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para todas as explicações metafísicas do único mundo que conhecemos, com que olhos veríamos homens e coisas? Isso podemos cogitar, é útil fazê-lo, ainda que se rejeite a questão de Kant e Schopenhauer terem cientificamente provado alguma coisa metafísica. Pois, segundo a probabilidade histórica, é bem possível que um dia os homens se tornem geralmente céticos nesse ponto; a questão será então: que forma terá a sociedade humana, sob a influência de um tal modo de pensar? A prova científica de qualquer mundo metafísico é tão difícil, talvez, que a humanidade não mais se livrará de alguma desconfiança em relação a ela. 18 E quando temos desconfiança em relação à metafísica, de modo geral as conseqüências são as mesmas que resultariam se ela fosse diretamente refutada e não mais nos fosse lícito acreditar nela. A questão histórica relativa a um modo de pensar não metafísico da humanidade continua a mesma em ambos os casos. 22. Descrença no "monumentum aere perennius" [monumento mais duradouro que o bronze]. 19 — Uma desvantagem essencial trazida pelo fim das convicções 20 metafísicas é que o indivíduo atenta demasiadamente para seu curto período de vida e não sente maior estímulo para trabalhar em instituições duráveis, projetadas para séculos; ele próprio quer colher a fruta da árvore que planta, e portanto não gosta mais de plantar árvores que exigem um cuidado regular durante séculos, destinadas a sombrear várias seqüências de gerações. Pois as convicções metafísicas levam a crer que nelas se encontra o fundamento último e definitivo sobre o qual se terá de assentar e construir todo o futuro da humanidade; o indivíduo promove sua salvação quando, por exemplo, funda uma igreja ou um mosteiro, ele acha que isto lhe será creditado e recompensado na eterna vida futura da alma, que é uma obra pela eterna salvação da alma. — Pode a ciência despertar uma tal crença nos seus resultados? O fato é que ela requer a dúvida e a desconfiança, como os seus mais fiéis aliados; apesar disso, com o tempo a soma de verdades intocáveis, isto é, sobreviventes a todas as tormentas do ceticismo, a toda decomposição, pode se tornar tão grande (na dietética da saúde, por exemplo), que com base nisso haja a decisão de empreender obras "eternas". Por enquanto, o contraste entre nossa agitada, efêmera existência e o longo sossego das eras metafísicas ainda é muito forte, pois os dois períodos se acham ainda muito próximos um do outro; o indivíduo mesmo atravessa hoje demasiadas evoluções internas e externas para ousar se estabelecer duradoura e definitivamente, ainda que seja pelo tempo de sua vida. Um homem totalmente moderno que queira, por exemplo, construir uma casa para si, sente como se quisesse se emparedar vivo num mausoléu. 23. A era da comparação. — Quanto menos os homens estiverem ligados pela tradição, tanto maior será o movimento interior dos motivos, e tanto maior, correspondentemente, o desassossego exterior, a interpenetração dos homens, a polifonia dos esforços. Para quem ainda existe, atualmente, a rígida obrigação de ligar a si e a seus descendentes a um lugar? Para quem ainda existe algum laço rigoroso? Assim como todos os estilos de arte são imitados um ao lado do outro, assim também

NIETZSCHE, Friedrich - Humano, Demasiado Human

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F. Nietzsche

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  • para todas as explicaes metafsicas do nico mundo queconhecemos, com que olhos veramos homens e coisas? Issopodemos cogitar, til faz-lo, ainda que se rejeite a questo deKant e Schopenhauer terem cientificamente provado alguma coisametafsica. Pois, segundo a probabilidade histrica, bem possvelque um dia os homens se tornem geralmente cticos nesse ponto; aquesto ser ento: que forma ter a sociedade humana, sob ainfluncia de um tal modo de pensar? A prova cientfica dequalquer mundo metafsico j to difcil, talvez, que ahumanidade no mais se livrar de alguma desconfiana em relaoa ela.18 E quando temos desconfiana em relao metafsica, demodo geral as conseqncias so as mesmas que resultariam se elafosse diretamente refutada e no mais nos fosse lcito acreditarnela. A questo histrica relativa a um modo de pensar nometafsico da humanidade continua a mesma em ambos os casos.

    22. Descrena no "monumentum aere perennius" [monumentomais duradouro que o bronze].19 Uma desvantagem essencialtrazida pelo fim das convices20 metafsicas que o indivduoatenta demasiadamente para seu curto perodo de vida e no sentemaior estmulo para trabalhar em instituies durveis, projetadaspara sculos; ele prprio quer colher a fruta da rvore que planta, eportanto no gosta mais de plantar rvores que exigem um cuidadoregular durante sculos, destinadas a sombrear vrias seqncias degeraes. Pois as convices metafsicas levam a crer que nelas seencontra o fundamento ltimo e definitivo sobre o qual se ter deassentar e construir todo o futuro da humanidade; o indivduopromove sua salvao quando, por exemplo, funda uma igreja ouum mosteiro, ele acha que isto lhe ser creditado e recompensadona eterna vida futura da alma, que uma obra pela eterna salvaoda alma. Pode a cincia despertar uma tal crena nos seusresultados? O fato que ela requer a dvida e a desconfiana,como os seus mais fiis aliados; apesar disso, com o tempo a somade verdades intocveis, isto , sobreviventes a todas as tormentasdo ceticismo, a toda decomposio, pode se tornar to grande (nadiettica da sade, por exemplo), que com base nisso haja a decisode empreender obras "eternas". Por enquanto, o contraste entrenossa agitada, efmera existncia e o longo sossego das erasmetafsicas ainda muito forte, pois os dois perodos se achamainda muito prximos um do outro; o indivduo mesmo atravessahoje demasiadas evolues internas e externas para ousar seestabelecer duradoura e definitivamente, ainda que seja pelo tempode sua vida. Um homem totalmente moderno que queira, porexemplo, construir uma casa para si, sente como se quisesse seemparedar vivo num mausolu.

    23. A era da comparao. Quanto menos os homensestiverem ligados pela tradio, tanto maior ser o movimentointerior dos motivos, e tanto maior, correspondentemente, odesassossego exterior, a interpenetrao dos homens, a polifoniados esforos. Para quem ainda existe, atualmente, a rgidaobrigao de ligar a si e a seus descendentes a um lugar? Paraquem ainda existe algum lao rigoroso? Assim como todos osestilos de arte so imitados um ao lado do outro, assim tambm

  • todos os graus e gneros de moralidade, de costumes e de culturas. Uma era como a nossa adquire seu significado do fato de nelapoderem ser comparadas e vivenciadas, uma ao lado da outra, asdiversas concepes do mundo, os costumes, as culturas; algo queantes, com o domnio sempre localizado de cada cultura, no erapossvel, em conformidade com a ligao de todos os gneros deestilo ao lugar e ao tempo. Agora uma intensificao do sentimentoesttico escolher definitivamente entre as tantas formas que seoferecem comparao; ela deixar perecer a maioria ou seja,todas as que forem rejeitadas por este sentimento. Hoje ocorreigualmente uma seleo nas formas e hbitos da moralidadesuperior, cujo objetivo no pode ser outro seno o ocaso dasmoralidades inferiores. a era da comparao! este seu orgulho mas, como justo, tambm seu sofrimento. No tenhamosmedo desse sofrimento! Vamos, isto sim, compreender tograndemente quanto possvel a tarefa que nos imposta pela era: aposteridade nos abenoar por isso uma posteridade que sesaber tanto acima das originais culturas nacionais fechadas quantoda cultura da comparao, mas que olhar com gratido, comovenerveis antigidades, para ambas as formas de cultura.

    24. Possibilidade do progresso . Quando um estudioso dacultura antiga jura no mais lidar com pessoas que crem noprogresso, ele tem razo. Pois a cultura antiga deixou para trs suagrandeza e seus bens, e a educao histrica nos obriga a admitirque ela jamais recuperar o frescor; preciso uma estupidezintolervel ou um fanatismo igualmente insuportvel para negarisso. Mas os homens podem conscientemente decidir sedesenvolver rumo a uma nova cultura, ao passo que antes sedesenvolviam inconsciente e acidentalmente: hoje podem criarcondies melhores para a procriao dos indivduos, suaalimentao, sua educao, sua instruo, podem economicamentegerir a Terra como um todo, ponderar e mobilizar as foras dosindivduos umas em relao s outras. Essa nova cultura conscientemata a antiga, que, observada como um todo, teve uma vidainconsciente de animal e vegetal; mata tambm a desconfianafrente ao progresso ele possvel. Quero dizer: precipitado equase absurdo acreditar que o progresso deva necessariamenteocorrer; mas como se poderia negar que ele seja possvel? Poroutro lado, um progresso no sentido e pela via da cultura antiga no sequer concebvel. Se a fantasia romntica usa tambm a palavra"progresso" para seus objetivos (por exemplo, para as originaisculturas nacionais fechadas), de qualquer modo toma essa imagemdo passado; seu pensamento e sua imaginao no tm qualqueroriginalidade nesse campo.

    25. Moral privada e moral mundial. Aps o fim da crenade que um deus dirige os destinos do mundo e, no obstante asaparentes sinuosidades no caminho da humanidade, a conduzmagnificamente sua meta, os prprios homens devem estabelecerpara si objetivos ecumnicos, que abranjam a Terra inteira. A antigamoral, notadamente a de Kant, exige do indivduo aes que sedeseja serem de todos os homens: o que algo belo e ingnuo;como se cada qual soubesse, sem dificuldades, que procedimento

  • beneficiaria toda a humanidade, e portanto que aes seriamdesejveis; uma teoria como a do livre-comrcio, pressupondoque a harmonia universal tem que produzir-se por si mesma,conforme leis inatas de aperfeioamento. Talvez uma futura visogeral das necessidades da humanidade mostre que no absolutamente desejvel que todos os homens ajam do mesmomodo, mas sim que, no interesse de objetivos ecumnicos,deveriam ser propostas, para segmentos inteiros da humanidade,tarefas especiais e talvez ms, ocasionalmente. Em todo caso,para que a humanidade no se destrua com um tal governo globalconsciente, deve-se antes obter, como critrio cientfico paraobjetivos ecumnicos, um conhecimento das condies da culturaque at agora no foi atingido. Esta a imensa tarefa dos grandesespritos do prximo sculo.

    26. A reao como progresso . De vez em quando surgemespritos speros, violentos e arrebatadores, e no entanto atrasados,que conjuram novamente uma fase passada da humanidade: elesservem para provar que as tendncias novas a que se opem noso ainda bastante fortes, que ainda lhes falta algo: de outra maneiraelas resistiriam mais a esses conjuradores. A Reforma de Lutero,por exemplo, testemunha que em seu sculo todos os movimentosda liberdade de esprito eram ainda incertos, frgeis, juvenis; acincia ainda no podia levantar a cabea. O Renascimento inteiroaparece como uma primavera precoce, quase apagada novamentepela neve. Mas tambm em nosso sculo a metafsica deSchopenhauer provou que mesmo agora o esprito cientfico no ainda forte o bastante; assim, apesar de todos os dogmas cristosterem sido h muito eliminados, toda a concepo do mundo epercepo do homem crist e medieval pde ainda celebrar umaressurreio na teoria de Schopenhauer. Muita cincia ressoa nasua teoria, mas no a cincia que a domina, e sim a velha econhecida "necessidade metafsica". Sem dvida, um dos grandes einestimveis benefcios que nos vm de Schopenhauer que eleobriga nossa sensibilidade a retornar por um momento a formasantigas e potentes de ver o mundo e os homens, s quais nenhumoutro caminho nos levaria to facilmente. O ganho para a histria ea justia muito grande: creio que ningum hoje conseguiriafacilmente, sem a ajuda de Schopenhauer, fazer justia aocristianismo e seus parentes asiticos: o que impossvel,sobretudo, partindo do terreno do cristianismo existente. Somenteaps esse grande xito da justia, somente aps termos corrigido,num ponto to essencial, a concepo histrica que a era doIluminismo trouxe consigo, poderemos de novo levar adiante abandeira do Iluminismo a bandeira com os trs nomes: Petrarca,Erasmo, Voltaire. Da reao fizemos um progresso.

    27. Substituto da religio. Cremos dizer algo de bom sobreuma filosofia, quando a apresentamos como substituto da religiopara o povo. De fato, na economia espiritual so necessrios,ocasionalmente, crculos de idias intermedirios; de modo que apassagem da religio para a concepo cientfica um saltoviolento e perigoso, algo a ser desaconselhado. Neste sentido justificado aquele louvor. Mas deveramos tambm aprender, afinal,

  • que as necessidades que a religio satisfez e que a filosofia deveagora satisfazer no so imutveis; podem ser enfraquecidas eeliminadas. Pensemos, por exemplo, na misria crist da alma, nolamento sobre a corrupo interior, na preocupao com a salvao conceitos oriundos apenas de erros da razo, merecedores node satisfao, mas de destruio. Uma filosofia pode ser tilsatisfazendo tambm essas necessidades, ou descartando-as; poisso necessidades aprendidas, temporalmente limitadas, querepousam em pressupostos contrrios aos da cincia. melhorrecorrer arte para fazer uma transio, a fim de aliviar o nimosobrecarregado de sentimentos;21 pois aquelas concepes sobem menos alimentadas pela arte do que por uma filosofiametafsica. Partindo da arte, pode-se passar mais facilmente parauma cincia filosfica realmente libertadora.

    28. Palavras de m reputao. Fora com as palavras"otimismo" e "pessimismo", utilizadas at saciedade! Pois cadavez mais faltam motivos para empreg-las: apenas os tagarelasainda tm inevitvel necessidade delas. Pois por que desejariaalgum no mundo ser otimista, se no tiver que defender um deusque deve ter criado o melhor dos mundos, caso ele mesmo seja obem e a perfeio mas que ser pensante ainda necessita dahiptese de um deus? No entanto, falta igualmente qualquermotivo para uma profisso de f pessimista, se no houverinteresse em irritar os advogados de Deus, os telogos ou osfilsofos teologizantes, afirmando vigorosamente o contrrio: que omal governa, que o desprazer maior que o prazer, que o mundo uma obra malfeita, a manifestao de uma perversa vontade devida.22 Mas quem se importa ainda com os telogos excetuandoos telogos? Deixando de lado a teologia e o combate que se faza ela, fica evidente que o mundo no nem bom nem mau, etampouco o melhor ou o pior, e os conceitos "bom" e "mau" s tmsentido em relao aos homens, e mesmo a talvez no sejustifiquem, do modo como so habitualmente empregados: emtodo caso, devemos nos livrar tanto da concepo do mundo que oinvectiva como daquela que o glorifica.

    29. Embriagado pelo aroma das flores . A barca dahumanidade, pensamos, tem um calado cada vez maior, medidaque mais carregada; acredita-se que quanto mais profundo opensamento do homem, quanto mais delicado seu sentimento,quanto mais elevada sua auto-estima, quanto maior sua distnciados outros animais quanto mais ele aparece como gnio entre osanimais , tanto mais perto chega da real essncia do mundo e deseu conhecimento: isso ele realmente faz com a cincia, mas pensafaz-lo mais ainda com suas religies e suas artes. Estas so, verdade, uma florao do mundo, mas no se acham mais prximasda raiz do mundo do que a haste: a partir delas no se pode emabsoluto entender melhor a essncia das coisas, embora quasetodos o creiam. O erro tornou o homem profundo, delicado einventivo a ponto de fazer brotar as religies e as artes. O puroconhecimento teria sido incapaz disso. Quem nos desvendasse aessncia do mundo, nos causaria a todos a mais incmodadesiluso. No o mundo como coisa em si, mas o mundo como

  • representao (como erro) que to rico em significado, toprofundo, maravilhoso, portador de felicidade e infelicidade. Essaconcluso leva a uma filosofia da negao lgica do mundo: que,alis, pode se unir to bem a uma afirmao prtica do mundoquanto a seu oposto.

    30. Maus hbitos de raciocnio. Os erros de raciocnio maishabituais dos homens so estes: uma coisa existe, portanto legtima. A se deduz a pertinncia a partir da capacidade de viver, ea legitimidade a partir da pertinncia.23 Em seguida: uma opinio fazfeliz, portanto verdadeira; seu efeito bom, portanto ela mesma boa e verdadeira. A se atribui ao efeito o predicado de fazer feliz,de bom, no sentido de til, e se dota a causa com o mesmopredicado de bom, mas no sentido de vlido logicamente. O reversodessas proposies diz: uma coisa no capaz de se impor, de semanter, portanto injusta; uma opinio atormenta, agita, portanto falsa. O esprito livre, que conhece bem demais o que h de erradonessa maneira de deduzir e que tem de sofrer suas conseqncias,sucumbe freqentemente tentao de fazer as dedues opostas,que em geral tambm so erradas, naturalmente: uma coisa no capaz de se impor, portanto boa; uma opinio causa aflio,inquieta, portanto verdadeira.

    31. A necessidade do ilgico. Entre as coisas que podemlevar um pensador ao desespero est o conhecimento de que oilgico necessrio aos homens e que do ilgico nasce muita coisaboa. Ele se acha to firmemente alojado nas paixes, na linguagem,na arte, na religio, em tudo o que empresta valor vida, que nopodemos extra-lo sem danificar irremediavelmente essas belascoisas. Apenas os homens muito ingnuos podem acreditar que anatureza humana pode ser transformada numa natureza puramentelgica; mas, se houvesse graus de aproximao a essa meta, o queno se haveria de perder nesse caminho! Mesmo o homem maisracional precisa, de tempo em tempo, novamente da natureza, isto, de sua ilgica relao fundamental com todas as coisas.

    32. Necessidade de ser injusto. Todos os juzos sobre ovalor da vida se desenvolveram ilogicamente, e portanto soinjustos. A inexatido do juzo est primeiramente no modo comose apresenta o material, isto , muito incompleto, em segundo lugarno modo como se chega soma a partir dele, e em terceiro lugarno fato de que cada pedao do material tambm resulta de umconhecimento inexato, e isto com absoluta necessidade. Porexemplo, nenhuma experincia relativa a algum, ainda que eleesteja muito prximo de ns, pode ser completa a ponto de termosum direito lgico a uma avaliao total dessa pessoa; todas asavaliaes so precipitadas e tm que s-lo. Por fim, a medida comque medimos, nosso prprio ser, no uma grandeza imutvel,temos disposies e oscilaes, e no entanto teramos de conhecera ns mesmos como uma medida fixa, a fim de avaliar com justiaa relao de qualquer coisa conosco. A conseqncia disso tudoseria, talvez, que de modo algum deveramos julgar; mas se aomenos pudssemos viver sem avaliar, sem ter averso e inclinao! pois toda averso est ligada a uma avaliao, e igualmente toda

  • inclinao. Um impulso em direo ou para longe de algo, sem osentimento de querer o que proveitoso ou se esquivar do que nocivo, um impulso sem uma espcie de avaliao cognitiva sobreo valor do objetivo, no existe no homem. De antemo somos seresilgicos e por isso injustos, e capazes de reconhecer isto: eis umadas maiores e mais insolveis desarmonias da existncia.

    33. O erro acerca da vida necessrio vida . Toda crenano valor e na dignidade da vida se baseia num pensar inexato; possvel somente porque a empatia com a vida e o sofrimentouniversais da humanidade pouco desenvolvida no indivduo.Mesmo os homens raros, cujo pensamento vai alm de si mesmos,no lanam os olhos a essa vida universal, mas somente a parteslimitadas dela. Quem sabe ter em mira sobretudo as excees,quero dizer, os talentos superiores e as almas puras, quem toma oseu surgimento como objetivo de toda a evoluo do mundo e sealegra com o seu agir, pode acreditar no valor da vida, porque noenxerga os outros homens: portanto, pensa inexatamente. Domesmo modo quem considera todos os homens, mas neles admiteapenas um gnero de impulsos,24 os menos egostas, desculpandoos homens no que toca aos outros impulsos: pode tambm esperaralguma coisa da humanidade como um todo, e assim acreditar novalor da vida: portanto, tambm nesse caso por inexatido dopensar. Tanto ao proceder de um modo como do outro, porm,constitumos uma exceo entre os homens. A grande maioria doshomens suporta a vida sem muito resmungar, e acredita ento novalor da existncia, mas precisamente porque cada um quer eafirma somente a si mesmo, e no sai de si mesmo como aquelasexcees: tudo extrapessoal, para eles, ou no perceptvel ou o ,no mximo, como uma frgil sombra. Portanto, para o homemcomum, cotidiano, o valor da vida baseia-se apenas no fato de elese tomar por mais importante que o mundo. A grande falta deimaginao de que sofre faz com que no possa colocar-se na pelede outros seres, e em virtude disso participa o menos possvel deseus destinos e dissabores. Mas quem pudesse realmente delesparticipar, teria que desesperar do valor da vida; se conseguisseapreender e sentir a conscincia total da humanidade, sucumbiria,amaldioando a existncia, pois no conjunto a humanidade notem objetivo nenhum, e por isso, considerando todo o seupercurso, o homem no pode nela encontrar consolo e apoio, massim desespero. Se ele v, em tudo o que faz, a falta de objetivoltimo dos homens, seu prprio agir assume a seus olhos carter dedesperdcio. Mas sentir-se desperdiado enquanto humanidade (eno apenas enquanto indivduo), tal como vemos um brotodesperdiado pela natureza, um sentimento acima de todos ossentimentos. Mas quem capaz dele? Claro que apenas umpoeta:25 e os poetas sempre sabem se consolar.

    34. Para tranqilizar. Mas nossa filosofia no se tornaassim uma tragdia? A verdade no se torna hostil vida, ao que melhor? Uma pergunta parece nos pesar na lngua e contudo noquerer sair: possvel permanecer conscientemente na inverdade?Ou, caso tenhamos de faz-lo, no seria prefervel a morte? Pois jno existe "dever"; a moral, na medida em que era "dever", foi

  • destruda por nossa maneira de ver, exatamente como a religio. Oconhecimento s pode admitir como motivos o prazer e odesprazer, o proveitoso e o nocivo: mas como se arrumaro essesmotivos com o senso da verdade? Pois eles tambm se ligam aerros (na medida em que, como foi dito, a inclinao e a averso, esuas injustas medies, determinam essencialmente nosso prazer edesprazer). Toda a vida humana est profundamente embebida nainverdade; o indivduo no pode retir-la de tal poo sem irritar-secom seu passado por profundas razes, sem achar descabidos osseus motivos presentes, como os da honra, e sem opor zombaria edesdm s paixes que impelem ao futuro e a uma felicidade neste.Sendo isso verdadeiro, restaria apenas um modo de pensar que trazo desespero como concluso pessoal e uma filosofia da destruiocomo concluso terica? Creio que o temperamento de umhomem decidir quanto ao efeito posterior do conhecimento: eupoderia imaginar um outro efeito que no o descrito, igualmentepossvel em naturezas individuais, mediante o qual surgiria umavida muito mais simples e mais pura de paixes que a atual: demodo que inicialmente os velhos motivos do cobiar violento aindateriam fora, em conseqncia do velho costume herdado, mas aospoucos se tornariam mais fracos, sob influncia do conhecimentopurificador. Afinal se viveria, entre os homens e consigo, tal comona natureza, sem louvor, censura ou exaltao, deleitando-se commuitas coisas, como um espetculo do qual at ento se tinhaapenas medo. Estaramos livres da nfase,26 e no mais seramosaguilhoados pelo pensamento de ser apenas natureza ou mais quenatureza. Certamente, como disse, isto exigiria um temperamentobom, uma alma segura, branda e no fundo alegre, uma disposioque no precisasse estar alerta contra perfdias e erupesrepentinas, e em cujas manifestaes no houvesse trao deresmungo e teimosia essas caractersticas notrias edesagradveis de ces e homens velhos que ficaram muito tempoacorrentados. Um homem do qual caram os costumeiros grilhesda vida, a tal ponto que ele s continua a viver para conhecersempre mais, deve poder renunciar, sem inveja e desgosto, a muitacoisa, a quase tudo o que tem valor para os outros homens; deve-lhe bastar, como a condio mais desejvel, pairar livre e destemidosobre os homens, costumes, leis e avaliaes tradicionais dascoisas. Com prazer ele comunica a alegria dessa condio, e talvezno tenha outra coisa a comunicar o que certamente envolveuma privao, uma renncia a mais. Se no obstante quisermosmais dele, meneando a cabea com indulgncia ele indicar seuirmo, o livre homem de ao, e no ocultar talvez um pouco deironia: pois a "liberdade" deste um caso parte.

  • Captulo segundoCONTRIBUIO HISTRIADOS SENTIMENTOS MORAIS

    35. Vantagens da observao psicolgica . Que a reflexosobre o humano, demasiado humano ou, segundo a expressomais erudita: a observao psicolgica seja um dos meios quenos permitem aliviar o fardo da vida, que o exerccio dessa arteproporcione presena de esprito em situaes difceis e distraonum ambiente enfadonho, que mesmo das passagens maisespinhosas e desagradveis de nossa vida possamos colhersentenas, e assim nos sentir um pouco melhor: nisto se acreditava,isto se sabia em sculos passados. Por que foi esquecido nestesculo, quando, ao menos na Alemanha, e mesmo na Europa, apobreza da observao psicolgica se mostra em tantos signos?No particularmente em romances, novelas e consideraesfilosficas estas so obras de homens de exceo; um poucomais no julgamento dos eventos e personalidades pblicos; massobretudo falta a arte da dissecao e composio psicolgica navida social de todas as classes, onde talvez se fale muito daspessoas, mas no do ser humano. Por que se deixa de lado o maisrico e inofensivo tema de conversa? Por que no se lem mais osgrandes mestres da sentena psicolgica? pois, sem qualquerexagero: o homem culto que tenha lido La Rochefoucauld e seuspares em esprito e arte coisa rara na Europa; e ainda mais raroaquele que os conhea e no os insulte. Mas provvel que mesmoesse leitor incomum tenha com eles menos satisfao do quedeveria lhe dar a forma desses artistas; pois nem o esprito maisrefinado capaz de apreciar devidamente a arte de polir sentenas,se no foi educado para ela, se nela no competiu. Sem talinstruo prtica, consideramos esse criar e formar algo mais fcildo que na verdade, no sentimos com suficiente agudeza o quenele bem realizado e atraente. Por isso os atuais leitores desentenas tm com elas um prazer relativamente insignificante, malchegam a sabore-las; de modo que lhes sucede o mesmo que spessoas que examinam camafeus: as quais elogiam porque nosabem amar, e prontamente se dispem a admirar, e ainda maisprontamente a se esquivar.

    36. Objeo. Ou haveria um contrapeso tese de que aobservao psicolgica se inclui entre os atrativos e meios desalvao e alvio da existncia? No deveramos estar bastanteconvencidos das desagradveis conseqncias dessa arte, para delaafastar intencionalmente o olhar dos que se educam? De fato, umaf cega na bondade da natureza humana, uma arraigada averso anlise das aes humanas, uma espcie de pudor frente nudez daalma podem realmente ser mais desejveis para a felicidade geral deum homem do que o atributo da penetrao psicolgica, vantajosoem casos particulares; e talvez a crena no bem, em homens eaes virtuosas, numa abundncia de boa vontade impessoal nomundo, tenha tornado os homens melhores, na medida em que os

  • tornou menos desconfiados. Quando imitamos com entusiasmo osheris de Plutarco e relutamos em indagar suspeitosamente sobreas motivaes de seu agir, no a verdade, mas o bem-estar dasociedade humana que lucra com isso: o erro psicolgico e ainsensibilidade nesse campo ajudam a humanidade a avanar,enquanto o conhecimento da verdade talvez ganhe mais com afora estimulante de uma hiptese como a que La Rochefoucauldanteps primeira edio das suas Sentences et maximes morales:Ce que le monde nomme vertu n'est d'ordinaire qu'un fantmeform par nos passions, qui on donne un nom honnte pour faireimpunment ce qu'on veut [Aquilo que o mundo chama de virtudeno , via de regra, seno um fantasma formado por nossaspaixes, ao qual damos um nome honesto para impunemente fazero que quisermos]. La Rochefoucauld e outros mestres franceses doestudo da alma (aos quais recentemente se juntou um alemo, oautor das Observaes psicolgicas)27 parecem atiradores de boamira que acertam sempre no ponto escuro mas no escuro danatureza humana. Sua destreza provoca admirao, mas afinal umespectador que seja conduzido no pelo esprito da cincia, maspelo esprito humanitrio, amaldioar uma arte que parece plantarna alma humana o gosto pela diminuio e pela suspeita.

    37. No obstante. Seja qual for o resultado dos prs e doscontras: no presente estado de uma determinada cincia, oressurgimento da observao moral se tornou necessrio, e nopode ser poupada humanidade a viso cruel da mesa dedissecao psicolgica e de suas pinas e bisturis. Pois a comandaa cincia que indaga a origem e a histria dos chamadossentimentos morais, e que, ao progredir, tem de expor e resolver osemaranhados problemas sociolgicos: a velha filosofia noconhece em absoluto estes ltimos, e com precrias evasivassempre escapou investigao sobre a origem e a histria dossentimentos morais. As conseqncias podem hoje ser vistasclaramente, depois que muitos exemplos provaram que em geral oserros dos maiores filsofos tm seu ponto de partida numa falsaexplicao de determinados atos e sentimentos humanos; que, combase numa anlise errnea, por exemplo, das aes ditas altrustas,constri-se uma tica falsa; que depois, em favor desta, recorre-sede novo religio e barafunda mitolgica e que, por fim, assombras desses turvos espritos se projetam at mesmo na fsica eem toda a nossa considerao do mundo. Mas se certo que asuperficialidade da observao psicolgica estendeu e continua aestender ao julgamento e ao raciocnio humanos as mais perigosasarmadilhas, ento necessria agora a persistncia que no cansade amontoar pedra sobre pedra, pedrinha sobre pedrinha, necessria uma austera valentia, para no nos envergonharmos detrabalho to modesto e afrontarmos todo desdm de que for objeto. verdade: numerosas observaes particulares sobre o humano e odemasiado humano foram primeiramente descobertas e enunciadasem crculos sociais habituados a oferecer toda espcie de sacrifciono ao conhecimento cientfico, mas a uma espirituosa coqueteria;e o aroma deste velho bero da sentena moral um aroma muitosedutor aderiu quase que inseparavelmente a todo o gnero: demodo que por causa dele o homem de cincia manifesta

  • involuntariamente alguma desconfiana face ao gnero e a suaseriedade. Mas basta apontar as conseqncias: pois j se comea aver que produtos da mais sria natureza crescem no solo daobservao psicolgica. Qual a principal tese a que chegou um dosmais frios e ousados pensadores, o autor do livro Sobre a origemdos sentimentos morais,28 graas s suas cortantes e penetrantesanlises da conduta humana? "O homem moral" diz ele "noest mais prximo do mundo inteligvel (metafsico) que o homemfsico." Esta proposio, temperada e afiada sob os golpes demartelo do conhecimento histrico, talvez possa um dia, em algumfuturo, servir como o machado que cortar pela raiz a "necessidademetafsica" do homem se para a bno ou para a maldio dobem-estar geral, quem saberia diz-lo? mas, em todo o caso,como uma tese das mais graves conseqncias, simultaneamentefecunda e horrenda, e olhando para o mundo com aquela dupla faceque possuem todos os grandes conhecimentos.

    38. Em que medida til. Portanto: se a observaopsicolgica traz mais utilidade ou desvantagem aos homenspermanece ainda sem resposta; mas certamente necessria, pois acincia no pode passar sem ela. Mas a cincia no temconsiderao pelos fins ltimos, e tampouco a natureza; e comoesta ocasionalmente produz coisas da mais elevada pertinncia, semt-las querido, tambm a verdadeira cincia, sendo a imitao danatureza em conceitos, promover ocasionalmente, e mesmo comfreqncia, vantagem e bem-estar para os homens, e alcanar oque pertinente mas igualmente sem t-lo querido. Quem, naatmosfera de tal modo de ver, sentir o nimo demasiado frio, talveztenha muito pouco fogo em si: se olhar sua volta, no entanto,perceber doenas que requerem compressas de gelo, e homens detal maneira "moldados" com ardor e esprito que mal encontramlugar em que o ar lhes seja suficientemente frio e cortante. Almdisso, ver como indivduos e povos muito srios necessitam defrivolidades, como outros muito excitveis e inconstantes precisamtemporariamente, para sua sade, de fardos pesados e opressores:no deveremos ns, os homens mais espirituais de uma poca quevisivelmente se inflama cada vez mais, recorrer a todos os meios deextino e refrigerao existentes, de modo a continuar ao menosto firmes, inofensivos e moderados como hoje ainda somos, etalvez um dia servir a esta poca como espelho e autoconscincia?

    39. A fbula da liberdade inteligvel .29 A histria dossentimentos em virtude dos quais tornamos algum responsvel porseus atos, ou seja, a histria dos chamados sentimentos morais,tem as seguintes fases principais. Primeiro chamamos as aesisoladas de boas ou ms, sem qualquer considerao por seusmotivos, apenas devido s conseqncias teis ou prejudiciais quetenham. Mas logo esquecemos a origem dessas designaes eachamos que a qualidade de "bom" ou "mau" inerente s aes,sem considerao por suas conseqncias: o mesmo erro que faz alngua designar a pedra como dura, a rvore como verde isto ,apreendendo o que efeito como causa. Em seguida, introduzimosa qualidade de ser bom ou mau nos motivos e olhamos os atos emsi como moralmente ambguos. Indo mais longe, damos o

  • predicado bom ou mau no mais ao motivo isolado, mas a todo oser de um homem, do qual o motivo brota como a planta doterreno. De maneira que sucessivamente tornamos o homemresponsvel por seus efeitos, depois por suas aes, depois porseus motivos e finalmente por seu prprio ser. E afinaldescobrimos que tampouco este ser pode ser responsvel, namedida em que inteiramente uma conseqncia necessria e seforma30 a partir dos elementos e influxos de coisas passadas epresentes: portanto, que no se pode tornar o homem responsvelpor nada, seja por seu ser, por seus motivos, por suas aes ou porseus efeitos. Com isso chegamos ao conhecimento31 de que ahistria dos sentimentos morais a histria de um erro, o erro daresponsabilidade, que se baseia no erro do livre-arbtrio. Schopenhauer, por outro lado, raciocinou assim: desde que certasaes acarretam mal-estar ("conscincia de culpa"), deve existirresponsabilidade, pois no haveria razo para esse mal-estar se noapenas todo o agir do homem ocorresse por necessidade comode fato ocorre, e tambm segundo a viso desse filsofo , masse o prprio homem adquirisse o seu inteiro ser32 pela mesmanecessidade o que Schopenhauer nega. Partindo do fato dessemal-estar, Schopenhauer acredita poder demonstrar uma liberdadeque o homem deve ter tido de algum modo, no no que toca saes, certo, mas no que toca ao ser: liberdade, portanto, de serdesse ou daquele modo, no de agir dessa ou daquela maneira. Doesse [ser], da esfera da liberdade e da responsabilidade decorre,segundo ele, o operari [operar], a esfera da estrita causalidade,necessidade e irresponsabilidade. certo que aparentemente o mal-estar diz respeito ao operari na medida em que assim faz errneo , mas na verdade se refere ao esse, que o ato de umavontade livre, a causa fundamental da existncia de um indivduo; ohomem se torna o que ele quer ser, seu querer precede suaexistncia. A o erro de raciocnio est em, partindo do fato domal-estar, inferir a justificao, a admissibilidade racional dessemal-estar; com essa deduo falha, Schopenhauer chega fantstica concluso da chamada liberdade inteligvel. Mas o mal-estar aps o ato no precisa absolutamente ser racional: e no o ,de fato, pois se baseia no errneo pressuposto de que o ato notinha que se produzir necessariamente. Logo: porque o homem seconsidera livre, no porque livre, ele sofre arrependimento eremorso. Alm disso, esse mal-estar coisa que podemos deixarpara trs; em muitas pessoas ele no existe em absoluto, comrespeito a aes pelas quais muitas outras o sentem. algo bastantevarivel, ligado evoluo dos costumes e da cultura, s existentenum perodo relativamente breve da histria do mundo, talvez. Ningum responsvel por suas aes, ningum responde por seuser; julgar significa ser injusto. Isso tambm vale para quando oindivduo julga a si mesmo. Essa tese clara como a luz do sol; noentanto, todos preferem retornar sombra e inverdade: por medodas conseqncias.

    40. O superanimal. A besta que existe em ns quer serenganada; a moral mentira necessria, para no sermos por eladilacerados. Sem os erros que se acham nas suposies da moral, ohomem teria permanecido animal. Mas assim ele se tomou por algo

  • mais elevado, impondo-se leis mais severas. Por isso ele tem dioaos estgios que ficaram mais prximos da animalidade: de onde sepode explicar o antigo desprezo pelo escravo, como sendo um no-humano, uma coisa.

    41. O carter imutvel. Que o carter seja imutvel no uma verdade no sentido estrito; esta frase estimada significa apenasque, durante a breve durao da vida de um homem, os motivosque sobre ele atuam no arranham com profundidade suficientepara destruir os traos impressos por milhares de anos. Mas, seimaginssemos um homem de oitenta mil anos, nele teramos umcarter absolutamente mutvel: de modo que dele se desenvolveriaum grande nmero de indivduos diversos, um aps o outro. Abrevidade da vida humana leva a muitas afirmaes erradas sobreas caractersticas do homem.

    42. A ordem dos bens e a moral . A hierarquia dos bensaceita, baseada em como um egosmo pequeno, elevado ousupremo deseja uma ou outra coisa, decide atualmente acerca damoralidade ou imoralidade. Preferir um bem pequeno (por exemplo,o prazer dos sentidos) a um altamente valorizado (por exemplo, asade) tido como imoral, tanto quanto preferir a boa vida liberdade. Mas a hierarquia dos bens no fixa e igual em todos ostempos; quando algum prefere a vingana justia, ele moralsegundo a medida de uma cultura passada, imoral segundo a atual."Imoral" designa, portanto, que um indivduo ainda no sente, ouno sente ainda com fora bastante, os motivos mais elevados,mais sutis e mais espirituais trazidos pela nova cultura: designa umser atrasado, mas apenas numa diferena de grau. A prpriahierarquia dos bens no estabelecida ou alterada segundo pontosde vista morais; mas com base na sua determinao vigente decidido se uma ao moral ou imoral.

    43. Homens cruis, homens atrasados. Devemos pensar noshomens que hoje so cruis como estgios remanescentes deculturas passadas: a cordilheira da humanidade mostra abertamenteas formaes mais profundas, que em geral permanecem ocultas.So homens atrasados, cujo crebro, devido a tantos acasospossveis na hereditariedade, no se desenvolveu de forma vria edelicada. Eles mostram o que todos ns fomos, e nos infundempavor: mas eles prprios so to responsveis como um pedao degranito responsvel pelo fato de ser granito. Em nosso crebrotambm devem se achar sulcos e sinuosidades que correspondemquela mentalidade, assim como na forma de alguns rgoshumanos podem se achar lembranas do estado de peixe. Masesses sulcos e sinuosidades j no so o leito por onde rolaatualmente o curso de nosso sentimento.

    44. Gratido e vingana. A razo por que o homempoderoso grato esta. Mediante seu benefcio, o benfeitor comoque violou a esfera do poderoso e nela se introduziu: em represlia,este viola a esfera do benfeitor com seu ato de gratido. umaforma suave de vingana. Se no tivesse a compensao da

  • gratido, o poderoso teria se mostrado sem poder e depois seriavisto como tal. Por isso toda sociedade de bons, ou seja,originariamente de poderosos, situa a gratido entre os primeirosdeveres. Swift afirmou que os homens so gratos na mesmaproporo em que nutrem a vingana.33

    45. A dupla pr-histria do bem e do mal. O conceito debem e mal tem uma dupla pr-histria: primeiro, na alma das tribose castas dominantes. Quem tem o poder de retribuir o bem com obem, o mal com o mal, e realmente o faz, ou seja, quem grato evingativo, chamado de bom; quem no tem poder e no poderetribuir tido por mau. Sendo bom, o homem pertence aos"bons", a uma comunidade que tem sentimento comunal, pois osindivduos se acham entrelaados mediante o sentido da retribuio.Sendo mau, o homem pertence aos "maus", a um bando de homenssubmissos e impotentes que no tm sentimento comunitrio. Osbons so uma casta; os maus, uma massa como o p. Durantealgum tempo, bom e mau equivalem a nobre e baixo, senhor eescravo. Mas o inimigo no considerado mau: ele pode retribuir.Em Homero, tanto os troianos como os gregos so bons. Noaquele que nos causa dano, mas aquele desprezvel, tido por mau.Na comunidade dos bons o bem herdado: impossvel que ummau cresa em terreno to bom. Apesar disso, se um dos bons fazalgo que seja indigno dos bons, recorre-se a expedientes; porexemplo, atribui-se a culpa a um deus: diz-se que ele golpeou obom com a cegueira e a loucura. Depois, na alma dosoprimidos, dos impotentes. Qualquer outro homem consideradohostil, inescrupuloso, explorador, cruel, astuto, seja ele nobre oubaixo. "Mau" a palavra que caracteriza o homem e mesmo todoser vivo que se suponha existir, um deus, por exemplo; humano,divino significam o mesmo que diablico, mau. Os signos dabondade, da solicitude, da compaixo so vistos medrosamentecomo perfdia, preldio de um desfecho terrvel, entorpecimento eembuste, como maldade refinada, em suma. Com tal mentalidadeno indivduo, dificilmente pode surgir uma comunidade, no mximoa sua forma mais rude: de modo que em toda a parte ondepredomina essa concepo de bem e mal o declnio dos indivduos,de suas tribos e raas est prximo. Nossa moralidade atualcresceu no solo das tribos e castas dominantes.

    46. Compadecer, mais forte que padecer .34 Existem casosem que o compadecer mais forte do que o prprio padecer.Quando um de nossos amigos culpado de algo vergonhoso, porexemplo, sentimos uma dor maior do que quando ns mesmos osomos. Pois acreditamos mais do que ele na pureza de seu carter:ento o amor que temos a ele, provavelmente devido a essa crena, mais forte do que seu amor a si mesmo. Embora seu egosmorealmente sofra com isso mais do que o nosso, na medida em queele deve suportar mais as conseqncias ruins de sua falta, o queh em ns de altrusta palavra que nunca deve ser entendidarigorosamente, mas apenas como facilitadora da expresso mais afetado por sua culpa do que o que h nele de altrusta.

    47. Hipocondria. Existem homens que se tornam

  • hipocondracos por empatia e preocupao com outra pessoa; aespcie de compaixo que da nasce no outra coisa que umadoena. De modo que h tambm uma hipocondria crist, que atacaas pessoas solitrias e movidas pela religio, que continuamente tmdiante dos olhos a paixo e a morte de Cristo.

    48. Economia da bondade. A bondade e o amor, as ervas eforas mais salutares no trato com seres humanos, so achados topreciosos que bem desejaramos que se procedesse o maiseconomicamente possvel, na aplicao desses meios balsmicos:mas isto impossvel. A economia da bondade o sonho dos maisarrojados utopistas.

    49. Benevolncia. Entre as coisas pequenas, mas bastantefreqentes, e por isso muito eficazes, s quais a cincia deveatentar mais do que s coisas grandes e raras, deve-se incluirtambm a benevolncia; refiro-me s expresses de nimo amigvelnas relaes, ao sorriso dos olhos, aos apertos de mo, satisfaoque habitualmente envolve quase toda ao humana. No hprofessor, no h funcionrio que no junte esse ingrediente quiloque seu dever; a atividade contnua da humanidade, como queas ondas de sua luz, nas quais tudo cresce; sobretudo no crculomais estreito, no interior da famlia, a vida s verdeja e florescemediante essa benevolncia. A boa ndole, a amabilidade, a cortesiado corao so permanentes emanaes do impulso altrusta, econtriburam mais poderosamente para a cultura do que asexpresses mais famosas do mesmo impulso, chamadas decompaixo, misericrdia e sacrifcio. Mas costumamosmenosprez-las, e realmente: nelas no h muito de altrusta. Asoma dessas doses mnimas no entanto formidvel, sua fora total das mais potentes. De modo semelhante, no mundo se achamuito mais felicidade do que vem os olhos turvos: isto , secalculamos direito e no esquecemos todos os momentos desatisfao de que todo dia humano, mesmo na vida maisatormentada, rico.

    50. O desejo de suscitar compaixo. La Rochefoucauldacerta no alvo quando, na passagem mais notvel de seu auto-retrato (impresso pela primeira vez em 1658), previne contra acompaixo todos os que possuem razo, quando aconselha a deix-la para as pessoas do povo, que necessitam das paixes (no sendoguiadas pela razo) para chegarem ao ponto de ajudar os quesofrem e de intervir energicamente em caso de infortnio; enquantoa compaixo, no seu julgamento (e no de Plato), enfraquece aalma. Deveramos, sem dvida, manifestar compaixo, masguardarmo-nos de t-la: pois, sendo os infelizes to tolos,demonstrar compaixo para eles o maior bem do mundo. Talvez possamos alertar mais ainda contra a compaixo, seentendermos tal necessidade dos infelizes no exatamente comotolice e deficincia intelectual, como uma espcie de perturbaomental que a infelicidade ocasiona (assim parece entend-la LaRochefoucauld), mas como algo totalmente diverso e mais digno dereflexo. Observemos as crianas que choram e gritam a fim deinspirar compaixo, e por isso aguardam o momento em que seu

  • estado pode ser visto; tenhamos contato com doentes e pessoasmentalmente afligidas, e perguntemos a ns mesmos se oseloqentes gemidos e queixumes, se a ostentao da infelicidadeno tem o objetivo, no fundo, de causar dor nos espectadores: acompaixo que eles ento expressam um consolo para os fracos esofredores, na medida em que estes percebem ter ao menos umpoder ainda, apesar de toda a sua fraqueza: o poder de causar dor.O infeliz obtm uma espcie de prazer com o sentimento desuperioridade que a demonstrao de compaixo lhe traz conscincia; sua imaginao se exalta, ele ainda importante osuficiente para causar dores ao mundo. De modo que a sede decompaixo uma sede de gozo de si mesmo, e isso custa doprximo; ela mostra o homem na total desconsiderao de seuquerido Eu, no exatamente em sua "tolice", como quer LaRochefoucauld. Na conversa em sociedade, a maioria dasperguntas feita e a maioria das respostas dada com o objetivo decausar um pequeno mal ao interlocutor; por isso tantos tm sede desociedade: ela lhes d o sentimento de sua fora. Nessas dosesincontveis, mas muito pequenas, em que a maldade se faz valer,ela um poderoso estimulante da vida: assim como a benevolncia,que, de igual forma disseminada no mundo dos homens, umremdio sempre disponvel. Mas haver muitos indivduoshonestos que admitam ser prazeroso causar dor? que no raro nosdistramos nos distramos bem criando desgosto para outroshomens, ao menos em pensamento, e disparando contra eles osgrozinhos de chumbo da pequena maldade? A maioria desonestademais, e alguns so bons demais, para saber algo sobre essepudendum [parte vergonhosa]; portanto, eles sempre negaro queProsper Mrime esteja certo ao dizer: Sachez aussi qu'il n'y a riende plus commun que de faire le mal pour le plaisir de le faire[Saibam tambm que no h nada mais comum do que fazer o malpelo prazer de faz-lo].35

    51. Como o parecer vira ser. Mesmo na dor mais profundao ator no pode deixar de pensar na impresso produzida por suapessoa e por todo o efeito cnico, at no enterro de seu filho, porexemplo: ele chorar por sua prpria dor e as manifestaes dela,como sua prpria platia. O hipcrita que representa sempre omesmo papel deixa enfim de ser hipcrita; por exemplo, padres quequando jovens costumam ser hipcritas, consciente ouinconscientemente, tornam-se enfim naturais e so, sem nenhumaafetao, padres realmente; ou, se o pai no vai to longe, talvezento o filho, aproveitando os passos do pai, venha a lhe herdar ocostume. Se algum quer parecer algo, por muito tempo eobstinadamente, afinal lhe ser difcil ser outra coisa. A profissode quase todas as pessoas, mesmo a do artista, comea comhipocrisia, com uma imitao do exterior, com uma cpia daquiloque produz efeito. Aquele que sempre usa a mscara do rostoamvel ter enfim poder sobre os nimos benvolos, sem os quaisno pode ser obtida a expresso da amabilidade e estes por fimadquirem poder sobre ele, ele benvolo.

    52. A marca da honestidade no embuste. Em todos osgrandes embusteiros digno de nota um fato a que devem seu

  • poder. No prprio ato do embuste, com todos os preparativos, otom comovedor da voz, da expresso, dos gestos, em meio aocenrio de efeitos, so tomados da crena em si mesmos: ela quefala de modo miraculoso e convincente aos que esto sua volta.Os fundadores de religies se distinguem desses grandesembusteiros por no sarem desse estado de auto-iluso: ou muitoraramente tm os instantes claros em que a dvida os domina; emgeral se consolam, atribuindo esses momentos de clareza aoadversrio maligno. preciso que haja o engano de si mesmo, paraestes e aqueles produzirem um grande efeito. Pois os homenscrem na verdade daquilo que visivelmente objeto de uma fortecrena.

    53. Pretensos graus da verdade . Um dos mais freqenteserros de raciocnio este: se algum verdadeiro e sinceroconosco, ento ele diz a verdade. Assim a criana acredita nosjulgamentos de seus pais, o cristo nas afirmaes dos fundadoresda Igreja. De igual maneira, no se quer admitir que tudo o que oshomens defenderam com o sacrifcio da felicidade e da vida, emsculos passados, eram apenas erros: talvez se diga que eramestgios da verdade. Mas no fundo as pessoas acham que, sealgum acreditou honestamente em algo e lutou e morreu por suacrena, seria bastante injusto se apenas um erro o tivesse animado.Tal acontecimento parece contradizer a justia eterna: eis por que ocorao dos homens sensveis sempre decreta, em oposio a suacabea, que entre as aes morais e as percepes intelectuais devenecessariamente existir uma ligao. Infelizmente no assim; poisno h justia eterna.

    54. A mentira. Por que, na vida cotidiana, os homensnormalmente dizem a verdade? No porque um deus tenhaproibido a mentira, certamente. Mas, em primeiro lugar, porque mais cmodo; pois a mentira exige inveno, dissimulao ememria. (Eis por que, segundo Swift, quem conta uma mentirararamente nota o fardo que assume; pois para sustentar umamentira ele tem que inventar outras vinte.) Depois, porque vantajoso, em circunstncias simples, falar diretamente "quero isto,fiz isto" e coisas assim; ou seja, porque a via da imposio e daautoridade mais segura que a da astcia. Mas se uma crianafoi educada em circunstncias domsticas complicadas, entomanipula a mentira naturalmente, e involuntariamente sempre diz oque corresponde a seu interesse; um sentido para a verdade, umaaverso mentira lhe estranha e inacessvel, e ela mente com todaa inocncia.

    55. Suspeitar da moral por causa da f. Nenhum poder seimpe, se tiver apenas hipcritas como representantes; por maiselementos "mundanos" que possua a Igreja catlica, sua fora estnaquelas naturezas sacerdotais, ainda hoje numerosas, que tornam avida difcil e profunda para si mesmas, e nas quais o olhar e ocorpo consumido testemunham viglias, jejuns, oraes candentes,e talvez at flagelaes. Tais naturezas abalam e amedrontam aspessoas: como? e se fosse necessrio viver assim? eis a terrvelpergunta que a viso desses homens suscita. Ao propagar essa

  • dvida, eles erguem continuamente mais um pilar para seu poder;mesmo os que pensam livremente no ousam contrariar um serassim abnegado, dizendo-lhe, com duro sentido de verdade: "enganado, no engane!". Apenas a diferena das concepes ossepara dele, de modo algum uma diferena de bondade ou maldade;mas aquilo de que no gostamos, costumamos tratar com injustia.Fala-se da astcia e da arte infame dos jesutas, mas no se v aauto-superao a que todo jesuta se obriga, e como o regimefacilitado de vida, pregado nos manuais jesuticos, deve beneficiarno a eles, mas aos leigos. E podemos indagar se, com ttica eorganizao semelhante, ns, esclarecidos, seramos instrumentosto bons, to dignos de admirao pela vitria sobre si mesmo, pelainfatigabilidade, pela dedicao.

    56. Vitria do conhecimento sobre o mal radical . Paraquem deseja se tornar sbio bastante proveitoso haver concebidoo ser humano, durante algum tempo, como basicamente mau edegenerado: esta concepo falsa, tal como aquela oposta; masela predominou por pocas inteiras, e suas razes se ramificaramem ns e em nosso mundo. Para nos compreendermos, temos decompreend-la; mas para depois irmos mais alto, teremos que iralm dela. Ento reconheceremos que no existem pecados nosentido metafsico; mas que tambm, no mesmo sentido, noexistem virtudes; que todo esse mbito das concepes morais estcontinuamente oscilando, que existem noes mais elevadas e maisprofundas de bem e mal, moral e imoral. Quem no deseja dascoisas seno conhec-las, facilmente atinge a paz com sua alma eerra (ou peca, como diz o mundo) no mximo por ignorncia,dificilmente por avidez. Esse algum j no quer excomungar eextirpar os desejos; o nico objetivo que o domina por completo, ode sempre conhecer tanto quanto for possvel, o tornar frio eabrandar toda a selvageria de sua natureza. Alm disso, ter selibertado de muitas concepes tormentosas, nada mais sentir, aoouvir palavras como castigo do inferno, pecaminosidade,incapacidade para o bem: nelas reconhecer apenas as sombrasevanescentes de consideraes erradas sobre o mundo e a vida.

    57. A moral como autodiviso do homem. Um bom autor,que realmente pe o corao no seu tema, desejar que algumaparea e o anule, que exponha o mesmo tema de modo mais claroe responda inteiramente as questes nele contidas. A jovemapaixonada pretende que a devota fidelidade de seu amor sejatestada pela infidelidade do amado. O soldado deseja cair no campode batalha por sua ptria vitoriosa: pois na vitria de sua ptriatambm triunfa seu maior desejo. A me d ao filho aquilo de queela mesma se priva, o sono, a melhor comida, s vezes sua sade,sua fortuna. Mas sero todos esses estados altrustas? Seromilagres esses atos da moral, j que, na expresso deSchopenhauer, so "impossveis e contudo reais"? No est claroque em todos esses casos o homem tem mais amor a algo de si,um pensamento, um anseio, um produto, do que a algo diferentede si, e que ele ento divide seu ser, sacrificando uma parte outra? Ser algo essencialmente distinto, quando um homemcabea-dura diz: "Prefiro ser morto com um tiro a me afastar um

  • passo do caminho desse homem"? A inclinao por algo(desejo, impulso, anseio) est presente em todos os casosmencionados; ceder a ela, com todas as conseqncias, no , emtodo caso, "altrusta". Na moral o homem no trata a si mesmocomo individuum, mas como dividuum.36

    58. O que se pode prometer. Pode-se prometer atos, masno sentimentos; pois estes so involuntrios. Quem promete aalgum am-lo sempre, ou sempre odi-lo ou ser-lhe sempre fiel,promete algo que no est em seu poder; mas ele pode prometeraqueles atos que normalmente so conseqncia do amor, do dio,da fidelidade, mas tambm podem nascer de outros motivos: poiscaminhos e motivos diversos conduzem a um ato. A promessa desempre amar algum significa, portanto: enquanto eu te amar,demonstrarei com atos o meu amor; se eu no mais te amar,continuarei praticando esses mesmos atos, ainda que por outrosmotivos: de modo que na cabea de nossos semelhantes permanecea iluso de que o amor imutvel e sempre o mesmo. Portanto,prometemos a continuidade da aparncia do amor quando, semcegar a ns mesmos, juramos a algum amor eterno.

    59. Intelecto e moral. preciso ter boa memria, parapoder cumprir as promessas feitas. preciso ter grande fora deimaginao, para poder sentir compaixo. De tal modo a moral estunida qualidade do intelecto.

    60. Querer se vingar e se vingar. Pensar em se vingar efaz-lo significa ter um violento acesso febril, que no entanto passa;mas pensar em se vingar e no ter fora nem coragem para faz-lo carregar consigo um sofrimento crnico, um envenenamento docorpo e da alma. A moral, que v apenas as intenes, avaliaigualmente os dois casos; habitualmente o primeiro visto como opior (pelas ms conseqncias que o ato de vingana pode trazer).Ambas as avaliaes tm vista curta.

    61. Saber esperar. Saber esperar algo to difcil, que osmaiores escritores no desdenharam fazer disso um tema de suascriaes. Assim fizeram Shakespeare em Otelo e Sfocles em Ajax;se este tivesse deixado o sentimento esfriar por um dia apenas, seusuicdio j no lhe teria parecido necessrio, como indica a fala doorculo; provavelmente teria zombado das terrveis insinuaes davaidade ferida e teria dito a si mesmo: quem, no meu lugar, j notomou uma ovelha por um heri? ser uma coisa to monstruosa?Pelo contrrio, algo humano e comum; dessa forma Ajax poderiase consolar. A paixo no quer esperar; o trgico na vida degrandes homens est, freqentemente, no no seu conflito com apoca e a baixeza de seus semelhantes, mas na sua incapacidade deadiar por um ou dois anos a sua obra; eles no sabem esperar. Em todos os duelos, os amigos que do conselhos devem verificarapenas uma coisa: se as pessoas envolvidas podem esperar; se esteno for o caso, um duelo razovel, pois cada um diz a si mesmo:"Ou eu continuo a viver, e ento ele deve morrer imediatamente, ouo contrrio". Em tal caso, esperar significaria sofrer por muito

  • tempo ainda o horrendo martrio da honra ferida, diante de quem aferiu; o que pode constituir mais sofrimento do que o que vale aprpria vida.

    62. Regalando-se na vingana. Homens grosseiros que sesentem ofendidos costumam ver o grau da ofensa como o mais altopossvel, e relatam a sua causa em termos bastante exagerados,apenas para poder se regalar no sentimento de dio e vinganadespertado.

    63. Valor da diminuio . No poucos, talvez a maioria doshomens, tm necessidade de rebaixar e diminuir na sua imaginaotodos os homens que conhecem, para manter sua auto-estima euma certa competncia no agir. E, como as naturezas mesquinhasso em nmero superior, e muito importante elas terem essacompetncia...

    64. O enfurecido. Diante de um homem que se enfurececonosco devemos tomar cuidado, como diante de algum que jtenha atentado contra a nossa vida; pois o fato de ainda vivermosse deve ausncia do poder de matar; se os olhares bastassem, hmuito estaramos liquidados. trao de uma cultura grosseira fazercalar algum tornando visvel a brutalidade, suscitando o medo. Do mesmo modo, o olhar frio que os nobres tm para seus criados resduo daquela separao dos homens em castas, um trao deantigidade grosseira; as mulheres, essas conservadoras do antigo,tambm conservaram mais fielmente essa survival [sobrevivncia].

    65. Aonde pode levar a franqueza. Algum tinha o mauhbito de se expressar com total franqueza sobre os motivos pelosquais agia, que eram to bons ou ruins como os de todas aspessoas. Primeiro causou estranheza, depois suspeita, foi entoafastado e proscrito, at que a justia se lembrou de um ser toabjeto, em ocasio em que normalmente no tinha olhos ou osfechava. A falta de discrio quanto ao segredo de todos e oirresponsvel pendor de ver o que ningum quer ver a si mesmo levaram-no priso e morte prematura.

    66. Punvel, jamais punido. Nosso crime em relao aoscriminosos consiste em trat-los como patifes.

    67. "Sancta simplicitas"37 da virtude. Toda virtude temprivilgios: por exemplo, o de levar seu prprio feixezinho de lenhapara a fogueira do condenado.

    68. Moralidade e sucesso. No so apenas os espectadoresde um ato que com freqncia medem o que nele moral ou imoralconforme o seu xito: no, o seu prprio autor faz isso. Pois osmotivos e intenes raramente so bastante claros e simples, e svezes a prpria memria parece turvada pelo sucesso do ato, demodo que a pessoa atribui ao prprio ato motivos falsos ou tratamotivos secundrios como essenciais. freqente o sucesso dar aum ato o brilho honesto da boa conscincia, e o fracasso lanar a

  • sombra do remorso sobre uma ao digna de respeito. Da resulta aconhecida prtica do poltico que pensa: "Dem-me apenas osucesso: com ele terei a meu lado todas as almas honestas e metornarei honesto diante de mim mesmo". De modo semelhante, osucesso pode tomar o lugar do melhor argumento. Muitos homenscultos acham, ainda hoje, que a vitria do cristianismo sobre afilosofia grega seria uma prova da maior verdade do primeiro embora nesse caso o mais grosseiro e violento tenha triunfadosobre o mais espiritual e delicado. Para ver onde se acha a verdademaior, basta notar que as cincias que nasciam retomaram ponto aponto a filosofia de Epicuro, mas rejeitaram ponto a ponto ocristianismo.

    69. Amor e justia. Por que superestimamos o amor emdetrimento da justia e dizemos dele as coisas mais belas, como sefosse algo muito superior a ela? No ser ele visivelmente maisestpido? Sem dvida, mas justamente por isso mais agradvelpara todos. O amor estpido e possui uma abundante cornucpia;dela retira os dons que distribui a cada pessoa, ainda que ela no osmerea, nem sequer os agradea. Ele imparcial como a chuva,que, segundo a Bblia e a experincia, molha at os ossos noapenas o injusto, mas ocasionalmente tambm o justo.

    70. Execues. O que faz com que toda execuo nosofenda mais que um assassinato? a frieza dos juzes, a penosapreparao, a percepo de que um homem ali utilizado como ummeio para amedrontar outros. Pois a culpa no punida, mesmoque houvesse uma; esta se acha nos educadores, nos pais, noambiente, em ns, no no assassino refiro-me s circunstnciasdeterminantes.

    71. A esperana. Pandora trouxe o vaso38 que continha osmales e o abriu. Era o presente dos deuses aos homens,exteriormente um presente belo e sedutor, denominado "vaso dafelicidade". E todos os males, seres vivos alados, escaparamvoando: desde ento vagueiam e prejudicam os homens dia e noite.Um nico mal ainda no sara do recipiente; ento, seguindo avontade de Zeus, Pandora reps a tampa, e ele permaneceu dentro.O homem tem agora para sempre o vaso da felicidade, e pensamaravilhas do tesouro que nele possui; este se acha suadisposio: ele o abre quando quer; pois no sabe que Pandora lhetrouxe o recipiente dos males, e para ele o mal que restou o maiordos bens a esperana. Zeus quis que os homens, por maistorturados que fossem pelos outros males, no rejeitassem a vida,mas continuassem a se deixar torturar. Para isso lhes deu aesperana: ela na verdade o pior dos males, pois prolonga osuplcio dos homens.

    72. O grau de inflamabilidade moral desconhecido. Dofato de termos tido ou no certas vises ou impresses abaladoras,por exemplo, um pai injustamente condenado, morto oumartirizado, uma mulher infiel, um cruel ataque inimigo, dependeque as nossas paixes atinjam a incandescncia e dirijam ou no a

  • nossa vida inteira. Ningum sabe a que podem levar osacontecimentos, a compaixo, a indignao, ningum conhece oseu grau de inflamabilidade. Pequenas circunstncias miserveistornam miservel; geralmente no a qualidade, mas a quantidadedas vivncias que determina o homem baixo ou elevado, no bem eno mal.

    73. O mrtir contra a vontade. Em certo partido havia umhomem que era covarde e medroso demais para contradizer seuscamaradas: usavam-no para todo servio, dele alcanavam tudo,porque temia a m opinio de seus companheiros mais do que amorte; era uma alma fraca e miservel. Eles perceberam isso e,devido s caractersticas mencionadas, dele fizeram um heri e atmesmo um mrtir, por fim. Embora esse homem covarde sempredissesse intimamente no, com os lbios falava sempre sim, mesmono patbulo, quando morreu pelas idias de seu partido: pois a seulado estava um de seus velhos companheiros, que o tiranizou de talmodo, com a palavra e o olhar, que ele sofreu a morte da maneiramais decorosa e desde ento festejado como mrtir e grandecarter.

    74. Medida para todos os dias. Raramente se erra, quandose liga as aes extremas vaidade, as medocres ao costume e asmesquinhas ao medo.

    75. Mal-entendido acerca da virtude. Quem conheceu ovcio sempre ligado ao prazer, como a pessoa que teve umajuventude vida de prazeres, imagina que a virtude deve estar ligadaao desprazer. Mas quem foi muito atormentado por paixes evcios anseia encontrar na virtude o sossego e a felicidade da alma.Da ser possvel que dois virtuosos no se entendamabsolutamente.

    76. O asceta. O asceta faz da virtude uma necessidade.39

    77. A honra transferida da pessoa para a causa. Geralmentereverenciamos os atos de amor e de sacrifcio em favor doprximo, onde quer que eles se mostrem. Com isso aumentamos aapreciao das coisas que dessa maneira so amadas, ou pelasquais se faz um sacrifcio: embora elas talvez no tenham muitovalor em si. Um exrcito bravo nos convence da causa pela qualluta.

    78. A ambio como substituta do sentimento moral. Osentimento moral no pode faltar nas naturezas que no tmambio. Os ambiciosos se arrumam sem ele, quase com o mesmosucesso. Por isso os filhos de famlias modestas, alheias ambio,costumam transformar-se rapidamente em consumados cafajestes,quando perdem o sentimento moral.

    79. A vaidade enriquece. Como seria pobre o espritohumano sem a vaidade! Com ela, no entanto, ele semelha umemprio repleto e sempre reabastecido, que atrai compradores de

  • toda espcie: quase tudo eles podem achar e adquirir, desde quetragam a moeda vlida (a admirao).

    80. O ancio e a morte. Deixando parte as exigncias dareligio, lcito perguntar: por que seria mais louvvel para umhomem envelhecido, que sente a diminuio de suas foras, esperarseu lento esgotamento e dissoluo, em vez de, em claraconscincia, fixar um termo para si? Neste caso o suicdio umaao perfeitamente natural e prxima, que, sendo uma vitria darazo, deveria suscitar respeito: e realmente o suscitava, naquelestempos em que os grandes da filosofia grega e os mais valentespatriotas romanos costumavam recorrer ao suicdio. J o anseio deprolongar dia a dia a existncia, com angustiante assistncia mdicae as mais penosas condies de vida, sem fora para se aproximardo verdadeiro fim, algo muito menos respeitvel. As religiesso ricas em expedientes contra a necessidade do suicdio: com istoelas se insinuam junto aos que so enamorados da vida.

    81. Enganos do sofredor e do perpetrador. Quando umhomem rico toma um bem ao pobre (por exemplo, um prnciperouba a amada ao plebeu), produz-se um engano no pobre; ele achaque o outro deve ser um infame, para tomar-lhe o pouco que tem.Mas o outro no percebe to profundamente o valor de umdeterminado bem, pois est acostumado a ter muitos; por isso no capaz de se pr no lugar do pobre, e de modo algum lhe faz tantainjustia como ele cr. Cada um tem do outro uma idia falsa. Ainjustia do poderoso, o que mais causa revolta na histria, demodo algum to grande como parece. J o sentimento hereditriode ser algum superior, com pretenses superiores, torna a pessoafria e deixa a conscincia tranqila: nada percebemos de injusto,quando a diferena entre ns e outro ser muito grande, ematamos um mosquito, por exemplo, sem qualquer remorso. Demaneira que no h sinal de maldade em Xerxes (que mesmo osgregos descrevem como extraordinariamente nobre), quando eletoma a um pai seu filho e o faz esquartejar, porque haviamanifestado desconfiana medrosa e agourenta quanto expediomilitar:40 nesse caso o indivduo eliminado como um insetoirritante, ele se encontra baixo demais para que lhe seja permitidoprovocar, num conquistador do mundo, sentimentos que o aflijampor muito tempo. Sim, nenhum homem cruel cruel como acreditao homem maltratado; a idia da dor no a mesma coisa que osofrimento dela. O mesmo se d com o juiz injusto, ou com ojornalista que engana a opinio pblica mediante pequenasdesonestidades. Em todos esses casos, causa e efeito estoenvoltos em grupos de idias e sentimentos muito distintos;enquanto inadvertidamente se pressupe que o perpetrador e osofredor pensam e sentem do mesmo modo, e conforme essepressuposto se mede a culpa de um pela dor do outro.

    82. A pele da alma. Assim como os ossos, a carne, asentranhas e os vasos sangneos so envolvidos por uma pele quetorna a viso do homem suportvel, tambm as emoes e paixesda alma so revestidas de vaidade: ela a pele da alma.

  • 83. O sono da virtude. Depois de dormir, a virtude acordarevigorada.

    84. A sutileza da vergonha. Os homens no seenvergonham de pensar coisas sujas, mas ao imaginar que lhes soatribudos esses pensamentos sujos.

    85. A maldade rara. Os homens, em sua maioria, estoocupados demais consigo mesmos para serem malvados.

    86. O fiel da balana. Elogiamos ou censuramos, adepender de qual nos d mais oportunidade de fazer brilhar nossojulgamento.

    87. Lucas 18,14 corrigido. Quem se rebaixa quer serexaltado.

    88. Impedimento do suicdio. H um direito segundo o qualpodemos tirar a vida de um homem, mas nenhum direito que nospermita lhe tirar a morte: isso pura crueldade.

    89. Vaidade. Cuidamos da boa opinio das pessoas,primeiro porque ela nos til, depois porque queremos lhes darcontentamento (os filhos aos pais, os alunos aos mestres e aspessoas benvolas a todas as demais). Apenas quando algum achaimportante a boa opinio alheia sem considerar o proveito ou odesejo de contentar que falamos de vaidade. Nesse caso oindivduo quer contentar a si mesmo, mas custa de seussemelhantes, induzindo-os a uma falsa opinio a seu respeito ouvisando um grau de "boa opinio" em que esta vem a ser penosapara todos os demais (ao suscitar inveja). Normalmente a pessoadeseja, com a opinio alheia, atestar e reforar para si a opinio quetem de si mesma; mas o poderoso hbito de autoridade hbitoto velho quanto o ser humano leva muitos a basear tambm naautoridade a f em si mesmos, isto , a receb-la to-s das mosde outros: confiam mais no julgamento alheio do que no prprio. O interesse em si mesmo, o desejo de dar satisfao a si mesmoatinge no vaidoso um tal nvel, que ele induz os outros a umaavaliao falsa e muito elevada de si e depois se atm autoridadedos outros: ou seja, introduz o erro e acredita nele. Devemosento admitir que os vaidosos querem agradar no tanto aos demaisquanto a si mesmos, e nisso chegam a negligenciar o proveitoprprio; pois freqentemente cuidam em despertar nos seussemelhantes um nimo desfavorvel, hostil, invejoso, e portantoprejudicial, apenas para ter satisfao consigo, fruio de simesmos.

    90. Limites do amor ao prximo. Todo homem que declarouser outro um estpido, um mau companheiro, irrita-se quandoafinal ele demonstra no s-lo.

    91. Moralit larmoyante [Moralidade lacrimosa].41 Quanto

  • prazer causa a moralidade! Pensemos apenas no mar de lgrimasagradveis que j fluiu nos relatos de aes nobres e generosas!Esse encanto da vida desapareceria, se predominasse a crena nairresponsabilidade total.

    92. Origem da justia. A justia (eqidade) tem origem entrehomens de aproximadamente o mesmo poder, como Tucdides (noterrvel dilogo entre os enviados atenienses e mlios)42corretamente percebeu: quando no existe prepondernciaclaramente reconhecvel, e um combate resultaria em prejuzoinconseqente para os dois lados, surge a idia de se entender e denegociar as pretenses de cada lado: a troca o carter inicial dajustia. Cada um satisfaz o outro, ao receber aquilo que estima maisque o outro. Um d ao outro o que ele quer, para t-lo como seu apartir de ento, e por sua vez recebe o desejado. A justia ,portanto, retribuio e intercmbio sob o pressuposto de umpoderio mais ou menos igual: originalmente a vingana pertence aodomnio da justia, ela um intercmbio. Do mesmo modo agratido. A justia remonta naturalmente ao ponto de vista deuma perspicaz autoconservao, isto , ao egosmo da reflexo quediz: "por que deveria eu prejudicar-me inutilmente e talvez noalcanar a minha meta?". Isso quanto origem da justia. Dadoque os homens, conforme o seu hbito intelectual, esqueceram afinalidade original das aes denominadas justas e eqitativas, eespecialmente porque durante milnios as crianas foram ensinadasa admirar e imitar essas aes, aos poucos formou-se a aparnciade que uma ao justa uma ao altrusta; mas nesta aparncia sebaseia a alta valorizao que ela tem, a qual, como todas asvalorizaes, est sempre em desenvolvimento: pois algo altamentevalorizado buscado, imitado, multiplicado com sacrifcio, e sedesenvolve porque o valor do esforo e do zelo de cada indivduo tambm acrescido ao valor da coisa estimada. Quo poucomoral pareceria o mundo sem o esquecimento! Um poeta poderiadizer que Deus instalou o esquecimento como guardio na soleirado templo da dignidade humana.

    93. Do direito do mais fraco. Quando algum se sujeita sobcondies a um outro mais poderoso, o caso de uma cidade sitiada,por exemplo, a condio que ope a isso poder destruir a simesmo, incendiar a cidade, causando assim ao poderoso umagrande perda. Por isso ocorre uma espcie de paridade, com basena qual se podem estabelecer direitos. O inimigo enxerga vantagemna conservao. Nesse sentido h tambm direitos entreescravos e senhores, isto , exatamente na medida em que a possedo escravo til e importante para o seu senhor. O direito vaioriginalmente at onde um parece ao outro valioso, essencial,indispensvel, invencvel e assim por diante. Nisso o mais fracotambm tem direitos, mas menores. Da o famoso unusquisquetantum juris habet, quantum potentia vale [cada um tem tantajustia quanto vale seu poder] (ou, mais precisamente: quantumpotentia valere creditur [quanto se acredita valer seu poder]).43

    94. As trs fases da moralidade at agora. O primeiro sinalde que o animal se tornou homem ocorre quando seus atos j no

  • dizem respeito ao bem-estar momentneo, mas quele duradouro,ou seja, quando o homem busca a utilidade, a adequao a um fim:ento surge pela primeira vez o livre domnio da razo. Um grauainda mais elevado se alcana quando ele age conforme o princpioda honra, em virtude do qual ele se enquadra socialmente, sujeita-sea sentimentos comuns, o que o eleva bem acima da fase em queapenas a utilidade entendida pessoalmente o guiava: ele respeita equer ser respeitado, ou seja: ele concebe o til como dependentedaquilo que pensa dos outros e daquilo que os outros pensam dele.Por fim, no mais alto grau da moralidade at agora, ele ageconforme a sua medida das coisas e dos homens, ele prprio definepara si e para outros o que honroso e o que til; torna-se olegislador das opinies, segundo a noo cada vez maisdesenvolvida do til e do honroso. O conhecimento o capacita apreferir o mais til, isto , a utilidade geral duradoura, utilidadepessoal, o honroso reconhecimento de valor geral e duradouroquele momentneo: ele vive e age como indivduo coletivo.

    95. Moral do indivduo maduro. At agora a impessoalidadefoi vista como a verdadeira caracterstica da ao moral; edemonstrou-se que no incio foi a considerao pela utilidade geralque fez todas as aes impessoais serem louvadas e distinguidas.Mas no estaria iminente uma significativa transformao dessamaneira de ver, agora que cada vez mais se percebe que justamentena considerao mais pessoal possvel se acha tambm a maiorutilidade para o conjunto; de modo que precisamente o agirestritamente pessoal corresponde ao conceito atual de moralidade(entendida como utilidade geral)? Fazer de si uma pessoa inteira, eem tudo quanto se faz ter em vista o seu bem supremo isso levamais longe do que as agitaes e aes compassivas em favor deoutros. Sem dvida, todos ns sofremos ainda com a pouqussimaateno dada ao que pessoal em ns; ele est mal desenvolvido confessemos que dele subtramos violentamente nosso interesse,sacrificando-o ao Estado, cincia, ao carente de ajuda, como sefosse a parte ruim, que tivesse de ser sacrificada. E agoraqueremos trabalhar para o prximo, mas apenas enquanto vemosnesse trabalho nossa vantagem suprema, nem mais, nem menos.Trata-se apenas de saber o que se entende por vantagem prpria;justamente o indivduo imaturo, no desenvolvido e grosseiroentender isso no sentido mais grosseiro.

    96. Costumes e moral. Ser moral, morigerado, tico44significa prestar obedincia a uma lei ou tradio h muitoestabelecida. Se algum se sujeita a ela com dificuldade ou comprazer indiferente, bastando que o faa. "Bom" chamado aqueleque, aps longa hereditariedade e quase por natureza, praticafacilmente e de bom grado o que moral, conforme seja (porexemplo, exerce a vingana quando exerc-la faz parte do bomcostume, como entre os antigos gregos). Ele denominado bomporque bom "para algo"; mas como, na mudana dos costumes, abenevolncia, a compaixo e similares sempre foram sentidos como"bons para algo", como teis, agora sobretudo o benevolente, oprestativo, chamado de "bom". Mau ser "no moral" (imoral),praticar o mau costume, ofender a tradio, seja ela racional ou

  • estpida; especialmente prejudicar o prximo foi visto nas leismorais das diferentes pocas como nocivo, de modo que hoje apalavra "mau" nos faz pensar sobretudo no dano voluntrio aoprximo. "Egosta" e "altrusta" no a oposio fundamental quelevou os homens diferenciao entre moral e imoral, bom e mau,mas sim estar ligado a uma tradio, uma lei, ou desligar-se dela.Nisso no importa saber como surgiu a tradio, de todo modo elao fez sem considerao pelo bem e o mal, ou por algum imperativocategrico imanente, mas antes de tudo a fim de conservar umacomunidade, um povo; cada hbito supersticioso, surgido a partirde um acaso erroneamente interpretado, determina uma tradioque moral seguir; afastar-se dela perigoso, ainda mais nocivopara a comunidade que para o indivduo (pois a divindade pune acomunidade pelo sacrilgio e por toda violao de suasprerrogativas, e apenas ao faz-lo pune tambm o indivduo). Ora,toda tradio se torna mais respeitvel medida que fica maisdistante a sua origem, quanto mais esquecida for esta; o respeitoque lhe tributado aumenta a cada gerao, a tradio se tornaenfim sagrada, despertando temor e venerao; assim, de todomodo a moral da piedade muito mais antiga do que a que exigeaes altrustas.

    97. O prazer no costume. Um importante gnero de prazer, ecom isso importante fonte de moralidade, tem origem no hbito.Fazemos o habitual mais facilmente, melhor, e por isso de maisbom grado; sentimos prazer nisso, e sabemos por experincia que ohabitual foi comprovado, e portanto til; um costume com o qualpodemos viver demonstrou ser salutar, proveitoso, ao contrrio detodas as novas tentativas no comprovadas. O costume , assim, aunio do til ao agradvel, e alm disso no pede reflexo. Sempreque pode exercer coao, o homem a exerce para impor eintroduzir seus costumes, pois para ele so comprovada sabedoriade vida. Do mesmo modo, uma comunidade de indivduos foratodos eles a adotar o mesmo costume. Eis a concluso errada:porque nos sentimos bem com um costume, ou ao menos levamosnossa vida com ele, esse costume necessrio, pois vale como anica possibilidade na qual nos sentimos bem; o bem-estar da vidaparece vir apenas dele. Essa concepo do habitual como condioda existncia aplicada aos mnimos detalhes do costume: como apercepo da causalidade real muito escassa entre os povos e asculturas de nvel pouco elevado, um medo supersticioso cuida paraque todos sigam o mesmo caminho; e at quando o costume difcil, duro, pesado, ele conservado por sua utilidadeaparentemente superior. No sabem que o mesmo grau de bem-estar pode existir com outros costumes, e que mesmo graussuperiores podem ser alcanados. Mas certamente notam que todosos costumes, inclusive os mais duros, tornam-se mais agradveis emais brandos com o tempo, e que tambm o mais severo modo devida pode se tornar hbito e com isso um prazer.

    98. Prazer e instinto social. De suas relaes com os outroshomens o homem adquire um novo tipo de prazer, alm dassensaes prazerosas que retira de si mesmo; e com isso aumentasignificativamente o mbito das sensaes de prazer. Nisso ele

  • talvez tenha herdado muita coisa dos animais, que visivelmentesentem prazer ao brincar uns com os outros, sobretudo uma mecom seus filhotes. E lembremos as relaes sexuais, que fazemquase toda fmea parecer interessante a todo macho e vice-versa,tendo em vista o prazer. Em geral, a sensao de prazer com basenas relaes humanas torna o homem melhor; a alegria comum, oprazer desfrutado em conjunto a aumenta, d segurana aoindivduo, torna-o mais afvel, dissolve a desconfiana e a inveja:pois ele se sente bem e v que o mesmo sucede ao outro. Asmanifestaes de prazer semelhantes despertam a fantasia daempatia, o sentimento de ser igual: o mesmo fazem os sofrimentoscomuns, as mesmas tormentas, os mesmos perigos e inimigos.Com base nisso se constri depois a mais antiga aliana: cujosentido defender-se e eliminar conjuntamente um desprazerameaador, em proveito de cada indivduo. E assim o instinto socialnasce do prazer.

    99. O que h de inocente nas chamadas ms aes. Todasas "ms" aes so motivadas pelo impulso de conservao ou,mais exatamente, pelo propsito individual de buscar o prazer eevitar o desprazer; so, assim, motivadas, mas no so ms."Causar dor em si" no existe, salvo no crebro dos filsofos, etampouco "causar prazer em si" (compaixo no sentidoschopenhaueriano). Na condio anterior ao Estado, matamos oser, homem ou macaco, que queira antes de ns apanhar uma frutada rvore, quando temos fome e corremos para a rvore: comoainda hoje faramos com um animal, ao andar por regies inspitas. As ms aes que atualmente mais nos indignam baseiam-se noerro de [imaginar] que o homem que as comete tem livre-arbtrio,ou seja, de que dependeria do seu bel-prazer no nos fazer essemal. Esta crena no bel-prazer suscita o dio, o desejo de vingana,a perfdia, toda a deteriorao da fantasia, ao passo que nosirritamos muito menos com um animal, por consider-loirresponsvel. Causar sofrimento no pelo impulso de conservao,mas por represlia conseqncia de um juzo errado, e porisso tambm inocente. O indivduo pode, na condio que precedeo Estado, tratar outros seres de maneira dura e cruel, visandointimid-los: para garantir sua existncia, atravs de provasintimidantes de seu poder. Assim age o homem violento, opoderoso, o fundador original do Estado, que subjuga os maisfracos. Tem o direito de faz-lo, como ainda hoje o Estado opossui; ou melhor: no h direito que possa impedir que o faa. Sento pode ser preparado o terreno para toda moralidade, quandoum indivduo maior ou um indivduo coletivo, como a sociedade, oEstado, submete os indivduos, retirando-os de seu isolamento e osreunindo em associao. A moralidade antecedida pela coero, eela mesma ainda por algum tempo coero, qual a pessoa seacomoda para evitar o desprazer. Depois ela se torna costume,mais tarde obedincia livre, e finalmente quase instinto: ento, comotudo o que h muito tempo habitual e natural, acha-se ligada aoprazer e se chama virtude.

    100. Pudor. O pudor existe em toda parte onde h um"mistrio"; e este um conceito religioso, que tinha grande alcance

  • na poca mais antiga da cultura humana. Em toda parte havia reascircunscritas, s quais o direito divino negava o acesso, a no serem determinadas condies: puramente espaciais, antes de tudo, namedida em que certos lugares no podiam ser pisados pelos psdos no-iniciados, que tambm sentiam horror e medo na suavizinhana. De maneiras diversas este sentimento foi transferidopara outras relaes, por exemplo, para as relaes sexuais, que,sendo privilgio e dito45 da idade madura, deviam ser subtradas viso da juventude, para seu prprio bem: acreditava-se que muitosdeuses cuidavam de proteger e manter sagradas essas relaes,postados como sentinelas na cmara nupcial. (Em turco essacmara se chama harm, "santurio", designada pela mesmapalavra que se usa para os trios das mesquitas.) Assim tambm arealeza, como um centro que irradia poder e esplendor, para osdito um mistrio cheio de pudor e de sigilo: ainda hoje podemossentir muitos efeitos disso, em povos que no se incluemabsolutamente entre os pudicos. De modo semelhante, todo omundo dos estados interiores, isto que se chama "alma", aindahoje um mistrio para os no-filsofos, depois de por um tempoinfinito a considerarem digna de procedncia divina e de relaesdivinas: ela um dito, portanto, e suscita pudor.

    101. No julgueis.46 Devemos ter o cuidado de no incorrerna censura injusta, ao refletir sobre pocas passadas. A injustia daescravido, a crueldade na sujeio de pessoas e povos no deveser medida pelos nossos critrios. Pois naquele tempo o instinto dejustia no estava ainda desenvolvido. Quem pode censurar ogenebrs Calvino por fazer queimar o doutor Serveto? Foi um atocoerente, que decorreu de suas convices, e do mesmo modo aInquisio tinha suas razes; sucede que as idias dominantes eramerradas e tiveram uma conseqncia que nos parece dura, porquese tornaram estranhas para ns. E o que o suplcio de umhomem, comparado aos eternos castigos do inferno para quasetodos? Entretanto esta concepo dominou o mundo inteiro dapoca, sem que o seu horror muito maior prejudicasseessencialmente a concepo de um deus. Em nosso meio, tambmos sectrios polticos so tratados de maneira dura e cruel, mas,tendo aprendido a crer na necessidade do Estado, no sentimos acrueldade tanto como no caso em que reprovamos as idias. Acrueldade com os animais, entre as crianas e os italianos, temorigem na incompreenso; devido aos interesses doutrinrios daIgreja, os animais foram colocados bem abaixo dos homens. Muitas coisas terrveis e desumanas na histria, nas quaisdificilmente se cr, so amenizadas pela considerao de que osujeito que ordena e o que executa so pessoas diferentes: oprimeiro no v o fato, logo no tem a imaginao impressionada; osegundo obedece a um superior, no se sente responsvel. Por faltade imaginao, os prncipes e chefes militares parecem cruis eduros em sua maioria, e no o so. O egosmo no mau,porque a idia de "prximo" a palavra de origem crist e nocorresponde verdade muito fraca em ns; e nos sentimos,em relao a ele, quase to livres e irresponsveis quanto emrelao a pedras e plantas. Saber que o outro sofre algo que seaprende, e que nunca pode ser aprendido inteiramente.

  • 102. "O homem sempre age bem" . No acusamos anatureza de imoral quando ela nos envia uma tempestade e nosmolha; por que chamamos de imoral o homem nocivo? Porqueneste caso supomos uma vontade livre, operando arbitrariamente, enaquele uma necessidade. Mas tal diferenciao um erro. Almdisso, nem a ao propositadamente nociva considerada sempreimoral; por exemplo, matamos um mosquito intencionalmente esem hesitao, porque o seu zumbido nos desagrada; condenamoso criminoso intencionalmente e o fazemos sofrer, para proteger ans e sociedade. No primeiro caso o indivduo que, paraconservar a si mesmo ou apenas evitar um desprazer, faz sofrerintencionalmente; no segundo o Estado. Toda moral admite aesintencionalmente prejudiciais em caso de legtima defesa: isto ,quando se trata da autoconservao! Mas esses dois pontos devista so suficientes para explicar todas as ms aes que oshomens praticam uns contra os outros: o indivduo quer para si oprazer ou quer afastar o desprazer; a questo sempre, emqualquer sentido, a autoconservao. Scrates e Plato estocertos: o que quer que o homem faa, ele sempre faz o bem, isto :o que lhe parece bom (til) segundo o grau de seu intelecto,segundo a eventual medida de sua racionalidade.

    103. O que h de inocente na maldade. A maldade no tempor objetivo o sofrimento do outro em si, mas nosso prprioprazer, em forma de sentimento de vingana ou de uma mais forteexcitao nervosa, por exemplo. J um simples gracejo demonstracomo prazeroso exercitar nosso poder sobre o outro e chegar aoagradvel sentimento da superioridade. Ento o imoral consiste emter prazer a partir do desprazer alheio? diablica a satisfaocom o mal alheio,47 como quer Schopenhauer? Na naturezaobtemos prazer quebrando galhos, removendo pedras, lutando comanimais selvagens, para nos tornarmos conscientes de nossa fora.Saber que outro sofre por nosso intermdio tornaria imoral amesma coisa pela qual normalmente no nos sentimosresponsveis? Se no o soubssemos, contudo, tambm noteramos prazer em nossa prpria superioridade, que justamente sse pode dar a conhecer no sofrimento alheio, no gracejo, porexemplo. Em si mesmo o prazer no bom nem mau; de onde viriaa determinao de que, para ter prazer consigo, no se deveriasuscitar o desprazer alheio? Unicamente do ponto de vista dautilidade, ou seja, considerando as conseqncias, o desprazereventual, quando o prejudicado ou o Estado que o representa leva aesperar punio e vingana: apenas isso, originalmente, pode terfornecido o fundamento para negar a si mesmo tais aes. Assim como a maldade no visa ao sofrimento alheio em si, comoj disse, tambm a compaixo no tem por objetivo o prazer dooutro. Pois ela abriga no mnimo dois (talvez muitos mais)elementos de prazer pessoal, e , desta forma, fruio de si mesma:primeiro como prazer da emoo, a espcie de compaixo que hna tragdia, e depois, quando impele ao, como prazer dasatisfao no exerccio do poder. Alm disso, se uma pessoa quesofre nos bastante prxima, livramos a ns mesmos de umsofrimento, ao realizar atos compassivos. parte algunsfilsofos, os homens sempre situaram a compaixo num nvel

  • baixo, na hierarquia dos sentimentos morais; e com razo.

    104. Legtima defesa. Se admitimos a legtima defesa comomoral, devemos tambm admitir todas as expresses do chamadoegosmo imoral: causamos a dor, roubamos ou matamos a fim denos conservar ou nos proteger, a fim de prevenir uma desgraapessoal; mentimos, quando a astcia e o fingimento so meioscorretos para a autoconservao. Causar dano intencionalmente,quando est em jogo nossa existncia ou segurana (conservaode nosso bem-estar), admitido como sendo moral; desse ponto devista o prprio Estado causa danos, ao decretar penas. Na causaoinvoluntria de danos no pode, naturalmente, haver o imoral; nelagoverna o acaso. H ento uma espcie de dano intencional em queno esteja em jogo a nossa existncia, a conservao de nossobem-estar? Existe um comportamento danoso por pura maldade,na crueldade, por exemplo? Quando no sabemos o mal que fazuma ao, ela no uma ao maldosa; a criana no malignanem perversa com os animais: ela os investiga e os destri comoum brinquedo. Mas alguma vez se sabe inteiramente quanto mal fazuma ao a um outro ser? At onde se estende o nosso sistemanervoso, ns nos protegemos contra a dor: se o seu alcance fossemaior, isto , se inclusse nossos semelhantes, no faramos mal aningum (a no ser nos casos em que o fazemos a ns mesmos,isto , quando nos cortamos para nos curar, nos esforamos e nosfatigamos em prol da sade). Ns inferimos por analogia que umacoisa faz mal a algum, e por meio da lembrana e da fora daimaginao podemos ns mesmos passar mal com aquilo. Mas quediferena persiste entre uma dor de dente e a dor (compaixo)provocada pela viso de uma dor de dente? Ou seja: nocomportamento danoso por aquilo que se chama maldade, o grauda dor produzida para ns desconhecido, em todo caso; mas namedida em que h um prazer na ao (sentimento do prprio poder,da intensidade da prpria excitao), a ao ocorre para conservaro bem-estar do indivduo, sob um ponto de vista similar ao dalegtima defesa, ao da mentira por necessidade. Sem prazer no hvida; a luta pelo prazer a luta pela vida. Se o indivduo trava essaluta de maneira que o chamem de bom ou de maneira que ochamem de mau, algo determinado pela medida e a natureza deseu intelecto.

    105. A justia premiadora. Quem compreendeu plenamentea teoria da completa irresponsabilidade j no pode incluir achamada justia punitiva e premiadora no conceito de justia; seesta consiste em dar a cada um o que seu. Pois aquele que punido no merece a punio: apenas usado como meio paradesencorajar futuramente certas aes; tambm aquele que premiado no merece o prmio: ele no podia agir de outro modo.O prmio tem apenas o sentido, portanto, de um encorajamentopara ele e para outros, a fim de proporcionar um motivo para aesfuturas; o louvor dirigido quele que corre na pista, no queleque atingiu a meta. Nem o castigo nem o prmio so algo devido auma pessoa como seu; so-lhe dados por razes de utilidade, semque ela possa reivindic-los justamente. Deve-se dizer que "o sbiono premia porque se agiu bem", tal como j se disse que "o sbio

  • no castiga porque se agiu mal, mas para que no se aja mal". Sedesaparecessem o castigo e o prmio, acabariam os motivos maisfortes que nos afastam de certas aes e nos impelem a outras; ointeresse dos homens requer a permanncia dos dois; e, na medidaem que o castigo e o prmio, a censura e o louvor afetamsensivelmente a vaidade, o mesmo interesse requer tambm apermanncia da vaidade.

    106. Junto cachoeira. vista de uma cachoeira,acreditamos ver nas inmeras curvas, serpenteios, quebras deondas, o arbtrio da vontade e do gosto; mas tudo necessrio,cada movimento matematicamente calculvel. Assim tambmcom as aes humanas; deveramos poder calcular previamentecada ao isolada, se fssemos oniscientes, e do mesmo modocada avano do conhecimento, cada erro, cada maldade. cer