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nelson rodrigues O “jovem” monstro

Nelson Rodrigues [=] O jovem monstro

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Crônica de 1968

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nelson rodrigues O jovem monstro [1] OvelhoDumasdosTrsMosqueteiros escreveu uns duzentos livros e todos de seis-centas,oitocentaseatmilpginas(foiau-tor,inclusive,defolhetinsqueoutrosescre-viameeleassinava,comumimpudorju-cundoe mercenrio1).Pode-sedizerque,ao vir ao mundo, trazia no ventre uma bibliote-ca inimaginvel. E, no entanto, vejam vocs: esse romancista numerosssimo tinha um elencomnimo:doistiposnicos:de umladoogentil-homem;e dooutroladoo resto. A rigor, o folhetinista s levava em conta ogentil-homem.Orestoeraamassasem cara,semnome,semalma,vagamenteabje-

1 Trata-se, obviamente, de uma ironia, j que o pr-prio Nelson Rodrigues fazia nessa mesma poca algo bastante semelhante, assinando tradues alhei-asdediversasobras,especialmentedoautornorte-americano Harold Robbins. (N. G.) [2] ta. J o gentil-homem merecia do velho Du-mas todo o seu amor autoral. E,pginaapgina,portodaumaobra imensa, h o frmito, o resplendor do gentil-homem. Era este um prodigioso ser, de uma graaaumstempoaladaeviril,deuma voluptuosidade quase feminina, sem nenhum medonocoraoecomumaristocrtico desprezo pela morte. DiralgumqueoCondedeMonte Cristo,eoutros,eoutros,nadatinhamde gentil-homem.Deacordo,nemimporta.A verdade que o Dumas pai teve, at morrer, aobsessodeumtiposeletssimo,quaseir-realdetomelfluo.Bem.Fizadivagao parachegaraobrasileirodeminhainfncia. Por mais absurdo que parea, o antigo brasi-leiro teve um toque, mnimo talvez, mas per-ceptvel, de gentil-homem. [3] Faltavamospunhos,asrendas,asplu-mas,osaltoalto,aperucaeagesticulao to plstica e enftica. Sim, tudo certo. Mas tnhamoscertasmaneiras,certosrequintes desociabilidadeeumaatitudereverencial quevinhamdeumpassadoilustre.Eaqui abroumtpicoespecialparaocumprimen-to. Hoje,obrasileiroumpovoquecum-primentapouco.Outrora,no.OBrasilde 1919cumprimentavacomonenhumoutro pas.Osujeitotiravaochapuparatodo mundo.Igreja,enterro,casamento,tudoera saudado.Emnossosdias,obrasileiroum sercrispadodesolido.Cadaumlevano peitoumasensaodeorfandade.Cabeen-to a pergunta: e por qu? Bem. Os motivos, os fatores, so inume-rveis.Primeiro:jnotemosoinstru-[4] mento da reverncia, que o chapu. Come-a a a morte de nossa cordialidade. Quando passamos pelo nosso semelhante fazemos, no mximo,aconcessodeumoba,deum ol.Evamosevenhamos:obaum vago,direimesmo,umtorpesom.Ah,so-mossolitriosporquecumprimentamosme-nos. Masodesaparecimentodochapuno explicatudo.Antigamenteobrasileiroera maisclido,maismido(haviatambmo fraque. O fraque influa na nossa correo, e repito:estavaadoispassosdosublime). E h tambm certo esnobismo de linguagem que passou, sumiu. Aspessoasse saudavam assim:Ol, ilustre ou Como vai, poeta? ou ainda Es-cutaaqui,batuta.Certaocasiovi meu pai chamandoummeninodavizinhana: [5] Vemc,poeta.Nuncameesquecideum francs, de Marselha, que veio parar em Co-pacabana.(Jestvamos,ento,naZona Sul.) E aqui no admirou o Po de Acar, o Corcovado,abaa,nada.Andaranabatalha do Marne e veio da a sua incompatibilidade com a vida (acabou se matando). A primeira vezemqueofrancssecomoveunoBrasil foi ao notar que os brasileiros se tratavam de poetas.Orico,opobre,op-rapado,todos sechamavamdepoetas,ou,napiordashi-pteses, de ilustre ou, por ltimo, de batuta. Havianessaabundnciadealma,nesses rapapsgenerosssimos,anostalgiadeum defuntogentil-homem.Hojeentendooen-ternecimentodofrancs,neurticoemlti-mograu,aoverumpassdepoetas.Mas tudoissodesapareceu,at oltimovestgio. Eis a amarga verdade: ningum tem von-[6] tadedechamarningumdepoeta,de ilustre, de batuta. Tanto o poeta, como oilustre,comoobatutafalamdeum Rio,ouporoutra,deumBrasildefinitiva-mente enterrado. E vamos e venhamos: quem quer ser poeta,ouilustre,ouqueoutronome tenha? Ningum. Lavra por a um outro tipo deobsesso.Sim,todomundoquerserjo-vem. No importam os mritos, os feitos, as virtudes, os pecados de ningum. S importa serounoserjovem.Eosque,porindes-culpvelazar,envelheceram,procuramuma espcie de rejuvenescimento no convvio das Novas Geraes. Quem o diz d. Avelar: Precisamos acreditar no jovem. Li tal declarao e a reli. Mascomo?Temosdeacreditarnumacerti-do de idade? [7] E por que no acreditar no sujeito de 35 anos,de47anos,oude53?Ojovem,ojo-vem.Essemisteriosojovem,vago,difuso, impessoal, sem cara, sem carter, s me con-vence como um monstro. E se for um pulha? Sim, se for um desses que atiram Ada Cury pela janela? Eis a cas-ta, a singela verdade: esse jovem utpi-co, ideal, jamais existiu. Coro me dizia: como se algum dissesse: vamos acre-ditar no homem de 43 anos. Ou, imaginem, osujeitoprovaquetem43anosou,ento, no entra em casa de famlia. Umdiamepediramparafalarcontrao palavro.Expliqueiaoreprter:Contra, noposso.Dei-lheaminhaexplicao: Todas as palavras so rigorosamente lindas. Ns que as corrompemos. Exato, exato. O quesevoseguinte:partedoclero,e [8] bemminoritria,estdegradandoapalavra, fazendo da palavra gato e sapato. Diz-se jovem, e eis o que acontece: instala-senoBrasilumjovemqueest acima do bem e do mal, ser terrvel, absurdo. irreal,masnoimporta:temosque acreditarnomonstro.Note-se:nono monstrocomotal.No,no.Omonstroh de ser o Guia, o Lder. Mas h pior e, repito, h pior. Por toda a parte,amesmaadulaodojovem.Todos querendoestarbemcomojovem,isto, bemcomumsujeitoquenoexiste.Outro dia, num batizado, o padre arranjou um jeito deexaltarajuventude.Estavalogaroto com dor de barriguinha; e o outro a falar da juventude. Passou. Mas vim para casa e ima-ginava:Esseumpadreprafrente. Doisoutrsdiasdepois,entronumaigreja, [9] jemplenosermo.Aoprimeiroolhar,re-conheo o padre pra frente. J me assustei. EstfalandoemVirgemMaria.Quedi-riaelesobreNossaSenhora?Noperdipor esperar.Erguendoavoz,comonumdde peito,brama:VirgemMaria,amedo jovem salvador. At Jesus Cristo teria de ser jovem, at Jesus Cristo precisa desse toque promocional. Jovem, jovem. Se fosse o velho Salvador,convenceriamenosdoqueumJe-sus do Teatro Recreio. [O GLOBO, 22. 01. 1968] APEDEUTEKA GUI NEFORT, 2015