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Nota editorial
O Conselho de Segurança e a libertação de Timor-Leste
António Monteiro
Portugal e o Tratado de Nice
Notas sobre a estratégia negocial portuguesa
Francisco Seixas da Costa
A dupla leitura de Nice
Maria Eduarda Azevedo
Política de Defesa Europeia
António Monteiro Portugal
Post-conflict peacebuilding:
Reflections on the United Nations experience in Guinea-Bissau
Youssef Mahmoud
Episódios da crise na Guiné-Bissau (1998-99)
Manuel Lobo Antunes
Day Trading ou a vida numa Embaixada não alternativa
António Martins da Cruz
RECENSÃO
Os suspeitos do costume
Jorge Roza de Oliveira
SÚMULA DE INTERVENÇÕES
Seminário Diplomático 2001
Intervenções de Jaime Gama e Louis Michel
Índice
04
05
40
71
84
117
114
101
90
77
NegóciosEstrangeirosPublicação do Instituto Diplomático do Ministério dos Negócios Estrangeiros
Conselho Editorial
Membros Natos
Secretário-Geral do Ministério dos Negócios Estrangeiros
Embaixador João Salgueiro
Presidente do Instituto Diplomático
Embaixador José Stichini Vilela
Director-Geral de Política Externa
Embaixador António Santana Carlos
Membros Convidados
André Gonçalves Pereira
João Hall Themido
José César Paulouro das Neves
Pedro Ribeiro de Menezes
António Monteiro
António Martins da Cruz
Vasco Valente
Manuel Tomás Fernandes Pereira
Manuel Côrte-Real
Ana Gomes
José Júlio Pereira Gomes
Director
Nuno Filipe Brito
Director-Adjunto
Francisco Ribeiro de Menezes
Editora
Maria Madalena Requixa
Design Gráfico e Paginação
Risco - Projectistas e Consultores de Design, S.A.
Pré-impressão e Impressão
Grafispaço
Tiragem
2000 exemplares
Preço de capa
1500$00 e7.48
Anotação/ICS
N.º de Depósito Legal
ISSN
1645-1244 Os artigos reflectem apenas a opinião dos seus autores.
NegóciosEstrangeiros . N.º1 Março de 2001
4
“NEGÓCIOS ESTRANGEIROS” é uma publicação semestral que tratará, em primeira
linha, de temas ligados à acção do Ministério a que pertence. Este objectivo deverá
ser aqui referido sem qualquer ambiguidade.
Numa perspectiva mais ampla, a revista estará aberta ao tratamento de questões
de política internacional, embora se atribua prioridade àquelas mais relevantes para
a formulação e execução da política externa portuguesa. Neste contexto, procurará
reservar-se algum espaço para assuntos de história diplomática e para notas de cunho
biográfico ou autobiográfico associadas às áreas referidas.
Pretende-se também que esta nova revista tenha uma componente prática ou
operacional, contribuindo para divulgar acções de interesse público, cujo conheci-
mento fica muitas vezes confinado aos corredores do Palácio das Necessidades. Por
isso mesmo, “Negócios Estrangeiros” não será uma publicação de diplomatas, por
diplomatas e para diplomatas. Ela tentará obter contribuições reflectindo opiniões
políticas diversas, encontrando-se plenamente aberta à participação de empresários,
de académicos e universitários, da imprensa, de organizações não-governamentais e
de outros sectores da sociedade civil directamente interessados na actuação externa
de Portugal.
O ensaísta inglês Walter Bagehot observou que o tédio em matérias de governo
é um bom sinal e até mesmo uma indicação do seu sucesso. “Negócios Estrangeiros”,
uma publicação ligada a uma instituição governamental, ambiciona demonstrar
exactamente o oposto. Alguns dos artigos publicados neste número de lançamento
poderão, certamente, ser lidos como uma boa ilustração desta intenção. O mesmo
poderia dizer-se da ênfase atribuída às questões europeias, no rescaldo de Nice. Mas
caberá naturalmente ao público ajuizar se este desiderato encontra uma tradução
concreta nas páginas da revista.
Uma palavra final para reconhecer o impulso dado pelo Ministro de Estado e
dos Negócios Estrangeiros, Jaime Gama, à concretização de um projecto que, espe-
ramos, venha a ser estimulante e útil.
A Direcção
Editorial
NegóciosEstrangeiros . N.º1 Março de 2001
5
NA TARDE DE 5 de Maio de 1999, os Ministros dos Negócios Estrangeiros de Por-
tugal e da Indonésia e o Secretário-Geral das Nações Unidas assinaram três acordos
nos termos dos quais o povo de Timor votaria, em 8 de Agosto seguinte, contra ou
a favor de um estatuto especial de autonomia para o Território, apresentado pelo
Governo indonésio. Em caso de rejeição, Timor-Leste iniciaria o caminho para a
independência.
Os dois Governos, com relações diplomáticas cortadas por Portugal na sequên-
cia da invasão de Timor-Leste em 7 de Dezembro de 1975, negociavam há muitos
anos, sob a égide do Secretário-Geral da ONU, “uma solução justa, global e inter-
nacionalmente aceitável para a questão de Timor-Leste”1. Mas, como noutros casos
similares, só a remoção do principal obstáculo a qualquer solução diferente da mera
consagração do status quo, isto é, a queda do ditador Suharto, abriu perspectivas reais
para uma solução daquele tipo. Mesmo assim, a rapidez com que se chegou à pos-
sibilidade de um (embora disfarçado) referendo sobre a independência não deixou
de surpreender.Tal só foi possível devido à súbita reviravolta do sucessor de Suharto
nesse sentido2.
Os acordos não significaram o fim das interrogações e receios quanto às ver-
dadeiras intenções de Jacarta. No fim de contas, caíra o “patrão”, mas o regime era
o mesmo, sobretudo no que respeitava ao verdadeiro detentor do poder: as Forças
Armadas. E essas eram as principais responsáveis pelo que se passava em Timor-Leste
* Foi o Representante Permanente de Portugal junto da ONU de 1997 até Fevereiro do corrente ano, tendo por
duas vezes desempenhado as funções de Presidente do Conselho de Segurança.1 A iniciativa de atribuir ao Secretário-Geral um mandato para levar os dois Governos à mesa das negociações foi
tomada por Portugal em 1982, numa tentativa de impedir que a deterioração do voto nas tradicionais Resolu-
ções condenatórias da Indonésia adoptadas pela Assembleia Geral desde a invasão consagrasse a tese da irrever-
sibilidade da ocupação do território. Coube-me nesse ano apresentar na 4.ª Comissão o projecto de resolução
que, depois de (dificilmente) adoptado pela Assembleia Geral, passou a constituir a Resolução 37/30.2 Declaração do Presidente Habibie de 27 de Janeiro de 1999. Até então, as delegações dos dois países negociavam
um amplo estatuto de autonomia para Timor-Leste que deveria vigorar por um período fixo, antes de haver
uma decisão definitiva quanto ao estatuto final do Território. A decisão de Habibie mudou as regras das nego-
ciações ao admitir a possibilidade de uma decisão a curto prazo sobre a questão da independência.
António Monteiro | Embaixador de Portugal em Paris*
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O Conselho de Segurança e a libertação de
Timor-Leste
Introdução
NegóciosEstrangeiros . N.º1 Março de 2001
7desde 1975. Mas a favor dos acordos militavam duas razões decisivas: as eleições
indonésias do mês seguinte, que deveriam abrir o caminho para a democratização
do país; e a oportunidade única, reconhecida também pelos principais dirigentes
timorenses, de facultar ao seu povo o cumprimento de uma promessa adiada da
“revolução dos cravos” em Portugal – decidir o seu próprio destino.
A relutância portuguesa em aceitar a responsabilidade exclusiva da Indonésia
quanto à segurança de Timor-Leste3 só foi vencida depois de o Secretário-Geral pro-
por, no dia anterior à assinatura, um memorandum4 sobre a matéria, que ficou como
apêndice essencial aos acordos. Embora secreto, a existência e o conteúdo do memo-
rando foram conhecidos no próprio dia da assinatura.
Dois dias depois, a 7 de Maio, o Conselho de Segurança adoptou a Resolução
1236, endossando os acordos e autorizando o Secretário-Geral a estabelecer “uma
presença das Nações Unidas em Timor-Leste” com vista à sua aplicação prática5.
Com a adopção daquela Resolução, o Conselho de Segurança reto-
mou um papel activo na questão de Timor-Leste. Fê-lo sem qualquer esforço inova-
dor: limitou-se a seguir as recomendações contidas no relatório que o Secretário-
-Geral lhe submeteu, logo após a conclusão bem sucedida dos seus esforços de me-
diação.
A questão de Timor-Leste “dormia” na agenda do Conselho desde Maio de
1976. O Território fora invadido e ocupado pela Indonésia, interrompendo o
processo de autodeterminação que tantas vezes o próprio Conselho procurara impor
ao regime português anterior a 25 de Abril de 1974. Não só ficara por cumprir a
descolonização, como o poder ocupante manteve, ao longo dos anos, um aparelho
repressivo particularmente violento e uma presença militar desmesurada, ambos
mesmo assim incapazes de dominar a resistência do povo e a guerrilha conduzida
pelas FALINTIL. Face ao desafio permanente que as autoridades indonésias lançaram
aos seus princípios e decisões, o Conselho de Segurança, órgão máximo responsá-
vel pela paz e segurança internacionais no mundo, tinha, por junto, aprovado por
3 Por sua vez elemento sine quo non da abertura de Jacarta, que não queria perder a face no que respeitava à ficção
legal interna de Timor-Leste constituir a 27.ª província do Estado unitário.4 Kofi Annan negociou pessoalmente os termos do memorandum com os Ministros Jaime Gama e Ali Alatas.5 O último parágrafo preambular dessa Resolução “toma nota das preocupações expressas no relatório do Secretário-
-Geral a respeito da situação de segurança em Timor-Leste”.
NegóciosEstrangeiros . N.º1 Março de 2001
6 unanimidade, em Dezembro de 1975, uma Resolução condenatória – na linha de
uma idêntica recomendação adoptada, por iniciativa de Portugal, alguns dias antes,
na Assembleia Geral – e decidido o envio de uma missão a Díli6. Em Abril de 1976
adoptou uma nova Resolução7, só que já não por unanimidade. Contou com doze
votos a favor e as abstenções do Japão e, sobretudo, dos Estados Unidos da América.
Como é sabido, não obstante a letra da Carta das Nações Unidas8, só o voto ne-
gativo de um membro permanente corresponde na prática ao veto. Mas no caso de
Timor-Leste, a abstenção americana simbolizou o “veto” a que a questão ficou sujei-
ta no Conselho nos vinte e três anos seguintes. Não mais fez parte da agenda activa
e, por isso, nunca foi tomada qualquer nova decisão sobre o assunto. Esta atitude não
tinha subjacente qualquer tipo de discriminação. Infelizmente, o caso de Timor-
-Leste está longe de constituir uma excepção. Ainda hoje o Conselho não escapa,
indevidamente, à tentação de não decidir, ignorando ou protelando a consideração
de matérias, embora haja uma nítida melhoria relativamente aos tempos da “Guerra
Fria”. Nessa época, o não decidir era também uma forma de manter o equilíbrio
entre os blocos. Por razões evidentes (basta analisar as questões em causa), em que
sobressaía a de não confrontar o interesse nacional directo dos detentores do pri-
vilégio (anti-democrático) do veto, desde que outro com igual força se lhe não
opusesse.
No caso particular de Timor-Leste, o consenso gradual das potências em torno
da inacção derivou do interesse estratégico de um país com a grandeza da Indonésia.
O regime de Suharto contava com o apoio integral dos Estados Unidos. Como prin-
cipal barreira à expansão do comunismo e parceiro cada vez mais importante de
negócios, foi sempre acarinhado pelos restantes países ocidentais a começar, natu-
ralmente, pelos dois outros membros permanentes: a França e o Reino Unido.
Pequim tinha razões válidas de queixa: a comunidade chinesa timorense fora
um dos alvos principais da repressão javanesa (e está hoje reduzida a uma percen-
tagem mínima da que existiu). Mas não lhe convinha tomar a iniciativa contra um
“aliado” asiático de tão grande envergadura dentro dos não-alinhados. Poderia, no
máximo, seguir na esteira da iniciativa de outros.
6 Resolução 384/75, de 22 de Dezembro. A missão, conhecida pelo apelido do seu chefe, Vittorio Guicciardi, vi-sitou a Indonésia, Timor-Leste e a Austrália, de 15 de Janeiro a 7 de Fevereiro de 1976.
7 Resolução 389/76, de 22 de Abril.8 Art.º 27, n.º3.
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A arte de não decidir
Neste longo “período de silêncio”, Portugal fez por duas vezes parte do Con-
selho de Segurança. A primeira, no biénio 79-80, ou seja apenas três anos depois de
o assunto ter sido por ele discutido. Teria sido possível ou vantajoso reactivá-lo
então? Não creio.
Já acima referi as condições especiais dos anos de “Guerra Fria” e as posições
dos cinco membros permanentes nesta questão. A delegação portuguesa12 com
poucos ou nenhuns apoios podia contar no Conselho. A eventual derrota de uma
iniciativa meramente voluntarista só contribuiria para reforçar a posição indonésia,
alargando o ciclo dos países que “de facto” iam reconhecendo a integração de Timor-
-Leste na Indonésia13.
O assunto foi sempre objecto de ponderação cuidadosa e de estudos, às vezes
secretos, de cenários possíveis. Havia que conciliar a necessidade de manter a
questão viva nas Nações Unidas, sem que fosse posta em causa a qualidade de
potência administrante de Portugal. Com o assunto “adormecido” no Conselho de
Segurança, era na Assembleia Geral que, todos os anos, a aprovação de uma reso-
lução reiterava a condenação da invasão indonésia e recordava o não exercício do
direito à autodeterminação e independência, que Portugal, a potência administran-
te, se obrigara a outorgar a Timor-Leste de acordo com o art.º 73 da Carta. Como já
referi, o número de países que apoiava a Resolução diminuía de ano para ano. Per-
dendo votos na Assembleia Geral, não havia qualquer hipótese de suscitar uma
“batalha” no Conselho com hipóteses de êxito. Fazer ressuscitar a questão da “agen-
da morta” implicava, no mínimo, demonstrar que a situação estaria a pôr em causa
a paz e a segurança, pelo menos regionais. Ora, os países vizinhos constituíam o
primeiro bloco apoiante de Jacarta e o regime de Suharto era visto pelos nossos alia-
dos como o principal estabilizador da região, sobretudo depois do êxito comunista
no Vietname.
eleições do ano passado o Sudão, apesar de endossado pela OUA, perdeu (e bem) a eleição para as Ilhas Maurí-
cias que avançaram para a candidatura fortemente pressionadas pelos Estados Unidos.12 Vasco Futscher Pereira era então o Representante Permanente, tendo sido o primeiro português a presidir ao Con-
selho de Segurança (Leonardo Mathias era o Representante Permanente Adjunto). Dois anos mais tarde, como
Ministro dos Negócios Estrangeiros, assumiu o risco político de convencer o segundo Governo de Pinto Balsemão
a propor na Assembleia Geral a mediação do Secretário-Geral. Fê-lo tendo em conta a recente nomeação para
o cargo de Perez de Cuellar, seu amigo pessoal.13 Só um país reconheceu de jure essa “integração”: a Austrália.
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Finalmente, a União Soviética. Suharto foi, em 1965, o carrasco implacável do
partido comunista indonésio. O seu regime, “vendido ao imperialismo”, não deve-
ria contar com qualquer espécie de simpatia soviética. E não creio que a tivesse, pelo
menos em 1975. Mas o pragmatismo soviético não era inferior ao chinês. A In-
donésia era (é) demasiado importante no mundo em desenvolvimento para poder
eternizar-se como “inimigo a abater”. O Conselho reflectiu, assim, de uma forma
até mais acentuada, a evolução que ocorreu a seguir a 1975 na Assembleia Geral. Nas
votações anuais, cada vez mais países do bloco soviético se foram juntando ao
“bloco abstencionista” até haver uma quase unanimidade nessa posição. Tudo or-
questrado, como era então hábito, pela máquina de Moscovo.
Silenciada a questão de Timor-Leste, a Indonésia pôde mesmo fazer parte do Con-
selho9. Não deveria ser assim. Aquele órgão goza de poderes e competências únicos
no sistema das Nações Unidas. Só as suas decisões podem ser obrigatórias e, em
princípio, só ele deve decidir o recurso à força10. Para que as suas decisões sejam
aceites, é imperativo que não haja dúvidas quanto à legitimidade dos seus membros,
cujas credenciais deveriam ser intocáveis em termos dos princípios das Nações Uni-
das. Caso contrário, a sua credibilidade é discutível.
Não é, no entanto, lamentavelmente, o que tem vindo a acontecer. Países en-
volvidos em contencioso com a própria Organização, por desrespeitarem os seus
princípios, violando nomeadamente direitos humanos elementares, não têm sido
impedidos de tomar assento no Conselho. Poucas vozes se têm levantado contra, a
nível de Governos. O argumento mais frequentemente invocado como justificação é
a necessidade de respeitar os arranjos regionais. É uma estranha forma de alargar o
(já por si suspeito) valor absoluto do conceito de soberania. Os grupos regionais nas
Nações Unidas são o mero resultado de um arranjo organizativo, certamente
necessário, mas as suas decisões não devem obviamente pôr em causa os interesses
e princípios da própria Organização11.
9 A Indonésia foi membro do Conselho de Segurança em 1995/96, isto é, nos dois anos imediatamente anterio-
res à segunda presença portuguesa.10 Art.º 42 e 53 da Carta das Nações Unidas.11 Recentemente, tem-se registado também uma evolução positiva neste campo. Resta saber se duradoura ou mera-
mente associada à firmeza de posição de um grande país, nomeadamente da (hoje) única superpotência. Nas
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Os anos de silêncio e as presenças de Portugal no Conselho de Segurança
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10 tário-Geral e dos Estados-membros que não podia prever; ou arranjar forma de o
aceitar, sem pôr em causa a “legalidade interna”, nem perder a face internacional-
mente. Optou, inteligentemente, por esta segunda solução17.
A segunda presença portuguesa no Conselho, em 1997/98, ocorreu em cir-
cunstâncias totalmente diferentes, no que à questão de Timor-Leste respeita.
Mantinha-se o impasse político das conversações tripartidas. Nada se havia adian-
tado quanto ao ponto essencial: a conciliação entre a procura continuada, do lado
indonésio, de uma fórmula que permitisse o reconhecimento internacional do acto
unilateral de integração e a defesa intransigente, por Portugal, de um acto genuíno
de consulta popular que viabilizasse uma opção livre do povo timorense quanto ao
futuro político do território.
Mas tudo o mais mudara. Os sucessivos Governos portugueses haviam, ao longo
dos anos, encontrado vias diplomáticas de apoio à causa timorense. O debate encon-
trara novas formas de expressão, centrando-se sobretudo em Genebra, em torno dos
direitos humanos e das condições de vida dos timorenses. Alargara-se o apoio das
ONG’s e dos meios académicos. Santa Cruz comovera o mundo e mobilizara activis-
tas. A prisão de Xanana Gusmão transformara-o internacionalmente no símbolo da
opressão do seu povo. A Igreja Católica, simbolizada no Bispo Belo, dava voz à iden-
tidade oprimida dos timorenses. E Ramos Horta, apoiado por outros dirigentes ti-
morenses exilados, tinha ampla audição e era uma figura reconhecida nos meios
internacionais. O Prémio Nobel atribuído às duas personalidades timorenses no
final de 1996 marcara definitivamente o fim dos anos de isolamento.
Poderia ser tomada uma iniciativa no Conselho de Segurança, a exemplo do que
já ocorrera, com bons resultados, na União Europeia? A possibilidade nunca foi
excluída, mas a sua concretização não se tornou necessária. Kofi Annan abriu, entre-
tanto, novos horizontes para o velho mandato de 1982.
O novo Secretário-Geral iniciou funções no mesmo momento em que Portugal
tomou assento no Conselho de Segurança. Logo na primeira conversa que teve co-
17 Esquivando-se a obedecer directamente ao estabelecido na Resolução 37/30, os indonésios mexeram-se no Se-
cretariado para “aceitar” um convite do Secretário-Geral com vista a um diálogo directo com Portugal. Anos
mais tarde repetiram um esquema similar de “disfarce” para concordarem com o referendo sobre a inde-
pendência. Curiosamente, a Resolução de 1982 só foi possível porque havia um novo Representante Perma-
nente indonésio, substituindo o que (debalde) tanto lutara contra a Resolução. Tratava-se de Ali Alatas que,
em Julho de 1983, iniciou o diálogo com o Representante Permanente de Portugal, Rui Medina. Era então
Ministro dos Negócios Estrangeiros Jaime Gama.
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Estava-se também longe, nessa época, de qualquer hipótese de intervenção,
mesmo apenas de carácter político, em prol da defesa dos direitos humanos (em
qualquer parte do mundo). Acrescia que a imprensa e os meios académicos inter-
nacionais, com raras excepções, ignoravam a realidade da política de ocupação
indonésia14. Passariam muitos anos até acontecer Santa Cruz15.
A situação podia resumir-se do seguinte modo: os interesses estavam do lado da
Indonésia, que tinha os membros mais influentes da comunidade internacional
prontos a preservar uma “política utilitarista” de salvaguarda de proventos políticos
e económicos; os princípios, esses estavam do lado de Portugal (e de Timor-Leste),
reconhecido legalmente o primeiro como potência administrante e o segundo “apoia-
do” por resoluções na Assembleia Geral e no Conselho de Segurança condenatórias
da invasão indonésia. Tratava-se de um “equilíbrio estável” que não punha nenhum
ónus à comunidade internacional. Como acontece frequentemente em situações
desse género, o primeiro que tomasse a iniciativa de romper esse equilíbrio podia
ser “punido”. Só isso, aliás, justificava a táctica de Jacarta: ir-se defendendo no voto
de uma resolução anual, procurando entretanto aliciar novos aliados que permitis-
sem, a prazo, fazer cair a questão no esquecimento. E esse era um risco para Portugal
e para Timor. A prazo, mesmo a iniciativa rotineira da Resolução condenatória podia
ser rejeitada. Na votação de 1981, esse risco assumiu uma proporção assinalável16.
Foi extremamente difícil e custoso obter a aprovação, pela 37.ª Assembleia Geral
das Nações Unidas, de um mandato de bons ofícios para o Secretário-Geral. A Re-
solução passou apenas por dois votos. Mas foi uma vitória essencial.
À Indonésia restavam dois caminhos, agora que a plataforma habitual do “equi-
líbrio” anterior desaparecera: recusar o mandato, sujeitando-se a reacções do Secre-
14 José Ramos Horta desenvolvia já um intenso trabalho de sensibilização a que, a nível governamental, quase só
os cinco países africanos de expressão portuguesa e Portugal prestavam inicialmente atenção. Ousando por ve-
zes impor-se onde não era convidado e invocando a qualidade não reconhecida de “representante da FRETILIN”,
foi traçando o caminho nos meios ligados à ONU que o levaria anos mais tarde a compartilhar com o Bispo
Belo o Prémio Nobel que consagrou universalmente a resistência do povo mártir de Timor-Leste.15 O massacre de Santa Cruz ocorreu em Novembro de 1991. Uma câmara testemunhou a barbárie da repressão
indonésia num cemitério de Díli. O vídeo correu mundo, “internacionalizando” definitivamente a questão.
Curiosamente, pouco mais de um ano depois, o Conselho de Segurança lançou a primeira intervenção da sua
história por razões puramente humanitárias, na Somália. Embora os resultados tenham sido catastróficos, ficou
aberta nova via para o futuro.16 A Resolução desse ano foi aprovada pela 36.ª Assembleia Geral da ONU com menos catorze votos a favor. A man-
ter-se a tendência a Resolução do ano seguinte não passaria. Daí que, de imediato, Portugal e os represen-
tantes timorenses, no exterior, começassem a encarar cenários alternativos.
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duziu aos acordos de Nova Iorque, o Conselho retomou assim, menos de quatro
meses depois da nossa saída, as deliberações sobre uma questão que silenciara vinte
e três anos antes.
A Resolução aprovada em 7 de Maio (1236/99) acolheu a intenção do Secre-
tário-Geral: estabelecer, tão breve quanto possível, “uma presença das Nações Unidas
em Timor-Leste”, destacando dois objectivos para o seu mandato – organizar a futu-
ra consulta popular, marcada para 8 de Agosto seguinte, e disponibilizar um certo
número de polícias internacionais para ajudarem os indonésios a cumprirem os
acordos, nomeadamente no que respeitava ao acto eleitoral.
A linguagem do texto adoptado, cuidadosamente calibrada, reflectiu uma preo-
cupação imediata dos membros do Conselho: não ferir as susceptibilidades indo-
nésias, evitando introduzir um elemento controverso na campanha eleitoral, então
já em marcha na Indonésia, com vista à realização das primeiras eleições democráti-
cas que o país iria realizar em 7 de Junho.
Na realidade, o processo de democratização da Indonésia constituía a priori-
dade para a grande maioria dos membros do Conselho de Segurança. Os acordos de
5 de Maio foram vistos como um passo positivo nessa via, e, por isso, creditados a
favor de Jacarta.
Não pôr em causa a “soberania” indonésia tornou-se uma constante nas toma-
das de posição do Conselho de Segurança, mesmo se Portugal nunca deixou de lem-
brar que, para as Nações Unidas,Timor-Leste se mantinha, legalmente, um Território
Não-Autónomo sob a nossa administração. A realpolitik do Conselho era, porém,
outra. A abertura democrática de Habibie facilitara a solução da questão e não havia
que questionar a “boa fé” indonésia na condução do processo, embora com a assis-
tência internacional que garantisse a imparcialidade e validade da consulta eleitoral.
Restava contudo a questão da segurança. As primeiras reacções aos acordos da
parte dos partidários integracionistas em Timor-Leste foram preocupantes. Genera-
lizavam-se os actos de violência e tornavam-se cada dia mais óbvias as ligações entre
os militares e paramilitares indonésios e as chamadas milícias timorenses. A cam-
panha de terror intensificara-se, de facto, desde os inícios de Abril.
Não era também possível ignorar a fragilidade do Presidente Habibie e a ausên-
cia de garantias quanto ao efectivo controlo das forças armadas indonésias pelo
poder central.
Por tudo isto, havia clara consciência de que a mera presença de uma força
internacional de polícia não correspondia às necessidades da situação vigente no
NegóciosEstrangeiros . N.º1 Março de 2001
13migo, afirmou convictamente a vontade de obter progressos nas conversações, no
estrito respeito dos princípios das Nações Unidas. Propunha-se, como primeiro
passo, nomear um “Enviado Especial” exclusivamente dedicado à questão18.
A serem aceites pelos indonésios as ideias, ainda que preliminares, de Kofi
Annan, não só se poderia antever, finalmente, algum progresso de ordem política,
como ficaria à partida garantida a abertura ao exterior do Território, como nunca
acontecera. Haveria assim, a curto prazo, a possibilidade de se concretizarem me-
lhorias nas condições de vida dos timorenses.
Creio que o enquadramento internacional da questão de Timor-Leste, que atrás
aflorei, não deixava a Jacarta grande margem de escolha. Acresce que, internamente,
o regime de Suharto começara a desmoronar-se, revelando uma total incapacidade
para responder à crise económica que assolava não só o país como toda a região.
Foi assim que se iniciaram as negociações com vista à elaboração de um estatu-
to de autonomia substancial para Timor-Leste, concordando os dois países que tal se
processaria sem prejuízo da definição do estatuto final do Território, a resolver pos-
teriormente19.
Estando o assunto finalmente encaminhado, de uma forma activa, no âmbito da
Resolução da Assembleia Geral, não faria sentido procurar levá-lo ao Conselho de
Segurança, a menos que surgisse uma crise. Nem tal seria possível sem o aval do
mediador, que, logicamente, defenderia a sequência lógica do road map por ele
próprio traçado. Era também óbvia a posição mais confortável de Portugal e dos
dirigentes timorenses (que foram sempre associados às negociações, embora não
tendo directamente lugar à mesa). Ao aceitar o formato, Jacarta não só abria mão do
dogma do Estado unitário, como reconhecia que Timor-Leste era uma entidade dis-
tinta do resto do país.
Portugal abandonou o Conselho de Segurança no final de 1998, o
que coincidiu praticamente com a decisão do Presidente Habibie de facilitar uma
consulta popular sobre a autodeterminação de Timor-Leste. Aberta a porta que con-
18 A escolha recaiu habilmente sobre um antigo Representante do Paquistão, Jamsheed Marker, Embaixador com
grande prestígio na ONU que, na reforma, lecciona numa Universidade da Florida.19 Foram designados altos funcionários dos dois Ministérios dos Negócios Estrangeiros para chefiar as delegações
às conversações tripartidas, presididas pelo Representante do Secretário-Geral. Do lado português, a tarefa
coube a Fernando Neves, actualmente Embaixador em Angola. Kofi Annan convocaria, como o fez, quando
necessário, encontros com os dois Ministros dos Negócios Estrangeiros, por ele presididos.
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A rotina das decisões
Procurámos sempre que o Departamento de Operações de Paz mostrasse inte-
resse pela questão, adoptando, no mínimo, uma atitude preventiva de intervenção.
E, por vezes, só não tornámos essa posição mais clara, para não parecer desautorizar
a (excelente) equipa que no DPA comandou a operação. À frente dela foi colocado
Francesc Vendrell23, certamente o funcionário do Secretariado que melhor conhecia
e mais apoio dera, ao longo dos anos, à busca de uma solução justa para o proble-
ma de Timor-Leste.
O Conselho de Segurança iniciou a discussão do relatório do Secretário-Geral,
em consultas informais, a 26 de Maio. No final desse primeiro debate, o Presidente
fez uma declaração à imprensa, apoiando o estabelecimento da UNAMET e anun-
ciando estar a ser preparado um projecto de resolução para lhe dar corpo. Expressou
ainda “profunda preocupação pela situação de segurança tal como descrita no rela-
tório do Secretário-Geral”.
A Indonésia acusou o toque. No dia seguinte, o seu Representante Permanente
enviou uma carta ao Presidente do Conselho, contestando os termos do relatório. Era
o primeiro indício de uma tentativa de manipulação dos factos, certamente ditada
pela ala militar do regime, que se iria agudizar durante o Verão e, sobretudo, depois
do acto eleitoral indonésio, cujo resultado fragilizou ainda mais a posição do
Presidente indonésio.
A constituição da UNAMET foi formalmente aprovada pelo Conselho a 11 de
Junho (Resolução 1246/99), numa sessão formal sem intervenções24, com o claro
intuito de evitar o pedido de participação de não-membros do Conselho num debate
aberto25.
Uma breve cronologia da actividade posterior do Conselho de Segurança é re-
veladora do modo como conduziu o assunto:
16 de Junho – Consultas informais, após briefing do Embaixador Jamsheed Marker.
Apesar de “notar com preocupação” o clima de insegurança descrito pelo Repre-
23 Actual Representante Especial do Secretário-Geral para o Afeganistão, onde continua a demonstrar as suas notá-
veis qualidades.24 O Brasil, então membro do Conselho, expressou entretanto, a nosso pedido, a vantagem de promover até ao final
do mês um debate aberto à participação de todos os Estados-membros. A Austrália e a Nova Zelândia apoiaram
também esta posição que o Conselho ignorou.25 Não podendo intervir no debate, a Missão de Portugal circulou no mesmo dia um comunicado à imprensa em
que o Governo português explicitava a sua visão do modo como se deveria desenrolar o processo democráti-
co de consulta para que as eleições pudessem ser consideradas livres e justas. As preocupações de segurança
aparecem logo em primeiro lugar (“Press Release – East Timor – Security Council Resolution Establishing UNAMET”) –
Nova Iorque, 11 de Junho de 1999.
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Território e, muito menos, ao previsível agravamento das acções de intimidação por
parte dos se opunham à mudança.
A 22 de Maio, o Secretário-Geral publicou o relatório propondo o estabeleci-
mento da UNAMET20, na sequência do envio de uma missão de averiguação das
Nações Unidas a Timor-Leste.
A situação de segurança era nele descrita em termos particularmente críticos
para as autoridades indonésias e as milícias (“a situação em Timor-Leste mantém-se
extremamente tensa e volátil”). Em consequência, Kofi Annan, de uma forma dis-
creta, propunha, além do contingente de polícia civil, o envio de um certo número
de observadores militares (military liaison officers) para manter contacto com os seus
contrapartes indonésios,“ dado o papel importante que as forças armadas indonésias
desempenham em Timor-Leste”.
Não tenho dúvida de que o Secretário-Geral, tal como o Governo português,
teria preferido obter autorização indonésia para a colocação imediata de uma força
internacional no Território. Jacarta recusou essa possibilidade. Daí a fórmula encon-
trada por Kofi Annan que, no fundo, indicava a consciência da necessidade de uma
verdadeira operação de paz. Foi o modo mais expedito da obter o apoio do Con-
selho, conciliando os imperativos de segurança com as susceptibilidades indonésias
(e dos seus apoiantes), quanto à questão da soberania21.
O carácter híbrido da UNAMET provocou também alguma fricção no próprio
Secretariado das Nações Unidas. O mandato definido no Conselho colocou a ope-
ração na dependência do Departamento dos Assuntos Políticos (DPA). Mas a enorme
(e crescente) importância dos aspectos ligados à segurança do Território e da
própria Missão aconselhava, pelo menos, um acompanhamento contínuo e atento
por parte do Departamento das Operações de Paz (DPKO). A cooperação entre os
dois departamentos esteve, desde o início, longe de ser a ideal, pondo em evidência
o desacerto da decisão de criar essa divisão de poderes no Secretariado22.
20 UNAMET, “United Nations Mission in East Timor”, proposta pelo Secretário-Geral no parágrafo 4 de relatório de 22 de
Maio (S/1999/595). O parágrafo 5 previa três condições iniciais para o sucesso do mandato da missão: con-
fiança e apoio do Conselho de Segurança; total cooperação das autoridades indonésias; e disponibilização
dos recursos necessários. Ian Martin foi designado chefe da Missão.21 James Traub num artigo publicado na Foreign Affairs, volume 79, n.º4, observa correctamente que “embora ne-
nhum país, excepto a Austrália, tivesse reconhecido a legitimidade da anexação de Timor-Leste pela Indonésia,
o Conselho de Segurança das Nações Unidas tratou sempre a questão como um problema interno indonésio”.22 Os dois Departamentos foram estabelecidos separadamente em 1996, gerando-se a convicção de que as verda-
deiras razões que motivaram essa decisão residem na forma como as respectivas chefias foram atribuídas: o
DPA ao Reino Unido e o DPKO à França.
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17sentante Especial, o Presidente do Conselho, em declaração à imprensa, manifesta o
seu agrado pela “boa cooperação de todas as partes” e apoia as “medidas tomadas
pela Indonésia para garantir uma situação de segurança estável”. É, no entanto, pela
primeira vez, levantada no Conselho a hipótese do adiamento do início do recensea-
mento eleitoral (embora não mencionada na declaração à imprensa).
22 de Junho – Novo relatório do Secretário-Geral. Agrava-se o clima de intimidação
em Timor-Leste: “Em muitas áreas, milícias pró-integração, segundo muitos obser-
vadores actuando com o apoio de elementos do exército, praticam actos de violên-
cia…”. Em consequência, Kofi Annan entende não poder certificar, como requerido
pelos acordos, a existência de condições de segurança para o início do recensea-
mento, adiando a sua decisão para daí a três semanas. Inevitavelmente, a data da con-
sulta eleitoral teria também de ser adiada.
28 de Junho – Consultas informais, no termo das quais o Presidente do Conselho in-
forma ter chamado o Embaixador indonésio, que lhe referiu “melhorias da situação”.
29 de Junho – Prosseguimento das consultas no Conselho de Segurança, com uma
extensa declaração à imprensa do seu Presidente, arduamente negociada. Portugal e
Indonésia desenvolvem intenso trabalho de corredores, naturalmente de sentido
contrário. O texto acaba por conter uma referência directa ao ataque ocorrido nessa
manhã contra o escritório da UNAMET, em Maliana. Mas a declaração está longe do
tom duro usado, na manhã desse mesmo dia, pelo porta-voz do Secretário-Geral e
do que Portugal pretendia. Acentua-se, no Conselho, uma tendência para diluir as
responsabilidades dos indonésios e das milícias, com referência a “todas as partes”
e a (pequenos) incidentes ocorridos com as FALINTIL.
6 de Julho – De novo consultas informais em que o representante do DPA relata o
ataque gravíssimo registado em Liquiçá. É impossível evitar a clara responsabiliza-
ção das milícias pela situação no território. Em mais uma declaração à imprensa, o
Presidente do Conselho “deplora” o ocorrido e “exige” uma imediata cessação das
práticas intimidatórias e violentas das milícias. Recorda ainda as responsabilidades
(exclusivas) indonésias no que respeita à manutenção da paz e da segurança em
Timor-Leste e anuncia que vai chamar de novo o Representante Permanente indoné-
sio. Nesse mesmo dia, Kofi Annan envia uma carta ao Conselho, informando sobre
a composição da componente de observação militar para Timor-Leste26.
26 É significativo o tempo que este assunto levou. Mantivemos intensos contactos com o DPKO e o DPA e pudemos
constatar os impasses burocráticos e os jogos de poder e influência, mesmo em matéria que não configurava
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16 10 de Julho – Como se tinha tornado inevitável, o Secretário-Geral comunica ao
Presidente do Conselho o adiamento do início do recenseamento para o dia 16 e,
portanto, do calendário eleitoral previsto nos Acordos. As responsabilidades in-
donésias neste atraso não podem ser mais claras.
13 de Julho – As consultas informais do Conselho confirmam a necessidade de
maior pressão sobre Jacarta. Mesmo os mais “tenazes” apoiantes da Indonésia, como
o Barhain e a Malásia, baixam o tom dos argumentos. A habitual declaração à
imprensa que se segue é, contudo, um texto fraco, face à gravidade dos aconteci-
mentos: “A situação em todo o Timor-Leste mantém-se séria. Em particular (os
membros do Conselho) exprimem preocupação pelo facto dos recentes incidentes
em Maliana,Viqueque e Liquiçá terem ilustrado um problema mais amplo da activi-
dade das milícias” (“the incidents…had highlighted a larger problem of militia activity”).
No mesmo dia, é circulada uma carta do MNE indonésio Ali Alatas expondo a
sua versão dos incidentes, para contrabalançar “relatórios que nem sempre seguem
regras estritas de objectividade e imparcialidade”…
14 de Julho – Kofi Annan, numa clara demonstração de capacidade de decisão,
informa, por carta, o Conselho de que o recenseamento terá início a 16, mas que
não pode certificar a existência de condições de segurança para a realização de um
acto eleitoral pacífico. Afirma-se determinado a seguir em frente, não se deixando
intimidar pelo clima de terror.
A posição do Secretário-Geral é imediatamente contrariada por uma carta do
Embaixador Wibisono27 que a considera “um retrato desequilibrado” da situação,
rejeitando a noção de “impunidade” com que é caracterizada a actuação violenta
dos pró-autonomistas.
16 de Julho – Perante este quadro, o Conselho de Segurança volta a discutir infor-
malmente o assunto, ouvindo mais uma vez o RESGNU Marker. O debate foi aceso,
crescendo as críticas a Jacarta, mas também aumentando as vozes que pedem à
UNTAET para “actuar com imparcialidade”, endossando assim as teses defensivas
indonésias. No final da reunião, o Presidente efectuou mais uma (seca) declaração
ainda uma operação de paz. Daí a necessidade de mudança, que veio agora à luz do dia, graças às recomen-
dações do chamado “Relatório Brahimi”.27 Então Representante Permanente da Indonésia com quem mantive sempre um relacionamento pessoal que ultra-
passou as sérias divergências das posições que defendemos. É agora Vice-Ministro para Assuntos Económicos
no Ministério dos Negócios Estrangeiros, em Jacarta.
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18 A UNAMET foi sempre teoricamente apoiada pelo Conselho, que endossou, em
geral, as recomendações do Secretariado. Mas, na prática, a solicitação de Kofi Annan
de “full confidence and backing”, ficou aquém do exigível. O Conselho dividiu-se, não
ousou repudiar com energia as acusações indonésias de “falta de imparcialidade” ou
“menor objectividade” do Secretariado, procurando essencialmente acomodar os
pontos de vista de Jacarta, mesmo contra a evidência dos factos. Os poucos assomos
de firmeza foram descompensados pelas posições assumidas por alguns dos seus
membros, de que apenas nos chegaram ecos, dado os debates terem sido sempre
conduzidos à porta fechada. Os contactos diários que mantivemos com os quinze
países membros30 reforçaram a noção da cautela com que o Conselho se moveu para
não ferir o que entendia serem interesses indonésios. Claro que as posições não
foram uniformes e que, felizmente, a maioria dos países membros procurou pôr
alguma pressão sobre Jacarta. Mas foram neutralizados pela militância dos poucos
que assumiram a tarefa de encobrir as responsabilidades indonésias na gestação e
incitamento do clima de violência e intimidação, visando influenciar o acto eleitoral.
Em suma, o Conselho agiu:
a) De uma forma pouco transparente, privilegiando as consultas informais e fazen-
do ouvidos de mercador às solicitações de debates públicos;
b) Dentro de uma visão acentuadamente conservadora da utilização dos meios de
intervenção de que dispõe. As resoluções aprovadas limitaram-se a transcrever (para
menos) as recomendações do Secretário-Geral. O meio privilegiado de acção foram
as declarações à imprensa, o menor dos instrumentos ao seu alcance (nem sequer
recorreu à “declaração presidencial”31). Mesmo essas ficaram sempre muito aquém
das afirmações públicas do Secretário-Geral, do conteúdo dos seus relatórios e até
das posições expressas pelos seus porta-vozes;
c) E sem qualquer iniciativa inovadora que alertasse os responsáveis indonésios pela
violência para as consequências das suas acções. Houve chamadas de atenção, mas
sempre cuidadosamente formuladas por forma a evitar reacções negativas, sobretu-
do da parte de altas patentes militares indonésias, a nível nacional ou local. A preo-
30 A composição do Conselho de Segurança era a seguinte: Estados Unidos, Federação Russa, China, Reino Unido
e França, membros permanentes; Holanda, Canadá, Estónia, Brasil, Argentina, Gabão, Gâmbia, Namíbia, Bahrain
e Malásia, membros eleitos.31 A declaração presidencial é um texto formal lido em sessão pública. Tem de ser acordado por unanimidade. Isso
talvez justifique a ausência da sua utilização.
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à imprensa que se limita a saudar a decisão do Secretário-Geral de dar início ao
recenseamento eleitoral, “dada a necessidade de manter o momentum” (“…the need to
maintain momentum”).
26 e 28 de Julho – Cartas do Secretário-Geral ao Conselho de Segurança. A primeira
reconhece o sucesso dos primeiros dez dias de recenseamento, que atribui “em
parte, à melhor cooperação agora demonstrada pelas autoridades indonésias”. Mas
afirma também, sem equívocos, que, no todo, “as condições de segurança se man-
têm ainda inadequadas”.
A segunda carta dá conta da sua decisão de adiar a consulta eleitoral para o dia
30 de Agosto. Nela anuncia igualmente que, em conformidade com os Acordos, as
Nações Unidas permaneceriam em Timor-Leste após a consulta e que o planeamen-
to dessa presença constituiria o principal tópico do último encontro tripartido de
altos funcionários28.
A leitura conjugada destas duas cartas evidencia a intenção do Secretário-Geral
de, tal como preconizado por Portugal, começar a preparar o período pós-eleitoral,
procurando também introduzir mais um elemento dissuasor da violência que mar-
cava a actuação das milícias e dos seus mentores indonésios.
30 de Julho – As consultas informais do Conselho dão luz verde às recomendações
de Kofi Annan. Certos membros ecoam as preocupações expressas pelo Secretário-
-Geral em relação à segurança geral do Território. Outros solicitam que o Secretariado
apresente um plano de actuação para o período pós-consulta popular.
3 de Agosto – O Conselho de Segurança adopta a Resolução 1257/99 que prolon-
ga o mandato da UNTAET por um mês, até 30 de Setembro.
Creio que esta listagem é reveladora da atitude do Conselho de Segurança. Cor-
responde ela à primeira das três condições mencionadas pelo Secretário-Geral em
Maio29 como base do sucesso da operação? Penso que a resposta, a exemplo do
comportamento do próprio Conselho, terá de situar-se num bem português “assim-
-assim”.
28 Estes encontros mantiveram-se, sem alteração, mesmo depois de concluído o processo negocial. Neles o Governo
português, representado sempre por Fernando Neves, procurou encontrar com os indonésios formas práticas
de assegurar uma transição pacífica e uma adequada execução dos Acordos. A nível de Nova Iorque, mantive-
mos também encontros semanais com o mesmo objectivo, a nível de Representantes Permanentes, com o
Secretariado chefiado por Francesc Vendrell.29 Vide 20.
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resultados da votação. Certamente na sequência das consultas que efectuou, Kofi
Annan teve de declinar a proposta alguns dias depois.
As razões que motivaram a iniciativa do Ministro português deram, contudo,
algum fruto. O Secretariado passou a encarar seriamente a delicadeza do momento
do anúncio do resultado e o próprio Secretário-Geral tomou logo a iniciativa (de-
pois não concretizada) de enviar nessa data o seu Representante Especial a Díli.
Restava saber se poderíamos convencer o Conselho de Segurança a partilhar os mes-
mos sentimentos.
O dia 23 – uma semana antes do acto eleitoral – foi crucial. Tomámos conhe-
cimento, através do Secretariado, do teor de uma carta da Comissão Eleitoral da
UNAMET endereçada a Ian Martin, indicando que não estavam criadas as condições
para a prevista realização de consulta popular, em virtude de a Indonésia não ter sido
capaz de pôr em prática os requisitos para ela requeridos. Dever-se-ia ou não seguir
em frente? Nos termos do acordo tripartido, a responsabilidade quanto à determi-
nação da existência de condições para a realização da consulta e a validação dos seus
resultados recaía exclusivamente sobre as Nações Unidas e o próprio Secretário-Geral.
Kofi Annan enviou no dia seguinte ao Conselho o Secretário-Geral-Adjunto para
os Assuntos Políticos, Kieran Prendergast. No formato habitual de consultas infor-
mais, Prendergast apresentou um relatório oral, destacando alguns aspectos posi-
tivos no campo político, como o sucesso do recenseamento ou os encontros de re-
conciliação entre timorenses32. O ponto saliente da sua intervenção foi, contudo, o
quadro negativo a nível de segurança. Nesse contexto, referiu a carta da Comissão
Eleitoral (cujo texto, porém, não foi distribuído) e a preocupação com o facto de a
Indonésia não estar a cumprir as suas obrigações, permitindo um clima generaliza-
do de “violência e impunidade”.
A hipótese do adiamento de consulta foi discutida, mas posta de parte por todos
os membros do Conselho: o processo estava adiantado demais para ser reversível.
Por isso, no final, a tradicional declaração à imprensa do Presidente deu luz verde
ao Secretário-Geral para realizar a consulta na data prevista.
O Conselho não agiu isoladamente. O Secretariado, o Governo português, os
líderes timorenses (incluindo Xanana Gusmão) e o Core Group de apoio a Timor-
32 Estes encontros foram activamente promovidos por Xanana Gusmão, que continuava detido em Jacarta, mas cuja
influência moderadora crescia progressivamente.
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cupação constante de equilíbrio levou-o frequentemente a (quase) equiparar as
actividades dos grupos pró-autonomia e pró-independência, sem olhar ao risco de
contradizer ou ignorar os pontos de vista do Secretariado das Nações Unidas, tanto
em Nova Iorque como em Díli.
Não se tratou de uma atitude discriminatória em relação a Timor-Leste. A ver-
dade é que, no cômputo geral, o Conselho agiu como é seu hábito em situações
similares, quando está envolvido um membro das Nações Unidas com um certo
poder e não estão em jogo interesses directos dos cinco membros permanentes: de
forma rotineira, sem capacidade analítica e procurando refúgio (selectivo) na “li-
derança” do Secretário-Geral.
Na primeira metade de Agosto,
o objecto principal de discussão no Conselho foi a presença das Nações Unidas na
fase posterior à consulta. Mas, os seus membros não podiam fugir à seriedade das
informações que chegavam, de vários quadrantes, sobre o agravamento da situação
de segurança no território.
O recenseamento eleitoral terminara com êxito, mas, em contrapartida, multi-
plicavam-se os sinais dos grupos pró-autonomia de que não aceitariam um resulta-
do contrário aos seus desígnios. Era, também, cada vez mais óbvia a cobertura de
que beneficiavam por parte das autoridades locais indonésias.
A discussão de um novo projecto de resolução sobre o período pós-eleitoral
voltou a relançar a polémica sobre a imparcialidade da UNAMET. Esta atitude de
alguns membros do Conselho intensificou as preocupações do Governo português.
Delas demos conta a vários níveis, em Nova Iorque e nos trabalhos preparatórios dos
encontros de altos funcionários, tanto ao Secretariado como à própria Indonésia.
Portugal não desejava um novo adiamento da data da consulta, mas a campanha de
violência desencadeada pelas milícias punha em risco a campanha eleitoral e a pró-
pria votação. Exigíamos medidas efectivas de controlo da actuação das TNI e das auto-
denominadas milícias por parte do Governo de Jacarta. Mesmo que o acto eleitoral
decorresse de forma aceitável, temíamos as reacções subjacentes, dado não termos
dúvidas (nem o Secretariado das Nações Unidas) quanto ao seu resultado.
Neste contexto, o Ministro dos Negócios Estrangeiros português, Jaime Gama,
enviou uma carta ao Secretário-Geral, no dia 18, sugerindo a deslocação a Timor-
-Leste dos três signatários dos acordos de 5 de Maio quando fossem anunciados os
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O sobressalto e a oportunidade perdida da prevenção
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22 tude mais firme relativamente à falta de resposta indonésia aos sucessivos apelos que
lhe eram dirigidos. Além do mais, o clima de intimidação e de insegurança estendia-
-se agora ao próprio pessoal da UNAMET. Em consequência, quebrando um acordo
tácito que vigorava desde a assinatura dos acordos35, a delegação portuguesa pediu
para intervir na sessão formal do Conselho que aprovaria a nova Resolução sobre
Timor-Leste. A reacção inicial dos seus membros foi negativa, incluindo a dos nos-
sos principais aliados. Insistimos, defendendo a necessidade de confrontar os indo-
nésios com a expressão pública da preocupação da comunidade internacional face à
incapacidade de cumprirem as suas obrigações.
Com o apoio do Secretariado, obtivemos ganho de causa36. Ainda no mesmo
dia, e na ausência do Secretário-Geral, avistei-me com a Vice-Secretária-Geral, Louise
Fréchette, e com o Secretário-Geral-Adjunto Prendergast. A mensagem era simples:
tornara-se essencial um esforço suplementar indonésio para melhorar de forma
efectiva, no terreno, as condições de segurança. Importava, por isso, que as Nações
Unidas indicassem claramente a Jacarta que ainda não estava feita a avaliação final
sobre a existência ou não de condições para a realização da consulta. A posição nesta
matéria deveria manter-se em aberto até ao início da realização do acto eleitoral37.
O objectivo, esse, era duplo: vincar ao mais alto nível, no Secretariado, o ponto
de vista português e poder confrontar o Conselho de Segurança com a nossa posição
e a reacção (que sabia iria ser positiva) do Secretariado. Para isso, solicitei um
encontro, logo a seguir, com o Presidente do Conselho. Dei-lhe conta da decisão que
o Secretariado me comunicara de manter a situação em avaliação permanente até ao
momento da realização da consulta, indo assim ao encontro do desejo português. E
pedi que deixasse em aberto a possibilidade de convocar de urgência o Conselho,
caso a situação no terreno justificasse uma pronta reacção da comunidade interna-
cional. No fundo, deixei subentendida a eventualidade do pedido de uma interven-
35 As sucessivas Resoluções foram sempre adoptadas como textos presidenciais, uma forma de manifestar a unani-
midade do Conselho, dispensando intervenções justificativas das posições adoptadas pelos países membros.
Na prática, aquele órgão procurava evitar manifestações públicas de desacordo que afectassem a marcha do
processo eleitoral, mantendo também Portugal e a Indonésia em silêncio nas suas sessões formais.36 Além de Portugal e da Indonésia, intervieram ainda a Austrália, a Nova Zelândia, a Coreia e a Presidência da
União Europeia (Finlândia). Os membros do Conselho limitaram-se a adoptar por unanimidade a Resolução
1262/99.37 A posição oficial da ONU era a de que seria Ian Martin até ao último momento a decidir se havia ou não con-
dições para realizar a votação.
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-Leste33 manifestaram-se, com mais ou menos reservas, a favor dessa decisão, instan-
do Jacarta a tomar medidas. Ninguém esquecia, porém, o alerta lançado pela Comis-
são Eleitoral e os perigos que rodeavam a realização da consulta e o período subse-
quente.
Essa chamada de atenção facilitou a conclusão das negociações sobre o projecto
de resolução, redigido pela delegação britânica,34 relativo à fase posterior à consulta.
Mas não foi suficiente para alterar a situação no terreno. Nos dois dias ante-
riores à adopção formal do projecto de resolução os incidentes intensificaram-se,
tornando ainda mais clara a conivência entre as forças militares e de segurança
indonésias e as milícias pró-integração. A inquietação portuguesa era partilhada por
muitas outras delegações, com destaque para a australiana. Washington admitiu tam-
bém não excluir a possibilidade de a violência se tornar incontrolável, diligencian-
do em Jacarta para chamar as autoridades indonésias à razão.
O Conselho de Segurança voltou a reunir em consultas informais (dia 26),
ouvindo novo relato sombrio do Secretário-Geral-Adjunto Prendergast. Na linha da
proposta portuguesa avançada uns dias antes, sugeriu o envio de uma missão de
observadores do Conselho a Timor-Leste. Não chegaria a tempo do voto, mas pode-
ria estar no terreno aquando do anúncio dos resultados e constituiria uma fonte
objectiva de informação sobre a situação de segurança.
O Conselho adiou a decisão sobre este ponto, insistindo no procedimento ha-
bitual: uma declaração à imprensa, mais forte do que a anterior; a convocação do
Embaixador indonésio para lhe serem comunicadas as preocupações do Conselho; e
a reiteração do apoio à realização da consulta popular no dia previsto. O porta-voz
do Secretário-Geral foi mais longe na condenação dos incidentes e na exigência da
adopção de medidas imediatas por parte das autoridades indonésias…
A consciência do perigo da deterioração da situação em Timor-Leste levou
Portugal a procurar novas formas de motivar o Conselho de Segurança para uma ati-
33 Grupo consultivo constituído pelo Secretariado para o aconselhar na condução da operação e constituído pelos
países mais directamente interessados em Timor-Leste (com exclusão dos signatários dos acordos): Estados
Unidos, Reino Unido, Japão, Austrália, Nova Zelândia e Coreia.34 Os ingleses são os iniciadores tradicionais dos projectos de resolução sobre Timor-Leste. São-no, de resto, de uma
forte percentagem das Resoluções do Conselho. É o privilégio de quem é o “dono da língua” dominante nas
negociações. Apesar de acusações esporádicas de manipulação em benefício próprio, é, em geral, reconheci-
do o profissionalismo com que os diplomatas britânicos trabalham e que lhes vale o apoio dos Estados Unidos,
que não entram “em competição”.
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ao menos teria havido um sinal mais concreto de que a comunidade internacional
estava a acompanhar de perto a situação e de que não ficaria sem resposta a cumpli-
cidade indonésia na tentativa de subversão dos resultados eleitorais.
É um lugar comum a crítica à tradicional incapacidade de o Conselho actuar
preventivamente. Só a explosão das crises e a mobilização das opiniões públicas39
motiva politicamente os poderosos a agir. Timor-Leste não escapou a esta regra.
No princípio de cada mês muda a Presidência do Conselho.
A 1 de Setembro, o Representante Permanente da Holanda, Peter van Walsum, subs-
tituiu o Embaixador da Namíbia. Pedi imediatamente para o ver. As inquietações do
Governo português acentuavam-se com as notícias e as imagens provenientes do ter-
reno. Lisboa continuava firmemente empenhada em manter o diálogo e a coope-
ração com o Governo indonésio. Mas não se podia ignorar a completa ineficácia das
medidas sucessivamente anunciadas por Jacarta.
O Conselho de Segurança deveria preparar-se para actuar, de imediato, em
Timor-Leste. Não podia esquivar-se à sua responsabilidade de garantir as condições
indispensáveis para ser posto em prática o resultado da consulta. Reiterava, por isso,
a proposta do envio imediato de uma missão do Conselho a Jacarta e a Díli. E mais:
o Conselho deveria começar já a ponderar acções mais determinadas e de maior
alcance, designadamente a constituição de uma força de paz.
O Presidente fez o relato da nossa conversa nas consultas informais que nesse
mesmo dia os seus membros dedicaram a Timor-Leste. No final da reunião, o ba-
lanço não era animador, do nosso ponto de vista. A sugestão do envio imediato de
uma missão do Conselho colhera apenas apoio de três delegações, nenhuma delas
membro permanente. Pior ainda fora a reacção à sugestão de constituição de uma
força de paz: só o Brasil manifestara uma predisposição favorável. A única nota enco-
rajadora partira, uma vez mais, do Secretariado: evitando pronunciar-se oficialmente
quanto à criação de uma força de paz, Prendergrast deixara implícito que os mem-
bros do Conselho deveriam começar a preparar-se para essa possibilidade40.
39 Frequentemente referida como “efeito CNN”.40 Talvez embaraçado com a sua própria inacção, o Conselho, não tomando decisão, solicitou ao Secretário-Geral
que continuasse a acompanhar a situação de forma a auxiliá-lo a gerir a questão e a decidir. Tem sido uma
constante do mandato de Kofi Annan: tomar a iniciativa na ausência da vontade política dos Estados-membros.
Talvez não seja conforme com a Carta, mas esta atitude tem estado na base de alguns êxitos ultimamente al-
cançados.
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25ção internacional, se os indonésios se revelassem incapazes de dominar novos sur-
tos de violência38.
No dia da votação, a 30 de Agosto, o Secretariado deu conta, no final das con-
sultas informais, do modo satisfatório como decorrera a ida às urnas, referindo ape-
nas alguns incidentes esporádicos.
A determinação do povo timorense em aproveitar a oportunidade que lhe era
oferecida de decidir sobre o seu futuro impressionou a comunidade internacional.
O Conselho também não foi insensível a isso. Muitos dos seus membros expres-
saram regozijo pelo modo como decorrera o acto eleitoral e admiração pela enorme
afluência às urnas. Outros preferiram, no entanto, pôr o acento tónico na capacidade
indonésia de assegurar um voto relativamente livre e pacífico.
Por um momento, quase pareceram infundados os receios dos que temiam uma
catástrofe pós-eleitoral e alguns apontaram a Portugal o “pecado” da propagação de
pontos de vista alarmistas. Afinal, o principal objectivo dos acordos de Maio fora
alcançado.
O Conselho de Segurança gerira a situação dentro dos seus parâmetros habi-
tuais. Apesar de algumas reacções mais duras, a preocupação principal continuou
sempre a ser evitar pôr a autoridade de Jacarta em xeque. À perda óbvia e progres-
siva de força e influência por parte do Presidente Habibie, desde as primeiras eleições
democráticas na Indonésia, o Conselho respondia com “panos quentes”, procuran-
do, colectiva ou bilateralmente, neste caso através dos seus membros mais influentes
como os Estados Unidos, convencer a hierarquia militar indonésia a agir.
Refugiando-se no argumento (risível) da militância pró-indonésia de membros
não-permanentes, como o Bahrain ou a Malásia, e na necessidade de preservar o
consenso nesta questão, os cinco membros permanentes optaram por evitar a adopção
de medidas fortes de intervenção, quer as preconizadas por Portugal, ou já enca-
radas por países vizinhos como a Austrália, quer mesmo as sugeridas pelo Secreta-
riado e pelo próprio Secretário-Geral. O Conselho falhou, assim, uma oportunidade
única de pôr em prática medidas preventivas apropriadas, mesmo que de carácter
meramente político. Poderiam ter sido insuficientes para evitar o que se seguiu, mas
38 O Presidente do Conselho de Segurança era nesse mês o Embaixador da Namíbia, Martin Andjaba, que dias
depois chefiaria a missão daquele órgão à Indonésia e a Timor-Leste. Respondeu-me correctamente: espera-
va que tudo corresse pelo melhor, mas, se assim não fosse, estava pronto a convocar o Conselho.
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27A deterioração da situação no território e a relativa passividade do Conselho
obrigaram Portugal a multiplicar diligências visando intensificar a pressão interna-
cional sobre Jacarta41. Esse empenho cresceu com a atitude negativa indonésia, que
procurava vender ao Conselho teses como a “provocação dos partidários pró-inde-
pendência” ou a “fraude do acto eleitoral”, levada a cabo por funcionários da
UNAMET.
Solicitei novo encontro com o Presidente do Conselho de Segurança no dia 2.
O objectivo era deixar ainda mais clara a mensagem que já transmitira: Jacarta não
queria ou não era capaz de controlar a situação em Timor-Leste. Impunha-se que o
Conselho estudasse a adopção de medidas adequadas, incluindo a possibilidade do
envio de uma força de paz que permitisse o rápido reforço da componente de segu-
rança das Nações Unidas em Timor-Leste. Caberia ao Conselho decidir a configu-
ração de uma tal acção, no exercício da sua competência.
O Presidente suscitou a questão da necessidade do consentimento do host coun-
try, que vinha já a ser debatida nos corredores. Recordei-lhe que o estatuto jurídico
internacional do Território não reconhecia a Indonésia como tal. Éramos a favor de
obtenção da concordância de Jacarta, mas o Conselho de Segurança deveria estar
preparado para todas as eventualidades. Pela nossa parte, continuávamos preparados
para aplicar na íntegra os Acordos de Maio, estando o Ministro dos Negócios Es-
trangeiros disposto a reunir com o seu homólogo indonésio e com o Secretário-Ge-
ral logo após o anúncio dos resultados da consulta popular.
Ainda nesse mesmo dia, o Embaixador Walsun transmitiu-me a resposta do
Conselho de Segurança: não havia apoio para a constituição de uma força de paz.
Insisti de imediato sobre a necessidade de uma abordagem de outras fórmulas que
permitissem estabilizar a situação em Timor-Leste, nomeadamente a autorização do
Conselho para que países interessados pudessem deslocar forças para o território42.
Manifestei-lhe também a intenção portuguesa de pedir a convocação urgente do
Conselho, caso a situação se agravasse nas horas subsequentes ao anúncio do resul-
tado eleitoral.
41 O Presidente da República e o Primeiro-Ministro empenharam-se pessoalmente, reforçando os esforços desen-
volvidos pelo Ministro dos Negócios Estrangeiros e pela máquina diplomática do Ministério dos Negócios
Estrangeiros.42 Pelo menos dois países estavam dispostos a fazê-lo: a Austrália e Portugal, embora o primeiro exigisse o con-
sentimento de Jacarta e o apoio político expresso dos Estados Unidos. A figura da chamada “coallition of the
willing” não era nova no Conselho de Segurança, que dera já cobertura nos últimos anos a operações desse tipo,
como as que ocorreram na Albânia e na República Centro-Africana.
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26 A persistência de uma atitude de tolerância em relação a Jacarta tornou-se ina-
ceitável para o Governo português, que redobrou as advertências e as chamadas de
atenção. Na manhã do dia seguinte recebi, finalmente, em Nova Iorque a primeira
notícia animadora: a delegação britânica recebera instruções para apoiar o envio de
uma força internacional para Timor-Leste e para passar a ter um papel activo em prol
das posições portuguesas43. Em contrapartida, poucas horas depois, os americanos
confirmavam ser contra a constituição de qualquer força, quer das Nações Unidas,
quer internacional44. Inconformado com esta posição, perguntei directamente a um
alto funcionário da Missão em Nova Iorque o que fariam Washington e o Conselho
de Segurança caso se concretizasse a ameaça de um “banho de sangue” em Timor-
-Leste. A resposta foi dura e concisa: “I’m afraid, nothing”.
Kofi Annan fez questão de ser ele próprio a anunciar, ainda no dia 3, em sessão
formal do Conselho, os resultados eleitorais. Quis, assim, assinalar a importância
que a comunidade internacional atribuía ao momento e prevenir novas tentativas de
alegação de fraude eleitoral. A opção dos timorenses era clara. Menos clara era a
capacidade ou a vontade indonésia de fazer respeitar essa opção45. Tentando respon-
der a essas dúvidas e certamente prejudicar a insistência portuguesa no envio ime-
diato de uma missão de observação do Conselho de Segurança, Jacarta anunciou que
os Ministros dos Negócios Ali Alatas e o Chefe do Estado-Maior das Forças Armadas
General Wiranto se deslocariam de imediato a Díli.
A missão Alatas-Wiranto serviu apenas para confirmar o que os meios de comu-
nicação social já haviam divulgado: a situação estava incontrolável e as garantias de
Jacarta não tinham qualquer tradução prática no terreno. Na realidade, era cada vez
mais evidente a orquestração entre as TNI, a polícia e as milícias, conluiadas num
plano de destruição de Timor-Leste46.
43 Finalmente um membro permanente do CS propunha-se abandonar o aconchego de uma atitude puramente
declaratória. A decisão inglesa terá sido determinada pelo próprio Primeiro-Ministro Tony Blair, na sequência
de contactos com o seu homólogo português.44 Apesar das pressões que o Pentágono estava já a fazer em Jacarta, mantinha-se ainda firme a ligação entre as
estruturas militares dos dois países. O Chefe do Estado-Maior das Forças Armadas americanas reafirmava a sua
confiança nas qualidades de chefia do General Wiranto. Esta atitude bloqueava a Austrália, que fazia depender
a sua iniciativa de avançar com uma força do apoio do “músculo” americano.45 Procurando tranquilizar a comunidade internacional, Jacarta anunciou a deslocação de três companhias da polí-
cia e duas de militares para o território.46 A UNAMET começara já, entretanto, a evacuar o seu pessoal, tendo sido obrigada a retirar de metade dos distri-
tos timorenses. O progressivo e rápido desaparecimento dos observadores internacionais eliminava teste-
munhas e deixava as populações à mercê dos agressores.
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tentavam já identificar os países prontos a disponibilizar elementos para essa (even-
tual) força50.
Mas o Presidente do Conselho, em nova declaração à imprensa, só foi autoriza-
do a dizer que estava a ser “planeado” o envio de uma missão do Conselho de
Segurança para discutir com o Governo da Indonésia medidas concretas que permi-
tissem concretizar o resultado eleitoral “e que o Governo da Indonésia tinha rece-
bido bem essa intenção”51.
Portugal solicitou de imediato que o Conselho não fechasse a porta a uma acção
na área da segurança, independentemente da decisão, correcta, do envio da missão.
Insisti, por isso, na convocação urgente de uma sessão formal, aberta, do Conselho
de Segurança.
Kofi Annan, por seu lado, convocou o novo Representante Permanente dos Esta-
dos Unidos, Richard Holbrooke, comunicando-lhe a sua convicção da necessidade
do envio de uma força internacional para Timor-Leste que ajudasse os indonésios a
garantir a segurança no país52.
Nos dias que se seguiram, a opinião pública internacional foi sendo confronta-
da com o horror da destruição sistemática e irracional de um país, cujo povo acabara
de escolher o seu próprio destino pelas mãos das Nações Unidas. E assistia à con-
tenção corajosa dos que optaram por não responder à fúria assassina da minoria que
não tinham conseguido impor a sua vontade. Xanana Gusmão, que da prisão domi-
ciliária em Jacarta passara para a protecção da Embaixada britânica, era a voz res-
peitada do apaziguamento. E Ramos Horta, em Nova Iorque, multiplicava os con-
tactos, estabelecendo com Holbrooke o relacionamento que o levaria, alguns dias
depois, a encontrar o Presidente Clinton em Auckland53.
50 A Austrália assumira a iniciativa neste campo. Mas considerava insuficiente a companhia da Nova Zelândia e pro-
blemática a de Portugal. Países como o Canadá e os Estados Unidos admitiam contribuir financeiramente, mas
não com homens. O envolvimento do DPKO era pessoalmente supervisado pelo seu chefe, o Secretário-Geral-
-Adjunto Bernard Miyet.51 Declaração à imprensa do Presidente do CS de 5 de Setembro, após consultas informais convocadas, para ouvir
um briefing do Secretariado sobre a deterioração da situação em Timor-Leste.52 Estava-se num Domingo, véspera do Labor Day. O agravamento da situação em Timor-Leste não deixou as Nações
Unidas disfrutar do longo fim-de-semana que assinala o fim do Verão. Holbrooke acabara, finalmente, de as-
sumir o seu posto em Nova Iorque, mas ainda não tinha apresentado credenciais ao SG.
53 A contenção das FALINTIL e dos partidários da independência foi essencial para evitar a repetição do cenário da
“guerra civil” com que os seus opositores se preparavam para demonstrar a inviabilidade de Timor-Leste inde-
pendente.
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29No dia 5 de Setembro, o Secretário-Geral empenhou-se pessoalmente na avalia-
ção da possibilidade de se avançar de imediato com uma força para Timor-Leste,
procurando obter para isso a cooperação de Jacarta e mantendo-se em permanente
contacto e concertação com Portugal. Havia total sintonia entre nós quanto à con-
figuração política dessa operação: deveria ser apresentada como uma ajuda às au-
toridades de Jacarta para controlar a situação em Timor-Leste e não como uma acção
militar contra a Indonésia. O Governo português reiterou publicamente a sua dis-
ponibilidade para integrar essa força.
O Conselho de Segurança, porém, foi incapaz de tomar uma decisão. Entre os
membros permanentes, só o Reino Unido e a França47 se mostraram dispostos a
apoiar uma intervenção militar. Os Estados Unidos, embora mais atentos às conse-
quências da atitude indonésia, continuavam ainda a privilegiar os contactos com o
Presidente indonésio e com as autoridades militares do país. A oposição russa era
notória e a China, evitando pronunciar-se directamente, sublinhava a imprescin-
dibilidade do consentimento indonésio. Entre os membros não-permanentes, a
rigidez das posições do pequeno grupo de apoio a Jacarta, liderado pelo Bahrain48,
continuou a sobrepor-se à simpatia com que outros timidamente encaravam uma
tomada de posição mais interveniente.
Uma vez mais, o Conselho iria ficar aquém do Secretariado. Neste, a todos os
níveis, havia acordo quanto à necessidade do envio de uma força de emergência para
Timor-Leste. O Secretário-Geral procurava activamente obter a concordância indo-
nésia49. E os dois Departamentos, o de Assuntos Políticos e o das Operações de Paz,
47 A delegação francesa, mantendo um certo low profile nas discussões, foi desde o início, entre os membros per-
manentes, a que mais simpatia manifestou pelas posições preconizadas por Portugal. Em contrapartida nunca
assumiu o papel activo mais tarde adoptado pelas Missões do Reino Unido e dos Estados Unidos.48 Foi para mim um mistério a posição assumida pelo Representante Permanente do Bahrain. Se obedecia a instru-
ções da sua capital, é difícil explicá-las com o simples argumento da solidariedade islâmica. Várias vezes pro-
curei chamar a atenção para o perigo de uma atitude árabe puramente negativa. Em vão. Recentemente os ára-
bes tiveram de confrontar as consequências dessa atitude quando a questão de Timor lhes foi recordada no
Conselho de Segurança a propósito da proposta árabe de envio de uma força de interposição para a fronteira
entre Israel e a Palestina, recusada por Telavive.49 O Presidente Habibie confidenciou nesse dia poder aceitar o envio de uma força internacional para Timor-Leste.
Antes teria de declarar o Território em estado de lei marcial, para dar as rédeas do comando local ao General
Wiranto. Só depois estaria em posição de aceitar o auxílio internacional para repor a lei e a ordem. Ficava no
vácuo a duração do estado de emergência.
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31No terreno, assistiu-se à consumação da retirada do pessoal da UNAMET, que
arrastou também a saída dos funcionários que compunham a Missão de Observação
portuguesa em Timor-Leste, entretanto refugiada nas instalações das Nações Unidas54.
Portugal e o Secretário-Geral, mais do que nunca, convergiam na urgência de pôr
travão à campanha de terror e de chamar Jacarta à responsabilidade, mas não encon-
travam o eco desejado.
De um modo esquemático, creio poder dizer que, nesse período, o Conselho de
Segurança e os países envolvidos na questão se dividiram, tacticamente, em dois
grupos: os “apoiantes“ da Indonésia defendiam que qualquer tomada de decisão
deveria aguardar o regresso da missão enviada a Jacarta (e a Díli) e o respectivo rela-
tório; os que olhavam ao que se passava no terreno preconizavam uma atitude de
intervenção e não de expectativa.
Portugal liderou este segundo grupo. A favor, como éramos, da constituição da
força de intervenção, entendíamos que o Conselho deveria reunir de imediato em
sessão pública que poderia constituir um elemento de pressão definitivo para forçar
Jacarta a aceitar a ajuda internacional.
Holbrooke passou a defender a inevitabilidade do recurso à força de inter-
venção. O Presidente Clinton mostrou-se desde o início favorável a essa posição, que
veio publicamente a apoiar dias depois55. No dia 7, o diário The New York Times publi-
cava, na primeira página, um artigo com um título significativo – “A push to intervene
in East Timor is gathering backers at the UN”56.
A consumação da tragédia em Timor-Leste já não admitia atitudes de distancia-
mento. Nas reuniões informais do Conselho, os hard-liners tinham dificuldades em
repetir argumentos que chocavam com realidades como a evacuação da UNAMET. A
China, no dia 8, deu a conhecer estar agora aberta ao envio imediato de uma força.
O Governo português formalizou, nesse mesmo dia, o pedido de reunião de urgên-
54 A MOPTL (Missão de Observação Portuguesa em Timor-Leste) fora estabelecida em conformidade com o Anexo
II dos Acordos de 5 de Maio sobre as modalidades da consulta popular.55 O próprio Presidente revelaria não ter podido ficar indiferente ao apelo português que lhe fora transmitido ao
mais alto nível. Começaram também a fazer efeito junto da opinião pública americana as imagens provenientes
do Território e a mobilização dos meios de comunicação social e do povo português. Holbrooke estava bem
acompanhado, mas não encontrou eco imediato nas várias agências envolvidas no processo de decisão em
Washington.56 A autora, Barbara Crossette, corrigia nesse artigo uma percepção tradicional pouco favorável a Portugal nesta
questão. Foi o ponto de partida para uma escrita actuante que nos foi muito útil.
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30 cia do Conselho de Segurança. A maioria dos seus membros reagiu com cautela: ha-
via que evitar prejudicar o sucesso da sua própria missão, que se encontrava em
Jacarta e ainda não fora autorizada pelos indonésios a deslocar-se a Díli57.
Insistimos no pedido, reforçando-o com a sugestão de o Brasil, como membro
do CS, escrever também uma carta ao seu Presidente no mesmo sentido. Fá-lo-ia no
dia seguinte, já depois de Holbrooke haver comunicado a sua decisão de passar a
defender a convocação da sessão formal de emergência.
Foram ainda necessárias muitas horas de trabalho para obter o consenso sobre
a data, hora e formato da reunião. Após contactos, por vezes duros, connosco e com
os americanos, a Rússia não se opôs58.
Mas mais importante foi nova declaração de Kofi Annan que marcou decisiva-
mente o tom em que iria decorrer a sessão formal do dia seguinte. Com uma total
frontalidade, o Secretário-Geral tornou público: que a Indonésia falhara na respon-
sabilidade de manter a ordem e a segurança em Timor-Leste; que as Nações Unidas
não abandonariam o povo timorense na sua hora de maior necessidade; que a
Indonésia deveria solicitar o apoio da comunidade internacional para a tarefa de
repor a ordem no território; que vários países estavam dispostos a participar numa
força internacional; e que se a Indonésia não desse o seu consentimento deveria
responder por crimes contra a humanidade, sendo os seus autores responsabilizados
internacionalmente.
O facto de a sessão aberta pelo Secretário-Geral se realizar num sábado, subli-
nhou ainda mais o seu carácter urgente. A forma como decorreu confirmou a justeza
das posições que Portugal tinha vindo a defender. Intervieram 52 países e só um pe-
queno número expressou reservas directas à constituição de uma força multina-
cional. A esmagadora maioria manifestou-se a favor e quase uma dezena de países
anunciou disponibilidade para participar na força. A mensagem para Jacarta não podia
57 Um outro argumento pesava na posição de delegações como a americana: o receio de que um debate aberto
mostrasse as Nações Unidas divididas, com muitos países a defenderem a “soberania” indonésia. Nunca aceitá-
mos essa perspectiva. Importava, sobretudo, obrigar os membros do CS a assumirem publicamente as suas
posições. Quanto aos outros membros, confiávamos, na “força” do sofrimento do povo timorense, que esta-
va de novo na primeira linha das notícias internacionais, para mobilizar as respectivas opiniões públicas e
autoridades.58 A posição russa teve sempre em mente a Tchéchenia. Para escamotear essa evidência, a sua delegação no Conselho
de Segurança recorreu a argumentos formais e processuais limitando-se, na substância, a invocar com pouca
convicção as susceptibilidades islâmicas e o respeito devido à “soberania” Indonésia.
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primeiros dias de Setembro, uma personalidade política de topo da Administração
americana contestava a tentativa de antagonizar a Indonésia, país com peso mundial,
por causa de um território “exíguo, pobre e sem importância” como Timor-Leste62.
Daí a relevância de uma acção coesa, coerente e tenaz como a que foi desenvolvida
por Portugal. A comunhão de sentimentos com o povo timorense e o manifesto
desinteresse material português na causa timorense tiveram profunda repercussão
na opinião pública mundial e junto de dirigentes políticos. Uma vez “conquistados”
o Reino Unido e a França, depois os Estados Unidos e a China, a Rússia não podia
fugir ao consenso dos cinco membros permanentes. E os outros membros, que por
serem eleitos deveriam ser os primeiros a defender os princípios básicos da Organi-
zação, deixaram de dispor de espaço de manobra, legal ou moral, para justificar a
política condenável da Indonésia.
Quando o Conselho se procura refugiar na rotina dos procedimentos, fugindo
a tomar decisões, é fundamental encontrar quem chefie. Kofi Annan desempenhou
esse papel na questão de Timor-Leste, que se enquadra, aliás, num pendor que se
tem vindo a acentuar sempre que o Conselho de Segurança “navega” em águas inde-
cisas63. Ainda no campo da “liderança” é importante a atitude dos chefes de dele-
gação. A entrada em cena de Richard Holbrooke deu outro ritmo à máquina ame-
ricana: felizmente para Timor-Leste, o novo Representante Permanente americano
revelou-se não só um político determinado como um defensor de causas de direitos
humanos.
Não julgo necessário lembrar a importância dos media na formação da vontade
dos dirigentes políticos. É a constatação de um facto, por vezes com contornos in-
quietantes. Mas na questão de Timor-Leste essa influência foi altamente positiva.
O sucesso da persistência portuguesa prova também que há espaço para os não-
-membros do Conselho influenciarem o seu ritmo e as suas deliberações. Não se
deve perder de vista que, enquanto permanecer o privilégio “aristocrático” dos
cinco membros permanentes, tal depende em grande medida do seu consentimen-
to. Mas há meios de expor a atitude dos “poderosos”. Não se pode é recuar ao
primeiro sinal de oposição. É fundamental também procurar o maior número possí-
vel de apoios entre a generalidade dos membros da Organização, chamando a sua
62 Sandy Berger, Conselheiro para a Segurança Nacional de Bill Clinton, citado pelo New York Times.63 Não espanta, por isso, o recente elogio de Richard Holbrooke, que o considera o melhor Secretário-Geral de
sempre, apontando-lhe características de rock star.
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ser mais clara59. No dia seguinte, o Presidente Habibie comunicou ao Secretário-
-Geral a sua concordância com o envio da força multinacional. Estava, assim, aberta
a porta para salvar Timor-Leste.
Penso que esta sessão pública do Conselho marcou, em definitivo, uma viagem
decisiva para o território e o modo como a questão passou a ser encarada nas
Nações Unidas. O Presidente acedeu ao nosso pedido de intervir em primeiro lugar,
antes mesmo dos membros do Conselho, como é tradicional. Considerávamos cru-
cial transmitir logo de início a mensagem sintetizada no final da intervenção que
proferi: é necessário que Timor-Leste “will become again a place for the living”60.
Na mesma linha, e como previamente orquestrado, discursaram a seguir os
Embaixadores Gelson da Fonseca, do Brasil, e Richard Holbrooke, dos Estados Unidos.
Ao impacto destas três intervenções concertadas juntou-se ainda um outro elemen-
to inovador: por insistência de Portugal, todos os países da União Europeia falaram
a título nacional (mantendo-se também o discurso da Presidência). O objectivo era
não deixar dúvidas ao Presidente indonésio quanto à reacção internacional ao que
se passava em Timor-Leste. Creio ter sido plenamente atingido. Habibie não poderia
ficar indiferente, por exemplo, a que o Representante Permanente de um país como
a Alemanha, que constituía um dos seus principais e mais fortes apoios, acenasse em
pleno Conselho com a ameaça de sanções caso ele não consentisse no envio da força.
E não ficou.
O detalhe de descrição que acabo de fazer é bem revelador do que faz mover o
Conselho de Segurança: a vontade política dos Estados-membros que detêm o poder
efectivo, a começar, naturalmente, pelos Estados Unidos.
Quando a questão do veto se não coloca, e era esse o caso de Timor-Leste61,
vence em geral no Conselho quem está determinado em obter uma decisão num
sentido bem definido. Foi, por isso, essencial tornar as metas imediatas a atingir bem
claras: o envio da missão e a constituição de uma força multinacional.
Motivar a vontade política de quem pode decidir não é fácil. Em situações como
a de Timor-Leste, nem sempre é simples ou linear contrapor valores a interesses. Nos
59 Na sua intervenção inicial, Kofi Annan afirmou: “We urge Indonesia to agree to this force. But we are asking this agreement out
of courtesy and respect for this nation.That respect is being jeopardized by this situation”.60 Esta frase joga com uma citação do Bispo Belo referida pelo seu biógrafo americano num livro intitulado, si-
gnificativamente, From the Place of the Dead.61 Não estava em jogo um interesse directo de nenhum dos membros permanentes.
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35atenção para o que se passa no círculo restrito, e muitas vezes exclusivo, do
Conselho.
Entre o “pedido de ajuda” do Governo indonésio transmitido ao Secretário-
-Geral em 12 de Setembro e a autorização pelo Conselho de Segurança do estabele-
cimento da força multinacional decorreram apenas três dias. A sessão formal do dia
15, que aprovou a Resolução 1264/99, foi precedida de intensas consultas que con-
taram já com as presenças em Nova Iorque dos Ministros dos Negócios Estrangeiros
da Austrália, Indonésia e Portugal. Foi ainda por pressão portuguesa, apoiada pelo
Secretário-Geral, que se conseguiu um novo encontro tripartido. As discussões aí
havidas marcaram o teor da Resolução adoptada, cuja redacção inicial coube, como
habitualmente, ao Reino Unido. O texto reflectiu também o relatório, objectivo e
contundente, que o Chefe da Missão do Conselho de Segurança à Indonésia e a
Timor-Leste, Matin Andjaba, apresentou.
Depois de largos anos de ocupação indonésia, a libertação de Timor-Leste ga-
nhava forma. O povo timorense pagou, no final, um preço altíssimo: a destruição
consumada nas duas semanas de terror não tinha (nem tem) antecedentes nos anais
da organização. Por isso mesmo, a comunidade internacional teve também de enca-
rar a adopção de medidas sem precedente na história das Nações Unidas.
O factor celeridade era prioritário. Daí ter vencido a tese que advogou o esta-
belecimento da força multinacional (INTERFET), em detrimento da que pretendia o
lançamento de uma operação de paz nos moldes tradicionais. Mas desde logo fi-
caram definidos os parâmetros que levariam, a um prazo razoável, à substituição da
primeira pela segunda. E esta não podia ser uma operação de paz, no sentido clás-
sico, uma vez que teria de assumir a administração do território no período de tran-
sição para a independência. Um verdadeiro esforço de nation-building, como passou a
ser designado64.
A rapidez de actuação do Conselho, uma vez encontrada a vontade política de
agir, foi saudada em geral e apontada como uma história de sucesso exemplar. O
próprio Secretário-Geral lhe prestou homenagem na (longa) referência que fez a
Timor-Leste no discurso com que apresentou, alguns dias depois, à Assembleia Geral
o Relatório anual sobre o Trabalho das Nações Unidas, dedicado, significativamente,
64 James Traub, no artigo mencionado em (21), define a operação de paz arquitectada para a UNTAET como “um
exercício de colonialismo benevolente” (“UNTAET, then, is an exercise in benevolent colonialism”).
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34 à segurança humana e intervenção no novo século65: “Deixem-me dizer que a acção
pronta e efectiva do Conselho, ao autorizar uma força multinacional para Timor-
-Leste, reflecte precisamente a unidade de desígnio para que hoje apelo”. Esse apelo
lembrava que a Carta impõe ao Conselho de Segurança ser defensor do “interesse
comum”. A menos que seja visto como tal – numa era de direitos humanos, inter-
dependência e globalização – há o perigo de que outros procurem tomar o seu
lugar, como aconteceu no caso de Kosovo.
Mas nessa mesma intervenção Kofi Annan recorda o que ficou por fazer e o que
é necessário visar em Timor-Leste: "Já se tinham contudo perdido demasiadas vidas
e já se havia consumado demasiada destruição para podermos descansar sobre os
nossos louros. O trabalho árduo de estabelecer uma paz duradoura e a estabilidade
em Timor-Leste espera ainda por nós. Afinal, depois do termo do conflito, em Timor-
-Leste como em qualquer outro lugar, é vitalmente importante que o nosso empe-
nho na paz seja tão forte como o empenho na guerra. Nesta situação, como noutras,
é essencial a consistência. Assim como o nosso empenho na acção humanitária deve
ser universal, para ser legítima, também o nosso empenho na paz não pode acabar
com a cessação das hostilidades. O pós-guerra requer não menor habilidade, não
menos sacrifícios, nem menores recursos, se se quer forjar uma paz duradoura e evi-
tar um regresso à violência”.
Houve também o reverso da medalha. A prontidão com que o Conselho de
Segurança decidiu o envio da força gerou “ciúmes” em alguns quadrantes do uni-
verso da ONU. Países africanos foram particularmente sensíveis à comparação com
situações como a do Ruanda em 1994, ou a Serra Leoa na actualidade. A inacção do
Conselho, no primeiro caso, e as hesitações e adiamentos no segundo, em primeira
mão entregue aos cuidados da ECOWAS, foram repetidamente invocados como
exemplo de discriminação por parte do Conselho.
Timor-Leste seria o “filho querido” dos países desenvolvidos, que não teriam
hesitado em forçar a mão de um país não-alinhado, enquanto o continente africano
permanecia longinquamente como um “enteado” a que os países ricos deste mundo
não atribuem prioridade.
Procurámos sempre combater essa percepção que não tinha em conta factores
específicos no caso de Timor-Leste. Desde logo, o Conselho só agiu depois de con-
sumada a trágica destruição de vidas e bens no Território. Até lá, a atitude foi posi-
65 Intervenção na 54.ª Sessão da Assembleia Geral, em 20 de Setembro de 1999.
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A intervenção
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37tivamente a de poupar a Indonésia, protegendo a sua “soberania” e a sua transição
para a democracia, em detrimento de acções preventivas mais efectivas a favor do
povo timorense.
Em segundo lugar, a própria tomada de decisão só foi feita depois de obtido o
consentimento indonésio: o Conselho, na realidade, não teve em consideração o
estatuto internacional de Timor-Leste, olhando apenas para a autoridade política “de
facto” do território e fechando os olhos à evidência das Nações Unidas nunca terem
reconhecido a pretensão da integração na Indonésia.
Finalmente, a rapidez da decisão teve a ver com o facto de estar já praticamente
preparada a força de intervenção, com base numa “coligação de vontades” liderada
pela Austrália e na qual Portugal, desde a primeira hora, deu o exemplo da disponi-
bilidade para nela participar66.
Creio também ser razoável mencionar um outro factor relevante. Portugal fez
jus à sua posição, para muitos meramente teórica, de potência administrante do ter-
ritório, não fugindo a responsabilidades que incluiam as decorrentes da sua quali-
dade de negociador e signatário dos acordos de Maio. A todo o momento, procurou
obrigar o Conselho de Segurança a tomar posição sobre o que se passava em Timor-
-Leste. Houve, assim, nesta questão, uma liderança efectiva e permanente que se não
verificou noutros casos, sobretudo em África. O próprio suporte financeiro da ope-
ração foi desde logo assegurado, através de contribuições voluntárias de países como
o Japão e a Austrália, com Portugal também aqui a assumir encargos substanciais,
apesar da sua exclusão da INTERFET. Acresce ainda que o voluntarismo português
encontrou sempre eco no Secretariado, a começar pelo próprio Secretário-Geral,
privilegiando ainda a conjugação de esforços com Xanana Gusmão e outros diri-
gentes timorenses, no interior e exterior.
No seu “Relatório do Milénio”67 o Secretário-Geral obser-
va que, embora as Nações Unidas sejam uma organização de Estados, a Carta está
escrita em nome de “nós os povos” (“We the peoples”). Daí conclui que, em última
instância, a Organização existe para, e deve estar, ao serviço das necessidades e aspi-
66 Foram as Nações Unidas a decidir a não integração na INTERFET de forças portuguesas, depois de auscultadas
as sensibilidades regionais, que foram negativas. Desde logo, porém, ficou decidida a nossa participação na
futura operação de paz.67 “We the peoples:The Role of the United Nations in the Twenty-first century”, documento A/54/2000, de 27 de Março.
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36 rações de todos os povos. Alguns meses antes, poucos dias depois de o Conselho de
Segurança ter aprovado a intervenção militar em Timor-Leste, Kofi Annan defendera
já na Assembleia Geral que o “Estado é agora geralmente considerado como estando
ao serviço do seu povo, e não o contrário. Ao mesmo tempo, a soberania individual
– e nisto incluo os direitos humanos e as liberdades fundamentais de todos os indi-
víduos inscritos na nossa Carta – tem vindo a reforçar-se com a consciência renova-
da do direito de cada pessoa ao controlo do seu próprio destino”68.
Esta intervenção, como já referi, centrada nas perspectivas da “segurança humana
e da intervenção” no novo século, desencadeou uma polémica generalizada em
torno do conceito de “intervenção humanitária”. A “doutrina Annan” foi recebida
com aplauso pelos países ocidentais, sendo em compensação imediatamente posta
em causa por países influentes de outros grupos regionais, como a Malásia, o México,
a Argélia, a Índia, a China ou a Rússia. Dois dias após o discurso do Secretário-Geral,
o Ministro dos Negócios Estrangeiros da China resumia a questão deste modo: “A
chamada intervenção humanitária num Estado soberano, sem um mandato do Con-
selho de Segurança das Nações Unidas e sem o prévio consentimento do país visa-
do, causará uma catástrofe humanitária maior em vez de resolver o problema”69.
A dúvida pairou: teriam, como pretendido pelo Secretário-Geral, os casos de
Timor-Leste, e, noutra dimensão, do Kosovo, aberto a via para uma nova era? A
“sondagem do milénio”, amplamente referida no relatório “We the peoples”,70 parece
dar razão aos defensores de uma resposta positiva. A maioria dos entrevistados em
todo o mundo apontou a protecção dos direitos humanos como a tarefa mais im-
portante das Nações Unidas. As operações de paz das Nações Unidas e as medidas
de assistência humanitária foram também referidas prioritariamente. A “doutrina
Annan” teria assim pernas para andar.
Como nota Nuno Brito,71 “o edifício que Kofi Annan pretende construir em
matéria de intervenção humanitária assenta tematicamente nos direitos humanos e,
em termos práticos e funcionais, no Conselho de Segurança das Nações Unidas”.
68 Vide 61.69 Discurso do MNE chinês Tang Jiaxnau na 54.ª Assembleia Geral da ONU, em 22 de Setembro de 1999.70 Sondagem patrocinada e conduzida em 1999 pela Gallup International, que entrevistou 57.000 adultos em 60 paí-
ses, referida na “Box 1” do já citado “Relatório do Milénio”.71 Representante-Adjunto nas Nações Unidas, autor do excelente artigo intitulado “Lidando seriamente com as
Nações Unidas: Kofi Annan e a intervenção Humanitária”, publicado na Revista Política Internacional, n.º21, Pri-
mavera-Verão, de 2000.
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Luzes e sombras de uma nova era
Michael Hirsh76 considera que “(este) debate sobre intervenção humanitária é
importante e bem-intencionado. É também, em grande parte, um debate falso. A dis-
cussão, pelo menos tal como foi enquadrada em anos recentes, leva a escolhas fictí-
cias. Durante a maior parte do período pós-Guerra Fria, os argumentos sobre uma
nova ordem mundial centraram-se em saber se os Estados Unidos ou as Nações
Unidas, agindo separadamente ou em concertação, podiam tornar-se de alguma
forma “polícias do globo”. Mas dez anos depois da queda da União Soviética, é
chegada a altura de o mundo reconhecer que nenhuma dessas opções se con-
cretizará. Washington não tem a vontade (política) para tal e as Nações Unidas
(graças largamente à avareza americana) não têm os meios” (“does not have the way”).
A solução residiria, assim, em encarregar organizações regionais ou “coligações de
forças” lideradas por potências regionais de efectuar, com a chancela das Nações
Unidas, as intervenções aprovadas na respectiva área de influência. A isso Hirsh
chama “a regra dos polícias regionais”. Seria um sistema híbrido, “dependente
simultaneamente da legitimação da ONU e do músculo local”. Foi, já, considera, o
que se passou em Timor-Leste.
Esta tese encontra algum eco nos sinais que têm vindo a ser avançados por algu-
mas das “estrelas” da próxima Administração americana. Dentre esses, destaco,
porque encorajador, o que pensa sobre a matéria Condoleeza Rice, a nova Conse-
lheira de Segurança Nacional do Presidente Bush77. Questionada sobre a resposta
americana a um genocídio eminente, respondeu: “A primeira opção é aperfeiçoar
os sistemas de alerta precoce. O verdadeiro objectivo é fortalecer a nossa relação e a
nossa colaboração com as potências regionais. O papel fundamental desempenhado
pela Austrália em Timor-Leste é um bom exemplo, contudo teria sido útil que as
forças se tivessem para lá deslocado de antemão, uma vez que se sabia que os resul-
tados do referendo (sobre a independência) iriam deparar-se com uma oposição.
Outro bom exemplo é o treino de tropas nigerianas para manter a paz na Serra
Leoa78. Resumindo, (a opção é) alerta precoce e colaboração com as potências
regionais.”
Estou inteiramente de acordo com a Senhora Rice no que a Timor-Leste diz res-
peito.NE
76 “Chief Diplomatic Correspondent” da Newsweek: “Calling all regio-cops – Peacekeeping´s Hybrid Future”, artigo publicado na
Foreign Affairs, volume 79, n.º6 – Novembro/Dezembro 2000.77 Entrevista reproduzida na edição do jornal Público de 19 de Dezembro de 2000.78 Decisão tomada ainda pela Administração Clinton.
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Ninguém hoje duvida de que o Conselho tem de reformular a sua estrutura e
procurar responder, de forma mais activa e dinâmica, às suas responsabilidades
primárias na manutenção da paz e de uma concepção alargada da segurança inter-
nacional.
A crise de Timor-Leste mostrou os limites do Conselho em matéria de pre-
venção. Terá de ultrapassá-los. Não poderá também ignorar o debate de questões
temáticas essenciais à sua esfera de acção72 e a relevância da adopção de medidas de
consolidação e construção da paz em períodos pós-conflito.
Duas questões essenciais estão já em marcha: a reorganização das operações de
paz, na sequência da publicação do chamado “Relatório Brahimi”73 e a resolução da
crise financeira que tanto afectou a Organização nos últimos anos74. Mais proble-
mática se afigura a questão controversa do alargamento do Conselho a novos mem-
bros permanentes e não-permanentes. Em contrapartida, registam-se já alguns
progressos no que respeita ao estabelecimento de regras de funcionamento e de
métodos de trabalho mais democráticos e transparentes75.
A mudança da Administração em Washington suscita também expectativas e
interrogações. Muitos países, com destaque para os asiáticos, consideram que a
equipa do Presidente Clinton deu demasiado relevo a matérias de direitos humanos.
Entendem mesmo que isso constituiu o principal impulso da atitude militante e
inovadora assumida por Kofi Annan. Gerou-se, assim, em vários sectores das Nações
Unidas a convicção de que a Administração Bush, como é tradição republicana,
voltará a pôr o acento tónico nas questões de segurança, em sentido restrito, e co-
merciais, passando a promoção dos direitos humanos, em geral, a ter um lugar
subalterno. A atracção isolacionista constituiria também fundamento de uma es-
tratégia política menos intervencionista e vocacionada, em primeiro lugar, apenas
para acções de salvaguarda do interesse nacional directo norte-americano.
72 É sintomático que Richard Holbrooke tenha escolhido para a sua despedida de Representante Permanente nas
Nações Unidas um debate aberto no Conselho de Segurança dedicado à questão da SIDA (19 de Janeiro de
2001).73 Documento das Nações Unidas A755/305 – S/2000/809, de 21 de Agosto de 2000. As suas recomendações só
em parte foram acolhidas pelos Estados-membros na sequência do parecer do “Comité Consultivo para as Questões
Económicas e Orçamentais”. Essa decisão foi qualificada como “aterradora” por Richard Holbrooke.74 A 55.ª sessão da Assembleia Geral chegou, em Dezembro último, a um consenso que, ao acolher algumas exigên-
cias fundamentais do Congresso americano, viabilizou novas escalas de contribuições para os orçamentos re-
gular e de operações de paz das Nações Unidas, abrindo também a via para que os Estados Unidos comecem
a pagar as suas contribuições em dívida.75 Estes aspectos da reforma do CS constituíram um dos “cavalos de batalha” da presença portuguesa naquele órgão
em 1997-98, tendo algumas das propostas por nós avançadas entretanto sido postas em prática.
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A estas duas questões somou-se, quase desde o início, a possível extensão das
decisões tomadas por maioria qualificada, por abandono da regra da unanimidade3.
O Conselho Europeu de Colónia, em Junho de 1999, viria a confirmar a decisão
de convocar a nova CIG em 2000, tendo o Conselho Europeu de Helsínquia, em
Dezembro de 1999, fixado, em definitivo, o mandato com que a Presidência por-
tuguesa deveria iniciar a nova Conferência4.
As discussões de Amesterdão haviam deixado relativamente claro o
cenário em que se desenrolaria a futura CIG e indiciaram as razões concretas que a
justificavam. Formalmente, a nova revisão dos Tratados era apresentada como um
passo indispensável para garantir que as instituições da União se adaptariam às
exigências provocadas pelos futuros alargamentos, preservando a respectiva eficácia
e reforçando a sua democraticidade.
O mais extraordinário de todo este exercício foi a circunstância de ele se ter
desenrolado, até tarde, sob a inocente capa de uma revisão institucional que seria
absolutamente “indispensável”, no plano técnico-político, antes do próximo alarga-
mento, tendo-se espalhado a convicção de que uma mera projecção do actual for-
mato institucional configuraria um desastre para a Europa5. Quem ousasse pôr em
causa este dogma “politicamente correcto” era apodado de anti-europeu e tido, no
fundo, como um adversário implícito da adesão dos novos países.
Tornou-se interessante ver a grande generalidade dos comentadores a dar recor-
rentemente como óbvia esta suposta evidência, sem sequer se interrogar critica-
mente sobre a validade do argumento. A evolução da discussão e a verdadeira luta
pelo poder que nesta CIG acabou por se tornar patente, com expressão mais flagrante
um nacional de cada Estado-membro, desde que nessa data, a ponderação de votos no Conselho tenha sido alterada (...) compensando os Estados-
-membros que prescindam da possibilidade de designar um segundo membro da Comissão”. Por seu lado, o artigo 2.º do mesmo
texto determina que “o mais tardar um ano antes da data em que a União Europeia passar a ser constituída por mais de vinte Estados-
-membros, será convocada uma Conferência de representantes dos Governos dos Estados-membros, a fim de proceder a uma revisão global das
disposições dos Tratados relativas à composição e ao funcionamento das Instituições”.3 Embora este terceiro tema não fizesse parte do compromisso de Amesterdão, ele surge numa declaração unilate-
ral da Bélgica, França e Itália, inscrita na acta final do Tratado, acabando mais tarde por ser assumido pelos res-
tantes como uma questão incontornável a tratar na nova CIG.4 As conclusões de Helsínquia indicam que a Conferência deverá examinar “a dimensão e a composição da Comissão Europeia,
a ponderação de votos no Conselho e o possível alargamento das votações por maioria qualificada, bem como outras alterações que será necessário
introduzir nos Tratados a propósito das instituições europeias, relacionadas com as questões supracitadas e em aplicação do Tratado de Ames-
terdão”.5 Desde o início que assumimos uma perspectiva crítica desta revisão maximalista (cf. “Uma reforma indispensá-
vel?”, in Europa – novas fronteiras, n.º5, ed. Centro Jacques Delors, Lisboa, Junho 1999, p.4).
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O cenário de fundo
ESTE TEXTO pretende transmitir uma perspectiva sobre o modo como Portugal se situ-
ou ao longo de toda a negociação que conduziu ao Tratado de Nice. Para além do
enquadramento político e técnico em torno das principais questões em jogo, procu-
ra-se avaliar de que modo aquilo que foi definido como o interesse português foi
sendo gerido no decurso dos trabalhos, com vista a tentar perceber em que medida
os principais objectivos nacionais puderam, ou não, ser atingidos. No que se crê ser
uma abordagem pouco usual neste tipo de registos, referir-se-ão aspectos menos
conhecidos do relacionamento entre os governos no decurso da Conferência Inter-
-governamental (CIG), bem como algumas formas de intervenção pública, fora do
quadro formal da negociação, que se entendeu dever mobilizar em apoio às po-
sições portuguesas. Pelo interesse especial que pode ter para a compreensão geral do
processo negocial, optou-se por incluir um relato mais pormenorizado do que
ocorreu durante a própria cimeira de Nice1.
Convirá começar por notar que o exercício que se concluiu em Dezembro de
2000, em Nice, foi a CIG com uma das mais limitadas agendas na história das insti-
tuições comunitárias. Não obstante essa circunstância – ou, talvez, precisamente por
essa razão – acabou por constituir para todos os Estados-membros um trabalho de-
licado e complexo, dada a sensibilidade dos temas em análise e a ausência de ele-
mentos de compensação negocial que uma agenda mais alargada propiciaria.
A realização de uma nova CIG ficara já prevista no Tratado de Amesterdão, o
qual marcara para antes do próximo alargamento uma reforma das instituições
comunitárias. Aquilo que ficou conhecido como os “restos” (leftovers ou reliquats) de
Amesterdão incluía a revisão da dimensão e composição da Comissão Europeia e dos
votos de que cada Estado dispunha no Conselho de Ministros2.
* Secretário de Estado dos Assuntos Europeus, de 10/1995 a Março do corrente ano, e representante do Governo por-
tuguês no “grupo preparatório” que negociou a CIG 2000, o qual dirigiu durante a Presidência portuguesa da UE.1 O autor agradece as contribuições e sugestões dadas para a elaboração deste texto pela Dra. Josefina Carvalho, pelo
Dr. Pedro Lourtie e pela Dra. Ana Leitão.2 O artigo 1.º do Protocolo relativo às Instituições na perspectiva do Alargamento da UE estabelece que “à data da en-
trada em vigor do primeiro alargamento da União, e não obstante o disposto no n.º 1 do artigo 157.º do TCE, a Comissão será composta por
Francisco Seixas da Costa | Representante Permanente de Portugal junto da ONU em Nova Iorque*
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Portugal e o Tratado de NiceNotas sobre a estratégia negocial portuguesa
Por que razão uma Comissão para a qual cada país tivesse o direito de indicar um
comissário era tão fortemente rejeitada por alguns? Porque a cultura de interesses
que uma tal Comissão iria projectar alteraria substancialmente o padrão que hoje
nela predomina. De facto, numa União a vinte e sete Estados, uma Comissão em que
cada país passe a ter um comissário, e em que internamente se continue a tomar
decisões por maioria simples, dificilmente reproduzirá no futuro os actuais padrões
de interesses, dada a crescente diversidade que o alargamento vai introduzir. E tra-
tando-se da instituição que tem o monopólio da iniciativa legislativa, e que é res-
ponsável pela regulamentação e pela execução das políticas, pode pensar-se na im-
portância do que acabou por ficar decidido em Nice nesta matéria6.
Se o problema da Comissão era de monta, e justificava para alguns um downsi-
zing profilático, a questão do processo de decisão a nível do Conselho de Ministros
não o era menos. O que estava aqui em jogo era, manifestamente, provocar um
agravamento em matéria de capacidade de representação entre os Estados de maior
dimensão e os restantes, através de alterações no poder de voto ou, no mesmo sen-
tido, por via da modulação do peso demográfico no processo de decisão – não obs-
tante o facto deste último modelo contribuir para alguma conflitualidade entre os
maiores Estados, como veremos.
O objectivo, também aqui, era evidente: tratava-se de tornar tanto quanto pos-
sível irrelevante o papel dos novos aderentes nas decisões futuras, numa lógica que,
no entanto, teria como inevitável consequência afectar de forma similar os Estados
de pequena ou média dimensão que já fazem parte da própria União a Quinze.
Esta era também uma filosofia que se projectava na possível extensão das de-
cisões por maioria qualificada, em áreas actualmente regidas pela regra da unani-
midade. Em especial para os Estados de maior dimensão – que, contrariamente ao
que se crê, são aqueles que mais frequentemente recorrem ao veto – a abertura para
concederem um tratamento de certas questões por maioria qualificada esteve quase
6 No parecer que apresentou antes do início da CIG, em Janeiro de 2000, a própria Comissão propõe, quanto àqui-
lo que a CIG deverá fazer no que a ela própria respeita, duas opções: ou uma Comissão com vinte comissários,
com rotação em estrita igualdade, ou uma Comissão com um comissário por Estado-membro “conjuntamente com
medidas para reorganizar profundamente a Comissão”. Já durante a Presidência francesa, face à pressão maioritária no sen-
tido da fixação do princípio de um comissário por Estado-membro, a Comissão acaba por abandonar o primeiro
cenário. Mesmo no caso do segundo cenário, a Comissão teve que vergar-se à falta de vontade dos Estados-
-membros para, por exemplo, encararem “a possibilidade de os membros da Comissão coordenarem e dirigirem a acção de alguns
dos seus colegas, sobre os quais exerceriam autoridade”.
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nas últimas semanas da negociação, terá aberto, quiçá tardiamente, os olhos a
muitos – em Portugal e noutros países.
O que estava de facto em jogo nesta CIG? Em síntese, esta Conferência é uma
exigência imposta por aqueles que, até hoje, se haviam habituado a gerir com rela-
tiva facilidade as instituições comunitárias e que, perante a perspectiva de um
alargamento de proporções sem precedentes, temeram ver esse poder submergido
pelas consequências da futura participação de uma avalanche de países de pequena
e de média dimensão no processo decisório.
Com efeito, a simples extrapolação dos actuais mecanismos de decisão no con-
texto de uma União alargada a vinte e sete ou mais Estados iria retirar-lhes a capaci-
dade de controlo de que hoje dispõem na máquina comunitária, obrigando-os a
uma partilha de poder que subvertia as regras do jogo que dominavam.
O argumentário utilizado foi de uma simplicidade meridiana: era forçoso
garantir uma maior “eficácia” das instituições (maior facilidade na tomada das de-
cisões) e isso passava por aspectos de “reorganização” das mesmas (nova divisão do
poder), à luz de uma maior expressão “democrática” (tida como eufemístico sinóni-
mo de “demográfica”).
A operação tinha duas vertentes essenciais: ao nível da Comissão e no processo
decisório no Conselho.
No que toca à Comissão, o objectivo era, muito simplesmente, desligá-la do
carácter nacional das nomeações dos comissários, introduzindo o conceito de uma
Comissão restrita (doze a quinze comissários, no máximo vinte), com uma futura
rotação não necessariamente igualitária (o princípio “Conselho de Segurança” –
membros permanentes e membros não-permanentes – foi deixado a pairar durante
algum tempo) e internamente hierarquizada (com fórmulas várias que iam desde a
fixação de vice-presidentes apenas para os “grandes”, até a comissários-adjuntos,
comissários sem pasta, etc).
O objectivo era simples: uma estrutura deste género, menos política e mais tec-
nocrática, acabaria por repercutir as tendências do reforçado poder para os maiores
Estados que se pretendia passasse a prevalecer no Conselho de Ministros, apoiada
numa estrutura de funcionários que se sabe ser esmagadoramente dominada por
esses mesmos Estados. Recorde-se que cada um dos “cinco” dispõe hoje de uma
presença maciça a nível de directores-gerais, de chefes de gabinete e de outros
lugares cimeiros do aparelho da Comissão.
afastados formalmente uns dos outros nas propostas que mais radicalmente pre-
tendiam explorar o factor demográfico. Poderia dizer-se que, no fundo, isso deveria
ser indiferente para esses Estados “pequenos” que compartilham os interesses dos
“grandes”, dado que o reforço destes últimos os protegeria sempre no processo
decisório. Tal é verdade no plano objectivo, mas o facto de formalmente eles cami-
nharem para a irrelevância no processo decisório iria ser difícil de explicar junto dos
respectivos parlamentos e opiniões públicas, por maiores que fossem os argumen-
tos de racionalidade. E este não deixou de ser um elemento presente na nossa tácti-
ca negocial, como adiante se verá.
Perante o mandato recebido em Helsínquia, Portugal viu-se obri-
gado a ter de compatibilizar a sua condição dual de futura Presidência da União e
de Estado com interesses directos na negociação. Quais eram, em termos gerais,
esses interesses?
Para Portugal, a preservação do processo integrador constituía a principal linha
de orientação subjacente às posições a defender na nova Conferência. Assim, e no
essencial, partíamos para esta CIG com as linhas básicas com que havíamos encara-
do o exercício de Amesterdão10. O equilíbrio interinstitucional existente era con-
siderado satisfatório para o nosso país e, atendendo ao alargamento, apenas enten-
díamos indispensável caminhar para uma maior funcionalidade através de duas vias:
um aumento da lista de matérias em que a unanimidade deixaria de ser regra e uma
revisão dos mecanismos de integração diferenciada nas políticas – as “cooperações
reforçadas”11 – que Amesterdão criara e não haviam sido utilizados.
No primeiro caso, compreendíamos os argumentos de quantos consideravam
perigoso, particularmente numa União alargada, mas mesmo na própria União a
Quinze, manter-se determinadas áreas isentas de votações maioritárias. Outros di-
riam que esta era uma atitude suicida, porquanto, estando Portugal fora do mainstream
de interesses da União, e com uma posição institucional que o quadro do alarga-
10 Antes do início da CIG de 1996, Portugal deu a conhecer em documento a sua posição geral para a Conferência
(“Portugal e a Conferência Intergovernamental de 1996”, ed. MNE, Lisboa, 1996). Dado que a agenda desta CIG era mui-
to reduzida, e retomava apenas temas que na anterior haviam ficado por resolver e sobre os quais as posições
nacionais eram por demais conhecidas, optou-se por não avançar com um documento idêntico.11 Em Amesterdão foi prevista a possibilidade de alguns Estados-membros – cujo número não poderia ser inferior
a metade dos Estados – aprofundarem uma cooperação entre si em domínios que relevassem dos primeiro ou
terceiro pilares, fazendo uso do quadro institucional e dos procedimentos previstos no TUE e no TCE.
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O interesse português
sempre indissoluvelmente ligada à prévia redefinição do seu poder no processo
decisório no Conselho de Ministros7.
Do mesmo modo, não era irrelevante o número de deputados que viesse a ser
fixado para cada país no Parlamento Europeu, que, por reflectir uma mais directa
expressão demográfica, acaba por funcionar como uma segunda reponderação em
favor dos maiores Estados. A este propósito, recorde-se que a co-decisão com o
Parlamento Europeu tem vindo a estender-se, cada vez mais, às matérias de natureza
legislativa que o Conselho adopte por maioria qualificada8.
Convém que se diga que este processo de revisão dos mecanismos de poder
entre Estados, apoiado em critérios demográficos, tem dentro de si uma contradição
interessante, mas difícil de ser abertamente assumida no discurso político europeu.
Com efeito, é sabido que, no dia-a-dia da vida comunitária, a expressão dos
interesses dos Estados não se faz nunca por linhas divisórias que isolem os “grandes”
dos “pequenos”. A separação processa-se sempre por outras linhas de fractura, as
quais, no que toca ao chamado pilar comunitário, onde se situam os temas eco-
nómicos e sociais, assentam essencialmente nos níveis de desenvolvimento de cada
país9. Por essa razão, desde sempre Estados como o Luxemburgo ou a Bélgica, e hoje
a Áustria ou a Finlândia, se situam comodamente no padrão médio de interesses que
se reflecte no processo decisório em Bruxelas e, por esse motivo, raramente estão
distantes, aquando das votações, das posições dos países “grandes” mais desenvol-
vidos.
E esta é a grande ironia desta Conferência. Como o único critério possível para
“separar as águas”, antes do próximo alargamento, era a via da distanciação demo-
gráfica (só a medo alguns ousaram falar no PIB per capita ou nas contribuições para
o orçamento da União), alguns países que tradicionalmente votam juntos viram-se
7 De assinalar que a Itália foi, dentre todos os maiores países, o único que sempre teve uma posição de máxima
abertura face à utilização das votações por maioria qualificada, independentemente do seu peso no Conselho.
Esta foi, igualmente, a posição permanente da Bélgica – o único dos países “pequenos”/”médios” que se mos-
trou com total disponibilidade para abandonar as votações por unanimidade.8 A exemplo do que aconteceu na negociação do Tratado de Amesterdão, verificou-se, na CIG 2000, que alguns paí-
ses condicionavam a sua abertura para considerarem a passagem a maioria qualificada de certas decisões à não
existência de um automatismo entre esse regime de voto e a introdução de co-decisão com o Parlamento Europeu.9 Nos restantes pilares os alinhamentos fazem-se normalmente por outro tipo de clivagens. No II pilar, recorde-se
as posições específicas do Reino Unido, por um lado, e dos países de tradição neutralista, por outro, que colo-
cam dificuldades a determinados avanços na PESC. No III pilar, basta lembrar os opt-out britânico e irlandês em
Schengen.
Há duas ordens de razões. A primeira prende-se, uma vez mais, com a hetero-
geneidade crescente que o alargamento virá a introduzir na União, bem como com
outras linhas de fractura que já são também detectáveis a nível dos Quinze, como se
pode observar nos modelos de integração diferenciada hoje existentes ou na frágil
compatibilidade das culturas de Defesa dentro da União. Para um país como Por-
tugal, que sofre de condições específicas que são, elas próprias, indutoras de perife-
ricidade, torna-se importante encontrar mecanismos de regulação centrípeta que, de
uma forma controlada e transparente, possam abrir caminho ao nosso interesse em
participar em pleno em mecanismos de maior aprofundamento de certas políticas,
se e quando a nossa vontade nacional decidir ir por aí, como foi já o caso da moeda
única ou de Schengen.
A segunda razão é de natureza mais táctica. Se bem repararmos, desde Ames-
terdão que vínhamos a assistir a discursos, ou tomadas de posição prática, que apon-
tavam a rigidez do actual modelo de “cooperações reforçadas” como a justificação
para o alimentar de pretensões para vir a trabalhar, em certos domínios, à margem
das instituições comunitárias. O espírito “grupo de contacto” estava assim a começar
a espalhar-se de forma perigosa e, ao propormos nós próprios a revisitação contro-
lada dos actuais modelos de “cooperações reforçadas”, procurámos retirar argu-
mentos a quantos pareciam crescentemente interessados em funcionar fora do quadro
institucional único da União, nomeadamemte fugindo ao papel central da Comissão
Europeia e à tutela do Tribunal de Justiça.
Mas do conjunto de interesses que Portugal procurava preservar nesta CIG cons-
tava também a necessidade de atentar na evolução de duas importantes fontes de
influência e de poder: a Comissão Europeia e o Conselho.
A leitura que Portugal, desde sempre, tem vindo a fazer da vida comunitária
assenta na importância do papel da Comissão Europeia, o que justifica a preserva-
ção, e mesmo o reforço, dos respectivos poderes no quadro interinstitucional. Daí
decorre igualmente a ideia de que deve ser atribuído ao presidente da Comissão um
conjunto mais alargado de poderes que, sem afectarem o princípio da colegialidade,
facilitem a afirmação da sua autoridade, que deve ir a par da sua crescente respon-
sabilização política, nomeadamente no que toca às garantias de neutralidade e de
independência da instituição.
A especial posição de debilidade que os países de pequena e média dimensão
têm na estrutura funcional da Comissão, bem como a genuína ideia de que essa
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mento não iria fortalecer, o risco de marginalização seria cada vez maior, ao pres-
cindir-se do direito de veto.
Esta linha argumentativa esquece três realidades. A primeira é a de que a fun-
cionalidade do processo comunitário constitui também um interesse português e
que, se estamos abertos a uma integração progressiva, não nos podemos comportar
no seio da União como se de uma qualquer organização internacional se tratasse. A
segunda, ligada à primeira, é a circunstância de ser necessária uma leitura diacróni-
ca e dinâmica dos nossos próprios interesses, projectando-os na muito maior diver-
sidade que o alargamento acarretará, onde a nossa posição relativa não vai ser forço-
samente a mesma. A terceira – que pode não ser evidente para quem está de fora,
mas que o é para quem trabalha de perto com a máquina comunitária – prende-se
com o facto de o direito de veto ser, quase sempre, uma falsa defesa de difícil exe-
cução prática, principalmente para países de pequena e média dimensão, sendo ele
próprio de penosa utilização mesmo pelos seus principais cultores – os “grandes”
países.
Nas posições que fomos afirmando ao longo da Conferência, quanto à extensão
da maioria qualificada, ficou patente alguma evolução face às discussões de Ames-
terdão – atitude, aliás, comum à generalidade dos Estados-membros. Não deixámos,
contudo, de sempre ligar esta questão à definição do nosso próprio poder final no
Conselho e no Parlamento Europeu e de preservar algumas áreas em que não enca-
rávamos prescindir, nesta fase, da unanimidade. Estavam neste caso algumas dispo-
sições fiscais, sociais, na área da Justiça e dos Assuntos Internos, bem como relativas
à coesão económica e social. Algumas outras áreas foram inicialmente avançadas
como problemáticas, mas a continuação do debate e a evolução dos textos de alguns
artigos acabou por acomodar as nossas preocupações, como aconteceu com outros
Estados.
Quanto às “cooperações reforçadas”, a nossa perspectiva evoluiu desde Ames-
terdão, onde, como é sabido, fomos responsáveis por muito daquilo que ficou fixa-
do no Tratado12. Mas se continuávamos a pensar que não eram as condições práticas
exigidas no Tratado que impediam o recurso às “cooperações reforçadas”, ou mesmo
a simples tentativa de as encarar, o que justificou que Portugal favorecesse agora uma
revisão daquelas condições?
12 Portugal foi o primeiro país a apresentar, durante a CIG de 1996, uma proposta de cláusula de “cooperações
reforçadas”. Grande parte das condições então avançadas pela delegação portuguesa fez então vencimento no
texto final.
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Recorde-se que o discurso comum apontava para a necessidade de a reforma
institucional ser acordada até ao termo de 2000, com o Tratado a ser assinado dois
ou três meses mais tarde, dando-se depois os dezoito a vinte meses tradicionais para
as ratificações nacionais. Tal permitiria que, pela parte da União, o alargamento pu-
desse vir a ter lugar a partir do início de 2003 – atrasando, mesmo assim, um ano face
ao previsto como temporalmente possível no quadro financeiro da “Agenda 2000”.
Ao ligar-se a nova reforma das instituições ao desencadear do processo do
alargamento, acabava por projectar-se um duplo objectivo: por um lado, evitava-se
que os países candidatos, prioritariamente interessados no avanço rápido das nego-
ciações de adesão, pudessem apresentar ou apoiar linhas argumentativas em matéria
institucional que surgissem como dificultantes de um compromisso final; por outro,
deixava-se o ónus de qualquer cenário de crise em Nice a quantos, dentre os Quinze,
se revelassem troublemakers durante a CIG, isto é, os que se opusessem à reforma insti-
tucional radical patrocinada pelos maiores Estados.
Pela nossa parte – e ainda antes de qualquer outro país – sempre dissemos que
éramos favoráveis ao maior envolvimento possível dos países candidatos na reforma
institucional, naturalmente em moldes compatíveis com o seu estatuto de ainda não-
-membros.
Nunca escondemos que o fazíamos, não apenas por uma questão de coerência
com o que considerávamos ser um espírito de lealdade e lisura com os futuros par-
ceiros da União, a qual não devia mudar radicalmente de regras sem uma infor-
mação e diálogo com aqueles cuja entrada justificava tais mudanças, mas igualmente
porque tínhamos consciência de que as posições dos candidatos no domínio insti-
tucional poderiam vir a ajudar a reforçar aquelas que nós próprios defendíamos.
Esta nossa atitude era uma constante do nosso discurso político e foi durante anos
sustentada publicamente, não apenas em todos os contactos bilaterais com esses
mesmos países, mas igualmente junto dos nossos parceiros comunitários, neste caso
com evidente incomodidade por parte de alguns.
Foi na aplicação dessa orientação de informação aos candidatos, que víramos
entretanto consagrada nas conclusões de Helsínquia, que o Ministro dos Negócios
Estrangeiros português escreveu aos seus homólogos dos treze países candidatos, já
como Presidência mas ainda antes do início da CIG, solicitando-lhes a expressão de
posições que quisessem transmitir aos Quinze sobre a reforma das instituições que
em breve se iniciaria. As tomadas de posição recolhidas – e que, em geral, se pau-
tavam por uma grande prudência, com óbvia intenção de não dificultar a conclusão
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instituição deve, como todas as outras, reflectir no seu seio a diversidade das cul-
turas políticas e de interesses que existem na União, levou Portugal, também desde
sempre, a defender a possibilidade de poder continuar a designar um elemento para
o colégio de comissários. Ao ligar esta possibilidade à importância que teria a ob-
tenção, pela primeira vez na história comunitária, de uma absoluta igualdade dos
Estados na Comissão, estávamos a desenhar uma linha de intervenção ambiciosa no
tocante a esta instituição – e a importância deste passo deve medir-se pelas dificul-
dades com que ele se confrontou ao longo de toda a CIG.
A obtenção da igualdade dos Estados perante a Comissão implicava – como o
Protocolo anexo ao Tratado de Amesterdão já previa – a compensação a nível do
Conselho aos Estados que viessem a perder o seu segundo comissário. A questão
estava em saber de que modo tal compensação se faria, fosse optando por uma
“reponderação simples”13, por alteração da tabela até agora em funcionamento,
fosse pela introdução de factores que reforçassem o elemento demográfico. Para
Portugal, era naturalmente decisivo garantir que a compensação pela obtenção da
igualdade na Comissão se viesse a fazer pelo “preço” mais baixo possível a nível do
Conselho.
Desde muito cedo que alguns dos Estados que pugna-
vam por reformas institucionais profundas – o mote “mais vale não haver um acor-
do em Nice do que acabar num acordo de mínimos” era a expressão teórica dessa
linha – deixavam entender que, em caso de bloqueio provocado pela indisponibili-
dade dos países de pequena e média dimensão de se vergarem aos objectivos dos
maiores países, os primeiros não deixariam de ser apontados como os culpados do
fracasso da CIG, que o mesmo seria dizer, do bloqueio do alargamento.
O peso político deste argumento era significativo, pelo que se tornava impe-
rioso tentar desmontá-lo desde cedo, deixando claras publicamente as reais intenções
dos Estados de maior dimensão nesta CIG – eram eles os verdadeiros demandeurs da
reforma profunda das instituições – e tornando óbvio aos candidatos que a luta que
travávamos ia no sentido dos seus próprios interesses.
13 A “reponderação simples” consiste na revisão da actual grelha de ponderação, sem que a esta se cumule qual-
quer requisito adicional, seja de um número mínimo de Estados ou de uma certa percentagem da população
total da União Europeia.
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O alargamento como argumento
Verificou-se, no entanto, que a preferência inicial da grande maioria dos Estados-
-membros ia para uma agenda limitada16, justificada pela necessidade de não tornar
o exercício mais complexo e passível de ser concluído até Dezembro de 2000. Por
essa razão, a Presidência centrou os seus esforços na inserção da revisão das “co-
operações reforçadas” – iniciativa que, é hoje interessante recordar, foi então apenas
apoiada pela Itália e pelo Benelux17. O “entusiasmo” que o tema veio a suscitar em
alguns parceiros foi, assim, resultado de uma curiosa evolução posterior.
Enquanto delegação nacional, Portugal deixara clara desde o início a sua posição
quanto à questão da Comissão Europeia, onde não encarava sair de Nice sem a pos-
sibilidade de continuar a indicar um comissário. Porque qualquer abertura neste
domínio poderia indiciar disponibilidade para trabalhar em cenários de uma Co-
missão limitada ou hierarquizada, Portugal recusou-se mesmo a entrar num debate
teórico assente em tal perspectiva, correndo deliberadamente o risco de não con-
trolar o sentido desse mesmo debate.
No tocante ao mecanismo de decisão no Conselho, a nossa posição foi razoavel-
mente aberta – embora parte dessa abertura tivesse algo de táctico. Com efeito,
desde o início da CIG que ficou patente que todos os países “grandes” (com ex-
cepção da Alemanha) favoreciam abertamente um novo modelo de “reponderação
simples”18, que substituísse o modelo existente. Porquê? Porque qualquer “dupla
maioria”19acabaria por desigualizá-los, na prática, face à Alemanha, que sempre
contaria mais em qualquer fórmula onde a pura expressão demográfica viesse a
prevalecer como variável.
Pela nossa parte, mostrámo-nos sempre abertos a não afastar a hipótese de uma
“reponderação simples” moderada, através da qual os Estados-membros que viessem
a perder o seu segundo comissário pudessem ser compensados. Enquanto Presidên-
cia, ilustrámos no nosso relatório para a Feira um conjunto de alternativas já aventa-
das, tendo igualmente construído um novo modelo baseado numa variante daque-
a luta contra a fraude e instituição de um procurador europeu com esse fim, expiração do Tratado CECA,
desenvolvimento de outras políticas, hierarquia de normas.16 Só a Grécia, a Itália e os países do Benelux acompanhavam Portugal no interesse pelo alargamento da agenda da
CIG.17 Os países do Benelux, em documento sobre a CIG apresentado ainda durante a Presidência finlandesa, foram os
primeiros a sugerir que a agenda da CIG viesse a incluir as “cooperações reforçadas”.18 Cf. nota 13.19 “A dupla maioria” consiste na fixação de um duplo limiar expresso, por um lado, em número de Estados ou de
votos ponderados, e, por outro, em percentagem da população total da União.
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do exercício no período previsto – iam num sentido já pressentido, em função dos
alinhamentos demográficos. Isso ajudou, de qualquer forma, a definir uma tendên-
cia maioritária que se deixou expressa de modo formal no decurso dos trabalhos.
O objectivo de articulação informativa com os países candidatos prosseguiu ao
longo de toda a nossa Presidência, tendo sido, com esse fim, organizado em Maio,
em Bruxelas, um encontro de trabalho a nível governamental. Posteriormente, já no
decurso da Presidência francesa, a anteceder a sessão da Conferência Europeia em
Sochaux, foi transmitida aos representantes diplomáticos em Lisboa dos países can-
didatos a leitura de Lisboa sobre a evolução da CIG, patenteando as dificuldades que
se avizinhavam no caminho para Nice e esclarecendo sobre as principais linhas em
confronto.Tal diligência não deixaria de ter consequências interessantes nas posições
assumidas por alguns dos candidatos na reunião de Sochaux.
O que mais tarde se viria a passar em Nice, no tocante a propostas de desigua-
lização em matéria de representação nas instituições entre os actuais Estados-mem-
bros e candidatos de idêntica dimensão demográfica, terá confirmado o acerto do
alerta que, em tempo útil, fora por nós feito aos países candidatos.
Como antes se referiu, a circunstância de Portugal deter
a Presidência da União obrigou a uma acção paralela enquanto gestor relativamente
neutral da CIG e de defensor dos interesses nacionais.
A Presidência portuguesa mostrou-se, desde o início, aberta a considerar o
alargamento da agenda recebida em Helsínquia14, pelo que suscitou um largo con-
junto potencial de temas, alguns remanescentes de anteriores Conferências, outros
aventados em resoluções do Parlamento Europeu ou em tomadas de posição de ou-
tras instituições ou órgãos da União. Esta longa lista de assuntos foi colocada a todos
os Estados-membros ainda antes da abertura da Conferência, devendo referir-se que
esta atitude de grande abertura por parte da Presidência portuguesa se revelou fun-
damental para a obtenção do parecer conforme do Parlamento Europeu, que per-
mitiu o arranque dos trabalhos da CIG15.
14 As conclusões do Conselho Europeu de Helsínquia previam a possibilidade de a Presidência portuguesa propor
a inscrição de outros pontos na ordem de trabalhos da CIG.15 No anexo 7.3 do seu relatório ao Conselho Europeu da Feira, a Presidência portuguesa referiu vários temas que,
até essa data, haviam sido examinados pela CIG, sem que a Conferência houvesse concluído pela necessidade
do seu agendamento posterior: simplificação dos Tratados, repartição de competências, personalidade jurídi-
ca da União, possibilidade de adesão da UE à Convenção Europeia dos Direitos do Homem, disposições para
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A CIG na Presidência portuguesa
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Pode já hoje revelar-se que Portugal defendia um modelo que assentava em ele-
mentos que fazem parte da fórmula que acabou por sair de Nice. Com efeito, inte-
ressava-nos encarar uma limitada reponderação compensatória pela perca do segundo
comissário dos “grandes”, a que se somassem duas linhas de segurança: a exigência
da presença de uma maioria dos Estados da União e de uma percentagem mínima
de população europeia em qualquer maioria qualificada. É evidente que, nesse ce-
nário, haveria sempre que tentar regular, da forma o mais eficaz possível, três variá-
veis: os valores da reponderação (no fundo, quantos votos “valia” um comissário)
e as percentagens mínimas de votos e de população em todas as decisões por maio-
ria qualificada.
Por que razão favorecíamos que uma reponderação limitada pudesse estar no
centro do novo modelo a sair de Nice? Porque a base da qual partíamos – o modelo
que vigorou até Nice – reflectia, por contraste com um modelo de pura transposição
do factor demográfico, aquilo que podia ser considerada como uma sobrerrepre-
sentação dos países de pequena ou média dimensão. Por esse motivo, constituía uma
óptima base de negociação.
Os debates durante a Presidência portuguesa mostraram duas realidades.
Por um lado, que havia uma maioria de dez Estados em favor da manutenção de
um comissário por Estado-membro (se bem que, dentre esses, alguns pudessem
admitir a fixação de um tecto máximo e aceitassem o princípio da reorganização da
estrutura do colégio). O relatório que apresentámos à Feira afirma isto claramente.
Por outro lado, que havia uma larga maioria (uma vez mais dez Estados) con-
tra uma “reponderação simples” brutal. Mas a questão aqui era mais complexa,
porque se dentre esses dez Estados alguns favoreciam modelos de “dupla maioria”,
outros eram apologistas de uma “reponderação simples”, ainda que bastante mode-
rada. Só que estes últimos viriam a ser contados pela futura Presidência no grupo
dos que preferiam uma “reponderação simples”, o que deixava em minoria os
defensores da “dupla maioria”!
Para além da questão do tandem Comissão/Conselho, as principais discussões
no quadro da nossa Presidência processaram-se em torno do alargamento das de-
cisões por maioria qualificada – com um progresso lento, como Nice veio a reflec-
tir24 –, a revisão do art.º 7.º do Tratado, conjunturalmente potenciado pela situação
24 Os debates sobre a extensão da maioria qualificada ocuparam aproximadamente 2/3 das cerca de trezentas e cin-
quenta horas de debate desta CIG. Aprofundando o que já havia sido extensamente analisado em Amesterdão
o grupo preparatório” procurou ir um pouco mais além do que a simples passagem das disposições dos Tratados
le que os Países Baixos haviam, sem sucesso, tentado fazer passar nas últimas horas
de Amesterdão20. Este modelo, a que muito viriam a chamar o “modelo da Feira”,
veio a constituir-se numa referência para o resto dos trabalhos da Conferência21.
Mas sabedores de que sempre seria difícil controlar a ambição dos maiores
Estados no tocante à reponderação, fomos dizendo da nossa preferência pelas fór-
mulas de “dupla maioria” – onde o elemento populacional prevalecia. Verdade seja
que esta era uma posição não isenta de algum risco, caso as variáveis concretas de
tais fórmulas evoluíssem num sentido excessivo. Com efeito, algumas fórmulas de
“dupla maioria” poderiam ir muito longe na consideração do factor populacional,
tanto mais que não havia, à partida, certezas quanto à aceitação do critério da maio-
ria dos Estados22, que era uma salvaguarda compensatória essencial. Mas sempre
pensámos que a esperada rejeição deste modelo pelos “grandes” países (com
excepção da Alemanha) acabaria por ser um factor decisivo para moderar os dese-
jos de uma “reponderação simples” brutal23. O que se viria a passar nas últimas
horas de Nice mostrou que tínhamos razão.
20 O chamado “modelo de Amesterdão” (anexo 2.6 do relatório sobre a CIG da Presidência portuguesa ao Conselho
Europeu da Feira) previa uma escala de 3 a 25 votos (Portugal com 10) e consistia na duplicação dos votos
actuais (com excepção do Luxemburgo, que passaria de 2 para 3), dando 5 votos mais aos países que per-
dessem o seu segundo comissário e 2 votos aos Países Baixos. Esta proposta não foi, pelas razões que são evi-
dentes, bem aceite nos países do Benelux.21 O chamado “modelo da Feira” foi uma fórmula ilustrativa de “reponderação simples” (anexo 2.7 do relatório
sobre a CIG da Presidência ao Conselho da Feira). Nele se previa uma escala de 4 a 25, que partia do seguinte
pressuposto: todos os votos eram duplicados, sendo concedidos mais 5 votos aos países que perdessem o seu
segundo comissário.22 Trata-se do critério segundo o qual deve estar sempre representada nas decisões tomadas por maioria qualificada
pelo menos a maioria dos Estados-membros, como tem, aliás, sido a regra até à data. Este critério deve resul-
tar do sistema de ponderação que se venha a adoptar ou ser expressamente consagrado no Tratado como con-
dição autónoma.23 Se descontarmos o modelo apresentado pela Presidência no Conselho Europeu de Nice, podemos concluir que
apenas a Itália ousou tornar público um modelo de “reponderação simples” brutal (a Presidência francesa
chamar-lhe-ia “substancial” nos seus textos. Tal modelo previa uma escala de 3 a 33 votos, estes últimos para
os quatro “grandes” Estados. A Portugal caberiam 10 votos (numa primeira versão do documento apenas 8...).
Sempre considerámos que este modelo não tinha condições mínimas para ser sequer ponto de partida para
qualquer discussão.
A Suécia, por sua vez, avançou com um modelo matemático – não o tendo, ao invés da Itália, apresentado for-
malmente à Conferência – baseado na raiz quadrada da população dos Estados-membros. Na primeira versão
deste modelo (anexo 2.8 do relatório sobre a CIG da Presidência para o Conselho Europeu da Feira), a escala
ia de 1 a 18 votos, sendo concedidos 6 votos a Portugal. Em Novembro, apresentou duas variantes desse mo-
delo, cujas escalas iam de 2 a 24 e de 3 a 27, cabendo a Portugal, respectivamente, 8 e 9 votos. Qualquer
destes modelos permitia à Suécia sair do actual cluster dos 4 votos e integrar o de 5.
Refira-se que a nossa metodologia foi muito apreciada pela generalidade das
delegações dos Estados de pequena e média dimensão, não tendo sido manifesta-
mente do agrado dos “grandes” Estados, os quais, contudo, não conseguiram nela
descortinar razões concretas para se dissociarem do texto. Poder-se-á dizer que
fomos tão neutrais quanto possível, sem sermos masoquistas!
Muito foi já dito, e não apenas por nós, quanto ao modo
como a Presidência francesa geriu os trabalhos da CIG, de Julho até Dezembro. Para
o que aqui nos importa, é interessante que possamos cruzar esse comportamento
com os nossos interesses. E, nesse campo, vale a pena constatar que a Presidência
francesa foi um inesperado, ainda que não deliberado, auxiliar da nossa estratégia
negocial nacional.
Como atrás ficou dito, a divisão entre “grandes” e “pequenos” não é uma rea-
lidade concreta do dia-a-dia comunitário, onde alguns “pequenos” estão porventu-
ra mais próximos de alguns “grandes” do que todos estes entre si. Mas se esta cons-
tatação é sustentada no plano racional, ela é menos evidente quando as propostas
sobre a mesa reflectem uma inaceitável desigualização radical dos Estados com di-
ferentes pesos demográficos. E ao termos tomado mais tarde a iniciativa de denun-
ciar tais propostas, foi nossa intenção tornar o debate sobre esse ponto incontor-
nável na agenda europeia.
Ao colocar sobre a mesa, desde o início da sua gestão da CIG, documentos mar-
cados por falta de neutralidade, reflectindo com evidente desequilíbrio as posições
de uns e de outros, a nova Presidência veio, muito simplesmente, confirmar que não
estávamos a exagerar quando afirmávamos que havia uma deliberada estratégia por
parte dos maiores países para efectuar um take over da União, prévio às novas adesões.
A alargada rejeição que esses mesmos documentos foram colhendo, em quase todas
as reuniões da CIG, acabou por criar um ambiente propício à refutação quase sis-
temática de todos os textos apresentados, os quais, aliás, quase sempre ignoravam
de modo autista os argumentos alheios.
Se a nossa atitude nacional de resistência a este tipo de ofensiva teve desde o
início franca aceitação no quadro do “grupo preparatório”, por parte de países
próximos das nossas preocupações, a metodologia seguida pela Presidência na con-
dução dos vários formatos ministeriais que instituiu (reuniões formais da CIG,
“Conclaves” de MNE’s, reuniões e/ou jantares de ministros/secretários de Estado
dos Assuntos Europeus), que acarretavam uma maior atenção mediática, acabou por
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austríaca25, além de outros temas menos polémicos, como os relativos aos Tribunais
de Justiça e de Primeira Instância26, bem como o estatuto dos partidos políticos
europeus.
Um tema mais controverso começava, contudo, a despontar: a nova distribuição
de lugares no Parlamento Europeu, num cenário de alargamento, na hipótese, à
época tida como segura, daquele parlamento não vir a exceder os setecentos deputa-
dos. Neste domínio, uma proposta de simples redução linear da nossa Presidência
foi contestada pelos maiores Estados, o que levou a presumir que este seria também
um tabuleiro mais para o package deal final.
Assinale-se, por fim, que o tema das “cooperações reforçadas” só foi objecto de
um tratamento em reuniões de carácter informal (isto é, não apoiadas em docu-
mentos de Conferência), dado não fazer parte da agenda oficial do nosso mandato,
o que só viria a acontecer na Feira, em Junho. De qualquer forma, fomos tão longe
quanto possível nessa discussão, deixando alguns sinais e alertas, na tentativa de
controlo do futuro desenvolvimento do trabalho de revisão dos modelos de Ames-
terdão neste âmbito.
O relatório que apresentámos ao Conselho da Feira sobre a nossa gestão da CIG
foi deliberadamente objectivo, embora delimitador de opções para o futuro.Ter ido
por um caminho diferente – como seria moldar o sentido do relatório aos nossos
próprios interesses nacionais – representaria uma descredibilização sem qualquer
vantagem prática, que teria como segura consequência uma rejeição expressa do
texto por parte de várias delegações, deixando as mãos livres à Presidência seguinte
para “iniciar” os trabalhos da Conferência.
da unanimidade para a maioria qualificada. Assim, em ambas as Presidências, foi feito um laborioso trabalho
de “reescrita” do articulado de algumas disposições, a fim de facilitar a obtenção de consensos. No saldo glo-
bal, haverá que concluir que muito desse esforço foi inglório.25 A Conferência analisou as propostas de alteração ao artigo 7.º do TUE apresentadas pelas delegações belga e aus-
tríaca, essencialmente destinadas a institucionalizar um procedimento dito de alerta precoce, ou seja, que per-
mitisse constatar a existência, num determinado Estado-membro, de um risco de violação dos princípios enun-
ciados no artigo 6.º n.º1 do TUE. À luz dessas discussões, a Presidência portuguesa apresentou, no seu relatório
sobre a CIG para o Conselho Europeu da Feira (anexo 7.1), uma proposta de alteração ao artigo em referên-
cia, cujas linhas fundamentais viriam a ser retomadas pela redacção do artigo 7.º posteriormente aprovada
em Nice.26 Por iniciativa da Presidência portuguesa, no que foi seguida pela Presidência francesa, foi instituído um nível
paralelo de aprofundamento das questões ligadas ao TJCE e ao TPI. Esse grupo de peritos, que vulgarmente se
designa por grupo “amigos da Presidência”, reportou ao “grupo preparatório” e fez um interessante trabalho
no tocante à composição dos dois Tribunais, à reapreciação das funções do Advogado-Geral, à duração dos
mandatos dos juízes, à repartição de competências entre os dois Tribunais, à eventual criação de novos órgãos
jurisdicionais e ao procedimento de modificação do Regulamento de processo e do Estatuto do TJCE e do TPI.
A CIG na Presidência francesa
linhas orientadoras, tornava-se complicado desmontar a lógica subjacente às várias
hipóteses, obrigando, também aqui, a um constante esforço de “deslocação” do ar-
gumentário para terrenos não previstos nos documentos da Presidência, com óbvias
consequências numa certa tensão no debate.
Neste caso, as linhas de intervenção que tínhamos como firmes, e para as quais
procurávamos concitar apoios, eram a necessidade de manter sobre a mesa as pro-
postas de “dupla maioria” (que sabíamos desagradáveis para os “grandes”, com
excepção da Alemanha) e a defesa intransigente do princípio de uma maioria dos Esta-
dos-membros em qualquer maioria qualificada.
Mas era por demais evidente, em Setembro/Outubro, que o debate continuava
a resvalar para um terreno perigoso para os Estados de pequena e média dimensão.
Face à indiferença da Presidência perante as posições que se lhe opunham, pareceu-
-nos que só havia uma única solução: iniciar um blitzkrieg mediático e diplomático,
na máxima exploração da contradição “grandes”/”pequenos” e na evidenciação da
falta de neutralidade da Presidência.
Dir-se-á que este foi um método algo radical, potenciador de divisões entre os
Estados-membros e que podia fazer perigar o clima de confiança indispensável a
qualquer compromisso. Isso tem a sua quota de verdade, mas não fôramos nós os
culpados da situação, tanto mais que tínhamos a nosso crédito um comportamento
exemplar enquanto Presidência da CIG. Mas o que estava em causa era muito impor-
tante, não apenas para a defesa do interesse nacional português, mas para a preser-
vação de um certo equilíbrio inter e intrainstitucional que entendíamos desejável
para o projecto europeu. E para grandes males, só grandes remédios!
Um trabalho foi assim desenvolvido de forma sistemática junto da comunicação
social, através de artigos e entrevistas, bem como de contactos informativos regu-
lares com a imprensa internacional acreditada em Bruxelas. Colóquios, conferências,
seminários e outros eventos de natureza similar, em Portugal e no estrangeiro, foram
aproveitados com o mesmo objectivo.
E não deixou também de ser relevante toda a sensibilização feita junto de go-
vernos potencialmente próximos das nossas preocupações, em particular através da
acção das nossas missões diplomáticas, para esse fim munidas de um completo argu-
mentário. Com efeito, o nosso objectivo não se esgotava na afirmação da posição
nacional sobre os temas, por maior força de razão que aquilo que afirmávamos
pudesse ter. Para Portugal, era importante fazer partilhar das mesmas preocupações
as opiniões públicas e os parlamentos nacionais de países com idêntica dimensão,
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ser o principal factor que ajudou à criação de um ambiente de radicalização das
posições.
Os primeiros problemas colocaram-se na questão das “cooperações reforçadas”,
onde foi nítida a tentativa de diluir as garantias de respeito pelas regras e salva-
guardas dos Tratados, bem como de facilitar modelos de participação nacional restri-
ta no quadro da Política Externa e de Segurança Comum (PESC), para além de uma
imensidão de modificações das condições de trabalho, que apareciam como atenta-
dos à transparência do sistema. O intenso labor que a delegação portuguesa desen-
volveu nesta área permitiu, depois de semanas de árduos debates, atingir textos bas-
tante mais equilibrados e aceitáveis. Se hoje se comparar os textos de Julho com o
que ficou aprovado em Dezembro, poderemos verificar o quanto se andou. E, sem
falsa modéstia, é reconhecido que Portugal teve um papel de liderança neste ponto
do debate, com a autoridade que lhe advinha do facto de ter sido por sua iniciativa
que o tema fora colocado na agenda da Conferência27.
No caso da Comissão, as posições extremadas da Presidência foram mais difí-
ceis de combater, tanto mais que, escassas semanas passadas, era já dado por adqui-
rido nos textos da Presidência que não havia senão duas opções: ou uma Comissão
muito reduzida, com rotação igualitária (sendo que alguns “grandes” Estados não
confirmavam poder dispensar a sua presença permanente na Comissão) ou, caso
prevalecesse a ideia de um comissário por Estado-membro, a necessidade de intro-
dução de uma hierarquia formal entre os comissários (ficando implícita a naciona-
lidade dos comissários “coordenadores”...). Não estando nas nossas intenções
aceitar concentrar as opções nesta dualidade redutora, fomos forçados a “deslocar”
sistematicamente a discussão para outros terrenos.
Ainda mais difícil se tornou o debate no tocante ao poder de voto no Conselho,
dado que a Presidência, mesmo privilegiando os cenários de “reponderação sim-
ples”, evitou sempre colocar sobre a mesa propostas quantificadas que pudessem
objectivar uma análise concreta do tema. Situado o debate apenas em torno de vagas
27 A abordagem das “cooperações reforçadas” na CIG foi muito difícil durante a Presidência portuguesa. Países hou-
ve que começaram por se recusar a admiti-la em sessões formais do “grupo preparatório”, enquanto outras
delegações, sem afastarem em absoluto a abordagem do tema, solicitaram discretamente à Presidência que evi-
tasse colocá-lo num estádio muito inicial da CIG. Por essa razão, a Presidência decidiu abordar as “coope-
rações reforçadas” num almoço de trabalho e dedicar-lhe a totalidade da reunião informal do “grupo prepa-
ratório” em Sintra, em 14 de Abril. Foi com base nestes debates informais que a Presidência elaborou o capí-
tulo sobre as “cooperações reforçadas” que incluiu no seu relatório sobre a CIG ao Conselho da Feira e que
propôs a esse mesmo Conselho a inclusão do tema na agenda formal, o que viria a ser aceite.
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No primeiro caso, houve como que uma certa confusão entre uma generaliza-
da assunção do discurso “politicamente correcto” favorável ao tendencial abandono
da unanimidade e a falta de predisposição efectiva para levantar algumas reservas
nacionais de fundo, parte das quais vinham desde Amesterdão. Não obstante o ex-
celente e esforçado trabalho da Presidência francesa neste domínio, que envolveu
mesmo algum avanço nas próprias posições de França enquanto delegação, o opti-
mismo que ressaltou de Biarritz pareceu, a alguns de nós, um tanto excessivo, em
especial nas áreas social, fiscal e de justiça e assuntos internos. Os resultados em
matéria de maioria qualificada que saíram de Nice confirmaram a correcção dessa
leitura.
Quanto às “cooperações reforçadas”, era óbvio que a distância entre as diversas
posições em confronto vinha já sendo reduzida nas últimas semanas e que começa-
va a criar-se uma linha tendencial favorável a um texto de compromisso. Em espe-
cial, o fim da possibilidade de recurso ao Conselho Europeu por um Estado-mem-
bro que entendesse bloquear e a fixação do limiar de um mínimo de oito Estados
para o arranque de uma “cooperação reforçada” começavam a merecer grande apoio.
Porém, Biarritz pareceu iludir dois pontos que estavam ainda em aberto: a faculdade
excepcional proposta para que quatro ou cinco países pudessem agir em nome da
União no quadro da PESC e o alargamento das “cooperações reforçadas” no II pilar
à segurança e defesa. Uma larga maioria opunha-se à primeira ideia e os Estados de
tradição neutralista ou ultra-atlanticista consideravam indesejável a segunda aborda-
gem. Ambas as ideias viriam, contudo, a cair no caminho para Nice.
Os resultados políticos de Biarritz foram quase sempre lidos pela imprensa
internacional como tendo significado o ponto mais elevado de conflito entre os
“grandes” e os “pequenos” Estados, vistos estes últimos como resistentes a uma ten-
tativa clara tendente à sua menorização. Muito embora a Presidência se tivesse
esforçado para combater esta interpretação, ela acabou por passar para as opiniões
públicas, em especial dos Estados de menor dimensão, suscitando tomadas de
posição nessa mesma linha por parte de vários governos, alguns dos quais se sentiram
mobilizados para iniciarem então um processo bilateral de coordenação de posições.
Pela parte portuguesa, cujo Primeiro-Ministro fora indiscutivelmente em Biarritz
a figura mais proeminente do lado dos Estados de menor dimensão, procurou-se
garantir que se não perdia a atenção mediática para o ambiente de uma certa drama-
tização entre os dois grupos de Estados. Uma conferência de imprensa em Bruxelas
para jornalistas internacionais, de que transpirou algum pessimismo sobre a con-
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por forma a que os respectivos governos pudessem ser mais facilmente mobilizáveis
para as movimentações em sede de CIG que se previam para as últimas semanas de
negociação.
O modo como foi gerido pela Presidência o Conselho Europeu extraor-
dinário de Biarritz representou, a nosso ver, um erro maior na estratégia de Paris na
fase final da CIG.
Não se nos oferece qualquer dúvida que o que estava preparado em Biarritz era,
muito simplesmente, a tentativa de definir, de modo radical, linhas de redução das
opções que vinham a ser colocadas sobre a mesa da Conferência face aos principais
temas, com vista a fornecer “orientações” definitivas e constrangentes para o tra-
balho subsequente.
Por razões óbvias, não vamos entrar aqui em detalhe sobre o que se passou em
Biarritz e, em especial, sobre o teor dos debates informais entre os Chefes de Estado
e de Governo. Mas foi a circunstância das clivagens terem sido assumidas a um nível
tão elevado que acabou por transformar Biarritz num “ponto de não retorno” no
ambiente algo conflitual criado na CIG, com incidências concretas no resultado de
Nice. Porém, e uma vez mais, essa evolução veio objectivamente a processar-se no
sentido dos nossos interesses, e à revelia da vontade da Presidência.
A questão da Comissão saiu, assim, de Biarritz totalmente em aberto para a
decisão final, mas marcada pela esmagadora preferência pelo modelo de um comis-
sário por Estado-membro. Assumida que foi esta realidade nas várias conferências de
imprensa imediatamente após a cimeira, o tratamento do tema ia muito mais con-
trolado para Nice. Adiante veremos como as coisas acabaram por ser algo mais sim-
ples do que se temia.
Biarritz é também, do mesmo modo, o regresso da “dupla maioria” como opção
a reter em paralelo com a reponderação. Diluídos que estavam alguns equívocos do
passado, tudo regressava à estaca zero em matéria de peso nacional nas decisões do
Conselho. E, pela primeira vez a um nível tão elevado, muitas das delegações defen-
deram o princípio de uma maioria de Estados (alguns falaram então ainda de “me-
tade dos Estados”) em qualquer maioria qualificada.Também aqui, as coisas iam no
caminho que nos interessava...
Algum equívoco se estabeleceu em Biarritz, contudo, quanto a possíveis avan-
ços na extensão da maioria qualificada e no tocante às “cooperações reforçadas”.
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O erro de Biarritz
da Presidência às diversas capitais, acabou por se revelar vital na preparação do
ambiente para a derradeira cimeira.
Não obstante um ambiente mais distendido que se verificou nas
últimas semanas, marcadas por uma atitude menos pressionante por parte da
Presidência, ninguém tinha dúvidas de que, na cimeira de Nice, iriam ser ressusci-
tadas algumas propostas favoráveis aos países mais populosos.
1.º dia (5.ª feira, 7 de Dezembro)
O primeiro dia do Conselho Europeu iniciou-se com outros temas, para além da
CIG. Após um encontro com os países candidatos à adesão, foi feita a “proclamação”
da Carta dos Direitos Fundamentais, afastada que estava já então a possibi-lidade da
sua integração ou simples referência no Tratado.
O debate dos Chefes de Estado e Governo sobre a reforma institucional foi re-
lativamente genérico, sendo repetidas as posições nacionais tradicionais.
2.º dia (6.ª feira, 8 de Dezembro)
A CIG só voltou a ser abordada a partir de metade da tarde. A Presidência convocou
cada delegação para “confessionários” bilaterais onde, sem dar qualquer indicação
sobre as suas intenções, ouviu apenas o que cada Estado tinha para defender como
posição nacional. Foi possível verificar os efeitos benéficos das conversas de coor-
denação havidas nas semanas anteriores, não obstante se pressentir que, no caso da
Comissão, havia o risco de serem exploradas algumas nuances no discurso dos Estados
de menor dimensão.
Pela nossa parte, deixámos as seguintes preferências: “dupla maioria”, embora
pudéssemos encarar o “modelo da Feira” em matéria de reponderação, mas sempre
associado com o princípio da maioria de Estados; Comissão com um comissário por
Estado-membro, com hipótese de revisão quando se atingisse um determinado
número de Estados, sem se determinar desde já o sentido dessa revisão; recusa do
lançamento de “cooperações reforçadas” por um número de Estados inferior a oito,
mas aceitando a segurança e defesa como tema possível, tendo sido expresso o inte-
resse em ver reforçado nesse contexto o papel da Comissão. Na maioria qualificada,
a nossa lista negativa era a habitual: algumas escassas áreas da fiscalidade, assuntos
sociais, limitados temas ligados à livre circulação de pessoas e à coesão económica
e social (abrindo aqui a possibilidade para a fórmula que veio a ser consagrada,
como adiante se verá).
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tribuição de Biarritz para um avanço da CIG, entrevistas em várias televisões, rádios
e imprensa de países membros, assim como a presença do Governo português num
longo e activo debate no Parlamento Europeu (a anteceder precisamente a presença
da Presidência nessa mesma instância), fizeram parte dessa estratégia, sempre acom-
panhada por uma intervenção activa e firme no quadro das reuniões ministeriais e
do “grupo preparatório”. O objectivo era inequívoco: sublinhar em toda a parte a
nossa sincera indisponibilidade para vir a aceitar um acordo que nos menorizasse
de forma injusta no poder no Conselho, explicar o que alguns pretendiam, de facto,
com a ideia da redução da Comissão e – o que não deixava de ser vital, como adian-
te se verá – continuar a referir os efeitos das propostas mais radicais sobre a posição
dos futuros aderentes no quadro da União.
Durante algum tempo no mês de Novembro, Portugal entendeu não dever
aceder a apelos no sentido de que fosse o nosso país a tomar a iniciativa de coor-
denar algumas posições do grupo de Estados de pequena e média dimensão. No
entanto, o agravamento do clima negocial levou a que promovêssemos, em 24 de
Novembro, uma reunião discreta dos negociadores da CIG dos dez Estados de
pequena e média dimensão, que teve lugar na Representação Permanente de Por-
tugal em Bruxelas. O objectivo imediato era conseguir repor na agenda da CIG a
proposta da “dupla maioria”, que a Presidência tinha formalmente abandonado,
bem como definir eventuais linhas comuns sobre a questão da Comissão que pu-
dessem ser transmitidas na reunião desse mesmo dia e nos “confessionários” bila-
terais que a Presidência entretanto iniciara com cada país28.
Esta iniciativa provou a sua utilidade: não apenas a “dupla maioria” ficou, de
novo, consagrada como opção alternativa à “reponderação simples” na reunião da
CIG desse mesmo dia, mas também, no caso da Comissão, a Presidência e os maiores
Estados puderam observar a afirmação de uma abordagem maioritária (embora nuan-
cée nas suas várias fórmulas) que se opunha às suas propostas e que ditava já a linha
que viria a projectar-se em Nice.
Este trabalho de coordenação nas últimas semanas, que passou posteriormente
por intensos contactos bilaterais aos mais diversos níveis, acompanhando as visitas
28 As reuniões tipo "confessionário" são encontros da Presidência com as delegações nacionais, durante os quais
estas explicam as suas principais dificuldades na negociação, ficando implícito que tais declarações não serão
transmitidas aos outros parceiros. Durante esta CIG, tiveram lugar dois "confessionários" a nível de represen-
tantes dos governos (um em cada Presidência) bem como uma reunião do mesmo género, já em Nice, a nível
de Chefes de Estado e de Governo.
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Crónica dos dias de Nice
confundido com quaisquer reticências face ao alargamento, como alguns poderiam
ser tentados a sugerir mais tarde.
Sem o carácter de documento formal, Portugal circulou uma contraproposta de
reponderação a Quinze que deixava em aberto a hipótese de à Alemanha serem
dados mais votos do que aos restantes três países que compartilhavam o mesmo clus-
ter, dava menos dois votos à Espanha e deixava sem indicação a quantificação da pos-
sível descolagem dos Países Baixos do cluster onde também estava Portugal (que, ao
contrário da Bélgica, não se opunha a esta valorização dos Países Baixos), do qual
fazia aproximar a Suécia.
Entretanto, uma proposta rectificativa do modelo português de reponderação
viria a ser mais tarde apresentada pela Finlândia, a qual para nós era também aceitá-
vel como base de trabalho. Em qualquer dos casos, a Presidência recusou submeter
os textos à discussão, pelo que as sondagens sobre a possível aceitação daquelas ta-
belas se processaram sempre à margem da sessão.
O Governo português deixou entretanto evidente, perante uma ávida conferên-
cia de imprensa internacional, que, com base no que havia sido proposto, não havia
condições para qualquer compromisso, apelando à Presidência para repensar.
No início da sessão da tarde, a Presidência apresenta um novo documento de
sessão. Quanto à ponderação, mantinha-se o quadro da manhã, com a referência a
58% de população europeia exigida para qualquer maioria qualificada (percen-
tagem mínima actual), mantendo-se a salvaguarda da maioria do Estados revertida
(uma maioria qualificada estaria obtida se não tivesse contra ela uma maioria de
Estados). Quanto ao Parlamento Europeu, o quadro era idêntico ao de manhã.
Surpreendentemente, porém, este texto continha já uma proposta sobre a Co-
missão Europeia que era perfeitamente aceitável para Portugal: um comissário por
Estado-membro até a União ter vinte e sete Estados e, a partir de então, uma Co-
missão com um tecto mais reduzido a ser definido, nessa altura, por unanimidade.
No entanto, ficava desde já garantida a rotatividade em moldes absolutamente iguali-
tários e abandonavam-se quaisquer ideias de hierarquia ou coordenação. A indicação
de vice-presidentes seria feita nos moldes que vínhamos a defender e os poderes do
presidente eram retocados de forma aceitável.
Que razões levavam a Presidência francesa a colocar, tão cedo na negociação,
uma proposta sobre a Comissão de tão fácil aceitação? Excluída a hipótese de erro,
só pode entender-se como um gesto para vários Estados de pequena e média dimen-
são que tinham apresentado a questão da Comissão como essencial, tentando assim
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3.º dia (Sábado, 9 de Dezembro)
O documento apresentado pela Presidência, na manhã do terceiro dia, não ofereceu
a mais leve surpresa à delegação portuguesa. Quase linha por linha, as propostas
eram previsíveis e, na sua generalidade, inaceitáveis. O dia não ia ser fácil.
Naquela que foi a primeira proposta quantificada em matéria de ponderação de
votos, a Presidência francesa propunha uma escala de três a trinta votos (com
Portugal a dispor de dez). O critério da maioria dos Estados era apresentado pela
negativa: uma maioria qualificada estaria obtida se não tivesse contra ela uma maio-
ria de Estados.
No caso da Comissão, mantinha-se a ideia, que a Presidência vinha a acalentar,
de fixar um tecto de vinte comissários em 2010, com rotação igualitária.
No caso do Parlamento Europeu, era feita uma distribuição que favorecia mani-
festamente os grandes Estados, mas ainda dentro do limite de setecentos deputados
previsto no Tratado de Amesterdão.
As questões sensíveis sobre a maioria qualificada eram apresentadas em termos
gerais, sem textos de apoio, o que tornava a discussão mais complexa. Porém, a coesão
económica e social (art.º 161.º) era já apresentada como podendo passar a maioria
qualificada a partir de 2007 (ou adiada até à adopção das novas perspectivas finan-
ceiras), como os “países da coesão” pretendiam.
O Primeiro-Ministro português, o primeiro a intervir na sessão, fez um forte
ataque às propostas, que rejeitou liminarmente, falando em “golpe de Estado insti-
tucional” por parte dos “grandes” países. Deixou claro que o Governo português –
que mantinha um contacto permanente com a sua oposição – não concordava com
elas nem tinha qualquer espaço político de manobra interno para as poder vir a
aceitar.
Na primeira ronda de intervenções verificou-se que as propostas da Presidência
tinham apenas um apoio minoritário. Além disso, o texto comportava uma evidente
“provocação” aos países candidatos, ao dissociar no Conselho a Polónia da Espanha
(reconhecido mais tarde como une erreur de frappe por parte da Presidência) e ao dar
uma expressão de voto o mais reduzida possível à maioria dentre eles.
Entretanto, fontes da delegação portuguesa foram autorizadas a expressar junto
dos meios de comunicação social dos países candidatos esta nossa leitura, não ape-
nas na lógica de coerência do que sempre afirmáramos, mas também para explicar
que um possível veto que Portugal viesse a fazer ao Tratado de Nice não deveria ser
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que retirara dos debates. Sabia-se que a Presidência procuraria jogar no dia seguinte
com a “conquista” pontual de algumas delegações, sugerindo compensações a nível
de outras áreas, de que eram exemplo mais óbvios os lugares no Parlamento Eu-
ropeu, que passou a funcionar, até ao fim do Conselho Europeu, como uma espécie
de “saco azul” para compensações negociais. Mas sabia-se que o cenário de crise
também não era descartado por Paris, falando-se mesmo na eventualidade de, pe-
rante o impasse, virem a ser convocados pela Presidência os países fundadores da
União. Para uma eventual “refundação” da União?
Para Portugal, não obstante os avanços conseguidos na Comissão, o cenário não
parecia brilhante, mas a determinação em não aceitar um resultado desequilibrado
era plena, não obstante os riscos políticos que encerrava. Moderámos, contudo o
nosso discurso mediático, sublinhando os aspectos positivos do novo documento da
Presidência (solução para a Comissão), deixando claro estar-se ainda muito longe
quanto aos restantes pontos, pedindo um esforço de aproximação à Presidência. A
hipótese de não-acordo continuava a ser sugerida como possível – e isso corres-
pondia ao sentimento verdadeiro da delegação portuguesa.
4.º dia (Domingo, 10 de Dezembro)
A Presidência iniciou os trabalhos com um novo documento.
Quanto ao Conselho, era apresentada uma nova tabela de ponderação de três a
trinta votos (com onze para Portugal, em lugar dos dez anteriores). O limiar da
maioria qualificada de votos subia para 73,3 % (em lugar dos 71,3 % actuais). A
população mínima exigida para uma maioria qualificada passava a 62% (em lugar
dos 58% actuais), mas com uma cláusula de verificação demográfica30. O princípio
da maioria dos Estados-membros voltava a figurar de forma inversa.
Quanto ao Parlamento Europeu, a Presidência “rompia” o tecto de setecentos
deputados fixado em Amesterdão e continuava a favorecer os grandes Estados.
Portugal, Bélgica e alguns outros países dizem continuar a não poder aceitar o
proposto. Porém, era sensível que alguns Estados de pequena e média dimensão
começavam a dar preocupantes sinais de flexibilidade quanto ao modelo de repon-
deração.
acta final da conferência, uma agenda de trabalhos centrada num debate sobre o futuro da União, a prolongar-
-se pelas Presidências sueca e belga, e que deverá culminar, em 2004, com a convocação de uma nova CIG.30 Esta cláusula permite a qualquer Estado-membro pedir, sempre que uma decisão for tomada por maioria quali-
ficada, a verificação de que essa maioria representa, pelo menos, 62% da população total da União. Caso tal
não se constate, a decisão em causa não será adoptada.
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“comprar” a sua imediata boa vontade quanto à reponderação ou, pelo menos, ate-
nuar a sua resistência neste domínio. Se esta era a aposta, ela falhou por completo.
Assim, Portugal iniciou o debate da tarde dando o seu acordo ao capítulo da
Comissão – o que viria a ser repetido praticamente por todos os dez Estados de
pequena e média dimensão –, continuando a rejeitar as propostas quanto ao Con-
selho e ao Parlamento Europeu. Com a Comissão “adquirida”, a luta passou a con-
centrar-se nestes dois pontos.
Em paralelo com o início da sessão da tarde, algo se passou, entretanto, nos bas-
tidores. Dada a insistência da Presidência em torno das teses de reponderação, e a cir-
cunstância das contrapropostas portuguesa e finlandesa terem provocado uma divi-
são entre Estados de pequena e média dimensão que se constatava impossível de con-
ciliar, tornava-se necessário conseguir repor na discussão do Conselho Europeu a tese
da “dupla maioria”. A razão era simples: a incomodidade que tal provocaria à Presi-
dência francesa poderia ajudar a moderar as suas propostas radicais de reponderação.
Portugal tomou a iniciativa de organizar uma reunião de emergência dos nego-
ciadores do Grupo Preparatório dos dez Estados de pequena e média dimensão. Se
as divisões no tocante aos modelos de reponderação eram evidentes (a rejeição da
Bélgica de deixar os Países Baixos sair do cluster comum, se à Alemanha não fosse
dado o mesmo tratamento, continuava firme; a subida da Suécia não agradava a
alguns parceiros), quase todos se mostraram inclinados a propor aos seus Chefes de
Estado e de Governo a retoma da hipótese da “dupla maioria”. Acrescia que a
Alemanha dera sinais de continuar a persistir no modelo (e a não insistir formal-
mente em ter mais votos que a França) e a Itália fizera constar que a ele poderia vir
a aderir.
Entretanto, a “batalha” da comunicação social continuava a ser ganha pelos
pequenos e médios Estados, que lançavam de modo regular avisos sobre a sua recusa
das soluções propostas e, no limiar, culpavam a metodologia e o carácter pouco re-
presentativo das propostas da Presidência por um possível insucesso. O trabalho
junto da comunicação social dos países candidatos continuava também a ser desen-
volvido com intensidade.
Depois de debater aspectos da maioria qualificada e do cenário “pós-Nice”29, a
Presidência encerrava os trabalhos deste terceiro dia sem dar mostras das conclusões
29 Em consequência da pressão de alguns Estados-membros, particularmente da Alemanha – sujeita às fortes exi-
gências dos Länder no sentido de vir a ser iniciado, a prazo, o processo de delimitação de competências entre
os Estados-membros e a União Europeia – e da Itália, ficou estabelecida em Nice, em declaração inscrita na
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dois a três meses. O Primeiro-Ministro português tem duas intervenções muito for-
tes, continuando a dar mostras de não poder ter qualquer flexibilidade.
A Presidência francesa faz novas consultas e procura bilateralmente Portugal.
Propõe agora baixar de 30 para 29 os votos dos maiores Estados (Espanha passaria
de 28 para 27), subindo Portugal para 12 votos. O princípio da maioria dos Estados
seria incluído como Portugal desejava. Os limiares de votos e de população passa-
riam respectivamente a 74, 56% e 62%, neste caso com a cláusula de verificação
demográfica. Portugal afirma discordar no limiar proposto para a maioria qualifica-
da, que prejudica a pretendida facilitação do processo de decisão, que constituía o
objectivo desta CIG. Porém, num espírito de compromisso, aceita a proposta, desde
que o acordo geral possa ser conveniente a todos os parceiros.
A Bélgica, contudo, não aceita. O acordo é insatisfatório dado que os Países Bai-
xos saem do seu cluster, o que atenta contra os equilíbrios do Benelux. Para além da
realização de Conselhos Europeus em Bruxelas – que passa a “capital da Europa”! –
são-lhe oferecidos 22 parlamentares europeus (em lugar dos 20 que a tabela antes
proposta lhes atribui, tal como a Portugal e à Grécia). A Grécia, que tem mais po-
pulação, naturalmente não aceita.
Um certo parceiro europeu sugere informalmente à Presidência que a Bélgica e
a Grécia fiquem com 22 deputados, deixando Portugal apenas com 20. Avisada do
alvitre por alianças velhas, a nossa delegação deixa claro que se oporá, o que faz com
que a Presidência decida atribuir a Portugal também 22 deputados.
A Bélgica continua a resistir ao acordo, que aceitaria facilmente se à Alemanha
fosse dado, pelo menos, mais um voto que aos restantes três grandes Estados. Após
várias interrupções, a Bélgica cede, desde que se crie um novo cluster superior ao dos
Países Baixos, dando à Roménia 14 deputados (em lugar dos 13 previstos). No
debate, e para corrigir uma injustiça evidente na proposta inicial, à Lituânia são
dados mais 2 votos, pelo que passa a 7. Finalmente, a Bélgica exige um limiar evo-
lutivo da percentagem de votos para a maioria qualificada, só se atingindo os 73,4%
propostos pela Presidência no final do alargamento aos 27 Estados, a fim de facili-
tar o processo decisório.
Está obtido o compromisso, embora se tenha saído de Nice com uma con-
tradição aritmética entre estes limiares percentuais e os votos.A Espanha é o país que
mais reclama porque, apesar de ter obtido uma subida substancial do seu peso no
Conselho, não alcança o objectivo central que trazia para a Conferência – poder blo-
quear com um Estado “grande” e com um “médio” –, para além de ser o país mais
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A Presidência interrompe a sessão e, ao retomá-la, coloca sobre a mesa uma
proposta de reforço da posição do Luxemburgo e de Chipre (em ambos os casos de
3 para 4 votos). O gesto face a Chipre foi interpretado por alguns como uma atitude
que poderia também flexibilizar Atenas, o que, contudo, não viria a acontecer. Dan-
do como aceites estas alterações, a Presidência propôs encerrar o debate sobre a
reponderação e retomar o tema do “pós-Nice”.
Portugal interrompe para deixar uma mensagem clara à Presidência: perante as
propostas que continuam sobre a mesa quanto aos votos, não aceita o Tratado. A
Bélgica secunda esta intervenção. A sessão é de novo interrompida.
Após o almoço, o Primeiro-Ministro francês pede para ver o seu homólogo por-
tuguês, que lhe repete o que Portugal desejava: recuo em votos dos maiores países,
subida de Portugal para 12 votos e maioria dos Estados exigida em qualquer maio-
ria qualificada.
No início da sessão da tarde, a Presidência decide tratar de outros temas. Na
maioria qualificada, Portugal obtém tudo o que deseja. As “cooperações reforçadas”
ficam num modelo aceitável para nós. Entretanto, fruto de um debate no Comité
Político, o art.º 17.º sobre a PESC evolui da forma que Portugal vinha a apoiar há se-
manas.
Nos corredores da cimeira e na sala de imprensa, o isolamento de Portugal e da
Bélgica começava a ser o facto mais comentado, não obstante vários outros Estados
de pequena ou média dimensão, perante estas duas posições, darem mostras de par-
tilhar as preocupações daqueles dois países.
A delegação portuguesa começou, entretanto, a preparar um projecto de decla-
ração justificativa da sua possível decisão de não dar o seu acordo no final da Con-
ferência. O projecto chegou informalmente a elementos do Secretariado-Geral do
Conselho e a delegados de alguns Estados-membros. Minutos mais tarde, algumas
cadeias internacionais de televisão e de rádio davam como certo o abandono de Por-
tugal da cimeira. Em conferência de imprensa posterior, o Governo português ma-
nifestava o seu empenho em continuar a discussão, até à obtenção de um acordo.
Sem confirmar a existência do texto de abandono, Portugal advertia que esse cenário
não podia ser descartado em absoluto.
Entretanto, no Conselho Europeu, a questão dos votos domina o debate, com
várias interrupções para consultas bilaterais. Muitos outros Estados de pequena e
média dimensão passam a sublinhar, de uma forma mais clara, a sua oposição às
propostas da Presidência, a qual chega a aventar a possibilidade de adiar a CIG por
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O facto de termos conseguido posicionar-nos de modo responsável nos temas
mais estruturantes (extensão da maioria qualificada e “cooperações reforçadas”)
deu-nos crédito para poder ter uma atitude de grande firmeza nas questões de
influência e poder (Comissão e peso no Conselho). Alguns esperariam que não
fôssemos tão longe na defesa de certas posições, mas foi patente que todos perce-
beram desde cedo qual era a nossa margem política de manobra interna, bem como
a coerência e a fundamentação global da nossa atitude na CIG. E o facto de termos
saído de uma Presidência bem sucedida, com um Primeiro-Ministro com uma ima-
gem europeísta bem firmada, deu outra solidez à nossa posição nos últimos meses
da negociação, em especial nos Conselhos Europeus de Biarritz e de Nice.
A firme definição de posições nas sessões ministeriais da CIG, bem como nos
Conclaves e noutras reuniões de nível idêntico, contribuiu para reforçar politica-
mente o trabalho executado no “grupo preparatório” e, de uma forma muito vin-
cada, foi decisiva para estruturar a intervenção posterior nos Conselhos Europeus. A
circunstância de ter ficado evidente que existia uma linha argumentativa coerente e
sem hesitações, que atravessava de forma transversal os diversos patamares de nego-
ciação, revelou-se um factor caracterizador da posição nacional que acabou por ter
a maior importância.
De destacar a acção das nossas Embaixadas e os contactos com os representantes
diplomáticos dos Quinze e dos países candidatos em Lisboa. No primeiro caso, foi
possível dotá-las de linhas de pesquisa que iam aprofundando a evolução das posi-
ções nacionais, passando também as mensagens certas para todos os nossos parcei-
ros. No segundo caso, tentou garantir-se que aos representantes diplomáticos es-
trangeiros eram transmitidos, com o maior rigor, os elementos exactos sobre a nossa
atitude perante as grandes questões. Todos eles testemunharão que o que sempre
lhes foi dito como posição nacional foi precisamente o que se levou à prática.
No âmbito parlamentar, é de destacar o diálogo constante mantido com a Co-
missão dos Assuntos Europeus da Assembleia da República, que recebeu todos os
documentos da Conferência e com a qual foram discutidos à exaustão os diversos
passos da negociação, o que viria a ser extensivo à sua congénere dos Negócios Es-
trangeiros, quando o Governo a ela foi convocado.
Os contactos directos do Primeiro-Ministro com os líderes da oposição, antes
da Feira, de Biarritz e de Nice, além de várias vezes durante o curso desta última ci-
meira, revelou-se crucial para dar à posição defendida pelo Governo um cariz tanto
quanto possível nacional.
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penalizado no Parlamento Europeu (menos 23% de deputados). O diferendo
resolver-se-ia nos derradeiros dias de Dezembro.
Para Portugal, o compromisso de Nice era satisfatório. Na Comissão, na maio-
ria qualificada, nas “cooperações reforçadas” e no Parlamento Europeu obtivéramos
excelentes resultados. Nos votos no Conselho, a percentagem de poder que cabe a
Portugal é melhor que a de qualquer outro modelo discutido à mesa da CIG –
mesmo o “modelo da Feira” com que a nossa própria Presidência ilustrara uma fór-
mula possível. Embora os limiares para a maioria qualificada tenham subido, o que,
em princípio, favorece a posição dos países mais populosos, é de sublinhar que, tor-
nando-se as minorias de bloqueio mais pequenas, sobe teoricamente o peso poten-
cial de Portugal dentro delas. Além disso, a introdução do critério da maioria dos
Estados fornece uma rede suplementar de segurança da maior importância. Se é per-
mitida uma nota pessoal ao autor deste texto, é para dizer que, no início desta CIG,
ainda não acreditava que fosse possível vir a introduzir uma salvaguarda deste
género no Tratado de Nice.
O que atrás fica dito espelha, de forma tão fiel quanto possível, aqui-
lo que constituiu a estratégia negocial portuguesa durante a Conferência Intergo-
vernamental de 2000. Como todas as experiências semelhantes, incorpora elemen-
tos de conjuntura, posições pré-definidas e adaptações tácticas ao longo dos traba-
lhos. Julgou-se útil deixar aqui este testemunho, como elemento de análise e de
estudo, não obstante ele não poder deixar de ser relativizado, por se tratar de uma
perspectiva que é forçosamente subjectiva, até porque interessada e participante.
De notar que a circunstância de ter cabido a Portugal a condução da CIG na
primeira fase dos trabalhos, e de a ter exercido da forma independente como o fez,
acabou por se revelar um elemento que propiciou o reconhecimento de uma certa
linha de coerência na atitude nacional.
Portugal apresentou, desde o início, uma agenda de posições muito clara e ló-
gica, que aliava um espírito afirmadamente europeu com a defesa de posições de
interesse nacional onde muitos outros se reviam. Não nos confinámos aos temas de
implicação directa para o país, antes estivemos em todos os espaços de debate, sem-
pre numa filosofia de onde decorriam óbvias prioridades e hierarquia de interes-
ses, que tentámos sempre que fossem transparentes para os nossos parceiros. Mesmo
a nossa intransigência em muitos momentos procurou estar sempre apoiada num ar-
gumentário com solidez europeia.
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Algumas conclusões
De igual modo, foi decisiva a frente do Parlamento Europeu, credibilizando a
Presidência portuguesa na fase de lançamento da CIG – quer no plenário, quer nas
Comissões especializadas –, por forma a Portugal ter a possibilidade de ver escutadas
as suas posições enquanto delegação nacional, na fase final da Conferência.
Parece ainda de destacar, por ter sido indispensável nesta CIG, o constante tra-
balho com a comunicação social, quer nacional, quer estrangeira. Não se tratou de
a instrumentalizar, passando mensagens viciadas, mas apenas de aproveitar o des-
taque dado às posições nacionais para sublinhar, com grande força, quais os nossos
limites e a nossa leitura franca sobre aquilo que estava verdadeiramente em causa.
Por vezes essa franqueza surpreendeu alguns, por extravasar da linguagem redonda
com que certa escola diplomática se habituou a almofadar a realidade. Mas essa foi,
num certo momento, a única resposta possível para poder fugir de alguns becos
negociais onde tentaram encurralar-nos – porventura pelas melhores razões, mas
que não eram as nossas...
Neste campo, poder-se-á argumentar que algumas vezes se terá ido bastante
longe na dramatização dos conflitos de posições, em especial entre Estados “gran-
des” e “pequenos/médios”. Essa, contudo, foi uma condição mínima e essencial
para conseguir chamar a atenção para a inadequação e desequilíbrio de certas pro-
postas, as quais, a terem vingado, teriam representado percas de grande importân-
cia para os interesses do país e para aquilo que entendíamos serem os equilíbrios
vitais do processo europeu. O discurso de contraposição com outros interesses afir-
mados por alguns dos nossos parceiros, em especial pela Presidência francesa, foi
sempre mantido nos limites de um são relacionamento, que não exclui a frontali-
dade, nunca se situando – contrariamente a alguns relatos – num registo de qual-
quer conflitualidade política bilateral. Cada um de nós defendeu os interesses que
entendia por legítimos, no quadro de afirmação democrática de atitudes e de ob-
tenção de consensos que as instituições da União Europeia proporciona.
A CIG 2000 – a única Conferência Intergovernamental em cuja direcção
Portugal participou – acabou por não ser o exercício de revolução radical das insti-
tuições em que alguns a pretendiam transformar, da mesma maneira que o seu
resultado não terá sido totalmente inócuo face a certos equilíbrios que outros, como
nós, entendiam dever preservar. Foi, contudo, o exercício do possível que permite à
Europa continuar a caminhar e a Portugal participar nesse movimento com uma
razoável capacidade de afirmação. Não era outro o nosso objectivo.NE
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DEFINITIVAMENTE, o Conselho Europeu de Nice, o último do século XX, não foi ape-
nas mais uma cimeira europeia. Mais pelo seu historial do que até pelos termos con-
cretos do acordo subjacente ao futuro Tratado, o Conselho Europeu da Presidência
francesa foi singular.
Na verdade, nunca como em Nice os parceiros europeus haviam sido confron-
tados com uma tão real e tão indisfarçável luta pela partilha do poder.
Em praticamente cinquenta anos de integração, a realidade comunitária foi cria-
da a partir de um processo dialéctico, arbitrado por um pragmatismo flexibilizante
em que o projecto europeu correspondeu simultaneamente a um ideal e a uma
necessidade comum.
Em cada momento, a construção europeia teve na retaguarda uma explícita
comunhão de valores e ideais que, moldando a identidade europeia, lhe empres-
taram a unidade e a consistência necessárias para o confronto com os sucessivos
desafios europeus.
Os avanços e recuos do modelo gizado para a Europa fizeram-se sempre em
conjunto e solidariamente, corporizando por esta via a aposta europeia, e indo em
cada momento ao encontro das exigências económicas e políticas dos Estados e das
nações no respeito da identidade e da diversidade histórica e sociocultural dos povos.
Mas agora, após haverem enfrentado tão significativos desafios políticos para
moldar o devir europeu, de terem superado em conjunto tantos obstáculos e expe-
rimentado frequentes tensões e rivalidades, os parceiros europeus sentaram-se pela
primeira vez à mesa das negociações, não para debaterem a realidade comunitária e
a Europa, mas antes para responderem às necessidades de projecção do poder na-
cional de alguns Estados-membros no quadro de uma Europa alargada.
Uma agenda estratégica que, afinal, acabou por deixar marcas, afectou a con-
fiança entre os parceiros europeus e defraudou as naturais expectativas dos países
candidatos. Uma agenda que, dificilmente, não deixará de enfraquecer tanto a espí-
rito europeu, como a própria essência do método comunitário.
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Maria Eduarda Azevedo | Deputada,Vice-Presidente do Partido Social Democrata
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A dupla leitura de Nice
Com esta classificação esqueceu-se que, nos momentos decisivos do processo
de integração, a coexistência de países pequenos e grandes nunca foi obstáculo ao
progresso gradativo e seguro para alcançar patamares cada vez mais exigentes da
construção da Europa. Ignorou-se, também, que é nessa diversidade que tem resi-
dido um permanente teste ao empenhamento, ao élan e, sobretudo, ao esforço de
coesão dos parceiros europeus. Subalternizou-se o princípio da coesão económica e
social plasmado no Tratado de Maastricht, onde radica um verdadeiro pólo de atrac-
ção para os países mais desfavorecidos e não-membros.
Esqueceu-se, ainda, que tendo praticamente concluída a integração económica,
a União Europeia carece agora, mais do que nunca, do apoio convicto e do empe-
nhamento dos seus cidadãos se realmente quiser operar avanços na exigente ver-
tente política.
Assim, enquanto no âmbito das respectivas agendas domésticas, a generalidade
dos Governos europeus demonstra uma inclinação cada vez mais irresistível para
abraçar a moda da governação por sondagens, em matéria de construção europeia,
paradoxalmente aparentam negligenciar os contínuos sinais de cepticismo e descon-
fiança que as opiniões públicas europeias não têm cessado de evidenciar.
Com efeito, de um momento para o outro foi como se a sábia gestão política
das interdependências económicas e sociais e a solidariedade intercomunitária pas-
sassem a carecer de sentido e alcance.
Neste cenário, a reponderação do peso dos Estados tornou-se, pelo menos para
certos membros, uma questão incontornável. E, suplementarmente, também inadiá-
vel, tanto mais que havia já prescrito quer a moratória concedida para a adopção das
perspectivas financeiras incluídas na Agenda 2000, quer o tempo de graça requeri-
do para a conclusão da Conferência Intergovernamental de 1996 e para a realização
do processo de ratificação do Tratado de Amesterdão.
Ora, sem mais razões fundadas para continuar a protelar o alargamento, cujo
atraso injustificado alimentava já um insustentável murmúrio ao nível dos can-
didatos, a União só podia aceitar lançar-se neste novo imperativo, assumindo que
com as novas adesões nada será como dantes.
De facto, com a concretização das próximas adesões quão longe vão ficar a con-
tinuidade/proximidade geográfica e o desejável grau de homogeneidade económi-
ca e social, bem como os laços de identidade cultural e religiosa de que, até agora,
desfrutaram os Estados-membros da Comunidade Europeia. Condições que, mesmo
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Sintomaticamente, foi o desígnio histórico, geopolítico e geoestratégico do
próximo alargamento às jovens democracias do Centro e Leste europeu que, de
forma indirecta, constituiu o pretexto imediato e ponderoso para o envolvimento,
activo e empenhado, dos Estados-membros da União nesse exercício de reponde-
ração do seu peso relativo. Para cada um fora chegado o momento de, à 1uz de uma
indiscutível contabilidade nacional, apurar os ganhos e perdas do alargamento e,
subsequentemente, jogar a cartada de influenciar os equilíbrios institucionais mais
favoráveis no seu estrito interesse.
De facto, é evidente que, num cenário marcado pela quase duplicação a prazo
do número de países membros, os equilíbrios institucionais laboratorialmente cons-
truídos e consolidados ao longo de décadas, responsáveis pelo longo período de
paz, estabilidade e prosperidade vivido na Europa, tinham necessariamente de sofrer
ajustamentos. Dificilmente a União poderá viver com meras adaptações “aritméti-
cas” na composição dos diferentes órgãos ou no cálculo do número de votos cor-
respondente às maiorias qualificadas como nos anteriores alargamentos.
Todavia, embora inevitáveis, tais ajustamentos não justificavam, e muito menos
legitimavam, o propósito de discriminação que se procurou estabelecer entre os
Estados-membros em função da respectiva dimensão, densidade demográfica e pros-
peridade.
Mas os interesses nacionais dos “grandes” acabaram por falar mais alto e, assim,
em Nice as máscaras caíram, tendo-se introduzido pela primeira vez a distinção
explícita entre países grandes, médios e pequenos. Deste modo, abriu-se uma linha
divisória artificial e uma perigosa clivagem entre os parceiros europeus, potencia-
dora de conflitos estéreis e de estratificação do tecido europeu.
Antecipou-se, assim, uma terceira forma de diferenciação dos Estados a acrescer
às consagradas, resultantes quer de desníveis de desenvolvimento, quer do cumpri-
mento diferenciado de certas metas e critérios de qualificação (aferidos por indi-
cadores conjunturais) para a participação na integração monetária.
Agora, sem estar necessariamente associada ao maior ou menor grau de desen-
volvimento ou preparação para responder às exigências da integração, a verdade é
que a esta nova tipologia podem ser ligados caracteres como a perificidade ou uma
menor familiaridade com as políticas de rigor, o que, porventura, poderá redobrar
as dificuldades de participação nas novas e mais exigentes fórmulas de integração
económica e política.
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o cerne da negociação. Assim, mau-grado a importância para a evolução do projec-
to europeu, ficaram relegadas para segundo plano as cooperações reforçadas e a
própria generalização da votação por maioria.
Daí que, face às teses em debate, os Quinze tenham aprovado um texto que cor-
responde essencialmente ao menor denominador comum das posições nacionais. E,
nessa exacta medida, o Tratado de Nice acabou par não deixar ninguém satisfeito,
mesmo num contexto em que todos proclamam que ganharam qualquer coisa.
Encenando verdadeiros psicodramas, os Quinze fizeram do dramatismo e da
encenação a tónica pro memoriam destas cimeiras.
Mas Nice não é, naturalmente, o fim da história.
É certo que com a aprovação do Tratado, embora de uma forma não tão ágil
quanto teria sido necessário, estabeleceu-se um sistema organizativo e de decisão
que permitirá iniciar o actual objectivo estratégico fundamental da União: o alarga-
mento.
No entanto, importa assumir que o modelo de integração – ainda por definir –
é seguramente o próximo exame europeu e vai requerer dos Estados e das suas elites
um esforço suplementar para transmitir aos cidadãos europeus as mensagens cor-
rectas e reganhar os seus corações.
Nestes termos, a União não pode ignorar que as Conferências Intergoverna-
mentais estão perigosamente a banalizar-se, comprometendo o processo de cons-
trução europeia e, bem assim, a imagem e a credibilização da Europa. Por isso, há
que reflectir quanto antes sobre novos modelos de revisão dos Tratados, modelos
que, no interesse da Europa, devem desejavelmente ser menos intergovernamentais
e mais comunitários.
E, como se aprende com a experiência, urge tirar imediatamente as devidas
ilações dos ensinamentos de Nice.
Primeiro, porque Nice mostrou que os Estados continuam a ser os principais
actores do sistema institucional Europeu, mesmo no quadro da União. E como ficou
provado, o tão proclamado espírito europeu pode constituir, afinal, a subtil máscara
que alguns Estados-membros envergam para camuflar as suas ambições de pre-
domínio.
Segundo, porque a União Europeia tem já agendada outra revisão dos Tratados
para 2004 e então, se entretanto nada se fizer, por certo através de uma nova Con-
ferência Intergovernamental.
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no cenário de acrescida diversidade introduzida pelos alargamentos para Sul e Norte,
a Comunidade conseguiu ainda assim preservar.
Mas o alargamento a Leste, pela sua dimensão e complexidade dificilmente será
tão indolor, quer para a União, quer para os candidatos, quer ainda para o próprio
standard europeu, como foram os três anteriores movimentos.
E foi neste contexto, assente que as próximas adesões irão trazer para a con-
vivência comunitária um significativo número de pequenos países, que a balança do
poder europeu, nivelada pelos Estados-membros de maior peso, começou a reque-
rer a definição de um renovado equilíbrio institucional, assente no robustecimento
dos chamados “grandes”, com o inerente sacrifício dos interesses dos "pequenos"
países.
Foi no cumprimento dos leftovers de Amesterdão, qual conclusão de “capelas
imperfeitas”, que os Quinze encontraram o pretexto ideal para acolher e animar esse
vivo e aceso confronto político.
Assim, com uma agenda política moldada pela herança da anterior Conferência
Intergovernamental e, sobretudo, induzida pelo cordão umbilical forçada e falacio-
samente tecido entre a premência da reforma das Instituições e as futuras adesões, a
última Conferência Intergovernamental do século não conseguiu deixar de se esgo-
tar em questões de real partilha de poder entre os Estados-membros.
Por isso, não obstante as Conferências Intergovernamentais terem tido ao longo
do processo de construção da Europa uma relevância ímpar sempre que estiveram
em causa reformas comunitárias essenciais, a verdade é que, em Nice, esta apoucou-
-se. Podendo ficar para a história como uma Conferência da Reforma das Institui-
ções e do processo decisório comunitário, tantas vezes agendada, mas outras tantas
adiada, esta deixou, porém, que alguns Estados a instrumentalizassem e ela fosse,
afinal, o palco em que se discutiram estratégias de fortalecimento dos "grandes", se
necessário à custa dos "pequenos".
Uma Conferência que, apesar de não ter consagrado expressamente a solução
de um directório europeu – na senda ou do vanguardismo alemão ou do pioneiris-
mo gaulista –, estimulou no entanto esse entendimento e a sua criação a prazo.
Por sua vez, os Conselhos Europeus de Biarritz e Nice, enquanto reuniões po-
líticas ao mais alto nível, seguiram-lhe as pisadas.
Não tendo conseguido esvaziar a bolha criada pela Presidência francesa e ali-
mentada pelo próprio Conselho quanto à representação de todos os Estados no colé-
gio de comissários e à reponderação de votos, Nice acabou por fazer desses pontos
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Sem arriscar previsões, a par da subsidiariedade e da participação dos parla-
mentos nacionais no processo de decisão, a Europa pode nessa altura ter de enfren-
tar o balanço do complexo sistema de votação aprovado em Nice e, ainda, a opaci-
dade do recente Tratado. A ser assim, então dificilmente será possível resistir às pres-
sões para reabrir uma nova discussão de poder, até porque o acordo agora alcança-
do constitui para muitos Estados uma simples etapa intercalar na prossecução da
respectiva equação nacional de poder e de interesses.
Nesta medida, até 2004 a Europa não pode deixar de reflectir sobre a dupla
leitura de Nice.
Se de facto ficaram criadas as condições para realizar o alargamento a Leste e foi
laboriosamente estabelecido um novo quadro de equilíbrio de poderes, a verdade é
que a partir de agora, com os alicerces da integração económica basicamente cons-
truídos, o que parece prevalecer é a forma como se processam as relações entre
Estados, ao nível dos interesses de cada um, e a dinâmica dos poderes relativos.
Neste novo século, nas próximas duas décadas, a Europa poderá passar de uma
configuração de quinze Estados-membros centrada a ocidente, a uma União de trin-
ta, espraiada sobre a ampla e heterogénea plataforma continental europeia.
Assim, é tempo de reconhecer e admitir que, provavelmente, o espírito de uma
Europa alargada não será exactamente um template da matriz original do espírito
europeu que, nos anos cinquenta e sessenta, animou a construção europeia do pós-
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NO DECURSO dos últimos anos a questão da autonomia europeia em termos de defe-
sa ou, dito de uma forma mais simples mas mais ambiciosa, da Defesa Europeia, foi
sempre considerada como uma matéria que era simultaneamente uma condição es-
sencial para a construção política da Europa mas também um obstáculo a essa cons-
trução.
Era uma condição essencial para uma Europa que se queria politicamente forte
e com ambições de vir a desenvolver acções no seu exterior, uma vez que a sua cre-
dibilidade requeria a existência de capacidades militares que dessem conteúdo a
essas acções. Mas era também um obstáculo por se reconhecer existirem divergên-
cias profundas entre os Estados-membros com alguns a oporem-se ao envolvimen-
to da União em matérias de defesa e, consequentemente, à criação em sede europeia
de capacidades militares.
Com a Cimeira franco-britânica de Saint Malo, em Dezembro de 1998, deu-se
o desenvolvimento mais espectacular dos últimos anos em matéria de construção de
defesa europeia com o alinhamento do Reino Unido pelas teses que defendiam a
inclusão de competências militares no domínio de acção da União Europeia. Vimos
então os britânicos passarem de rígidos opositores a activos promotores da criação
de uma Política Comum Europeia de Segurança e de Defesa (PESC-D).
Desde essa data a PESC-D conheceu um enorme desenvolvimento, fruto não só
do desbloqueamento ocorrido em Saint Malo, mas também das consequências da
última grande crise de segurança no continente europeu – o conflito do Kosovo de
1999.
Ficou patente nessa altura que os europeus não tinham os instrumentos para
uma política de defesa comum autónoma – entenda-se mais os instrumentos insti-
tucionais que os meios militares – pois forças militares existiam e foram empenha-
das no quadro da Aliança Atlântica, embora numa função algo supletiva em relação
aos meios militares empregues pelos norte-americanos. Face a essa lacuna os euro-
peus seguiram naturalmente a liderança dos Estados Unidos na condução desta crise.
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António Monteiro Portugal | Embaixador de Portugal em Ancara
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Política de Defesa Europeia
ca política pouco ambiciosa e a seguirem, em vez de liderarem, a opinião pública –
conseguirão o apoio dos seus eleitores para suportarem politicamente e, o que é
mais importante, financeiramente, a necessária reestruturação militar que dê corpo
aos objectivos fixados na política comum de segurança e de defesa.
II
Mas o que significa a Política Comum Europeia de Segurança e Defesa (PESC-
-D), ou para que serve a Defesa Europeia, na formulação mais simples e mais com-
preensível para a opinião pública?
De um ponto de vista institucional, é uma nova dimensão para a Política Ex-
terna e de Segurança Comum (PESC) e, atendendo a que a Defesa é a componente
última da Segurança, visa exactamente o desenvolvimento pela União de capaci-
dades militares e civis para fazer face aos riscos e à instabilidade que afectem a sua
segurança.
Interessaria aqui retermos a utilização dos termos “riscos e instabilidade” e
referir a não utilização do termo “ameaças” que está habitualmente associado ao
domínio da defesa colectiva. Esta última tem a ver com o emprego de forças mili-
tares na defesa da integridade territorial e da independência política de um Estado
face a uma ameaça militar ou, na acepção colectiva, quando vários Estados se com-
prometem a prestar uns aos outros assistência militar para fazer face a uma ameaça
dirigida do exterior a um deles.
A União dispõe de facto de um conjunto de instrumentos de natureza política,
económica e social que lhe confere capacidades de acção no exterior, mas a expe-
riência dos últimos anos mostrou que a sua actuação estará sempre limitada enquan-
to não tiver uma capacidade militar capaz de sustentar os seus esforços em matéria
de paz e estabilidade.
Sempre se reconheceu aliás que a Política Externa e de Segurança da UE não
estaria completa sem a sua dimensão militar, a única que confere eficácia e credi-
bilidade na actuação internacional de uma potência seja qual for a sua dimensão e
a área geográfica onde procure exercer a sua acção. Trata-se naturalmente de um
conceito que se aplica quer a um país actuando isoladamente quer a uma organiza-
ção ou aliança conjuntural ou permanente de Estados.
Embora conceptualmente uma política de defesa tenha de compreender a tota-
lidade das missões que integram a panóplia de tarefas que incumbem às forças mi-
litares, convencionou-se que a função fundamental da defesa colectiva deveria con-
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Ao dizer que o que faltava eram principalmente os instrumentos institucionais
e menos os armamentos (ou seja, mais o software do que o hardware) não podemos
esquecer a enorme diferença de potencial militar entre os países europeus e o pode-
rio norte-americano em termos de força militar.
Curiosamente, na crise do Kosovo, os parceiros europeus alcançaram uma aná-
lise comum da situação e desenvolveram uma vontade comum de actuação, embora
não tivessem os instrumentos para lhe dar corpo, ao passo que na crise da Bósnia,
que teve lugar na região balcânica alguns anos antes, em que também não existiam
esses instrumentos, não chegou sequer a haver uma política comum. Assistimos
mesmo à actuação divergente dos vários parceiros europeus com simpatia por dife-
rentes intervenientes no conflito.
Decerto que a experiência da Bósnia foi útil para a consciencialização dos go-
vernos europeus dos riscos de divergirem na sua apreciação de um conflito que afi-
nal a todos afectava, como a experiência do Kosovo terá sido decisiva para que esses
mesmos governos não julgassem aceitável vir a encontrar-se mais alguma vez des-
providos dos meios necessários para evitar ter de seguir uma linha de acção defini-
da além-Atlântico.
Nos últimos dois anos assistimos assim à emergência de novas perspectivas para
a segurança e defesa europeia. Todos os “Quinze” países da UE, pequenos ou gran-
des, situados no norte ou no sul do continente, membros da NATO ou de tradição
neutral, habituados a intervenções no exterior (no âmbito das Nações Unidas ou
para prosseguir objectivos nacionais), ou consignados a um certo isolamento em
matéria de defesa, subscreveram os objectivos da construção de uma política de
defesa europeia e, o que é mais significativo, concordaram em alcançar numa data
concreta, resultados quantificáveis de capacidades operacionais consubstanciadas no
Headline Goal. Deram os passos necessários para se passar da retórica político-diplo-
mática para a palpável realidade prática.
Para aqueles que estão empenhados na construção europeia e no seu aprofun-
damento estes passos têm um grande significado. Pode mesmo afirmar-se que a
natureza da União e a sua capacidade de exercer influência no Mundo serão quali-
tativa e quantitativamente diferentes quando se concretizarem os arranjos institu-
cionais e operacionais e se materializar a disponibilidade de forças militares agora
programadas.
Naturalmente que grandes desafios estão ainda por concretizar e entre todos
avulta o de se saber se os governos dos Estados-membros – habituados a uma práti-
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A União Europeia tem assim uma visão global para a sua acção no exterior,
ambiciosa na sua génese e completa nos seus instrumentos, e que vai exigir o
esforço de todos os Estados-membros em diversos sectores.
III
Na Presidência portuguesa da União Europeia do primeiro semestre de 2000
foram criados alguns dos órgãos da nova PESC-D, embora ainda numa configuração
interina: o Comité Político e de Segurança (COPS), o Órgão Militar e o Grupo de
Peritos Militares, estes dois os embriões de um Comité Militar e de um Estado-
-Maior Militar, que constituem o núcleo duro do desenvolvimento da PESC-D. Com
o Conselho Europeu de Nice esses órgãos foram formalmente criados, o que repre-
sentou um salto importante na aquisição dos necessários instrumentos de comando
e gestão para a operacionalidade da União Europeia nesta sua nova dimensão.
Por outro lado, foi desenvolvido um conjunto de objectivos de forças militares
a serem aprontadas até 2003 (headline goal) e capazes de empenhamento em todas as
tarefas de Petersberg, incluindo as mais exigentes (ou dito de outro modo aquelas
que correspondem ao espectro alto da crise...). Com a realização em 20 de Novem-
bro último de uma primeira Conferência de Compromisso de Forças (Capabilities
Commitment Conference) os países membros aceitaram responsabilizar-se por alcançar os
objectivos de forças anteriormente definidos. É ainda objectivo da União Europeia
adoptar um “Processo de Revisão” das capacidades e meios militares europeus que
permita, nomeadamente, colmatar no futuro as lacunas existentes nas capacidades
de defesa agora disponíveis.
O desenvolvimento das capacidades militares no quadro europeu exige natu-
ralmente um relacionamento forte entre a União e a NATO. Esta relação é impor-
tante não só porque permitirá à UE recorrer a meios e capacidades da Aliança, mas
também porque ambas as organizações prosseguem evidentemente nesta matéria
objectivos comuns. Só com a existência de mecanismos que permitam o diálogo, a
cooperação e a consulta recíprocas entre a UE e a NATO se evita a duplicação de
esforços e, no respeito pelo princípio da manutenção da autonomia de decisão de
ambas as organizações, é possível uma actuação eficaz e coerente.
Como em qualquer novo processo existem dificuldades que importa não
escamotear, mas devemos adoptar uma atitude construtiva e pragmática. Parte do
sucesso deste novo projecto europeu depende do sucesso do relacionamento entre
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tinuar a ser da responsabilidade da Aliança Atlântica, para aqueles Estados-membros
que dela são parte, como sucede aliás com sucesso há mais de cinquenta anos.
Isto não quer dizer que os europeus não tenham um dia de pensar na cons-
trução de um instrumento militar que sirva também para a defesa colectiva. A pe-
renidade dos actuais laços transatlânticos não é garantida, pois não se pode excluir
um possível desinteresse norte-americano com a defesa da Europa em consequên-
cia do desaparecimento da ameaça (que hoje é já um facto...), ou do fim da parce-
ria estratégica entre os dois lados do Atlântico por força do agudizar da competição
económica e política, ou mesmo do agravar de interesses antagónicos entre a Europa
e os Estados Unidos.
O que está agora em causa na construção da defesa europeia é tão somente a
satisfação das missões ditas de Petersberg, e que vão do empenhamento de meios
militares numa simples operação de natureza humanitária ou de resgate de reféns,
com ou sem oposição, até às tarefas de manutenção da paz ou do seu restabeleci-
mento que exigem meios de natureza bem mais complexa e um grau de sofisticação
e de poder de fogo completamente diferente. Trata-se afinal de desenvolver as capa-
cidades militares – e os mecanismos de decisão, planeamento e condução de ope-
rações – dos países europeus para lhes permitir conduzir autonomamente operações
militares de gestão de crises.
Estas missões de Petersberg tiveram a sua origem na UEO, como se sabe, mas
foram já integradas no Tratado de Amesterdão e até ao seu desaparecimento a UE
valia-se da UEO para as desempenhar, uma vez que aquela garantia o acesso a uma
capacidade operacional que a própria União ainda não tinha.
Não só a complexidade institucional da UEO, com diferentes estatutos de par-
ticipação por um alargado número de países, como o sistema configurado no Tra-
tado da União Europeia para a ela recorrer, complicava e prejudicava a utilização
com eficiência da sua capacidade operacional. Era assim imperativo evoluir e clari-
ficar os aspectos institucionais e tornou-se evidente a existência de uma convergên-
cia em torno da necessidade de a UE assumir por ela própria a condução de ope-
rações de gestão de crises.
Por outro lado, uma das mais valias da Política Comum Europeia de Segurança
e Defesa reside na intenção de aliar o desenvolvimento credível das capacidades mi-
litares ao reforço das capacidades de natureza civil, muitas das quais existem já nos
países da União e que agora interessa rentabilizar.
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militares se possam alcançar por voto maioritário. O que aconteceria aos países que
votassem vencido? Enviariam, mesmo assim, os seus soldados para participar numa
determinada acção com a qual não poderiam concordar? Ou seriam dispensados de
nela participar, com a consequência evidente que a acção deixaria de ser da União
mas seria tão-só do grupo de Estados nela envolvidos?
Existe ainda a questão da definição dos interesses comuns de defesa. Estamos no
domínio das missões de Petersberg, ou seja, no campo da "projecção de poder" no
exterior. Em contraste com a defesa colectiva em que é mais evidente a percepção
do que está em causa, nem sempre será fácil identificar interesses comuns que pos-
sam ser considerados como afectando de forma colectiva todos os membros da UE.
Mas é necessário que para cada situação que leve ao envolvimento da União se faça
esta definição com a adesão de todos os seus membros e que tal seja aceite por todos
como afectando um interesse comum.
Estes princípios levam-nos a dizer que o que está em causa não é a transferên-
cia de soberania dos Estados para um órgão supranacional em matéria de defesa.
Pode-se contudo conceber que tal venha a suceder de forma limitada, se vierem a
ser criados escalões de comando conjunto com forças subordinadas em permanên-
cia, ou capacidades colectivas de transporte estratégico, ou de intelligence, para referir
dois dos domínios onde se poderá encarar a constituição de pools de meios de defesa.
Para os parceiros que são membros da NATO e da sua estrutura militar integra-
da isto não representa nada de novo mas teremos de atender às dificuldades dos
Estados de tradição neutral e menos habituados às transferências de soberania. De
facto, a Aliança Atlântica, organização de defesa colectiva e um caso bem sucedido
de integração em matéria de defesa, funciona na base da exacta definição de inte-
resses comuns de defesa e os aliados tomam as decisões por consenso e, depois,
transferem para estruturas integradas a condução das acções decididas.NE
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a União, a NATO e os aliados europeus não-membros da União, que deverá assen-
tar numa relação forte e coesa com princípios estruturantes e mecanismos eficazes
que sejam susceptíveis de potenciar o diálogo e a cooperação.
O mesmo espírito construtivo e pragmático deve presidir ao relacionamento
com os aliados europeus não-membros da União e países candidatos. Os mecanis-
mos aprovados nos Conselhos Europeus da Feira e de Nice deverão por isso ser
aproveitados em toda a sua plenitude, sendo ainda importante procurar o consenso
em relação à forma como se desenhará a participação destes Estados em operações
da União.
IV
Na construção da Política Comum de Segurança e Defesa (PESC-D) teremos de
observar alguns princípios básicos que são elementos essenciais para a aceitação
pelos Estados-membros dessa construção. E se é certo que de momento não parece
que estejam a ser postos em causa, nunca é de mais recordá-los pois a sua inob-
servância pode fazer sossobrar esta política.
Adiantaria assim dois conceitos que têm de estar presentes quaisquer que ve-
nham a ser os arranjos concretos no domínio da defesa e segurança na Europa: a
manutenção do processo de decisão intergovernamental e a preservação da regra do
consenso como base da tomada de decisões.
Quanto à intergovernamentalidade, as razões para a sua manutenção são co-
nhecidas. Prendem-se com a necessidade de reter nos governos dos Estados nacio-
nais a responsabilidade e a capacidade de tomar decisões sobre matérias que tocam
no cerne da soberania das nações e que se prendem afinal com questões como a
organização militar e a capacidade de defesa dos países, e em limite, com a paz e a
guerra. Não parece legítimo que os governos transfiram para uma estrutura supra-
nacional – ou para uma burocracia dotada de um largo poder de iniciativa – essa
responsabilidade indeclinável e que terá de ser sempre justificada perante as suas
opiniões públicas, por se tratar de decisões sobre o empenhamento de tropas em
situações de crise que podem, em certos cenários, conduzir a hostilidades.
Em relação ao segundo princípio, a tomada de decisões por consenso, por maio-
ria de razão, as mesmas considerações se podem adiantar. Vivemos uma fase da
construção europeia em que se acelera a tendência para a tomada de decisões por
maioria, quaisquer que venham a ser as regras a definir no quadro institucional. Não
se poderia entender que decisões que no fundo implicam pôr em risco a vida de
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several donor countries have developed new and flexible financial instruments
dedicated to post-conflict recovery, these instruments remain modest and under
funded.
Because of its multi-sectoral nature, post-conflict peacebuilding transcends the
competence and expertise of any one department, programme, fund or office of the
United Nations. It calls for a coherent and holistic response by all these entities both
at the Headquarters and field levels. To that end, the United Nations has developed,
over the last few years, a series of mechanisms whose primary objective is to
improve cross disciplinary linkages among policy makers and practitioners and for-
mulate plans of action which draw on the comparative advantage of each organiza-
tion while respecting their different mandates.
The United Nations post-conflict
peacebuilding support office is the latest of these mechanisms, designed to support
post-crisis countries in their efforts to consolidate peace, promote national recon-
ciliation and economic recovery. The first such office was first established in 1997
in Liberia, under the authority of the Security Council, following consultation with
the newly elected government. Similar offices were since established in Guinea-
-Bissau (1999), the Central African Republic (2000) and most recently Tajikistan
(2000).
For the purpose of this article, I shall focus on the United Nations PeaceBuilding
Support Office in Guinea-Bissau (UNOGBIS) by reviewing some of the challenges
faced by the office and other international partners and how they are being met.
Established in June 1999, UNOGBIS’ initial mandate focused on creating an
enabling political and security environment for the organization of free and trans-
parent general elections. As it currently stands, the Office is headed by a Represent-
ative of the Secretary-General (RSG) assisted by six international staff specialized in
political, human rights and security matters. After the emergence of a democrat-
ically elected government, a revised mandate was entrusted to the Office. It reads as
follows:
– To support national efforts to consolidate and maintain peace, democracy and the
rule of law, including the strengthening of democratic institutions;
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responsibility of the United Nations in the twenty first century. It has generated in
the second half of the nineties much discussion, both in the inter-governmental
bodies and the Secretariat, since the publication of An Agenda for Peace (June 1992).
The main purpose of this paper is to provide a brief overview of the theory and
practice of post-conflict peacebuilding and draw some lessons from United Na-
tions experience in Guinea-Bissau.
Post-conflict peacebuilding can
be defined as actions to identify and support structures and practices that tend to
strengthen and solidify peace and prevent the re-occurrence of armed conflict. It
focuses on situations where the national capacities for peace, development and gov-
ernance have been severely weakened by conflict or have broken down.
Post-conflict peacebuilding does not replace ongoing humanitarian and devel-
opment activities in countries emerging from crisis. It aims rather to build on, add
to or reorient such activities in ways designed to reduce the risk of resumption of
violent conflict and contribute to creating the conditions most conducive to recon-
ciliation, reconstruction and recovery. As such, post-conflict peacebuilding is fun-
damentally a politically-driven activity.
In order to be effective, as a preventive strategy, post-conflict peacebuilding
needs to address both the structural and proximate causes of conflict. This requires
hard political decisions, long-term commitment on the part of the local govern-
ments and the international community and timely deployment of resources. Post-
-conflict peacebuilding priorities, particularly those relating to security sector reforms
tend to fall between relief and development assistance and therefore do not easily
attract donor contributions. Although UNDP, the Bretton Woods institutions and
* As opiniões expressas neste artigo apenas vinculam o seu autor, não reflectindo necessariamente opiniões das
Nações Unidas
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Youssef Mahmoud* | Director da Divisão África II do Departamento de Assuntos Políticos da ONU em Nova Iorque
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Post-Conflict peacebuilding: Reflections on
the United Nations experience in Guinea-Bissau
Introduction
Post-conflict peacebuilding: from rhetoric to practice
The challenges of post-conflict peacebuilding: the case of Guinea-Bissau
United Nations post-conflict peacebuilding offices
helpful when compelled to intervene, while, at the same time, looking for ways and
means to empower national partners to take over that role and thus contribute to
strengthening the national capacity for peace.
One such partner for peace proved to be the civil society and particularly
women and religious associations. They played a crucial role during the conflict
management phase in Guinea-Bissau.This earned them the trust of all the parties to
the conflict and the respect of the international partners. However, the lack of
resources and organization has stymied their capacity to play an equally construct-
ive role during the post-conflict peacebuilding phase.
Playing a visible role while empowering local actors to be partners for peace is
a constant challenge that needs to be taken into account in revising the mandate of
UNOGBIS or drawing up its exit strategy.
Another challenge is how to reconcile the expectations generated by the visible
political presence of the RSG and the limited resources put at the disposal of the
peacebuilding office he heads. Although operational agencies of the UN system do
address some of these expectations, many crucial ones remain unattended. This is
because they either fall outside the scope of their mandate or because of lack of
resources. This is where the Trust Fund established for UNOGBIS has been helpful,
despite the limited resources it has attracted and the onerous procedures for access-
ing them. However, this instrument remains inadequate, because the funds are vol-
untary and therefore tend to be unpredictable.
This situation has compelled the Secretary-General to seek the legislative bodies’
approval for one of the recommendations in the “Brahimi Report” on United Nations
peace operations.This recommendation advocates “a small percentage of a mission’s
first year budget should be made to the Representative of the Secretary-General
leading the mission to fund quick impact projects in its area of operations, with the
advice of the UN country team’s Resident Coordinator.”
For international financial institutions, working conditions in post-conflict
countries with weak governance capacity, severely limited resources, fragile polit-
ical balances, frequent social unrest, intensify the risk of relapse into conflict. In
such cases, the risk of doing business for these institutions is fraught with uncer-
tainties. Therefore they tend to condition their engagement in the country by re-
quiring certain guarantees and macro-economic reforms that the country author-
ities cannot meet without hurting the chances for peace. In the case of Guinea-
-Bissau, the RSG, international partners and the Government had to find a strategy
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– To support national efforts, including those of civil society, towards national re-
conciliation, tolerance and peaceful management of differences, particularly during
the transitional period;
– To encourage initiatives aimed at building confidence and maintaining friendly
relations between Guinea-Bissau, its neighbours and its international partners;
– To seek the commitment of the Government and other parties to adopt a pro-
gramme of arm collection, disposal, and destruction;
– To provide the political framework and leadership for harmonizing and integrating
the peacebuilding activities of the United Nations system in the country;
– To facilitate, in close cooperation with the UN system including the Bretton Woods
institutions, the mobilization of international political support and resources for the
rehabilitation, reconstruction and development priorities of Guinea-Bissau.
The above mandate was conceived at a time when the post-electoral situation
in the country was very precarious. It was characterized by weak state institutions,
a disgruntled and highly politicized military, endemic poverty, a crippling debt, and
an insecure internal and external environment. The military showdown, in Novem-
ber 2000, between the former Junta leader, General Mane, and the democratically
elected president, President Yala, nearly plunged the country back into turmoil. Even
with the subsequent demise of General Mane, the Government of President Yala has
yet to come to grips with the consequences of the November events and earn the
trust of the other political forces to fully focus on the daunting problems facing the
country.
As a cursory review of the above mandate readily reveals, the Representative of
the Secretary-General (RSG) is expected to play a catalytic or supportive role, leav-
ing the primary responsibility for addressing post-conflict needs to the legitimate
government.This was to signal a departure from the prominent role the RSG had to
play in the early, pre-electoral stages when the distrust and animosity between the
political and military forces was at its highest and the legitimacy of the transitional
authorities was constantly challenged.
However, faced with the volatile, post-electoral situation described above, the
RSG continues to respond to calls by the government and other political forces to
play the same “frontline”, mediation role.While this frontline role may be unavoid-
able, care had to be constantly exercised to ensure that the United Nations does not
become an indispensable broker without whose intervention dialogue cannot be
initiated or sustained. The constant challenge confronting the RSG is how to be
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tributes to developing the national capacity for peace. In this regard, it is suggested
that civil society organizations, if properly groomed, may prove to be indispensable
partners.NE
BOUTROUS-BOUTROS GHALI, An Agenda for Peace (17 June 1992) - UN doc. Number: A/47/277.
KOFI A. ANNAN, (April 1997) The Causes of conflict and the promotion of durable peace and sustainable devel-
opment in Africa. A/55/871.
LAKHDAR BRAHIMI, Report on the United Nations Peace Operations. A/55/305, 21 August 2000.
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that strikes a balance between the need for macro-economic stability and peace re-
lated priorities, which require greater tolerance for public expenditures and budget
deficits. It is encouraging to note that these institutions, faced with the necessity of
doing business in an increasingly unstable world, are showing greater flexibility not
only in Guinea-Bissau but also in other countries facing similar post-crisis prob-
lems.
The situation in Guinea-Bissau, not unlike other post-conflict situations, affects
and is affected by developments in the sub-region.The instability in the West African
sub-region and particularly the conflict in the Casamance province in neighbouring
Senegal pose yet another challenge for peacebuilding efforts in Guinea-Bissau.There
is fear that the current involvement of the Bissau-Guinean army in the factional
fighting between radical elements of the Casamance rebel movement may spread the
Casamance conflict to Guinea-Bissau.This and other situations in the sub-region have
prompted the Secretary-General to establish an inter-departmental/ interagency task
force to advise him on an overall peacebuilding strategy for the West African sub-
-region, that would inform and be informed by the United Nations political pres-
ences in Guinea-Bissau and elsewhere.
Post-conflict peacebuilding, as a conflict prevention strategy is still a work in
progress.To be effective it should aim at managing the destructive human and insti-
tutional consequences of violent conflict and address, at the same time, the root
causes that brought about the conflict, with the hope to prevent its reoccurrence. It
is a long-term process requiring effective governance, political will, national recon-
ciliation, and sustained and timely deployment of resources. In Guinea-Bissau and
most other post-crisis countries, these conditions are in short supply. Even though
these countries have moved towards a more democratic governance, the institutions
of governance they have inherited are either weak, highly contested or lack the
means to adequately deal with the pressing problems facing them, let alone address
their root causes.
As the experience in Guinea-Bissau shows, much work remains to be done to
enhance the practice of post-conflict peacebuilding. Beyond the lack of funds, the
main challenge faced by the United Nations and other international partners in the
field remains how to adapt institutional capabilities and constraints to meet the
pressing demands of post-conflict situations. More importantly, the challenge is to
ensure that the assistance provided, no matter how limited or urgently needed, con-
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Conclusion
References
CEMGFA, Brigadeiro Ansumane Mané, que se decidira revoltar contra o Presidente e
o seu Governo. Tudo levava a crer que seria rapidamente neutralizado pelas forças
leais ao Chefe de Estado, ainda que fosse aconselhável uma certa prudência na aná-
lise e se devesse acompanhar o evoluir da situação a par e passo.
Porém, e à medida que as horas se sucediam, e porque os rebentamentos con-
tinuavam, crescia a convicção de que o que estava a acontecer era bastante mais gra-
ve do que inicialmente se supunha. Sobretudo, tornava-se evidente a dificuldade das
tropas fiéis ao Presidente Nino em controlarem a revolta. Desde logo se podia con-
cluir que o número de rebeldes, como de imediato foram designados, era afinal, e
no mínimo, equivalente aos que se lhe opunham, como não deveria ser de menor
quantidade e qualidade o armamento que possuíam.
A situação, todavia, ficou muito mais esclarecida quando soubemos que o
Presidente Nino apelara aos seus homólogos do Senegal e da República da Guiné-
-Conacri para virem em seu auxílio. Era, assim, óbvio, que o Chefe de Estado guine-
ense se encontrava em grande dificuldade, fragilizado, e que apenas uma interven-
ção estrangeira poderia obstar a que os rebeldes avançassem sem grande oposição
até ao palácio presidencial, no centro da cidade. Com efeito, as informações que
íamos recolhendo diziam que a parte das Forças Armadas que se mantinha leal ao
Presidente era bastante reduzida, ainda que uma das melhores treinadas e prepa-
radas. Os rebeldes contavam com um número muito maior de homens e tinham
vantagem no equipamento pesado. E o seu líder era um homem prestigiado, “velho
combatente da liberdade da Pátria”.
A intervenção do Senegal e da Guiné-Conacri na Guiné-Bissau introduziu um
elemento inteiramente novo no problema. O Presidente Nino e o Governo, cons-
cientes da delicadeza da situação, justificaram-na como sendo ao abrigo de acordos
de defesa mútua e para salvaguarda de um regime constitucional e democrático.
Contudo, a realidade era mais intrincada do que esta simples explicação. No plano
estritamente jurídico era discutível se tais acordos sancionavam a intervenção soli-
citada, e aceite, na ausência de agressão externa, como era o caso, para além de ou-
tras interrogações sobre a validade mesma, do ponto de vista constitucional, de tais
acordos, que porventura não estariam em vigor por falta de ratificação parlamentar
ou de o Presidente fazer apelo a tropas estrangeiras sem o consentimento da Assem-
bleia. Mas talvez mais importante do que este aspecto formal, ainda que ele não
fosse um ponto menor, a decisão do Presidente Nino de se socorrer de tropas estran-
geiras foi, do meu ponto de vista, politicamente suicida.
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sauANTES DE MAIS, uma advertência. O que se segue é um testemunho pessoal, em
jeito de esboço, dos acontecimentos na República da Guiné-Bissau na sequência do
movimento militar de 7 de Junho de 1998, e uma interpretação também pessoal
desses acontecimentos. Apesar de existir, como é natural, bastante documentação
sobre eles, optei por recorrer, na seu relato, tão somente às minhas recordações e
aos factos que presenciei ou participei. A escassez de tempo e a necessidade de evi-
tar o recurso à prova documental – o que faria deste escrito uma espécie de inves-
tigação Histórico-Diplomática que de forma alguma quer ser – justificaram esta
opção. São por isso naturais omissões, nem de qualquer forma pretendi fazer um
trabalho exaustivo e pormenorizado. O que imaginei foi contar pequenas situações
de uma “história” que é quase só conhecida dos intervenientes directos nela, mas
que talvez valha a pena partilhar com muitos mais. Foi um período muito intenso
em eventos, vivido com grande emoção e ansiedade por todos os que o acompanha-
ram diariamente, e que, sem dúvida, um dia merecerá mais que uma dezena de
páginas apressadas. Existe sobre ele, na Direcção de Serviços da África Subsariana do
Ministério dos Negócios Estrangeiros e em vários outros dos seus Departamentos,
múltiplos textos que, espero, possam um dia ser úteis aos que, com outro espírito e
outra vontade, queiram escrever sobre o que aqui designo como a “crise da Guiné-
-Bissau”.
Salvo erro, o dia 7 de Junho de 1998 calhou num Domingo. Não passaria
muito do meio-dia quando recebo um telefonema do nosso Embaixador em Bissau
que me queria informar de movimentações militares perto do aeroporto da cidade.
Ouvia-se, com frequência e algum estrondo, sons de morteiros para aquele lado,
que marca um dos limites da cidade. As primeiras notícias indicavam que se trataria
de um incidente de proporções relativamente reduzidas.Tratava-se da acção, julgava-
-se nessa hora, de um pequeno grupo de militares chefiados pelo recém-demitido
*À data da elaboração deste artigo o autor desempenhava as funções de Director de Serviços da África Subsariana
no MNE.
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Manuel Lobo Antunes | Assessor Diplomático do Primeiro-Ministro*
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Episódios da crise na Guiné-Bissau
O início da crise
Advertência
do Brigadeiro Mané e dos seus homens vinha inesperadamente criar. Os documen-
tos emanados nessa altura da Junta Militar, redigidos pelo reduzido mas activo e
apaixonado grupo civil que nela se acolheu, espelham admiravelmente esta reali-
dade bicéfala em que se transformou a revolta de 7 de Junho de 1998. São capítulos
plenos de intenções louváveis, mas também são muitas as visões românticas que as
inspiram. Infelizmente, a crua realidade social e económica da Guiné-Bissau não se
compadecia com elas.
Ainda não são absolutamente claros os motivos que levaram a Guiné-Conacri e
o Senegal a anuírem ao pedido do Presidente da Guiné-Bissau. Quanto ao primeiro
país, alega-se, como justificação, a estreitíssima e muito antiga amizade que une o
General Nino Vieira ao Presidente Lansana Conté, consolidada em cumplicidades do
tempo da guerra colonial. Relativamente ao segundo, não é de excluir que pro-
curasse, pela retaguarda, impedir ou reduzir os tráficos de armamento e outros que
suspeitava chegarem aos rebeldes de Casamansa pela fronteira da Guiné-Bissau. O
que parece ser certo agora, apreciando os factos retrospectivamente, é que nenhum
deles esperaria tamanha resistência dos guineenses, nem que o isolamento político
e militar do Presidente Nino Vieira fosse tão amplo. Por fim, já não se tratava de ven-
cer a guerra, mas de salvar a face.
Uma última observação nesta parte. Não constitui novidade que Portugal e a
França tiveram posições por vezes bastante diferentes sobre os acontecimentos que
se sucederam ao 7 de Junho de 1998. Foi um período de alguma complexidade nas
relações entre os dois Estados. Porventura, olhando para trás, essas divergências po-
deriam ter sido evitadas. Que elas tenham tido por objecto a situação num país
africano, que Portugal, pela primeira vez depois do 25 de Abril, dispusesse ao largo
da Guiné-Bissau (sublinhe-se que com o consentimento expresso das suas autori-
dades legítimas) de meios militares significativos e que o Centro Cultural Francês
em Bissau tenha sido destruído (uma acção que só pode ser condenada) aquando
da tomada do poder pela Junta Militar, eis alguns factos que, em minha opinião,
merecem que neles se reflicta.
A posição de Por-
tugal ao longo da crise que culminou nas eleições presidenciais e legislativas de
1999, pautou-se sempre, em meu entender, mas concedo que possa ser tido como
suspeito, por uma extrema clareza de objectivos. Não tenho quaisquer dúvidas que
foi a mais correcta nas circunstâncias concretas. Uma política fundamentalmente
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Sem jamais se pôr em dúvida a sua legitimidade constitucional, era por demais
evidente que um Presidente que necessitava de se socorrer do auxílio militar exter-
no para se manter no poder, por mais que este por direito lhe pertencesse, num país
com uma História tão particular como a Guiné-Bissau e por virtude das suas próprias
Forças Armadas o terem praticamente desertado, estava, no curto ou médio prazo,
condenado a soçobrar. Ao escolher uma solução de força para a crise recorrendo à
presença estrangeira, mesmo que a razão jurídica lhe assistisse, em vez de uma saída
negociada entre guineenses numa altura em que a comunidade internacional ine-
quivocamente condenava e isolava os rebeldes e em que, portanto, poderia dialogar
numa posição de força, o Presidente Nino, talvez sem medir suficientemente o al-
cance do seu gesto, preferiu uma via que magoou os sentimentos profundos de
independência e liberdade do povo da Guiné-Bissau que ainda há pouco mais de
vinte anos se havia liberto, por uma guerra longa e dura, do domínio colonial.
Como era previsível, a consequência imediata desta decisão foi o gradual mas
por fim indisfarçável apoio popular aos rebeldes e ao seu chefe, transformando o
que era de início um acto de rebeldia estritamente militar num movimento essen-
cialmente político reunido à volta de lemas como a “justiça”, “liberdade”, “demo-
cracia”… . Da tentativa de um golpe de estado militar de contornos e objectivos
obscuros, se passou aos que os seus apoiantes e aderentes civis mais ilustres e letra-
dos intitulavam de “revolução democrática”. Uma segunda guerra de libertação
nacional para aliviar o país de alegadas práticas iníquas que haviam desvirtuado
completamente os princípios que haviam orientado a luta de Amílcar Cabral. Um
conjunto de representantes da elite intelectual da Guiné-Bissau – vários deles com
formação jurídica e sem filiação partidária – como que “renasceram das cinzas” e
aderiram à revolta, estruturando-a num núcleo dirigente que ficou designado como
Comando Supremo da Junta Militar. A maioria das Forças Armadas e alguns sectores
políticos que se encontravam às avessas com o regime, e até dele muito críticos,
reuniram-se numa simbiose perfeita porque a ambos servia na perfeição. Era útil aos
militares, porque estes adicionavam ao seu (novo) objectivo de libertar a pátria par-
cialmente sob ocupação o de instaurar um regime que, por contraposição ao que
vigorava, seria verdadeiramente democrático, respeitador dos direitos e das liber-
dades fundamentais, fiel cumpridor das regras do Estado de Direito conforme os
seus conselheiros civis lhes sussurravam; a estes, porque estavam cientes de que sem
o apoio activo dos militares, de armas na mão, dificilmente conseguiriam levar a
cabo o seu projecto de uma Guiné-Bissau renovada que a oportunidade da revolta
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Portugal e a Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP)
A internacionalização da crise na Guiné-Bissau, procurada pelo Presidente Nino
e pelo Governo com o duplo objectivo de legitimar, para além dos acordos bilate-
rais invocados e num contexto sub-regional, a intervenção do Senegal e da Guiné-
-Conacri, mas também de obter outros apoios militares estrangeiros provenientes da
sub-região para impor uma solução não negociada à crise, parecia ser a receita ade-
quada para uma previsível catástrofe. Estávamos certos de que um aumento da pre-
sença estrangeira na Guiné-Bissau generalizaria de imediato a guerra no país uma
vez que a Junta Militar jamais a aceitaria sem resposta, como desencadearia uma re-
sistência activa da população que muito provavelmente tornaria a pegar em armas
contra os que consideraria sem hesitação como invasores. Acresce que, mesmo na
sub-região, não era improvável que se estabelecessem alianças ou cumplicidades em
favor de uma ou outra das partes em conflito, trasladando para a Guiné-Bissau con-
flitos e tensões que se manifestavam abertamente noutras áreas da África Ocidental.
Em suma, a situação rapidamente se tornaria incontrolável, a paz e a unidade mais
difícil de alcançar e o sofrimento da população, bem como a destruição das infra-
-estruturas, infinitamente superior à que já se verificava. De um conflito de baixa
intensidade e limitado, passar-se-ia a uma guerra (ou guerrilha) provavelmente ge-
neralizada e que, sem dúvida, alastraria além das fronteiras da Guiné-Bissau. Era este
cenário que procurávamos evitar.
Na mesma altura em que se reuniam em Abidjan alguns Ministros da CEDEAO/
ECOWAS para, a pedido do Governo da Guiné-Bissau, analisarem a crise no país e,
eventualmente, decidirem uma intervenção militar desta organização para repor pelas
armas a legalidade constitucional ameaçada, reunia-se em Lisboa o Comité de Con-
certação Permanente da CPLP. Também se analisavam os últimos acontecimentos na
Guiné-Bissau, mas estava fora de causa a consideração de uma qualquer operação
militar da organização “lusófona”. Muito do tempo desta reunião foi ocupado na
redacção de um comunicado que exprimiria a posição da CPLP sobre a crise. Um
ponto particular mereceu discussão aprofundada e acesa: o relativo ao possível re-
forço da presença militar estrangeira na Guiné-Bissau, precisamente aquilo que
simultaneamente se debatia na capital marfinense. Por fim, desfeitas algumas dúvi-
das e com o assentimento, inquestionavelmente corajoso (e, em minha opinião, lú-
cido) do então Embaixador guineense em Lisboa, que sabia que ao assim concordar
estava a agir ao arrepio da posição oficial das suas autoridades, o Comité de Con-
certação Permanente da CPLP aprovou um comunicado que, manifestando embora
apoio às instituições guineenses e condenando a tentativa de alterar o regime por
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realista, um realismo temperado com muita emoção e, atrevo-me a dizer, paixão.
Ouve-se de alguns o reparo de que teremos favorecido uma das partes em detri-
mento de outra quando se imporia a estreita imparcialidade ou mesmo o favoreci-
mento de uma delas assente na sua legitimidade democrática, ou que ignorámos
princípios em nome de vantagens ou interesses imediatos. A verdade é que sem
nunca – em qualquer ocasião – desrespeitarmos as instituições guineenses, que
sempre considerámos como legítimas, procurámos como objectivo primeiro,
acauteladas que foram a segurança da comunidade portuguesa residente na Guiné-
-Bissau, assegurar uma solução para a crise que salvaguardasse a soberania e a inte-
gridade do país e preservasse os guineenses das consequências das guerras fratrici-
das e da instabilidade que afectavam (e afectam) a sub-região.Tínhamos presente os
horrores que se praticavam na Serra Leoa. Procurávamos que os efeitos da crise não
se propagassem para além de Bissau tentando evitar o fraccionamento do país
segundo fidelidades pessoais, partidárias, ou, mais preocupante, étnicas ou reli-
giosas. Sempre desejámos, e conseguimos, ouvir e ser ouvidos pelas duas partes, e
nenhuma acção que pudesse vir a ser tida como violação da soberania da Guiné-
-Bissau foi decidida sem o consentimento prévio das suas autoridades.
A presença de tropas estrangeiras na Guiné-Bissau era um factor que punha em
enorme risco os objectivos definidos. Causava profundas divisões entre os guineenses
e punha directamente em causa a unidade e integridade do país como entidade
histórica e culturalmente distinta na sub-região. Esses factores de distinção, natural-
mente, tinham (têm) muito a ver connosco, não eram (não são) dissociáveis da
nossa própria História. Por isso, julgo que o posso dizer, vivíamos a crise com a
emoção e a paixão a que acima aludo.
Algumas iniciativas de países amigos para fazer a paz tiveram lugar bem cedo
na crise, designadamente uma iniciativa conjunta de Portugal e Angola por inter-
médio dos respectivos Ministros dos Negócios Estrangeiros. Os líbios também qui-
seram actuar e neste sentido pediram-nos, momentaneamente, uma intervenção.
Todas elas falharam por motivos compreensíveis. O Presidente Nino ainda acredita-
va que com o apoio externo, reforçado por outros exércitos de países da CEDEAO/
ECOWAS, poderia assegurar uma vitória militar e por via dela restabelecer a autori-
dade sem quaisquer cedências aos adversários; a Junta Militar, por seu turno, sabia
que tinha do seu lado a maioria da população. Contava também, ao menos implici-
tamente, com a simpatia de alguns Estados africanos e dificilmente podia aceitar um
compromisso que não representasse uma ruptura profunda com o passado.
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negociais. Acrescia, argumento que é razoável, a circunstância da CPLP dificilmente
poder resolver o problema fundamental da retirada do Senegal e da Guiné-Conacri
que, com o decorrer dos meses, pareciam desfrutar de crescente autonomia perante
as autoridades de Bissau.
Gorados que foram alguns exercícios diplomáticos isolados da CPLP e da
CEDEAO/ECOWAS, revelando a sua incapacidade para ultrapassarem sozinhas a cri-
se, não tardou muito a concluir-se que só um esforço conjunto e coordenado das
duas organizações poderia, nessa fase, encontrar eventualmente uma solução. Uma
primeira reunião das duas organizações, sem conclusões de relevo, foi organizada
na Cidade da Praia. Uma outra se seguiu em Abidjan, que merece relato mais deta-
lhado.
A delegação portuguesa, constituída pelo Secretário de Estado dos Negócios
Estrangeiros e da Cooperação e por mim próprio, partiu de Lisboa num voo espe-
cial. O nosso primeiro destino era Banjul, capital da Gâmbia, onde ficara combina-
do que recolheríamos a delegação da Junta Militar guineense para a transportar para
a Costa do Marfim. Chegámos a Banjul sob noite cerrada, humidade e ventos desa-
gradáveis. Na pista, e da pequena janela do nosso avião, não avistávamos vivalma,
um deserto de betão que se alongava sob os nossos olhos, e pensámos que os planos
ou não tinham sido entendidos, ou teriam sido alterados já depois do início da via-
gem. Porém, aberta a porta do avião, e já na pista para desentorpecer as pernas,
começámos subitamente a distinguir uma figura, que se tornava cada vez mais níti-
da e imponente à medida que se aproximava de nós, o que fazia a passos muito lar-
gos. Mais perto, apercebemo-nos que era o Ministro dos Negócios Estrangeiros
gambiano que, sem perder tempo nas saudações de cortesia que seriam naturais,
nos agarrou num braço e apontando para o edifício da gare exclamou: “the boys are
there!”. Os “boys” eram, evidentemente, os membros da delegação da Junta Militar .
Reparámos então que à direita do nosso avião estacionava um enorme helicóptero
com aspecto muito velho e firme como uma rocha ancorada numa praia deserta.
Fora nessa rocha de ferro escuro e ferrugento que clandestinamente a delegação da
Junta havia viajado desde Bissau.
Entrados na gare do aeroporto, lá estavam eles, os “boys”, um conjunto de mi-
litares e civis, muito modestamente trajados e apresentados mas, percebia-se ime-
diatamente, cheios de convicções. Todos embarcados, partimos para Abidjan onde
chegámos já noite avançada, não sem eu acreditar que os nossos dias terminariam a
muitos pés de altitude, tal foi a tempestade que nos acompanhou desde Banjul. Mas
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métodos anticonstitucionais, se pronunciava claramente contra qualquer tentativa
de maior internacionalização do conflito.
Aprovado o comunicado, um pouco por instinto e sem pesar todas as possíveis
consequências, decidimos instruir o nosso Embaixador em Abidjan para que de
imediato distribuísse o texto aos Ministros ali reunidos. O comunicado causou um
enorme efeito de surpresa e incómodo (não menor, obviamente, na delegação
guineense) mas, creio, produziu outros resultados que se revelaram beneficamente
decisivos no posterior desenrolar da crise: em primeiro lugar, a CPLP (praticamente
desconhecida fora da África lusófona, reconheça-se) assumiu-se inteiramente como
organização internacional vocacionada não só para a cooperação tradicional entre os
seus Estados-membros, mas igualmente como instrumento de concertação político-
-diplomática, vocação que veio a ser reiterada na Cimeira da Praia com a formação
de um “Grupo de Contacto” da CPLP para a Guiné-Bissau; confortou a posição dos
países CEDEAO/ECOWAS, designadamente a Nigéria, mas igualmente outros, que
em Abidjan sabíamos terem uma posição de reserva sobre uma possível intervenção
militar, preferindo estes uma solução política assente na negociação e no diálogo, a
qual de resto, foi a que acabou por vingar; fazia da CPLP um protagonista indispen-
sável na procura de uma solução para a crise.
Com um equilíbrio militar no terreno, posta de parte uma
intervenção da CEDEAO/ECOWAS para restabelecer a inteira autoridade do Presi-
dente Nino Vieira e do Governo, todos os esforços se dirigiram para a procura de
uma saída diplomática para a crise. A CPLP, na altura sob a Presidência de Cabo
Verde, tentou, primeiro, consegui-la isoladamente. O bom êxito encontrou dois
obstáculos principais. O Presidente Nino Vieira não confiava inteiramente na im-
parcialidade da organização lusófona, que pensava ser demasiado complacente com
as teses da Junta Militar. Colaborava, por isso, com algumas reticências, nunca desis-
tindo, acrescente-se, de acreditar numa solução militar. Quanto à CEDEAO/ECOWAS,
não conferia grande (ou nenhuma) legitimidade ao desempenho da CPLP, parecia
considerá-la mesmo como uma entidade algo “anacrónica” que não correspondia
aos “modelos institucionalizados” de organização internacional, e, em virtude da
presença portuguesa, talvez mesmo escondendo pretensões neo-coloniais. Ao con-
trário, por mor da sua vocação sub-regional económica e politicamente integrado-
ra, necessitando de se afirmar perante os seus próprios Estados-membros e a África,
seria ela a entidade por excelência destinada a conduzir e a congregar os esforços
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A CPLP e a CEDEAO/ECOWAS
aceitou-o; foi por seu turno chamada à sala a delegação da Junta Militar para que
dissesse de sua justiça, e pedida à do Governo que a abandonasse.
Foi o chefe da delegação da Junta que usou da palavra. Fê-lo recorrendo à leitu-
ra de uma extensa declaração manuscrita, páginas e páginas de indignação e revol-
ta. Com voz grave e pausada, relatou a génese da crise, proclamou os objectivos po-
líticos da Junta e deixou bem expresso que o seu movimento jamais aceitaria qual-
quer presença militar estrangeira que se adicionasse à do Senegal e da Guiné-Conacri.
Mais claro ainda, ameaçou em nome da Junta Militar levar a guerra aos países vi-
zinhos da Guiné-Bissau e “incendiar” toda a região se dali saísse uma decisão con-
trária. Recordo-me que, concluída a leitura, seguiram-se na sala longos e embaraçan-
tes segundos de silêncio. O Ministro da Guiné-Conacri foi o primeiro, e suponho
que único participante, a reagir formalmente à declaração da Junta, considerando-a
desrespeitosa na forma, inaceitável nos termos, e convidando os seus pares a con-
dená-la formalmente. A tensão na sala tornou-se por momentos quase insuportável
mas, a partir de então, era óbvio que o plano militar da CEDEAO/ECOWAS estava
condenado ao fiasco.
Um outro plano militar, mais adaptado às circunstâncias no terreno e às preo-
cupações da CPLP e da Junta Militar, foi laboriosamente edificado, incluindo igual-
mente algumas disposições de natureza política. Depois de trinta e seis horas de
negociações ininterruptas um acordo parecia finalmente possível. Todavia, a Junta
Militar acabou por recusá-lo (mesmo contra o parecer do Brigadeiro Mané, que entre-
tanto era informado em Bissau do que estava a acontecer em Abidjan) com o argumen-
to de que as garantias prestadas em alguns pontos mais sensíveis eram insuficientes.
Recordo as negociações de Abidjan como um extraordinário exemplo de nego-
ciação diplomática africana, impregnada da sua cultura e das suas tradições. Os países
da CPLP actuarem em bloco, sem divergências ou hesitações, num espírito de fra-
ternidade e unidade de propósitos que jamais poderei esquecer. A própria CEDEAO/
ECOWAS tinha dificuldade em compreender como a CPLP, constituída por países de
três continentes diferentes, podia actuar com tão grande solidariedade, como pare-
cia aceitar com incómodo que outros países africanos se sentassem do mesmo lado
da mesa do antigo Estado colonial, assim como com um outro país, o Brasil, certa-
mente com raízes africanas, mas distante e pouco presente em África. Do nosso
lado, compreendíamos as susceptibilidades e as desvantagens que um excessivo pro-
tagonismo português poderia originar. Optámos, por isso, por uma intervenção mais
discreta nas sessões de negociação, preferindo manifestar as nossas posições e opções
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a comodidade do avião, e a qualidade do serviço a bordo, nada teria a ver com a rus-
ticidade tenebrosa da rocha voadora de fabrico soviético!
A reunião conjunta CPLP/CEDEAO/ECOWAS fora organizada a dois níveis: uma
primeira de responsáveis militares das duas organizações para analisar uma possível
intervenção conjunta na Guiné-Bissau não como “força de imposição da paz”, mas
como “força de interposição”, assegurando um status quo militar entre as partes en-
quanto decorreriam as negociações diplomáticas. O segundo nível reuniria os
responsáveis políticos que discutiriam – e eventualmente aprovariam – o plano que
tivesse sido acordado previamente entre os nossos militares, bem como outras ques-
tões políticas.
Quando, separadamente, nos reunimos com os “nossos militares” para sermos
informados do que haviam acordado com os seus homólogos na véspera, encontrá-
mo-los muito alarmados. Não fora possível chegar a qualquer plano conjunto, nem
se vislumbrava algum tipo de consenso. Os militares CEDEAO/ECOWAS insistiam
num plano que propunha a partição da Guiné-Bissau em cinco zonas militares e o
envio de uma força militar de cerca de cinco mil homens (sobretudo CEDEAO/
ECOWAS) que as ocuparia. A reacção de todo o “grupo político” da CPLP foi ime-
diatamente a de rejeitar em absoluto esse plano. A nosso ver, era inadequado colo-
car forças militares na totalidade do território guineense quando o conflito se cin-
gia a Bissau. Desconfiávamos que outros objectivos menos claros se poderiam es-
conder por detrás de tal intenção. O plano era, por outro lado, financeira e mate-
rialmente incomportável. Um mapa que nos foi submetido apresentando a Guiné-
-Bissau esquartejada e numerada segundo “zonas de ocupação”, o que a todos
sobressaltou, apenas tornou mais firme a nossa disposição de firmemente o rejeitar
no debate político que se ia seguir.
A sala destinada à reunião dos responsáveis políticos dispunha de uma enorme
mesa rectangular. De um dos lados maiores sentaram-se as delegações dos Estados
da CPLP, a que presidia Cabo Verde; do outro, os da CEDEAO/ECOWAS, incluindo a
delegação do Governo da Guiné-Bissau; no topo esquerdo, a Presidência da CEDEAO/
ECOWAS, ao tempo a Nigéria; no topo oposto, sentar-se-ia, quando chamada, a de-
legação da Junta Militar. Cada uma das duas partes foi então convidada a pronun-
ciar-se sobre o citado plano militar. A CPLP, como havíamos decidido, rejeitou-o em
bloco. Alguns países da CEDEAO/ECOWAS apoiaram-no explicitamente, enquanto
outros se mantiveram silenciosos, deixando a nu que, do seu lado, não existia quan-
to a ele unanimidade. Ouvida então a delegação do Governo da Guiné-Bissau, este
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nas reuniões de coordenação da CPLP que as antecediam. Jamais sentimos – ou nos
fizeram sentir – que a nossa presença não era bem-vinda, embaraçosa ou desne-
cessária.
Terminada a reunião de Abidjan em mais um fracasso, regressámos a Lisboa
fazendo o percurso inverso. De novo transportámos a delegação da Junta Militar até
Banjul (onde ficariam por várias semanas, impedidos de voltar a Bissau), mas o
ambiente no avião era agora pesado embora a tempestade tivesse acalmado. Parecia-
-nos que teria sido possível obter um bom acordo e que a intransigência da Junta –
que o impedira – fora excessiva e dificilmente aceitável. Entendíamos que um enor-
me esforço e empenho, que dificilmente se repetiria com a mesma intensidade e a
mesma vontade, fora desperdiçado.
A participação de Portugal na resolução da crise da Guiné-Bissau reforçou con-
sideravelmente os laços que já nos uniam àquele país. Demonstra-o, por exemplo, a
recepção muito calorosa de que foi alvo a delegação portuguesa à tomada de posse
do Governo de Unidade e Reconstrução Nacional na sequência do chamado Acordo
de Abuja. Ao longo da estrada que segue do aeroporto de Bissau até ao palácio pre-
sidencial, onde decorreu a cerimónia, milhares de guineenses saudaram-na com
grande entusiasmo numa manifestação que só pode ser interpretada como dese-
jando ser um gesto de reconhecimento pelo esforço que foi feito pela paz no país.
Esforço e trabalho colectivo, que se orientou exclusivamente pela salvaguarda da
identidade histórica e cultural da Guiné-Bissau nas suas fronteiras internacional-
mente reconhecidas, e na defesa do que entendíamos serem os interesses dos seus
cidadãos.
A resolução definitiva da crise político-militar na Guiné-Bissau conheceu um
progresso fundamental nas eleições presidenciais e legislativas de 1999. Por elas os
guineenses, em total liberdade, puderam escolher os seus dirigentes políticos.Toda-
via, os problemas que permanecem, e são muitos e de variada ordem, não se desva-
necerão pela simples realização de eleições. Só podem ser vencidos na unidade de
todos os guineenses independentemente das origens e dos credos e no respeito es-
crupuloso dos princípios democráticos, do Estado de Direito e dos direitos huma-
nos. De outro modo permanecerão os genes das desconfianças e dos ódios que
impedirão a afirmação autónoma da nação guineense na comunidade das nações, e
o progresso e o desenvolvimento para o povo da Guiné-Bissau que os reclama e
inteiramente merece.NE
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António Martins da Cruz | Embaixador de Potugal em Madrid
Day Trading ou a vida numa Embaixada
não alternativa
I
SETE E MEIA da manhã: a RN 5 anuncia chuva, estradas congestionadas, novos casos
de “vacas loucas”. Levanto-me a pensar uma vez mais que a Rádio Nacional 5 me
faz voltar quase trinta anos atrás, com os seus locutores de voz cordata tipo Emissora
Nacional. Mas actualiza as notícias cada quarto de hora, apesar de neutralizar a
informação.
Oito da manhã: a Rose despede-se, vai levar a Diana às aulas – o Liceu
Francês fica a poucos quilómetros pela circular M-30, mas a uma boa meia hora
todas as manhãs. Não há metro nem autocarro no bairro onde vivemos. A RN 5
avança com os títulos dos jornais económicos, prevê um novo conflito entre o
Governo e o poder judicial, lamenta duas mortes em mais uma tentativa para atra-
vessar o estreito. Acabo de me vestir a pensar que desde que aqui estou (ou será da
idade?) uso gravatas cada vez mais claras. As notícias continuam sempre: não houve
atentados esta noite e reúne-se amanhã o Conselho de Ministros. Enfim, mais uma
quinta-feira. Duas chávenas de chá, zapping apressado na biblioteca entre a Antena 3
e a novíssima SIC-Notícias. Engulo o Motens contra a hipertensão, e dou uma rápida
olhada à CNN: a Administração Bush instala-se, a bolsa em Tóquio continua a baixar,
Greenspan fala daqui a umas horas.
Oito e meia da manhã: o Javier já tem o Volvo a trabalhar. A Alícia traz-me
o sobretudo, estão três graus lá fora, e despede-se com o seu inglês cantado de
Manila. O segurança espreita e faz sinal que podemos sair. Ainda não é o mundo
real, mas as pequenas ruas tranquilas dos arrabaldes. Escolho um dos jornais que
estão no banco, e vou no segundo título (a indústria diz que são necessários mais
emigrantes) quando começa a trepidar o telemóvel. É um amigo sempre informa-
do, já na sociedade de investimentos onde trabalha, que me diz com uma voz apres-
sada “consta nos mercados que a EDP quer comprar o Hidrocantábrico e que pode
lançar uma OPA ainda hoje”. Agradeci-lhe. Não sabia.
Estávamos em Madrid, eram oito e trinta e cinco da manhã, começara mais
um dia de Janeiro. Precisava ainda de uns bons vinte minutos para chegar ao centro.
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103Vi rapidamente na agenda o que tinha que fazer: reunião com o representante para
a Península de uma indústria nórdica de telefones que vai abrir a delegação em
Portugal, visita ao Director-Geral da Europa para “afinar” a agenda da Cimeira bila-
teral da próxima semana, almoço com o Presidente de uma construtora espanhola e
com o seu sócio português, rápido encontro com o arquitecto para falar do ritmo
das obras da Embaixada.Tinha tempo para os habituais imprevistos. Felizmente, não
há hoje nem recepções (onde não gosto de ir) nem jantares. Só a vernissage de insta-
lações-vídeo de uma artista portuguesa numa galeria no centro da cidade, às oito da
noite. Apesar das perspectivas da OPA da EDP e do que pressinto que vou ter que
saber fazer, decido manter o pequeno-almoço no escritório de advogados, onde me
pediram para falar da agenda europeia e do nosso sistema de incentivos ao investi-
mento, sobretudo de natureza fiscal. Comecei a telefonar, para aproveitar os vinte
minutos de percurso.
II
Quando estava na NATO, recordo um general inglês, com bigode e caqui
tipo regresso das Índias, que nos ia fazer um briefing sobre o orçamento do quartel-
-general que visitávamos nesse dia. Lembrando-se que lhe devem ter dito na infân-
cia que um discurso anglo-saxónico deve ter no início e no fim uma nota de humor,
começou com aquela voz engasgada dos ingleses, que alguns portugueses tanto
gostam de tentar imitar: “Falar sobre orçamentos recorda-me o dilema do sétimo
marido da Zsa-Zsa Gabor, que dizia na noite de núpcias: sei o que tenho que fazer,
mas não sei como hei-de torná-lo interessante”.
É quase o que sinto, mutatis mutandis, quando me pedem para escrever sobre
o que é o dia-a-dia da Embaixada em Madrid.
Procurando ir por partes.
A nossa representação diplomática em Espanha, e sobretudo a sua acção,
tem que permanentemente sintetizar diversas confluências: a Espanha é o nosso
único vizinho terrestre e é com ela que partilhamos há oito séculos e meio o espaço
peninsular, tal como foi com ela que dividimos o mundo em Tordesilhas; temos uma
história muitas vezes comum, mas temos memórias diferentes dessa história; o fac-
tor europeu deu-nos a ambos, pela primeira vez, uma coincidência de horizontes e
de projectos estratégicos; a pouco e pouco, a Península transformou-se num sub-
mercado regional europeu; regressámos à situação anterior às expansões, quer no
plano geopolítico quer até nas trocas comerciais; os chamados factores de per-
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manência e de estabilidade em política externa estão a transformar-se, na nossa
relação com a Espanha, numa dinâmica europeia de adaptações quase diárias e de
solidariedade (e alguns desencontros) em agendas e votações em Bruxelas. Muito
mais, por exemplo, do que com os ingleses, com quem a quase generalidade dos
portugueses, e um ou outro britânico, consideram que ainda existe a mais velha
aliança do mundo. E, finalmente, com a Espanha, a perspectiva estratégica é vital
para os portugueses e apenas importante para Madrid.
Vítor Cunha Rego, recordando porventura o tempo em que esteve em Ma-
drid como Embaixador, registou numa das suas crónicas: “Escrever sobre o que se
passa em Espanha é sempre difícil, porque os portugueses gostam muito e gostam
pouco dela, ao mesmo tempo. Vistas bem as coisas, a Espanha é o maior problema
internacional português. Alguns dirão que é o único.” (Os dias de amanhã, pág. 92).
Os nossos interlocutores não mudaram, apesar de sucessivas configurações
históricas e constitucionais espanholas, e poderá até ter-se agravado a inércia da
dimensão, a que factores económicos dão agora percepções diferentes. Creio que era
Bismarck, ou alguém citando-o com memória apressada, que dizia que em política
pode alterar-se quase tudo menos a geografia. Os dois países regressaram ao con-
torno das orlas da Península, à fase antes da conquista de Ceuta, após aventuras
marítimas e imperiais com êxitos desiguais mas com um fim comum ainda que des-
fasado no tempo. Fica-nos – uma vez mais – a geografia. Talvez para o recordar,
tenho no meu gabinete um mapa da Península. Quanto mais não seja – e às vezes é
– para meditar.
III
Vejamos como condicionam estes factores – positiva e negativamente – o
trabalho na Embaixada em Madrid e nos cinco Consulados de carreira que temos em
Espanha, resumindo esses factores, na secreta esperança que algum leitor possa
achar interessante a sistematização. São sobretudo de duas ordens:
– a Espanha é o nosso único vizinho terrestre (Marrocos é certamente também um
vizinho marítimo) e o nosso primeiro parceiro económico e comercial, com cres-
cente importância;
– a dinâmica da União Europeia alterou profundamente, e continua a modificar
todos os dias, o trabalho das missões diplomáticas intra-comunitárias.
Dizem os manuais que as Embaixadas servem para representar, informar e
negociar. Para isso, cabe-lhes formular a política diplomática, isto é, ter capacidade
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entre o seu próprio país e aquele onde estão acreditadas, não apenas na esfera políti-
ca mas cada vez mais nos meios económicos; negociar, ou seja, aproximar posições
que permitam soluções se possível coordenadas e consensuais; relatar, de preferên-
cia antecipando, ao seu próprio Governo o que se passa na política, na economia,
na sociedade do país onde estão; tentar influenciar os decisores; para tanto, agir com
credibilidade e cultivar os círculos adequados.
É todo um programa. E, em Espanha, esta liturgia é talvez mais complexa do
que noutros países, já que as Embaixadas, tal como as pessoas, medem-se pelos seus
amigos e pelos seus inimigos.
IV
Certamente, mais de 50% do meu tempo, como Embaixador em Madrid, é
dedicado às questões económicas. O peso dos dois factores – a vizinhança e a Europa
– transformaram os temas e os problemas económicos no principal trabalho de
quem deve seguir e globalizar em permanência, pelo lado português, as relações
luso-espanholas.
A Espanha é hoje o nosso primeiro mercado (cerca de 20% das exportações,
tendo ultrapassado a Alemanha) e o nosso primeiro fornecedor (mais de 25% do
total das nossas importações). Era o quinto há quinze anos, num e noutro sentido.
Há três mil empresas espanholas em Portugal, e um pouco menos de trezentas com-
panhias portuguesas em Espanha. A Espanha, em 2000, exportou mais para Portugal
do que para todos os países da América Latina. Cada português comprou, no ano
passado, cento e setenta mil pesetas de produtos espanhóis, mais do que duzentos
contos. Este factor deve-nos ser favorável, já que contribuímos assim para o pro-
gresso e a estabilidade de Espanha.
São espanhóis vinte dos vinte e cinco milhões de visitantes que recebemos
também no ano passado e cerca de metade dos doze milhões de turistas. Cada vez
que um português compra mil escudos de produtos importados num supermerca-
do, duzentos e cinquenta escudos pagam produtos espanhóis. E Portugal importa
quase sessenta por cento do que consome em alimentação.
É com a Espanha que temos que nos entender no traçado das fronteiras e no
débito dos quatro grandes rios que nos chegam do seu território. É com a Espanha
que temos que nos pôr de acordo sobre as redes transeuropeias, o traçado das auto-
-estradas, das pontes, do comboio de alta velocidades. Temos que contar também
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com a Espanha para vencer todos os dias a periferia, este sul que é bom para o tu-
rismo mas que nos afasta dos centros de decisão e dos mercados europeus.
Para acompanhar e responder a situações concretas, promovi maior arti-
culação com a excelente delegação que o ICEP tem em Madrid; a dinamização da
Câmara de Comércio hispano-portuguesa, que começou a abrir delegações em di-
versas autonomias espanholas e a diversificar as suas actividades; fórmulas de coor-
denação com os conselheiros para a internacionalização da economia portuguesa
que há em Espanha, com quem me reúno regularmente; a crescente acção dos Con-
sulados na área económica e comercial; uma presença activa em actos relacionados
com a interpenetração das duas economias.
Portugal tem falta de visibilidade em Espanha. Mostram-no os inquéritos à
opinião, a inabilidade da actuação de alguns empresários e até, por vezes, os sim-
ples artigos da imprensa. Para utilizar a expressão feliz do historiador Sánchez Cer-
velló, nós somos “el vecino más ignorado”.
Por isso, tenho privilegiado a chamada “diplomacia pública”: entrevistas em
rádios e televisões, sobretudo em programas económicos, e nos jornais, através de
artigos e entrevistas; conferências nas Universidades, nas associações comerciais e
empresariais, nos foros culturais; participação em congressos turísticos, vinícolas,
em feiras de calçado, em jornadas gastronómicas, em encontros de historiadores.
Entre seis e oito acções todos os meses. Aliás, quando apresentei credenciais ao Rei
D. Juan Carlos, momento que oficializa a entrada em funções de um Embaixador,
decidi não perder tempo com um ritual do MNE que consiste em escrever uma carta
aos colegas espalhados pelo mundo – cujo texto deve ser o mesmo há dezenas de
anos – a anunciar o facto. Mas decidi escrever aos trezentos maiores empresários es-
panhóis, muitos deles já presentes em Portugal, e a diversos opinion makers, a manifes-
tar a minha disponibilidade para melhorar os circuitos de informação e colaboração.
Outro exemplo de diplomacia pública: a Embaixada, colaborando com o
Ministério da Economia e com o ICEP, foi instrumental na configuração e execução
do “Perfil de Portugal”, que concentrou durante quinze dias em Madrid, na segun-
da semana de Outubro de 2000, cerca de setenta políticos, empresariais, comerci-
ais, culturais, tecnológicos ou simplesmente lúdicos. Foi a maior operação de pro-
moção de Portugal realizada até hoje no exterior e cujos resultados, previstos para o
médio prazo, se começam já a sentir.
Outra acção, no campo económico, decorre da percepção do conceito de
“home market” para as empresas de um no outro país da Península. No caso dos ban-
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procurar agilizar matérias económicas, sociais e culturais, em áreas onde conviria
uma maior afirmação portuguesa.
Figo e Saramago são certamente os portugueses mais conhecidos em Espa-
nha. Mas a sua simples presença não chega para afirmar Portugal, apesar da opinião
de bem pensantes nacionais que assim se exprimem em jornais portugueses. Re-
cordam Portugal, mas ao viver e trabalhar (e muito bem) em Espanha, são assimi-
láveis no imaginário castelhano aos seus próprios valores. Alguém convencerá um
francês de que Picasso era espanhol? Figo e Saramago são aqui símbolos cuja na-
cionalidade é indiscutível. Recordá-lo faz parte do nosso trabalho, e todos os dias.
Há menos de um mês estive no Estádio Santiago de Bernabeú na cerimónia da entre-
ga a Figo da “bota de ouro” como melhor jogador do mundo em 2000. A meu lado,
o Núncio Apostólico, o português D. Manuel Monteiro de Castro, que tal como eu
vibrou com a homenagem e com o jogo de futebol que se seguiu. Dois dias depois,
assisti na Casa da América ao lançamento do último livro de Saramago, A caverna. Nos
dois casos, foi pedido ao Embaixador de Portugal que estivesse presente.
As especificidades espanholas – que se afirmam também no futebol, como
Figo teve ocasião de constatar e de sofrer – obrigam a que a acção da Embaixada
tenha que ser projectada para fora de Madrid.
Embora sem ter ainda recorrido à figura da “Embaixada aberta”, procuro
não me limitar ao horizonte do Paseo de la Castellana, privilegiando as visitas, as
conferências, os encontros e os congressos nas autonomias, especialmente as que
fazem fronteira com Portugal.Alguns exemplos mais recentes: recepções na Sagres em
Vigo e em Bilbau aos meios políticos e económicos daquelas Comunidades; presidir
o I Congresso Internacional dos Vinhos do Douro, em Valladolid; inaugurar a Feira
Internacional de Badajoz e o Centro de Estudos Portugueses na Universidade de
Cáceres; abordar a nossa agenda europeia com os membros do “Patronato Catalão
Pró-Europa”, em Barcelona; almoçar com a Associação dos Jovens Empresários An-
daluzes, em Sevilha; visitar a Capela de Nossa Senhora de Fátima em Astigarroka, na
Guipúzcoa. Uma vez dei uma entrevista à rádio, em directo, numa cervejaria de
Vigo, que o programa utilizava nessa altura como suporte. Durante uma hora, falei
de Portugal – do que ia ser o “Porto Capital Europeia da Cultura”, de Eça de Quei-
roz, da exportação de automóveis da “Auto-Europa”, das furnas dos Açores. Os
ouvintes iam fazendo perguntas e eu ia respondendo o que sabia: qual o vinho a
beber com o leitão da Bairrada, o que era “uma francesinha” no Porto ou qual a
estrada para chegar a Óbidos. No dia seguinte, era domingo e fui passear com a
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107cos e das grandes companhias, importa procurar antecipar as soluções do mercado,
que conduzem geralmente a parcerias estratégicas, fusões, OPAs, ou simples cola-
borações, sobretudo nos chamados sectores estratégicos (energia, bancos e teleco-
municações). Mas importa ir criando condições para que a Espanha seja também um
home market para as PMEs, que são afinal o principal tecido económico português. E
por isso a Embaixada promoveu o primeiro encontro de PMEs portuguesas em Ma-
drid (e este ano em Barcelona), procurando não apenas criar sinergias horizontais
como ainda proporcionar plataformas negociais, de oportunidades e até logísticas.
Muitas das grandes empresas portuguesas estão presentes em Espanha, pelo
que o papel da Embaixada é acompanhá-las, facilitar interfaces com o sector políti-
co, proporcionais e trocar informações sobre o mercado e as oportunidades. Nos
encontros regulares que mantenho com os Presidentes de alguns desses Grupos e
com os seus directores e representantes em Espanha, procuro trazer algum calor
acrescentado à sua acção e afirmar o MNE como interlocutor na diplomacia econó-
mica. Imperativos do mercado nem sempre permitem o conhecimento antecipado
que, por vezes, permitiria clarificar a envolvente política.
Do mesmo modo, alguns grupos espanhóis e as multinacionais que cada vez
mais estão a concentrar em Madrid as suas sedes para o conjunto da Península
(Lisboa está a perder a favor de Madrid com o acentuar da globalização na gestão
dos grandes grupos mundiais) procuram a Embaixada para obter indicações.
Foi aliás devido à pressão sentida, que promovi a criação de uma “bolsa de
trabalho”, em Protocolo que assinei com o Presidente da Câmara de Comércio his-
pano-portuguesa e o delegado do ICEP, dado receber cerca de vinte cinco e trinta
pedidos mensais, por parte de empresas espanholas ou de multinacionais, a solici-
tar portugueses com conhecimento da língua espanhola para trabalhar em Madrid
ou em Portugal.
V
No primeiro discurso que fiz, menos de um mês depois de ter chegado a
Madrid, apontei como prioridade aumentar a visibilidade de Portugal em Espanha.
E como um dos meios para esse objectivo estruturar um “lobby português”. Esse lobby
deve ser transparente e deve incluir várias componentes que asseguram eficácia nos
distintos sectores da sociedade espanhola. Uma das peças é certamente o “Fórum
dos Portugueses”, como expressão da sociedade civil. O seu Presidente teve, aliás, a
iniciativa de me propor a criação de um “grupo consultivo do Embaixador” para
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109nossa Cônsul-Geral pelas ruas de Vigo; fui abordado por uma simpática família cuja
mulher (são sempre elas que tomam as iniciativas) me disse: “ouvi-o ontem num
programa de rádio e tivemos vontade de voltar a Coimbra”. O meu “ego” deve ter
crescido e cheguei a pensar em pedir um subsídio ao Secretário de Estado do
Turismo por cada turista arranjado. Sobretudo, valera a pena aquela hora na rádio
que trouxera mais alguma visibilidade a Portugal.
Também a acção da Embaixada e dos Consulados se concentra, fora de
Madrid, nas chamadas autonomias tradicionais, como a Catalunha, onde temos im-
portantes investimentos, ou no País Basco, onde é portuguesa a maior comunidade
estrangeira. Nestas comunidades, procuro incluir nas visitas regulares que ali faço
encontros com os políticos, conversas com a comunicação social, conferências em
Associações empresariais, visitas à comunidade portuguesa, inauguração de expo-
sições sobre temas portugueses, acções promocionais. Por acordo com o ICEP, apro-
veitamos sempre a deslocação de equipas de futebol portuguesas, em encontros para
as competições europeias, para intensificar nos dias antes dos jogos uma presença
nos meios de comunicação social e realizar acções específicas de promoção comer-
cial ou turística e actos nas associações empresariais.
Por outro lado, dou especial atenção aos contactos com as autoridades poli-
ciais e de segurança, já que atravessam as estradas de Espanha (e certamente dos
Países Bascos e da Catalunha) mais de 70% das nossas exportações para a Europa,
que como é sabido se efectuam por via rodoviária.
Também nessas autonomias os Consulados devem ser pólos capazes de gerar
lobbies favoráveis a Portugal, promovendo interacções entre delegados da Câmara de
Comércio, Fundações com ligações a Portugal, e esse conjunto indefinido mas sem-
pre presente dos “amigos de Portugal” que estão nos meios políticos, intelectuais,
económicos, ou simplesmente sociais.
Para agilizar a sociedade civil espanhola e procurar trazê-la a “pensar em Por-
tugal”, propus ao Ministro dos Negócios Estrangeiros a iniciativa de sugerir a Espanha
a criação de um “Fórum Luso-Espanhol”, desgovernamentalizado, que associasse os
chamados representantes das sociedades civis dos dois países e constituísse uma câ-
mara de reflexão, prospecção e exemplo do que podem ser as relações entre os dois
países. Já se reuniu, com sucesso, em Outubro. Continuo a pensar que este tipo de
fora ou “observatórios” se poderiam estender às questões económicas, à ciência e à
tecnologia, ao jornalismo, enfim às áreas onde as sociedades dos dois países podem
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dar impulsos para diversificar as relações e retirar-lhes a tonalidade oficiosa que, por
defeitos partilhados de um e outro lado da fronteira, ainda se reflecte nas opiniões
públicas.
VI
Com a Espanha temos alguns problemas de imigração, cooperação judicial
e policial, o que agora se chama na Europa as questões de Justiça e Interior. Por
exemplo chegam pela mala diplomática, todas as semanas, ou pelo correio, para
cima de cinquenta pedidos dos Tribunais a requerer informação sobre paradeiros, a
indagar sobre multas e coimas, a formalizar extradições ou o reconhecimento de
sentenças. E também das polícias a relatar ocorrências ou a informar sobre situações
geralmente tristes.
Países vizinhos, só há pouco tempo Portugal e Espanha iniciaram uma co-
operação transfronteiriça e, ainda assim, no quadro dos comunitários programas
INTERREG. Hoje, felizmente, há evoluções, e todas as autonomias espanholas de
fronteira celebraram protocolos de colaboração com as Comissões de Coordenação
Regional portuguesas.Temos mesmo um caso exemplar, da Fundação Afonso Henri-
ques, com sede em Espanha e Presidente português, que é instrumental para acções
transfronteiriças. Procuro assistir aos seus actos e facilitar à Fundação e ao seu Pre-
sidente uma base de apoio em Madrid, disponibilizando a Embaixada para activi-
dades que a projectem na capital espanhola. Acredito que é fundamental apoiar todas
as acções que promovam uma maior capilaridade fronteiriça e, também por isso, me
desloco várias vezes por ano às comunidades autónomas espanholas que têm fron-
teira com Portugal.
A cooperação com a Extremadura pode considerar-se exemplar e um mo-
delo a perspectivar nas nossas relações com as regiões de fronteira. No ensino, na
contratação de trabalhadores temporários para a agricultura, no traçado das pontes
e das estradas locais, no sistema de protecção civil e alerta aos incêndios, na gestão
de comunidades urbanas, a colaboração entre a Junta da Extremadura e distintos
níveis de administração local e regional em Portugal tem vindo a cimentar-se e a
aprofundar-se. É um exemplo de como podem desenvolver-se as relações transfron-
teiriças, no que são afinal as regiões menos desenvolvidas dos dois países. Tenho
reuniões regulares com as autoridades da Extremadura e tem sido gratificante ver a
evolução neste ano e meio.
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cultural, e uma presença portuguesa em regiões autónomas de estatutos políticos
diferenciados.
Procuro visitar estes Consulados pelo menos uma vez por ano, para além de
lhes comunicar as posições que entendo úteis para que possam ser “a representação
portuguesa” a que recorrem os meios públicos, económicos e culturais locais.
Constatei que apesar dos escassos compatriotas que aqui residem, a Espanha
é certamente o país com maior comunidade portuguesa itinerante durante os meses
de Verão: mais de milhão e meio de portugueses circula nas estradas espanholas em
Julho e Agosto. Pedi assim aos Cônsules, que com maior ou menor boa vontade
aderiram, que limitassem as suas férias durante aqueles meses de Verão para po-
derem estar presentes e actuarem quando necessário. Tomei também a decisão de
ficar em Espanha, com a minha família, durante os meses de Verão, por forma a
poder estar em Madrid com rapidez se for requerida a minha presença ou se enten-
der que assim deve ser.
Uma Embaixada, ou uma Embaixada e o conjunto dos Consulados que
Portugal tem em determinado país, é sobretudo uma equipa. Sem os meus colegas,
diplomatas e conselheiros especializados, seria impossível assegurar a presença em
Espanha que entendo indispensável para a missão que me confiaram. “Cela va sans
dire”, mas é melhor dizê-lo e sublinhá-lo. Creio que se adaptaram ao meu método de
trabalho, que passa primeiro justamente por trabalhar, por delegar competências,
fazer circular a informação, pedir rigor e rapidez nas decisões e na acção. E disponi-
bilidade. Creio, aliás, que são condições necessárias para ganhar o drive requerido
nesta nossa profissão. Como em muitos outros postos diplomáticos com alguma
dimensão, convoco staff meetings regulares, para orientação estratégica, programação
táctica e troca de informações temáticas. Em breve, haverá também uma reunião
com todos os Cônsules portugueses para definir objectivos com maior selectividade
em diversos temas económicos e culturais e procurar uniformizar procedimentos.
IX
Finalmente – ou talvez principalmente – a Embaixada tem que realizar ou-
tras funções, entre as quais se destacam a gestão quotidiana das nossas relações com
a Espanha, a actualização permanente das posições espanholas na União Europeia e
no mundo e a informação sobre as nossas próprias posições junto de decisores e da
opinião pública.
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VII
O Estado português tem em Espanha cerca de setenta professores portugue-
ses, cujos salários são pagos pelo Ministério da Educação, e que leccionam aulas de
língua e cultura portuguesa a cerca de dez mil alunos, dos quais apenas 30% são fi-
lhos de portugueses. A coordenação deste enorme esforço é feito pelos serviços de
educação da Embaixada e considero a sua acção, a que dou especial atenção, como
um dos contributos ao que deverá ser um objectivo: fazer do português a primeira
ou a segunda das línguas de opção no sistema educativo secundário espanhol. Esta
acção, em confluência com a presença de leitorados em meia dúzia de Universidades
espanholas, é essencial para a nossa presença cultural em Espanha, pese embora a
inexistência de Centros Culturais em Madrid ou nas grandes cidades espanholas.
A nossa presença cultural em Espanha é sobretudo fruto – como deve ser –
da acção da sociedade civil: os museus, principalmente o notável museu de Badajoz,
que colaboram com museus portugueses, as galerias que expõem artistas portugue-
ses, as editoras que publicam obras portuguesas. Dá-me um particular prazer, como
o fiz há alguns dias, falar na apresentação do livro A Senhora da Noite, de Teixeira de
Pascoaes, organizada pela editora espanhola da obra, e ter oportunidade para abor-
dar a concepção dos iberismos do século XIX que perpassa pela correspondência
Pascoaes – Unamuno. Ou falar, como há dois meses, num encontro de historiadores,
promovido pela Fundação Carlos de Antuérpia, e dar o meu contributo sobre as
políticas europeias dos dois países na segunda metade do século XX.
Para a internacionalização da arte portuguesa, assume crescente importân-
cia a presença de galerias e artistas portuguesas na ARCO, a Feira anual de arte de
Madrid e uma das principais da Europa. Para além do gosto pessoal que tenho em
conviver, durante essa semana, com artistas e galeristas, amigos alguns de longa data
(e da oportunidade para actualizar a minha colecção), retomei um hábito: abrir a
Embaixada a todos os portugueses que estão na ARCO, dar-lhes o apoio que neces-
sitam e acolhê-los num encontro a que procuro trazer directores de museus e colec-
cionistas espanhóis.
VIII
Temos em Espanha uma comunidade relativamente pequena, que não chega
aos trinta e cinco mil portugueses. Mas os nossos cinco Consulados, e os doze Côn-
sules honorários, representam acima de tudo uma quadrícula política, comercial e
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perder, mas limitar as perdas; 3 – aprender à própria custa a melhorar os conheci-
mentos do mercado; 4 – tentar prever a evolução, sabendo que raras vezes consegue;
5 – cultivar a paciência, a perseverança e a capacidade de decisão; 6 – não procurar
ganhar em cada operação, já que o que conta é o lucro final e não os benefícios de
cada movimento; 7 – saber ser flexível, já que não há uma estratégia única; 8 – o
acesso imediato às informações e a rapidez das decisões são condições para o êxito;
9 – a diferença entre ganhar e perder depende muitas vezes da disciplina; 10 – é
fundamental manter a confiança da direcção da empresa.
Os day traders são como os diplomatas – todos os dias arriscam a sua re-
putação em valores que são cada vez mais voláteis. Até escrever artigos como este.NE
NegóciosEstrangeiros . N.º1 Março de 2001
113A União Europeia trouxe hábitos novos aos políticos e alterou a prática di-
plomática sem contudo lhe retirar a oportunidade e a vocação. Não chegou ainda,
creio eu, a hora de propor ao Governo que privatize as Embaixadas. Mas hoje o
chefe de uma missão diplomática já não escreve longas considerações sobre estraté-
gia que envia por mala diplomática ao Ministro, como os leitores mais interessados
podem constatar no Livro Branco sobre a nossa política externa durante a II Guerra.
Hoje temos que procurar acrescentar mais valias de informação e propor medidas
cada vez mais concretas e pragmáticas, com base nas “atmosferas” do país onde esta-
mos.
Quando chego de manhã ao escritório (os meus colegas mais clássicos
chamar-lhe-iam a Chancelaria) procuro inteirar-me, utilizando o meu discreto net-
work, do que falaram na véspera os Ministros portugueses e espanhóis nos corredores
de Bruxelas e nos possíveis telefonemas havidos entre Lisboa e Madrid: o que acor-
daram ou como discordaram, quando se visitarão, de que irão falar.
A Embaixada procura globalizar permanentemente a gestão das nossas rela-
ções com a Espanha. Para tanto, é essencial o tratamento da informação e saber colo-
car os nossos interesses no xadrez dessas relações.
Em Espanha, os habituais interlocutores oficiais de um diplomata são de
fácil acesso, quer no plano político, quer se trate de altos funcionários dos diferentes
Ministérios. O que não significa necessariamente que a defesa das nossas posições
esteja sempre facilitada por essa disponibilidade.
Em diplomacia, o problema não é ganhar, já que a defesa de interesses (e às
vezes de princípios) não é um jogo de futebol, como gostariam alguns comenta-
dores apressados e por vezes amadores. O problema é estar; é a capacidade de res-
posta; é saber avaliar as escolhas; é a oportunidade e a rapidez da decisão. E é tam-
bém a imagem.
Aqui diz-se que “las cosas son ségun el color del cristal con que se miran”. A Embaixada
não dá a cor ao vidro através do qual os espanhóis olham Portugal, mas procura dar
alguma: a que sabe, a que pode e a que lhe deixam.
X
O trabalho em algumas Embaixadas, e muito provavelmente em Madrid,
aproxima-se cada vez mais do day trading, a técnica de investimento na bolsa que
procura tirar benefícios da oscilação diária das cotações. O decálogo do operador é
simples: 1 – não tentar saber tudo de um dia para o outro; 2 – não ter medo de
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Os
susp
eito
s do
cos
tum
e
o debate é necessário – e aqui reside o grande
mérito deste livro.
Se não existe uma classe política eu-
ropeia dominada por advogados, que per-
mita o controlo jurisdicional e evite a con-
tinuada propagação do funcionalismo públi-
co eurocrata; se não existe uma língua co-
mum, ainda que Siedentop esteja seguro da
influência crescente e continental do inglês;
se não existem experiências nacionais co-
muns a todos os Estados europeus, como
houve a oposição à Coroa inglesa nas treze
colónias americanas; se não existem hábitos
de governação local, salvo raras excepções
na União – todos estes critérios que mol-
daram o federalismo americano – é preciso
então encontrar a fórmula que consiga ul-
trapassar estas carências. E aquilo que se en-
contra hoje em prática não é obviamente o
ideal – é já demasiado largo o fosso entre os
cidadãos e as instituições; é já demasiado
evidente a contradição quase que esquizo-
frénica entre o discurso de integração eu-
ropeia e as obsessões nacionais que tão cla-
ramente vieram à superfície em Nice; é já
demasiado grande a distância entre o inte-
resse economista e redutor, de um lado, e o
discurso público, da cidadania, do interesse
de cada um reflectido no interesse de todos.
“Nós queremos estar envolvidos na dis-
cussão do poder, mas também queremos que
nos deixem em paz”, diz Siedentop. Será
que estamos a construir uma Europa que
seja apenas um gigantesco supermercado?
Queremos ser apenas consumidores? Ou
queremos ser também cidadãos? Para isso é
preciso que os assuntos da cidade sejam dis-
cutidos na praça central, que os cidadãos
não sejam julgados como personagens igno-
rantes que desconhecem Tratados e que nada
sabem da complicada mecânica das institui-
ções (onde, por exemplo, apenas um génio
matemático conseguirá calcular as maiorias
qualificadas decididas em Nice…).
De todas as formas, “o gato está entre
as pombas”, como se disse quando Joshka
Fischer fez o seu discurso em Berlim em
Maio passado. Federalismos ou não, algo de-
ve ser aceite como princípio intelectual para
a discussão: um conceito que poderá então
ser acrescido de algo, ou diminuído de even-
tuais excessos, mas que ao menos nos deci-
damos a falar todos sobre a mesma coisa.
Siedentop admite que este não é um objec-
tivo a alcançar-se em pouco tempo. Será, no
seu e nosso entender, um trabalho para uma
geração.
Neste Inverno de 2001, quando o trau-
ma de Nice ainda não se dissipou e essa
cimeira se tornou no símbolo de como o
funcionamento da União peca por grandes
defeitos, assiste-se já a uma dança mal dis-
simulada para redefinir o mapa das alianças
entre os “mais fortes”. Enquanto isso, os
“mais fracos”, incertos quanto ao alcance do
Tratado ainda por assinar, consolidam o ar-
gumento de Siedentop de que a União foi
construída aos solavancos, através de mu-
danças graduais e jogos de bastidor, e que
por isso peca, sobretudo, pela ausência qua-
se total de uma visão de conjunto e de um
debate público e aprofundado, semelhante
ao que há 200 anos permitiu o “milagre de
Filadélfia”.
REC
ENSÃ
O
NÃO TERÃO sido certamente estas as ordens
recebidas pela polícia francesa quando ocu-
pou a cidade de Nice para o Conselho Eu-
ropeu de Dezembro passado. Mas as barri-
cadas foram colocadas, os quinze suspeitos
do costume mantiveram-se à porta fechada
durante três dias seguidos, e a população,
ignorante dos debates, permaneceu indife-
rente aos resultados. Só que destes nem os
próprios suspeitos pareciam estar ao corren-
te, tão penosos foram os “interrogatórios”,
tão intensas as discussões, tão directas as re-
criminações e as ameaças.Tudo acabou como
havia começado: sem se apurar claramente
quaisquer “culpados”, qualquer leitmotiv, ou
sequer modus operandi. Confirmou-se apenas o
enorme fosso entre a classe política e o ci-
dadão…
Larry Siedentop, que ouvi recentemen-
te numa conferência, é um professor ameri-
cano a quem os últimos 40 anos a ensinar
pensamento político em Oxford retiraram
quaisquer traços da pronúncia da sua Chi-
cago natal. A ausência de debate sobre a
Europa e o seu futuro é justamente o ponto
central do seu livro Democracy in Europe (Allen
Lane, 272 pgs.), publicado no Verão de 2000
e que desde então tem agitado algumas
águas. O título é uma adaptação propositada
do livro Democracia na América de Alexis de
Jorge Roza de Oliveira | Adjunto do Comissário Europeu para a Justiça e Assuntos Internos
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e Tocqueville. O debate que se gerou nos jo-
vens Estados Unidos na década de 1780, e
que deu origem à Constituição e aos ensaios
federalistas, é aquilo de que hoje, para o
autor, a Europa mais carece. Os objectivos
economistas e tecnocráticos, que moldaram
Monnet e estiveram na génese das Comu-
nidades, não são mais – ou pelo menos não
deveriam ser – a razão do continuado desen-
volvimento da União Europeia.
Qualquer ideia sobre o futuro parece
ter-se cristalizado em torno da amaldiçoada
“F-word”. O debate resume-se hoje a um des-
pique entre “federalistas” e “euro-cépticos”,
o modelo “Joshka Fischer” em oposição aos
editoriais do The Sun. O que equivale a um
debate condenado, pois o futuro não passará
provavelmente sequer por aí.
Poderemos discordar de Siedentop
quando utiliza o termo “federalismo” para
descrever o objecto do debate, e sobretudo
quando traça os paralelos com a experiência
americana do século XVIII, pois se calhar é
o próprio conceito de federalismo que está
esgotado. E nem é minha intenção nesta
curta recensão defender uma solução do ti-
po “Estados-gerais federalistas” para o pro-
blema da falta de transparência do modelo
intergovernamental. Poderá até nem existir
“ainda” na ciência política um termo para
definir aquilo para o qual caminhamos. Mas
Os suspeitos do costume“Major Strasser has been shot. Round up the usual suspects.”Claude Rains, como Captain Louis Renault, Casablanca, 1942
RECENSÃO
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eito
s do
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e
A última cena de Casablanca é a do avião,
transportando Ilsa/Ingrid Bergman, a desco-
lar para Lisboa numa noite de nevoeiro. Rick/
Humphrey Bogart afasta-se a pé, com Claude
Rains a seu lado, e diz-lhe: “Louis, I think this
is the beginning of a beautiful friendship.” Seguem-se
os acordes da Marselhesa.
Duvidamos que tenham sido essas as
palavras dirigidas a Chirac quando os Chefes
de Estado e de Governo se despediram em
Nice. Não estamos obviamente no início de
qualquer amizade ou relação especial entre
eles, bem pelo contrário. Talvez nos falte
quem para liderar este processo, mas o que
não deverá faltar é a vontade de debater um
futuro que não é só de alguns, mas sim de
todos. Siedentop tem, pelo menos, o mérito
de lançar importantes pistas de discussão.
“Onde estão os nossos Madisons?”, é o títu-
lo de um dos capítulos do livro. Olhamos
em redor e, na verdade, não os vemos. Ape-
nas talvez os suspeitos do costume…NE
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Senhores Membros do Governo,
Senhor Secretário-Geral do Ministério dos
Negócios Estrangeiros,
Senhores Embaixadores,
Minhas Senhoras e Meus Senhores,
TRATA-SE DA SEXTA edição deste Seminário em
que tenho a honra de participar. Continuo a
pensar que se trata de uma oportunidade de
reflexão única e que o nosso sentido de mis-
são é reforçado substancialmente através des-
te exercício. Creio também que estes semi-
nários têm vindo a assumir um importante
papel para todos os presentes. Daí a necessi-
dade de escolhermos cuidadosamente os te-
mas abordados, procurando optimizar todas
as possibilidades que nos são oferecidas. É
por essa razão que procuramos diversificar
os temas e também os intervenientes convi-
dados. E agradeço desde já a todos aqueles
que aceitaram estar aqui presentes e partici-
par, e em especial ao meu colega belga, o
Ministro Louis Michel, que nos falará logo
após o almoço. Estas participações segura-
mente contribuem para alargar horizontes e
abrir novos debates a especialistas de outras
áreas e também à sociedade civil.
É verdade que o ano 2000 foi funda-
mentalmente marcado pela agenda Euro-
peia: da nossa Presidência, no primeiro se-
mestre, até ao Conselho Europeu de Nice
Jaime Gama | Ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros
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al”durante a Presidência francesa, no segundo,
numa impressionante sucessão de reuniões
e prazos que a todos de alguma forma envol-
veu, mas não descurámos os outros domí-
nios, nas comunidades portuguesas, na co-
operação para o desenvolvimento, em Timor-
-Leste, na CPLP, em África, na América La-
tina e na Ásia. Procurámos estabelecer pontes
e aproximar a União Europeia de regiões
mais distantes e porventura mais afastadas
das grandes preocupações das próprias insti-
tuições europeias. Creio que aqui também
conhecemos algum sucesso. Pensemos na Ci-
meira Euro-Africana no Cairo e que o nosso
papel no mundo sai reforçado e credibiliza-
do do ano que há dias terminou.
O tema seleccionado para este ano, “A
imagem de Portugal”, é em parte conse-
quência dessa visibilidade acrescida.Trata-se
agora de saber como sustentá-la, como apro-
veitar as portas agora abertas, como garantir
que a acção externa do Ministério dos Ne-
gócios Estrangeiros e de todos os seus agen-
tes possa reflectir efectivamente as preocu-
pações dos portugueses, e o que de melhor
Portugal tem para oferecer. Como ajudar, atra-
vés desta acção externa, ao desenvolvimento
e à modernização do nosso país? Como ar-
ticular um conjunto de acções do Estado para
que essa finalidade seja alcançada? Como
conjugar o papel do Estado e da sociedade
Seminário Diplomático 2001:
“A imagem de Portugal”
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Conferência de Compromisso de Capacida-
des realizada em Novembro e para a qual
Portugal disponibilizou um conjunto de for-
ças que, envolvendo os três ramos das For-
ças Armadas, fará empenhar nessas acções,
quando necessário, cerca de 2700 homens.
Teremos de manter presentes os desafios
que esta dimensão adicional político-militar
da União representa para os seus Estados-
-membros, para as relações com a NATO,
para as relações com os demais candidatos
europeus e com os europeus não-candi-
datos, verbi gratia, a Rússia e a Ucrânia. Su-
blinho também o follow-up do Conselho Eu-
ropeu extraordinário de Lisboa e de todo o
seu acervo, aliás já bem assimilado e en-
raizado pela União de modo a garantir que
tudo aquilo que de bom e inovador que se
conseguiu em Lisboa se mantenha no centro
das prioridades da União. Igualmente su-
blinho a acção da União Europeia no tocante
a África, no seguimento da Cimeira do
Cairo, no tocante ao Mediterrâneo, o Pro-
cesso de Barcelona, MEDA II, à estabilização
dos Balcãs e ao apoio à República Federal da
Jugoslávia e igualmente a Timor-Leste. Inte-
ressa-nos também não descurar a promo-
ção da presença de funcionários portugue-
ses nas instituições comunitárias, desenvol-
vendo uma política sustentada neste domí-
nio. E confirmar a candidatura portuguesa à
sede da futura Agência Europeia de Segu-
rança Marítima, conforme já anunciado em
Nice.
No quadro das nossas relações bilate-
rais destacaria, como eventos e iniciativas
mais importantes para 2001 em relação à
Europa:
– a realização da XVII Cimeira Luso-Espa-
nhola em Lisboa, a 29 e 30 de Janeiro, onde
poderão ser dados passos importantes com
vista à conclusão de uma convenção sobre
cooperação transfronteiriça, que desejamos
ver concluída em 2001; a prossecução do
diálogo político e do aprofundamento do
relacionamento bilateral em todos os domí-
nios, explorando as vias abertas pela realiza-
ção do "Perfil de Portugal" em Madrid e pela
realização agora em Lisboa da segunda ses-
são do Fórum Luso-Espanhol.
– em relação à Santa Sé, a preparação e o
início de negociações com vista à revisão da
Concordata;
– a realização de várias visitas no quadro
da preparação da Presidência portuguesa da
OSCE em 2002, com deslocações na área dos
Bálticos, do Cáucaso e eventualmente da Ásia
Central e também à República Federal da Ju-
goslávia, e a visita a Lisboa do Ministro dos
Negócios Estrangeiros da Turquia, em 19 de
Fevereiro.
– em relação à Rússia, aproveitando o rela-
cionamento aprofundado que resultou dos
contactos estabelecidos ao longo deste ano
passado, é de sublinhar a realização prevista
da primeira reunião da Comissão Mista cria-
da pelo Acordo Económico-Industrial e Téc-
nica.
Quanto ao Magrebe e ao Médio Orien-
te, sublinho a VI Cimeira Luso-Marroquina
prevista para a próxima Primavera e que será
antecedida da minha visita oficial a Rabat já
nos próximos dias 8 e 9 de Janeiro. A Rea-
lização da IV Comissão Mista Luso-Tunisina,
a ter lugar no segundo semestre. A prosse-
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para que esse objectivo seja atingido? O
problema da imagem de Portugal no quadro
da União Europeia e do seu alargamento e
também o problema da imagem de Portugal
no contexto mais amplo da globalização.
Trata-se mais do que pugnar por um direito
à imagem, lutar por um dever de imagem.
Dever de imagem assente naturalmente em
substâncias e não numa criação artificial, e
socorrendo-nos para isso de áreas que vão
desde a economia à cultura, passando pelas
comunidades e pela língua portuguesa, pela
cooperação para o desenvolvimento e tam-
bém pela nossa intervenção em operações
de paz. Trata-se de potenciar de forma arti-
culada todos esses contributos para substan-
tivar uma imagem de Portugal no alvor do
século XXI.
Não espero respostas definitivas para es-
tas perguntas, nem suponho aliás que exis-
tam, porque estamos perante questões em si
mesmas intrinsecamente evolutivas, mas es-
tou seguro de que das nossas reflexões re-
sultará muito de positivo. Agradeço uma vez
mais a todos aqueles que contribuem com
as suas ideias para este debate.
Gostaria agora de passar em revista con-
vosco, e sem querer fazer uma análise dema-
siado exaustiva, algumas das nossas priorida-
des de política externa para o ano que se inicia.
No campo dos assuntos europeus trata-
-se fundamentalmente de manter uma voz
activa na vida da União Europeia, capitali-
zando os resultados da nossa Presidência e as
perspectivas abertas pela conclusão do Tra-
tado de Nice, cujos resultados globais são
aliás de todos conhecidos.
Não deveremos refazer aqui as histó-
rias da Presidência portuguesa e francesa da
União Europeia e da UEO, que dominaram o
ano transacto, e que são bem conhecidas, im-
portando antes assinalar os temas que se per-
filam como tendencialmente mais significa-
tivos para 2001. É-me aliás muito grato po-
der contar hoje também no nosso Seminário
com a presença do meu homólogo belga,
que para além de ter desempenhado um pa-
pel importante no Conselho Europeu de Ni-
ce, será chamado a presidir ao Conselho da
União Europeia no segundo semestre deste
ano.
Sem querer ser exaustivo, gostaria ain-
da de assinalar alguns domínios que me pa-
recem prioritários: o acompanhamento dos
trabalhos das Presidências sueca e belga em
todas as suas vertentes, a assinatura e conse-
quente processo interno de aprovação e ra-
tificação do Tratado de Nice, a participação
activa e atenta nas negociações do alarga-
mento da União, agora que estas entrarão
em alguns dos capítulos mais delicados e
que, com a futura entrada em vigor do Tra-
tado de Nice, as instituições comunitárias es-
tarão em condições de admitir novos Estados-
-membros.
Trata-se de uma temática decisiva na
qual a acção de informação e análise das nos-
sas Embaixadas nos países candidatos será
para nós importantíssima.
Realço: a entrada em funcionamento
das novas e definitivas estruturas na área da
Política Externa e de Segurança Comum, o
Comité Político e de Segurança, o Comité
Militar, o Estado-Maior e o seguimento da
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lizadas no ano passado. Manteremos rela-
ções privilegiadas com as organizações afri-
canas, com natural destaque para a SADC e a
OUA, sendo de referir que tencionamos abrir
uma Embaixada em Addis Abeba, reforçan-
do assim a nossa presença diplomática numa
região particularmente sensível e numa ci-
dade importante do ponto de vista multila-
teral.
No tocante à Ásia, quanto à China, en-
contra-se em finalização um acordo-quadro
de cooperação com a Região Administrativa
Especial de Macau e será este mês assinado
um acordo de assistência jurídica e judiciá-
ria. Em relação à Indonésia, está prevista a
visita a Portugal do Ministro dos Negócios
Estrangeiros daquele país,Alwi Shihab, em Fe-
vereiro, estando em negociação quatro acor-
dos: cultural, de cooperação, de prevenção
da dupla tributação e promoção e protecção
recíproca de investimentos, que celebrare-
mos quando a negociação estiver concluída.
Em matéria de assuntos multilaterais,
sublinharia a nossa entrada na "troika" da
OSCE, já este ano, e a preparação da Presi-
dência dessa organização para 2002. Portu-
gal foi escolhido para a Presidência da OSCE
em 2002, na última reunião ministerial desta
organização realizada no mês de Novembro
em Viena. Essa decisão consensual represen-
ta o culminar de uma candidatura lançada
em 1997 e também de algum modo o res-
peito granjeado por Portugal na OSCE, em
especial desde a realização da Cimeira de
Lisboa em 1996. Presidir à OSCE durante
um ano, e participar na "troika" do passado
dia 1 de Janeiro até 31 de Dezembro de
2003, é seguramente um desafio para a di-
plomacia portuguesa. Não que estas tarefas
nos sejam estranhas, sobretudo após a Pre-
sidência da União Europeia e da UEO, nem
que haja quaisquer dúvidas quanto ao nosso
empenho. Penso antes na multiplicidade de
actividades cometidas à OSCE, dada a sua
natureza pan-europeia e a sua especial vo-
cação para a prevenção de conflitos, e as res-
ponsabilidades que lhe estão confiadas em
regiões politicamente sensíveis e onde a nos-
sa penetração histórica é menor. É aliás esta
Presidência também a expressão dos nossos
compromissos para com uma política de di-
reitos humanos e para com uma política de
paz. Daí termos vindo a realizar um esforço
que prosseguirá até ao final do nosso man-
dato no sentido de reforçar os meios hu-
manos e técnicos ao dispor da nossa Missão
Permanente em Viena e nas competentes
Direcções-Gerais no Ministério dos Negó-
cios Estrangeiros. Neste contexto, será muito
em breve aprovado um diploma criando uma
estrutura de projecto relativamente ao acom-
panhamento com base em regras ajustadas e
flexíveis deste exercício. A Presidência da
OSCE implicará ainda, como seria de espe-
rar, um incremento das responsabilidades de
um conjunto significativo de embaixadas e
de missões permanentes, no segundo caso
dada a articulação que pretendemos conso-
lidar entre a OSCE e organizações como a
ONU, a União Europeia, a NATO e o Con-
selho da Europa. Num plano mais imediato,
a nossa entrada para a "troika" implica que
assumamos de imediato algumas tarefas. A
Presidência do Grupo de Contacto para os
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cução dos contactos com a Líbia, incluindo
a visita do seu Ministro dos Negócios Es-
trangeiros a Portugal; a participação nas reu-
niões ministeriais do Fórum do Mediterrâ-
neo, da Informal da Parceria Euro-Mediter-
rânica e a realização a 25 e 26 de Janeiro
em Lisboa de uma Ministerial do Diálogo
5+5, agora reavivada, e que visa promover
uma debate político aberto a alto nível sobre
todas as questões relativas à cooperação no
Mediterrâneo Ocidental, evitando-se natural-
mente a criação de estruturas rígidas nesse
diálogo.
Em relação à América do Norte, quanto
aos Estados Unidos, o estabelecimento de
contactos com a nova Administração norte-
-americana, sedimentando relações de modo
a não abrandar o ritmo alcançado ao longo
de 2000.Tal será importante do ponto de vis-
ta bilateral, mas também do ponto de vista
da preparação da Presidência portuguesa da
OSCE, a prossecução da aplicação do Acordo
de Cooperação e Defesa, a promoção da con-
clusão da tramitação interna dos Acordos so-
bre cobrança de alimentos e aviação civil,
assinados em Maio de 2000. Em relação ao
Canadá, para além de eventuais visitas, a tro-
ca de instrumentos de ratificação do acordo
para evitar a dupla tributação assinada em
Otava, em Junho de 1999, e a possível nego-
ciação de um acordo sobre cobrança de ali-
mentos semelhante ao já celebrado com os
Estados Unidos.
Na América Latina, no que diz respeito
ao Brasil, a realização da próxima Cimeira em
Brasília, a 13 e 14 de Março. Esperamos que
o Tratado de Amizade, Cooperação e Con-
sulta, já ratificado por Portugal, entre defini-
tivamente em vigor e que seja consequente-
mente possível accionar todos os mecanis-
mos que comporta, entre os quais a Comis-
são Permanente.
O apoio activo ao incremento das rela-
ções da União Europeia com os vários agru-
pamentos regionais latino-americanos, dan-
do assim seguimento à acção empreendida
no decurso da nossa Presidência. É assim de
assinalar a realização em Santiago do Chile,
em Março, das Ministeriais com o Grupo do
Rio, a Comunidade Andina e o Mercosul,
onde tenciono participar. A Cimeira Ibero-
-Americana de Lima, a ter lugar em Novem-
bro, representará outro ponto de interesse,
sendo de registar que se tratará da primeira
cimeira a contar com o Secretariado para a
Cooperação Ibero-Americana, estrutura que
contará com a presença portuguesa, e que já
estará nessa altura em pleno funcionamento.
Sobre África, dar continuidade à políti-
ca de maior afirmação no continente africa-
no, dando particular atenção ao seguimento
da Cimeira Euro-Africana do Cairo, bem co-
mo da preparação da Cimeira Euro-Africana
de Lisboa, em 2003 e da nova convenção ACP
assinada em Cotonou, e consolidando a nossa
presença nos espaços lusófonos, fazendo uso
dos instrumentos bilaterais e também da
CPLP. Por outro lado, prosseguiremos o es-
forço de alargamento do nosso leque habi-
tual de contactos. Nesse sentido, encontram-
-se já agendadas visitas a Portugal dos meus
homólogos do Gabão e do Benim, que se
irão assim somar às minhas deslocações ao
Senegal, Gâmbia, Mali e Guiné-Conacri, rea-
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China, à Índia, à Colômbia, à Guatemala, às
Honduras, à República Dominicana e à Ve-
nezuela. Está em curso o seu alargamento à
Guiné-Conacri e ao Gabão. Continuaremos a
aumentar os montantes investidos em coope-
ração. Para 2001 está previsto o maior mon-
tante de sempre, 76 milhões de contos em
2066, e a APAD (Agência Portuguesa para o
Apoio ao Desenvolvimento) é já um instru-
mento fundamental para a política portu-
guesa de cooperação concentrando a maior
parte dos recursos financeiros disponíveis.
Manteremos os níveis de investimento relati-
vamente a Timor-Leste, cerca de 20% do total
da cooperação portuguesa em 2001. Incre-
mentaremos a participação da cooperação
portuguesa no plano multilateral e articula-
remos as nossas posições com as dessas orga-
nizações ou organismos e as agências inter-
nacionais especializadas, bem como com or-
ganizações que desenvolvem acções de co-
operação, tais como a CPLP e os mecanismos
de cooperação agora criados das cimeiras
ibero-americanas.
Continuaremos a acompanhar neste
quadro, e a apoiar activamente, o processo de
transição de Timor-Leste para a independên-
cia, cuja proclamação deverá ocorrer no fi-
nal de 2001, em data ainda a definir.A situa-
ção política no território merecerá a nossa
particular atenção, tendo em conta o início
do período eleitoral, eleições para a Cons-
tituinte. Nessa medida visitarei aquele ter-
ritório ainda este mês, pretendendo manter
um número alargado de contactos. Conti-
nuaremos também a acompanhar a situação
dos refugiados timorenses em Timor Oci-
dental, procurando em conjunto com as au-
toridades indonésias e as Nações Unidas,
acelerar a resolução do problema. Continua-
remos a manter e a reforçar os níveis de co-
operação para o território. O programa indi-
cativo de cooperação com Timor-Leste em
2001 foi já aprovado e o montante dessa
cooperação será idêntico ao de 2000 –
quinze milhões de contos a administrar pe-
lo Comissariado para o Apoio à Transição em
Timor-Leste e pela APAD. O apoio ao sistema
educativo e à defesa e promoção da língua
portuguesa, como língua oficial de Timor-
-Leste, constituirá uma prioridade em maté-
ria de cooperação com Timor-Leste, caben-
do-lhe mais de três milhões de contos. En-
contram-se já neste momento no território
150 professores de português para apoio à
formação de professores e para apoio à di-
vulgação e ao ensino da língua portuguesa.
Pela primeira vez também, o programa inte-
grado de cooperação com Timor incluirá ver-
bas destinadas à cooperação técnico-militar,
cerca de meio milhão de contos, cabendo a
Portugal um papel liderante, juntamente com
a Austrália, na formação das futuras Forças
Armadas de Timor-Leste. Não estão aqui con-
templadas as nossas Forças Militares e de Po-
lícia que integram a UNTAET, e que serão
reforçadas este ano com mais uma compa-
nhia, ultrapassando assim os mil homens.
Em relação às comunidades portugue-
sas espalhadas pelo mundo, os nossos objec-
tivos e iniciativas para 2001 são os seguin-
tes: prossecução dos programas de apoio aos
idosos, ASICCP, Apoio Social ao Idosos mais
Carenciados, e já abrangendo 750 pessoas.
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países mediterrânicos para a cooperação, bem
como a preparação e a coordenação do Se-
minário Mediterrânico da OSCE, a realizar
no segundo semestre deste ano; a prepa-
ração do Fórum Económico 2002 em coor-
denação com a Comissão Europeia; presidir
a partir de 1 de Outubro ao Comité Finan-
ceiro Informal que deverá preparar o orça-
mento da organização para 2002. Por outro
lado, e na senda de um conjunto de visitas
preparatórias que temos vindo a realizar,
Portugal deverá ver as suas missões, ainda
como membro da “troika”, substancialmente
alargadas. Com efeito, fomos incumbidos do
dossier da Transnístria, acompanharemos o
conflito no Nagorno-Karabakh, integrando
a partir de Julho próximo o Grupo de Minsk,
co-presidido pelos EUA, a Rússia e a França.
E continuaremos a desempenhar um papel
relevante na promoção do conceito de Plata-
forma para a Segurança Cooperativa, uma
vez que a Roménia, a actual Presidência, de
nós espera o estabelecimento de pontes nes-
ta matéria em direcção à União Europeia e à
NATO.
No quadro multilateral também con-
tinuaremos a dar um grande relevo à nossa
participação no sistema das Nações Unidas.
Manteremos um perfil elevado em matéria
de operações de paz, com mais de mil ho-
mens envolvidos em operações das Nações
Unidas. Portugal é actualmente o maior con-
tribuinte da União Europeia para estas ope-
rações e o segundo da NATO, situando-se
consistentemente entre os dez primeiros con-
tribuintes com forças de paz para as Nações
Unidas. Continuaremos também a privile-
giar o vector dos direitos humanos. No qua-
dro do nosso mandato na Comissão dos Di-
reitos Humanos, Portugal será chamado a
integrar o bureau da Comissão na sua pró-
xima sessão durante os meses de Março e
Abril. Em matéria de candidaturas, mante-
remos o rumo dos últimos dois anos, de-
pois de em 2000 termos apresentado uma
nova candidatura ao Conselho de Seguran-
ça para o biénio 2011/2012. Apresentámos
uma candidatura nacional à Comissão de Di-
reito Internacional e está em consideração a
recandidatura de um juiz português ao Tri-
bunal Criminal Internacional para a ex-Ju-
goslávia. Temo-nos igualmente empenhado
de forma activa na Comunidade para as De-
mocracias e fomos também escolhidos para
o seu Comité Permanente.
No quadro dos nossos objectivos e ins-
trumentos de política externa, a cooperação
portuguesa para o desenvolvimento assume
um lugar de grande relevo. É um eixo es-
tratégico da política externa portuguesa. Im-
porta consolidar as reformas do sistema de
cooperação portuguesa iniciadas em 1999,
com o objectivo de conferir a este sector
mais rigor e ainda mais eficácia. Importa di-
versificar as nossas relações de cooperação.
Embora continuando a concentrá-las natu-
ralmente nos países africanos de língua ofi-
cial portuguesa, deveremos continuar a alar-
gar a outros países da África Subsariana, ao
Magrebe, a algumas regiões da Ásia e à Amé-
rica Latina.A cooperação portuguesa alargou-
-se já, com experiências interessantes e em
curso, ao Senegal, ao Benim, ao Congo, à
Namíbia, ao Zimbabwe, à África do Sul, à
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Seminário também irá abordar: os nossos
objectivos e iniciativas para 2001 são dar
continuidade a uma acção abrangente e am-
biciosa também com incidência no plano
patrimonial que tem vindo a ser levada a
cabo pelo Instituto Camões. Bastará recor-
dar a abertura de novos leitorados, entre os
quais Díli e Jacarta, o programa cultural da
Presidência portuguesa da União Europeia,
que abrangeu sessenta países em cinco con-
tinentes, as iniciativas “azulejo” em Portugal,
Eça de Queiroz, que prosseguirá em 2001,
pontes lusófonas, a aquisição da posição
maioritária no capital social do IPOR, Ins-
tituto Português do Oriente, ou a inaugu-
ração da nova sede do Instituto na rua Ro-
drigues Sampaio. Mais concretamente, visa-
remos a inauguração de novos Centros de
Língua Portuguesa, num vasto conjunto, al-
gumas dezenas de cidades. A abertura de no-
vos leitorados na cidade do México, Mon-
tevideu, Moscovo, Tóquio e Tunis. O desen-
volvimento de programas especiais de apoio
ao ensino de português enquanto língua es-
trangeira e enquanto língua segunda, a par-
ticipação no “Ano Europeu das Línguas 2001”
através da organização em Lisboa, em Maio,
do Simpósio “Português: uma língua estra-
tégica para o terceiro milénio”; o reforço da
presença do Português como língua de co-
municação internacional, quer por força da
acção da CPLP, quer pelo apoio à formação
de tradutores e intérpretes e à criação de cen-
tros de língua portuguesa e de culturas lusó-
fonas nos Centros de Tradução da OUA, em
Addis Abeba, e da SADC, em Bulawayo. A or-
ganização da participação no XV Salão Inter-
nacional do Livro e na Imprensa de Genebra
em Abril/Maio de 2001 de que Portugal se-
rá o convidado de honra. A organização das
IV Pontes Lusófonas em Cabo Verde, a que se
seguirão nos próximos anos Angola e S. To-
mé e Príncipe. A continuação do trabalho
conjunto com a RDP-Internacional e a RDP-
-África no tocante ao ensino e à difusão do
português; a aposta também aqui nas novas
tecnologias, criando o Centro Camões Vir-
tual e aproveitando as potencialidades da In-
ternet. Este Centro incluirá páginas que irão
da Cibergramática à História da Língua e da
Cultura portuguesas, passando pela divulga-
ção de obras de vários autores. Em 2001
será reavaliada a lei orgânica do Instituto Ca-
mões, estando prevista a aprovação do esta-
tuto do pessoal dos centros culturais e a cria-
ção do respectivo quadro, bem como a apro-
vação do estatuto do formador e leitor. Será
também inaugurada a segunda fase da sede
do Instituto Camões – Palacete Seixas na
Avenida da Liberdade – e o Centro Cultural
de Díli. Gostaria de sublinhar que neste
momento em África e na Ásia, em acções de
cooperação (e evidenciaria os casos de Ca-
bo Verde, S. Tomé e Príncipe e Timor-Leste),
se encontram cerca de 250 professores de
língua portuguesa que não só ministram au-
las nos respectivos sistemas escolares, como
também estão afectos à formação de profes-
sores de língua portuguesa nesses países, va-
lorizando assim as suas opções em matéria
educativa.
Participaremos activamente nas inicia-
tivas previstas no quadro da CPLP, sob a Pre-
sidência de Moçambique, desde a reunião
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Pela primeira vez foi lançado um programa
de solidariedade social para com os idosos
mais carenciados nas comunidades portu-
guesas no exterior. A prossecução do pro-
grama “Portugal no Coração”, que promove
a vinda a Portugal de idosos emigrantes, e
do “Portugal Sempre”, direccionado para os
idosos residentes na Europa. Neste contexto,
insere-se também a aplicação do Protocolo
entretanto celebrado com a União das Mise-
ricórdias Portuguesas. Daremos atenção par-
ticular aos mais jovens, dando seguimento
ao encontro anual de jovens luso-descen-
dentes, “A mesma juventude noutras latitu-
des”, em colaboração com a Secretaria de Es-
tado da Juventude, realizando anualmente o
festival jovem das comunidades portugue-
sas, alargando às comunidades portuguesas
a aplicação do cartão jovem, e a prazo, crian-
do um conselho consultivo de luso-descen-
dentes. Estudaremos a criação de uma estru-
tura de acolhimento e reintegração de cida-
dãos portugueses objecto de deportação à es-
cala nacional e com incidência especial nas
regiões autónomas. Em paralelo faremos um
acompanhamento privilegiado da questão
das deportações a partir dos Estados Unidos
e do Canadá, na senda dos dois acordos assi-
nados com estes países.
Realizaremos a aplicação e o aprofun-
damento dos actuais mecanismos de protec-
ção consular, nos quais se inclui o Gabinete
de Emergência Consular e de apoio humani-
tário aos portugueses em situação de risco e
em regiões de conflito, e temos estado a pre-
parar activamente a realização das eleições
presidenciais, cuja primeira volta ocorrerá a
14 de Janeiro, as primeiras em que partici-
pam as comunidades portuguesas residentes
no estrangeiro, na sequência da última revi-
são constitucional, contribuindo assim para
uma mais efectiva ligação das comunidades
portuguesas à vida política nacional e para a
realização de uma aspiração histórica de to-
dos os emigrantes portugueses. Procedere-
mos metodicamente à modernização con-
sular, após a nova imagem consular ter sido
aplicada a treze consulados e secções con-
sulares entre Novembro de 1999 e Dezem-
bro de 2000. O plano em curso contemplará
outras tantas treze intervenções em Boston,
Cidade da Praia, Bordéus, Dacar, Roma, Lyon,
Bissau, Estrasburgo, Jacarta, Estugarda, Frank-
furt e S. Tomé e Príncipe, em 2001. Nesta
mesma linha será dada continuidade ao es-
forço de formação de funcionários e de mo-
dernização da Direcção-Geral das Comuni-
dades Portuguesas, e no exterior, desburocra-
tização e simplificação dos procedimentos
consulares, alargando-se também o sistema
electrónico de tratamento de vistos a todos
os postos consulares. Entrará em vigor o no-
vo modelo de passaporte, primeiro numa ver-
são temporária, depois numa versão defini-
tiva, cumprindo-se assim um compromisso
anteriormente assumido. Queria a este pro-
pósito e neste momento agradecer ao ante-
rior Secretário de Estado toda a acção que
desenvolveu neste domínio, com notável di-
namismo, e desejar ao seu sucessor os me-
lhores êxitos nesta área.
Quanto à cultura e à língua portugue-
sa, que constituem pontos muito impor-
tantes da nossa acção externa, e que este
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ção inicial, de sublinhar os seguintes pontos:
recordo em 2000, ano transacto, a abertura
do Consulado-Geral em Andorra, da Em-
baixada em Jacarta e da Missão em Díli. Para
2001, está prevista a abertura da Embaixada
em Addis Abeba, de um Escritório Consular
em Chisinau, na Moldávia, e de uma Secção
Consular em Kiev, na Ucrânia. Estas duas úl-
timas decisões prendem-se naturalmente a
dois objectivos: o reforço consular numa área
particularmente sensível e o incremento da
nossa influência em zonas geográficas im-
portantes para o desempenho da nossa futu-
ra Presidência da OSCE. Prosseguirão os es-
forços significativos que têm vindo a ser
realizados com vista à manutenção, recupe-
ração e equipamento condigno dos edifícios
do Estado português no estrangeiro – Lon-
dres, Jacarta, Madrid, Rio de Janeiro, Vati-
cano – e dos projectos de construção em
curso – Berlim, Brasília, Jacarta, Consulado-
-Geral em Goa, e em Lisboa a reconversão
do Convento do Sacramento.
Em matéria de recursos humanos su-
blinharia, em primeiro lugar, o reajusta-
mento do quadro da carreira diplomática,
na sequência do trabalho já desenvolvido,
corrigindo desequilíbrios e evitando estran-
gulamentos, permitindo que o quadro di-
plomático, sem que seja necessário recorrer
a meios humanos adicionais, se encontre
mais apto a fazer face às inúmeras solicita-
ções de que é alvo e faculte uma mais regu-
lar e normal progressão na carreira. Em se-
gundo lugar, a plena aplicação do estatuto
do pessoal dos serviços externos, com a
integração dos funcionários dos quadros
únicos de vinculação e de contratação, com
efeitos a partir de 1 de Janeiro. Neste capítu-
lo sublinho a realização igualmente impor-
tante de concursos, nos termos daquele esta-
tuto, para colmatar as necessidades mais pre-
mentes dos serviços. Em terceiro lugar, a al-
teração do quadro de pessoal informático do
Ministério e, em quarto, a correcção pro-
gressiva e coerente das distorções existentes
nos abonos de representação e habitação no
quadro externo, frequentemente desajusta-
dos das condições e do custo de vida locais,
através da aprovação de um novo despacho
de abonos.
Na área da administração financeira,
assegurar-se-á uma informação orçamental
atempada e de qualidade através de relató-
rios periódicos de avaliação, também no to-
cante às grandes obras em curso, e de uma
eficaz articulação intra e interministerial, e
sublinho aqui também os desafios que a in-
formatização da administração pública nos
lança e a participação nesse projecto. Igual-
mente participaremos activamente no grupo
de trabalho interministerial para a introdu-
ção do Euro e acompanharemos as vertentes
financeira e orçamental da participação de
Portugal na "troika" da OSCE, e em 2002 na
Presidência daquela organização, com todo
o rigor, o mesmo rigor que pusemos e com
o qual finalizamos a nossa Presidência da
União Europeia no ano 2000.
O Gabinete de Assuntos Económicos
passará a estar preparado para divulgar às
embaixadas e postos consulares informação
atempada sobre a evolução da conjuntura
económica nacional na sua articulação com
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dos Ministros de Negócios Estrangeiros, que
se realizará em Julho em 2001, ao colóquio
sobre visão judiciária lusófona, que terá lu-
gar no Supremo Tribunal de Justiça em Lis-
boa, no mês de Janeiro, passando pelo fó-
rum empresarial, o seminário sobre o Ins-
tituto Internacional de Língua Portuguesa, o
III Fórum de presidentes dos parlamentos
dos países de língua portuguesa, a IV Con-
ferência de Ministros da Educação, o IV En-
contro dos Ministros da Justiça, a II Reunião
de Ministros da Segurança e da Adminis-
tração Interna, a IV Reunião dos Presidentes
dos Supremos Tribunais de Justiça, o semi-
nário sobre fortalecimentos de instituições
nacionais ligadas aos direitos humanos, o II
Encontro “Saúde e Educação e Educação para
a Saúde” e a II Reunião dos pontos focais de
cooperação da CPLP. A CPLP tem no quadro
das nossas prioridades um valor que muito
gostaria de vincar.
Em relação à formação do pessoal diplo-
mático e às acções a promover pelo Instituto
Diplomático, salientaria a prioridade que re-
sidirá no processo de arranque do projecto
das futuras instalações no Convento do Sa-
cramento, por forma a poder aproveitar ple-
namente o nosso espólio histórico-diplomá-
tico, assegurar o debate da temática das rela-
ções internacionais e do relacionamento com
congéneres de outros países. Realizar-se-á
um curso de formação para diplomatas ti-
morenses, outro para diplomatas angolanos
– este no quadro dos cursos de formação
diplomática e consular para os países afri-
canos de língua portuguesa. Promoveremos
pela primeira vez cursos para adidos comer-
ciais e militares, cursos de administração fi-
nanceira para chefes de missão e formação
para diplomatas e funcionários do quadro
técnico na área de línguas estrangeiras e
em colaboração com o Instituto Nacional de
Administração. Apoiaremos a actividade da
Associação dos Amigos do Arquivo Histó-
rico-Diplomático e da Associação Portugue-
sa de História das Relações Internacionais. E
prosseguiremos o lançamento da colecção
Diplomatas Portugueses, de que foi publicado no
ano transacto um volume dedicado ao Em-
baixador Teixeira Guerra. Prosseguiremos a
exposição Vidas Poupadas – a acção de três Diplo-
matas Portugueses na II Guerra Mundial. Essa ex-
posição continuará nos Estados Unidos, es-
tando prevista sua passagem por Israel. Ana-
lisaremos também a publicação das obras
completas do Dr. Carlos Teixeira da Mota so-
bre as relações luso-britânicas antes e du-
rante a II Guerra Mundial, nomeadamente
quanto a Timor, à questão colonial e à Alian-
ça luso-britânica, e lançaremos a revista Ne-
gócios Estrangeiros.
O Fundo para as Relações Internacio-
nais apoiará a Fundação Aristides da Sousa
Mendes na aquisição da casa de família em
Cabanas de Viriato para que aí se possa insta-
lar um museu e um centro que permita a
acção cultural adequada em relação à divul-
gação da obra e da acção humanitária da-
quele insigne diplomata português durante
a II Guerra Mundial.
Em matéria de dispositivo do Minis-
tério dos Negócios Estrangeiros, de recursos
humanos e de administração financeira, gos-
tava, e esta é a fase conclusiva desta interven-
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Mon cher Collègue,
Mesdames et Messieurs les Ambassadeurs,
Mesdames et Messieurs,
JE VOUDRAIS tout d’abord vous dire que je
ressens comme un privilège tout particulier
de pouvoir m’adresser à vous à l’occasion de
vous Journées diplomatiques, au seuil de
cette année nouvelle.Vous avez souhaité abor-
der, cet après-midi, la prochaine Présidence
belge de l’Union européenne et c’est pour
moi un plaisir d’autant plus grand que le
Portugal par la voix d’Antonio Guterres, du
Ministre Jaime Gama et du secrétaire d’État
Francisco Seixas da Costa, et la Belgique ont
défendu de concert, avec une même ferveur,
une conviction européenne forte. António
Guterres et Guy Verhofstadt ont démontré
que de petits pays pouvaient mener de
grandes politiques. Je voulais témoigner de
notre admiration à l’égard de vos dirigeants
et me réjouir de la grande proximité de nos
deux pays vis à vis du futur de l’Union.
Nous avions déjà été impressionnés par la
qualité exemplaire de votre Présidence. Nous
en avons eu une confirmation éclairante à
Nice.
Une Présidence européenne, c’est, je
crois, tout à la fois:
– un défi: se hisser à la hauteur des ambi-
tions internationales de l’Europe;
– une opportunité: agir dans le sens de la
construction communautaire et faire pro-
gresser cette ambition qu’est l’achèvement
de l’Union;
– une charge: gérer un ensemble instituti-
onnel lourd et complexe, un processus ja-
mais achevé et, qui plus est à la veille d’un
élargissement tellement exceptionnel qu’il
est susceptible de forcer des questions exis-
tentielles.
La prochaine Présidence belge de l’ Union
sera inspirée et guidée par la vision am-
bitieuse que nous avons de la construction
européenne. Redonner à la construction euro-
péenne un pouvoir d’évocation capable d’en-
traîner les esprits et les cœurs pour arracher
ce qui aura été le plus beau et le plus noble
concept politique et éthique du XXème siè-
cle des griffes de la banalisation technocra-
tique, voire d’un certain scepticisme démo-
bilisateurs qui ne rend pas justice au chemin
parcouru. Le profil de cette Présidence dé-
pendra aussi nécessairement de la conjonc-
ture internationale. Enfin, il est clair que,
comme pour toute Présidence, nous nous
inscrirons dans la continuité des actions des
Présidences antérieures et de la Commission.
A cet égard, nous aurons en particulier
à poursuivre la mise en œuvre des objectifs
fixés par les Conseils européens de Lisbonne
et de Feira, pour la décennie à venir en
Seminário Diplomático 2001:
“A imagem de Portugal”
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a economia da União Europeia e com a
economia internacional. E o Departamento
dos Assuntos Jurídicos será reforçado para
melhor fazer face às suas tarefas em matéria
de pessoal, contencioso e elaboração de tra-
tados.
Queria sublinhar que as responsabili-
dades do Governo em matéria de direcção e
condução da política externa só são possí-
veis através de uma acção continuada, está-
vel, isenta e independente do Ministério dos
Negócios Estrangeiros e do profissionalismo
de todos aqueles que nele trabalham. A nos-
sa colaboração com outras instituições é de-
sejável e agradecemos que assim tenha acon-
tecido este ano, sejam elas as Universidades,
as Forças Armadas, organizações não-gover-
namentais, organizações patronais ou sindi-
cais.
No quadro institucional, a nossa coope-
ração com a Assembleia da República, e com
a oposição parlamentar, é a todos os títulos
satisfatória. E sublinho que o Ministério dos
Negócios Estrangeiros tem na Assembleia da
República um quadro de interlocução muito
vasto. Quatro comissões: a Comissão de Ne-
gócios Estrangeiros, Comunidades Portu-
guesas e Cooperação, a Comissão de Assun-
tos Europeus, a Comissão Especial para o
Acompanhamento em Timor-Leste e em de-
terminados problemas a própria Comissão
de Defesa Nacional, comissões com as quais
temos realizado e continuaremos a reali-
zar um trabalho de cooperação aprofunda-
da. Igualmente contamos com a colaboração
institucional do Senhor Presidente da Repú-
blica, enquanto detentor de funções consti-
tucionais de grande relevância quanto à re-
presentação externa do Estado.
É no quadro dessa cooperação e cola-
boração com todos, na área do Estado e na
área da sociedade, que conseguimos realizar
o nosso trabalho. Queria por isso agradecer-
-vos a acção desempenhada no ano transac-
to e desejar-vos em nome do Governo, a to-
dos os diplomatas portugueses e funcioná-
rios do Ministério dos Negócios Estrangei-
ros e também aos diplomatas estrangeiros
acreditados em Lisboa, neste início de ano,
um Bom 2001, um Bom Ano, um Bom Sé-
culo e um Bom Milénio.NE
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ner des perspectives, sur place, aux popula-
tions des pays les plus pauvres?
– La puissance publique ne doit-elle pas,
sans nier ni réduire le rôle des ONG et de la
société civile, se réapproprier sa responsa-
bilité politique dans le secteurs humanitaire
et dans le domaine des droits de l’homme?
Les pouvoirs publics n’ont-ils pas, par faci-
lité, cédé leurs prérogatives ou leurs devoirs
dans ces domaines?
A Helsinki, nous avions pris l’engage-
ment de conclure la CIG au plus tard en
décembre, de manière à ce que l’Union puis-
se accueillir, à partir de fin 2002, les nou-
veaux États-membres qui seront prêts. Après
Nice, je pense pouvoir dire, que nous som-
mes prêts même si c’est de justesse.
Est-ce à dire que l’Union, après Nice,
est en état de fonctionner avec jusqu’à 27
membres? Pour tous ceux qui partagent une
vision européenne forte, le résultat de Nice
ne peut être qu’insuffisant et, dois-je vous le
dire, je suis de ceux-là.
Pour autant, je crois que nous aurions
tort de sous-estimer l’aboutissement du Som-
met de Nice. Même si elles sont complexes,
des solutions ont été apportées concernant
la composition de la Commission et la re-
pondération.
La Belgique, vous le savez, s’est cons-
tamment engagée pour étendre l’agenda de
la CIG. Sur les majorités qualifiées, le résul-
tat est mitigé: dans le fiscal et le social, ce fut
rapidement le blocage, ailleurs il y a eu des
progrès mais aux pris de formules souvent
très complexes. Concernant l’assouplisse-
ment des coopérations renforcées et l’intro-
duction d’un mécanisme préventif d’alerte
démocratique à l’article 7, nous avons, au
contraire, lieu d’être satisfaits. A ce propos,
je suis heureux de rappeler que l’attitude in-
transigeante et de principe prise par le Por-
tugal et la Belgique aura été salutaire. Dans
quelle situation de banalisation de l’extrême
droite serions nous aujourd’hui si nous n’ a-
vions pas agi ainsi. L’ancrage de la politique
européenne de sécurité et de défense est une
autre avancée. Je crois aussi que la désigna-
tion à la majorité qualifiée du Président de
la Commission et le renforcement de ses pou-
voirs sont une autre innovation significative.
Notre Collègue Joschka Fischer le rap-
pelait très justement: «l’Europe est un pro-
cessus évolutif». La Déclaration sur l’avenir
de l’Union adoptée à Nice trace une nou-
velle perspective et sa concrétisation sera une
priorité de notre Présidence.
Les Présidences suédoise et belge, ont
été chargées d’organiser une large débat as-
sociant toutes les parties et, notamment, les
représentants des Parlements nationaux ainsi
que de l’opinion publique et de la société
civile. Ce débat sera mené en coopération
avec la Commission et Parlement européen,
et les pays candidats y seront associés.
Les sujets institutionnels mentionnés
dans la Déclaration sont ceux que l’on at-
tendait la délimitation plus précise des com-
pétences entre l’Union et les États-membres,
le statut de la Charte et la simplification des
traités. Je trouve, pour ma part, également à
propos, l’ajout du rôle des Parlements na-
tionaux dans l’architecture européenne. On
pourrait imaginer un système dans lequel
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matière d’emploi, de réforme économique
et de cohésion sociale pour répondre aux
défis de la société de l’information.
Notre Présidence aura une forte dimension
sociale. L’accent sera tout spécialement mis
sur la qualité de l’emploi, l’égalité des chan-
ces, la modernisation de la protection so-
ciale et la lutte contre l’exclusion sociale et
la pauvreté. Il sera essentiel à cet égard de
concevoir des outils d’analyse fiables qui de-
vront à la fois évaluer le tableau de progres-
sion des politiques et inspirer les corrections
adéquates.
La Belgique exercera aussi la Présidence
de l’Eurozone durant toute l’année 2001.
Nous continuerons les efforts pour amélio-
rer le fonctionnement et la visibilité de l’ Eu-
rogroupe, ainsi que renforcer la coordina-
tions des politiques économiques et le dia-
logue avec la Banque Centrale Européenne.
Notre objectif en perspective, est de com-
pléter l’union monétaire par la création pro-
gressive d’un socle économique et social
commun. Nous devrons en tout cas trouver
une réponse efficace à la faiblesse et au ris-
que que traduit en cette matière un discours
à plusieurs voix.
Le Conseil européen de Tampere, qui a
confirmé l’objectif d’un espace de liberté,
de sécurité et de justice dans l’Union euro-
péenne, a prévu, comme vous le savez, qu’un
bilan des progrès accomplis aura lieu durant
la Présidence belge. C’est là un projet impor-
tant qui corresponde aux attentes légitime
des citoyens. Ce sera l’un des axes de la Pré-
sidence belge.
Je voudrais être plus spécifique concer-
nant l’immigration et l’asile politique qui
sont deux facettes d’une même réalité hu-
manitaire.Au niveau européen, nous ne som-
mes pas encore parvenus à y apporter une
réponse commune. Chaque État se réserve
toujours le droit souverain de traiter ces su-
jets douloureux à la carte, comme si l’unité
de mesure de la détresse humaine variait en
fonction de chaque identité nationale. Une
politique commune et proactive pour l’im-
migration économique, de même que des
réponses cohérentes fondées sur des droits
intangibles en matière d’asile politique per-
mettraient d’assumer, sinon de maîtriser, ces
phénomènes qui sont de notre responsabi-
lité collective. Le chacun pour soi devient
vite le chacun chez soi et place l’Europe
humaniste en contradiction avec elle-même.
Des questions fondamentales doivent être
posées et des réponses claires, peut-être au-
dacieuses – et pourquoi pas généreuses –
doivent y être apportées. Par exemple:
– Quelle est la capacité annuelle d’accueil
d’immigrés économiques ou de «réfugiés»
économiques que nos pays peuvent assu-
mer?
– Cette ouverture est-elle ou n’est-elle pas
une réponse aux déséquilibres démographi-
ques graves que nous connaissons?
– Partageons-nous les mêmes critères d’é-
valuation éthique pour traduire nos engage-
ments humanistes?
– Quels moyens sommes-nous prêts à con-
sacrer de manière concertée et coordonnée
dans des projets de coopération, pour don-
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traire, la recherche systématique du consen-
sus n’aboutit normalement qu’au plus petit
dénominateur commun, sans jamais con-
fronter le citoyen à un vrai choix.
Ce débat, la Présidence belge n’aura pas
à le conclure. Nous aurons la responsabilité-
charnière d’assurer son lancement et son
encadrement. Notre objectif est qu’au Con-
seil européen de Bruxelles Laeken, nous ar-
rivions à un accord fixant les paramètres en
termes d’agenda, de méthode et de calen-
drier, de la phase préparatoire du processus
qui devrait se dérouler en 2002 et 2003,
pour aboutir à la nouvelle CIG prévue en
2004.
Les négociations d’adhésion consti-
tueront une autre priorité tout à fait essen-
tielle de la Présidence belge. Conformément
au rapport stratégique de la Commission,
nous aurons à nous atteler à une série de
questions dont plusieurs présentent une sen-
sibilité particulière. Même si c’est la Prési-
dence espagnole qui nous suit, qui aura à
conclure, la Présidence belge aura aussi une
responsabilité déterminante dans le proces-
sus.
Cette responsabilité nous l’assumerons
résolument. Pour le Gouvernement belge,
en effet, les négociations d’adhésion doivent
être menées le plus rapidement possible. Cha-
que État candidat à l’adhésion doit être traité
selon ses mérites propres et, sous réserve de
périodes de transition pouvant être néces-
saires, l’application intégrale de l’acquis com-
munautaire doit être la norme.
L’élargissement est le grand chantier
européen de ces prochaines années et l’en-
jeu en est le rétablissement de l’unité de
l’Europe.
Au-delà du coût de l’élargissement –
mais le non-élargissement aurait aussi un
coût, sans doute plus élevé encore – l’élar-
gissement devra aussi se faire dans les têtes.
Il faut que l’Ouest et l’Est du continent se
découvrent, se redécouvrent. C’est la chance
de nos générations de pouvoir prendre ou
reprendre toute la mesure de notre héritage
européen et de devenir pleinement euro-
péens. Longtemps, faire l’Europe a été pour
beaucoup, en approfondir la construction.
Aujourd’hui, faire l’Europe, c’est aussi
l’élargir. Même si les prochains mois seront
dominés par des négociations très tech-
niques, il nous faut garder à l’esprit que la
vraie conclusion de ce processus entraînera
une nouvelle façon d’être et de penser Eu-
ropéen.
C’est dans cette perspective qu’il faut
penser aux relations extérieures de l’Union.
Celles ci déterminent le rôle d’acteur géopo-
litique majeur que l’UE est appelée à jouer
dans les grands équilibres mondiaux. Je ne
souhaite pas ici passer en revue les grands
dossiers diplomatiques du moment. Nous
allons avoir l’occasion d’en débattre si vous
le souhaitez. Je voudrais seulement mettre
en évidence quatre points qui me paraissent
prioritaires:
– Tout d’abord, la Présidence poursuivra les
efforts entrepris en vue d’améliorer l’effica-
cité et la cohérence de l’action extérieure de
l’Union.
Il s’agit de développer, au jour le jour,
entre les États-membres et les Institutions de
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les parlementaires européens seraient d’of-
fice membres des Parlements nationaux ou
tout autre mécanisme qui établirait un lien
organique entre les Parlements nationaux et
le Parlement Européen. Je ne suis pas opposé
à l’idée d’une deuxième Chambre ou Sénat
européen. Il pourrait s’agir d’une émanation
des Parlements nationaux. Ce rôle pourrait
également revenir au Conseil des Ministres,
voire à l’Assemblée parlementaire du Con-
seil de l’Europe. Quelle que soit la formule
retenue, encore faudrait il qu’elle n’abou-
tisse pas à alourdir encore davantage le fonc-
tionnement des institutions.
Ces questions institutionnelles seront
forcément au centre de nos travaux, mais la
Présidence belge souhaite aussi, à cette oc-
casion, initier le débat le plus large possible,
à la fois sur les finalités de l’Europe et ses
valeurs, ainsi que sur ses politiques et ins-
truments tels que son modèle social, son
rôle et sa représentation extérieurs, sa dé-
fense ou encore, sujet qui a beaucoup moins
progressé ces dernières années, ses ressour-
ces propres comme facteur d’intégration.
La difficulté réside dans le fait que les
thèmes potentiels de l’après-Nice sont de na-
ture très diverse, très inégale aussi, certains
ayant déjà fait l’objet d’un examen appro-
fondi, d’autres non. Ainsi, sur la simplifica-
tion des traités, nous disposons déjà avec les
études de l’Institut de Florence, d’une solide
base. Au contraire, beaucoup reste encore à
faire concernant la Kompetenzabgrenzung.
Mon sentiment est qu’un tel débat vient
à son heure. L’Europe est née, il y a 50 ans,
dans un contexte géopolitique et socio-éco-
nomique radicalement différent du nôtre.
Les élargissements successifs de l’Union mo-
difient aussi nécessairement la portée du pro-
jet de ses fondateurs. Comme l’écrivait il y a
quelques semaines dans l’Agence Europe,
Ferdinando Riccardi: «Le Sommet de Nice
ne pouvait qu’aboutir à une réforme assez
médiocre, mais suffisante pour poursuivre
et même relancer les négociations, et pour
permettre un fonctionnement correct de
l’Union européenne». Le Traité de Nice
n’est donc qu’une première réponse utile
mais très limitée au défi que représente l’ex-
tension géographique de l’Union. Enfin et
surtout, l’Europe est aujourd’hui devenue
l’affaire des peuples dans la vie desquels elle
est entrée de plain-pied, d’où la nécessité
que la légitimité démocratique de l’Union
européenne ne soit pas moindre que celle
des États.
Notre objectif aujourd’hui doit être de
refonder le processus d’intégration euro-
péenne sur des bases démocratiques, c’est-
à-dire, sur des bases redéfinies avec la parti-
cipation du citoyen. Il ne s’agira, ni plus ni
moins, que de transformer l’Union euro-
péenne en une véritable Union politique,
d’engager un processus constitutionnel, que
ce mot soit employé ou non, bref d’ancrer la
démocratie et ses valeurs dans la construc-
tion européenne. A ce propos, je soumets à
votre réflexion la considération suivante. Il
nous faut oser davantage, au niveau euro-
péen, le débat démocratique. La majorité
qualifiée et son extension y contribuent. Le
propre de la démocratie, c’est en effet que le
citoyen doit pouvoir prendre parti. Au con-
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NegóciosEstrangeiros . N.º1 Março de 2001
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l’Union, y compris entre celles-ci, un vrai
partenariat qui puisse définir des positions
aussi convergentes que possible.
– Concernant la politique européenne de sé-
curité et de défense, nous nous attellerons à
concrétiser le Headline Goal, pour assurer l’ ópe-
rationnalité des forces européennes, ce qui
impliquera de finaliser les arrangements avec
l’OTAN et les pays tiers, de mettre sur pied
les exercices indispensables et de combler
les lacunes subsistantes. La dimension civile
devra être complétée de manière à offrir à
l’Union l’éventail complet des moyens de
crises. Notre intention est de faire progres-
ser les travaux selon les priorités fixées à
Feira.
– L’ambition de la Présidence belge est aussi
de contribuer à forger avec l’Afrique un par-
tenariat solide. Nous assurerons le suivi du
Sommet UE-Afrique du Caire et concernant
l’Afrique centrale, notre intention est de
soumettre à nos partenaires un «plan d’ac-
tion pour la paix et le développement» dans
la région.
– La région euro-méditerranéenne sera aus-
si au centre de nos préoccupations puisque
nous aurons aussi la responsabilité d’organi-
ser une ministérielle euro-méditerranéenne.
Dans ce cadre, nous mettrons plus particu-
lièrement l’accent sur le troisième volet so-
cial, culturel et humain du Processus de Bar-
celone: le rôle de la femme dans le déve-
loppement économique et la question des
rapts parentaux sont deux sujets que nous
souhaitons plus particulièrement aborder avec
nos partenaires.
Les relations entre la Belgique et le Por-
tugal se sont indiscutablement resserrées ces
derniers temps et la période de la Présidence
portugaise a véritablement eu un effet d’ac-
célération. Nous avons trouvé à Lisbonne,
une écoute, une attention, une connaissance
intime de l’Union aussi, qui ont fait la diffé-
rence, particulièrement à des moments diffi-
ciles de notre vie à 15. Notre concertation
bilatérale s’est approfondie et nous avons,
somme toute, découvert ou redécouvert qu’à
bien des égards, nos points de vue sont pro-
ches. Ma conviction est que sur cette base,
nous pouvons davantage encore agir en com-
mun et je puis vous assurer que telle est bien
l’intention de la future Présidence belge.NE
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