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356 MONTEIRO, R. H. e ROCHA, C. (Orgs.). Anais do V Seminário Nacional de Pesquisa em Arte e Cultura Visual Goiânia-GO: UFG, FAV, 2012 ISSN 2316-6479 A MODA E O RIO: CONSTRUÇÕES ESTÉTICAS NARRADAS POR FRAGA Cristina Matos Silva [email protected] Centro Federal de Educação Tecnológica – MG Resumo Este estudo se centra na coleção Rio São Francisco – verão 2008-2009 do estilista Ronaldo Fraga objetivando discutir a relação dos objetos criados na coleção em destaque, sua narratividade e significados estéticos. Um levantamento de imagens retiradas do site de Fraga possibilitou a análise de peças do conjunto supracitado respaldada em teóricos como Lipovetsky; Barthes; Barnard; Castilho; Preciosa. Através das observações engendradas, os resultados demonstram que as roupas examinadas retratam uma trama de significados estéticos que evidenciam aspectos sociais, narrativos e culturais da região do “Velho Chico” ligadas às lembranças do estilista mineiro. Palavras-chave: Moda. Cultura. Estética. Ronaldo Fraga. Coleção Rio São Francisco. Introdução Do latim modus, moda quer dizer modo, que indica a forma de ser ou manifestar-se algo. Surgido na Idade Média, o vocábulo fez-se necessário para demarcar classes sociais. O lucro levou os comerciantes da época à mudança de comportamento e essa incluía imitar o vestuário da aristocracia. Incomodados, os nobres instituíam novidades e aderiram às variações. É desvelado, a partir daí, o conceito de moda já subjugado ao teatro das aparências, à efemeridade. A história do vestuário apresenta as metamorfoses e mutações que incorporaram aspectos de contextualizações pertencentes a cada época e processo cultural. “A esfera do parecer é aquela em que a moda se exerceu com mais rumor e radicalidade, aquela que, durante séculos, representou a manifestação mais pura da organização do efêmero.” (LIPOVETSKY, 2009, p. 24). Neste sentido, desde que a moda se instalou no Ocidente ela está em contaste transformações e comunga um caráter de variação, não cumulativa, mas de substituição de elementos. “Entretanto, é, antes de tudo, um mecanismo social de especificidade temporal singularmente curta, caracterizada por mudanças

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6479A MODA E O RIO: CONSTRUÇÕES ESTÉTICAS NARRADAS POR FRAGA

cristina Matos [email protected]

Centro Federal de Educação Tecnológica – MG

Resumoeste estudo se centra na coleção rio São Francisco – verão 2008-2009 do estilista ronaldo Fraga objetivando discutir a relação dos objetos criados na coleção em destaque, sua narratividade e significados estéticos. Um levantamento de imagens retiradas do site de Fraga possibilitou a análise de peças do conjunto supracitado respaldada em teóricos como Lipovetsky; Barthes; Barnard; Castilho; Preciosa. Através das observações engendradas, os resultados demonstram que as roupas examinadas retratam uma trama de significados estéticos que evidenciam aspectos sociais, narrativos e culturais da região do “Velho Chico” ligadas às lembranças do estilista mineiro. Palavras-chave: Moda. Cultura. Estética. Ronaldo Fraga. Coleção Rio São Francisco.

Introdução

Do latim modus, moda quer dizer modo, que indica a forma de ser ou manifestar-se algo. Surgido na Idade Média, o vocábulo fez-se necessário para demarcar classes sociais. O lucro levou os comerciantes da época à mudança de comportamento e essa incluía imitar o vestuário da aristocracia. Incomodados, os nobres instituíam novidades e aderiram às variações. É desvelado, a partir daí, o conceito de moda já subjugado ao teatro das aparências, à efemeridade.

A história do vestuário apresenta as metamorfoses e mutações que incorporaram aspectos de contextualizações pertencentes a cada época e processo cultural. “A esfera do parecer é aquela em que a moda se exerceu com mais rumor e radicalidade, aquela que, durante séculos, representou a manifestação mais pura da organização do efêmero.” (LIPOVETSKY, 2009, p. 24). neste sentido, desde que a moda se instalou no ocidente ela está em contaste transformações e comunga um caráter de variação, não cumulativa, mas de substituição de elementos. “Entretanto, é, antes de tudo, um mecanismo social de especificidade temporal singularmente curta, caracterizada por mudanças

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6479um pouco fantasiosas, afetando assim partes variadas da vida em sociedade.”

(SANTOS, 2006, p. 21) Tida como uma atividade econômica e consumível - pelo fato de produzir

objetos- a moda pode ser também considerada uma atividade relativa ao campo da arte, pois comunica, gera símbolos e denota significados. Incorpora caracteres multiformes visíveis na indústria cultural que se renova através de ciclos instituídos pela economia. E comunica...pois definir o uso de alguma coisa é uma sina da necessidade da comunicação humana.

Sendo uma linguagem não-verbal, a moda, através das peças de roupas que a compõe, tem a capacidade de produzir, emitir e trocar significados a partir das combinações que engendram. Ela, nesse sentido, “pode ser compreendida como a expressão de um conteúdo e, assim, ela pode ser lida como um texto, que por sua vez vincula um discurso.” (CASTILHO, 2004, p. 34)

Criar é inerente à atividade do homem e as composições que estabelecem os usos e discursos através da moda dependem das ideias e intenções humanas. No hemisfério da moda, cabe ao estilista1 as peripécias da criação. Castilho e Martins (2008) assinalam que o objetivo do designer de moda é ainda o de recriar, mediante aspectos formais, nas roupas, as qualidades picturais, o conjunto de traços que a caracterizam como um objeto estético que possua a capacidade de atrair a atenção receptiva do outro sujeito para o seu aspecto formal, para a materialidade que o constitui e o presentifica.

As construções estéticas2 são capazes de impulsionar e potencializar a comunicação humana, e, no caso da moda, extraem significações por meio de interferências vislumbradas nas formas, volumes, cores, traçados, tecidos; essa junção conota lembranças, valores e sentidos universais e particularizados.

A opção de trabalhar com construções estéticas representadas por adornos e trajes portadores de significados demanda pesquisas e sensibilidade por parte do criador. Afinal, seu trabalho gerará uma coerência de símbolos que envolvam a intenção do que será produzido. E, geralmente nesses casos, não somente a roupa falará por si, mas uma conjuntura mais complexa que envolve

1 Segundo dicionário Michaellis eletrônico, estilista é “escritor que tem estilo próprio; desenhista de moda”; o dicionário Caldas Aulete já traz, “profissional que cria modelos de roupas (...), artista que tem um estilo apurado e inconfundível.” O que temos em jogo são palavras como estilo, próprio, inconfundível. Dessa forma, apesar do crescimento de profissionais formados em Moda e Design, não são muitos os que conseguem se consagrar e disseminar estilos e padrões que são usados como referência no parâmetro mundial. Alguns autores preferem usar a nomenclatura designer de moda. neste artigo, estilista e designer de moda serão usados como sinônimos.

2 A palavra estética está relacionada ao estudo do belo. Em grego , a palavra aisthesis significa o que é sensível ou o que se relaciona com a sensibilidade. De acordo com contribuições de Kant, a experiência estética é fundamentada na intuição ou no sentimento dos objetos que nos satisfazem, independente da natureza real que possuem. Baumgarten definiu a estética como a ciência de como as coisas podem ser conhecidas pelos sentidos. Dessa feita, expressões como construções estéticas, significados estéticos, experiências estéticas se relacionarão a questões de sensibilidade e sentidos agregados a objetos contemplados, fruídos.

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6479a apresentação desses trajes. O vestuário com seus matizes e formas, o corpo,

os adornos, a trilha sonora, a disponibilização do ambiente, apresentados numa passarela-espetáculo estimulam a uma experiência estética.

No território brasileiro, um estilista que vem se consagrando como um autêntico “contador de histórias”, por impor narratividade às suas coleções, é o mineiríssimo Ronaldo Fraga. Para se contar histórias é preciso informação, conhecimento, imaginação e apego a detalhes que juntos formam uma colcha de retalhos. O contexto de criação de Fraga entrelaça urdiduras que articulam funções, intenções e sentidos. Seu mergulho em um tema permite muito mais do que um simples contar histórias, permite a criação de narratividade imbuída de experiências estéticas e profusão de conhecimento cultural, em especial de nosso país e cânones da arte.

Dessa feita, esse artigo tratará, mesmo que de maneira rasa, da coleção rio São Francisco – verão 2008-2009, enfocando a forma de produção de símbolos que o design de moda Ronaldo Fraga atribui a ela, permitindo a relação sensível do objeto e seu sentido, engendrando assim, uma rede de significados estéticos. Para isso, uma abordagem teórica explicitando a moda quanto manifestação da linguagem e da cultura norteará os capítulos que se seguem. Na sequência, será dado enfoque em algumas peças da coleção em destaque, entrelaçando a exposição teórica à observações produzidas acerca das construções estéticas narradas por Ronaldo Fraga.

Moda e linguagem

A moda pode ser entendida como uma instituição, como uma “entidade abstrata que modaliza maneiras de o sujeito materializar-se como presença (...)” (CASTILHO, 2004, p. 17). Tida como um mecanismo da comunicação, as roupas são meios através dos quais se extrai algo. “Meios, como o próprio nome diz, são meios, isto é, suportes materiais, canais físicos nos quais as linguagens se corporificam e através dos quais transitam” (SANTAELLA, 2001, p. 379). No caso da moda, as peças são corporificadas através de sua materialidade para serem combinadas e compor um sentido a partir da dinâmica da linguagem não-verbal.

Quando falamos em comunicação, temos um processo. Alguém diz alguma coisa a outro alguém usando um canal para expressar algo. “Sendo assim, uma roupa, um item de moda ou indumentária, seria o meio ou o canal pelo qual uma pessoa diria uma coisa a outra com a intenção de efetuar alguma mudança naquela outra pessoa.” (BARNARD, 2003, p. 52)

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6479Quanto ao tratamento da moda enquanto um sistema linguístico, o perito francês

em semiologia Roland Barthes foi um dos primeiros a sugerir que “a moda constitui um sistema coerente de sinais que pode ser analisado por meio de ferramentas geralmente usadas para a análise das línguas” (GODART, 2010, p. 116).

Respaldado pela perspectiva saussuriana, Barthes trabalha com o preceito de que “toda a cultura, no sentido mais amplo, cai no âmbito de uma ciência de significações. Os objetos mais utilitários (...) convidam a uma análise semiológica” (BARTHES, 2005, p. 374). Seus estudos, imprescindíveis para o entendimento da moda enquanto um processo que comunica, consistem em separar unidades, classificá-las e “examinar suas regras de combinação, à maneira de um gramático” (BARTHES, 2005, p. 377). O autor defende que a moda é fortemente codificada, apresentando um sistema com combinações de elementos e regras de transformação. No caso da moda, o código é taxado por Barthes como “código de vestimenta” e “sua análise é uma tentativa de descobrir uma ‘forma constante’ de modo a compreender como o sentido da vestimenta é produzido” (BARNARD, 2003, p. 141).

A produção desse sentido depende incialmente daquele que emite a mensagem, porém seu estado de discurso só pode ser efetivado a partir do momento que outrem o recebe. Numa perspectiva semiótica, é o processo de comunicação que produz ou gera significados. Sentidos esses que são recebidos de formas diferentes pelos destinatários, assim como reforça Barnard (2003, p. 55):

se a produção de significados é o resultado da negociação entre remetentes, leitores, suas experiências culturais e textos, então não será surpresa se diferentes leitores, de passados culturais diferentes, produzirem diferentes significados ou interpretações de texto.

Considerando a roupa também como um fato social dotado de significações culturais, evidenciado sentidos intrínsecos ao seu tempo e aos conceitos que carrega, é mister abrir um parêntese com inflexões acerca da moda e sua função na cultura.

Moda e cultura

Uma palavra que apresenta diversas acepções é a palavra cultura. O fato é que o conceito para tal vocábulo vem sendo insistentemente revisado. Cultura deriva da palavra latina “colere” que significa habitar, cultivar e proteger. A ideia de cultivar é uma associação mais presente na raiz da definição e quando pensamos em cultivo, há uma forte referência ao nascer, crescer e disseminar.

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6479Como algo dinâmico, a cultura é viva e está em constante ebulição, pois criar,

produzir e reproduzir é imanente ao cotidiano do homem. Um conceito clássico para cultura é defini-la como um todo complexo que

inclui conhecimento, crenças, arte, leis, tecnologias, costumes, parentesco, religião, magia e muitas outras capacidades e habilidades adquiridas pelos seres humanos como membros da sociedade (cf. richter, 2003).

Simplificando, a definição usada por Barnard (2003, p. 61), é direta e válida: “cultura é um modo de vida (...) que inclui o comportamento cotidiano, habitual, demonstrado por pessoas no dia-a-dia”. Considerando isso, a experiência comum do cotidiano reforça a função cultural. Por conseguinte, a moda é uma atividade intrínseca a esse sistema.

Moda, vestuário e adorno devem ser agora considerados como algumas das práticas significantes da vida cotidiana (juntamente com as artes, a filosofia, o jornalismo e a publicidade, por exemplo), que irão fazer da cultura um sistema geral de significados. (BARNARD, 2003, p. 63).

E quando a roupa imprime imagens e tramas cheias de sentidos? Além de comunicar, é ela mesma uma amostra da manifestação cultural?

Sant’Anna (2009), citado por Mendonça e Soares (2010, p.6) declara que “uma roupa também é a trama de enredos que se estendem desde as condições da costura até àquelas da venda, passando pela invenção de desenhos, o uso das tintas, o trabalho de diversos profissionais.” Andrade (2009), citado por Mendonça e Soares (2010, p.6) acrescenta,

para tanto, as roupas corporificam um entrecho de mãos, que formam uma rede de histórias numa urdidura descontínua e dilatada. Costuras pespontadas ou cruzadas, bordados, tingimentos, rasgos, puídos, manchas ou cheiros evocam narrativas constituídas por enredos que, diante de nossos sentidos, tornam-se perceptíveis através da materialidade da roupa, mas permanecem invisíveis na superfície do design.

Assim, a moda, além de ser processo comunicacional, é também um fenômeno cultural no momento em que a própria cultura pode ser entendida como um sistema de significados. Dependendo das intenções, estarão imbuídos naquele artefato criado crenças, valores, ideias e experiências que retratam identidades.

O criador e a sua criatura

Poiret, Worth, Chanel, Lacroix, Yvés Saint- Lauren, Villaventura, Fraga…são eles alguns dos responsáveis por ditar regras, criar e recriar os conjuntos de

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6479traços que caracterizam peças disponíveis no mercado. Chamados de designer

de moda, eles têm a missão de utilizar aspectos formais que serão traçados para compor algum objeto. “Além disso, ele(s) deve(m) refletir sobre as questões que se determinam na problemática do uso, na adequação ao corpo, nas situações dadas pela contemporaneidade, além das questões relativas ao custo e ao bem-estar.” (CASTILHO e MARTINS, 2005, p. 35)

Mas aquele que quer ir além do senso comum, não se restringindo a questões ergonômicas e tendências de estação, deve impor significados às suas peças, construindo não só um mero produto, mas um constante criar que evidencia um coser permeado de intenções, pesquisas, coerências e sentimentos.

O verdadeiro criador de moda não é aquele que se limita a realizar um croqui ou a transformar as tendências em vestuário, eles são as figuras centrais de um processo e estão “muito presentes na mídia e na cultura”. (GODART, 2010, p. 93)

A trajetória da moda brasileira é entremeada de referências por questões lógicas de colonizações. Porém ela, como a arte brasileira, soube aproveitar esse sistema híbrido e estampar a sua identidade se sobressaindo mercado afora. Quem vem ganhando destaque dentro desse ciclo é o estilista Ronaldo Fraga.

ao observarmos o trabalho dele

fica evidente que o designer procura resgatar da voracidade da produção em série, própria da contemporaneidade, um fazer pessoal. Cada criação sua é única, pensada em detalhes, composta em minúcias só permitidas por caixinhas de retalhos longamente colecionadas. (MENDONÇA e SOARES, 2010, p.1)

Suas coleções, lançadas na sistemática do mercado, exploram alguma temática. Geralmente, a preferência pela cultura brasileira, em especial a popular, é denotada em suas peças que configuram uma narratividade. Aclamado pelos especialistas de moda, Fraga é conhecido como um “contador de histórias” e suas coleções são minuciosamente examinadas por uma ótica que exibe um tema através das experiências estéticas vividas e pesquisadas pelo estilista minero.

a coleção rio São Francisco – verão 2008- 2009 ilustra bem essa questão. Fraga que, de uma forma irreverente, descreve em seu blog “nunca desejou sua carreira, não teve mãe costureira ou irmãs provando vestidos em casa e nunca brincou de boneca, começou pelo simples fato de saber desenhar” (FRAGA, 2010) arquitetou uma coleção que remete às memórias de sua infância e imbuída de significados especiais.

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6479Em um site criado para divulgar a exposição3 rio São Francisco navegado

por Ronaldo Fraga, ele descreve: “Meu pai, que nem “barranqueiro” era, vivia pescando por aquelas “bandas”. Sua volta era sempre uma festa, quando ele trazia surubins gigantes, lendas e casos do mágico universo ribeirinho. eram histórias e estórias, cultura, música, gente e bicho em cada conto trazido de lá” (FraGa, 2010).

A poética confissão do estilista retrata a importância agregada às suas vivências e lembranças. Apesar de não ter conhecido o “Velho Chico” na infância, enredos acerca daquele lugar permeavam a sua memória, aguçando o seu senso de criação. Em 2008, o Rio foi o seu objeto de pesquisa e por meses o olhar do criador foi lançado sobre a criatura. A tessitura de roupas, ou melhor, de enredos foram costurados a partir de experiências, vivências e significados apreendidos daquele lugar. Um universo múltiplo que rasga e inunda diversas regiões do Brasil foi captado pelas lentes, presença e perspicácia de um artista.

Detalhe da passarela arquitetada para apresentação da coleção Rio São Francisco 2008 -2009 do estilista Ronaldo Fraga no São Paulo Fashion Week.

Disponível em: http://www.ronaldofraga.com.br/port/index.htm

3 O estilista não se contentou em reduzir a riqueza de descobertas que banha o Velho Chico em apenas uma coleção e foi mais além. Com auxílio da Funarte e empresas privadas foi montada a exposição Rio São Francisco navegado por Ronaldo Fraga contando com instalações “costuradas entre a moda e a cultura ribeirinha”. Itinerante, Fraga pretende levá-la a doze cidades do Brasil. Um site para divulgar a exposição foi criado. Mais informações disponíveis em: http://saofranciscoronaldofraga.com.br/.

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6479A atmosfera criada para a apresentação da coleção no São Paulo Fashion

Week em 2008 foi composta por bacias repletas de sal grosso. A forma escolhida para a cenografia e suas bacias alinhadas se refere à salinização de um Rio, tão necessário às comunidades ribeirinhas. Trançando entre esse alumínio que compõe a paisagem do “Velho Chico”, as modelos apresentam cores, tramas e traçados que revelam: o rio também flui nos corpos daqueles que habitam ali.

Vestidos apresentados no desfile da São Paulo Fashion Week – Coleção São Francisco 2008-2009do designer de moda ronaldo Fraga.

Disponível em: http://www.ronaldofraga.com.br/port/index.htm

As estampas privilegiando nuanças que vão desde misturas entre o azul da água com o amarelo solar e o cinza que encobre a madrugada e compõe a paisagem noturna do rio são recriados em cortes geométricos e tecidos fluidos que contrastam com o rigor da madeira - outro elemento presente e consubstancial àqueles que têm o São Francisco como fonte de renda e vida.

“Meus sonhos eram povoados por caboclos d’água, uiaras, tutumarambás, serpentes do rio (...) PIRAPORA, CARRANCAS, GAIOLAS a VAPOR , BOM JESUS DA LAPA, PIRANHAS E LAJEDO, PETROLINA E JUAZEIRO... palavras que no meu imaginário chegavam como um afago, agora se tornavam mundo real. Por três meses viajei e me embebi das águas e da cultura do rio” (FRAGA, 2010)

Suas roupas revelam sobreposições, medidas, larguras, bordados e estamparias de elementos inspirados nos casarios típicos da população ribeirinha. Elegantemente transportado para o tecido, através dos traçados,

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6479junções e belezas que imitam o animal vertebrado mais celebrado nas margens

do “Velho Chico”, os peixes com suas diversidades, escamas furta-cor e desenhos curvilíneos conquistam um capítulo à parte nas suas criações.

Peças apresentados no desfile da São Paulo Fashion Week – Coleção São Francisco 2008-2009

do designer de moda ronaldo Fraga.Disponível em: http://www.ronaldofraga.com.br/port/index.htm

o design ali recriado mostra um enredo, um discurso articulado para que possamos vivenciar uma construção estética. Toda performance mostrada nos remete à afetos, à memórias, à vivências, aos valores da existência. Se todo “criador é aquele capaz de devassar nossa vidinha, disponibilizando-nos novas formas e conexões com este mundo”, de acordo com Preciosa (2005), citado por Mendonça e Soares (2010), Fraga consegue imprimir significados que pespontam nosso imaginário acerca de uma rica e importante parte do país, da cultura popular e acima de tudo, da cultura brasileira.

“Mergulhei literalmente neste universo de lendas e conflitos numa paisagem humana colorida e bordadas por marinheiros, caboclos d’água e mulheres-peixe.” (FRAGA, 2010). O cuidado com símbolos e suas representações, com a alma artesã que tece suas histórias com cores e formas, representando a fé, caminhos e trajetórias invadem os olhares seduzidos pela riqueza de detalhes. A costura impecável se entrelaça aos emaranhados de cruzes, rendas, cipós, sementes. Cores consideradas mórbidas se rendem e se mesclam aos apetrechos populares que promovem um arrojado “código de vestimenta”, apresentando verdadeiros aspectos pictóricos. A fruição é concedida pela atmosfera ali representada, um enredo é desvelado a partir da sensibilidade daquele que cria e que mostra que a moda é muito mais do que um assunto trivial.

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Peças apresentados no desfile da São Paulo Fashion Week – Coleção São Francisco 2008-2009

do designer de moda ronaldo Fraga.Disponível em: http://www.ronaldofraga.com.br/port/index.htm

Costuras finais

A moda apresenta inúmeras facetas, isso a torna dinâmica, viva, cíclica e com poderes. Ela é reveladora. Revela traços sociais e estéticos oscilando entre a indústria do luxo e a indústria cultural. Essas revelações só são possíveis através da dinâmica da comunicação. Signos não-verbais produzem a verbalização de significados que são construídos a partir de modos de ver e apreciar a vida.

nessas tessituras, vimos que o designer Ronaldo Fraga é um construtor. Edifica narrativas permeadas de conhecimentos e sensibilidade humana. A coleção Rio São Francisco 2008-2009 mostrou que as construções estéticas são capazes de impulsionar e potencializar a comunicação humana fazendo tramas e costuras de conhecimentos. Lendas, lembranças, cores, amores, formas, fé, vivências...a cultura mostrada na sua forma mais nobre: artisticamente. Seu senso estético- de imprimir sentido ao que é essencial para ele – acaba direcionando nosso olhar para interpretar uma peça além de seu uso prático. O conteúdo combinado e expressado através da coleção em destaque causa uma ação e uma reação. A ação perpassa pela linguagem e cultura mostrada através do processo da moda e a reação suscita um fruir relacionado à poeticidade do que está sendo contemplado.

Nessa direção, Barthes (2005) ratifica a principal função da moda ao afirmar que o homem vestiu-se para exercer sua atividade significante. Segundo ele, o uso do vestuário é fundamentalmente um ato de significação, é um ato

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6479profundamente social, alojado no próprio cerne da dialética das sociedades.

Assim, a natureza da moda não é só ditar e impor novas tendências. Ela também é um meio de linguagem o qual emprega discursos, está relacionada ao prazer de ver, descobrir e de sentir.

Referências

Livros:

BARNARD, Malcolm. . Moda e comunicação. Rio de Janeiro: Rocco, 1996. 267 p.

BARTHES, Roland. . Inéditos: imagem e moda. São Paulo: Martins Fontes, 2005. 380 p. v.3. (Coleção Roland Barthes)

CASTILHO, Kathia. Moda e linguagem. 2.ed. rev. São Paulo: anhembi Morumbi, 2006. 199 p. (Coleção Moda e Comunicação)

CASTILHO, Kathia. ; MARTINS, Marcelo M . Discursos da Moda: semiótica, design, corpo. São Paulo: Anhembi Morumbi, 2005. 112 p. (Coleção Moda & comunicação)

GODART, Frédéric. Sociologia da moda. Tradução de Lea P. Zylberlicht. São Paulo: Editora Senac São Paulo. São Paulo, 2010.

LIPOVETSKY, Gilles. . O império do efêmero: a moda e seu destino nas sociedades modernas. São Paulo: Companhia de Bolso, 2010. 347 p.

NUNES, B. Introdução à filosofia da arte. São Paulo: Ática, 2008.

ricHter, i. M. Interculturalidade e estética do cotidiano no ensino das artes visuais. Campinas: Mercado de Letras, 2003.

SANTAELLA, L. Matrizes da linguagem e pensamento sonoro visual verbal. São Paulo, 2001.

SantoS, G.M. A Roupa, a Moda e a Mulher na Europa Ocidental Medieval. Brasília, 2006.

Artigo:

MENDONÇA, M.C.; SOARES, A.P. As ficções contadas por Ronaldo Fraga. 19° Encontro da Associação Nacional dos Pesquisadores em Artes Plásticas. Bahia, 2010.

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6479Sites:

http://www.ronaldofraga.com.br/port/index.html. acesso entre os dias 20 -26 de jan. 2012.

http://ronaldofraga.com/blog/. acesso entre os dias 20-26 de jan. 2012.

FraGa, r. Rio São Francisco navegado por Ronaldo Fraga. 2010.

http://saofranciscoronaldofraga.com.br/. acesso entre os dias 20-26 de jan. 2012.

Minicurrículo

Cristina Matos Silva é mestranda em estudos de linguagens pelo CEFET - MG na linha de pesquisa de processos interdiscursivos. Formada em Letras (2004) pelo Centro Universitário de Patos de Minas e especialista em Arte-Educação pela mesma instituição (2006). Cursa Artes na modalidade da EaD na UNIMONTES (7º período) e é arte-educadora no curso de Pedagogia do UNIPAM e no Colégio Nossa Senhora das Graças na cidade de Patos de Minas.