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NAS TRILHAS DA COMUNIDADE QUILOMBOLA DO MARACUJÁ: O CARURU, O CANDOMBLÉ DE CABOCLO E AS IDENTIDADES CAMBIANTES. Ana Cláudia do Carmo Cedraz Mestranda do PPGEAFIN 1 [email protected] Resumo: Este artigo é um recorte de minha dissertação de mestrado na qual eu apresento as memórias da comunidade quilombola do Maracujá, no município de Conceição do Coité-BA. Circunscreve-se à pesquisa etnográfica sobre o cotidiano dos sujeitos desta comunidade que constrói e reconstrói simultaneamente, identidades cambiantes. Tomamos como foco para este estudo, o caruru e o candomblé de caboclo na comunidade, por considerar estas práticas, marcadores da identidade cultural local. Nesta pesquisa, busquei compreender como a representação que eles têm sobre si mesmos são construídas no cotidiano familiar, na comunidade e em espaços externos ao território. Além disso, busco entender as estratégias de resistência criadas para o enfrentamento da discriminação que lhes é imposta, tanto pela cor preta da pele, como pela origem territorial. Para atingir os objetivos propostos foi realizado uma discussão teórica a respeito dos conceitos de religião, candomblé de caboclo e identidades. Além disso, foram feitas entrevistas semiestruturadas e o trabalho etnográfico. Palavras-chave: Comunidade quilombola; Candomblé de caboclo; Identidades. Introdução Este artigo versa sobre as memórias da comunidade quilombola do Maracujá 2 , no município de Conceição do Coité-BA. Circunscreve-se à pesquisa etnográfica sobre o 1 Programa de Pós-Graduação em Estudos Africanos Povos Indígenas e Culturas Negras- UNEB 2 O Maracujá é uma comunidade negra, rural, localizada a aproximadamente 18 km da sede do município e apresenta características fitogeográficas semelhantes as encontradas em todo o território do sisal. Deixando o asfalto da BA-120 que liga Conceição do Coité a cidade de Riachão do Jacuípe e seguindo por uma estrada de terra até chegar ao povoado é possível verificar a existência de fazendas de gado, fazendas de sisal e pequenas áreas de caatinga ainda conservadas.

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NAS TRILHAS DA COMUNIDADE QUILOMBOLA DO MARACUJÁ: O

CARURU, O CANDOMBLÉ DE CABOCLO E AS IDENTIDADES

CAMBIANTES.

Ana Cláudia do Carmo Cedraz

Mestranda do PPGEAFIN1

[email protected]

Resumo:

Este artigo é um recorte de minha dissertação de mestrado na qual eu apresento as

memórias da comunidade quilombola do Maracujá, no município de Conceição do

Coité-BA. Circunscreve-se à pesquisa etnográfica sobre o cotidiano dos sujeitos desta

comunidade que constrói e reconstrói simultaneamente, identidades cambiantes.

Tomamos como foco para este estudo, o caruru e o candomblé de caboclo na

comunidade, por considerar estas práticas, marcadores da identidade cultural local.

Nesta pesquisa, busquei compreender como a representação que eles têm sobre si

mesmos são construídas no cotidiano familiar, na comunidade e em espaços externos ao

território. Além disso, busco entender as estratégias de resistência criadas para o

enfrentamento da discriminação que lhes é imposta, tanto pela cor preta da pele, como

pela origem territorial. Para atingir os objetivos propostos foi realizado uma discussão

teórica a respeito dos conceitos de religião, candomblé de caboclo e identidades. Além

disso, foram feitas entrevistas semiestruturadas e o trabalho etnográfico.

Palavras-chave: Comunidade quilombola; Candomblé de caboclo; Identidades.

Introdução

Este artigo versa sobre as memórias da comunidade quilombola do Maracujá2, no

município de Conceição do Coité-BA. Circunscreve-se à pesquisa etnográfica sobre o

1 Programa de Pós-Graduação em Estudos Africanos Povos Indígenas e Culturas Negras- UNEB

2 O Maracujá é uma comunidade negra, rural, localizada a aproximadamente 18 km da sede do município

e apresenta características fitogeográficas semelhantes as encontradas em todo o território do sisal.

Deixando o asfalto da BA-120 que liga Conceição do Coité a cidade de Riachão do Jacuípe e seguindo

por uma estrada de terra até chegar ao povoado é possível verificar a existência de fazendas de gado,

fazendas de sisal e pequenas áreas de caatinga ainda conservadas.

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cotidiano dos sujeitos desta comunidade, que constrói e reconstrói simultaneamente,

identidades cambiantes. Tomamos como foco para este estudo o caruru e o candomblé

de caboclo na comunidade por considerarmos estas manifestações, marcadores da

identidade cultural local.

Fazer uma trajetória dos conceitos de Remanescentes Quilombolas, desde o

período colonial, embora importante para outros estudos, parece pouco produtivo a este

artigo, tendo em vista que não é este o nosso objetivo. Portanto, tomaremos como

conceito o que prega a legislação atual que estabelece os conceitos de remanescentes de

quilombos e de território. O texto do Artigo 68 da Constituição Federal, decreto nº

4.887, de 20 de novembro de 2003 regulamenta o procedimento para identificação,

reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por

remanescentes das comunidades quilombolas. No artigo 2º, consideram-se

remanescentes das comunidades dos quilombos, para os fins deste Decreto, os grupos

étnico-raciais, segundo critérios de auto atribuição, com trajetória histórica própria,

dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra

relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida.

Dos conceitos elaborados a partir da legislação, aquele que mais se aproxima da

realidade dos quilombos contemporâneos e que maior contribuição ofereceu a este

estudo foi o proposto pela Associação Brasileira de Antropologia-ABA que define os

quilombos de forma a incorporar sua contemporaneidade:

[...] portanto, o termo não se refere a resíduos ou resquícios arqueológicos de

ocupação temporal ou de comprovação biológica. Também não se trata de

grupos isolados ou de uma população estritamente homogênea. Da mesma

forma nem sempre foram constituídos a partir de movimentos insurrecionais

ou rebelados, mas, sobretudo, consistem em grupos que desenvolveram

práticas de resistência na manutenção e reprodução de seus modos de vida

característicos num determinado lugar (ABA, 1994, p. 2).

Em outras palavras, os quilombos contemporâneos distinguem em diversos

aspectos daqueles do Período Colonial, entretanto, a força-negra dos antepassados e a

herança de luta e resistência permanecem vivas, circulando nas veias do território. Neste

sentido, o Maracujá não difere dos demais grupos tradicionais negros.

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Engana-se quem pensa que o decreto nº 4.887 tornou a vida destes sujeitos mais

simples e fácil, trata-se de realidades extremamente complexas e diversas, que implicam

na valorização de nossas memórias e no reconhecimento da dívida histórica e presente

que o Estado brasileiro tem com a população negra. As consequências do descaso dos

governantes e do excesso de burocracia para a conquista de direitos são inúmeras,

exigindo uma luta diária e uma contraofensiva possível e necessária, mas de difícil

articulação.

A opção em delimitar a comunidade quilombola do Maracujá como lócus desta

pesquisa intenciona captar as dinâmicas e as experiências cotidianas vivenciadas pela

população deste território em diferentes momentos da história e a forma como estes

sujeitos se identificam e como são identificados pelos outros. Para além do exposto,

tenciona apreender como suas práticas culturais a exemplo do caruru e do candomblé de

caboclo marcam a resistência deste povo e constrói/reconstrói as identidades local.

Para isso, enveredei na etnografia tendo em vista que a mesma, como bem expôs

Almeida (2017), “convida o pesquisador a penetrar na intimidade dos grupos culturais,

o vivido pelos homens, concretizado em crenças, valores e visão de mundo”. Desse

modo, me rendi às trocas, levando em conta a necessidade de considerar o mundo do

outro tão mais importante que o universo teórico da pesquisa, os conceitos, as noções,

as teorias, nada disso teria o valor sem uma interpretação do modo de vivência das

pessoas que compartilharam suas histórias e suas geografias. Daí, não posso negar a

riqueza da etnografia, de domínio da Antropologia, sobretudo, de cunho “participante”,

mas que se demonstrou como suporte importante para observação do território

quilombola do Maracujá.

Geertz (2008) afirma que o trabalho do etnógrafo é inscrever o discurso social, ou

seja, “ele o anota”. A ação de anotar ou de escrever o que foi dito pelo ator (quero dizer

interlocutor) transforma o discurso social (a narrativa) de acontecimento passado, que

existe apenas em seu próprio momento de ocorrência, em um relato, que existe em sua

inscrição e que pode ser consultado novamente. Chamo a atenção para a leitura do autor

em virtude dele traçar a análise de uma ciência que se paute nessas teias, buscando uma

observação “interpretativa, a procura de significados”. Para Geertz:

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se você quer compreender o que é a ciência, você deve olhar, em primeiro

lugar, não para as suas teorias ou as suas descobertas, e certamente não para o

que seus apologistas dizem sobre ela; você deve ver o que os praticantes da

ciência fazem [...] o que os praticantes fazem é a etnografia,(GEERTZ, 2008,

p. 04).

Nas práticas etnográficas, não basta estabelecer relações, selecionar informantes,

transcrever textos, levantar genealogias, mapear campos, manter um diário, e assim por

diante. O que define o empreendimento “é o tipo de esforço intelectual que ele

representa: um risco elaborado para uma ‘descrição densa’”, (GEERTZ, 2008, p. 04).

Nesta pesquisa, busquei compreender como as práticas religiosas dos

remanescentes quilombolas do Maracujá constroem/reconstroem suas identidades e

como a representação que eles têm sobre si mesmos, são construídas no cotidiano

familiar, na comunidade e em espaços externos ao território. Além disso, busco

entender as estratégias de resistência criadas para o enfrentamento da discriminação que

lhes é imposta, tanto pela cor preta da pele, como pela origem territorial.

A religião e as identidades cambiantes da comunidade quilombola do Maracujá:

A religião é um elemento cultural que faz parte de diferentes civilizações. As

crenças e práticas religiosas estão relacionadas aos avanços morais da civilização

ocidental, a exemplo da dignidade e do valor inerente ao ser humano. Vale salientar que

os valores religiosos e as realidades políticas acham-se tão interligados na origem e

perpetuação das civilizações que não se pode perder a influência da religião na vida

pública sem ameaçar seriamente nossas liberdades, ou seja, a religião fortalece a

estrutura social da sociedade. “A vida religiosa se apresenta como a soma das relações

entre o homem e o sagrado. As crenças os expõem e os garantem. Os ritos são os meios

que os asseguram na prática" (RAFESTIN,1993, p.120).

Para compreender o campo religioso do Maracujá, pautamo-nos nos estudos de

Bourdieu, que entende a religião como um sistema simbólico, sendo o campo religioso

um lugar de competição por um capital simbólico. Segundo Bourdieu (1987, p. 82), “o

campo religioso pode ser entendido como um ambiente estruturado de posições onde os

agentes envolvidos estão inseridos em uma relação de concorrência”. O campo religioso

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tem por função específica satisfazer um tipo particular de interesse, isto é o interesse

religioso que leva os leigos a esperarem por certas categorias de agentes.

A função social da religião, se deve ao fato de que os leigos não esperam dela

apenas justificação de existir capazes de livrá-los da angústia existencial da

contingência e da solidão, da miséria biológica, da doença, dos males da alma, do

sofrimento ou da morte. Os praticantes da religião esperam dela uma resposta que

justifique sua existência em uma determinada posição social, “em suma, de existir como

de fato existem, ou seja, com todas as propriedades que lhes são socialmente inerentes.”

(BOURDIEU, 1987, p. 48).

Outro expoente dos estudos sobre a religião nos sistemas culturais é Clifford

Geertz3. No capítulo do livro A Interpretação das Culturas que trata sobre “A Religião

como Sistema Cultural”, Geertz (2008) é bem provocativo ao afirmar que os estudos

antropológicos sobre religião, realizados após a segunda-guerra não trazem grande

inovações, a não ser enriquecimento empírico. Estes estudos continuam utilizando o

capital conceitual de estudos anteriores, utilizando-se de uma tradição intelectual

estreitamente definida, que inclui Durkheim, Weber, Freud ou Malinowski.

Geertz analisa a religião a partir da dimensão cultural desta. Ele afirma entender a

existência múltipla do termo cultura, mas que o utiliza no sentido de um padrão de

significados transmitido historicamente, incorporado em símbolos, um sistema de

concepções herdadas, expressas em formas simbólicas por meio das quais os homens

comunicam, perpetuam e desenvolvem seu conhecimento e suas atividades em relação à

vida. Para Geertz:

religião consiste em um sistema de símbolos que atua para estabelecer

poderosas, penetrantes e duradouras disposições e motivações nos homens

através da formulação de conceitos de uma ordem de existência geral e

vestindo essas concepções com tal aura de fatualidade que as disposições e

motivações parecem singularmente realistas (GEERTZ, 2008, p. 67).

3 Para Geertz (1989, p. 91), o estudo antropológico da religião deve ser realizado em dois estágios: 1.

Análise do sistema de significados incorporado nos símbolos que formam a religião propriamente dita; 2.

Análise do relacionamento desses sistemas aos processos sócio-estruturais e psicológicos. O autor critica

os estudos dos antropólogos contemporâneos que negligenciam este segundo estágio e dão mais ênfase ao

primeiro

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Em outras palavras, para entender o comportamento religioso de uma dada

sociedade é essencial compreender os sistemas de símbolos e rituais que acompanham

as cerimônias religiosas. Os rituais mais elaborados e apresentados aos públicos são os

que costumam definir a consciência espiritual de um povo. O ritual é o mecanismo que

faz com que todo esse sistema simbólico religioso, adquira autoridade sobre os

indivíduos, pois é nesse momento que se efetiva a fusão entre a visão do mundo e

o ethos e a intransponibilidade entre o modelo “de” e o modelo “para”. Eles reúnem

tanto uma gama de disposições e motivações como concepções metafísicas. Para

Geertz:

O ethos de um povo é o tom, o caráter e a qualidade de sua vida, seu estilo

moral e estético, e sua disposição é a atitude subjacente em relação a ele

mesmo e ao seu mundo que a vida reflete. A visão de mundo que esse povo

tem é o quadro que elabora das coisas como elas são na simples realidade,

seu conceito da natureza, de si mesmo, da sociedade (GEERTZ, 2008, p.92).

Na concepção de Geertz o ethos torna-se intelectualmente aceitável porque é

levado a apresentar um tipo de vida implícito no estado de coisas real que a visão de

mundo descreve, e a visão de mundo torna-se emocionalmente aceitável por se

apresentar como expressão autêntica. Esta relação significativa entre os valores que o

povo conserva e a ordem geral da existência dentro da qual ele se encontra é um

elemento essencial em todas as religiões, como quer que esses valores ou essa ordem

sejam concebidas.

O que se verifica tanto na concepção de Geertz, quanto na concepção de Bourdieu

é que o estudo antropológico da religião deve ser realizado levando em conta a análise

do sistema de significados incorporado nos símbolos que formam a religião

propriamente dita. Geertz percebe a definição do conceito de símbolo como “qualquer

objeto, ato, acontecimento, qualidade ou relação que serve como vínculo a uma

concepção – a concepção é o ‘significado’ do símbolo” (Geertz, 1989, p. 67-68).

A comunidade quilombola do Maracujá é notadamente uma comunidade religiosa,

a população predominantemente negra, se manteve semi-isolada durante muitos anos e

consequentemente favoreceu a preservação de uma identidade cultural própria, e um

campo religioso bastante peculiar, repleto de ritos e símbolos como expõe Geertz.

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Durante as minhas primeiras visitas à comunidade do Maracujá eu pude verificar

que a maioria dos moradores se declararam católicos, um pequeno número de

moradores afirmou que são evangélicos e nenhum morador se declarou adepto do

candomblé. Contudo, durante o trabalho etnográfico, as visitas aos moradores e as

conversas nas varandas, algumas práticas religiosas foram citadas, algumas histórias do

passado vão surgindo na memória dos moradores, e como uma colcha de retalhos, peça

por peça, o trabalho vai sendo construído e a identidade religiosa destes sujeitos vai

sendo revelada.

Para compreender como se constitui a identidade religiosa dos moradores do

Maracujá, precisamos antes de tudo, compreender o conceito de identidade. Na

perspectiva de Stuart Hall, identidade é “... uma celebração móvel: formada e

transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou

interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam. É definida historicamente e não

biologicamente.” (HALL, 2006, p.13).

Como evidenciado por Hall, a identidade (ou identidades) dos moradores do

Maracujá é construída e reconstruída historicamente, no âmbito da convivência social,

daí a expressão “identidades cambiantes”. As identidades destes sujeitos estão

relacionadas com a forma como eles veem o mundo exterior e como se posicionam em

relação a ele. Esse processo é contínuo e perpétuo, o que significa que a identidade de

um sujeito está sempre sujeita a mudanças. Portanto, estudar o comportamento

religioso, as crenças e os rituais presentes na comunidade é imprescindível para

compreender as identidades destes sujeitos.

Aqui falamos de identidade que não é atemporal nem a-espacial, mas sim “fluida,

dinâmica, mutável, sofrendo transformações da cultura, do poder e também da história,

e mais ainda estão localizadas no tempo e no espaço”,(HALL, 2006, 2011;

HAESBAERT, 1999)

É necessário compreender que o contexto histórico e sociocultural, assim como as

relações, modifica-se no tempo, são (re)criadas e transmitidas construindo identidades

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cambiantes, aquelas que se fortalecem em alguns momentos e noutros são

desestimuladas.

Entre Santos, Orixás, Caboclos e Guias.

Percebi em torno dos festejos religiosos realizados pelos moradores do Maracujá,

a influência do Candomblé, em que tais tendências fazem acompanhar um processo de

sistematização das práticas e das representações que dão sentido às pessoas que

vivenciam estas práticas, uma vez que “a religião, e em geral todo sistema simbólico,

está predisposto a cumprir um papel de associação e dissociação, de distinção, um

sistema de práticas e crenças” (BOURDIEU, 1987, p. 43). A religião se faz presente e

ativa nas relações sociais, nos aspectos e nas práticas cotidianas, ganhando dimensões

em cada esfera da comunidade, onde os sujeitos se apoderam dando-lhe formas e

sentidos. A religião é usada como estratégia de resistência, sendo, portanto, um

elemento de bricolagem dos grupos, inclusive usada para contestar perante uma causa

social, amenizando-a.

Por meio da observação das práticas cotidianas e também do pouco que foi

coletado sobre a prática candomblecista, pode-se inferir que o candomblé praticado

pelos moradores mais velhos da comunidade e que evidentemente não deixou de fazer

parte das práticas religiosas dos moradores na atualidade, é o candomblé de caboclo4.

“A ‘origem’ dos candomblés de caboclo estaria no ritual de antigos negros de origem

banto, que na África distante cultuavam os inquices, divindades africanas presas à terra,

cuja mobilidade geográfica não faz sentido” (PRANDI, 2001, p.1). Portanto, aqui no

Brasil foram forçados a encontrar um outro antepassado para substituir o inquice, neste

caso, o caboclo. Segundo Prandi:

O caboclo é a entidade espiritual presente em todas as religiões afro-

brasileiras, sejam elas organizadas em torno de orixás, voduns ou inquices.

Pode não estar presente num ou noutro terreiro dedicado aos deuses

africanos, mas isto é exceção[...] O termo candomblé de caboclo teria surgido

4 A presença dos caboclos nas religiões afro-brasileiras já aparecia nos trabalhos de Nina Rodrigues

(1977) e Manuel Querino (1938) em princípios do século XX, comentada por Landes (2002) e Carneiro

(1969) na década de 1930

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na Bahia, entre o povo-de-santo ligado ao candomblé de nação queto,

originalmente pouco afeito ao culto de caboclo, justamente para marcar sua

distinção em relação aos terreiros de caboclos, (PRANDI, 2001, P.1/2).

Apesar de haver poucos estudos sobre os candomblés de caboclos, sabe se que

este é um dos mais praticados em terras sertanejas, e segundo Prandi, “raramente pode-

se encontrar um candomblé de caboclo funcionando independentemente de um

candomblé das outras nações”, (PRANDI,2001, p.3).

É evidente que as práticas religiosas5 no Brasil não podem ser consideradas puras,

os diferentes povos que foram trazidos do continente africano, e os diferentes grupos

étnicos nativos do território brasileiro, contribuíram decisivamente para a diversidade

religiosa no Brasil. A religião oficial do país, o catolicismo, recebeu contribuição direta

destes povos. O candomblé por exemplo, uma religião de matriz africana, incorporou o

caboclo, para adaptar as necessidades da religião no novo território. “Os caboclos são

integrados nos espaços de culto aos deuses africanos – mesmo subordinados aos orixás

e voduns de quem se dizem filhos”, (SANTOS, 1995).

Em outras palavras, os caboclos estão presentes nos terreiros de candomblé e

dividem espaço com os orixás. Segundo sr. Anízio, durante o samba de caboclo em sua

casa, muitas pessoas recebem o caboclo, e como afirma Prandi, não existe a necessidade

de um ritual de iniciação para as pessoas receberem o encantado. Muitos frequentadores

do samba de caboclo falam do momento do transe, quando os participantes passam a

dançar freneticamente, recebem seu caboclo e em seguida caem. Segundo os moradores,

o som dos atabaques usados no samba serve para invocar estes caboclos. Silva diz que,

“os caboclos que baixam nos terreiros de candomblé não são apenas símbolos da

experiência do contato entre afros e indígenas; eles agenciam este contato, que há “500

anos” não deixa de estabelecer-se e atualizam as forças motrizes que movimentam e

redefinem as suas características nos rituais do candomblé”, (SILVA, 2018).

5 Segundo Geertz (1989, p.67),Na crença e na prática religiosa, o ethos de um grupo torna-se

intelectualmente razoável porque demonstra representar um tipo de vida idealmente adaptado ao

estado de coisas atual que a visão de mundo descreve, enquanto essa visão de mundo torna-se

emocionalmente convincente por ser apresentada como uma imagem de um estado de coisas

verdadeiro, especialmente bem-arrumado para acomodar tal tipo de vida.

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Como fica evidente na fala de Silva, os caboclos são entidades responsáveis pelas

características nos rituais do candomblé6, é a personalidade do caboclo que irá aparecer

em quem o invoca. Na comunidade pude verificar que algumas mulheres recebem os

caboclos Boiadeiro, Sete Flechas e Pena Azul e ao receberem estes caboclos passam a

incorporar a personalidade deles. Apesar de não serem as únicas a receberem os

caboclos, nota-se que as mulheres da comunidade são maioria nas práticas do

candomblé. Portanto, vale registrar que o samba de caboclo é o momento em que as

entidades são homenageadas, ele ocorre após ser servido o caruru, em homenagem a

Cosme e Damião. Durante o samba, os caboclos conversam com os participantes,

receitam banhos e infusões, portanto eles não fazem nenhum trabalho. Esta função é

exclusiva dos babalorixás e ou Ialorixás.

No samba de caboclo, a presença do pai ou mãe de santo é indispensável, este/a é

responsável para conduzir e entoar o samba. O pai de santo7, também chamado de

curador, é responsável para retirar o batuque enquanto os participantes respondem e

dançam ao som do pandeiro e dos tambores. É muito comum entre os moradores das

comunidades rurais do Sertão da Bahia, os pais que são agraciados com filhos gêmeos,

chamados aqui de babaços, oferecerem caruru no mês de setembro em homenagem a

Cosme e Damião, foi o que aconteceu com o casal, sr. Anízio e dona Anália que

passaram a servir o caruru há aproximadamente trinta anos, com a chegada dos filhos

gêmeos.

O culto ao caboclo boiadeiro é muito comum na comunidade, esse caboclo é

encarregado de trazer mensagens dos seus ancestrais, principalmente de entes queridos

desencarnados há pouco tempo, além disso o boiadeiro indica banhos de folhas sagradas

e pequenas oferendas para resoluções dos problemas. Sobre estes caboclos, Prandi diz

6 Publicado em 1994, o livro de Mundicarmo Ferreti, Terra de Caboclo, reúne um conjunto de trabalhos

que tratam do caboclo em outra religião de matriz africana: o Tambor de Mina. Nos terreiros de Mina,

observa a autora, fala-se de “uma ‘quase invasão’ de entidades espirituais caboclas […] (ARAGÃO,

RABELLO, 2018).

7 Utilizo o termo mãe-de-santo e pai de santo durante a pesquisa ao invés de ialorixá e babalorixá porque

é esse o nome que usaram para se referir a estes, neste espaço, sem, no entanto, estar carregado de carga

pejorativa.

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que “eles brincam, entoam cantigas e tiram as pessoas para dançar ao som de seu alegre

samba” (PRANDI, 2001, p.2).

Em muitas casas da comunidade, podemos observar a presença de alguidar, local

onde os devotos servem alimentos para sua entidade. Esta é uma prática bastante

comum entre os moradores, muitos tem um oratório com santos católicos, orixás e

caboclos e o recipiente onde são colocadas as oferendas para o caboclo. Prandi afirma

que, “o caboclo de candomblé, como os orixás, também pode ter assentamento, isto é,

uma representação de base material, com instrumentos de ferros e outras insígnias

fixadas numa vasilha, em geral um alguidar, junto ao qual se depositam as oferendas”,

(PRANDI, 2001, p.5). Como podemos verificar, os oratórios e as oferendas dedicadas

aos caboclos estão envolta de simbologia para seus adeptos. Assim, o candomblé de

caboclo é uma religião repleta de símbolos e significados e segundo Geertz:

O homem tem uma dependência tão grande em relação aos símbolos e

sistemas simbólicos a ponto de serem eles decisivos para sua viabilidade

como criatura e, em função disso, sua sensibilidade à indicação até mesmo

mais remota de que eles são capazes de enfrentar um ou outro aspecto da

experiência provoca nele a mais grave ansiedade, ( GEERTZ, 1989, p.74).

O candomblé também conta com diversos rituais nos quais ocorrem o contato

entre os humanos e as entidades. O ritual é um meio de comunicação que nos permite

colocar em contato os valores, as crenças e os costumes dos sujeitos participantes em

que ocorram processos de transmissão de saberes. É a sua capacidade “multimídia”,

onde a cultura tanto legitima ordens sociais desestabilizadas como também apresenta

suas fissuras e crises sociais da qual pode germinar mudanças.

É evidente que as práticas religiosas assim como as manifestações culturais

presentes na comunidade diferenciam estes sujeitos dos demais habitantes do município.

Todavia, os discursos produzidos por agentes externos nem sempre coadunam com as

identidades construídas no seio da comunidade, isto porque as identidades são

constantemente construídas e reconstruídas a partir das relações sociais destes sujeitos.

A presença do candomblé de caboclo na comunidade é um símbolo da resistência destes

sujeitos, que por meio de diferentes estratégias, resistiram as injunções da religião

católica e mais recentemente do pentecostalismo.

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Rupturas, permanências e recriações, como as vistas nas narrativas dos

moradores, estão permeadas da cultura afro-brasileira, do catolicismo, da cultura

popular, presentes nestes espaços, diluídos em vivências, nomeados de acordo com a

cultura local e engendrando redes de sociabilidades formadas e transformadas,

continuamente, em relação às formas pelas quais eram representados e no modo como

escolhiam para festejar, ou interpelados no modo como os outros viam suas

festividades, nos sistemas culturais que os rodeiam.

Não é à toa que quando os moradores participam do samba de caboclo, do caruru

em homenagem a Cosme e Damião, da festa da padroeira de Santa Rita de Cássia ou

dos cultos da Assembleia de Deus, a comunidade, à sua maneira imprime e reforça a sua

identidade. Experiências de alteridade foram aparecendo nas narrativas, e o que elas

apontaram como ‘tradição’, evidencia o que observou Hall, “as tradições não são

imutáveis, ao contrário, são constantemente revisitadas e transformadas em resposta às

novas experiências”, (HALL,2003). Na história do povoado, no tocante aos festejos

religiosos é possível perceber a dinamicidade de ações, interações, sociabilidades e

construção de identidades dos diferentes grupos sociais no período analisado.

Todavia, as práticas religiosas e as manifestações festivas se desvelaram numa

geografia da memória que desenhou o Maracujá de um modo singular, relacional.

Revelou um povoado dinâmico nas esferas sagradas e profanas, deram nome, gênero,

lugar às pessoas, salvando-as das injunções do tempo. Mostrou as táticas de

sobrevivência e de convivência e acima de tudo a força destes sujeitos.

Portanto, entender a identidade, a festividade e a religiosidade deste território, por

meio da História Oral e da memória destes sujeitos, é desvelar esses signos impressos

na alma da comunidade, expressas em ajuda mútua e solidariedade, do nascer ao morrer.

É a presença da parte, o indivíduo, integrada ao todo, a comunidade.

Vale ressaltar que as práticas religiosas da comunidade quilombola do Maracujá

foram evidentemente marcadas por uma série de negociações, trocas e incorporações.

Nesse sentido, ao mesmo tempo em que se pode ver a presença de equivalências e

proximidades entre os cultos africanos e as outras religiões estabelecidas no território,

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também tem outras particularidades que definem várias situações. A religião,

compreendida como componente indissociável da cultura, elemento inerente e espiritual

da manifestação do indivíduo, revelou as individualidades e a coletividade de um povo

marcado por algo em comum; o fenótipo.

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SILVA, Fábio Alex Ferreira da. "Eu vou ali e volto já, daqui a pouco tô no mesmo

lugar”: performances e agências socio rituais no culto aos caboclos em Santo Amaro /

Fábio Alex Ferreira da Silva. – Cachoeira, 2018.Dissertação de mestrado da

Universidade Federal do Recôncavo, Bahia.