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Nietzsche Em 90 Minutos - Paul Strathern

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Nietzsche em 90 minutosPaul StrathernFilósofos em 90 minutosFriedrich Nietzsche (1844-1900) foi o criador do célebre super-homem, embora ele próprio tenha sido um dos homens mais doentes que já houve: veio a morrer louco, segundo dizem em consequência

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    Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e no mais lutando pordinheiro e poder, ento nossa sociedade poder enfim evoluir a um novo nvel.

  • F I L S O F O Sem 90 minutos

    . . . . . . .por Paul Strathern

    Aristteles em 90 minutosBerkeley em 90 minutos

    Bertrand Russell em 90 minutosConfcio em 90 minutosDerrida em 90 minutos

    Descartes em 90 minutosFoucault em 90 minutos

    Hegel em 90 minutosHeidegger em 90 minutos

    Hume em 90 minutosKant em 90 minutos

    Kierkegaard em 90 minutosLeibniz em 90 minutosLocke em 90 minutos

    Maquiavel em 90 minutosMarx em 90 minutos

    Nietzsche em 90 minutosPlato em 90 minutos

    Rousseau em 90 minutosSanto Agostinho em 90 minutos

    So Toms de Aquino em 90 minutosSartre em 90 minutos

    Schopenhauer em 90 minutosScrates em 90 minutosSpinoza em 90 minutos

    Wittgenstein em 90 minutos

  • NIETZSCHE(1844-1900)

    em 90 minutos

    Paul Strathern

    Traduo:Maria Helena Geordane

    Consultoria:Danilo Marcondes

    Professor-titular doDept de Filosofia, PUC-Rio

  • SUMRIO. . . . . . . . . . .

    Introduo erazes de suas ideias

    Vida e obra

    Principais conceitosfilosficos

    Posfcio

    Citaes-chave

    Cronologia de datas significativasda filosofia

  • SOBRE O AUTOR. . . . . . . . . . .

    PAUL STRATHERN nasceu em Londres em 1940, tendo estudado fsica, qumica e matemtica noTrinity College, Dublin, antes de se dedicar filosofia. Escritor profissional, autor deromances, biografias e livros de histria e de viagens. Como professor universitrio, ensinoumatemtica, filosofia e poesia italiana moderna. A srie Filsofos em 90 minutos j seencontra publicada com xito em seis pases.

  • INTRODUO E RAZES DE SUAS IDEIAS. . . . . . . . . . .

    No incio da era crist, a filosofia adormeceu. Seus cochilos acabaram por produzir o sonhofilosfico conhecido como escolstica, que tinha por base Aristteles e os ensinamentos daIgreja.

    A filosofia foi rudemente despertada desses devaneios medievais no sculo XVII pelachegada de Descartes, com a sua declarao Cogito, ergo sum (Penso, logo existo). Uma erade esclarecimento havia comeado: o conhecimento baseava-se na razo. Mas Descartesdespertou mais do que os sonolentos eruditos. Tambm acordou os britnicos, que logoresponderam sua assero racional, insistindo em que nosso conhecimento no se baseia narazo, mas na experincia. No seu entusiasmo, os empiristas britnicos logo destruram todotrao de razo reduzindo a filosofia a uma srie de sensaes cada vez menores. A filosofiacorria o risco de adormecer mais uma vez. Foi ento que, em meados do sculo XVIII, Kantdespertou de seu sono dogmtico e formulou um sistema filosfico ainda maior do que o quecondenara a filosofia inrcia durante a Idade Mdia. Parecia que a filosofia estava prestes ade novo emular Rip van Winkle.1 Hegel reagiu a essa situao soporfera construindo para simesmo um enorme leito sistemtico de quatro colunas. Schopenhauer decidiu tentar outromtodo e jogou um jato da fria filosofia oriental no leito kantiano. Isso provocou o despertardo jovem Nietzsche, que se lanou na rajada fria e passou a proclamar uma ruidosa filosofia,que manteria a humanidade acordada por muito tempo.

    ____________1 Figura do folclore norte-americano, do incio do sculo XIX, representante do tpico yankeepreguioso. Depois de passar vrios anos dormindo, acorda e se depara com um mundototalmente modificado. (N.E.)

  • VIDA E OBRA. . . . . . . . . .

    Com Nietzsche a filosofia passou a ser novamente perigosa, dessa vez com uma diferena.Nos sculos anteriores a filosofia fora perigosa para os filsofos; com Nietzsche, torna-seperigosa para todos. Nietzsche terminou louco, o que comeou a transparecer no tom de seusltimos escritos. Suas ideias perigosas, porm, comearam a surgir muito antes de eleenlouquecer e nada tm a ver com insanidade mental clnica. Elas eram o pressgio de umaloucura coletiva que teria terrveis consequncias na Europa durante a primeira metade dosculo XX e que agora mostra sintomas nefastos de recidiva nos Blcs e na Europa oriental.

    As melhores ideias filosficas de Nietzsche mal so dignas desse nome esteja elefalando do super-homem, do eterno retorno (a ideia de que vivemos vrias vidas atravs daeternidade) ou do nico objetivo da civilizao (produzir grandes homens, como Goethe,Napoleo e ele prprio). A utilizao que ele faz da vontade de potncia como umaexplicao universal ou simplista ou sem sentido at mesmo o monismo de Freud maissutil e o conceito menos especfico de Schopenhauer sobre a vontade universal maisconvincente. Como qualquer boa teoria ardilosa, a insinuante doutrina da vontade de potnciacontm o habitual elemento de paranoia. Mas o verdadeiro filosofar de Nietzsche tobrilhante, persuasivo e incisivo quanto qualquer outro antes ou depois dele. Quando se lNietzsche, tem-se a sensao embriagadora de que a filosofia de fato tem importncia (umadas razes por que ele to perigoso). A utilizao da vontade de potncia como meroinstrumento analtico possibilitou-lhe a descoberta de elementos constitutivos das motivaeshumanas de que poucos tinham suspeitado antes. Isso permitiu-lhe desmascarar valoresoriundos dessas motivaes e traar seu desenvolvimento sobre um quadro histrico amplo,iluminando os prprios alicerces da nossa civilizao e da nossa cultura.

    Embora Nietzsche no seja totalmente isento de culpa pelos perigosos disparatesproferidos em seu nome, deve-se frisar que a maior parte deles no passa de conceitostravestidos do que ele de fato escreveu. Ele nada sentia alm de desprezo pelos protofascistasde seu tempo, os antissemitas o repugnavam e a ideia de uma nao de alemes de raa puracomo raa superior teria decerto exercitado ao mximo seu senso de humor. Tivesse elevivido (e mantido sua sanidade mental) at a dcada de trinta, quando estaria apenas na casados oitenta, Nietzsche no teria certamente permanecido em silncio a respeito dos grotescosacontecimentos que se desenrolavam em seu pas como fizeram alguns filsofos alemes dapoca, que se proclamavam seus sucessores.

    Friedrich Wilhelm Nietzsche nasceu em 15 de outubro de 1844 na Saxnia, entoprovncia do cada vez mais poderoso imprio da Prssia. Nietzsche descendia de longalinhagem de comerciantes, inclusive chapeleiros e aougueiros, mas seu pai e seu av eramambos pastores luteranos. Seu pai era um prussiano patriota que tinha o rei, FredericoGuilherme IV, em alta estima. Quando o primeiro filho de Ludwig Nietzsche nasceu, no dia doaniversrio do rei, era bvio que viria a se chamar Friedrich. Por coincidncia extrema e semsentido, os trs morreriam loucos.

  • O primeiro a partir foi Ludwig, falecido em 1849. O diagnstico foi amolecimento docrebro e a autpsia aparentemente revelava que um quarto de seu crebro fora afetadopelo amolecimento. Esse diagnstico saiu de moda entre os profissionais mdicos, pormrenomados bigrafos de Nietzsche esto convencidos de que a insanidade de LudwigNietzsche no foi herdada pelo filho.

    Nietzsche foi educado em Naumburg numa casa cheia de mulheres santas que incluama me, uma irm mais nova, uma av materna e duas tias solteiras ligeiramente perturbadas.Isso parece ter influenciado a atitude de Nietzsche em relao a mulheres mais velhas que seenquadrassem na mesma categoria de suas tias solteiras. Aos treze anos foi para um internatona vizinha Pforta um estabelecimento de prestgio, equivalente melhor escola pblicainglesa da poca, onde recebeu boa educao aliada s barbaridades costumeiras. Nietzsche,produto genuno de uma criao beata e mimada, tornou-se conhecido como pastorzinho eteve excelente desempenho. Mas era to brilhante que no conseguiu evitar pensar por simesmo. Por volta dos dezoito anos comeou a colocar em dvida sua f. O pensador de visoclara no podia deixar de notar que comeava a se sentir deslocado no mundo em que vivia.Como de hbito, essa reflexo parece ter ocorrido em total isolamento. O pensamento deNietzsche, por toda a sua vida, seria influenciado por poucas pessoas vivas (e no muitosmortos).

    Aos dezenove anos foi para a Universidade de Bonn para estudar teologia e filologiaclssica, com o objetivo de se tornar pastor. Seu destino havia sido traado muito antes pelassantas mulheres; mas ele j experimentava um desejo inconsciente de rebelio, a que seseguiu uma transformao de seu carter. Ao chegar universidade, o aluno solitrioinesperadamente tornou-se um tpico estudante gregrio. Aderiu a uma congregao influente,passou a sair para beber com outros rapazes e, maneira verdadeiramente teutnica, chegou abater-se em duelo, na forma habitualmente artificial, interrompido to logo recebeu a cicatrizda honra um ligeiro corte no nariz, mais tarde infelizmente ocultado pela armao dosculos.

    Era apenas uma fase obrigatria. Nesse momento, Nietzsche decidira que Deus estmorto. (Essa observao, hoje to estreitamente associada a Nietzsche e sua filosofia,tambm fora feita por Hegel cerca de vinte anos antes do nascimento de Nietzsche.) Em casa,nas frias, recusou-se a receber a comunho e anunciou que no seguiria os passos do paitornando-se pastor. No ano seguinte decidiu transferir-se para a Universidade de Leipzig,onde iria desistir da teologia e concentrar-se em filologia clssica.

    Nietzsche chegou a Leipzig em outubro de 1865, no mesmo ms em que completava seuvigsimo primeiro aniversrio. Ocorreram ento dois fatos que transformariam sua vida.Numa viagem de turismo a Colnia, visitou um bordel, inadvertidamente segundo confessou.Na chegada, pedira a um carregador que o levasse a um restaurante, mas o carregador levou-oa um bordel. Como o prprio Nietzsche relatou mais tarde a um amigo: De repente meencontrei cercado por meia dzia de vises vestidas em lantejoulas e gaze, olhando-mefixamente e cheias de expectativa. Por um instante, fiquei sem fala. Depois me dirigiinstintivamente para a nica coisa que naquele lugar tinha alma: o piano. Toquei algunsacordes, que me livraram de minha paralisia, e fugi.

  • Infelizmente, s temos o depoimento de Nietzsche a respeito desse episdio improvvel.Se a visita foi ou no to acidental ou se ele terminou acariciando apenas as teclas do pianoou no, impossvel dizer. A essa altura ele era, quase sem sombra de dvida, virgem. Era umjovem extremamente impetuoso, tanto quanto inexperiente e gauche no que dizia respeito aassuntos mundanos. (Embora isso no o tenha impedido de fazer pronunciamentos a esserespeito. Apesar de sua condio sexual, informou compenetradamente a um amigo quenecessitava de trs mulheres para satisfaz-lo.) A despeito de tudo isso, tendo a crer na versode Nietzsche sobre o incidente em Colnia.

    Em reflexo posterior, porm, Nietzsche deve ter decidido que fora atrado por algo maisque o piano. Voltou ao bordel e quase com certeza visitou alguns estabelecimentossemelhantes quando retornou a Leipzig. No muito tempo depois, descobriu que estavainfectado. O mdico que o tratou no lhe teria dito que tinha sfilis (no o faziam naquelapoca porque era incurvel, assim como hoje mentem com arrogncia em relao ao cncer).Ainda assim, em consequncia desse incidente, Nietzsche parece ter-se em geral abstido deatividades sexuais com mulheres. Mesmo assim, continuou ao longo de sua vida a fazerobservaes autorreveladoras e embaraosas sobre elas em sua filosofia. Vai ver umamulher? No esquea de levar o chicote.

    O segundo incidente determinante em sua vida aconteceu quando ele entrou num sebo e sedeparou com um exemplar de O mundo como vontade e representao , de Schopenhauer.Tomei o livro estranho em minhas mos e comecei a folhear as pginas. No sei que demniosussurrou ao meu ouvido: Leve esse livro para casa. Assim, quebrando meu princpio dejamais comprar um livro precipitadamente, levei-o. Ao chegar em casa, atirei-me no canto dosof com meu novo tesouro e comecei a deixar que aquele gnio dinmico e melanclicotrabalhasse minha mente ... Descobri-me olhando para um espelho que refletia o mundo, a vidae minha prpria natureza com aterradora grandeza ... aqui eu vi doena e sade, exlio erefgio, Inferno e Paraso.

    Em consequncia desses assombrosos sentimentos profticos, Nietzsche tornou-se umschopenhaueriano. Nessa ocasio, quando no tinha nada em que acreditar, necessitava dopessimismo e do distanciamento de Schopenhauer, que sustentava ser o mundo merarepresentao, amparado por uma vontade malfica que a tudo perpassa. Essa vontade cegae no atenta para as preocupaes da humanidade comum, infligindo a seus membros uma vidade sofrimento, enquanto lutam contra sua manifestao em torno deles (o mundo). A nicaconduta sensata que nos resta consiste em diminuir o poder da vontade dentro de ns medianteuma vida de renncia e ascetismo.

    O pessimismo de Schopenhauer no se adequava totalmente natureza de Nietzsche, masele reconheceu de imediato sua honestidade e sua fora. A partir de ento, suas ideiaspositivas teriam de ser primeiro fortes o bastante para ir alm desse pessimismo. Mas, acimade tudo, o conceito de Schopenhauer sobre o papel fundamental desempenhado pela vontadese mostraria decisivo e se transformaria finalmente na vontade de potncia de Nietzsche.

    Em 1867 Nietzsche foi convocado para um ano de servio no exrcito prussiano. Asautoridades foram obviamente iludidas pelo enorme e feroz bigode militar que Nietzschepassara a cultivar sob a decepcionante cicatriz provocada pelo duelo, e ele foi enviado para a

  • cavalaria. Foi um erro. Nietzsche tinha grande determinao, mas um fsico lamentavelmentefrgil. Sofreu srio acidente enquanto cavalgava e continuou sobre o cavalo como se nadativesse acontecido, na melhor tradio prussiana. Quando o soldado Nietzsche voltou caserna, teve de ser hospitalizado por um ms. Foi promovido a cabo por bravura e mandadode volta para casa.

    De volta Universidade de Leipzig, foi ento reconhecido por seu professor como omelhor aluno que tivera em quarenta anos. Contudo, Nietzsche comeava a perder o encantopela filologia e sua indiferena em relao aos verdadeiros e prementes problemas da vida.No sabia o que fazer. Desesperado, pensou em estudar qumica ou ir para Paris por um anopara experimentar o divino canc e o o veneno amarelo, o absinto. At que um diaconseguiu ser apresentado ao compositor Richard Wagner, que se encontrava em visita secreta cidade. (Wagner fora expulso por atividades revolucionrias vinte anos antes; e o banimentopersistia, apesar da transformao de suas posies polticas extremistas da esquerda para adireita.)

    Wagner nascera no mesmo ano do pai de Nietzsche e, segundo os registros da poca,guardava com ele impressionante semelhana. Nietzsche tinha grande mas amplamenteinconsciente necessidade da figura paterna. Jamais conhecera antes um artista famoso nemalgum cujas ideias fossem aparentemente to semelhantes s suas. Durante seu breveencontro, Nietzsche descobriu o profundo amor de Wagner por Schopenhauer. Wagner,lisonjeado pelas atenes do jovem e brilhante filsofo, devolveu-lhe a cortesia com omximo de seu notvel charme. O efeito sobre Nietzsche foi imediato e profundo: Nietzschefoi sufocado pelo grande compositor, cujo carter exuberante era pelo menos igual ao de suasexuberantes peras.

    Dois meses mais tarde ofereceram a Nietzsche o cargo de professor de filologia naUniversidade de Basileia, na Sua. Ele tinha ento apenas vinte e quatro anos e ainda noobtivera o doutorado. Apesar de suas dvidas em relao filologia, era uma oferta que nopodia recusar. Em abril de 1869 tomou posse do cargo em Basileia e imediatamente comeoua dar aulas extras na rea de filosofia. Desejava combinar filosofia e filologia, o estudo deesttica e dos clssicos moldando nada menos que um instrumento de anlise dos erros danossa civilizao. Rapidamente firmou-se como o jovem astro em ascenso da universidade eestabeleceu relaes com Jacob Burckhardt, o grande historiador da cultura que tambm faziaparte do quadro acadmico da universidade. Burckhardt, o primeiro a elaborar o conceitohistrico de Renascimento, era o nico esprito do mesmo calibre de Nietzsche no corpodocente, e talvez a nica figura que Nietzsche continuaria a reverenciar at o fim de sua vida. possvel que Burckhardt tivesse, nessa etapa crucial, exercido forte influncia sobreNietzsche, mas sua reserva aristocrtica impedia que isso acontecesse. E, alm disso, o papelda figura paterna j fora ocupado por uma influncia longe de ser forte.

    Em Basileia, Nietzsche estava a apenas trinta quilmetros de Tribschen, onde Wagnerestabelecera residncia com Cosima, filha de Liszt (nessa poca ainda casada com um amigomtuo de Liszt e Wagner, o regente von Blow). Imediatamente Nietzsche tornou-se, nos finsde semana, visita regular na suntuosa villa de Wagner, s margens do lago Lucerna. Mas avida do compositor era operstica no apenas em termos musicais, emocionais e polticos. Eleera um homem que acreditava em viver ao mximo suas fantasias. Tribschen era ela prpria

  • como uma pera, e no havia jamais qualquer dvida a respeito de quem desempenhava opapel principal. Vestido ao estilo flamengo (mistura do Holands Voador com Rubens emroupas extravagantes), Wagner caminhava a passos largos entre paredes em cetim cor-de-rosacom querubins rococ, em calas de cetim negro at os joelhos, boina escocesa e gravata deseda com n escandaloso declamando em meio a bustos de si prprio, imensas pinturas aleo (com o mesmo tema) e salvas de prata comemorativas de encenaes de suas peras.Pairava incenso no ar e apenas msica do maestro era permitido competir com ele. Enquantoisso, Cosima colaborava na encenao do companheiro, certificando-se de que ningumescapava carregando os perfumados cordeiros de estimao, os enormes ces de caaengalanados ou as aves ornamentais que perambulavam pelo jardim.

    difcil entender como Nietzsche se deixou levar por tudo isso. Na realidade, difcilentender que algum se deixe levar por isso. (As extravagncias de Wagner o deixavamconstantemente arruinado e ele confiava no apoio de uma srie de benfeitores ricos, inclusiveo rei Ludwig da Baviera, que fez enormes contribuies com dinheiro do errio pblico.)Somente quando se ouve a msica de Wagner se pode conceber a profunda persuaso e aseduo fatal de seu carter. O prprio Wagner era evidentemente to excessivo quanto suasfascinantes composies. O imaturo Nietzsche logo se deixou enfeitiar por essa atmosferavertiginosa, onde os leitmotivs de fantasia inconsciente flutuavam pelos sales em estilorococ. Wagner pode ter sido uma figura paterna mas Nietzsche logo descobriu que sentiaum desejo edipiano por Cosima, sem ousar declarar (nem a si prprio) que se apaixonara porela.

    Em julho de 1870, eclodiu a guerra franco-prussiana. Era a chance de a Prssia vingar-seda derrota imposta por Napoleo, conquistar os franceses e firmar a Alemanha como a maiorpotncia da Europa. Cheio de fervor patritico, Nietzsche se apresentou como enfermeirovoluntrio. Passando por Frankfurt a caminho da linha de frente, viu as tropas da cavalariaressoando os cascos pelas ruas em pleno esplendor. Foi como se uma venda casse de seusolhos. Senti pela primeira vez que a mais forte e mais elevada vontade de viver no seencontra na luta pela vida, mas numa vontade de potncia, numa vontade de guerra edominao. Nascera a vontade de potncia e, embora ainda fosse passar por modificaesconsiderveis, at ser vista mais em termos psicolgicos e sociais do que militares, jamais selivraria totalmente de sua inspirao militar inicial.

    Nesse nterim, Bismarck esmagou os franceses e Nietzsche comeou a descobrir que aguerra no era feita apenas de glria. No campo de batalha em Wrth, viu-se no meio derestos humanos salpicados por todos os lados, exalando um penetrante cheiro ptrido decadveres. Mais tarde, foi colocado num vago de gado para conduzir seis feridos numaviagem que durou mais de dois dias. Entrincheirado entre ossos quebrados, carne gangrenadae soldados moribundos, Nietzsche, de forma varonil, fez o melhor que pde mas na chegadaa Karlsruhe ele prprio era um homem destrudo. Foi levado para o hospital com desinteria edifteria.

    Apesar dessa traumtica experincia, em dois meses Nietzsche estava de volta a Basileia,lecionando. Continuou a se sobrecarregar com aulas de filosofia, assim como de filologia, ecomeou a escrever O nascimento da tragdia.

  • Essa brilhante e originalssima anlise da cultura grega coloca em contraste o claroelemento apolneo de sobriedade clssica e as foras dionisacas, mais sombrias e instintivas.Segundo Nietzsche, a grande arte da tragdia grega resultou da fuso desses dois elementos,sendo finalmente destruda pelo racionalismo superficial de Scrates. Foi a primeira vez quese enfatizou o elemento sombrio da cultura grega, e sua caracterizao por Nietzsche comofundamental provocou grande controvrsia. No sculo XIX o mundo clssico era sagrado. Seusideais de justia, cultura e democracia favoreciam a imagem que a classe mdia emergentefazia de si mesma. Ningum queria ouvir que havia sido um grande erro.

    Ainda mais controverso foi o uso frequente de Wagner e sua msica do futuro, por partede Nietzsche, para ilustrar seus argumentos filosficos. De fato, escreveu a seu editor: Overdadeiro objetivo [deste livro] iluminar Richard Wagner, esse extraordinrio enigma denosso tempo, em sua relao com a tragdia grega. Somente Wagner conseguia harmonizar oselementos apolneo e dionisaco maneira da tragdia grega.

    Essa nfase no elemento dionisaco pleno de potncia se firmaria como parte essencial daltima filosofia de Nietzsche. Ele j no podia tolerar a negao budista da vontade,pregada por Schopenhauer. Ao invs disso, ops o elemento dionisaco aos elementoscristos, que considerava terem enfraquecido a civilizao. Ele compreendeu que a maioria denossos impulsos tem dois lados. Mesmo os assim chamados melhores impulsos tm seu ladosombrio ou degenerado: Todo ideal pressupe amor e dio, reverncia e desprezo. Oimpulso essencial pode surgir tanto do lado positivo quanto do negativo. Em sua opinio, ocristianismo comeara pelo lado negativo, firmando-se no Imprio Romano como a religiodos oprimidos e dos escravos. Isso em geral se manifestou em sua atitude com relao vida.Tentou constantemente superar nossos instintos positivos mais poderosos. Essa negao eratanto consciente (na unio do ascetismo com a autonegao) quanto inconsciente (com relao humildade, que ele via como uma expresso inconsciente de ressentimento, uma inverso daagresso por parte dos fracos).

    Da mesma forma, Nietzsche atacou a compaixo, a represso dos verdadeiros sentimentose a sublimao do desejo implcitos no cristianismo em prol de uma tica mais forte e maisprxima das origens instintivas de nossos sentimentos. Deus estava morto, a era cristterminara. No que exibiu de pior, o sculo XX provou que estava certo. No que teve de melhor,mostrou que muitos dos melhores elementos cristos no dependem da crena em Deus. Secontinuamos ou no a viver mais coerentes com nossos sentimentos bsicos, ainda discutvel.

    Wagner era um artista supremo, mas no estava preparado para reflexes filosficas dessadimenso. Pouco a pouco Nietzsche comeou a enxergar o que se escondia por trs damscara intelectual do compositor. Wagner era um ego ambulante, de grande porte e foraintuitiva mas mesmo seu amor por Schopenhauer era passageiro, apenas mais gua para oseu prprio moinho. Antes Nietzsche procurara ignorar determinados elementos mais srdidosdo carter de Wagner, como seu antissemitismo, sua exagerada arrogncia e sua relutncia emreconhecer a capacidade ou as necessidades de qualquer pessoa que no fosse ele prprio.Mas havia limites. Por essa poca Wagner tinha-se mudado para Bayreuth, onde o rei Ludwigda Baviera construa para ele um teatro, que seria destinado exclusivamente encenao de

  • suas peras (projeto que contribuiria para a falncia das finanas da Baviera e para adeposio de Ludwig). Em 1876 Nietzsche chegou a Bayreuth para a rcita de abertura dociclo dos Anis de Wagner, mas adoeceu, quase com certeza de causas psicossomticas. Amegalomania e a clere decadncia da arte haviam se tornado demasiado para o discpulofavorito do maestro e Nietzsche teve de partir.

    Dois anos mais tarde Nietzsche publicou a coletnea de aforismos Humano, demasiadohumano, o que consumou sua ruptura com Wagner. O elogio da arte francesa, a acuidadepsicolgica e o esvaziamento das pretenses romnticas, alm da aguda percepo, foramexcessivos para Wagner. E, para culminar, a obra no continha nenhuma referncia elogiosa msica do futuro.

    Talvez ainda mais importante, essa obra tambm conseguiu afastar alguns dos maisgenunos admiradores filosficos de Nietzsche. Ironicamente, a causa disso foi a razo pelaqual ele hoje admirado em todo o universo (mesmo por aqueles que abominam suafilosofia). Nessa obra, Nietzsche comeou a desenvolver o estilo que lhe permitiu tornar-seum mestre na lngua alem. (No se trata de tarefa pequena com um idioma como o alemo que derrotou at mesmo alguns de seus mais conceituados escritores.) O estilo de Nietzschefora sempre claro e combativo, suas ideias condensadas, mas ainda assim imediatamentecompreensveis. Decidiu, no entanto, comear a escrever sob a forma de aforismos. Ao invsde usar argumentos longos e tortuosos, preferiu apresentar suas ideias numa srie de intuiespenetrantes, passando rapidamente de um tpico a outro.

    Nietzsche filosofava movimentando-se de vrias maneiras. Suas melhores ideiasocorreram enquanto fazia longas caminhadas pelas regies campestres da Sua.Frequentemente afirmava ter caminhado por mais de trs horas, a despeito de sua sade frgil.(Embora isso pudesse muito bem ser antes uma projeo da vontade de potncia quemanifestao real dela.) Chegou-se mesmo a dizer que o estilo aforismtico de Nietzsche eraconsequncia de seu hbito de fazer pausas para anotar seus pensamentos enquanto caminhava.Seja qual for a causa, esse hbito aforismtico de Nietzsche resultaria em estilo sem paralelopor toda a Europa durante o sculo XIX. Eis uma pretenso pondervel (embora Nietzschecertamente concordasse com ela). O sculo XIX foi um perodo de grandes estilistas. Mas,exceo feita ao enfant terrible Rimbaud, nenhum outro escritor pressentiu a revoluolingustica que estava por vir. Revoluo de teor mais que de estilo. Na prosa de Nietzschepode-se ouvir a voz prxima do sculo XX: ou seja, a lngua do futuro.

    Mas tudo isso no aconteceu de repente. Quando Nietzsche escreveu Humano, demasiadohumano ele apenas comeava a encontrar sua voz. Mesmo suas ideias ainda tinham, em muitoscasos, de encontrar sua marca. Essa obra rica em aperus psicolgicos. O fantasista nega arealidade para si mesmo, o mentiroso s o faz para outros. A me do excesso no aalegria, mas a falta dela. Todos os poetas e escritores enamorados do superlativo desejamfazer mais do que podem. Um dito espirituoso um epigrama sobre a morte de umsentimento. Mas, no final, tudo se torna excessivo. Seus admiradores achavam que o que elefazia no era filosofia e estavam certos. Tratava-se de psicologia, e de tal qualidade quealgumas dcadas mais tarde Freud decidiu no continuar a ler Nietzsche receando descobrirno houvesse mais nada a dizer sobre o assunto. Mas a mistura de aforismos e psicologia no

  • constri uma obra extensa e coerente. Por trs dos aperus psicolgicos havia uma linha deargumentao muito tnue conectando os aforismos, o que fez com que sua obra fosseclassificada como assistemtica. A obra de Nietzsche jamais perderia esse rtulo o que injusto. Por seu estilo aforismtico, ela pode parecer assistemtica, mas suas ideias so tocoerentes e to bem fundamentadas quanto as que se encontram confinadas dentro de qualquerdos grandes sistemas filosficos.

    No entanto, bvio que ele era assistemtico. A filosofia de Nietzsche antecipava o fimde todos os sistemas. Ou deveria t-lo feito mas h sempre algum querendo tentar.(Precisamente nessa poca Karl Marx trabalhava com afinco no Museu Britnico a apenasalgumas cadeiras de onde me sento agora.)

    A despeito dessas falhas, Humano, demasiado humano marca o despontar de Nietzschecomo o melhor psiclogo de seu tempo enorme faanha, caso se considere sua inexperinciasocial. Nietzsche era em essncia um pssaro solitrio. No sentido em geral aceito, ele malconhecia algum. No tinha amigos verdadeiros. Por toda a sua vida manteve poucosadmiradores prximos, mas sua auto-obsesso o impedia de dedicar-se ao dar e receber quecaracterizam a verdadeira amizade. Como adquiriu ento conhecimento psicolgico toprofundo? Muitos comentadores opinam que sua fonte nessa esfera foi apenas um homem Richard Wagner, o que bem possvel, uma vez que nele havia rica concentrao de enigmaspsicolgicos a serem decifrados. Embora esses mesmos comentadores tendam a menosprezaro fato de que Nietzsche tambm se conhecia muito bem (ainda que de forma intermitente e svezes um pouco seletiva).

    As instrospeces psicolgicas de Nietzsche so de aplicao universal, apesar de suasorigens eclticas um filsofo misantropo e um compositor megalomanaco. No entanto, oacesso de Nietzsche sua principal fonte psicolgica estava chegando ao fim. Aps apublicao de Humano, demasiado humano, a ruptura com Wagner tornara-se inevitvel. Omundo para o qual Nietzsche se preparava com essa obra era o Admirvel Mundo Novo dofuturo um mundo no qual Bem e Mal no existiam mais sob qualquer forma detranscendncia, um mundo sem valores absolutos ou sanes divinas. Partindo para o ataque,Nietzsche expusera as motivaes subconscientes do cristianismo, a moral de escravo quetentava emascular a vontade de potncia. Wagner, nesse meio tempo, estava engajado em seultimo trabalho, Parsifal, que marcou o fim de seu envolvimento com Schopenhauer e seuretorno ao abrigo do cristianismo. Seus caminhos se bifurcaram para sempre.

    Em 1879 Nietzsche foi obrigado a demitir-se de seu cargo em Basileia em virtude deenfermidades contnuas. Por anos sua sade fora frgil e, nesse momento, era um homem muitodoente. Concederam-lhe pequena penso e aconselharam-no a fixar residncia em local declima mais ameno.

    Nos dez anos seguintes, perambulou pela Itlia, pelo sul da Frana e pela Sua, sempreprocurando um clima que aliviasse seu mal-estar. O que havia de errado com ele? Quase tudo,aparentemente. Sua viso definhara a tal ponto que estava meio cego (o mdico o aconselharaa deixar de ler, o que para ele equivalia a deixar de respirar). Sofria de violentas dores decabea que o incapacitavam, confinando-o ao leito por dias, e em geral era um poo deindisposies fsicas e reclamaes. A coleo de medicamentos, elixires, plulas, tnicos,ps e poes que mantinha sobre a mesa colocam-no em posio nica, mesmo entre os

  • grandes filsofos hipocondracos. E no entanto esse foi o homem que concebeu a ideia desuper-homem. O elemento de compensao psicolgica presente nessa ideia no deve afast-la do lugar central que ocupa entre outras ideias suas mais aceitveis.

    O super-homem fez sua apario em Assim falou Zaratustra, longo poema ditirmbico,de gravidade e exacerbao quase insuportveis, cuja extrema falta de humor no amenizadapelas tentativas de ironia e leveza de chumbo do autor. Como Dostoievski e Hesse, no legvel seno para os adolescentes embora a experincia de tal obra nessa idade comfrequncia possa mudar sua vida. E nem sempre para pior. As ideias tolas so facilmenteidentificveis e o restante um antdoto que desafia muitas noes aceitas, exigindo de cadaum reflexo profunda e solitria. A filosofia, como tal, quase negligencivel. Mas asexortaes filosofia pensar por si mesmo so poderosas, tanto quanto as caracterizaesde nossa condio. Existe ainda algo como em cima e em baixo? No estaremos derivaatravs do nada infinito? ... No estar a noite com certeza sempre mais profunda se fechandoem torno de ns? No necessitaremos lanternas pela manh? Estamos ainda surdos ao rumordos coveiros cavando o tmulo de Deus? No sentimos o mau cheiro da putrefao divina? ...A coisa mais santa e poderosa do mundo sangrou at a morte sob as nossas facas ... Proezamaior jamais foi realizada e, graas a ela, qualquer um que venha depois de ns viver umahistria maior que qualquer outra vivida antes. Quase um sculo depois, os existencialistasfranceses comearam a expressar esses pensamentos em termos menos bombsticos eforam saudados como a vanguarda do pensamento moderno.

    Em suas interminveis viagens por spas e balnerios de clima ameno, Nietzsche foiapresentado por seu admirador Paul Re a uma mulher russa de vinte e um anos chamada LouSalom. Re e Nietzsche (separadamente e juntos) costumavam lev-la para longos passeios etentavam encher a cabea de Lou com suas ideias sobre filosofia. (Zaratustra foi apresentado aLou como o filho que nunca terei o que foi muito auspicioso para o jovem Zaratustra, noapenas pela ateno que seu nome pudesse ter atrado no recreio da escola.) Lou, Nietzsche eRe envolveram-se ento num esquema triangular inconcebvel para uma poca em queningum tinha um pingo de savoir-faire quanto a sexo. De incio os trs declararam que todosestudariam filosofia e viveriam juntos num mnage trois platnico. Depois, Re e Nietzsche(separadamente) declararam-se apaixonados por Lou e decidiram propor-lhe casamento.Infelizmente, Nietzsche cometeu o ridculo erro de pedir a Re que transmitisse a proposta aLou em seu nome. (Isso no invalida a reivindicao de Nietzsche de ter sido o maiorpsiclogo de seu tempo.) A melhor demonstrao sobre quem estava de fato no controle dessasituao oferecida por uma fotografia dos trs, tirada num estdio em Lucerna. Os doisvirgens emocionais (com trinta e oito e trinta e trs anos) esto atrelados a uma carroa, naqual se senta a verdadeira virgem de vinte e um anos, brandindo um chicote.

    Finalmente, os trs acharam-se incapazes de sustentar a grande farsa por mais tempo e sesepararam. Nietzsche ficou to desvairado que escreveu: Esta noite tomarei pio suficientepara enlouquecer. Mas por fim decidiu que Lou no merecia ser a me ou a irm do jovemZaratustra. (Lou chegou a ser uma das mulheres mais notveis de sua poca. Aps incorporaro sobrenome Andreas-Salom de seu marido de estimao (um professor alemo), exerceriaprofunda influncia sobre duas outras figuras de destaque naquele momento: mantendo um

  • caso com o grande poeta lrico alemo Rilke e desenvolvendo amizade ntima com o j idosoFreud.)

    Aps hibernar em Nice, Turim, Roma ou Menton, Nietzsche passava os veres a 1.500metros acima do mundo e mais acima ainda dos seres humanos em Sils Maria, uma aldeia beira de um lago no Engadine suo. Hoje, Sils Maria um pequeno e elegante balnerio (aapenas doze quilmetros da estrada para Saint-Moritz), mas ainda se pode ver o quartosimples onde Nietzsche costumava ficar e instalar seu ba de remdios. Ali as montanhas selevantam ngremes das margens do lago em direo ao macio Bernina, de 4.000 metros dealtitude, coberto de neve, que marca a fronteira com a Itlia. Atrs da casa, pode-se enveredarpelas trilhas remotas subindo a encosta da montanha, por onde Nietzsche costumava caminhare refletir sobre sua filosofia, fazendo pausas para anotar suas concluses em seus cadernos aolado de um solitrio rochedo escarpado ou uma corrente espumante. Parte da atmosfera dessaregio os picos remotos, as vistas ondulantes, o sentido de grandeza isolada penetra o tomde seus escritos. Quando se v onde Nietzsche desenvolveu grande parte de suas reflexes,alguns de seus pecados e virtudes tornam-se mais compreensveis.

    Na maior parte do tempo, Nietzsche levava uma vida de extremo isolamento, alugandoquartos baratos, trabalhando sem parar e comendo em restaurantes de preos mdicos aomesmo tempo que medicava, da melhor maneira possvel, suas alucinantes dores de cabea eas doenas que o debilitavam. No era incomum que passasse noites inteiras com nsia devmito e se sentisse invlido por trs ou quatro dias da semana. Alm disso, esse estado decoisas rapidamente se tornou permanente. No entanto, a cada ano produzia um livro deadmirvel qualidade. Obras como Aurora, A gaia cincia e Alm do bem e do mal contmcrticas soberbas da civilizao ocidental, de seus valores e sua psicologia, bem como de seusdilemas. Seu estilo permanece claro e expressa um mnimo de ideias incoerentes. Pode no tersido filosofia sistemtica, mas era com certeza um filosofar do mais alto nvel. Muitos (narealidade, a maioria) dos valores fundamentais do homem e da civilizao ocidentais foramtestados e considerados deficientes. Conforme ele mesmo manifestou em suas anotaesinditas: O cristianismo chega ao fim destrudo por sua prpria moralidade (que no podeser substituda), uma moralidade que acaba por se ver obrigada a negar at mesmo aexistncia do seu prprio Deus. O senso de veracidade, desenvolvido ao mximo pelocristianismo, deixa-se contaminar pelas falsidades e pela desonestidade de todas asinterpretaes crists do mundo e da histria. Salta de Deus a verdade para Tudo falso. Nunca houve melhor trabalho de demolio embora boa parte do trabalho dedemolio puramente filosfica j tivesse sido feito havia mais de um sculo por Hume. (Masera necessrio faz-lo mais uma vez por conta do ressurgimento dos sistemas metafsicosalemes.)

    Durante a dcada de 1880, Nietzsche continuou a trabalhar solitariamente, desconhecido eno lido, pressionando-se de maneira cada vez mais cruel medida que considerava suasolido extrema e sua falta de reconhecimento cada vez mais insuportveis. Em 1888, oerudito judeu dinamarqus George Brandes comeou a fazer palestras sobre a filosofia deNietzsche na Universidade de Copenhague. Infelizmente, j era tarde. Em 1888 concluiu nadamenos que quatro livros, e a loucura comeou a aparecer. Ele era um grande esprito e sabiadisso: era imperativo que o mundo o soubesse tambm. Em Ecce homo ele descreve Assim

  • falou Zaratustra como o mais elevado e mais profundo livro existente declarao quechega aos limites dos altmetros crticos, assim como da ingenuidade. Como se isso nobastasse, seguem-se captulos intitulados Por que sou to sbio, Por que escrevo to bonslivros e Por que sou um Destino, nos quais d conselhos a respeito do lcool, endossa ocacau sem gordura e elogia seus hbitos intestinais. O estilo bombstico e a autoabsoro deZaratustra reapareciam com uma vingana a mania.

    Em janeiro de 1889 chegou o fim. Teve um desmaio enquanto caminhava pela rua emTurim e, em lgrimas, lanou os braos ao redor do pescoo de um cavalo que acabara de serchicoteado pelo condutor de uma carruagem. Nietzsche foi levado a seu quarto, onde escreveucartes postais para Cosima Wagner (Eu te amo, Ariadne), para o rei da Itlia (Meuquerido Umberto ... estou mandando fuzilar todos os antissemitas) e para Jacob Burckhardt(assinando Dioniso). Burckhardt entendeu o que acontecia e passou o carto a um dosadmiradores mais prximos de Nietzsche, que foi imediatamente recolh-lo.

    Nietzsche estava ento clinicamente louco e jamais se recuperaria. Quase com certeza suadoena teria sido incurvel mesmo hoje. Foi provocada por excesso de trabalho, solido esofrimento mas a causa principal foi sfilis, j em estgio tercirio, que aparentementeacarreta paralisia mental. Aps curto perodo em um asilo, Nietzsche foi liberado e entregueaos cuidados da me. Era inofensivo agora, boa parte do tempo em estado catatnico, que oreduzia condio quase vegetal. Em seus momentos mais lcidos, parecia ter vaga ideia desua vida passada. Quando lhe davam um livro, observava: No escrevi eu tambm bonslivros?

    Aps a morte da me, em 1897, foi cuidado por sua irm Elizabeth Frster-Nietzsche. Eraa ltima pessoa que deveria ter sido encarregada dessa tarefa. Irm mais nova de Nietzsche,Elizabeth era casada com Bernard Frster, professor fracassado que se tornara notrioantissemita. Nietzsche o desprezava tanto como homem quanto por suas ideias. Frster tinhaorganizado uma colnia da raa ariana chamada Nueva Germania, no Paraguai, utilizandopequenos fazendeiros pobres da Saxnia. (Os remanescentes da Nueva Germania aindaexistem no Paraguai, onde a raa superior vive hoje em geral nas mesmas condies dosndios locais, virtualmente sem distino, exceto pelos cabelos louros.) Ao voltar Alemanhapara cuidar do irmo louco, Elizabeth decidiu transform-lo numa grande figura. Levou-o paraWeimar, por conta de suas elevadas associaes culturais com Goethe e Schiller, a fim deorganizar um arquivo Nietzsche. Em seguida, comeou a adulterar as anotaes inditas doirmo, inserindo nelas ideias antissemitas e observaes elogiosas sobre si prpria. Essasanotaes foram publicadas com o ttulo de Vontade de potncia , texto desde ento depuradode todo esse lixo pelo grande especialista nietzschiano Walter Kaufmann, para chegar ao que incontestavelmente a maior obra de Nietzsche.

    Ele comea por declarar a condio da era vindoura: O ceticismo acerca da moralidade decisivo. O fim da interpretao moral do mundo, no mais sancionada depois de ter tentadoescapar para alm do limite metafsico, conduz ao niilismo. Tudo carece de sentido (aimpossibilidade de defesa da interpretao crist do mundo, na qual se investiu enormeparcela de energia, desperta a suspeita de que todas as interpretaes do mundo so falsas).Isso parece tornar a filosofia como um todo suprflua, mas Nietzsche continua, agora de

  • maneira divertida: Todo o aparato do conhecimento um aparato de abstrao esimplificao direcionado no ao conhecimento, mas posse das coisas: fim e meiosesto to distantes de sua natureza essencial como esto os conceitos. Prossegue definindonosso conhecimento: Todos os nossos rgos do conhecimento e nossos sentidos sodesenvolvidos to-somente como meios de preservao e crescimento. A confiana na razo eem suas categorias, na dialtica, a valorizao da lgica, portanto, somente comprova suautilidade para a vida, comprovada pela experincia no que alguma coisa seja verdadeira.

    Suas observaes psicolgicas permanecem perspicazes como sempre, s que agoraconduzem de aperus a intuies fundamentais (e perigosas). O prazer surge quando h osentimento de potncia. A felicidade repousa na conscincia triunfante de potncia e vitria. Oprogresso se baseia no fortalecimento da espcie, na aptido para o uso enrgico da vontade.Todo o resto um perigoso mal-entendido.

    Nietzsche finalmente chegou ao sculo XX, cuja natureza ele previra to bem. Pequena epattica figura plida com enorme bigode militar, com pouca ou nenhuma ideia de quem era oude onde estava, terminou morrendo a 25 de agosto de 1900. Nesse momento, suas obrascomeavam a conquistar a aclamao que aguardara por toda a sua vida, e sua famarapidamente se difundiu.

  • PRINCIPAIS CONCEITOS FILOSFICOS. . . . . . . . . . .

    A filosofia de Nietzsche foi escrita principalmente sob a forma de aforismos, e no metdica. Sua atitude permanece, em geral, coerente, mas seu pensamento se desenvolveconstantemente em diferentes direes. Isso significa que ele parece se contradizer ou se abrira interpretaes conflitantes. Sua filosofia feita de intuies penetrantes e no constitui umsistema. No entanto, certas palavras e conceitos so bastante recorrentes em sua obra e nelesse percebem os elementos de um sistema.

    A vontade de potncia

    Este o principal conceito da filosofia de Nietzsche. Ele o desenvolveu a partir de duasfontes principais: Schopenhauer e os gregos antigos. Schopenhauer adotara a ideia oriental deque o universo era guiado por uma grande fora cega. Nietzsche reconheceu a fora dessaideia e a adaptou a termos humanos. Em seus estudos sobre os gregos antigos, descobriu que afora condutora de sua civilizao era antes a busca de poder que de algo til ou de benefcioimediato.

    Nietzsche concluiu que a humanidade era impelida por uma vontade de potncia. Oimpulso bsico de todos os nossos atos poderiam ser rastreados a partir dessa fonte nica.Com frequncia esse impulso se transformava em relao sua expresso inicial, chegava a seperverter, mas estava sempre presente. O cristianismo surgiu para pregar exatamente ooposto, com as ideias de humildade, amor fraterno e compaixo. Mas, na realidade, nopassava de uma perverso sutil da vontade de potncia. O cristianismo era uma religiooriunda da escravido na era romana e jamais perdeu sua mentalidade de escravo. Essa era avontade de potncia dos escravos, ao invs da mais legtima vontade de potncia dospoderosos.

    A vontade de potncia de Nietzsche provou ser ferramenta de grande utilidade para elequando comeou a analisar a motivao humana. Atos que anteriormente pareciam nobres, oulouvveis, revelavam-se agora decadentes ou doentios.

    Mas Nietzsche deixou de responder a duas objees principais. Se a vontade de potnciaera o nico instrumento de medida, como podiam os atos que em aparncia no seguiam suasinjunes imediatas ser outra coisa que no o mal? E dizer que o santo exercia sua vontade depotncia sobre si mesmo era sem dvida tornar o conceito to flexvel a ponto de convert-loem algo quase sem sentido. Em segundo lugar, sua noo da vontade de potncia era circular:se a tentativa de Nietzsche de compreender o universo se inspirava na vontade de potncia,certamente o conceito de vontade de potncia se inspirava na tentativa de Nietzsche decompreender o universo.

    Mas a ltima palavra sobre esse conceito penetrante porm perigoso permaneceria comNietzsche: A forma desse desejo de potncia se modificou ao longo dos sculos, mas sua

  • fonte ainda o mesmo vulco ... O que antes fazamos por amor a Deus fazemos agora poramor ao dinheiro ... isso que no momento confere a mais elevada sensao de potncia.

    O eterno retorno

    Segundo Nietzsche, deveramos agir como se a vida que vivemos continuasse a se repetir parasempre. Cada momento vivido ter de ser revivido repetidas vezes at a eternidade.

    Essa em essncia uma fbula de moral metafsica, mas Nietzsche insistiu em trat-lacomo se nela acreditasse. Ele a descreveu como sua frmula para a grandeza de um serhumano.

    Essa nfase suprema e incrivelmente romntica sobre a importncia do momento pretendeser uma exortao a que vivamos nossas vidas ao mximo. Como ideia potica passageira,tem alguma fora. Como ideia filosfica ou moral, essencialmente superficial. No resiste reflexo. O clich: Viva a vida ao mximo pelo menos significa alguma coisa, embora vaga.A ideia do eterno retorno, quando bem examinada, torna-se sem sentido. Temos a lembranadessas vidas recorrentes? Se tivssemos, certamente faramos mudanas. Se no temos, elasso irrelevantes. Mesmo uma imagem potica sedutora e esta o deve ser maissubstancial se pretende ser considerada mais do que mera poesia e usada como um princpio,como pretendia Nietzsche.

    O super-homem

    O super-homem de Nietzsche no tinha absolutamente nada a ver com a figura de capa que voapelos cus das estrias em quadrinhos americanas. Talvez tivesse sido melhor se o heri deNietzsche tivesse adotado alguns dos valores de seu homnimo das revistas. Clark Kent pelomenos tinha uma moral ingnua, que tentava impor num mundo rude e veloz, de bandidos emocinhos. O super-homem de Nietzsche no tinha afinidade com assuntos constrangedorescomo moral. Sua nica moral era a vontade de potncia. No entanto, curiosamente, asdescries de Nietzsche de seu super-homem mostram-no habitando um mundo to repleto desimplicidade ingnua como qualquer outro das estrias em quadrinhos.

    O prottipo do super-homem de Nietzsche era Zaratustra indivduo extremamente srio emaante, cujo comportamento exibia sintomas psicticos perigosos. Admite-se que a histriade Zaratustra foi concebida como parbola, mas parbola de qu? Parbola docomportamento. As parbolas que Cristo pregou no Sermo da Montanha parecem infantis esimples mas, caso se reflita sobre elas, no so nem uma coisa nem outra. So profundas. Aparbola de Zaratustra infantil e simples, e, caso se reflita sobre ela, continua a s-lo.Apesar disso, sua mensagem tem grande alcance. Nietzsche prega nada menos que a destruiodos valores cristos: cada indivduo deve assumir total responsabilidade por suas prpriasaes num mundo sem deus. Deve forjar seus prprios valores em plena liberdade. No existesano, divina ou de outra natureza, para seus atos. Nietzsche previu que esta seria a condio

  • do sculo XX. Infelizmente, ele tambm prescreveu a maneira de comportar-nos nessascondies. Os que seguissem suas receitas (as atitudes arcaicas e tediosas de Zaratustra)tornar-se-iam super-homens.

    Lamentavelmente, o desenvolvimento do super-homem de Nietzsche superaria a figura daestria em quadrinhos que ele merecia ser. Em Assim falou Zaratustra, Nietzsche anuncia(atravs do seu heri): O que o macaco para o homem? Uma figura cmica ou um estorvo.O homem parecer o mesmo diante do super-homem. Em outra parte, proclama: O objetivoda humanidade no pode residir em seu fim, mas em seus espcimes mais elevados. Nessecontexto, ele comea por, vaga e tortuosamente, vincular o super-homem a noes comonobreza e sangue. Contudo, no falava em termos raciais. Em determinado ponto refere-seao Programa de Gotha: uma priso para burros e em outra ocasio anuncia: Quando falo dePlato, Pascal, Spinoza e Goethe, sei ento que seu sangue circula no meu. Um grego, umfrancs, um judeu portugus e um alemo todos ancestrais sanguneos do super-homem,segundo Nietzsche.

  • POSFCIO. . . . . . . . . . .

    Nietzsche sofreu duas mortes. Seu esprito morreu em 1889, seu corpo em 1900. Entre essasdatas, sua obra adquiriu vida prpria lanando-o da obscuridade quase total para aeminncia intelectual mundial. Nietzsche certamente consideraria isso no mais do que lhe eradevido, mas sua fama excederia at mesmo suas prprias fantasias megalomanacas. Estendeu-se muito alm do campo da filosofia em grande parte pela grande atrao que exercia sobreos escritores. A lista de figuras relevantes do sculo XX influenciadas por Nietzsche incluiYeats, Strindberg, ONeill, Shaw, Rilke, Mann, Conrad, Freud e incontveis figuras menoresque se achavam simplesmente sufocadas por suas ideias. Tratava-se de uma filosofiadiferente: possua estilo e lucidez. Na verdade, era uma filosofia que se podia ler. E o fato deela ser escrita em aforismos significava que tambm se tinha tempo para l-la (ou trechosdela).

    Esse era o problema. Atualmente muitos leem apenas trechos de Nietzsche. Ideias comovontade de potncia e super-homem tornaram-se lugares-comuns e amplamente malutilizadas. O super-homem nietzschiano foi logo apropriado pelo lobby racista. Osantissemitas, depois os fascistas, comearam a pinar pequenos trechos da obra de Nietzsche,independentemente do contexto. A impreciso mesma da filosofia de Nietzsche passou adestru-la.

    A filosofia de Nietzsche foi seriamente desacreditada em consequncia de sua grotescautilizao durante a primeira metade do sculo XIX. Por essa razo quase impossvel falar demuitas de suas ideias da forma que ele pretendeu (principalmente suas ideias sobre o super-homem, sobre disciplina, sobre raa e outras similares). A liberdade potica de boa partede seus escritos deixou-as por demais vulnerveis a disfarces medonhos. Felizmente eletambm deixou suas observaes sobre esses perigosos tpicos abertas ao ridculo, talvez amais adequada reao da contemporaneidade. No entanto, vale a pena lembrar que Nietzscheformulou suas concluses sobre o racismo, o antissemitismo e assuntos afins de maneiraperfeitamente clara. Como ele prprio observa: A homogeneizao do homem europeu omaior processo que no pode ser obstrudo: dever-se-ia at mesmo aceler-lo. Quando osnazistas tentaram coopt-lo como seu filsofo oficial, e Hitler beijou a mo de ElizabethFster-Nietzsche na porta do Arquivo Nietzsche em Weimar, foram os nazistas que penetraramos domnios da loucura maior, no a filosofia de Nietzsche.

  • CITAES-CHAVE. . . . . . . . . . .

    Aforismos e frases lapidares

    Deus est morto.Viva perigosamente.Qual o melhor remdio? Vitria.

    Aurora, 571

    No existem fenmenos morais, apenas uma interpretao moral dos fenmenosAlm do bem e do mal, 108

    A melhor cura para o amor ainda aquele remdio eterno: amor retribudo.Aurora, Livro IV, 415

    As convices so inimigas mais perigosas da verdade do que as mentiras.Humano, demasiado humano,

    vol.1, seo 9, 483

    Aqueles que compreendem alguma coisa em sua dimenso mais profunda, raramentepermanecem fiis a ela para sempre. Porque expuseram essas profundezas clara luz do dia; eo que l se encontra no em geral agradvel de ver.

    Humano, demasiado humano,ibid., 489

    At os mais corajosos raramente tm a coragem para aquilo que realmente sabem.Crepsculo dos deuses:

    Mximas e Setas, 2.1

    Nesse ponto Nietzsche to destemido que demonstra no temer nem mesmo ser atingido porseus prprios golpes:

    Opinies pblicas, cio privado.

    Filosofar

    O que se segue um exemplo da alta qualidade do filosofar permanente de Nietzsche. Isolanossa noo de verdade e o que ela significa (utilizando no processo um argumentototalmente verdadeiro). Chega a algumas intuies originais, algumas especialmente

  • oportunas em virtude do que fizemos, e continuamos a fazer, a ns mesmos e ao planeta emnome da cincia. As implicaes de sua argumentao permanecem to devastadorasquanto se mostravam ento.

    O que vem a ser esta vontade absoluta de verdade? Que sabeis vs a priori do carter daexistncia para poder decidir que a desconfiana absoluta apresenta mais vantagens do que aabsoluta confiana? E se ambas so necessrias, uma grande confiana e uma grandedesconfiana, onde ir a cincia procurar essa convico absoluta, essa f que lhe serve debase e que diz que a verdade importa mais do que qualquer outra coisa, incluindo qualqueroutra convico? Essa convico de base no se pode formar se o verdadeiro e o noverdadeiro se afirmaram sempre e esse o caso! teis tanto um como o outro. Portanto, af na cincia, essa f que existe de fato de uma maneira incontestvel, s pode ter sua origemnum clculo utilitrio; deve ter-se formado, pelo contrrio, apesar do perigo e da inutilidadeda vontade da verdade, apesar do perigo e da inutilidade da verdade de qualquermaneira, perigo e inutilidade que a vida demonstra sem cessar.

    Querer a verdade no significa, portanto, no querer deixar-se enganar, mas e noh outra escolha no querer enganar os outros nem a si prprio, o que nos leva para odomnio moral. Perguntemo-nos seriamente com efeito: Por que no queremos enganar?,sobretudo se parece bem esse o caso! que a vida seja vivida em vista da aparncia,quero dizer que tenha como objetivo extraviar, iludir, dissimular, ofuscar, cegar, e se, poroutro lado, de fato, ela se mostrou sempre sob a sua melhor face do lado dos menosescrupulosos trapaceiros. Interpretado timidamente, esse desejo de no enganar pode passarpor um quixotismo, uma pequena sem-razo de entusiasta; mas tambm possvel que sejaalguma coisa pior: um princpio destruidor, inimigo da vida Querer o verdadeiro poderiaser, secretamente, querer a morte. De modo que o porqu da cincia se liga a um problemamoral: por que, de uma maneira geral, qualquer moral, quando a vida, a natureza, a histriaso imorais? Mas ter-se- desde j compreendido onde quero chegar: numa f metafsicaque assenta ainda a nossa f na cincia; pesquisadores do conhecimento, mpios inimigos dametafsica, ns prprios, ainda ateamos fogo na fogueira acesa por milenria crena, pela fcrist, crena que foi tambm a de Plato, para quem o verdadeiro se identifica com Deus etoda a verdade divina.

    Gaia cincia, livro V, seo 344

    Segue-se uma das prescries mais sbrias e, em mais de um aspecto, mais reveladoras deNietzsche para a super-humanidade.

    O que nos torna heroicos? Ir ao mesmo tempo para alm da sua maior dor e da sua maioresperana.

    Em que tens f? Nisto: em que necessrio determinar de novo o peso de todas ascoisas.

    O que diz a tua conscincia? Deves transformar-te no homem que s.Onde se encontra o teu maior perigo? Na piedade.O que amas nos outros? As minhas esperanas.

  • A quem chamas mau? quele que quer envergonhar sempre.Que encontras de mais humano? Poupar a vergonha a algum.Qual a marca da liberdade realizada No mais corar de si prprio.

    A gaia cincia, livro III,268-75

    Pensar perigosamente

    De tudo o que se escreve, aprecio somente o que algum escreve com seu prprio sangue.Escreve com sangue; e aprenders que o sangue esprito.

    Quero ter duendes a meu redor, porque sou corajoso. A coragem que afugenta os fantasmascria seus prprios duendes: a coragem quer rir.

    Eu j no sinto do mesmo modo que vs: essa nuvem que vejo debaixo de mim, essa coisanegra e pesada , justamente, a vossa nuvem de temporal.

    Vs olhais para cima, quando aspirais a elevar-vos. E eu olho para baixo, porque j meelevei.

    Quem de vs pode, ao mesmo tempo, rir e sentir-se elevado?Aquele que sobe ao monte mais alto, esse ri-se de todas as tragdias, falsas ou

    verdadeiras.Corajosos, despreocupados, escarninhos, violentos assim nos quer a sabedoria: ela

    mulher e ama somente quem guerreiro.Assim falou Zaratustra, I,

    Do ler e escrever

    O homem mau assim falaram, para meu consolo, todos os sbios. Oxal isso fosseverdade ainda hoje! Pois o mal a melhor fora do homem.

    O homem deve tornar-se melhor e pior isto ensino eu. O pior que tudo necessriopara o maior bem do super-homem.

    Sofrer e tomar sobre si os pecados do homem talvez fosse bom para aquele pregador dopovinho. Eu, porm, me rejubilo com o grande pecado como a minha grande consolao.

    Assim falou Zaratustra, V,Do homem superior, 5

    O super-homem Zaratustra canta as alegrias do ardor solitrio e a perspectiva de sercapaz de fazer tudo de novo. (O anel do retorno refere-se doutrina do eterno retorno deNietzsche, que prope que nossas vidas se repetem eternamente.) Desnecessrio dizer, essetrecho involuntariamente hilariante e autorrevelador foi escrito visando a uma plateia pr-freudiana.

    Se algum dia bebi, a largos sorvos, do espumante jarro, rico de especiarias, em que todas ascoisas esto bem misturadas

  • Se minha mo, algum dia, deitou o mais distante no mais prximo e fogo no esprito eprazer na dor e o que h de mais malvado no que h de mais bondoso

    Se sou eu mesmo um gro daquele sal redentor que faz as coisas, no jarro, misturarem-sebem

    Pois h um sal que liga o bem com o mal; e tambm o pior dos males especiaria digna dearomatizar e, por fim, fazer transbordar a espuma

    Oh, como no deveria eu almejar a eternidade e o nupcial anel dos anis o anel doretorno?

    Nunca encontrei, ainda, a mulher da qual desejaria ter filhos, a no ser esta mulher queamo: pois eu te amo, eternidade!

    Pois eu te amo, eternidade!Assim falou Zaratustra, III,

    Os sete selos, 4

    Quando desce de regies (e linguagem) to grandiosas, Nietzsche demonstra que capazdos argumentos mais sucintos e penetrantes.

    A coisa-em-si um conceito sem sentido. Se eu remover todas as relaes, todas aspropriedades, todas as atividades de alguma coisa, nada resta. A concretude s foiinventada por ns para se adequar s exigncias da lgica. Em outras palavras, com o objetivode definir, de comunicar. (A fim de juntar a multiplicidade das relaes, das propriedades,das atividades.)

    Vontade de potncia, 558

    Verdade: segundo minha maneira de pensar, no significa necessariamente a anttese doerro, porm nos casos mais fundamentais apenas a postura de vrios erros em relao uns comos outros. Talvez um seja mais antigo, mais profundo que outro, inextirpvel at, na medidaem que a entidade orgnica das nossas espcies no poderia viver sem ele. Outros erros nonos tiranizam dessa forma como condies de vida, mas ao contrrio, quando comparados aesses tiranos, podem ser isolados e refutados.

    Uma hiptese irrefutvel por que deveria por essa razo ser verdadeira? Essaproposio pode perfeitamente insultar os lgicos, que colocam as suas limitaes como aslimitaes das coisas. Mas h muito tempo declarei guerra a esse otimismo dos lgicos.

    Vontade de potncia, 535

    Surpreendentemente, tendo em vista seus ataques ao cristianismo, Nietzsche tambmafirma:

    A continuao do ideal cristo altamente desejvel mesmo para aqueles ideais que queremse colocar ao lado dele e talvez acima dele eles precisam de oponentes, oponentes fortes, sepretenderem tornar-se fortes.

    Vontade de potncia, 361

  • CRONOLOGIA DE DATAS SIGNIFICATIVAS DA FILOSOFIA. . . . . . . . . . .

    sc. VIa.C.

    Incio da filosofia ocidental com Tales de Mileto.

    fim dosc. VIa.C.

    Morte de Pitgoras.

    399a.C.

    Scrates condenado morte em Atenas.

    c.387a.C.

    Plato funda a Academia em Atenas, a primeira universidade.

    335a.C.

    Aristteles funda o Liceu em Atenas, escola rival da Academia.

    324d.C.

    O imperador Constantino muda a capital do Imprio Romano para Bizncio.

    400d.C.

    Santo Agostinho escreve as Confisses. A filosofia absorvida pela teologiacrist.

    410d.C.

    Roma saqueada pelos visigodos.

    529d.C.

    O fechamento da Academia em Atenas, pelo imperador Justiniano, marca o fimda era greco-romana e o incio da Idade das Trevas.

    meadosdo sc.XIII

    Toms de Aquino escreve seus comentrios sobre Aristteles. Era daescolstica.

    1453 Queda de Bizncio para os turcos, fim do Imprio Bizantino.1492 Colombo chega Amrica. Renascimento em Florena e renovao do interesse

    pela aprendizagem do grego.1543 Coprnico publica De revolutionibus orbium caelestium (Sobre as revolues

    dos orbes celestes), provando matematicamente que a Terra gira em torno doSol.

    1633 Galileu forado pela Igreja a abjurar a teoria heliocntrica do universo.1641 Descartes publica as Meditaes, incio da filosofia moderna.1677 A morte de Spinoza permite a publicao da tica.1687 Newton publica os Principia, introduzindo o conceito de gravidade.1689 Locke publica o Ensaio sobre o entendimento humano. Incio do empirismo.1710 Berkeley publica os Princpios do conhecimento humano, levando o empirismo

    a novos extremos.

  • 1716 Morte de Leibniz.1739-40

    Hume publica o Tratado sobre a natureza humana, conduzindo o empirismo aseus limites lgicos.

    1781 Kant, despertado de seu sono dogmtico por Hume, publica a Crtica darazo pura. Incio da grande era da metafsica alem.

    1807 Hegel publica A fenomenologia do esprito: apogeu da metafsica alem.1818 Schopenhauer publica O mundo como vontade e representao, introduzindo a

    filosofia indiana na metafsica alem.1889 Nietzsche, aps declarar que Deus est morto, sucumbe loucura em Turim.1921 Wittgenstein publica o Tractatus logicophilosophicus, advogando a soluo

    final para os problemas da filosofia.dcadade 1920

    O Crculo de Viena apresenta o positivismo lgico.

    1927 Heidegger publica Sein und Zeit (Ser e tempo), anunciando a ruptura entre afilosofia analtica e a continental.

    1943 Sartre publica Ltre et le nant (O ser e o nada), avanando no pensamento deHeidegger e instigando o surgimento do existencialismo.

    1953 Publicao pstuma de Investigaes filosficas, de Wittgenstein. Auge daanlise lingustica.

  • C I E N T I S T A Sem 90 minutos

    . . . . . . . .por Paul Strathern

    Arquimedes e a alavanca em 90 minutosBohr e a teoria quntica em 90 minutosCrick, Watson e o DNA em 90 minutos

    Curie e a radioatividade em 90 minutosDarwin e a evoluo em 90 minutos

    Einstein e a relatividade em 90 minutosGalileu e o sistema solar em 90 minutos

    Hawking e os buracos negros em 90 minutosNewton e a gravidade em 90 minutos

    Oppenheimer e a bomba atmica em 90 minutosPitgoras e seu teorema em 90 minutosTuring e o computador em 90 minutos

  • Ttulo original:Nietzsche in 90 minutes

    Traduo autorizada da primeira edio inglesa,publicada em 1996 por Constable,

    de Londres, Inglaterra

    Copyright 1996, Paul Strathern

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    ISBN: 978-85-378-0396-7

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