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71 Revista Acadêmica Escola Superior do Ministério Público do Ceará Natureza jurídica do matrimônio à luz da dignidade da pessoa humana 1 Francisco Elias da Silva Coelho 2 Márcio José Lima Benício 3 RESUMO O presente trabalho objetiva contribuir com o estudo sobre o casamento, analisando as diversas teorias jurídicas sobre sua natu- reza jurídica e a validade destas à luz o princípio da dignidade da pessoa humana, fundamento do Estado Democrático de Direito. A discussão recai sobre as teorias que tentam explicar o matrimônio tomando por base a autonomia da vontade e a imperatividade das normas as quais se sujeita o casamento. Da análise, restou eviden- ciada a incompatibilidade das ideias tradicionais por pressuporem uma instrumentalização dos cônjuges, entenderem o casamento como finalidade e, portanto, configurarem como verdadeira ofensa a dignidade da pessoa humana. Palavras-chave: Direito de família. Matrimônio. Natureza jurídica. Princípio da dignidade da pessoa humana. 1 INTRODUÇÃO Desde quando Kant universalizou a dignidade, propondo que seu pressuposto suficiente é a condição de ser humano, o Direito a tomou 1 Data de Recebimento: 18/08/2019. Data de Aceite: 20/09/2019. 2 Graduação. Centro Universitário da Grande Fortaleza (UNIGRANDE). Bolsista PROGIC (Programa de iniciação científica da UNIGRANDE). Monitor de Direito Civil II. E-mail: [email protected] 3Mestrado Unifor. Professor no Centro Universitário da Grande Fortaleza (UniGrande). E-mail: mar- ciobení[email protected]

Natureza jurídica do matrimônio à luz da dignidade da ... · reza jurídica e a validade destas à luz o princípio da dignidade da pessoa humana, fundamento do Estado Democrático

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Revista Acadêmica Escola Superior do Ministério Público do Ceará

Natureza jurídica do matrimônio à luz da dignidade da pessoa humana1

Francisco Elias da Silva Coelho2

Márcio José Lima Benício3

RESUMO

O presente trabalho objetiva contribuir com o estudo sobre o

casamento, analisando as diversas teorias jurídicas sobre sua natu-

reza jurídica e a validade destas à luz o princípio da dignidade da

pessoa humana, fundamento do Estado Democrático de Direito. A

discussão recai sobre as teorias que tentam explicar o matrimônio

tomando por base a autonomia da vontade e a imperatividade das

normas as quais se sujeita o casamento. Da análise, restou eviden-

ciada a incompatibilidade das ideias tradicionais por pressuporem

uma instrumentalização dos cônjuges, entenderem o casamento

como finalidade e, portanto, configurarem como verdadeira ofensa

a dignidade da pessoa humana.

Palavras-chave: Direito de família. Matrimônio. Natureza jurídica.

Princípio da dignidade da pessoa humana.

1 INTRODUÇÃO

Desde quando Kant universalizou a dignidade, propondo que seu

pressuposto suficiente é a condição de ser humano, o Direito a tomou

1 Data de Recebimento: 18/08/2019. Data de Aceite: 20/09/2019.2 Graduação. Centro Universitário da Grande Fortaleza (UNIGRANDE). Bolsista PROGIC (Programa de iniciação científica da UNIGRANDE). Monitor de Direito Civil II. E-mail: [email protected] Unifor. Professor no Centro Universitário da Grande Fortaleza (UniGrande). E-mail: mar-ciobení[email protected]

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como norma fundamental, na forma de meta princípio. O princípio

da dignidade da pessoa humana tornou-se a base estruturante de

todo o Direito, pelo que não há nenhum ramo jurídico que fuja de seu

alcance. Esta abrangência, tende, contudo, a sofrer limitações quando

se trata de relações privadas. Isso porque, se é verdade que o Estado

é substancialmente o responsável pela aplicação do Direito, também

é verdade que o exercício de seu poder é reduzido nas relações entre

particulares, o que, historicamente, justifica-se exatamente por ser

esse mesmo Estado o principal agressor dos direitos fundamentais.

É nesse contexto que interessa discutir a natureza jurídica do

casamento, um dos institutos mais antigos e flexíveis do Direito

Privado, que somente pode ser devidamente compreendido se ana-

lisado dentro daquela norma estruturante do Direito: o princípio da

dignidade da pessoa humana.

A natureza jurídica do casamento é um dos temas sobre os quais

a doutrina mais diverge. Provavelmente isso acontece por se tratar de

um conceito jurídico-positivo, o que significa dizer que ele está sujeito

às constantes modificações do tempo e do espaço, da cultura e dos

valores de um povo (DIDIER, 2013). São pelo menos três as teorias que

tentam explicar o que é o casamento: a contratual, a institucionalista

e a mista. O presente estudo tem por objetivo analisar estas teses e

sugerir uma solução fundada no princípio da dignidade da pessoa

humana. Para tanto, vale-se, neste trabalho, principalmente, de um

estudo bibliográfico baseado na doutrina nacional especializada.

Nos capítulos que seguem, faz-se uma crítica às teorias, analisam-

-se os conceitos básicos, como o de contrato, e apontam-se as premis-

sas tomadas pela doutrina, nem sempre de maneira acertada. Após

extrair-se conclusões sobre defeitos e qualidades sobre as diversas

teorias que têm por finalidade a elucidação acerca do assunto, eis que

apresenta-se, de forma atualizada e de acordo com os fundamentos

constitucionais, uma contribuição para a discussão, na forma de uma

possível solução para o problema.

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Revista Acadêmica Escola Superior do Ministério Público do Ceará

2 O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

O princípio da dignidade humana tem sua raiz mais próxima em

Kant (1986, p. 68) quando o filósofo pontuou que o homem existe,

em todas as ações, como fim em si mesmo. Desde então coloca-se

a pessoa como centro e finalidade de todas as ideias. Todo o orde-

namento jurídico é visto como um instrumento à favor de tudo que

possa garantir a dignidade humana. Tal princípio, portanto, informa

que é dever do Estado funcionar para as pessoas, e não o inverso,

já que o ser humano per si constitui finalidade precípua, e não meio

de atividades estatais.

A norma-princípio em questão, consoante Fabio Konder Compa-

rato (2007, p. 236) “resulta também do fato de que, pela sua vontade

racional, só a pessoa vive em condições de autonomia, isto é, como

ser capaz de guiar-se pelas leis que ele próprio edita”. Disso, pode-

-se afirmar que atenta contra o referido princípio toda norma que

toma a pessoa como instrumento ou que desrespeita sua autonomia

como humano.

Somente sustentada nessa premissa é possível compreender

adequadamente a natureza jurídica do matrimônio. A base, portanto,

de qualquer que seja a tese cujo intuito é definir o casamento deve

ser a dignidade da pessoa humana - o que permitirá identificar uma

teoria atual e constitucional.

3 A TEORIA GERAL DOS CONTRATOS

COMO BASE DE DISCUSSÃO

Partem, os autores que tentam explicar a natureza jurídica do

casamento, da ideia de contrato, seja para afirmá-la, seja para negá-

-la. Mister se faz então, antes de se falar das teses matrimoniais,

seja feita uma breve reflexão sobre a própria definição de contrato.

A ideia de pacto é tão antiga quanto a de sociedade. A propósito,

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inegável o quão é amplamente aceita a visão de Rousseau (ROUSSE-

AU, 1762) e Hobbes (HOBBES, 1651) para explicar a própria essência

da sociedade nos termos em que o Direito a conhece. Um instituto

tão antigo, por certo, toma feições distintas ao longo do tempo, ou,

pelo menos, sofre adaptações a fim de atender as mudanças sociais.

Nesse contexto, é possível explicar o contrato considerado conceitos

com alcances mais e menos abrangentes.

Um conceito em uma concepção mais ampla aponta como núcleo

suficiente do contrato o acordo de vontades para produzir efeitos

jurídicos diversos, de modo que, sempre que existir um consenso de

vontades entre duas ou mais partes, estar-se-á diante de um contrato.

Roberto de Ruggiero (RUGGIERO, 1999, p. 299) defende que “para

que se crie um vínculo contratual entre duas ou mais pessoas basta

que a vontades se tenham encontrado, basta que haja consenso,

desde que seja justificado a existência de um fim lícito e protegido”. É

nessa corrente que é desfrutada uma noção mais ampla de contrato,

bem como é identificado o elemento da declaração de vontades que

visa à produção de efeitos jurídicos. Nessa mesma linha de raciocínio,

Clóvis Bevilaqua (BEVILAQUA, 1940, p. 16) defende a tese afirmando

que contrato é “o acordo de vontades para o fim de adquirir, resguar-

dar, modificar e extinguir direitos”.

Um conceito não tão amplo restringe a área de abrangência dos

contratos à seara econômica. Maria Helena Diniz (DINIZ, 2014, p.

31) define contrato como “o acordo entre duas ou mais vontades, na

conformidade da ordem jurídica, destinado a estabelecer uma regu-

lamentação de interesses entre as partes, com o escopo de adquirir,

modificar ou extinguir relações jurídicas de natureza patrimonial”.

É de notar-se a importância do elemento economicidade. Bem

verdade que a principal função dos contratos é fazer circular mer-

cadorias e serviços, mas sem olvidar a principal função do Direito: a

justiça. Na seara contratual, a justiça deve garantir, então, um equilí-

brio entre as partes, tanto na autonomia de suas vontades quanto na

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própria economia posta em questão. Eis a função social do contrato.

Entre as duas correntes, uma que vê a patrimonialidade como

essência do contrato e a outra que entende ser suficiente o elemento

volitivo, talvez outros seguimentos possam surgir a fim de confec-

cionar uma noção de contrato. Contudo, para a discussão objeto

do presente trabalho, o entendimento sobre estas duas é suficiente,

já que, o que a doutrina discute é se o casamento tem ou não uma

feição patrimonial que lhe garanta ou negue a natureza contratual.

4 AS TEORIAS EXPLICATIVAS DA

NATUREZA JURÍDICA DO CASAMENTO

A fim de localizar o casamento dentro de uma classe jurídica já

posta, seja a das convenções seja a das instituições não contratuais,

os autores civilistas atentam-se para dois pontos: o acordo de vontade

dos nubentes e o cunho patrimonial dos contratos.

Desse modo, há quem defenda tratar-se, o matrimônio, de um

pacto, destacando-se o evidente acordo realizado; de outro lado,

negam-se a ver no matrimônio aquilo que, para alguns, é a essência

do contrato: o interesse econômico.

A teoria Contratualista, acolhida pelo código Napoleão, e que flo-

resceu no século XIX, defende que o casamento seja um contrato inter

pars possuindo validade e eficácia que decorrem exclusivamente da

vontade dos nubentes, enquanto ele existir. Ademais, a vontade em

si de cada um dos nubentes, demonstrada através de seus consen-

timentos recíprocos para as cláusulas matrimoniais, seria elemento

essencial e irredutível do matrimônio.

Essa teoria, embasada nos princípios iluministas de autonomia da

vontade individual, se contrapõe ao casamento no Direito Canônico

que, segundo Sílvio de Salvo Venosa (VENOSA, 2005, p. 41), era “um

sacramento e também um contrato natural, decorrente da natureza

humana. Os direitos e deveres que dele derivam estão fixados na

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natureza e não podem ser alterados nem pelas partes nem pela

autoridade, sendo perpétuo e indissolúvel”.

A teoria negocial ainda é defendida por vários autores, a exem-

plo de Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (FARIAS;

ROVENVALD, 2016, p. 180), que veem o divórcio como uma ratifi-

cação da tese:

com o advento da Lei n° 11.441/07, que permitiu a disso-lução consensual do casamento em cartório, através de mero procedimento administrativo, fundado na vontade das partes, supera-se a histórica discussão doutrinária no seio do Direito das Famílias, notadamente quanto à natureza jurídica do casamento. Nesse quadrante a nova sistemática da dissolução, por mútuo consenso, do casamento vem a confirmar o vaticínio da corrente contratualista: de acordo com as concepções filosóficas, legais e sociológicas hoje predominantes, não pode haver mais qualquer dúvida acerca da natureza do casamento, que, de uma vez por todas, se confirma como negocial.

A segunda corrente revela-se uma contraposição à teoria contra-

tual, defendendo a impossibilidade do casamento ser um contrato por

não ser compatível com o interesse patrimonial. Para os defensores

da teoria institucionalista o casamento mais se classifica como uma

instituição social, no sentido que reflete uma situação jurídica cujos

parâmetros se acham preestabelecidos pelo ordenamento, não sendo,

portanto, um mero acordo de vontade. Essa tese possui como uma

das principais defensoras Maria Helena Diniz (DINIZ, 2014), para

quem o conúbio reflete uma situação jurídica cujos parâmetros se

acham preestabelecidos pelo legislador, e que os nubentes têm, por

conta disso, apenas a faculdade de aderí-lo.

A principal crítica à tese institucionalista decorre de sua desconsi-

deração das várias normas não cogentes preestabelecidas no código

civil de 2002 sobre o casamento – que aumentam, desse modo, o

poder de escolha dos nubentes sobre vários assuntos do instituto

sem torná-lo inválido ou até mesmo nulo.

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Revista Acadêmica Escola Superior do Ministério Público do Ceará

Para os críticos, o casamento, no ordenamento brasileiro, é

regulado predominantemente, por normas dispositivas, a exemplo

daquelas que regulam o regime de bens, principalmente no caput do

art. 1.639, do código privado, que informa que é licito aos nubentes,

antes de celebrado o casamento, estipular, quanto aos seus bens, o

que lhes aprouver.

Em resposta as duas teses, uma terceira teoria, conhecida como

eclética - ou mista -, defende que o matrimônio é uma instituição no

conteúdo, mas quanto à formação é um contrato sui generis. Cristiano

Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (FARIAS; ROSENVALD, 2016,

p. 179) ainda informam que esta teoria promove “uma conciliação

entre as teorias antecedentes, passando a considerar o casamento

um ato complexo, impregnado, a um só tempo, por características

contratuais e institucionais”.

Para Wanderlei Barreto e Luciane Onça (BARRETO; ONÇA, 2010,

p. 160) o casamento não pode ser visto como um contrato. Entendem

que embora haja no casamento um acordo de vontades, o contrato,

por sua vez, é instituto situado no direito obrigacional, regido por

preceitos próprios, como a cláusula resolutória tácita, a condição

do contrato não cumprido, a proposta e a aceitação etc. Assim, não

seria admissível a aplicação de referidos preceitos na separação con-

sensual, na reconciliação, no reconhecimento de filhos, na partilha.

Concluem os autores que, todavia, a estipulação sobre o regime de

bens, sim, perfaz um contrato, o que releva o caráter misto da ideia

por eles defendida.

Um dos bastante convincentes argumentos que sustentam esta

tese está relacionado ao fato de o casamento ser regrado por normas

cogentes e não cogentes – o que lhe confere formalismo, mas sem

dirimir a vontade das partes. Washington de Barros Monteiro (MON-

TEIRO, 2003, p. 16), explanando sobre tal utilização das normas no

direito matrimonial, defende que

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a rigorosa disciplina legal que rege o casamento impõe restrições e normas imperativas ou cogentes nos aspectos recomendados pelo interesse geral, sendo que outros há certa autonomia da vontade, facultando-se às partes regular seus interesses com liberdade, como ocorre com a escolha do regime de bens, que somente em casos específicos e determinados pela idade e por condições especiais dos contraentes não pode ser livremente eleito.

Ademais, uma importante norma que advoga em favor do caráter

misto é a liberdade quanto ao direito patrimonial no casamento: está

presente nesta seara os regimes de bens do casamento, que pode ser

de livre escolha, ou não, quando o regime for imposto por lei, por con-

ta da inobservância das causas suspensivas, previstas no art. 1.523

do Código Civil, por exemplo (demonstrando o caráter institucional).

As três teorias não convencem porque giram em torno do fator

patrimonial ou da imperatividade das normas e acabam, assim, des-

considerando o principal elemento que deve balizar o casamento:

ele é um instrumento a favor da dignidade do homem.

5 O CASAMENTO COMO INSTRUMENTO

DA DIGNIDADE HUMANA

O casamento já foi visto como uma finalidade a ser alcançada

pelo homem. Já houve uma época em que a sociedade impôs o ca-

samento como única instituição na qual se reconhecia a família e,

sendo esta o núcleo gerador social, o a matrimônio tomava feição de

objetivo máximo a ser alcançado em prol da garantia e continuidade

da própria sociedade. O casamento não era um instrumento para a

felicidade, mas as pessoas o eram para o casamento. É o princípio

da dignidade da pessoa humana que inverte essa lógica.

O direito à felicidade, ou a busca pela felicidade, revelou o casa-

mento como um meio a favor da dignidade das pessoas, de modo

que, atualmente, o matrimônio é um espaço de realização pessoal

dos cônjuges. Nesse sentido, Isabel Gomes e Maria Paiva (GOMES;

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Revista Acadêmica Escola Superior do Ministério Público do Ceará

PAIVA, 2003, p.9) apontam uma noção de casamento pós-moderno

como um “veículo para o desenvolvimento individual”, destacando-se

a possível criação de um “espaço potencial entre os cônjuges, onde

as potências de cada um possam ser exercitadas, experimentadas e

integradas na vida a dois”.

Não obstante se possa perceber nas teorias tradicionais ricas

discussões cujo mérito é inegável, atualmente é necessária uma con-

templação para além da simples vontade ou da economicidade das

instituições. É preciso enxergar o casamento na ótica da felicidade

e da dignidade das partes, pois este é um valor espiritual e moral

inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodetermi-

nação consciente e responsável da própria vida e que leva consigo

a pretensão ao respeito por parte dos demais.

A realização dos anseios e planos pessoais de cada cônjuge e a

atenção ao bem-estar dos filhos dita o atual paradigma do matri-

mônio. Nesse sentido, vale transcrever o trecho de autoria de Isabel

Gomes e Maria Paiva (GOMES; PAIVA, 2003, p.5):

Como então poderíamos situar o casamento nesse paradig-ma da pós-modernidade? Inicialmente ele deverá ter uma dimensão distanciada do modelo institucional do passado, ou seja, casamento hoje deve estar ligado a uma noção de mutatividade, transformação, flexibilidade em relação ao novo e diferente, constituindo um espaço de desenvolvi-mento interpessoal e criatividade.

Hodiernamente é possível perceber nos diversos institutos do

direito de família interpretações que amparam a dignidade da pessoa

humana e deixam ultrapassada a discussão sobre a natureza contra-

tual do matrimônio. São exemplos: o enlace matrimonial indepen-

dentemente da identificação ou orientação sexual; a possibilidade

de por fim ao casamento quando este não atende mais os objetivos

pessoais dos cônjuges; o poder familiar visto como um direito dos

filhos; dentre outros.

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6 CONCLUSÃO

As teorias que tentam compatibilizar as ideias de contrato e ins-

tituição são as mais adequadas atualmente: erram por insistirem em

localizar o matrimônio fora ou dentro da classe dos contratos, mas

acertam por perceberem que é necessária uma visão que ultrapasse

o viés econômico, sem olvidar que há consequências patrimoniais

no casamento - o que não faz dele um contrato.

Se por um lado matrimônio tem feição de contrato no ato de sua

realização, já que deve haver o consentimento entre os nubentes

para a sua formação, por outro, não se pode atribuir-lhe a índole

patrimonial característica das relações obrigacionais; tampouco é

inegável a regulação do matrimônio tanto por normas formais co-

gentes quanto por supletivas ou dispositivas.

Tratar o casamento como uma simples instituição social, como

querem os defensores da tese que restringe demasiadamente a von-

tades das partes, estar-se-á seguindo na contramão ao cânone da

dignidade da pessoa – pois nesta visão, os nubentes como verdadeiros

fins deste ato cível, são tratados como simples objetos.

O que se propõe é que nenhuma das teorias propostas pela dou-

trina seja tomada como suficiente para explicar o casamento. Isso

porque, apegam-se às formalidades do instituto desconsiderando o

mais importante - sua essência: um instrumento a favor da felici-

dade das pessoas. O casamento pode ser visto como um contrato

ou como uma instituição, o que importa ao final não é se há ou não

acordo de vontades, se há finalidade patrimonial ou mesmo se há

regras pré-estabelecidas, o que verdadeiramente importa é que o

casamento deve ser compreendido como um meio para as pessoas

serem felizes, uma base de formação da família, um meio de garantir

a dignidade do ser humano.

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Revista Acadêmica Escola Superior do Ministério Público do Ceará

NATURE OF MATRIMONY IN THE LIGHT

OF THE DIGNITY OF THE HUMAN PERSON

ABSTRACT

This present work aims to contribute to the discussion about marria-

ge, analyzing the miscellaneous legal theories about their legal nature

and the validity of these theories according to the principle of dignity of

the human person. The discussion of theories that attempt to explain

marriage on the basis of autonomy of will and a requirement of norms

such as those applicable to marriage. From the analysis, the incompa-

tibility of the classes was evidenced by the assumption of an instrumen-

talization of the spouses, the meaning of a journey and, therefore, of the

configuration of a true human age.

Keywords: Family right. Marriage. Legal nature. Principle of the

dignity of the human person.

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