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NAS TRILHAS DA COMUNIDADE QUILOMBOLA DO MARACUJÁ: O
CARURU, O CANDOMBLÉ DE CABOCLO E AS IDENTIDADES
CAMBIANTES.
Ana Cláudia do Carmo Cedraz
Mestranda do PPGEAFIN1
Resumo:
Este artigo é um recorte de minha dissertação de mestrado na qual eu apresento as
memórias da comunidade quilombola do Maracujá, no município de Conceição do
Coité-BA. Circunscreve-se à pesquisa etnográfica sobre o cotidiano dos sujeitos desta
comunidade que constrói e reconstrói simultaneamente, identidades cambiantes.
Tomamos como foco para este estudo, o caruru e o candomblé de caboclo na
comunidade, por considerar estas práticas, marcadores da identidade cultural local.
Nesta pesquisa, busquei compreender como a representação que eles têm sobre si
mesmos são construídas no cotidiano familiar, na comunidade e em espaços externos ao
território. Além disso, busco entender as estratégias de resistência criadas para o
enfrentamento da discriminação que lhes é imposta, tanto pela cor preta da pele, como
pela origem territorial. Para atingir os objetivos propostos foi realizado uma discussão
teórica a respeito dos conceitos de religião, candomblé de caboclo e identidades. Além
disso, foram feitas entrevistas semiestruturadas e o trabalho etnográfico.
Palavras-chave: Comunidade quilombola; Candomblé de caboclo; Identidades.
Introdução
Este artigo versa sobre as memórias da comunidade quilombola do Maracujá2, no
município de Conceição do Coité-BA. Circunscreve-se à pesquisa etnográfica sobre o
1 Programa de Pós-Graduação em Estudos Africanos Povos Indígenas e Culturas Negras- UNEB
2 O Maracujá é uma comunidade negra, rural, localizada a aproximadamente 18 km da sede do município
e apresenta características fitogeográficas semelhantes as encontradas em todo o território do sisal.
Deixando o asfalto da BA-120 que liga Conceição do Coité a cidade de Riachão do Jacuípe e seguindo
por uma estrada de terra até chegar ao povoado é possível verificar a existência de fazendas de gado,
fazendas de sisal e pequenas áreas de caatinga ainda conservadas.
cotidiano dos sujeitos desta comunidade, que constrói e reconstrói simultaneamente,
identidades cambiantes. Tomamos como foco para este estudo o caruru e o candomblé
de caboclo na comunidade por considerarmos estas manifestações, marcadores da
identidade cultural local.
Fazer uma trajetória dos conceitos de Remanescentes Quilombolas, desde o
período colonial, embora importante para outros estudos, parece pouco produtivo a este
artigo, tendo em vista que não é este o nosso objetivo. Portanto, tomaremos como
conceito o que prega a legislação atual que estabelece os conceitos de remanescentes de
quilombos e de território. O texto do Artigo 68 da Constituição Federal, decreto nº
4.887, de 20 de novembro de 2003 regulamenta o procedimento para identificação,
reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por
remanescentes das comunidades quilombolas. No artigo 2º, consideram-se
remanescentes das comunidades dos quilombos, para os fins deste Decreto, os grupos
étnico-raciais, segundo critérios de auto atribuição, com trajetória histórica própria,
dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra
relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida.
Dos conceitos elaborados a partir da legislação, aquele que mais se aproxima da
realidade dos quilombos contemporâneos e que maior contribuição ofereceu a este
estudo foi o proposto pela Associação Brasileira de Antropologia-ABA que define os
quilombos de forma a incorporar sua contemporaneidade:
[...] portanto, o termo não se refere a resíduos ou resquícios arqueológicos de
ocupação temporal ou de comprovação biológica. Também não se trata de
grupos isolados ou de uma população estritamente homogênea. Da mesma
forma nem sempre foram constituídos a partir de movimentos insurrecionais
ou rebelados, mas, sobretudo, consistem em grupos que desenvolveram
práticas de resistência na manutenção e reprodução de seus modos de vida
característicos num determinado lugar (ABA, 1994, p. 2).
Em outras palavras, os quilombos contemporâneos distinguem em diversos
aspectos daqueles do Período Colonial, entretanto, a força-negra dos antepassados e a
herança de luta e resistência permanecem vivas, circulando nas veias do território. Neste
sentido, o Maracujá não difere dos demais grupos tradicionais negros.
Engana-se quem pensa que o decreto nº 4.887 tornou a vida destes sujeitos mais
simples e fácil, trata-se de realidades extremamente complexas e diversas, que implicam
na valorização de nossas memórias e no reconhecimento da dívida histórica e presente
que o Estado brasileiro tem com a população negra. As consequências do descaso dos
governantes e do excesso de burocracia para a conquista de direitos são inúmeras,
exigindo uma luta diária e uma contraofensiva possível e necessária, mas de difícil
articulação.
A opção em delimitar a comunidade quilombola do Maracujá como lócus desta
pesquisa intenciona captar as dinâmicas e as experiências cotidianas vivenciadas pela
população deste território em diferentes momentos da história e a forma como estes
sujeitos se identificam e como são identificados pelos outros. Para além do exposto,
tenciona apreender como suas práticas culturais a exemplo do caruru e do candomblé de
caboclo marcam a resistência deste povo e constrói/reconstrói as identidades local.
Para isso, enveredei na etnografia tendo em vista que a mesma, como bem expôs
Almeida (2017), “convida o pesquisador a penetrar na intimidade dos grupos culturais,
o vivido pelos homens, concretizado em crenças, valores e visão de mundo”. Desse
modo, me rendi às trocas, levando em conta a necessidade de considerar o mundo do
outro tão mais importante que o universo teórico da pesquisa, os conceitos, as noções,
as teorias, nada disso teria o valor sem uma interpretação do modo de vivência das
pessoas que compartilharam suas histórias e suas geografias. Daí, não posso negar a
riqueza da etnografia, de domínio da Antropologia, sobretudo, de cunho “participante”,
mas que se demonstrou como suporte importante para observação do território
quilombola do Maracujá.
Geertz (2008) afirma que o trabalho do etnógrafo é inscrever o discurso social, ou
seja, “ele o anota”. A ação de anotar ou de escrever o que foi dito pelo ator (quero dizer
interlocutor) transforma o discurso social (a narrativa) de acontecimento passado, que
existe apenas em seu próprio momento de ocorrência, em um relato, que existe em sua
inscrição e que pode ser consultado novamente. Chamo a atenção para a leitura do autor
em virtude dele traçar a análise de uma ciência que se paute nessas teias, buscando uma
observação “interpretativa, a procura de significados”. Para Geertz:
se você quer compreender o que é a ciência, você deve olhar, em primeiro
lugar, não para as suas teorias ou as suas descobertas, e certamente não para o
que seus apologistas dizem sobre ela; você deve ver o que os praticantes da
ciência fazem [...] o que os praticantes fazem é a etnografia,(GEERTZ, 2008,
p. 04).
Nas práticas etnográficas, não basta estabelecer relações, selecionar informantes,
transcrever textos, levantar genealogias, mapear campos, manter um diário, e assim por
diante. O que define o empreendimento “é o tipo de esforço intelectual que ele
representa: um risco elaborado para uma ‘descrição densa’”, (GEERTZ, 2008, p. 04).
Nesta pesquisa, busquei compreender como as práticas religiosas dos
remanescentes quilombolas do Maracujá constroem/reconstroem suas identidades e
como a representação que eles têm sobre si mesmos, são construídas no cotidiano
familiar, na comunidade e em espaços externos ao território. Além disso, busco
entender as estratégias de resistência criadas para o enfrentamento da discriminação que
lhes é imposta, tanto pela cor preta da pele, como pela origem territorial.
A religião e as identidades cambiantes da comunidade quilombola do Maracujá:
A religião é um elemento cultural que faz parte de diferentes civilizações. As
crenças e práticas religiosas estão relacionadas aos avanços morais da civilização
ocidental, a exemplo da dignidade e do valor inerente ao ser humano. Vale salientar que
os valores religiosos e as realidades políticas acham-se tão interligados na origem e
perpetuação das civilizações que não se pode perder a influência da religião na vida
pública sem ameaçar seriamente nossas liberdades, ou seja, a religião fortalece a
estrutura social da sociedade. “A vida religiosa se apresenta como a soma das relações
entre o homem e o sagrado. As crenças os expõem e os garantem. Os ritos são os meios
que os asseguram na prática" (RAFESTIN,1993, p.120).
Para compreender o campo religioso do Maracujá, pautamo-nos nos estudos de
Bourdieu, que entende a religião como um sistema simbólico, sendo o campo religioso
um lugar de competição por um capital simbólico. Segundo Bourdieu (1987, p. 82), “o
campo religioso pode ser entendido como um ambiente estruturado de posições onde os
agentes envolvidos estão inseridos em uma relação de concorrência”. O campo religioso
tem por função específica satisfazer um tipo particular de interesse, isto é o interesse
religioso que leva os leigos a esperarem por certas categorias de agentes.
A função social da religião, se deve ao fato de que os leigos não esperam dela
apenas justificação de existir capazes de livrá-los da angústia existencial da
contingência e da solidão, da miséria biológica, da doença, dos males da alma, do
sofrimento ou da morte. Os praticantes da religião esperam dela uma resposta que
justifique sua existência em uma determinada posição social, “em suma, de existir como
de fato existem, ou seja, com todas as propriedades que lhes são socialmente inerentes.”
(BOURDIEU, 1987, p. 48).
Outro expoente dos estudos sobre a religião nos sistemas culturais é Clifford
Geertz3. No capítulo do livro A Interpretação das Culturas que trata sobre “A Religião
como Sistema Cultural”, Geertz (2008) é bem provocativo ao afirmar que os estudos
antropológicos sobre religião, realizados após a segunda-guerra não trazem grande
inovações, a não ser enriquecimento empírico. Estes estudos continuam utilizando o
capital conceitual de estudos anteriores, utilizando-se de uma tradição intelectual
estreitamente definida, que inclui Durkheim, Weber, Freud ou Malinowski.
Geertz analisa a religião a partir da dimensão cultural desta. Ele afirma entender a
existência múltipla do termo cultura, mas que o utiliza no sentido de um padrão de
significados transmitido historicamente, incorporado em símbolos, um sistema de
concepções herdadas, expressas em formas simbólicas por meio das quais os homens
comunicam, perpetuam e desenvolvem seu conhecimento e suas atividades em relação à
vida. Para Geertz:
religião consiste em um sistema de símbolos que atua para estabelecer
poderosas, penetrantes e duradouras disposições e motivações nos homens
através da formulação de conceitos de uma ordem de existência geral e
vestindo essas concepções com tal aura de fatualidade que as disposições e
motivações parecem singularmente realistas (GEERTZ, 2008, p. 67).
3 Para Geertz (1989, p. 91), o estudo antropológico da religião deve ser realizado em dois estágios: 1.
Análise do sistema de significados incorporado nos símbolos que formam a religião propriamente dita; 2.
Análise do relacionamento desses sistemas aos processos sócio-estruturais e psicológicos. O autor critica
os estudos dos antropólogos contemporâneos que negligenciam este segundo estágio e dão mais ênfase ao
primeiro
Em outras palavras, para entender o comportamento religioso de uma dada
sociedade é essencial compreender os sistemas de símbolos e rituais que acompanham
as cerimônias religiosas. Os rituais mais elaborados e apresentados aos públicos são os
que costumam definir a consciência espiritual de um povo. O ritual é o mecanismo que
faz com que todo esse sistema simbólico religioso, adquira autoridade sobre os
indivíduos, pois é nesse momento que se efetiva a fusão entre a visão do mundo e
o ethos e a intransponibilidade entre o modelo “de” e o modelo “para”. Eles reúnem
tanto uma gama de disposições e motivações como concepções metafísicas. Para
Geertz:
O ethos de um povo é o tom, o caráter e a qualidade de sua vida, seu estilo
moral e estético, e sua disposição é a atitude subjacente em relação a ele
mesmo e ao seu mundo que a vida reflete. A visão de mundo que esse povo
tem é o quadro que elabora das coisas como elas são na simples realidade,
seu conceito da natureza, de si mesmo, da sociedade (GEERTZ, 2008, p.92).
Na concepção de Geertz o ethos torna-se intelectualmente aceitável porque é
levado a apresentar um tipo de vida implícito no estado de coisas real que a visão de
mundo descreve, e a visão de mundo torna-se emocionalmente aceitável por se
apresentar como expressão autêntica. Esta relação significativa entre os valores que o
povo conserva e a ordem geral da existência dentro da qual ele se encontra é um
elemento essencial em todas as religiões, como quer que esses valores ou essa ordem
sejam concebidas.
O que se verifica tanto na concepção de Geertz, quanto na concepção de Bourdieu
é que o estudo antropológico da religião deve ser realizado levando em conta a análise
do sistema de significados incorporado nos símbolos que formam a religião
propriamente dita. Geertz percebe a definição do conceito de símbolo como “qualquer
objeto, ato, acontecimento, qualidade ou relação que serve como vínculo a uma
concepção – a concepção é o ‘significado’ do símbolo” (Geertz, 1989, p. 67-68).
A comunidade quilombola do Maracujá é notadamente uma comunidade religiosa,
a população predominantemente negra, se manteve semi-isolada durante muitos anos e
consequentemente favoreceu a preservação de uma identidade cultural própria, e um
campo religioso bastante peculiar, repleto de ritos e símbolos como expõe Geertz.
Durante as minhas primeiras visitas à comunidade do Maracujá eu pude verificar
que a maioria dos moradores se declararam católicos, um pequeno número de
moradores afirmou que são evangélicos e nenhum morador se declarou adepto do
candomblé. Contudo, durante o trabalho etnográfico, as visitas aos moradores e as
conversas nas varandas, algumas práticas religiosas foram citadas, algumas histórias do
passado vão surgindo na memória dos moradores, e como uma colcha de retalhos, peça
por peça, o trabalho vai sendo construído e a identidade religiosa destes sujeitos vai
sendo revelada.
Para compreender como se constitui a identidade religiosa dos moradores do
Maracujá, precisamos antes de tudo, compreender o conceito de identidade. Na
perspectiva de Stuart Hall, identidade é “... uma celebração móvel: formada e
transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou
interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam. É definida historicamente e não
biologicamente.” (HALL, 2006, p.13).
Como evidenciado por Hall, a identidade (ou identidades) dos moradores do
Maracujá é construída e reconstruída historicamente, no âmbito da convivência social,
daí a expressão “identidades cambiantes”. As identidades destes sujeitos estão
relacionadas com a forma como eles veem o mundo exterior e como se posicionam em
relação a ele. Esse processo é contínuo e perpétuo, o que significa que a identidade de
um sujeito está sempre sujeita a mudanças. Portanto, estudar o comportamento
religioso, as crenças e os rituais presentes na comunidade é imprescindível para
compreender as identidades destes sujeitos.
Aqui falamos de identidade que não é atemporal nem a-espacial, mas sim “fluida,
dinâmica, mutável, sofrendo transformações da cultura, do poder e também da história,
e mais ainda estão localizadas no tempo e no espaço”,(HALL, 2006, 2011;
HAESBAERT, 1999)
É necessário compreender que o contexto histórico e sociocultural, assim como as
relações, modifica-se no tempo, são (re)criadas e transmitidas construindo identidades
cambiantes, aquelas que se fortalecem em alguns momentos e noutros são
desestimuladas.
Entre Santos, Orixás, Caboclos e Guias.
Percebi em torno dos festejos religiosos realizados pelos moradores do Maracujá,
a influência do Candomblé, em que tais tendências fazem acompanhar um processo de
sistematização das práticas e das representações que dão sentido às pessoas que
vivenciam estas práticas, uma vez que “a religião, e em geral todo sistema simbólico,
está predisposto a cumprir um papel de associação e dissociação, de distinção, um
sistema de práticas e crenças” (BOURDIEU, 1987, p. 43). A religião se faz presente e
ativa nas relações sociais, nos aspectos e nas práticas cotidianas, ganhando dimensões
em cada esfera da comunidade, onde os sujeitos se apoderam dando-lhe formas e
sentidos. A religião é usada como estratégia de resistência, sendo, portanto, um
elemento de bricolagem dos grupos, inclusive usada para contestar perante uma causa
social, amenizando-a.
Por meio da observação das práticas cotidianas e também do pouco que foi
coletado sobre a prática candomblecista, pode-se inferir que o candomblé praticado
pelos moradores mais velhos da comunidade e que evidentemente não deixou de fazer
parte das práticas religiosas dos moradores na atualidade, é o candomblé de caboclo4.
“A ‘origem’ dos candomblés de caboclo estaria no ritual de antigos negros de origem
banto, que na África distante cultuavam os inquices, divindades africanas presas à terra,
cuja mobilidade geográfica não faz sentido” (PRANDI, 2001, p.1). Portanto, aqui no
Brasil foram forçados a encontrar um outro antepassado para substituir o inquice, neste
caso, o caboclo. Segundo Prandi:
O caboclo é a entidade espiritual presente em todas as religiões afro-
brasileiras, sejam elas organizadas em torno de orixás, voduns ou inquices.
Pode não estar presente num ou noutro terreiro dedicado aos deuses
africanos, mas isto é exceção[...] O termo candomblé de caboclo teria surgido
4 A presença dos caboclos nas religiões afro-brasileiras já aparecia nos trabalhos de Nina Rodrigues
(1977) e Manuel Querino (1938) em princípios do século XX, comentada por Landes (2002) e Carneiro
(1969) na década de 1930
na Bahia, entre o povo-de-santo ligado ao candomblé de nação queto,
originalmente pouco afeito ao culto de caboclo, justamente para marcar sua
distinção em relação aos terreiros de caboclos, (PRANDI, 2001, P.1/2).
Apesar de haver poucos estudos sobre os candomblés de caboclos, sabe se que
este é um dos mais praticados em terras sertanejas, e segundo Prandi, “raramente pode-
se encontrar um candomblé de caboclo funcionando independentemente de um
candomblé das outras nações”, (PRANDI,2001, p.3).
É evidente que as práticas religiosas5 no Brasil não podem ser consideradas puras,
os diferentes povos que foram trazidos do continente africano, e os diferentes grupos
étnicos nativos do território brasileiro, contribuíram decisivamente para a diversidade
religiosa no Brasil. A religião oficial do país, o catolicismo, recebeu contribuição direta
destes povos. O candomblé por exemplo, uma religião de matriz africana, incorporou o
caboclo, para adaptar as necessidades da religião no novo território. “Os caboclos são
integrados nos espaços de culto aos deuses africanos – mesmo subordinados aos orixás
e voduns de quem se dizem filhos”, (SANTOS, 1995).
Em outras palavras, os caboclos estão presentes nos terreiros de candomblé e
dividem espaço com os orixás. Segundo sr. Anízio, durante o samba de caboclo em sua
casa, muitas pessoas recebem o caboclo, e como afirma Prandi, não existe a necessidade
de um ritual de iniciação para as pessoas receberem o encantado. Muitos frequentadores
do samba de caboclo falam do momento do transe, quando os participantes passam a
dançar freneticamente, recebem seu caboclo e em seguida caem. Segundo os moradores,
o som dos atabaques usados no samba serve para invocar estes caboclos. Silva diz que,
“os caboclos que baixam nos terreiros de candomblé não são apenas símbolos da
experiência do contato entre afros e indígenas; eles agenciam este contato, que há “500
anos” não deixa de estabelecer-se e atualizam as forças motrizes que movimentam e
redefinem as suas características nos rituais do candomblé”, (SILVA, 2018).
5 Segundo Geertz (1989, p.67),Na crença e na prática religiosa, o ethos de um grupo torna-se
intelectualmente razoável porque demonstra representar um tipo de vida idealmente adaptado ao
estado de coisas atual que a visão de mundo descreve, enquanto essa visão de mundo torna-se
emocionalmente convincente por ser apresentada como uma imagem de um estado de coisas
verdadeiro, especialmente bem-arrumado para acomodar tal tipo de vida.
Como fica evidente na fala de Silva, os caboclos são entidades responsáveis pelas
características nos rituais do candomblé6, é a personalidade do caboclo que irá aparecer
em quem o invoca. Na comunidade pude verificar que algumas mulheres recebem os
caboclos Boiadeiro, Sete Flechas e Pena Azul e ao receberem estes caboclos passam a
incorporar a personalidade deles. Apesar de não serem as únicas a receberem os
caboclos, nota-se que as mulheres da comunidade são maioria nas práticas do
candomblé. Portanto, vale registrar que o samba de caboclo é o momento em que as
entidades são homenageadas, ele ocorre após ser servido o caruru, em homenagem a
Cosme e Damião. Durante o samba, os caboclos conversam com os participantes,
receitam banhos e infusões, portanto eles não fazem nenhum trabalho. Esta função é
exclusiva dos babalorixás e ou Ialorixás.
No samba de caboclo, a presença do pai ou mãe de santo é indispensável, este/a é
responsável para conduzir e entoar o samba. O pai de santo7, também chamado de
curador, é responsável para retirar o batuque enquanto os participantes respondem e
dançam ao som do pandeiro e dos tambores. É muito comum entre os moradores das
comunidades rurais do Sertão da Bahia, os pais que são agraciados com filhos gêmeos,
chamados aqui de babaços, oferecerem caruru no mês de setembro em homenagem a
Cosme e Damião, foi o que aconteceu com o casal, sr. Anízio e dona Anália que
passaram a servir o caruru há aproximadamente trinta anos, com a chegada dos filhos
gêmeos.
O culto ao caboclo boiadeiro é muito comum na comunidade, esse caboclo é
encarregado de trazer mensagens dos seus ancestrais, principalmente de entes queridos
desencarnados há pouco tempo, além disso o boiadeiro indica banhos de folhas sagradas
e pequenas oferendas para resoluções dos problemas. Sobre estes caboclos, Prandi diz
6 Publicado em 1994, o livro de Mundicarmo Ferreti, Terra de Caboclo, reúne um conjunto de trabalhos
que tratam do caboclo em outra religião de matriz africana: o Tambor de Mina. Nos terreiros de Mina,
observa a autora, fala-se de “uma ‘quase invasão’ de entidades espirituais caboclas […] (ARAGÃO,
RABELLO, 2018).
7 Utilizo o termo mãe-de-santo e pai de santo durante a pesquisa ao invés de ialorixá e babalorixá porque
é esse o nome que usaram para se referir a estes, neste espaço, sem, no entanto, estar carregado de carga
pejorativa.
que “eles brincam, entoam cantigas e tiram as pessoas para dançar ao som de seu alegre
samba” (PRANDI, 2001, p.2).
Em muitas casas da comunidade, podemos observar a presença de alguidar, local
onde os devotos servem alimentos para sua entidade. Esta é uma prática bastante
comum entre os moradores, muitos tem um oratório com santos católicos, orixás e
caboclos e o recipiente onde são colocadas as oferendas para o caboclo. Prandi afirma
que, “o caboclo de candomblé, como os orixás, também pode ter assentamento, isto é,
uma representação de base material, com instrumentos de ferros e outras insígnias
fixadas numa vasilha, em geral um alguidar, junto ao qual se depositam as oferendas”,
(PRANDI, 2001, p.5). Como podemos verificar, os oratórios e as oferendas dedicadas
aos caboclos estão envolta de simbologia para seus adeptos. Assim, o candomblé de
caboclo é uma religião repleta de símbolos e significados e segundo Geertz:
O homem tem uma dependência tão grande em relação aos símbolos e
sistemas simbólicos a ponto de serem eles decisivos para sua viabilidade
como criatura e, em função disso, sua sensibilidade à indicação até mesmo
mais remota de que eles são capazes de enfrentar um ou outro aspecto da
experiência provoca nele a mais grave ansiedade, ( GEERTZ, 1989, p.74).
O candomblé também conta com diversos rituais nos quais ocorrem o contato
entre os humanos e as entidades. O ritual é um meio de comunicação que nos permite
colocar em contato os valores, as crenças e os costumes dos sujeitos participantes em
que ocorram processos de transmissão de saberes. É a sua capacidade “multimídia”,
onde a cultura tanto legitima ordens sociais desestabilizadas como também apresenta
suas fissuras e crises sociais da qual pode germinar mudanças.
É evidente que as práticas religiosas assim como as manifestações culturais
presentes na comunidade diferenciam estes sujeitos dos demais habitantes do município.
Todavia, os discursos produzidos por agentes externos nem sempre coadunam com as
identidades construídas no seio da comunidade, isto porque as identidades são
constantemente construídas e reconstruídas a partir das relações sociais destes sujeitos.
A presença do candomblé de caboclo na comunidade é um símbolo da resistência destes
sujeitos, que por meio de diferentes estratégias, resistiram as injunções da religião
católica e mais recentemente do pentecostalismo.
Rupturas, permanências e recriações, como as vistas nas narrativas dos
moradores, estão permeadas da cultura afro-brasileira, do catolicismo, da cultura
popular, presentes nestes espaços, diluídos em vivências, nomeados de acordo com a
cultura local e engendrando redes de sociabilidades formadas e transformadas,
continuamente, em relação às formas pelas quais eram representados e no modo como
escolhiam para festejar, ou interpelados no modo como os outros viam suas
festividades, nos sistemas culturais que os rodeiam.
Não é à toa que quando os moradores participam do samba de caboclo, do caruru
em homenagem a Cosme e Damião, da festa da padroeira de Santa Rita de Cássia ou
dos cultos da Assembleia de Deus, a comunidade, à sua maneira imprime e reforça a sua
identidade. Experiências de alteridade foram aparecendo nas narrativas, e o que elas
apontaram como ‘tradição’, evidencia o que observou Hall, “as tradições não são
imutáveis, ao contrário, são constantemente revisitadas e transformadas em resposta às
novas experiências”, (HALL,2003). Na história do povoado, no tocante aos festejos
religiosos é possível perceber a dinamicidade de ações, interações, sociabilidades e
construção de identidades dos diferentes grupos sociais no período analisado.
Todavia, as práticas religiosas e as manifestações festivas se desvelaram numa
geografia da memória que desenhou o Maracujá de um modo singular, relacional.
Revelou um povoado dinâmico nas esferas sagradas e profanas, deram nome, gênero,
lugar às pessoas, salvando-as das injunções do tempo. Mostrou as táticas de
sobrevivência e de convivência e acima de tudo a força destes sujeitos.
Portanto, entender a identidade, a festividade e a religiosidade deste território, por
meio da História Oral e da memória destes sujeitos, é desvelar esses signos impressos
na alma da comunidade, expressas em ajuda mútua e solidariedade, do nascer ao morrer.
É a presença da parte, o indivíduo, integrada ao todo, a comunidade.
Vale ressaltar que as práticas religiosas da comunidade quilombola do Maracujá
foram evidentemente marcadas por uma série de negociações, trocas e incorporações.
Nesse sentido, ao mesmo tempo em que se pode ver a presença de equivalências e
proximidades entre os cultos africanos e as outras religiões estabelecidas no território,
também tem outras particularidades que definem várias situações. A religião,
compreendida como componente indissociável da cultura, elemento inerente e espiritual
da manifestação do indivíduo, revelou as individualidades e a coletividade de um povo
marcado por algo em comum; o fenótipo.
Referencias:
ABA. Documento do grupo de trabalho sobre as comunidades Negras Rurais. Boletim
Informativo NUER n.1, 1994.
ALMEIDA. M. G. Território quilombola, etnodesenvolvimento e turismo no
nordeste de Goiás. Raega, Curitiba, agosto, 2017.
BOURDIEU, Pierre. Economia das Trocas Simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1987.
BRASIL. Decreto n.º 4887, de 20 de novembro de 2003. Regulamenta o procedimento
para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras
ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos de que trata o art. 68 do
Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Disponível em www.planalto.gov.br,
acesso em 02/07/2020.
CHARTIER, Roger. A História Cultural entre Práticas e Representações. Difel, 2002, p.16/17
GEERTZ, C. A Interpretações das Culturas. Rio de Janeiro: Zahar, 1989.
HAESBAERT, R. Identidades territoriais. In: CORRÊA, R. L.; ROSENDAHL, Z.
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HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro:
Lamparina, 2006.
PRANDI, Reginaldo, VALLADO, Armando & SOUZA, André Ricardo de. Candomblé
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RAFFESTIN, C. Por uma Geografia do poder. São Paulo: Ed. Ática, 1993. (Série
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SILVA, Fábio Alex Ferreira da. "Eu vou ali e volto já, daqui a pouco tô no mesmo
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Fábio Alex Ferreira da Silva. – Cachoeira, 2018.Dissertação de mestrado da
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