogos mimticos. 42 do heri ou em terceira pessoa, ao visualizarmos o heri. Tal terminologia acabou por se tornar praxe em qualquer resenha que descreve um jogo. Mas na realidade, ao determinar a viso no estamos tratando da pessoa(voz), mas sim da perspectiva (modo). No difcil notar esse equvoco ao voltarmos a Full Throttle, que iniciado com uma longa narrao em primeira pessoa que desencadeia os acontecimentos da histria do jogo. O narrador o prprio heri, o motoqueiro Ben. Se tomarmos como base a nomenclatura tradicional dos crticos de videogame, Throttle seria definido como jogo em terceira pessoa, apesar de a narrativa ser explicitamente realizada em primeira pessoa. O ideal seria definir a viso pelos critrios de focalizao que tratam do ponto de vista. O uso dos termos definidos por Genette narrativa no-focalizada, narrativa de focalizao interna e narrativa de focalizao externa seriam bem mais apropriados. No h polmica ao afirmar que Full Throtle uma narrativa de focalizao externa em primeira pessoa. Se ficssemos presos aos termos primeira e terceira pessoa para definirmos a viso dos jogos, teramos problemas em tentar distinguir um jogo como Throttle em que o jogador acompanha a aventura enxergando o personagem principal sempre sua frente de um jogo como Black or White, em que o jogador assume o controle de uma deidade que determina os acontecimentos de um povoado. Usando o mtodo tradicional, estaramos falando de dois jogos em terceira pessoa, e deixaramos de lado caractersticas de focalizao importantes. Usando a classificao proposta por Genette, classificaramos Throttle como um jogo com focalizao externa e Black or White como um jogo de focalizao de grau zero ou melhor ainda, nesse caso: narrao onipresente. Jogos como Doom ou Riven, aos quais a visualizao em primeira pessoa so atribudas, na verdade so jogos com narrativa de focalizao interna. 43 Essa confuso nasce do modo como uma histria contada num jogo eletrnico. Se na literatura a distino entre quem v e quem conta mais explcita, o mesmo no acontece nos jogos. A presena do narrador num jogo camuflada para que a impresso de que o jogador est vivendo aquela aventura em tempo real seja preservada8. Mas jamais poderamos dizer que no h narrador numa histria contada num videogame. Em teatro, cinema e literatura h sempre algum contado a histria de maneira mais ou menos aparente. O que acontece num jogo que a histria no contada, ela previamente criada para que o narratrio (jogador) no a escute ou a assista, mas a descubra. Por esse prisma fica claro que a deciso do modo em que o jogador visualizar a histria da narrao; o narrador, ento, no quem conta, mas quem deixa saber. A determinao da focalizao tem um poder de definio muito maior do que o modocom que o jogador visualiza o jogo. Ao jogar Full Throttle, por mais que o usurio se envolva com a aventura, no podemos dizer que o jogador conhea os pensamentos e sentimentos do heri (salvo nos momentos em que isso verbalizado). J num jogo de focalizao interna, como Riven ou mesmo Doom, poderamos imaginar que tambm no compartilhamos nenhum sentimento ou pensamento do personagem, pois tal informao jamais mostrada. Os jogos baseados na focalizao interna validam-se dessa caracterstica focal como recurso imersivo9, fazendo o jogador mergulhar na aventura como se fosse ele mesmo quem estivesse vivendo naquele mundo virtual. Para que a imerso seja criada, o personagem esvaziado a ponto de existir uma fuso entre o narratrio e o heri.Desse modo os pensamentos e sentimentos do heri j no so apenas partilhados com o jogador, pois os sentimentos e 8 Algo semelhante acontece no cinema, mas por maior que seja a imerso do expectador ao assistir a um filme, ele no sente que est vivendo aquela histria ou que possa influenciar seu desenrolar. 44 pensamentos de heri passam a ser os do prprio jogador. Vejo aqui uma das grandes possibilidades narrativas dos jogos, pois nenhuma outra mdia narrativa possibilita tal maneira de contar histrias. As alteraes de focalizao, que provocam infraes ao cdigo regente da narrao, tambm ocorrem nos jogos. Em geral essas infraes acontecem nas cenas no-interativas (cut scenes) e funcionam para dar informaes necessrias ao jogador, para que tome conhecimento das misses que devero ser cumpridas. Full Throttle orientado por uma focalizao externa no heri. Mas logo no incio, aps sua locuo introdutria, assistimos a um dilogo dentro de uma limusine entre o dono da companhia e seu brao-direito. Ben no estava presente e jamais poderia saber o que se passou naquele carro, pois todos os personagens, incluindo o motorista, morrem durante a histria sem conversar com o heri sobre o episdio. Essa cena indispensvel para que o jogador entenda o que dever fazer, e a utilizao da paralepse um recurso eficaz. Por outro lado, acredito que todas as informaes escondidas ao jogador so paralipeses um determinado objeto que o heri se recusa a analisar, ou mesmo um caminho que no pode ser seguido em Full Throttle;um prdio que no permite que o personagem nele entre em Vice-City, ou at uma porta trancada em Doom so exemplos dessa omisso de informaes. Um jogo no precisa manter a focalizao por toda sua durao, podendo mudar a focalizao interna para externa, ou mesmo de um personagem para outro. Dark Forces II Jedi Knight era um jogo de focalizao interna que permitia, ao apertar-se uma tecla, que o jogador mudasse a cmera para a focalizao externa. Um jogo adventure, semelhante a Full Throttle, de nome Gabriel Knight The Beast Within, alternava fases onde o jogador 9 Imerso um termo originrio na metfora que sugere que um receptor (leitor, expectador ou jogador) mergulha no universo artificial da obra. 45 controlava (sempre em focalizao externa) dois personagens diferentes. Tal maleabilidade da focalizao usada em conjunto com a freqncia repetitiva comentada anteriormente traria aos autores de jogos possibilidades muito ricas na criao de novas obras. 2.5 VOZ A voz cuida das questes da ao verbal em suas relaes com todos aqueles que participam da atividade narrativa, incluindo quem a relata e quem participa passivamente, no se restringindo a quem sofre ou provoca a ao apenas. A lingstica levou certo tempo para tratar da "subjetividade da linguagem", que a anlise dos enunciados, e da relao entre eles e sua instncia produtiva, hoje chamada de enunciao. A instncia produtiva do discurso narrativo definida pelo termo narrao. H uma confuso ao se pensar que narrador e autor so a mesma pessoa. O prprio narrador um personagem fictcio numa narrativa de fico, mesmo que esse narrador seja diretamente assumido pelo autor. Ainstncia narrativa varivel no decorrer de uma obra. As aventuras de Ulisses, por exemplo, so narradas por dois diferentes narradores. Assim, a situao narrativa composta por uma srie de relaes entre o ato de narrar, seus protagonistas, suas determinaes espaciais e temporais, etc. 46 Tempo de narrao Uma histria pode ser contada sem que o local onde se passa seja especificado, mas praticamente impossvel no situ-la no tempo em relao narrao. Necessariamente, essa histria ser contada num tempo verbal do presente, do passado ou do futuro. Genette sugere que talvez as determinaes temporais seriam manifestamente mais importantes do que as determinaes espaciais, lembrando que na literatura o lugar narrativo, onde o narrador conta a histria, raramente especificado e quase nunca pertinente. A principal determinao temporal da instncia narrativa sua posio em relao histria, o que obriga o narrador a situ-la entre passado, presente e futuro. Sob esse aspecto, pode-se classificar quatro tipos de narrao: Ulterior a posio clssica da narrativa no passado, sem dvida a forma mais freqente. Anterior a narrativa preditiva, geralmente no futuro, mas que tambm pode serconduzida no presente. Simultnea a narrativa contempornea ao e, por isso, no presente. Intercalada entre os momentos da ao. A narrativa intercalada , em princpio, o tipo mais complexo, por se tratar de uma narrativa com instncias distintas. A histria e a narrao podem enredar-se a ponto de a segunda reagir sobre a primeira. A proximidade entre a histria e a narrao produz um atrito entre o ligeiro afastamento temporal da narrativa de acontecimentos e a simultaneidade na exposio dos sentimentos e pensamentos o quase monlogo interior e o relato feito depois. A o narrador 47 ao mesmo tempo ainda o heri, conclui Genette. A narrao simultnea , em princpio, a mais simples, pois h uma rigorosa coincidncia entre a histria e a narrao, eliminando toda a interferncia e jogo de tempo. A distncia temporal entre a histria e a narrao desaparece numa transparncia total da narrativa. O uso do presente favorece a absoluta transitividade da narrao. Porm isso se inverte se o acento posto na prpria narrao, como os monlogos interiores. A coincidncia passa a jogar em favor do discurso e a ao que parece reduzir-se a um estado de simples pretexto. A narrao anterior at hoje o menos comum dos quatro tipos. Em geral usada no gnero proftico e ps-datam a instncia narrativa, implicitamente posterior a sua histria. Em geral so preditivas em relao a sua instncia narrativa imediata, mas no em relao ltima instncia. A narrao ulterior engloba a grande maioria das narrativas produzidas. O emprego de um tempo no pretrito usado sem que seja necessrio indicar a distncia temporal que separa os momentos da narrao e da histria. Na narrativa clssica (em terceira pessoa) a distncia geralmente indeterminada. Os efeitos de convergncia final jogam com o fato de que a durao da histria diminui progressivamente a distncia que a separa do momento em que a narrao produzida. A histria, assim, segue para reunir-se com a narrao, porm importante que a durao da narrao no exceda a da histria. A narrao ulterior apresenta o paradoxo de possuir simultaneamente uma situao temporal em relao histria contada e uma essncia atemporal da narrativa. O mesmo no acontece na narrao simultnea ou intercalada, j que se baseia na relao entre a sua prpria durao 48 e a da narrativa. Proust passou mais de dez anos escrevendo seu romance, mas o ato da narrao de Marcell no traz marcas de durao, funcionando como se fosse instantneo. O presente do narrador, intercalado com vrios momentos passados do heri, um momento sem progresso, praticamente instantneo. Segundo a prtica corrente da narrativa autobiogrfica, a narrativa conduz o heri at o ponto em que o narrador o espera. O narrador conduz precisamente a histria do seu heri at o ponto em que o heri vai se tornar narrador" (Jean Rousset). A distncia temporal e espacial que separava a histria do ato narrativo reduz-se progressivamente at ser reduzida a zero quando se une narrao. Nveis narrativos Todo acontecimento contado por uma narrativa encontra-se num nvel diegtico imediatamente superior quele que se situa o ato narrativo que produz tal narrativa. O ato de escrever uma histria fictcia um ato literrio extradiegtico, portanto. Os eventos narrados nessa histria esto na primeira narrativa, sendo digeticos, ou ainda, intradiegticos. A instncia narrativa de uma narrativa primeira , por definio, extradiegtica. Uma histria contada dentro de uma outra histria chamada de narrativa segunda, e sua instncia narrativa, metadigetica. Narradores-autores, como M. de Renoncourt e Cruso, esto no mesmo nvel narrativo extradiegticos que seu pblico (os leitores). A narrativa no segundo grau uma forma tradicional e diretamente ligada s origens da narrao pica. Pode-se classificar trs tipos principais de relao de unio entre a narrativa metadiegtica e a narrativa primeira: 49 1 Causalidade direta entre os acontecimentos da diegse e da metadiegse, que acaba por dar narrativa segunda uma funo de explicao. Essas narrativas respondem a uma pergunta: Quais acontecimentos que conduziram situao presente?. Esse tipo de narrativa metadiegtica uma variante da analepse explicativa. 2 O segundo tipo no evoca nenhuma relao de espao ou tempo entre a diegse e metadiegse, que se ligam apenas por uma relao temtica. Mesmo assim, essa relao temtica, ao ser percebida, pode influenciar a situao diegtica. A parbola e a fbula so gneros que se baseiam na analogia. 3 O terceiro tipo no liga a diegse e metadiegse por nenhuma relao explcita entre os nveis da histria. O prprio ato da narrao desempenha uma funo na diegse, no importando o contedo metadiegtico. A funo pode ser, por exemplo, de obstruo, como em As Mil e Uma Noites, em que Xerazade utiliza as histrias narradas para distrair o sulto. Podemos notar que do primeiro ao terceiro tipo, a instncia narrativa ganha cada vez mais importncia. No primeiro a relao de encadeamento direta, no passando pela narrativa; no segundo, a relao rigorosamente mediatizada pela narrativa; no terceiro, por fim, a nica relao que garante a passagem o prprio ato narrativo. Metalepses O trnsito entre os nveis narrativos s pode acontecer mediante a prpria narrao, que por 50 meio de um discurso introduz numa determinada situao o conhecimento de outra. Quaisquer outras formas de transio entre os nveis narrativos so impossveis ou transgressivas. Cortzar, por exemplo, ao se dirigir ao leitor sugerindo que alguma atitude seja tomada, cria uma espcie de transgresso conhecida como metalepse do autor. Segunda a definio de Grard Genette, toda intruso do narrador ou do narratrio (leitor) extradiegtico no universo diegtico (ou de personagens diegticas num universo metadiegtico) so metalepses narrativas. Algumas transgresses so mais discretas e inocentes, mas h outras bem mais ousadas, em que, por exemplo, o narrador extradiegtico obriga o personagem diegtico a tomar esta ou aquela atitude. As metalepses jogam com a transposio de limites criados por uma fronteira oscilante e sagrada o mundo em que se conta e o mundo contado. O que h de mais perturbador na metalepse a hiptese de que o extradiegtico talvez diegtico: o narrador e seus narratrios fazem parte de alguma narrativa. Pessoa Genette no emprega a terminologia primeira e terceira pessoa por considerar que, apesar de comuns, tm efeito inadequado ao colocar o acento da variao num elemento invariante da situao narrativa a presena explcita ou implcita da pessoa do narrador que, como qualquer sujeito de enunciao em relao ao seu prprio enunciado, est na primeira pessoa. Supor que essa seja uma escolha meramente gramatical um equivoco. O autor no faz uma escolha entre duas formas gramaticais, mas entre duas atitudes narrativas: contar a histria por uma das suas personagens ou por um narrador alheio histria. A gramtica uma 51 conseqncia quase mecnica. Se considerarmos que o narrador pode a qualquer instante intervir na narrativa, toda narrao feita em primeira pessoa. A questo saber se o narrador pode ou no empregar a primeira pessoa para designar um de seus personagens. Sob esse aspecto, Genette classifica a narrativa em dois tipos: uma, em que o narrador ausente da histria que conta, e outra, em que presente. O primeiro tipo ser chamado de heterodiegtico e o segundo homodiegtico. A ausncia do narrador absoluta, mas sua presena pode variar em graus. O tipo homodiegtico ento subdividido em duas variantes uma em que o narrador o heri, e outra em que desempenha um papel secundrio, como testemunha e observador. A primeira variante recebe o nome de autodiegtico e representa o grau mais forte do homodiegtico. A relao entre narrador e histria , em princpio, invarivel, porm esse limite foi ampliado pelo romance contemporneo que permitiu que se estabelecesse entre narrador e personagens uma relao mais varivel, flutuante. Definido o estatuto do narrador pelo seu nvel narrativo extra ou intradiegtico e sua relao histria hetero ou homodiegtico , teremos quatro tipos possveis de estatutos:

Extradiegtico-heterodiegtico exemplificado por Homero, narrador do primeiro nvel, que conta uma histria da qual est ausente. Extradiegtico-homodiegtico exemplificado por Gil Blas, narrador do primeiro nvel que conta a sua prpria histria. 52 Intradiegtico-heterodiegtico exemplificado por Xerazade, narradora do segundo nvel, que conta histrias das quais est, em geral, ausente. Intradiegtico-homodiegtico exemplificados por Ulisses, nos cantos IX a XII, narrador do segundo nvel que conta sua prpria histria. Uma das dificuldades da narrativa autobiogrfica o fato de que alguns eventos ultrapassam o campo dos conhecimentos do heri. Segundo Genette, surge uma situao paradoxal, uma narrativa em primeira pessoa, mas, por vezes, onisciente. O heri narrador

Atribuir a qualquer narrador outro papel que no seja o da narrao pode causar estranhamento; entretanto, o discurso de um narrador pode assumir funes distintas. A primeira dessas funes a prpria funo narrativa a histria e nenhum narrador pode fugir desta tarefa. O segundo aspecto est ligado ao texto narrativo, que organiza internamente o discurso a funo de regncia (direo). O terceiro est ligado situao narrativa, protagonizada pelo prprio narrador e o narratrio, que pode ser presente, ausente ou virtual. A preocupao com o estabelecimento e manuteno de uma relao com os narratrios faz com que os narradores muitas vezes se interessem mais para essa relao do que pela prpria narrativa e voltem-se primordialmente ao seu pblico, privilegiando a funo de comunicao. Genette cita Jakobson ao mencionar a orientao do narrador para ele prprio, que designou 53 ao narrador uma funo emotiva ao tratar da parte tomada pelo narrador na histria que conta. Alm de afetiva, acrescenta Genette, essa funo tem carter moral e intelectual. Podendo assumir tambm uma funo de testemunho, quando o narrador indica a fonte ou cita seus prprios conhecimentos. A funo ideolgica10 aparece em formas mais didticas de comentrios autorizados feitos pelo narrador. Evidentemente essas cinco funes no so puras, agindo sempre em conjunto com outras. Nenhuma exceto a primeira (funo de narrativa) completamente indispensvel. O narratrio Poderamos atribuir ao papel do destinatrio um carter meramente passivo, limitado a receber a mensagem. Entretanto, assim como o narrador, o narratrio protagoniza a situao narrativa, ocupando obrigatoriamente o mesmo nvel diegtico. No devemos confundir o narrador com o autor e narratrio com o leitor. Uma narrativa realizada por um narrador intradiegtico, por exemplo, destina-se a um narratrio igualmente intradiegtico. Os leitores jamais poderiam se identificar com esses narratrios, j que sua presena sequer suposta por esses narradores mergulhados na lgica da histria contada. Tal recurso permite a manuteno de uma certa distncia entre os leitores reais e o narrador. Ao contrario, o narrador extradiegtico s pode visar um narratrio extradiegtico uma espcie de leitor virtual com quem qualquer leitor poderia identificar-se. Este narrador fora da diegse poderia at fingir no se dirigir a ningum, mas toda narrativa como todo discurso necessariamente dirigida a algum. 10 Comentrios ideolgicos no so monoplios do narrador. Alguns personagens recebem de seus autores a tarefa do comentrio e do discurso didtico. 54 A obra proustiana se vale de um intenso recurso ao leitor, atribuindo a ele funes de adivinhaes e interpretaes. Segundo o prprio Proust, a obra um instrumento de tica que o autor oferece ao leitor, para o ajudar a ler em si. Cada leitor , quando l, leitor de si prprio. Genette conclui O Discurso da Narrativa dizendo que o verdadeiro autor da narrativa no s quem a conta, mas tambm, e por vezes muito mais, quem a escuta. E que no necessariamente aquele a quem dirigida h sempre gente ao lado. A voz do jogo Talvez a instncia narrativa de um jogo esteja na criao da jogabilidade, ao definir como o narratrio vai interferir ou no no desenrolar da narrativa. Genette lembra que as determinaes temporais na literatura so sempre mais relevantes do que as espaciais, porm em geral no o que acontece nos jogos, que acabam sempre privilegiando as determinaes espaciais. O tempo de um jogo sempre imediato ao da narrativa simultnea. Full Throttle inicia a narrao de sua histria no presente, remetendo a um tempo passado onde a histria aconteceu; porm essa narrativa ulterior procede apenas at o momento em que o narrador desaparece e a histria passa a acontecer no presente, diante de nossos olhos, at que finalmente somos convidados a participar da trama orientando as aes do heri. A infinita maioria dos jogos, ao simular uma realidade, abre mo de outra temporalidade que no seja a simultnea. Ao criar uma rigorosa coincidncia entre o tempo da narrao e o da histria, esse recurso possibilita a transparncia narrativa, possibilitando as simulaes de realidade prprias dos jogos. Mesmo os jogos que brincam com o tempo apenas fazem isso nas seqncias no-interativas, e ao chegarem nos momentos de interao, tratam o tempo como 55 presente simultneo. Como algo que aconteceu no passado poderia ser passvel de interao? As aes esto no passado e um jogo eletrnico exige que seu usurio controle aes. Acredito que a pista para uma nova possibilidade temporal nos jogos esteja na grande ao que se faz obrigatria ao abordar algo que ocorreu anteriormente o ato de lembrar; o jogador, numa narrativa interativa ulterior, no deveria fazer o que o heri fez, mas apenas lembrar, ou at mesmo descobrir. Riven (seqncia de Myst), de certa forma, faz exatamente isso o heri deve descobrir as aes que fizeram o mundo em que ele est preso, deve se transformar. Para isso o jogador deve ler uma srie de dirios de vrios personagens,aproximando-se de uma narrativa ulterior. Mesmo assim Riven no um jogo de narrao ulterior, pois a ao no deixa de acontecer no presente, apenas remete-se ao passado. No podemos dizer que nos jogos as determinaes espaciais sejam alguma vez irrelevantes, conforme dito em relao a literatura. O espao num jogo quase sempre indispensvel para que sua histria proceda. As determinaes espaciais dos jogos esto em geral relacionadas focalizao da narrativa, pois atravs da definio desse ponto de vista que enxergaremos o espao em que vamos imergir da mesma forma que a focalizao na literatura acaba por influenciar na maneira como experimentamos a temporalidade. Nveis narrativos Full Throttle narrado pelo prprio heri, narrador intradiegtico ento. Ser? Apesar de a narrativa ser iniciada por uma locuo do prprio protagonista num tempo futuro, o restante da narrao me parece apenas ser feito em focalizao no heri, mas j no narrada por ele. A narrao de Full Throttle, como na maioria dos jogos, quase transparente, camuflada na realidade artificial que proporciona a imerso do jogador. Em geral essa transparncia que 56 faz com que o interador esquea por alguns instantes que aquele no o seu mundo. Mesmo escondido, como qualquer narrativa, todo jogo que conta uma histria tem obrigatoriamente um narrador. Esse narrador se revela em vrios momentos: no modo de controle, na interface, na trilha sonora, no visual e em todos os desafios que o jogador deve superar. No caso de Throttle apenas parte da primeira seqncia inicial narrada pelo heri; a partir da a narrao muda e passa a escolher os eventos que o narratrio deve conhecer (independente do fato de Ben conhece-los ou no) para tentar desvendar os enigmas propostos pelo jogo. Mas Ben no de fato o narrador da histria, h uma outra narrao por trs, onde Ben est inserido. Enquanto fala-se em narrador-heri na literatura, em jogos poderamos usar o termo narratrio-heri. A identificao entre o receptor da narrao e seu protagonista no encontra meio mais propcio do que os jogos. Essa presena do narratrio em maior evidncia do que na literatura ou mesmo no cinema , aliada a uma constante transparncia do narrador, aponta-nos que o modo mais indicado para descobrir o nvel narrativo estabelecido por um jogo procurando a relao entre o narratrio e a histria. Podemos descobrir o nivel em que se encontra o narrador, descobrindo o nvel em que se encontrao narratrio, ja que narrador e narratrio esto, obrigatriamente, sempre no mesmo nvel narrativo11. Um jogo como Doom, focalizado internamente no protagonista, usa o recurso da transparncia de narrativa s ltimas conseqncias. Fazendo com que, alm do narrador, o heri tambm se dilua, mas nesse caso fundindo-se com o narratrio e compartilhando suas aes. Desse modo podemos dizer que se trata de uma narrao intradiegtica, j que o narratrio faz parte do universo diegtico junto com um personagem que protagoniza os 11 A relao entre os comandos e interaes e o nvel narrativo poderia criar uma nova anlise na forma como a interao feita em qualquer obra narrativa interativa, possibilitando uma nova classificao dos nveis de interao baseados na 57 acontecimentos da histria. Em Full Thottle o narratrio no est na diegse acompanhando a histria a partir de outro nvel narrativo; isso perceptvel no s pela focalizao externa, mas tambm por todos os mecanismos que itermedeiam o controle e acompanhamento da histria. Se em Doom o controle do personagem feito da forma mais direta possvel, simulando a presena do jogador na cena, Thotlle, como a maioria dos adventures, usa uma srie de interfaces para que o jogador possa interagir. A forma como o jogador comanda o heri tambm nos d pistas de sua posio exterior diegse todos os comandos so espcies de sugestes, podendo o heri acat-las ou no. No se pode atribuir focalizao a definio de uma narrao extra ou intradiegtica. Os jogos de ao so exemplos que dissipam esse equvoco. Apesar de o jogador controlar o personagem a partir de um ponto de vista externo, a resposta aos comandos imediata, voltando heri e narratrio a se fundir, agindo diretamente nos acontecimentos de dentro da histria, narrao intradiegtica, portanto. A relao do narrador com a histria, que determinaria a homodiegse ou a heterodiegse, no poderia ser medida pela posio do narratrio. Desta vez somente atravs do narrador que poderamos definir essa caracterstica de seu estatuto. Metalepses Sendo o jogador extradiegtico em Full Throttle, a comunicao entre personagem e narratrio uma transgresso, conforme relata Genette em seu livro.Os comentrios feitos pelo heri aos comandos do jogador so metalepses usadas como recursos do humor que pontua o jogo. Dependendo da nossa sugesto de comando Ben responde: S por que voc diegse. 58 quer!, Eu no vou pr meus lbios nisso! e assim por diante. O preo desses comentrios o prejuzo da imerso, que automaticamente quebrada, e a cada momento somos lembrados de que no estamos vivendo aquela realidade. Mas em Full Throtle as transgresses no estatuto de narrao fazem parte da prpria concepo do jogo, que acaba por criar uma reflexo sobre o controle jogador/personagem quando quebra o silncio freqente entre essas instncias. De um certo modo, at a interveno do jogador no universo do heri pode ser considerada uma metalepse, pois o narratrio comanda o jogo a partir de um outro nvel narrativo. 2.6 REFLEXES DO ENCONTRO

Curiosamente a concluso de O Discurso da Narrativa, ao tratar do narratrio, faz muitas aluses que elevam o leitor proximidade com o jogador. Ao falar das funes que o leitor recebe na obra proustiana, Genette quase o caracteriza como um jogador de um jogo adventure, que precisa adivinhar e interpretar informaes. Tal confirmao me aponta que escolhi o caminho certo ao buscar na narrativa literria susdios para compreender os jogos. Em muitos aspectos a transposio de conceitos foi direta, em outros algumas adaptaes foram necessrias, e em alguns requerem uma nova conceituao. Percebi, ao fazer este comparativo, que ainda h muita limitao narrativa, mesmo nos mais competentes jogos que contam histrias. Daqui para frente pretendo, na minha pesquisa, pr em prtica alguns recursos narrativos raramente usados nos jogos. Acredito que em muito me distanciarei do conceito de jogo que convencionalmente encontramos no mercado, mas atravs dessa experincia que pretendo apontar novos caminhos. 59 CAPTULO 2 3 LIMBO DOCUMENTO DE PRODUO DO JOGO (GAME DESIGN) 3.1 VISO GERAL LIMBO um jogo de suspense em que o jogador controla um esprito desencarnado em busca de respostas que revelem quem foi o responsvel por sua morte. O esprito ter habilidades crescentes que permitiro que a explorao seja cada vez mais eficiente assim o protagonista passar de testemunha imperceptvel a personagem com poderes para alterar o rumo da histria. 3.2SINOPSE Luiz Grandier, um homem de 38 anos, de hbitos incomuns e suposto praticante de magia negra vivia num prdio de trs andares e cinco apartamentos. Durante uma tempestade o prdio ficou sem energia eltrica, impedindo qualquer pessoa de entrar ou sair. Luiz Grandier foi assassinado nessa noite e seu esprito passou a vagar pelos apartamentos em busca de respostas que expliquem sua morte. 60 3.3 DESCRIO DOS PERSONAGENS O protagonista Luiz Grandier Aos 38 anos de idade aparentava ser bem mais velho; era calvo egrisalho. Por ser alto e ter m postura desenvolveu uma corcunda que completava seu visual funesto. Grandier era muito reservado, no tinha amigos e no saa com freqncia; era solitrio e pouco se sabe sobre sua famlia. Deixou os pais aos 11 anos, quando decidiu abandonar sua cidade natal, no interior de Gois; viveu nas ruas de Goinia at ser adotado por um senhor, que passou a ser seu mentor. Quando Luiz completou 20 anos, seu pai adotivo faleceu e ele deixou Goinia em direo a So Paulo, em busca de um velho amigo do pai. Por dezesseis anos viveu com Anbal McFadden, que se transformou em seu mestre nas cincias ocultas. Grandier passou a trabalhar como vendedor na livraria que pertencia a McFadden. Aps o recente desaparecimento de seu mestre, Luiz passou a cuidar da loja como se fosse sua. O mentor Anbal McFadden Velho, magro e bastante sisudo, raramente ria; porm, havia um certo tom de humor dbio na maioria de seus comentrios e muito rude ao se comunicar. Introvertido, o nico contato que mantinha com outras pessoas era atravs da sua loja, que ficava no primeiro andar do prdio onde morava com Grandier. Anbal no se interessava por 61 ningum, por isso achava que no deveria perder seus preciosos segundos com exemplares da estupidez humana, como ele costumava se referir aos outros. Difcil determinar a idade de McFadden; era um daqueles senhores que evitam mostrar traos de velhice. Apesar de ter pouco cabelo, no era calvo e penteava para trs os fios compridos, secos e tingidos de preto. Ao contrrio de Luiz, Anbal era muito vaidoso, fsica e sobremaneira intelectualmente, pois adorava ser elogiado por seus conhecimentos. Anbal desapareceu sem deixar rastro; no se sabe se ele est morto, mas por dois anos no se tem notcia dele. Os vizinhos Edson Guariglia Morador do sexto andar, num apartamento duplo que divide com sua esposa, Marlia de Paula Guariglia. Trabalha como contador, tem 52 anos e estatura mediana, barrigudo e careca, e usa um volumoso bigode. Um homem grosseiro, que fala e ri alto enquanto espalha fumaa de cigarro. Edson jamais se pergunta se poderia estar incomodando algum; bastante encrenqueiro e, no obstante, freqentemente sente-se ofendido por seus vizinhos. Sndico do condomnio, reclama e briga com todos os moradores do edifcio. O relacionamento com sua esposa bem atribulado freqentemente Edson a espanca durante acaloradas discusses causadas geralmente por Marlia, que tenta mudar o comportamento de seu marido. Com exceo do senhor Yan, do primeiro andar, Guariglia no se relaciona bem com nenhum de seus vizinhos especialmente Grandier, que se tornou amigo de sua esposa. 62 Marlia de Paula Guariglia Dona de casa, 45 anos; apesar de romntica, resignada com o fato de estar casada h 20 anos com o grosseiro Edson. Muito vaidosa, Marlia est sempre bem vestida, mesmo que o compromisso seja apenas uma ida feira na esquina mais prxima. Marlia muito simptica e tem bom relacionamento com todos os vizinhos; alis, por respeito a ela que os moradores no respondem altura s provocaes de Edson. Marlia gosta muito de Luiz Grandier; no incio suas conversas eram breves e corriqueiras, mas com o tempo os dois passaram a ter uma relao mais prxima e Grandier passou a ser seu confidente. Edwin Souza Jovem tmido de 26 anos, vizinho de frente de Grandier. Edwin estudante de teologia e trabalha numa igreja evanglica no centro da cidade como principal assistente do pastor. Muito religioso, uma pessoa extremamente rgida, tanto no modo como se veste quanto em suas atitudes. Por causa disso julga qualquer comportamento que no se enquadre em suas crenas, ficando muito mal-humorado ao presenciar qualquer ato que julgue ofensivo a sua religiosidade. Edwin no se relaciona com muitas pessoas fora de sua comunidade evanglica; alis, evita contato com quaisquer pessoas fora do crculo de sua igreja, a no ser que Edwin imagine que possa convert-las. Aps descobrir que Grandier um praticante de magia, Edwin passa a agredi-lo verbalmente e a rezar em voz alta cada vez que o encontra pelo prdio. 63 Alexia Oliveira Uma loira de 23 anos, bonita, voluptuosa e muito sensual. Alexia uma luxuosa garota de programa, vive no edifcio h pouco tempo, mas rapidamente se transformou num dos principais assuntos da vizinhana. Alexia se veste de maneira provocante e alia a isso um comportamento nada discreto. Ela faz questo de provocar todos os homens que cruzam seu caminho, como se fosse um hobby ou uma espcie de treinamento. Grandier ficou muito interessado na nova moradora. At descobrir que ela era uma garota de programa a assediou inmeras vezes, mas depois da descoberta acabou virando um cliente bem assduo. A relao dos dois ficou muito forte, Alexia acabou se envolvendo com Grandier, que mesmo assim no deixou de ser seu cliente, o que deixou seu namorado, Alan que a visitava constantemente, muito enciumado. Alan Marinho Apesar de no morar no edifcio, Alan um visitante assduo. Tem 34 anos, musculoso, tatuado nos braos e tem o cabelo raspado. Namora com Alexia e age como se fosse seu protetor. Na verdade Alan muito mais um aproveitador do que outra coisa; no tem emprego fixo, faz pequenos servios e quando no est envolvido com algum trabalho muda-se para a casa da namorada. Alan muito agressivo, fsica e verbalmente. Yan Sudslowsky Yan o morador mais antigo do prdio, um senhor de 78 anos,cabelos brancos, escassos e penteados para trs. Yan muito gil e ativo para sua idade, vive s e no precisa da ajuda de ningum. Relaciona-se muito pouco com os vizinhos, extremamente reservado e raramente sai de seu apartamento. Yan tambm envolvido com as cincias 64 ocultas. Era amigo de McFadden, mas a amizade foi perdida por divergncias em relao ao uso dos supostos poderes adquiridos com os rituais. Yan um homem muito ressentido, amargurado e seu passado misterioso, provavelmente pelo que aconteceu entre ele e Anbal McFadden, mas ningum mais sabe o motivo do desentendimento dos dois. Yan Sudslowsky no confia no comportamento de Grandier por acreditar que um mal discpulo de McFadden. 3.4 DESCRIO DO MUNDO Todos esses personagens vivem num prdio antigo prximo regio central da cidade de So Paulo. A data dos acontecimentos retratados no jogo no determinada, mas por volta do final da dcada de 90. Esse edifcio tem trs andares e o trreo, onde fica a livraria de Anbal McFadden. O mundo em que esses personagens vivem e interagem, num primeiro momento, segue a lgica do mundo real, mantendo as leis fsicas naturalistas que experimentamos na realidade. Os acontecimentos que extrapolam o realismo esto nos eventos ligados morte do protagonista. Aps o assassinato de Grandier seu esprito passa a recordar os rituais e encontros com McFadden, e, ao lembrar das prticas e ensinamentos do passado, o esprito ganha gradualmente novas habilidades: passa a vagar livremente pelo prdio, interage com objetos inanimados, desvincula-se da ao temporal e materializa-se por um curto espao de tempo. Os demais personagens reagiro a esses eventos de diferentes maneiras, mas com o espanto o que esperado, mantendo-se a lgica realista num universo em que eventos como 65 esses no so normais. As habilidades no-naturais que o esprito de Luiz Grandier obtm so frutos de sua relao em vida com as cincias ocultas. Tais habilidades s passam a ter efeito quando o esprito conseguelembrar-se de cada um dos ensinamentos e torn-los conscientes. Lembrar um acontecimento ativo; s a partir da busca por essas memrias que o conhecimento adquirido em vida servir ao esprito. O ato de lembrar, no presente, que far com que o aprendizado no passado passe a ser til. O esprito de Grandier se recorda de quando, ainda em vida, havia sido iniciado em magia e essas lembranas funcionam como uma ponte entre esses dois momentos, permitindo uma espcie de retorno feito pelo esprito ao momento das aulas. Porm, o uso dessas habilidades, por no ser algo natural na lgica do mundo onde se passa o jogo, faz com que o esprito perca a energia consciente responsvel pela sua existncia. O uso excessivo desses artifcios ou a permanncia prolongada no mundo dos vivos consome essa energia consciente at que o esprito deixe de existir. O nico modo de recarregar essa energia voltando para o corpo no centro da sala. 3.5 DESCRIO GERAL DO FUNCIONAMENTO DO JOGO Apesar de continuar classificando esse projeto como jogo, pretendo esvaziar as caractersticas de competio e disputa tpicas dos games, valorizando os elementos narrativos e privilegiando a histria. Porm, pretendo manter outros conceitos presentes em qualquer jogo eletrnico: fases, objetivos definidos, misses, obstculos e recompensas. Esses 66 elementos ldicos sero ferramentas para que a histria seja contada a partir dos comandos e escolhas do jogador. Dependendo da forma como o jogador conduzir o protagonista a histria a ser contada se transforma dentro de linhas pr-definidas. O jogador, porm, no ir decidir o que acontece com os personagens, mas optar por caminhos e aes que o levaro a desenlaces distintos. Se, por exemplo, o jogador optar por investigar a histria focalizando um personagem em especial, o final ser obrigatoriamente ligado a esse personagem. A interao com a histria acontece de duas formas: procurando as memrias do protagonista em uma tela com vrios cones mveis que nos permitem acessar s cenas (no-interativas), que so exibidas a partir de suas escolhas, e controlando o esprito desencarnado do protagonista que vaga por todo o prdio em que acabou de ser assassinado. A cada fase o esprito ter novas habilidades, fazendo com que deixe de ser uma simples testemunha das aes dos vizinhos at interagir com o ambiente e com os personagens e interferir no desenrolar da histria. A estrutura do jogo formada por fases em que o jogador controla o personagem fases de controle, intercaladas por fases em que o jogador escolhe as memrias a que quer assistir fases filmes. As fases em que o jogador controla o esprito, as fases de controle, sero ambientes tridimensionais navegveis por onde o esprito ter livre movimentao. Se o esprito testemunhar um dilogo entre dois personagens poder andar ao redor deles durante a conversa, escolhendo o ponto de vista mais apropriado. O jogador pode controlar o esprito 67 por um ambiente em que aes simultneas esto acontecendo, escolhendo qual delas ele prefere observar. As fases em que o jogador escolhe e assiste s memrias do protagonista so as fases filmes. Cada uma dessas fases inicia-se com uma interface em que vrios cones que representam momentos distintos da vida de Grandier esto escondidos na tela, e com o uso do mouse o jogador clica nos cones que encontrar, desencadeando a exibio de seqncias audiovisuais que mostram partes da vida do protagonista. Essas seqncias so filmes comuns e durante a exibio no h interao. Esses dois momentos do jogo so inter-relacionados cada um deles influencia diretamente o outro. Durante as fases filmes o jogador pode assistir apenas a algumas memrias, mas dependendo das memrias escolhidas a narrativa toma uma direo diferente, transformando o enredo e encaminhando a histria atravs de acontecimentos distintos. As memrias apresentadas, por sua vez, dependem da ao do esprito durante sua perambulao pelo prdio nas fases de controle. Os personagens e objetos que forem encontrados pelo esprito durante esse tipo de fase, desencadeiam memrias ligadas a eles, que sero acionadas e apresentadas no prximo momento em que o protagonista recordar momentos da sua vida. Algumas dessas memrias apresentadas nas fases filmes sero fundamentais para que o protagonista adquira habilidades necessrias para a continuao do jogo. Enquanto essas seqncias-chave no forem acessadas o jogo no volta para a fase de controle. Da mesma forma, enquanto o protagonista est sendo controlado pelo jogador, algumas aes so chaves, e apenas quando todas essas aes forem realizadas que a fase ter fim.

68 A histria muda determinada pelas opes do jogador. Se, por exemplo, as memrias e os cmodos visitados relacionados a um personagem especfico forem maioria nas escolhas do jogador, a narrativa seguir um caminho que leve a acontecimentos e ao desfecho ligado quele personagem sem que o jogador determine o que acontecer no final. 3.6 MECNICA DO JOGO 3.6.1 OBJETIVOS E REGRAS O jogador deve procurar elementos que componham a trama navegando atravs da narrativa de duas formas distintas: assistindo s memrias do protagonista, nas fases filmes ou visitando os apartamentos dos vizinhos, controlando o fantasma do protagonista, nas fases de controle. O jogo ser composto por oito fases quatro fases filmes intercaladas com quatro fases de controle. Fases filmes As fases filmes oferecem seqncias audiovisuais no-interativas que mostram memrias dos eventos que aconteceram antes da morte do protagonista. Cada uma dessas cenas fornece dados a respeito da vida de Luiz Grandier. Usando o mouse, clicando em pontos mveis da tela, o jogador procura e escolhe memrias que acionam cenas. Cada cone escondido aciona um filme respectivo, com uma cena da vida de Luiz Grandier. O objetivo encontrar uma memria em particular (a seqncia-chave) para que o jogo progrida e siga para a prxima fase de controle. Essas seqncias-chave mostraro encontros entre Luiz Grandier e seu mentor, Anbal McFadden. 69 As fases filmes s tero fim depois que esse tipo de memria tiver sido acessada; porm, o nmero de memrias acessadas no poder ser menor do que trs. Por isso, mesmo que a seqncia-chave tenha sido descoberta na primeira tentativa, o jogador deve encontrar ainda mais duas memrias e assistir s respectivas cenas. Na fase de controle seguinte o personagem volta com um novo poder aprendido na seqncia-chave exibida. Fases de controle Usando o teclado e o mouse o jogador controla o esprito de Luiz Grandier por um ambiente tridimensional com todos os cmodos do prdio. A cada fase de controle o esprito adquire novas habilidades a partir das seqncias-chave assistidas durante as fases filme. Na primeira fase de controle o esprito apenas se locomove pelo prdio, presenciando dilogos entre seus vizinhos. Na segunda fase de controle o fantasma j consegue interferir no ambiente e pode mover certos objetos de cada apartamento, procurando reaes elucidativas dos vizinhos. Na terceira fase de controle o esprito volta no tempo e v as aes dos suspeitos antes do momento do assassinato. Na quarta e ltima fase de controle o fantasma volta no tempo novamente, mas desta vez pode se materializar e tentar impedir o crime. A simples permanncia no mundo dos vivos consome a energia consciente do esprito. Toda vez que o personagem utilizar as habilidades mgicas sua energia sofrer uma grande perda. Isso impossibilita o jogador de utilizar os poderes em demasia, o que o leva a faz-lo de modo estrategicamente planejado. A limitao de energia tambm far com que o jogador no possa visitar todos os apartamentos em determinadas fases. A energia s pode ser carregada nas 70 proximidades do cadver e para que o esprito no deixe de existir, terminando a partida, o jogador deve reconduzi-lo at o local do crime. 3.6.2 SISTEMA DE PONTUAO Determinao do desenlace da trama As escolhas das memrias nas fases filmes e das visitas aos apartamentos vizinhos nas fases de controle definem o final da histria. H seis finais possveis e cada memria ou visita fornece pontos que vo encaminhar o jogo para o final respectivo. O final relacionado ao personagem com maior pontuao ser o escolhido. O jogador no tem acesso a esses valores e nem ao sistema de escolha dos finais. A pontuao segue o sistema abaixo: As memrias fornecem pontuao completa (2 pontos) ou parcial (1 ponto). Uma mesma memria pode fornecer pontos para mais de um final. As visitas tambm fornecem pontuao com a mesma lgica: pontuao completa (4 pontos) e parciais (2 pontos). Assim como as memrias, uma nica visita pode fornecer pontuao a mais de um final. 3.6.3 DESCRIO DE INTERFACE

O jogo mistura a focalizao interna, na qual vemos atravs dos olhos do personagem, e a 71 focalizao externa, que mostra o personagem em cena. Em geral os momentos no-interativos, formados por seqncias audiovisuais que contam a histria sero apresentados com a focalizao externa, enquanto os momentos interativos traro a viso para os olhos do personagem, com a focalizao interna. As fases filmes apresentaro seqncias audiovisuais comuns, fornecendo informaes a respeito da vida pregressa do protagonista. Cada uma dessas seqncias poder ser escolhida pelo jogador atravs de uma interface que mostrar uma tela escura repleta de cones vagando aleatoriamente, representando as respectivas seqncias. Os cones no ficam aparentes sem que o jogador os encontre passando o cursor sobre reas mveis espalhadas pela tela. Ao serem encontradas, essas reas mostraro o cone e, com um clique no mouse, sero ativadas e iro direcionar o jogo para a exibio da seqncia relacionada. As cenas audiovisuais sero formadas por animaes bidimensionais visualizadas em tomadas fixas. Durante as fases de controle o jogador visualiza o ambiente tridimensional navegvel atravs dos olhos do personagem controlado (o esprito de Grandier). Esse espao pode ser explorado pelo jogador atravs de comandos no teclado e no mouse. Todo o tipo de informao necessria ser indicada utilizando-se elementos dentro da estrutura diegtica em que o personagem est inserido. Por isso a interface ser transparente no h informaes visuais extra-diegticas, como barras de energia, pontuao, radares e mapas.As informaes oferecidas ao jogador sero apenas: a) quantidade de energia consciente; b) habilidades ativas (que podem ser utilizadas a cada uma das fases). 72 Essas informaes visuais sero disponibilizadas na palma da mo do corpo espiritual, na forma de uma tatuagem iluminada que s ser visvel quando o jogador ativar essa interface, fazendo que o esprito olhe para a palma da mo. 3.6.4 DESCRIO DE COMANDOS O jogador controla as aes do fantasma da seguinte forma: 3.6.4.1 CONTROLE DE MOVIMENTAO setas do teclado ou teclas W, A, S e D: indicam a movimentao do esprito; W faz o personagem se mover para frente, A para esquerda, D para a direita e S para trs. 3.6.4.2 CONTROLE VISUAL movimentao do mouse: a movimentao do mouse controla o olhar do esprito, permitindo ao jogador explorar visualmente cada cenrio, sem que isso afete a movimentao do personagem; clique com boto esquerdo do mouse: analisa o objeto clicado; se for algo pertinente ao andamento da histria, o esprito far um comentrio que colabore para a compreenso da trama; se no, um comentrio padro ser executado; no caso das memrias ou objetos muito prximos aos olhos do protagonista, o simples clique j acionar a ao; 73 T: o personagem olha para a tatuagem na palma de sua mo e tem acesso s informaes de energia e habilidades ativas; o brilho da tatuagem indica a quantidade de energia, e um smbolo no polegar a habilidade que pode ser usada naquela fase. 3.6.4.3CONTROLE DE HABILIDADES AVANADAS Para que os poderes aprendidos em vida sejam acionados o esprito de