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Nº 01Mar/Abr/Mai 2011

CadernosJurídicosdaEscolaDireitode

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Cadernos Jurídicos da Escola de Direito da Faculdade Paranaense. - V. 1, N. 1 (mar.abr.mai., 2011) -. Curitiba: Faculdade Paranaense, 2011.

1. Direito - periódicos

Este Caderno não é responsável pelas idéias emitidas nos artigos publicados, que devem ser reputadas exclusivamente aos autores.

É permitida a reprodução parcial dos textos, desde que citada a fonte e o autor.

Periodicidade: semestral

Publicação Eletrônica

Faculdade Paranaense - FAPARAlameda Dom Pedro II, 432 - BatelCEP 80420-060 Curitiba, Paraná, BrasilTel. (41) 3015-4601www.fapar.edu.br

Versão eletrônica da Revista:www.fapar.edu.br

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Faculdade Paranaense - FAPAR

Cadernos Jurídicos da Escola de Direitoda Faculdade Paranaense

Nº 01Mar/Abr/Mai 2011

Curitiba, Paraná, Brasil

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COMO PARTICIPARMagistrados e/ou acadêmicos de todo o país que queiram enviar trabalho ou decisão para publicação no “Cadernos Jurídicos” acerca de temas atuais de interesse para a comunidade jurídica, julgados recentes de todas as instâncias, comentários e estudos sobre novas tendências jurisprudenciais e alterações legislativas diretamente ligadas à atividade jurisprudencial, devem fazê-lo juntando ao material impresso, gravação em mídia eletrônica, na versão de aplicativos de texto (*.doc, *.rtf, *.odt, *.sxf) e enviá-los para o endereço:

Escola de Direito da Faculdade Paranaense - FAPARAlameda Dom Pedro II, 432 - BatelCEP 80420-060 Curitiba, Paraná, BrasilTel. (41) 3015-4601www.fapar.edu.br | E-mail: [email protected]

Os trabalhos e decisões passarão pela avaliação da Comissão Organizadora que poderá ou não recomendar sua publicação, tendo em vista os objetivos da publicação. A publicação não implica na cessão dos direitos autorais correspondentes à IES.

Faculdade Paranaense - FAPARConselho Editorial Provisório

Direção AcadêmicaProf. Esp. Adalberto Nazareth de Almeida camargoCoordenação PedagógicaProf. Esp. Paulo Roberto de AraújoCoordenação do Curso de DireitoProf. Me. Paulo Cipriano CoenCoordenação do Núcleo de Práticas JurídicasProf. Me. André Barbieri Souza

Convidados para a presente edição:Corpo Docente:Guilherme Augusto Bittencourt CorrêaEduardo Biacchi Gomes Marcelo Lebre Cruz

Corpo Discente:Jeferson Alves Noronha

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Sumário

Apresentação ................................................................................................................... 09Marcelo Lebre Cruz

Corpo Docente

O Inimigo do Poder Judiciário Brasileiro a partir da Concepção de Carl Schmitt ......... 13Guilherme Augusto Bittencourt Corrêa

Os Direitos Fundamentais e Sociais do Trabalhador à luz do 5º, paragráfo 3º da Constituição Federal: uma análise a partir da Convenção das Pessoas com Defi ciência, 2006 ......... 31Eduardo Biacchi Gomes e Paulo Cipriano Coen

Pluralismo e Estados Pós-Nacionais: o Discurso Normalizante dos Direitos Humanos ....43Marcelo Lebre Cruz

Corpo Discente

O Apenamento do Estado Inerte, segundo a Teoria Funcional do Delito ....................... 63Jeferson Alves Noronha

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Apresentação

É com grande satisfação que iniciamos uma nova etapa na história da jovem e promissora Faculdade Paranaense (FAPAR). A instituição, que inaugurou seu curso de graduação em Direito no ano de 2006, já pôde demonstrar - por meio de inovadores projetos - que veio com um propósito diferenciado, visando uma preparação de excelência e cercada de valores humanísticos.

E este é mais um destes grandes projetos. A publicação de uma revista científi ca é sempre festejada pela comunidade acadêmica, especialmente quando se atenta à qualidade editorial e ao rigor técnico de seus trabalhos – como ocorre com a presente publicação.

Cabe destacar que esta revista jurídica é fruto de um esforço coletivo, empreendido por uma equipe séria e titulada de professores, coordenadores e diretores (alguns que já passaram e outros que ainda se fazem presentes na estrutura) da Instituição.

Com esta, temos em mente a criação de um veículo que propicie a discussão de teoria e jurisprudência sob uma perspectiva crítica e emancipatória. Objetivamos também ofertar aos nossos alunos e professores um canal para que possam expor suas idéias e refl exões, bem como para criar uma maior interlocução com outras instituições de Ensino Superior, nacionais e estrangeiras.

Em suma: para além de representar o ápice de refl exões jurídicas já consolidadas, a revista jurídica da Faculdade Paranaense servirá de palco para a formulação e desenvolvimento de novas idéias, as quais tendem a ultrapassar as barreiras da academia rumo à sua livre propagação na sociedade.

Que esta publicação (bem como as que certamente virão na sequência) possa honrar, com fi delidade, o pensamento libertário e democrático que permeia os corredores desta Instituição de Ensino.

Prof. Marcelo LebreCuritiba, PR

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Corpo Docente

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O Inimigo do Poder Judiciário Brasileiroa partir da Concepção de Carl Schmitt

Guilherme Augusto Bittencourt Corrêa *

RESUMO

O presente estudo inicia-se com uma breve análise das idéias de Carl Schmitt expressadas na obra “O conceito do Político”. Não se traz no presente estudo a totalidade das idéias do autor alemão, mas um apanhado geral, com destaque para as idéias a respeito da presença do inimigo. Além disso, busca-se trazer no presente estudo as causas dos problemas do Poder Judiciário, demonstrando que todas elas levam à ocorrência de um problema maior ainda, representado pela morosidade do processo. Ao fi nal, procura-se fazer uma ponte com os pensamentos de Schmitt demonstrando que estes problemas do Poder Judiciário e consequentemente a morosidade deste aparecem como verdadeiros inimigos do Poder Judiciário, inimigos estes conceituados a partir da idéia do autor alemão.

PALAVRAS-CHAVE: Poder Judiciário. Inimigo em Carl Schmitt. Problemas do Poder Judiciário. Morosidade Processual.

1 INTRODUÇÃO

O presente estudo tem por objetivo trazer a idéia de inimigo, tratada por Carl Schmitt em sua célebre obra “O conceito do Político”,1 para os dias atuais, tentando fazer uma breve e simples relação com um grande problema e, por assim dizer, inimigo do processo e do Poder Judiciário, qual seja, o tempo do processo, ou seja, a sua excessiva duração. Ainda, demonstrar-se-á alguns outros problemas do Poder Judiciário que levam à esta morosidade

* Mestre em Direito– UFPR. Professor Universitário. Advogado Militante em Curitiba – Paraná.1 “Carl Schmitt é sem dúvida o maior pensador político do século XX e o conceito do político é certamente de toda sua

vasta bibliografi a a obra mais conhecida, talvez por essa razão tenha permanecido durante um longo período como sendo o único livro do jurista traduzido para língua inglesa”. SILVA, Washington Luiz. Carl Schmitt e o conceito limite do político. Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0100-512X2008000200010&script=sci_arttext) no dia 23/07/2009, às 11:15 horas.

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O Inimigo do Poder Judiciário Brasileiro a partir da Concepção de Carl Schmitt

e que, apesar de inimigos de todos, por vezes não são enfrentados adequadamente, a fi m de que se legitimem discursos e atitudes decorrentes destes mesmos problemas.

Aqui não se pretende aprofundar de forma extremada nas idéias de Schmitt, uma vez que isso é comumente feito por diversos autores da área da fi losofi a e da teoria do direito.

O intuito aqui, como o autor do presente estudo dedica-se ao estudo do processo civil, sobretudo de forma a viabilizar um maior e melhor acesso à justiça, é tentar demonstrar como a idéia de inimigo de Carl Schmitt pode ser tratada no campo do processo civil brasileiro e como estes inimigos, por vezes combatidos, acabam legitimando os discursos.

Ou seja, procura-se utilizar as idéias do citado autor com o intuito de demonstrar algumas justifi cativas para certas situações pouco tratadas pela doutrina, situações que passam despercebidas e, que, por vezes, carecem de maiores discussões devido à existência de discursos sedimentados e silenciadores, os quais não aprofundam o debate para novas discussões.

Entende-se que não há muito sentido em estudar as idéias do citado autor para seu conhecimento puro e simples. A função dos estudiosos, no caso do Direito, é procurar identifi car problemas e procurar resolvê-los.

No presente caso, busca-se a utilização das idéias defendidas por Carl Schmitt como forma de demonstrar e enfrentar os grandes problemas que assolam o Poder Judiciário, mas que refl etem em toda a sociedade.

Pensa-se que, idéias trazidas há algumas décadas possam ser trazidas à realidade atual como forma de demonstrar certas situações. Espera-se que tal trabalho não sirva somente para identifi car os problemas, mas sim também como forma de enxergá-los sobre outro viés e, por meio desta nova “visão”, buscar novas soluções e saídas.

Nas linhas abaixo, de forma breve, será demonstrado que alguns dos grandes problemas do Poder Judiciário Brasileiro, por vezes estão nas pessoas, em interesses mesquinhos, situação bem diferente da retratada por meio de discursos dos operadores jurídicos.

2 O INIMIGO EM CARL SCHMITT

O citado autor teve como inspiração para suas obras suas observações pessoais durante o regime nazista. Era integrante deste partido, porém possuía grandes amigos judeus que foram perseguidos durante o regime e por isso, chegou a ser expulso do partido nazista, inclusive tendo que fugir e teve que parar de escrever o que pensava.

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Guilherme Augusto Bittencourt Corrêa

Como já dito anteriormente, aqui não se quer aprofundar especifi camente no pensamento do autor, mas uma breve análise sobre seu pensamento se impõe.

Em sua obra, “O conceito de político”, dentre as várias questões tratadas, Schmitt procura demonstrar que o político, o conceito do político, depende da existência de um inimigo. Ou seja, não há política sem inimigo. E, procura ele defi nir o inimigo como aquele contra quem todo um grupo luta, onde não existiria a pluralidade,2 uma vez que todos, sem exceção, teriam o mesmo inimigo em comum. Para ele ao se admitir o pluralismo político, admitir-se-iam a existência de vários grupos, cada grupo com um inimigo diferente, faltando unidade. Desta forma, devido a esta ausência de unidade faltaria o inimigo em comum e, consequentemente faltaria também o político.3

Em breves palavras este seria a condição para a política, qual seja, a existência de um inimigo.

Ainda, importa ressaltar que na referida obra fi ca clara a situação de que, com a existência desse inimigo comum, muitas atitudes, contra este inimigo em comum acabam sendo legitimadas, tudo em prol da destruição deste inimigo.

Schmitt fala em guerra contra este inimigo, enaltecendo que o Estado, político, possui o jus belli e, por isso, faz a guerra para destruir o inimigo. Nas situações trazidas por Schmitt ele trata efetivamente de guerra literalmente pensando, em mortes, em combate. É claro que no presente estudo não se adotará a “guerra ao inimigo” neste sentido, mas sim, uma guerra sem sangue, sem mortes, mas que também destrói este inimigo, que na verdade é um inimigo imaterial, mas que gera consequência materiais bastante gravosas e traumáticas.

Ainda, em continuidade da análise da obra, Schmitt diz que o mundo, durante sua evolução altera as zonas de interesse. Como exemplo diz que as zonas se alteram até que se encontre uma zona neutra, em que não haja inimigos e nem confl itos. Mesmo não acreditando nisso, exemplifi ca dizendo que na atualidade a zona é a técnica, em que, as grandes ações dos povos, são voltadas para a obtenção da técnica e os inimigos também são desta forma defi nidos.

2 “A unidade política é justamente, por essência, a unidade determinante, independentemente de que forças ela extrai seus últimos motivos psicológicos. Ela existe ou não existe. Quando ela existe, é a unidade suprema, isto é, aquela que deter-mina o caso decisivo. Que o Estado seja uma unidade, e mesmo a unidade que dá a norma ou a medida, isto se baseia em seu caráter político. Uma teoria pluralista é ou a teoria política de um Estado que chega à unidade por meio de um federalismo de agremiações sociais ou então á apenas uma teoria da dissolução ou da refutação do Estado”. SCHMITT, Carl. O Conceito do Político. Trad. Alvaro L. M. Valls. Petrópolis: Vozes, 1992. p. 69.

3 “Esta teoria política é, sobretudo, pluralista em si mesma, isto é, ela não tem nenhum centro unitário, porém extrai seus motivos teóricos de círculos de idéias bem diversos (religião, economia, liberalismo, socialismo, etc); ela ignora o conceito central de toda teoria do Estado, o político, e não discute nem mesmo a possibilidade de que o pluralismo das agremiações pudesse conduzir a uma unidade política construída de maneira federalista; ela se atola num individualismo liberal, porque em última análise ela não faz outra coisa senão jogar uma associação contra outra, a serviço do indivíduo livre e suas livres associações, quando então todas as questões e todos os confl itos vêm a ser decididos a partir do indivíduo. Na verdade não há nenhuma ‘sociedade’ política ou ‘associação’ política, existe apenas uma unidade política, uma ‘co-munidade’ política. A possibilidade real do agrupamento de amigo e inimigo já é sufi ciente para criar além do meramente social-associativo, uma unidade normativa, que é algo de especifi camente diferente e frente às demais associações algo de decisivo. Se esta unidade deixa de existir, mesmo na eventualidade, deixa também de existir o próprio político”. SCHMITT, Carl. Idem, p. 70.

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O Inimigo do Poder Judiciário Brasileiro a partir da Concepção de Carl Schmitt

Por exemplo, diante da descoberta de que determinada nação conseguiu desenvolver uma bomba atômica, outras nações maiores e já detentoras desta técnica, atacam esta nação menor, com o objetivo de destruição deste inimigo, com o discurso de que os ataques são para o bem de todos, para o bem da humanidade.

Porém, ao mesmo tempo em que se luta contra este inimigo e se quer destruí-lo, pensa-se que a ausência total do inimigo não é viável, já que sem este, não haverá política e nem novos confl itos, não sendo legitimadas determinadas atitudes.

A idéia central, ao ver do autor do presente estudo, é a de que, muitas ações e discursos somente serão legitimados, quando da existência do inimigo, ou seja, há a necessidade de luta contra esse inimigo, contra esse mal, porém, uma destruição total desse inimigo faria com que não houvesse mais razões nem legitimação para a luta contra este mesmo inimigo.

3 O PODER JUDICIÁRIO BRASILEIRO

3.1 PANORAMA GERAL

O Poder Judiciário aparece na Constituição de 1988 como um dos três poderes fundamentais da República. Tem como função precípua a função jurisdicional, porém, de forma residual também exerce as funções administrativa e legislativa.4

Entende-se que o Poder Judiciário aparece como uma forma de coibir e controlar5, 6

eventuais abusos e arbitrariedades dos demais poderes, sendo indispensável, portanto, à Constituição de um efetivo Estado Democrático.7

4 “A função típica do Poder Judiciário é a jurisdicional, ou seja, julgar aplicando a lei a um caso concreto, que lhe é posto, resultante de um confl ito de interesses. Portanto, a função jurisdicional consiste na imposição da validade do orde-namento jurídico, de forma coativa, toda vez que houver necessidade. O Judiciário, porém, como os demais poderes, possui outras funções, denominadas atípicas, de natureza administrativa e legislativa”. MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil Interpretada. 7 ed. São Paulo: Ed. Atlas, 2007, p. 1319.

5 “O Poder de apreciação da legalidade de qualquer ato da Administração Pública pelo Judiciário é determinação cons-titucional, logo, não se questiona a possibilidade de controle de tais atos, mas sim a operacionalização e a materialização dessa fundamental atividade estatal”. FRANÇA, Phillip Gil. O controla da administração pública e sua efetividade no Estado Contemporâneo. In: Interesse Público (Revista Bimestral de Direito Público). Belo Horizonte: Editora Fórum, n. 43, p. 167-197, mai/jun. 2007, p. 192.

6 “O controle jurisdicional da administração é princípio estruturante do Estado de Direito. A possibilidade de con-trole jurisdicional, como hoje se conhece, com infl uência da Constituição Americana, sobretudo de Marschall, do judicial review, aparece na Constituição da República, 1891, e sobrevive até agora. A possibilidade de controle judicial é a mola propulsora do Estado de Direito”. FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Controle jurisdicional da administração pública. Revista de Direito Administrativo e Constitucional, Curitiba, n. 6, 2001.

7 “O Poder Judiciário é um dos três poderes clássicos previstos pela doutrina e consagrado como poder autônomo e independente de importância crescente no Estado de Direito, pois, como afi rma Sanches Viamonte, sua função não consiste somente em administrar a Justiça, sendo mais, pois seu mister é ser o verdadeiro guardião da Constituição, com a fi nalidade de preservar basicamente os princípios da legalidade e da igualdade, sem os princípios de organização política, incorpo-rados pelas necessidades jurídicas na solução de confl itos. Assim, é preciso um órgão independente e imparcial para velar pela observância da Constituição e garantidor da ordem na estrutura governamental, mantendo em seus papéis tanto o Poder Federal como as autoridades dos Estados Federados, além de consagrar a regra de que a Constituição limita os poderes dos órgãos da soberania”. MORAES, Alexandre de. Obra citada, p. 1318-1319.

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Guilherme Augusto Bittencourt Corrêa

Atualmente o Poder Judiciário brasileiro passa por uma crise8 e sempre se procuram soluções e promessas milagrosas,9 que em nada melhoram, ou muito pouco acrescentam aos graves problemas que enfrenta a justiça brasileira.

Independentemente das “soluções” ou tentativas de solução, os problemas estão aí,

dizendo alguns, inclusive, que o Poder Judiciário não está em crise, mas sim, esta em seu estado normal, ou seja, vive numa constante crise.

É bem sabido da falta de estrutura do Poder Judiciário, dos problemas administrativos e em alguns casos até problemas ligado à corrupção, situações estas que afetam sobremaneira o bom funcionamento do Poder Judiciário.10

Sendo assim, não restam dúvidas da “crise”, ou melhor, da existência de grandes problemas pelos quais passa o Poder Judiciário Brasileiro, problemas estes que geram graves conseqüências para a população brasileira como um todo.

Essa crise do Poder Judiciário é tão notória que não são raros os discursos de autoridades políticas e judiciárias no sentido de procurar resolver tais problemas, problemas estes que serão melhor analisados abaixo.

3.2 AS POSSÍVEIS CAUSAS DOS PROBLEMAS DO PODER JUDICIÁRIO11

Atualmente procura-se discutir em congressos, seminários, palestras, livros, artigos e nos ambientes acadêmicos quais seriam as causas do Problema que assola o Poder Judiciário.

Não há dúvidas, de que mesmo com seus problemas, o Judiciário ainda parece ser o Poder de maior credibilidade. Ao que parece, não somente pelos seus méritos e acertos, mas sobretudo pelos erros, deméritos e escândalos que frequentemente são noticiados e que formam a opinião pública a respeito dos demais Poderes da República.

8 “Há um consenso de que o Judiciário está em séria crise. Admitem-na até representantes de sua cúpula. Há nele um processo de deteriorização. Já não tem sido o ‘oráculo vivo da lei’, assim considerado por Blackstone. Não é mais a espada dos fracos e oprimidos e a garantia dos injustiçados, porque não tem podido, sem medo, desfraldar a bandeira da lei”. BEMFICA, Francisco Vani. O Juiz, o Promotor, o Advogado. Seus poderes e deveres. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1989, p. 5.

9 “Cada vez que a crise do Judiciário se agudiza – através da infetividade, acesso à justiça, lentidão da máquina, etc – o establishment responde com soluções ad hoc, como por exemplo, uma pífi a reforma do processo civil, a lei dos juizados especiais cíveis e criminais (já em vigor) e o nefasto projeto (de poder) representado pelas súmulas vinculantes”. STRECK, Lênio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise: Uma exploração hermenêutica da construção do direito. 3 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2001, p. 69-70.

10 “A jurisdição, para se desincumbir do seu dever de prestar a tutela jurisdicional em prazo razoável, necessita de boa estrutura, ou seja, de pessoal qualifi cado, tecnologia e material de expediente idôneos. Para tanto, o Poder Judiciário precisa de orçamento adequado. O Estado é obrigado a reservar parte da sua receita para dotar o Judiciário de forma a lhe permitir a prestação da tutela jurisdicional de forma efetiva e célere. Portanto, o direito fundamental à duração razoável exige do Executivo uma prestação de caráter econômico. O Executivo, diante deste direito fundamental, é gravado por um dever de dotação”. MARINONI, Luiz Guilherme. Direito fundamental à duração razoável do processo. In: Interesse Público (Revista Bimestral de Direito Público). Belo Horizonte: Editora Fórum, n. 51, p. 42-60, set./out. 2008, p. 50.

11 Ver: SÁ, Djanira Maria Radamés de. A atividade recursal civil na reforma do poder judiciário. São Paulo: Editora Pillares, 2006.

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O Inimigo do Poder Judiciário Brasileiro a partir da Concepção de Carl Schmitt

Talvez, os problemas do Poder Judiciário não sejam tão diferentes assim dos ocorridos no Legislativo e no Executivo, mas são mais mascarados, seja pela impossibilidade de um controle externo e direto da população, seja pelo formalismo e conservadorismo que assola este Poder. Tais questões são de grande importância, mas aqui não possuem espaço. Como já dito anteriormente o estudo não pretende solucionar nenhum problema, não que o autor não se preocupe com isso, mas aqui se espera apenas uma refl exão sobre o problema, ou apenas uma exposição do problema.

A resolução do problema passaria por muito mais do que estas poucas páginas deste artigo, por isso a impossibilidade. O que se prega aqui é a honestidade intelectual, não se nega a incompetência do presente trabalho para a resolução de tão grave problema.

Mas, sem mais delongas, passa-se à enumeração das possíveis causas dos problemas do Poder Judiciário.

3.2.1 Excesso de recursos12

A primeira grande causa trazida pelos estudiosos é a amplitude do sistema recursal brasileiro. É evidente que no direito processual brasileiro a quantidade de recursos é enorme. Mas será, que a diminuição dos mesmos seria a solução?13 Teríamos um processo mais célere? Mais justo?

Não há como se chegar a uma resposta de certeza para esta indagação. Talvez a retirada de recursos, como ocorre na Justiça do Trabalho, em que não se tem o Agravo de Instrumento, não diminua tanto assim o tempo do processo, uma vez que a matéria que não foi alvo de recurso num primeiro momento seria em um segundo momento, juntamente com outras questões, o que também poderia levar mais tempo de análise, devido à maior amplitude deste recurso posterior.

E, pensar-se numa exclusão total dos recursos seria um total absurdo, ter-se-ia uma “justiça” mais rápida, mas também ter-se-iam juízes “donos da verdade”, já que suas decisões e opiniões seriam incontestáveis e imutáveis, transformando-os, em possíveis

12 “A proliferação dos recursos, assecuratórios é certo, de decisões mais aprimoradas e justas, conduz, porém, ine-xoravelmente ao retardamento da solução do litígio”. Neste sentido ver: MARTINS, Francisco Peçanha. A crise do poder judiciário: causas e soluções. Publicado em 1999 Disponível em (http://bdjur.stj.gov.br/dspace/handle/2011/16712) em 02/08/2009, às 15:00 horas.

13 Em entrevista à revista Consulex a professora Teresa Arruda Alvim Wambier manifestou-se a respeito de uma per-gunta em que a entrevistadora citava a frase do Ministro do STJ, Nilson Naves, em que este disse que “para cada espirro do juiz, existe um agravo (recurso)”, dizendo: “Não concordo integralmente com essa frase. Primeiro porque é um direito da parte recorrer. Em segundo lugar, porque os recursos não podem ser tidos como o ‘bode expiatório’ das mazelas do Judiciário. Faltam juízes. Faltam recursos. Falta boa vontade. Falta tudo. E os recursos é que devem ser eliminados do sistema??? Certa feita ouvi de um renomado professor paulista uma estatística que me deixou muito impressionada. Dizia ele que, num determinado órgão colegiado de um dos então existentes Tribunais de Alçada Civil de SP, aproximadamente 64% dos agravos eram providos. Logo, parece-me que ‘os espirros é que estavam errados’.” WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Excesso de recursos, um bode expiatório. Entrevista disponível na íntegra em (http://www.faceb.edu.br/faceb/RevistaJuridica/m193-003.htm) em 30/07/2009, às 10:30 horas.

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Guilherme Augusto Bittencourt Corrêa

tiranos. Além disso, poder-se-iam ter decisões rápidas, porém injustas no seu mérito,14 o que levaria a um novo desequilíbrio no Poder Judiciário.

3.2.2 Excessivo Número de Processos para Julgar15

Grande problema, problema este sempre levantado pelos magistrados, é o de que hoje existe um grande número de processos por juiz, o que faz com que as decisões demorem a ser proferidas. Ou se, proferidas em tempo razoável, são eivadas de muitos vícios, tudo devido a uma quantidade desumana de processos sob a responsabilidade do magistrado.

Portanto, este outro problema elencado, o excessivo número de processos. Tal situação decorre, para alguns, do fato de que se ampliou o acesso à justiça, ampliou-se a tutela de direitos que até então não eram tutelados. Com a nova sociedade, voltada eminentemente para o consumo, novos confl itos surgiram, confl itos estes que bateram às Portas do Judiciário, aumentando demasiadamente o número de situações que procuram amparo nas decisões do Poder Judiciário.

3.2.3 Falta de Juízes

Outra das possíveis causas que levam aos problemas do Poder Judiciário é a falta de magistrados. Por vezes notam-se situações (como nos Juizados Especiais Cíveis de Curitiba-PR) que a falta de juízes atrapalha em muito no andamento dos processos, levando à uma morosidade excessiva dos processos e, por consequência, em uma queda da qualidade dos serviços do Poder Judiciário e no descrédito deste.

Na instituição acima citada, existem cinco juízes no momento, para atender a oito secretarias (serventias judciais). Somente para se ilustrar, em média são ajuizadas 35.000 (trinta e cinco mil) ações por ano, que serão, ou deveriam ser julgadas por estes cinco

14 “A impugnação de qualquer providência judicial pressupõe a confi guração de alguma lesividade capaz de ensejar ao litigante prejudicado o interesse de manifestar a sua insatisfação com o escopo de obter a reforma da decisão. Liebman nos fornece os contornos bem defi nidos do que venha a ser impugnação judicial: ‘ Do ponto de vista subjetivo, impugnação é o poder que a lei atribui a um sujeito de pedir um novo exame da causa e a pronúncia de uma nova decisão; do ponto de vista objetivo, é o ato através do qual tal poder é exercido e também o inteiro procedimento que vem iniciado com este ato. Ressalta ainda o saudoso Mestre italiano que todas as decisões, como cada ato humano, podem ser defeituosas ou equivo-cada. As impugnações aparecem como remédios que a lei coloca à disposição das partes para provocar o mesmo juiz, ou de instância superior, a proferir um novo juízo que se espera imune do defeito ou do erro da decisão precedente recorrida. A probabilidade de obter com o exercício desses remédios uma decisão mais justa é inerente ao fato de que a nova decisão será pronunciada em via de controle e de reexame crítico daquilo que foi colocado no juízo recorrido, acrescido da circuns-tância de que o novo juízo será composto por um órgão diverso (...)”.FIGUEIRA JR, Joel Dias. Dos Juizados Especiais Cíveis. In: FIGUEIRA JR, Joel Dias; LOPES, Maurício Antônio Ribeiro. Comentários à Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1995, p. 186-187.

15 “Apesar de todas as difi culdades por que passa o Poder Judiciário, tais como o excesso de processos e a falta de aparelhamento da Justiça, entre outras, o atual presidente do STJ demonstrou seu otimismo e sua fé e segundo suas próprias palavras, inabalável na Justiça brasileira”. RIBEIRO, Antônio de Pádua. Razões do Marasmo Judiciário. Consulex, v. 2, n. 16, p. 5-8, abr. 1998. Entrevista concedida à Denise de Roure.

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magistrados, ou seja, um número desumano e irracional de processos comparado ao número de magistrados.

Parece evidente que a falta de magistrados é sim fator que gera grandes problemas ao Poder Judiciário.

3.2.4 Problemas Estruturais

Ainda na linha dos problemas que ocasionam diversos danos ao Poder Judiciário, encontra-se o problema da estrutura física dos diversos órgãos do Poder Judiciário. Por vezes, encontram-se construções precárias, em que as condições de trabalho mostram-se prejudicadas devido a estes problemas.

Também no tocante a estrutura encontra-se o problema atinente à falta de servidores e também, na falta de qualifi cação de tais servidores, ou seja, em algumas situações, mesmo na presença de servidores em número adequado nota-se a falta de qualifi cação para a realização das atividades o que, obviamente, também gera problemas no funcionamento do Poder Judiciário.

Expostas essas possíveis causas, passa-se à análise propriamente dita do assunto que envolve o presente estudo.

É importante destacar que todo o problema do Poder Judiciário leva a uma consequência comum, a grande morosidade dos processos, ou seja, a grande morosidade na resolução das questões levadas a juízo e consequentemente a excessiva demora na “entrega” da justiça.16

Portanto, é evidente que, não importando quais são as causas dos problemas do Poder Judiciário, o que tem que se ter em mente é que o tempo17 do processo, ou melhor, o tempo excessivo dos processos, mostra-se como o grande vilão do Poder Judiciário, ou seja, o grande inimigo. E aqui, neste ponto é que se pode fazer uma conexão com a idéia já trazida brevemente, de Carl Schmitt.

16 “Acusa-se de moroso o Poder Judiciário. E tem razão o povo. A prestação da justiça, que não pode ser imediata pela ne-cessidade e difi culdade na realização da prova, está deixando a desejar, além do nível da razoabilidade” MARTINS, Francisco Peçanha. Morosidade do judiciário. Revista de Direito Renovar, Rio de Janeiro, n. 31, p. 13-19, jan./abr. 2005, p. 13.

17 “O processo, enquanto meio de expressão da jurisdição, destinada a compor confl itos de interesses ou a satisfa-zer pretensões insatisfeitas, é infl uenciado pelo tempo, mantendo com ele uma relação confl ituosa. Numa perspectiva, o processo deve garantir às partes oportunidades para alegarem a provarem o necessário à defesa dos seus interesses, materializando com isso, parte do conteúdo do devido processo legal e, nesta perspectiva o processo não deve prolongar-se além do necessário, sob pena de causar danos às partes e prejudicar a tutela do direito a ser protegido, tornando inefi caz o provimento jurisdicional a ser proferido”. ROCHA, Silvio Luís Ferreira da; Duração razoável dos processos judiciais e administrativos. In: Interesse Público (Revista Bimestral de Direito Público). Porto Alegre: Editora Notadez, n. 39, p. 73-80, set./out. 2006, p. 73.

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4 OS PROBLEMAS DO JUDICIÁRIO COMO INIMIGOS

Conforme já fora dito anteriormente, para o citado autor alemão, para a existência do político há a necessidade da existência de um inimigo. E, este inimigo acaba legitimando muitas atitudes, por vezes arbitrárias e inescrupulosas, mas tudo em prol de um bem maior, qual seja a destruição deste mesmo inimigo.

Muitos podem dizer que atualmente, a idéia de Schmitt pode ser demonstrada nos discursos de líderes de Estado.

Alguns exemplos disso podem ser facilmente identifi cados em nossa atualidade. O ex-presidente norte americano, George W. Bush procurava legitimar seus ataques ao Afeganistão, por exemplo, com o discurso (questionável) de destruição dos grupos terroristas. Ou seja, a existência dos terroristas e a possibilidade real destes interferirem nos rumos da nação americana, legitimavam e embasavam tais atitudes, percebendo-se, desta forma que, a existência dos terroristas, apesar de indesejada, em um primeiro momento, acabava legitimando e “autorizando” estes ataques, mesmo que por detrás de tais ataques existisse interesses escusos e que não eram divulgados e compartilhados com a população.

Note-se que, pelo exemplo acima, os discursos procuram um inimigo, o individualizam, o defi nem e, desta forma, acabam por traçar estratégias e tomar ações para destruí-lo. Porém, sempre tomando o cuidado de não o destruir e não o afastar por inteiro, pois desta forma, com a ausência do inimigo, não haverá política e não haverá legitimação para novas ações.

Dessa forma, também, pode-se dizer que no âmbito do Poder Judiciário procura-se este inimigo e várias ações são realizadas em nome de combatê-lo, porém, há a grande dúvida se realmente há o interesse de se destruir por completo tal inimigo, sob pena de se perder a legitimação para certos discursos e atos.

Como já fora dito anteriormente, o tempo é tido hoje como o grande mau do processo e esta demora processual decorre de vários fatores, conforme explicitado acima. Estes vários fatores mostram-se como os inimigos contra o qual se luta.

Abaixo, note-se a análise de cada um destes fatores com a correspondente ligação à idéia de Schmitt.

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4.1 EXCESSO DE RECURSOS

O primeiro fator elencado trata-se da exorbitância de recursos no sistema processual brasileiro. Veja-se, utilizam-se deste argumento, juízes e advogados para procurar justifi car a demora processual.

Então, observam-se na doutrina brasileira grandes estudos com idéias de diminuição do número de recursos, entendendo que este excesso é um dos grandes problemas do Poder Judiciário.

Mas será que realmente na prática cotidiana esta “luta” se verifi ca? Será que realmente pensa-se em diminuir os recursos durante a atuação de magistrados e advogados?

Pensa-se que não. Infelizmente, o número de profi ssionais desqualifi cados no mundo jurídico a cada dia que passa aumenta de forma assustadora, devido ao grande número de faculdades de Direito. Desta forma, parece que a grande quantidade de recursos, apesar de levar a uma maior morosidade processual, benefi cia, por outro lado, os magistrados e advogados.

Aos magistrados a grande quantidade de recursos, para todo tipo de decisão faz com que a responsabilidade por decisões adequadas seja dividida e o sentimento de injustiça por uma decisão incorreta e irresponsável seja dirimido, pois haverão novas revisões dos julgados.

Para os advogados também há este benefício, uma vez que muitos de seus erros profi ssionais, poderão ser corrigidos e mascarados por meio da interposição dos Recursos.

Sendo assim, parece-se demonstrar que apesar da morosidade que os recursos representam, por outro lado, outros interesses são defendidos por meio destes fatores de morosidade, interesses estes que não aparecem nos discursos quando do debate acerca do número de recursos.

4.2 EXCESSIVO NÚMERO DE PROCESSOS PARA JULGAR

Aqui, outro grande vilão do Poder Judiciário, que também leva a uma morosidade excessiva na resolução das causas jurídicas. Mas será também que este grande número de processos para julgamento mostra-se totalmente indesejado por magistrados e advogados? Será que não há interesse nesta grande quantidade de processos?

Ao ver do autor existem razões para responder de forma afi rmativa tal questão.

Primeiramente, quanto aos advogados, percebe-se que hoje, a cada dia que se passa, o número de advogados vem aumentando de forma assustadora e, desta forma, o mercado

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fi ca saturado, ocorrendo uma grande desvalorização do advogado, seja pessoal, seja fi nanceira.

Tal situação faz com que, para sobreviver da profi ssão, os advogados aceitem e patrocinem diversas causas, muitas vezes em número superior ao adequado para a realização de um trabalho de qualidade. Desta forma, a única maneira de se conseguir realizar um acompanhamento adequado dos processos é contando com esta demora no andamento dos feitos, demora esta decorrente em muitas vezes do excessivo número de feitos a serem apreciados e julgados.

Quanto aos magistrados duas situações podem ser elencadas com o fi m de se responder de forma afi rmativa a indagação anteriormente formulada.

A primeira delas é que, com um excessivo número de processos a julgar, os erros dos magistrados sempre serão justifi cados pela imensa quantidade de processos. Ou seja, devido a gama de processos a julgar, certamente os erros ocorrerão de maneira normal, como uma normalidade da conduta humana.

A segunda refere-se ao fato de que, com um excessivo número de processos a julgar, os prazos existentes para o juiz, que deveriam sim ser respeitados, podem ser transcorridos, sempre com a alegação de excessivos feitos para julgar, o que torna inviável o respeito rigoroso aos prazos processuais.

Portanto, claramente demonstradas as razões que levam a crer que não há assim um interesse tão grande assim em combater este inimigo, representado neste caso, pelo excessivo número de feitos, pois novamente, tal situação atende a certos interesses.

4.3 FALTA DE JUÍZES

Outro dos grandes problemas apontados do Poder Judiciário é o baixo número de magistrados, proporcionalmente ao número de processos.

Realmente, reconhece-se esta situação de que efetivamente o número de magistrados é baixo no Brasil. Porém, ao que parece não há, seja por parte de advogados, seja por parte dos próprios magistrados um grande interesse no aumento do número de magistrados.

Quanto aos advogados, os motivos mostram-se semelhantes aos anteriores, com um maior número de magistrados, com maior velocidade os feitos serão julgados e desta forma, menos processos poderão ser assumidos pelos advogados.

Quanto aos Juízes, o fato de se ter um número reduzido de magistrados faz com que o prestígio desta carreira seja mantido ou aumente. Hoje, cada vez menos a advocacia é prestigiada devido à enxurrada de advogados que são atirados no mercado anualmente.

No caso dos magistrados, seja por falta de qualifi cação dos concorrentes, seja

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pela difi culdade dos concursos, normalmente sobram vagas, fazendo com que o cargo de magistrado seja bastante respeitado e represente importante satus social, status este bastante valorizado no mundo do Direito, mundo que para muitos vive de grande aparência e tradição. Sendo assim, não há como se afi rmar que exista um grande interesse na modifi cação desta situação.

Ainda, há que se trazer à análise um exemplo específi co. Existe em tramitação no Congresso Nacional um Projeto de Emenda à Constituição nº 34/200818 que prevê a criação do cargo de juiz supervisor dos Juizados Especiais, com remuneração inferior ao dos magistrados comuns. Ou seja, criariam-se os cargos de verdadeiros “Juízes Especiais”, formados a luz dos princípios norteadores desta instituição e, que, devido à remuneração inferior, poderia dar margem a mais vagas para tais juizes.

É bem sabido que hoje os Juizados Especiais, ao menos de Curitiba-PR, sofre com a falta de magistrados. Então, em uma primeira análise, tal projeto procura resolver tais problemas. Ou seja, a princípio tal projeto possui o intuito de resolver o problema, porém, tal atitude, não foi bem recepcionada pelos magistrados brasileiros,19, 20 que entenderam que tal situação menospreza estes novos juízes, sobretudo, devido à redução do valor dos rendimentos. Ao ver do autor tal situação não prospera. Veja, não há que se falar em menosprezo. Aqui se pensa que talvez a atribuição do cargo de juiz a alguém que vá possuir rendimentos inferiores aos magistrados comuns incomoda muitos destes, que não estão preocupados em realmente resolver o problema da falta de juízes e da morosidade processual, mas sim, em interesses mesquinhos de uma pequeníssima classe da população brasileira, em contraposição aos grandes benefícios que tal situação poderia implementar.

Portanto, devidamente demonstradas as razões que evidenciam que a falta de juízes é sim um inimigo, mas que se teme destruí-lo completamente.

18 “Altera os arts. nº 92 e n º 98 da Constituição Federal, para criar o cargo de juiz supervisor dos Juizados Especiais e dá outras providências”.

19 A AJUFE (Associação dos Juízes Federais) repudiou tal projeto de Emenda Constitucional. (Notícia disponível “http://www.jusbrasil.com.br/noticias” , em 02/07/2009 às 11:00 horas).

20 A proposta de emenda à Constituição (PEC 34/08), que tramita na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) do Senado e visa a criação do cargo de juiz supervisor dos Juizados Especiais foi criticada pelo diretor da Escola de Magistratura do Paraná (Emap), juiz Roberto Portugal Bacellar. Para ele, a proposta do senador Alvaro Dias (PSDB-PR), de diferenciar, inclusive na remuneração, os juízes responsáveis por conciliação, pelo julgamento e pela execução de causas cíveis de menor complexidade e infrações consideradas de menor potencial ofensivo, “considera atuação dos magistrados de Juizados Especiais como de menor importância”. De acordo com Bacellar, “este tipo de ação acaba desprestigiando o trabalho dos juízes que se preocupam com a realidade social e valoriza apenas uma atuação mais burocrática do judiciário”. O diretor da Emap já apresentou o descontentamento dos juízes na Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) e vai formalizar uma nota de repúdio ao projeto durante o Fórum Nacional de Juizados Especiais (Fonaje), que acontece de 12 a 14 de novembro, em Florianópolis (SC). No evento, Bacellar também vai lançar uma cartilha sobre a importância dos Juizados Especiais, antigos juizados de pequenas causas, para o povo. De acordo com o projeto, o cargo de juiz supervisor será preenchido por bacharéis em Direito, por meio de concurso público. (disponível em “http://parana-online.com.br/canal/direito-e-justica/news/333830/”, em 02/07/2009 às 11:15 horas).

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4.4 PROBLEMAS ESTRUTURAIS

A última das causas dos problemas do Poder Judiciário trata-se dos problemas estruturais. Aqui, mais uma vez mostra-se que tal problema que se refere tanto à estrutura física como à estrutura humana do Poder Judiciário e que também não é veemente combatido.

É evidente que uma melhor estruturação, com mais servidores, assessores, diminuiria em muito o serviço dos magistrados, já que dividiriam muitas de suas funções com tais assessores. Porém, já restou demonstrado que isso diminuiria, consequentemente, aos magistrados o número de feitos a julgar, o que, necessariamente não seria somente benéfi co, já que diminuiria sua área de refúgio para possíveis erros.

Quanto aos advogados, a situação não é diferente. Com uma melhor estruturação, os feitos tramitariam de forma mais célere, desta forma, os advogados teriam mais trabalho nos feitos e consequentemente, não poderiam assumir um maior número de causas, o que, na atualidade tornaria “inviável” ou pouco lucrativa a profi ssão, conforme já se demonstrou acima.

Aqui, ainda some-se outro fator. Quando se fala em problemas estruturais, deve-se ter sempre em mente a questão dos investimentos. Investimento estes realizados pelo Estado, Estado este que é responsável pela grande maioria das ações judiciais. Ou seja, o Estado, sendo réu habitualmente, também não possui um enorme interesse na rápida tramitação dos feitos, sob pena de ter seu orçamento totalmente comprometido.

O que se nota aqui, novamente, é que, seja por parte dos advogados, magistrados e do Estado como um todo, não há o interesse único em resolver os problemas estruturais, pois, como se demonstrou, com a resolução de tais problemas, outras consequências, por vezes maléfi cas a estes atores processuais também poderiam ser geradas.

Note-se que, também há a defi nição de um inimigo, procurando-se lutar contra ele,21 porém, não há um real interesse em destruí-lo de forma defi nitiva, sob pena de se perder o inimigo e se perder a oportunidade de efetivar outras ações, que são legitimadas devido à existência deste inimigo.

21 O próprio Poder Legislativo mostra-se preocupado com o problema da morosidade processual, como bem enfatiza José Afonso da Silva: “A reforma do Judiciário se preocupou com a morosidade da atividade jurisdicional. Por isso, adotou algumas providências que podem auxiliar no andamento mais rápido dos processos e a efetividade do direito consignado no art. 5º, LXXVIII, tudo introduzido pela EC/45/2004”. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 24 ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros Editores, 2005, p. 591.

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5 A IDÉIA DO INIMIGO EM CARL SCHMITT E SUA RELAÇÃO COM O ENFRENTAMENTO DOS PROBLEMAS DO PODER JUDICIÁRIO BRASILEIRO

Conforme bem fi cou demonstrado na exposição dos problemas do Poder Judiciário e na conceituação do inimigo desta realidade do Poder Judiciário, denota-se que todos os problemas elencados levam a um problema maior que hoje é tido como o grande inimigo dos Processos e do Poder Judiciário como um todo, qual seja a morosidade processual.

É bem sabido que, atualmente, a doutrina brasileira e, também a de muitos outros países, já que o problema possui caráter mundial, debruça-se sobre formas de dirimir ou pelo menos diminuir o grande vilão do Poder Judiciário, o tempo excessivo de tramitação dos processos, que torna o processo nada efi ciente e satisfatório.22

Ou seja, esse tempo excessivo de tramitação dos processos, como grande vilão que é, é também o inimigo identifi cado por todos que atuam no ramo do Direito, mais especifi camente no ramo do direito processual.

Então, seguindo as idéias do autor alemão em comento, há que se destruir tal inimigo, de forma política, de forma ordenada, de forma universa, em conjunto, por todos. E, este discurso, ao nosso ver é perfeitamente aplicável ao problema trazido neste estudo.

Na realidade do Poder Judiciário Brasileiro, existe a unidade com relação ao inimigo apregoada por Schmitt, ou seja, todos que atuam no direito processual identifi cam

o tempo do processo como um grande problema e exteriorizam suas indignações de forma a combater e destruir este inimigo.

É de se recordar que uma das grandes críticas feitas ao pensamento de Carl Schmitt, na obra “O conceito do Político” é que o mesmo acaba não admitindo a possibilidade de pluralismo, pois para a idéia dele há a necessidade de partida de uma premissa, qual seja, a premissa de uma unidade. Ou seja, no seu pensamento não se admite o pluralismo, no sentido de que, até podem existir os inimigos internos, individuais, mas os inimigos políticos são de todos, de um grande conjunto que visa à destruição deste inimigo em comum.

22 “Na atualidade, percebe-se no discurso de boa parcela dos estudiosos do sistema processual uma maior preocupação com as questões referentes à legitimidade do mesmo. Apesar de se acreditar que ambas as questões são nuances importantís-simas para a temática processual, quando se busca a aplicação do direito a partir de uma perspectiva de Estado Democrático de Direito, uma vez que ambas são complementares e interdependentes, não se pode negar que as contingências existentes (v.g. Litigiosidade em massa, baixa satisfação popular com o trabalho jurisdicional, morosidade) conduzem a uma maior preocupação com questões utilitaristas e de efi ciência”. NUNES, Dierle José Coelho; BAHIA, Alexandre Gustavo Melo Franco. Efi ciência Processual: algumas questões. In: Revista de Processo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, n. 169, p. 116-139, mar. 2009, p. 117-118.

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No caso dos problemas do Poder Judiciário elencados e consequentemente no problema do tempo do processo há esta unidade, repita-se, todos lutam, ou pelo menos pautam seus discursos e ações no sentido da destruição deste inimigo que é comum e, por ser comum, sua destruição é incentivada e aplaudida por todos.

Mostra-se evidente a impossibilidade de aplicar ipsis literis a defi nição de inimigo de Carl Schmitt23 para a realidade do Poder Judiciário Brasileiro, pois o autor alemão ao defi nir o inimigo o trata como algo humano, diferente do inimigo do Poder Judiciário brasileiro que é imaterial, mas repita-se causas efeitos materiais, reais e nefastos da vida de grande e importante parcela da população brasileira.

Portanto, aqui, apesar de reconhecer algumas incompatibilidades da importação do pensamento de Schmitt para a realidade do Poder Judiciário, o que se busca é realmente fazer esta conexão das idéias, demonstrando sim que é possível aproveitar as idéias por ele defendidas como formas de justifi car ações e discursos que tanto povoam o Poder Judiciário brasileiro e os estudiosos sobre o assunto, mas que por vezes não são capazes de gerar efeitos benéfi cos.

Sendo assim, parece ter alcançado o autor o objetivo do presente trabalho que visava construir esta ponte entre as idéias Schmittianas desenvolvidas num período de guerra para uma realidade de aparente pacifi smo em que outras guerras são travadas, não guerras sangrentas, mas que também destroem e frustram sonhos de milhões na população brasileira.

6 CONCLUSÃO

Como já dito na introdução do presente trabalho e em seu curso não se pretendeu aqui fazer um acurado estudo sobre as idéias de Carl Schmitt e sobre sua obra “O conceito do Político”, pois, como bem salientou o autor do presente estudo, tal mister é desenvolvido por muitos estudiosos da Teoria do Direito e até de outros ramos do conhecimento.

Aqui se buscou trazer à lume a discussão dos problemas do Poder Judiciário brasileiro sob um novo viés, um novo ponto de vista. Não se procurou somente a demonstração dos problemas e a exposição das mesmas soluções sempre tão debatidas e que sempre esbarram em problemas orçamentários.

23 “A diferenciação entre amigo e inimigo tem o sentido de designar o grau de intensidade extrema de uma ligação ou separação, de uma associação ou dissociação; ela pode, teórica ou praticamente, subsistir, sem a necessidade do emprego simultâneo das distinções morais, estéticas, econômicas, ou outras. O inimigo político não precisa ser moralmente mau, não precisa ser esteticamente feio; não tem que surgir como concorrente econômico, podendo talvez até mostrar-se proveitoso fazer negócios com ele. Pois ele é justamente o outro, o estrangeiro, bastando à sua essência que, num sentido particular-mente intensivo, ele seja existencialmente algo outro e estrangeiro, de modo que, no caso extremo, há possibilidade de confl itos com ele, os quais não podem ser decididos mediante uma normatização geral previamente estipulada, nem pelo veredicto de um terceiro ‘desinteressado’, e, portanto, ‘imparcial’.” SCHMITT, Carl. Obra citada, p. 52.

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Procurou-se aqui alertar a todos a respeito dos discursos que diuturnamente lotam palestras, congressos, seminários e servem de assunto para diversas monografi as e debates.

O que se procurou foi demonstrar o porquê de uma certa involução na resolução de tais problemas.

Sendo assim, pode-se concluir pela presente abordagem que o Poder Judiciário passa sim por uma forte crise, assim como os demais Poderes da República. Além disso, conclui-se sim que diversos são os problemas deste Poder que acabam desencadeando em um outro problema maior ainda, qual seja a morosidade processual.

Por fi m, conclui-se que essa morosidade processual não pode ser combatida de forma isolada, mas sim, de forma conjunta com a resolução dos demais problemas explicitados no presente estudo.

Porém, a resolução de tais problemas de forma conjunta, conforme se demonstrou não é feito de forma enfática, de forma convincente, de forma incisiva pois, ao se resolver estes problemas, além de se resolver o grande problema do Poder Judiciário, a morosidade, traz junto a alerta para outros problemas, estes sim de uma parcela menor da população brasileira, representada pelos advogados e magistrados.

Sendo assim, pelas análises aqui feitas fi ca claro que o interesse da destruição do inimigo, conforme preceituado por Schmitt é legítimo e nobre, porém, os meios para esta destruição não são utilizados de forma adequada, uma vez que a total e completa destruição deste inimigo, deslegitimaria e proibiria diversos discursos e ações que, hoje somente são permitidas e aceitas devido à existência deste inimigo.

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WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Excesso de recursos, um bode expiatório. Entrevista disponível na íntegra em (http://www.faceb.edu.br/faceb/RevistaJuridica/m193-003.htm) em 30/07/2009, às 10:30 horas.

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OS DIREITOS FUNDAMENTAISE SOCIAIS DO TRABALHADORÀ LUZ DO 5º, PARAGRÁFO 3º DACONSTITUIÇÃO FEDERAL: umaanálise a partir da Convenção dasPessoas com Deficiência, 2006.1

Eduardo Biacchi Gomes2 e Paulo Cipriano Coen3

1. Introdução

A Emenda Constitucional 45 de 2004, em termos de proteção aos direitos fundamentais, representa um grande avanço para o nosso ordenamento jurídico constitucional, porque estabelece, de forma clara, os requisitos para que os tratados decorrentes de direitos humanos passem a ter grau de hierarquia constitucional.

Adverte-se ao leitor que, neste estudo, não será examinada a polêmica referente à interpretação do § 2º, artigo 5º da Constituição Federal, que estabelece, de forma clara e taxativa que:

§ 2º - Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.

Em relação ao tema, muito embora o texto constitucional seja claro em admitir que os tratados decorrentes de direitos humanos possuem grau de hierarquia constitucional, este não é o entendimento adotado pelos nossos tribunais superiores (Supremo Tribunal

1 Artigo publicado na Revista de Informação Legislativa do Senado Federal, nº 186, abril junho 2010, p. 47 60.2 Advogado. Pós Doutor em estudos culturais pela UFRJ, Doutor em Direito do Estado pela UFPR. Professor de

Direito Internacional e Direito da Integração da FACINTER, PUC/PR e da UNIBRASIL, Graduação e Pós Graduação (Especialização e Mestrado).

3 Advogado e médico. Mestre em Direito Constitucional pela UniBrasil. Professor de Direito Penal, Processual Penal, Criminologia e Medicina Legal em graduação da UniBrasil, Fundação Escola do Ministério Público do Pr FEMPAR, FAE, Faculdade Paranaense FaPar, e Técnica Pericial, em pós graduação, da Fac. CBES; Coodenador do Curso de Direito da Faculdade Paranaense FaPar.

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Federal e Superior Tribunal de Justiça), que, em várias ocasiões já se pronunciaram no sentido de que os referidos tratados possuem grau de hierarquia infraconstitucional e o mesmo grau de hierarquia do que as leis ordinárias.

Entretanto, recentemente o Supremo Tribunal Federal avançou no entendimento da matéria, talvez infl uenciado pela tendência das constituições constitucionais contemporâneas, em estabelecer que os tratados decorrentes de direitos humanos possuem grau de hierarquia constitucional.

Em recente julgamento dispôs que os referidos tratados, especialmente o Pacto de San José da Costa Rica, possuem grau de hierarquia superior à lei ordinária:

“A Turma deferiu habeas corpus preventivo para assegurar ao paciente o direito de permanecer em liberdade até o julgamento do mérito, pelo STJ, de idêntica medida. No caso, ajuizada ação de execução, o paciente aceitara o encargo de depositário judicial de bens que, posteriormente, foram arrematados pela credora. Ocorre que, expedido mandado de remoção, os bens não foram localizados e o paciente propusera, ante a sua fungibilidade, o pagamento parcelado do débito ou a substituição por imóvel de sua propriedade, ambos recusados pela exeqüente. Diante do descumprimento do múnus, decretara-se a prisão do paciente. Inicialmente, superou se a aplicação do Enunciado da Súmula 691 do STF. Em seguida, asseverou-se que o tema da legitimidade da prisão civil do depositário infi el, ressalvada a hipótese excepcional do devedor de alimentos, encontra-se em discussão no Plenário (RE 466.343/SP, v. Informativos 449 e 450) e conta com 7 votos favoráveis ao reconhecimento da inconstitucionalidade da prisão civil do alienante fi duciário e do depositário infi el. Tendo isso em conta, entendeu-se presente a plausibilidade da tese da impetração. Reiterou-se, ainda, o que afi rmado no mencionado RE 466.343/SP no sentido de que os tratados internacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil possuem status normativo supralegal, o que torna inaplicável a legislação infraconstitucional com eles confl itantes, seja ela anterior ou posterior ao ato de ratifi cação e que, desde a ratifi cação, pelo Brasil, sem qualquer reserva, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 11) e da Convenção Americana sobre Direitos Humanos — Pacto de San José da Costa Rica (art. 7º, 7), não há mais base legal para a prisão civil do depositário infi el.” (HC 90.172, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgamento em 5-6-07, Informativo 470)

Sem dúvida trata-se de um avanço da jurisprudência em nossos tribunais superiores, se não o ideal, porque o melhor seria entender que o referido tratado possui grau de hierarquia constitucional, regulamenta que o mesmo possui status hierárquico superior à lei ordinária e que, portanto, não pode ser revogado por esta. Lembre-se que o Pacto de San José da Costa Rica é anterior à redação do § 3º, artigo 5º da Constituição Federal.

Pois bem, com a Emenda Constitucional acima mencionada, os tratados decorrentes de direitos humanos, aprovados por 3/5, em cada uma das casas do Congresso Nacional, em dois turnos, passam a ter status de emenda constitucional.

Até a presente data nenhum tratado, decorrente de direitos humanos, ainda foi ratifi cado com o referido quórum. A grande novidade em relação ao tema, diz respeito à Convenção das Pessoas com Defi ciência, assinada na Organização das Nações Unidas, em dezembro de 2006 e assinada pelo Brasil em março de 2007.

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Eduardo Biacchi Gomes e Paulo Cipriano Coen

A referida Convenção, em vias de ratifi cação pelo Chefe de Estado, foi examinado e aprovado pelo Congresso Nacional, de acordo com os trâmites previstos no § 3º, artigo 5º da Constituição Federal e será, portanto, o primeiro Tratado, que versa sobre direitos humanos, com grau de hierarquia constitucional, de acordo com o nosso sistema constitucional vigente.

Assim o presente artigo tem por fi nalidade examinar o processo de ratifi cação dos tratados de direitos humanos, de acordo com a nova sistemática constitucional vigente e quais os refl exos da Convenção da ONU sobre as pessoas com defi ciência em nosso ordenamento jurídico.

2. Os tratados e a Emenda Constitucional 45 de 2004

A Convenção de Viena, 1969, contempla, nos artigos 11 e seguintes, os meios através dos quais os Estados podem manifestar o seu consentimento em obrigar-se por um tratado, assim dispondo:

Art. 11 – O consentimento de um Estado em obrigar-se por um tratado pode ser manifestado pela assinatura, troca de instrumentos que constituam o tratado, ratifi cação, aceitação, aprovação ou adesão ou por quaisquer outros meios, se assim for acordado.

Relativamente à assinatura, o Estado vincula-se ao tratado, desde que esteja previsto que a assinatura produz tais efeitos, sendo essa, portanto a intenção dos plenipotenciários.

A troca dos instrumentos que constituem o tratado é o ato através do qual, através da troca de notas, mecanismo de natureza diplomática, os Estados comunicam a sua intenção em obrigar-se pelo tratado. Em verdade, transmite se, essa intenção, através da troca de notas, aos demais Estados pactuantes.4

A ratifi cação, a aceitação ou a aprovação tem como fi nalidade exercer um controle político e jurídico sobre o tratado anteriormente negociado e assinado, fazendo com que, somente após o prévio o exame interno, o Chefe de Estado, acaba por “confi rmar” a assinatura do tratado, de forma a se obrigar no plano internacional.

De acordo com REZEK Ratifi cação é o ato unilateral com que o sujeito de direito internacional, signatário de um tratado, exprime defi nitivamente, no plano internacional, sua vontade de obrigar se. 5

É um ato de natureza discricionária, posto que compete, ao Chefe do Poder Executivo, obrigar-se no plano internacional, ou não, isto é, o ato depende da própria conveniência

4 Rezek, José Francisco. Direito dos Tratados. Forense:Rio de Janeiro, 1984. pp.262,263.5 Op. Cit. 267.

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e oportunidade traduzidas nos interesses políticos, variáveis, de acordo com o lapso temporal.6

Outras formas, que merecem registro, são as relativas à adesão e a própria troca ou depósito dos instrumentos de ratifi cação, de aceitação, de aprovação ou de adesão, desde que os tratados assim o prevejam.

De acordo com a Constituição da República Federativa do Brasil, artigo 84, VIII

é de competência privativa do chefe do Poder Executivo, celebrar tratados, convenções e atos internacionais, sujeitos a referendum do Congresso nacional.

De acordo com o artigo 49, inciso I da Constituição Federal, é de competência do Congresso Nacional “resolver defi nitivamente sobre tratados, acordos ou atos internacionais que acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional.”

O procedimento previsto no ordenamento constitucional nacional prevê ser de competência do Presidente da República, enquanto chefe do Poder Executivo e representante da União7 - pessoa pública de direito público externo - a competência para negociar e concluir os tratados. Posteriormente o ato internacional deverá ser submetido para apreciação do Congresso Nacional, que nesta fase somente poderá aprová-lo ou rejeita-lo.

Se rejeitado o trâmite congressual é arquivado. Na hipótese de aprovação, haverá a expedição do Decreto Legislativo8. Ademais, 9com a aprovação no Congresso Nacional, poderá ocorrer à ratifi cação do tratado, ato de competência exclusiva do Presidente da República.

Assim, de acordo com o ordenamento constitucional brasileiro, um tratado somente se acha formalmente apto a produzir efeitos, no plano internacional, desde que previamente aprovado pelo Congresso nacional e ratifi cado pelo Chefe de Estado.

Sobre o assunto em tela, assim se posiciona CACHAPUZ DE MEDEIROS:10

Do ponto de vista histórico-teleológico, a conclusão só pode ser de que o legislador constituinte desejou estabelecer a obrigatoriedade do assentimento do Congresso para os tratados internacionais, dando ênfase para aqueles que acarretem encargos, gravames, ônus fi nanceiros, para o patrimônio nacional.Do ponto de vista lógico-sistemático, há que se considerar que os dispositivos em questão fazem parte do mesmo título da Constituição (Da organização dos Poderes) e são como que as duas faces de uma mesma moeda: o artigo 84, VIII, confere ao Presidente da República o poder de celebrar tratados, convenções e atos internacionais, mas especifi ca que todos estão sujeitos a referendo do Congresso Nacional; o artigo 49, I, destaca que os tratados, acordos ou atos internacionais, assinados por quaisquer autoridades do Governo brasileiro, que acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional, precisam ser aprovados pelo Congresso. 11

6 Vide: J.F.REZEK. Op.Cit. e Fausto de Quadros e André Gonçalves Pereira. Manual de Direito Internacional Público. Almedina:Lisboa, 2001, 3a. Ed.7 Ou de seus auxiliares, Ministro das Relações Exteriores e corpo diplomático. 8 Artigo 59, VI da Constituição Federal. 11 O poder de Celebrar Tratados. Sérgio Antônio Fabris Editor: Porto Alegre, 1995.

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Eduardo Biacchi Gomes e Paulo Cipriano Coen

Uma vez expedido o Decreto Legislativo e ratifi cado o tratado, é a vez de o ato internacional passar a produzir efeitos no plano interno, que se dá com a promulgação, que se dá com a expedição de Decreto presidencial que noticia a ratifi cação do tratado, normalmente ocorre após o depósito, ou a troca dos instrumentos de ratifi cação. Tem como fi nalidade, atestar a validade jurídico formal do ato e que o mesmo passe a produzir efeitos no plano interno.

A Constituição da República Federativa do Brasil possui um mecanismo próprio de aprovação dos tratados, pois, para que possa ser ratifi cado, torna se necessária a prévia autorização congressual. A partir daí, o chefe de Estado terá o poder discricionário de ratifi cá lo ou não. Com a ratifi cação, passa a produzir efeitos no plano internacional, enquanto que no plano interno, torna se necessária a promulgação e a publicação do decreto presidencial.

Como visto na parte introdutória do presente artigo, de acordo com a nova redação do § 3, artigo 5º da Constituição da República Federativa do Brasil, os tratados decorrentes de direitos humanos, aprovados pelo quórum de três quintos, em dois turnos, em cada uma das casas do Congresso Nacional, possuem grau de hierarquia constitucional:

§ 3º -Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.

Mediante a interpretação objetiva do texto constitucional e, de acordo com a tendência jurisprudencial de nossos Tribunais Superiores, somente os tratados de direitos humanos, aprovados com o referido quórum é que possuirão grau de hierarquia constitucional. Basta observarmos a jurisprudência do STF:

O caso refere se à Ação Direta de Inconstitucionalidade 1.480 3 – Distrito Federal, requerida pela Confederação Nacional dos Transportes, em face do Presidente da República e do Congresso Nacional, com vistas a declarar, parcialmente a inconstitucionalidade dos Decretos Legislativos n. 68 de 16/09/92 e 1.885 de 10/04/96que aprovaram e promulgaram a Convenção 158 da OIT. Aduziram que dita Convenção se revestiria de inconstitucionalidade, posto que em confronto com os artigos 7o., I da Constituição e 10, I do ADCT. 12

O texto do acórdão deixa claro que é em nosso ordenamento jurídico constitucional que se deve buscar a solução normativa para a questão da incorporação dos tratados em nosso sistema positivo interno e, em assim sendo, dependem do cumprimento de todos os requisitos exigidos, “sendo um ato subjetivamente complexo, resultante da conjugação 12 Somente a título ilustrativo, pois foge ao escopo de nosso trabalho, a Medida Liminar, requerida, foi deferida em partem com a fi nalidade de condicionar a aplicabilidade da Convenção 158 da OIT aos ditames constitucionais. A Convenção 158 da OIT, ratifi cada pelo Brasil em 05.01.95 e logo denunciada em 20.11.96, estabelecia outros mecanismos de proteção ao emprego, contra a despedida arbitrária, diversos dos estabelecidos em nossa Constituição, corroborando a tese de que o tratado, no plano hierárquico brasileiro, possui o mesmo grau que a lei ordinária.

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de duas vontades homogêneas: a do Congresso Nacional, que resolve, defi nitivamente, mediante decreto legislativo, sobre tratados acordos ou atos internacionais (CF, art. 49, I) e a do Presidente da República, que, além de poder celebrar esses atos de direito internacional (CF, art. 84, VIII), também dispõe – enquanto Chefe de Estado que é – da competência de promulgá lo mediante decreto.” ···.

Entendeu, ainda, que os tratados, por estarem subordinados, hierarquicamente, ao ordenamento constitucional brasileiro, nenhum valor jurídico terão aqueles atos internacional que transgridam a Constituição e, conseqüentemente, tem o mesmo nível de lei ordinária.13

O Ministro Celso de Melo, bem demonstrou, em seu voto, a sistemática exigida pelo ordenamento constitucional brasileiro:

Sob tal perspectiva, o sistema constitucional brasileiro – que não exige a edição de lei para efeito de incorporação do ato internacional (visão dualista extremada) – satisfaz -se, para efeito de executoriedade doméstica dos tratados internacionais, com a adoção do iter procedimental que compreende a aprovação congressual e a promulgação executiva do texto convencional (visão dualista moderada). Uma coisa, porém, é absolutamente inquestionável sob o nosso modelo constitucional: a ratifi cação – que se qualifi ca como típico ato de direito internacional público – não basta, por si só, para promover a automática incorporação ao tratado ao sistema de direito positivo interno. É que, para esse específi co efeito, impõe se a coalescência das vontades autônomas do Congresso Nacional e do Presidente da república. (...)

Como visto, igualmente, na parte introdutória do presente artigo, ao que nos parece, com a inserção do § 3º, artigo 5º da Constituição Brasileira, a interpretação jurisprudencial dos tratados decorrentes de direitos humanos, ratifi cados anteriormente à Emenda Constitucional 45 de 2004, passam a ter grau de hierarquia superior à lei.

Recentemente foi aprovado, no Congresso Nacional, a Convenção da ONU sobre pessoas com defi ciência. A grande novidade é que o procedimento adotado foi o previsto no do § 3º, artigo 5º da Constituição Federal.

A aprovação da ratifi cação, pelo Congresso Nacional, ocorreu no segundo semestre de 2008 e aguarda ratifi cação pelo Chefe de Estado:

Homologada pela Assembléia Geral das Nações Unidas em dezembro de 2006, a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Defi ciência foi ratifi cada no dia (02/07) pelo Congresso Nacional. Uma semana depois, no dia 09 /07, a Conveção, que recebeu 56 votos favoráveis em Plenário do Senado, foi promulgada pelo presidente do Senado, Garibaldi Alves. Agora, integrada a legislação brasileira, passa ter valor constitucional. É a primeira vez no Brasil que um tratado internacional ganha este status, situação prevista na última reforma do judiciário para tratados aprovados com quorum qualifi cado. Após a promulgação, o Brasil providenciará o depósito na ONU e a Convenção passará a vigorar no âmbito do direito internacional. Argentina e Chile estão vivendo processo similar ao Brasil. “A aprovação da convenção faz parte de um processo

13 Esse foi o entendimento adotado pelo Ministro Relator, Celso de Melo.

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extremamente importante porque coloca o Brasil no cenário mundial, na perspectiva de que agora somos um país que faz parte do grupo de países que entendem a convenção como um tratado a ser respeitado”, diz o presidente do Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa Portadora de Defi ciência (Conade), Alexandre Carvalho Baroni. “É importante salientar que a convenção foi ratifi cada com quorum qualifi cado tanto na Câmara dos Deputados quanto no Senado, portanto temos uma emenda a Constituição Federal.” O documento confi rma e consolida todos os direitos dos cidadãos com defi ciência e proíbe a discriminação em todos os aspectos da vida, garantindo direitos civis, políticos, econômicos e sociais, bem como à educação, aos serviços de saúde e à acessibilidade. A convenção estabelece ainda que, entre seus propósitos, está a facilitação da comunicação para essas pessoas, a partir de linguagem adequada, visualização de textos, utilização do método braile, comunicação tátil, caracteres ampliados e dispositivos de multimídia acessíveis, entre outros. Os países signatários da convenção (até o momento, 27 países já a ratifi caram) se comprometem a assegurar e promover o pleno exercício de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais para as pessoas portadoras de defi ciência, sem qualquer tipo de discriminação. Para tanto, deverão adotar medidas necessárias nas áreas legislativas e administrativas, com o objetivo de revogar leis, regulamentos, costumes e práticas vigentes que constituírem discriminação contra os portadores de defi ciência. Entre as obrigações dos países signatários destaca se também a realização e promoção de pesquisa e o desenvolvimento de produtos, serviços, equipamentos e instalações com desenho universal destinados a atender às necessidades específi cas de portadores de defi ciência. Entre seus 50 artigos (mais 18 artigos do Protocolo Facultativo), destacam se normas destinadas ao acesso à educação dos portadores de defi ciência, às crianças com defi ciência e às situações de risco e emergência humanitárias. Baroni ressalta o fato de que a convenção não garante novos direitos, mas sim a possibilidade de que os direitos existentes sejam, de fato, efetivados. “Integrar a convenção à constituição brasileira é sem dúvida uma grande conquista e pode refl etir na vida das pessoas com defi ciência como um marco.” Adotada pela Organização das Nações Unidas (ONU) em dezembro de 2006 e assinada pelo Brasil (e mais 196 países) em março de 2007, a convenção entrou em vigor em 3 de maio de 2008, um mês após ter sido ratifi cada pelo Equador, vigésimo país a fazê lo14.

Referida Convenção vigora desde maio de 2008 e, futuramente, deverá ser ratifi cada pelo Brasil e passará a ter grau de hierarquia constitucional, o que, efetivamente, representa um grande avanço, em termos jurídicos, em relação aos tratados decorrentes de direitos humanos, especialmente para as pessoas com defi ciência.

3. Considerações Finais: o que representa a ratifi cação da Convenção da ONU sobre pessoas com defi ciência pelo Brasil?

Com relação ao conteúdo material da Convenção é inquestionável seu valor, pois dá maior efetividade ao previsto no próprio Preâmbulo da Constituição Federal de 1988.

Mais vale tal iniciativa que o vazio discurso politicamente correto, eivado de hipocrisia, que toma conta da realidade não só nacional e que nada traz de concreto, apenas refrigera as consciências neo liberais. 14 http://sentidos.uol.com.br/canais/materia.asp?codpag=13099&canal=cidadania (acesso em 22 de julho de 2008)

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Os Direitos Fundamentais e Sociais do Trabalhador à luz do 5º, paragráfo 3º da Constituição Federal: uma análise a partir da Convenção das Pessoas com Defi ciência, 2006

Se o mero falar trouxesse respostas às necessidades mundiais viver se ia numa realidade diversa da atual, onde se tem todo o zelo ao verbalizar e absoluta insensibilidade ao agir, sobremaneira no denominado mundo corporativo.

Cabe ressaltar que, embora revestida de status constitucional, a aludida Convenção adquire validade a partir da adaptação sistemática à Constituição.

Sendo assim, entende se que, ao tornar -se signatário de determinada Convenção internacional, essa somente teria esse status diferenciado, ainda que ao tratar de Direitos Humanos, se trouxer, nessa área, alterações in bonan partem para os destinatários.

Ou seja, se a legislação doméstica for mais benéfi ca que aquela prevista no tratado, a primeira deverá prevalecer.

Como exemplo cabe menção do artigo art. 77 § 1º, b, do Estatuto do Tribunal Penal Internacional, parte do “Tratado de Roma” de 1998. Há nesse artigo previsão de sanção perpétua.

Essa possibilidade se choca com a Constituição Federal no artigo 5º XLVII alínea b. Nesse caso caberia entender que a previsão doméstica prevaleceria.

Se ocorresse o inverso, a prevalência seria do Direito incorporado. Sob esse aspecto caberia a defesa de um fi ltro15 efetuado pela Constituição, que, portanto, ainda reservaria a si certo grau de supremacia, como um critério negativo de validade.

O advento da ratifi cação da Convenção da ONU sobre portadores de defi ciência adquire um segundo aspecto de relevo tendo em vista o próprio rito descrito no início deste artigo.

Sendo ato subjetivamente complexo, a incorporação de tratados ao direito positivo interno requer atuação dos três Poderes da União.

O Brasil vive, um momento de impacto, senão de crise institucional por força da politização de todos os setores públicos e do que conclui ser a atual visão governamental, de que a lei é um mero embaraço removível aos objetivos da gestão.

Assim, torna- se importante, além da relevância do conteúdo material da Convenção, a observância do rito, sem ingerências ou embates como os recentemente vistos.

Trata- se de ver os Poderes a atuar de forma harmônica a exemplo do que exige o artigo 2º da Constituição.

Por fi m, observa -se que, se mesmo na lei penal a retroatividade é admissível em benefício ao réu16 , conforme o artigo 5º, XL da Constituição, cabe verifi car que, admitida de forma inquestionável a equiparação dos tratados e convenções internacionais quando

15 SCHIER, Paulo Ricardo. Filtragem Constitucional: construindo uma nova dogmática jurídica. Porto Alegre: Sergio Fabris Editora, 1999. p. 104. 16 SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal Parte Geral. 2ed. Curitiba: Lumen Juris, 2007. p. 20.

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nos termos no parágrafo 3º do artigo 5º da Constituição Federal, o que pode ser constatado com a Convenção em comento, temos que a Convenção 158 da OIT tem, atualmente, inquestionável hierarquia supralegal. Ainda que sem o advento da referida emenda, a análise sistemática, acredita se, deveria levar ao mesmo entendimento.

Isso se justifi ca ao se partir da premissa de que todos os objetivos maiores do Constituinte devem ser ponderados. Naturalmente um dispositivo que proporcione mecanismos de proteção em emprego, a um tempo reduzindo as taxas de desemprego e, portanto, levando dignidade ao trabalhador, sem com isso onerar de forma desmesurada ao empregador e conduzindo à informalidade merece consideração.

Naturalmente que as entidades sindicais, que vivem em estrutura arcaica de privilégios não desejam perder seu quinhão de representatividade, seja política ou fi nanceira, ainda que ao preço da manutenção de uma legislação trabalhista anacrônica e, principalmente, danosa ao trabalhador, de forma indireta, e ao país como um todo.

O segmento sindical, atualmente favorecido pelo aparelhamento da estrutura estatal, prefere ver metade da força de trabalho nacional na informalidade que ceder à necessária atualização legislativa.

A forma de estruturação sindical, se criada de molde a proteger o lado hipossufi ciente da relação de trabalho da ingerência estatal, hoje se tornou nicho de privilégios e de impunidade no manejo da verba pública que para lá jorra de forma descontrolada.

Com isso pode se tomar como exemplo a lição de Carl SCHMITT17, que vê a Constituição como maior que a norma positivada, que entende o universo constitucional como político e não eminentemente jurídico. SCHMITT entende que seus valores podem transcender o texto escrito e publicado.

Importam mais ao Constituinte os fi ns maiores; ao se criar um arcabouço legislativo trabalhista que mais se pode desejar que a proteção e o bem estar tanto daqueles que vendem sua força de trabalho quanto dos que detém a propriedade dos meios de produção?

Seria fi nalidade aos olhos do Constituinte a mera preservação de uma estrutura sindical que já expõe claros sinais de corrosão e que criou espaços de impunidade e corrupção que começam a extravasar seus receptáculos e exalar, apesar da clara proteção pública?

Eis que os fundamentos constitucionais deveriam reger as decisões com mais vigor que o texto positivado. Sobretudo ao se tratar de decisão exarada da Corte Constitucional.

Ao se associar diretamente a manutenção da atual legislação trabalhista com a preservação dos direitos dos trabalhadores pode se estar a incorrer em equívoco que pode trazer ainda mais atraso do Brasil para com os demais países concorrentes.

17 SCHMITT, Carl. O Guardião da Constituição. Trad. de Geraldo de Carvalho. Belo Horizonte: Del Rey, 2007.

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Naturalmente que não se está a pleitear um liberalismo puro ou a derrocada do princípio protetivo, mas simplesmente seu revigoramento, sua atualização.

Talvez por força do hábito ou da tradição, não se costuma, em nosso meio, enfrentar os problemas, mas sim contorná los.

A informalidade nas relações de trabalho, que gera males sistêmicos a todos os setores envolvidos é conseqüência direta do não enfrentamento dessas questões.

Eis que, ao discurso ofi cial, para manter intocados os direitos arduamente conquistados pela classe obreira, conservam se nichos de deturpação como o modelo de estrutura sindical.

Em nome dessa proteção ao hipossufi ciente na relação de trabalho abriu se espaço para a criação de um fenômeno junto à Justiça laboral que se assemelha a um grande mercado de barganhas, de grande interesse para muitos mas que é profundamente danoso para a sociedade e, paradoxalmente, para o trabalhador.

Ao se adotar de forma inequívoca, a partir da Emenda Constitucional nº 45, o conteúdo dos tratados como matéria de hierarquia supralegal ter se á a oportunidade de introduzir em nosso ordenamento jurídico matérias relevantes, que obriguem a todos os signatários de forma recíproca como sói ocorrer no campo do Direito Internacional e, ainda, através da noção da adoção de dispositivos legais sempre in bonan partem, com a garantia que os avanços trazidos pela Constituição não serão comprometidos pelos compromissos internacionais.

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Eduardo Biacchi Gomes e Paulo Cipriano Coen

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Os Direitos Fundamentais e Sociais do Trabalhador à luz do 5º, paragráfo 3º da Constituição Federal: uma análise a partir da Convenção das Pessoas com Defi ciência, 2006

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“PLURALISMO E ESTADOS PÓS-NACIONAIS: O DISCURSO

NORMALIZANTE DOSDIREITOS HUMANOS”

Marcelo Lebre Cruz* Resumo: O presente artigo objetiva fazer uma abordagem (en passant) dos Estados Pós-Nacionais, e, neste tocante, resgatar uma de suas principais características: a de pluralidade - cultural, social, política, econômica e jurídica. Sob tais premissas, demonstrar-se-á que o discurso clássico dos Direitos Humanos, fi rmado sob a égide liberal e típico de Estados de índole Nacional, acaba propiciando um sedicioso discurso normalizador sobre os cidadãos, o qual não se coaduna com a hodierna lógica constitucional.

Abstract: This article aims to make an approach (en passant) of the Post-National State, and in this regard, rescuing one of its main concepts: the pluralism - cultural, social, political, economic and legal. Under these assumptions, will be demonstrate that the classic speech of Human Rights, signed under the aegis of the liberalism, typical of the National States, just providing a normality speech on citizens, which is inconsistent with the constitutional current logic.

Palavras-Chave: Direitos Humanos - Estados Pós-Nacionais – pluralismo - discurso normalizador.

Key-Words: Human Rights - Post-National State – pluralism - normality speech.

Introdução

Iniciaremos essa explanação com uma breve história sobre a vida de dois pequenos infantes:[1] Fátima e Amalé, nascidos e criados em localidades diversas, separados em várias milhas por um oceano, cada qual sob infl uência de um clima específi co, uma determinada cultura, religião e uma ordem política que em muito pouco se assemelha a do outro. Fátima é mulher, africana e negra. Amalé, ao seu turno, é do sexo masculino,

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Pluralismo e Estados Pós-Nacionais: O Discurso Normalizante dos Direitos Humanos

brasileiro e índio. Vidas tão distantes, realidades tão diferentes, mas que, ao mesmo tempo, possuem algo em comum: além de serem crianças, ambos foram “vitimados” por suas tradições...! - eis aí a o ponto de interseção que os vincula e que nos interesse ao presente.

África, deserto da Etiópia, ano de 2006. As lágrimas de Fátima são aterradores e angustiantes, destaca a repórter Amira El Ahl[2]. A menina, que aparenta ter aproximadamente oito anos de idade, está deitada no chão de uma choupana, gritando e chorando sem parar frente ao medo que a arrebate, ou mesmo por se sentir incapaz de suportar a intensa dor a que está exposta naquela ocasião. Seu pequeno corpo se contorce à medida que a dor vai aumentando. O seu vestido novo, verde com estampa fl orida, fi ca todo manchado de sangue. Sua mãe, auxiliada por dois homens, seguram-na fortemente contra o solo, abrindo suas perninhas fi nas. Uma mulher de mais idade se agacha na frente de Fátima, nas mãos segura uma afi ada navalha e uma grossa agulha de cerzir. Hoje é o dia em que Fátima se transformará em uma mulher, uma mulher decente. A agulha objetiva levantar os lábios da vulva a fi m de facilitar o corte[3]. A mulher coloca a lâmina na posição. Primeiro ela corta os pequenos lábios da vulva e a seguir o clitóris. A menina arqueia todo o seu pequeno corpo, banhado de sangue e suor. A mulher joga freqüentemente um líquido leitoso sobre a ferida para prevenir infecções. Em seguida, a avó da jovem entra na choupana, toca a ferida e pede para que a mulher faça um corte mais profundo. E assim, todo o processo recomeça. Os gritos de Fátima são quase insuportáveis. Finalmente o trabalho é concluído e a ferida é fechada com espinhos. Apenas uma pequena abertura é deixada, e um pedaço de palha é inserido no orifício para impedir que este se feche. Ato contínuo, as pernas de Fátima são unidas e amarradas por uma corda que permitirá que a ferida cicatrize dentro de algumas semanas. A mulher conclui a sua tarefa bárbara com um tapa nas costas da menina. “Agora Fátima é (de fato) uma mulher”, concluí a reportagem de Amira El Ahl.

Brasil, Distrito Federal, ano de 2008. Como muitas outras crianças, o pequeno Amalé, de apenas quatro anos de idade, foi pela primeira vez à escola no dia doze de fevereiro passado. Ele chamava a atenção das demais crianças por ser o único que não usava uniforme nem carregava uma mochila nas costas. Índio da tribo kamaiurá, Amalé se distinguia (verdadeiramente) das outras crianças por um motivo especial: o pequeno índio era um sobrevivente de sua própria história e tradição. Conta a brilhante matéria trazida pela revista Isto é [4] que, logo que nasceu, às 7 horas do dia 21 de novembro de 2003, ele foi enterrado vivo pela própria mãe, Kanui, que apenas dava seqüência a um ritual determinado pelo código cultural dos kamaiurás, no qual se manda enterrar vivo aqueles fi lhos gerados por mães solteiras. Para assegurar que o destino de Amalé não fosse alterado, seus avós ainda pisotearam sua cova. Na ocasião, ninguém ouviu sequer

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um choro da criança. Ocorre que, duas horas depois da cerimônia, numa atitude que desafi ou toda a tribo kamaiurá, sua tia Kamiru empenhou-se em desenterrar o indiozinho. Ela lembra que os olhos e narinas do pequeno sangravam muito, e que o primeiro choro só aconteceu oito horas mais tarde. Os índios mais velhos acreditam que Amalé só não morreu porque a terra da cova estava misturada com muitas folhas e gravetos, o que pode ter formado uma pequena bolha de ar e permitiu a respiração do menino.

A dramática história do pequeno índio retrata uma realidade que se repete em muitas outras tribos espalhadas pelo Brasil – é o que destaca Edson Suzuki, diretor da ONG ATINI (Voz pela Vida)[5], que, inclusive, distribuiu uma cartilha intitulada “O Direito de Viver” em mais de cinqüenta aldeias nacionais, com a qual procurou gerar um ambiente necessário para que o indígena refl ita sobre as questões ligadas ao infanticídio e outros atos nocivos à vida, dignidade e sobrevivência[6]. Segundo dados de sociólogos e pesquisadores da área, já se confi rmou a prática deste “infanticídio” em pelo menos treze etnias, tais como: os ianomâmis, os tapirapés e os madihas[7]. Os motivos e os métodos usados para o infanticídio são variados: além dos fi lhos de mães solteiras, também são condenados à morte os gêmeos – “algumas tribos por entender que um representa o bem e o outro o mal, e, assim, por não saber quem é quem, elimina os dois; outras tribos crêem que só os bichos podem ter mais de um fi lho de uma só vez” [8]-, os recém-nascidos que possuem alguma defi ciência mental ou mesmo física. Mas há também casos mais impressionantes, como nos casos de índios que matam os que nasceram com pequenas manchas ou cicatrizes na pele – “crianças que, segundo eles, podem trazer maldição à tribo”. E aqui, vale destacar que “os rituais de execução consistem em enterrar vivos, afogar ou enforcar os bebês. Geralmente é a própria mãe quem deve executar a criança, embora haja casos em que pode ser auxiliada pelo pajé”.[9]

Em várias partes do globo – antes e agora – mulheres são submetidas à circuncisão, e tal costume está difundido e enraizado na cultura de certas tribos de tal forma, que, às vezes, são as próprias mulheres que desejam dar continuidade a este ritual[10]. Segundo relatórios da Organização Mundial da Saúde (OMS)[11], cerca de 6.000 mulheres são vítimas da mutilação genital todos os dias, num total de cerca de dois milhões por ano. A maioria destas mulheres vive em 28 países da África, Ásia e Oriente Médio, dentre os quais destaca-se: Etiópia, Sudão, Djibuti, Somália e Serra Leoa.

Ainda hoje é verifi cável que em certos países, especialmente na África, mulheres são espacandas em público até a morte, quando acusadas de adultério. Na Índia e em alguns países árabes, meninas ainda são – não rara vezes – submetidas a casamentos impostos por seus pais. E em vários países islâmicos ortodoxos e pelo regime Talibã, as mulheres não têm direito a expressar sua opinião, não votam, não podem se comunicar com outros homens que não os da sua família, são obrigadas a aceitar o casamento polígamo, são

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Pluralismo e Estados Pós-Nacionais: O Discurso Normalizante dos Direitos Humanos

mantidas como empregadas de seu marido e não têm, sequer, o direito a separação. No Japão, ofi cialmente, as mulheres são obrigadas a andar a uma distância não inferior a um passo (atrás) do marido. “Em pleno século XXI, mulheres ainda são vendidas ou trocadas em alguns países da África” - destaca a radialista Vivane Amorin.[12]

Por outro lado, muitos são os ativistas e os movimentos que buscam combater estas (e outras) formas de afronte à vida, à dignidade e à integridade destas pessoas[13]. A bandeira que empunham, sempre, é a dos Direitos Humanos, que devem ser respeitados em qualquer local do globo, frente à qualquer tradição ou indivíduo.[14] [15]

Diante de histórias como as de Fátima e Amalé, e dos diversos movimentos que visam hodiernamente combater e repelir tais hipóteses, é que segue o questionamento do presente trabalho: até que ponto o discurso dos Direitos Humanos podem/devem ser empregados para modifi car as tradições e os pensamentos de uma comunidade? Mais ainda: é certo falar de um discurso unívoco, homogeneizado, do que pode ser concebido como Direitos Humanos para defi nir o que é, ou não, um ato rechaçável? A quem caberia, então, tal defi nição (quem ditará o padrão do que é – ou não – Direitos Humanos)? Todos estes questionamentos se impõem, afi nal de contas, a diversidade cultural, econômica, jurídica e social é muito grande entre os variados povos do globo. Compatibilizar tais diferenças é a grande questão - a difícil missão que a nós é imposta. Até porque, do contrário, estaremos empunhando a bandeira dos Direitos Humanos de forma equivocada, objetivando estabelecer um verdadeiro processo de normalização dos indivíduos.

Esse trabalho tem por escopo, então, resgatar algumas questões acerca da idéia de pluralismo nos Estados Pós-Nacionais, e, sob tais premissas, demonstrar como o discurso dos Direitos Humanos pode ser empregado sob uma (indevida...!) perspectiva normalizadora da população. Para tal, procuraremos edifi car uma ponte entre o trabalho e o pensamento de autores diversos: partiremos das colocações do professor Marcos Augusto MALISKA, passando pelas idéias de Bárbara HUDSON e Michel FOUCAULT, para então alcançar uma possível conclusão com Philip PETTI. Dos Estados Nacionais aos Cooperativos: o reconhecimento do pluralismo

Com a virada do século XXI, inaugura-se uma nova fase na evolução da formação política das sociedades. O Estado, até então de índole Nacional – que reconhecia sua identidade e força absoluta perante os demais por conta do princípio da soberania -, passa a carrear outras exigências, em especial a de interlocução com as demais nações e a de reconhecimento das diferenças internas. Falamos, aqui, do surgimento dos Estados Constitucionais Cooperativos[16], ou, simplesmente, Estados Pós-Nacionais, que nas

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lições de Marcos Augusto MALISKA, seriam “aqueles que se abrem para a cooperação e integração internacional e supranacional, seja ela regional ou global”[17]. Mas não só isso, continua o douto professor, asseverando que tais Estados também compreendem políticas públicas internas diferenciadas, na qual se exige a observância das peculiaridades que envolve cada um dos grupos que conformam sua população, ao mesmo passo em que não se contenta mais com nenhuma tentativa homogeneizantes, “negadoras de diferenças culturais, étnicas, raciais”[18] - as quais eram típicas dos clássicos Estados Nacionais.

Vale lembrar que a construção do Estado Nação foi historicamente importante para o século XIX, pois afastou antigos resquícios que arrostavam o plano de desenvolvimento traçado pelas diversas nações do globo[19]. No modelo europeu, e, mais especifi cadamente no caso alemão, sua consolidação foi imperiosa para congregar o povo germânico sob a tutela de uma mesma e única ordem política – destaca MALISKA[20]: trava-se de “agrupar aqueles que falavam a mesma língua e tinham os mesmos costumes” (...), pois “lá já havia o povo, e a questão era romper as relações tradicionais e agrupar esse povo sob o manto do Estado Nação”. Já no modelo brasileiro, a consolidação se deu por razões diversas: ainda havia a pretensão de criar uma identifi cação nacional, ou seja, de construir uma imagem verdadeira de quem era o povo brasileiro – pois “aqui não havia povo, o Estado chegou antes”[21]. [22]

De qualquer forma, os Estados Nacionais caracterizavam-se pela negação das diferenças pessoais (culturais, regionais, étnicas, etc.) em nome do desenvolvimento e do progresso. Assim, é correto afi rmar que tais Estados “construíam a cidadania a partir de um projeto hegemônico: o homem da modernidade é branco, ocidental, do sexo masculino, heterossexual e nacional”[23]. Todos aqueles que estavam à margem desta descrição estariam, portanto, fora do projeto ideal - e, como tal, não teriam atendias as duas demandas particulares; afi nal de contas, não seriam verdadeiros cidadãos na acepção mais estreita da palavra (seriam, em verdade, não-pessoas num plano político...!).

Somente aos poucos a idéia de cidadania foi se estendendo para outros grupos, promovendo aquilo que MALISKA identifi cou como a democratização do espaço político/público, “de modo que o paradigma estruturante desse Estado não serviria para compreender o respeito à diversidade que marcou as sociedades no século XXI. Trata-se de um processo de desintegração no sentido de um abandono de valores absolutos construídos a partir de teorias totalizantes que negavam a diferença e as opções pessoais, culturais e comunitárias”[24]. Foi neste diapasão que se superou historicamente o modelo Nacional.

O Brasil, como outros países, aderiram a esta nova investida. Tanto é assim que nossa Carta Magna de 1988 expressamente reconheceu tal ideal ao optar pela diversidade e pelo pluralismo social, e incumbiu o Estado da missão de assegurar o bem estar plural

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da sociedade[25]. Neste quadro, MALISKA destaca que a Constituição, enquanto instrumento fundamental de uma sociedade, enfrentaria dois grandes desafi os: em primeiro lugar, a necessidade de propiciar uma abertura orgânica do Estado para a cooperação e integração internacional e supranacional – ou seja, de viabilizar um estreitamento de laços internacionais, numa clara idéia de permeabilidade.[26] Aqui, vale fi rmar que a supremacia da Constituição perante a ordem jurídica interna de uma nação continuaria reinando de forma intacta e absoluta, mas, na deliberação acerca de uma ordem jurídica internacional/supranacional, o Estado teria que compartilhar essa competência com outras nações igualmente soberanas, gerando aquilo que MALISKA identifi cou como uma rede de Constituições[27] - o que, a nosso ver (e aqui concordamos com o ilustre professor), não implicaria num enfraquecimento da força normativa da Constituição ou mesmo do Estado, ao contrário, pois esta abertura para o franco diálogo demonstra apenas que o Direito continua sendo o meio mais efi caz para resolver os mais variados confl itos que não podem (muitas vezes) ser resolvidos na exclusiva órbita nacional.[28]

Já o segundo desafi o da Constituição, o qual importa de maneira especial aos fi ns almejados por este trabalho, estaria consubstanciado exatamente na necessidade de se observar as diferenças internas, respeitando e ouvindo as peculiaridades culturais e históricas de cada um dos grupos que conformam uma nação. Afi nal de contas, a “todos é devida a igualdade de oportunidade com respeito à diversidade”[29] – isto seria, portanto, a expressão máxima de um pluralismo, que passa agora a ser exigido.

Neste tocante, devemos perceber que até mesmo a mais democrática das nações está, ainda assim, dividida em gênero, classe, etnia, religião, classe, etc. Como destaca Barbara HUDSON, “a diversidade e a divisão são inevitáveis em nosso mundo, são verdadeiras condições da atualidade – o que se tornou mais complexo ainda com a globalização”:[30]

Os cidadãos da modernidade (referindo-se, ao que tudo indica, ao que aqui chamamos de pós-modernidade) não vivem nas sociedades homogêneas imaginadas quer por formas tradicionais de justiça nativa, quer pelos fi lósofos e políticos liberais do Iluminismo, os quais conceberam as teorias e instituições da justiça que foram desenvolvidas na Europa e exportadas ao redor do mundo. Novos princípios e novas instituições de justiça são portanto necessárias. Princípios e instituições que aceitem a diversidade e a divisão como condição inevitável, quando as pessoas interagem em grandes e complexas sociedades e quando os padrões de migração fazem com que as sociedades continuem a se tornar mais diversas e divididas. Não princípios e instituições que ‘estabelecem’ um conjunto compartilhado de valores e identidade.

Ainda seguindo os ensinamentos de HUDSON, devemos conceber que até mesmo as mais radicais divisões que existem num corpo social devam ser levadas em conta, e

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isso implica no fato de que algumas questões mais complexas, como as de decidir quais direitos devem ser assegurados, ou ainda, quem deve alcançar tais direitos, devem ser constantemente formuladas, e estas serão raramente respondidas de maneira com que todos possam concordar – é a máxima expressão do que poderíamos chamar de uma democracia plural (não obstante, a nosso ver, sejam noções inseparáveis: pluralismo e democracia...!).[31]

Foi exatamente o que a Constituição da República fez como Brasil em 1988, quando passou a reconhecer as diversidade étnicas, culturais e regionais dos diversos brasis que existe dentro deste mesmo e extenso território. Como lembra MALISKA (mais uma vez), não foram poucas as vezes em que a Carta empregou termos como “raça, cor, racismo, cultura afro-descendente, segmentos étnicos nacionais”, mesmo porque “ela tem no pluralismo e na diversidade elementos indispensáveis da sua identifi cação”[32] [33]. E é de se ressaltar que esta convicção - de respeito à identidade diferenciada – foi, inclusive, consagrada em normas jurídico-constitucionais, especialmente consignadas em três vetores[34]: no princípio da não-discriminação; no princípio do combate à desigualdade; e, por fi m, no princípio do pluralismo/diversidade (stricto sensu). Explica MALIKSA que, com o primeiro, a Constituição quis proibir qualquer espécie de discriminação negativa (ex vi artigo 3º, inciso IV), afastando todas as teorias que propugnam pela supremacia de uma raça[35] sobre outra. Com o segundo, fi rmou-se a obrigação de combater todas as desigualdades que se fi rmaram ao longo dos tempos entre os diversos grupos raciais[36], mediante prestações positivas por parte do Estado e também da sociedade como um todo – aqui entra, v.g., as políticas de cotas propugnadas pelo governo federal, em especial no âmbito da educação superior. Por fi m, com o terceiro princípio a Constituição pugna – em uma percepção quase freudiana – pelo reconhecimento efetivo da existência do outro[37], possibilitando que este se afi rme e se desenvolva autonomamente, como continente próprio de criatividade; ou seja, quer ela o reconhecimento da diferença entre os seres, bem como a possibilidade de ofertar-lhe condições para que possa desenvolver sua individualidade – “é a diversidade como realização da dignidade humana”[38]. O discurso unívoco dos Direitos humanos e o (indevido) processo de normalização

O maior de todos os problemas é que, embora se tente reconhecer tal diversidade, as raízes que nos prendem ao pensamento homogeneizante dos clássicos Estados Nacionais ainda são muito fortes. Os direitos são tradicionalmente pensados como possessões que se anexam a cidadãos de boa reputação – é o que afi rma, com propriedade, Barbara

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HUDSON: “... os direitos atribuem deveres e responsabilidades, bem como fornecem titularidades. Estabelecem limites sobre a liberdade de ação para se certifi car de que a liberdade de uma pessoa não seja assegurada às expensas da liberdade de outra”.[39]

Contudo, não podemos esquecer que as identidades também são estruturadas por meio dos relacionamentos, e isso nos leva à importância de se observar todos os gêneros, raças, religiões e status/classes sociais antes de se consolidar quais serão os Direitos almejados e protegidos por uma ordem. E é exatamente aí que segue a presente crítica, pois entendemos que qualquer tentativa de construção que observe apenas uma realidade, em detrimento a outras existentes, certamente não estará atendendo às demandas atuais, mesmo que esta construção jurídica esteja fi rmada sob a alcunha de Direitos humanos.

Afi nal de contas, será verdadeiramente possível fi rmar um conceito unívoco e válido, que respeite e abarque todas as raças e gêneros humanos? A resposta, a nosso ver, é negativa – o que, data máxima vênia (frise-se), não quer dizer que não acreditemos na construção e na importância dos Direitos humanos (ao contrário...!). Acreditamos, sim, que as tentativas até hoje empregadas para delimitação de Direitos maiores e universais propiciaram, em real, um processo de normalização dos seres - tal qual ocorria com os Direitos consagrados nos vetustos Estados Nacionais -, o que não se coaduna com a presente lógica dos Estados Constitucionais Cooperativos.[40]

Para melhor explicar o que entendemos por este processo de normalização, chamamos à voga algumas lições de Michel FOUCAULT, que trabalhou como ninguém a relação intrínseca entre Direito, poder e verdade.[41] Estas noções traduziram-se nas seguintes indagações: quais são as regras de direito de que lançam mão as relações de poder para produzir discursos de verdade? E ainda: qual é este tipo de poder capaz de produzir discursos de verdade que são, numa sociedade como a nossa, dotados de efeitos tão potentes? Como resposta, o fi lósofo francês consagra que todo este quadro se justifi ca porque numa sociedade diversifi cada como a nossa, múltiplas relações de poder perpassam, caracterizam-se e constituem-se no corpo social, e elas não poderiam se realizar sem a existência de um discurso tido como verdadeiro. Ou seja, “somos submetidos pelo poder à produção da verdade e só podemos exercer o poder mediante a produção da verdade”.[42]

Neste sentido, o autor nos lembra que há um fato que não pode ser olvidado: nas sociedades ocidentais, desde a Idade Média, a elaboração do pensamento jurídico se fez essencialmente em torna da idéia de poder régio (poder do Rei, do soberano[43]) - seja para servir de instrumento, de justifi cação ou de limitação deste poder[44]. E dentro deste quadro, o papel da Teoria do Direito, desde a Idade Média, sempre foi o de fi xar a legitimidade que funda o poder – ou seja, o problema central da teoria do Direito esteve sempre fundado na questão da soberania. E dizer que o problema da soberania é o problema central da Teoria do Direito signifi ca que o discurso e a técnica do Direito tiveram como

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Marcelo Lebre Cruz

função dissolver no interior do poder a questão da dominação e suas conseqüências. E segundo FOUCAULT, “o Direito é exatamente o instrumento dessa dominação”.[45]

Importante destacar, ainda, que não existe apenas uma e única forma dominação, mas sim inúmeras e múltiplas formas de dominação que podem se exercer no interior da sociedade. Assim, o sistema do direito e o campo do judiciário são o veículo permanente de relações de dominação e técnicas de sujeição. E é exatamente por isso que o autor procura examinar o Direito não sob o aspecto da legitimidade a ser fi xada, mas sim sob o prisma dos procedimentos de sujeição que ele põe em prática. Ou seja, ele propõe mudar o enfoque de análise: da soberania e da obediência para o problema da dominação e da sujeição.

Para tal realização, Michel FOUCAULT destaca cinco precauções com o método: (a)Primeiramente, o autor procura apreender o poder em suas extremidades, em seus últimos lineamentos (e não em analisar as formas regulamentadas e legítimas de poder em seu centro, como era feito tradicionalmente). Assim, ele pretende analisar o poder em suas formas e em suas instituições mais regionais, mais locais[46]. (b)Numa segunda instrução, o autor propugna por uma análise do poder não ao nível da intenção ou da decisão (ou seja, não quer delimitar simplesmente: quem tem o poder?), mas sim estudar o poder do lado em que sua intenção está inteiramente concentrada no interior de práticas reais e efetivas (estudar o poder em sua face externa – ou seja, qual o seu objeto, seu alvo, seu campo de aplicação; no campo em que ele produz seus efeitos reais – o que signifi ca perquirir sobre como as coisas acontecem no momento do procedimento de sujeição?). Em outros termos, ao invés de se perguntar como o soberano aparece no alto, se perguntar como se constituíram pouco a pouco os súditos a partir da multiplicidade das forças da sociedade[47]. (c)Uma terceira precaução do método está assentada na idéia de não tomar o poder como um fenômeno de dominação maciço e homogêneo (dominação de um indivíduo sobre os outros); é ter em mente que o poder não é algo que se partilhe entre aqueles que o têm e aqueles que são submetidos a ele. O poder deve ser analisado como algo que circula, como algo que só funciona em cadeia, em rede; jamais localizado aqui ou ali (não funciona como uma riqueza ou um bem, pois o poder se exerce...!). O autor enfatiza que o indivíduo é, ao mesmo tempo, um efeito e também o intermediário do poder: “... o poder transita pelo indivíduo que ele constituiu”[48]. (d)Uma quarta precaução se dá no sentido de que não se deve fazer uma espécie de dedução do poder que parta do centro e que tente ver até onde ele se prolonga. Ao contrário, é preciso fazer uma análise ascendente do poder, ou seja, partir dos mecanismos infi nitesimais, os quais têm a sua própria história, seu próprio trajeto e técnica, e somente depois ver como estes mecanismos de poder são colonizados e utilizados por mecanismos cada vez mais gerais e por formas de dominação global (ou seja, não partir do todo para conhecer as minúcias,

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mas sim das minúcias para conhecer o todo...!)[49]. (e)A quinta e última precaução, segundo o autor, está consubstanciada no fato de que as grandes máquinas do poder estão sempre acompanhadas de produções ideológicas. E aqui, o autor destaca que na base das redes de poder estão instrumentos efetivos de formação e acúmulo de saber – métodos de observação, técnicas de registro, procedimentos de investigação e de pesquisa, aparelhos de verifi cação.[50]

Seguindo este modelo, pode-se facilmente perceber que enquanto reinou a sociedade do tipo feudal, os problemas de que tratava a teoria da soberania cobriam efetivamente a mecânica geral do poder e o modo pelo qual ele se exercia (cobria o corpo social). Já no século XVIII ocorreu um fenômeno importante, que iria posteriormente transformar as relações: o aparecimento de uma nova mecânica de poder - a qual é inteiramente incompatível com as relações puras de soberania. É um poder que se exerce continuamente através da vigilância, um poder que pressupõe muito mais uma trama cerrada de coerções materiais do que a existência física de um soberano, defi nidor de uma nova economia de poder. Este foi o grande trunfo da sociedade burguesa, e um dos instrumentos fundamentais na implantação do capitalismo industrial: a existência de um poder não-soberano, que fi cou conhecido como poder disciplinar. [51]

Desta forma, a partir do século XIX, passamos a conceber (ao mesmo tempo) uma legislação, um discurso e uma organização do Direito público articulados em torno do princípio da soberania, mas também (ao seu lado) uma trama cerrada de coerções disciplinares que garantirão, de fato, a coesão desse mesmo corpo social, produzindo aquilo que podemos intitular de processo de normalização dos seres – ou seja, um conjunto de medidas para criar indivíduos dóceis, que pensam e agem conforme uma lógica determinada que lhes é pré-fi xada: “um Direito da soberania e uma mecânica da disciplina”, é exatamente entre estes dois limites que se pratica, para FOUCAULT, o exercício do poder.[52]

Sobre este processo de normalização, o autor ainda adverte que uma correta disciplina deve ser encarada como “a arte do bom adestramento”[53]. Não por outra razão ele destaca que o poder disciplinar é muito mais que um mero poder de se apropriar e de retirar (verbis): “... ele não amarra as forças para reduzi-las, mas procura ligá-las para multiplicá-las e utilizá-las num todo (...); leva seus processos de decomposição até às singularidades necessárias e sufi cientes”[54]. E neste mesmo contexto é que o fi lósofo conclui que “a disciplina verdadeiramente fabrica indivíduos” – a disciplina nada mais é do que uma técnica específi ca de um poder que toma os indivíduos ao mesmo tempo como objetos e como instrumentos de seu exercício. É a disciplina que nos faz pensar de forma igual, é a disciplina que nos tenta impor os pensamentos homogeneizantes, inclusive no que tange ao conceito e ao discurso dos Direitos Humanos.[55]

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Conclusões: a saída republicana de Philip Pettit

A crítica aqui pontuada, como se assentou, não se reveste de uma negação à importância dos Direitos Humanos, mas de uma nova interpretação a que estes devem estar submetidos, a qual se dará a partir de um novo referencial: o pluralismo, enquanto expressão da diversidade socio-cultural, típica dos Estados Constitucionais Cooperativos.

Trata-se de criar uma nova edifi cação, na qual “o princípio da igualdade passe a ser permeado pela diversidade, pela necessidade de medidas compensatórias, enfi m, em que a dignidade da pessoa humana não tenha como referência um padrão hegemônico de bem estar e dignidade, mas vários padrões, ditados pelos diversos grupos sociais e suas culturas, que promovidas e apoiadas pelo Estado e protegidas por um estatuto jurídico (a Constituição aberta), constituem-se na verdadeira emancipação do homem inserido na sua realidade histórica, social e cultural”.[56]

Da leitura realizada sobre o trabalho de Barbara HUDSON, percebe-se que a maior de suas críticas está voltada exatamente à noção de igualdade na forma pela qual ela é comumente fi rmada pelo discurso dos Direitos humanos - onde se insiste em tratá-la como algo auto-evidente (já estabelecido em conteúdo). Contrariando este entendimento comum, HUDSON afi rma que a igualdade, em verdade, somente será alcançada através de novas práticas democráticas[57]. E aqui, parecer-nos que Phelip PETTIT[58] encontra um bom caminho para consagrar tal igualdade, sem contudo se escorar em uma idéia de normalização: o republicanismo e suas práticas – que é a idéia também esposada, por exemplo, pelo ilustre professor MALISKA: “...uma leitura da constituição alternativa ao pensamento liberal pode ser encontrada no republicanismo”.[59]

Segundo PETTIT, “o pensamento republicano é compatível com as sociedades modernas e plurais, pois para a tradição republicana a participação democrática é importante em razão de possibilitar o desfrute da liberdade como não dominação, e não porque a considera um valor básico inalterável”[60]. A conclusão do pensamento aqui traçado é facilmente perceptível em MALISKA, quando o autor afi rma que

o desafi o que o pluralismo coloca no âmbito da Constituição é o de pensar a liberdade individual, as garantias do Estado de Direito, a partir de uma necessária compreensão de que a sociedade, na qual vigoram esses direitos, está fortemente marcada por uma pluralidade social, que antes de apresentar indivíduos homogêneos portadores dos mesmos direitos individuais, mostra grupos sociais diferenciados, com características históricas diferentes e que somente uma pré-compreensão dessa realidade pode criar as condições necessárias para que os direitos individuais possa ser realizados efetivamente para o conjunto da população[61].

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Afi nal de contas, “se a justiça pretende ir além da gama de interdições e exclusões estabelecidas, então deve ser capaz de ir além das existentes estruturas de admissibilidade e relevância (...), a justiça precisa levar em consideração o contexto de opressões e desigualdades nas sociedade onde o caso ocorre”[62], e é por isso que não pode o pluralismo passar desapercebido do discurso do Direito. Note-se, por oportuno, que “é a consciência da diversidade e a persistência das divisões baseadas na diversidade que têm incentivado a emergência dessas constituições contemporâneas, que incluem listas detalhadas de direitos e garantias fundamentais e os mecanismos para torná-los reais”[63].

Diante de tudo isso, podemos concluir – ainda com Bárbara HUDSON – que, na consolidação dos hodiernos Estados (Cooperativos) e na estruturação de um novo Direito, devemos sempre almejar “fazer justiça à diversidade ao invés de expelir a diferença para além da comunidade de justiça”[64] – que era o alvo principal das construções tradicionais de Direitos Humanos[65]. É (agora) o momento de dar voz às demandas das minorias, das mulheres, dos imigrantes, dos povos nativos, dos pobres, daqueles que não possuem propriedades, das minorias religiosas e sexuais, daqueles que estão socialmente excluídos – “não apenas para a proteção legal pelos males e injustiças que compartilham com os grupos dominantes, mas para a atenção e reparação às injustiças que surgem das diferentes identidades e circunstâncias”[66].

Afi nal de contas, em qualquer tentativa de se impor um padrão comum e generalizante baseado na cultura e pensamento de um único povo (por certo, o dominante: o ocidental, masculino e branco – que é aquele que mais se aproxima de nosso modo de viver), sob justifi cativa que seriam sociedades mais evoluídas, estariam consagrando um detestável etnocentrismo – ou seja, estaríamos partindo da (equivocada) premissa que os valores de uma determinada cultura são superiores aos valores de todas as demais.

O próprio FOUCAULT já havia advertido que para lutar contra as disciplinas e contra qualquer espécie de investida normalizadora, devemos construir um novo Direito, que seria anti-disciplinar, e que estaria, ao mesmo tempo, liberto do princípio da soberania.[67] Ou seja, quer-se com tudo isso assentar, em defi nitivo, que é o momento de escutar o outro, e fi ndar com qualquer pretensão de uniformização que pretende transformar os indivíduos em seres idênticos, robotizados, esquecendo-se das belezas que são inerentes à peculiaridade humana.

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REFERÊNCIAS:

*Marcelo Lebre Cruz, graduado em Direito pela UniBrasil, formado na Escola Superior do Ministério Público do Paraná e especialista em Direito e Processo Penal pela ABDConst. Mestre em Direitos Fundamentais e Democracia pelas Faculdades Integradas do Brasil. [email protected].

[1] (Nota) estas histórias foram narradas, respectivamente, em duas reportagens magnífi cas: a primeira, pela jornalista Amira El Ahl, do alemão Der Spiegel; a segunda, que consta da revista brasileira Isto É do dia 20 de fevereiro de 2008.

[2] EL AHL, Amira. A small revolution in Cairo: Theologians Battle Female Circumcision. Traduzida do alemão para o inglês por Christopher Sultan. Publicada em 12/06/2006 pelo jornal Der Spigel. Fonte: Spiegel On-Line. http://www.spiegel.de/international/html. Consulta, tradução (própria) para este artigo e paráfrase em: 28.abr.2008.

[3] A OMS identifi cou, em estudos realizados, quatro tipos de mutilação genital em tradições culturais: (a) Tipo I, ou “clitorectomia”: extirpação da pele em volta do clitóris, com ou sem a extração de parte ou de todo o clitóris. (b) Tipo II, ou “excisão”: remoção de todo o clitóris e de parte ou da totalidade dos pequenos lábios. (c) Tipo III, ou “infi bulação”: remoção de parte ou de toda a genitália externa, e a costura do orifício vaginal, deixando-se apenas uma pequena abertura. (d) Tipo IV: várias outras práticas, incluindo perfurações, incisões ou retalhamento do clitóris. In: http://www.who.int/en/ - 28.abr. 2008.

[4] MARQUES, Hugo. O garoto índio que foi enterrado vivo. Revista “Isto É”, Brasil, n.º 1998, p.40-41, de 20. fev.2008.

[5] Idem.

[6] (Matéria): Índios – Carta aberta sobre o infanticídio indígena. Escrita e publicada pela Agência Soma em 07/09/07. In: http://www.lideranca.org. Consulta em: 29.abr.2008.

[7] “Só os ianomâmis, em 2004, mataram 98 crianças. Os kamaiurás, a tribo de Amalé e Kamiru, matam entre 20 e 30 por ano”. Fonte: MARQUES, Hugo. Ob. cit. p. 41.

Destaque-se, por oportuno, que o termo “infanticídio” é aqui empregado para designar os variados rituais nos quais a tribo (ou mesmo os pais) retiram a vida de seus fi lhos, e não especifi cadamente a fi gura típica descrita no artigo 123 do Código Penal brasileiro: “Matar, sob infl uência do estado puerperal, o próprio fi lho, durante o parto ou logo após”.

[8] Idem.

[9] Idem.

[10] Como destaca EL AHL, Amira. Ob. cit.: “... de fato, uma mulher não circuncidada é considerada sem valor algum no mercado de casamentos em muitos locais por ser tida como ‘impura’ ou ‘livre’”.

[11] In: http://www.who.int/en/. Acesso em 26 de abril de 2008.

[12] Todos estes dados foram colhidos em: AMORIN, Viviane. Lembrete. Comentários em comemoração ao dia internacional da mulher. 08. Mar. 2008. In: http://www.d30.com.br/?ver=343. Consulta e paráfrase para este artigo em: 02 de maio de 2008.

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[13] “No Cairo, por exemplo, foi desencadeada uma pequena revolução - oriunda de uma conferência de teólogos muçulmanos de alto escalão na Universidade Al-Azhar, a qual foi organizada e fi nanciada pelo alemão Rüdiger Nehberg, 71 anos, um homem conhecido por aventuras como a travessia do Oceano Atlântico em um barco movido a pedal e que criou a Target, uma organização de direitos humanos dedicada a combater a mutilação genital feminina. -, onde se concordou que a mutilação genital feminina é irreconciliável com o islamismo” (...). “O Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), que assumiu um papel ativo contra a mutilação genital feminina, promove programas de sensibilidade cultural para analisar as razoes sociais da prática. O UNFPA e o Fundo das Nações Unidas para a Infância lançaram um programa de US$ 44 milhões para reduzir o efeito da mutilação e acabar com ela nesta geração. A nova iniciativa estimula as comunidades em 16 nações africanas a erradicar essa prática. Na Áustria, segundo o estudo, a mutilação genital agora é considerada um ataque físico ao qual uma pessoa não pode dar seu consentimento. Além disso, as leis na Suécia proíbem a prática sem importar o contexto da vitima nem de seus parentes. E, segundo o código penal da Alemanha, o consentimento dos pais é considerado um abuso do pátrio poder. Na Finlândia e na Holanda, os profi ssionais da saúde estão obrigados a denunciar casos ligados à mutilação genital. Segundo a lei canadense, essa operação é considerada um tipo de perseguição por motivos de gênero e motivo para conceder o status de refugiada. Embora Áustria e Espanha não citem isso explicitamente em suas leis, têm o mesmo conceito na prática. A Organização das Nações Unidas formulou encarte de 18 páginas, intitulado ‘Pondo fi m à mutilação genital feminina’, dizendo que o impacto das intervenções para acabar com essa prática só podem ter pleno sucesso no contexto de esforços intensos pela igualdade de gênero e do fortalecimento do papel das mulheres”. (In: EL AHL, Amira. Ob. cit.).

[14] “É um absurdo fechar os olhos para o genocídio infantil, sob qualquer pretexto”, diz Edson Suzuki, diretor da ONG Atini: “Não se pode preservar uma cultura que vai contra a vida. Ter escravos negros também já foi um direito cultural”, compara. “O infanticídio é uma prática tradicional nociva”, ataca a advogada Maíra Barreto, que pesquisa o genocídio indígena para uma tese de doutorado na Universidade de Salamanca, na Espanha: “E o pior é que a Funai está contagiada com esse relativismo cultural que coloca o genocídio como correto”, ataca o deputado Henrique Afonso, do PT do Acre, autor de um projeto de lei que pune qualquer pessoa não índia que se omita de socorrer uma criança que possa ser morta. E a Funai faz vista grossa ao infanticídio de algumas tribos. E concluí Edson Susuki: “Não se pode preservar uma cultura que vai contra a vida”. (In: MARQUES, Hugo. Ob. cit.).

[15] “Há também um projeto de lei que trata de ‘combate às práticas tradicionais que atentem contra a vida’, o qual tramita na Câmara desde maio passado (2007). A Lei Muwaji, como é chamada em homenagem à índia que enfrentou a tribo para salvar sua fi lha com paralisia cerebral - caso que inspirou a criação da ONG Atini-, estabelece que ‘qualquer pessoa’ que saiba de casos de uma criança em situação de risco e não informe às autoridades responderá por crime de omissão de socorro. A pena vai de um a seis meses de detenção ou multa”. Há quem argumente que o infanticídio é parte da cultura indígena. Outros afi rmam que o direito à vida, previsto no artigo 5º da Constituição, está acima de qualquer questão: “Nós vivemos sob uma ordem legal e a lei diz que o direito à vida é mais importante que a cultura”, afi rma Maíra Barreto, doutoranda em direitos humanos pela Universidade de Salamanca (Espanha), cuja tese é sobre infanticídio indígena. Para ela, conselheira da Atini, “há incoerência no fato de o Brasil ser signatário de convenções internacionais que condenam tradições prejudiciais à saúde da criança e não cumpri-las no caso dos índios”. Em 2004, o governo brasileiro promulgou, por meio de decreto presidencial, a Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), que determina que os povos indígenas e tribais “deverão ter o direito de conservar seus costumes e instituições próprias, desde que não

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sejam incompatíveis com os direitos fundamentais defi nidos pelo sistema jurídico nacional nem com os direitos humanos internacionalmente reconhecidos”. Antes disso, em 1990, o Brasil já havia promulgado a Convenção sobre os Direitos da Criança da ONU, que reconhece “que toda criança tem o direito inerente à vida” e que os signatários devem adotar “todas as medidas efi cazes e adequadas” para abolir práticas prejudiciais à saúde da criança. (BONI, Ana Paula. Infanticídio põe em xeque respeito à tradição indígena. In: Folha de São Paulo, domingo, 06.abr.2008.).

[16] MALISKA, Marcos Augusto. Constituição e Estado Pós- Nacional. Refl exões sobre os desafi os do Direito Constitucional em face da abertura da ordem jurídica estatal e das demandas internas por cidadãos não homogeneizantes. Texto produzido como atividade de pesquisa acadêmica realizada junto ao NUPECONST – Núcleo de Pesquisa em Direito Constitucional da UniBrasil, em Curitiba. p. 02.

[17] Idem.

[18] Idem.

[19] Como destaca MALISKA: “Essa função historicamente foi fundamental para romper com o modelo de lealdade local e implantar o Estado Moderno”. Ibidem, p.12.

[20] Idem.

[21] SCHWARCZ, Lilia Mortiz. Estado sem nação. p. 351. CARVALHO, José Murilo de. Nação imaginária: memória, mitos e heróis. In: NOVAES, Adauto (org.). A crise do Estado Nação. p.414. Apud MALSKA, Marcos Augusto. Ob. cit., p.13.

[22] Neste quadrante, destacamos a matéria trazida por GOMES, Laurentino; NOGUEIRA, Marcos. Que país era aquele? O Brasil Surreal que Dom João encontrou. Revista Superinteressante de abril de 2008 (edição n.º 251), p.62-73. “Ao desembarcar no Rio de Janeiro, em março de 1808, o príncipe regente e futuro Rei Dom João VI, descobriu um país que não existia. Às vésperas da chagada da corte portuguesa, o Brasil era um amontoado de regiões mais ou menos autônomas e rivais entre si (...) que tinham como ponto de referência apenas o idioma português e o governo da coroa, sediado em Lisboa, do outro lado do oceano Atlântico. Ainda não havia entre os brasileiros qualquer noção de identidade nacional. Aliás, nem mesmo a expressão ‘brasileiro’ era reconhecida como sendo a designação das pessoas que nasciam no Brasil. Panfl etos e artigos publicados no começo do século XIX discutiam se a denominação correta seria brasileiro, brasiliense ou brasiliano. O jornalista Hipólito José da Costa, dono do jornal Correio Braziliense, publicado em Londres, achava que as pessoas naturais do Brasil deveriam se chamar brasilienses. Na sua opinião, brasileiro era o português ou estrangeiro que aqui se estabelecera. Brasiliano, o indígena”.

[23] MALSKA, Marcos Augusto. Ob. cit, p. 11.

[24] Idem.

[25] Idéia igualmente trazida por MALISKA, Marcos Augusto. A identidade da Constituição. Aula 03. Mestrado em Direitos Fundamentais e Democracia. UniBrasil. Curitiba, 05 mar. 2008.

[26] “A estrutura do Estado Constitucional Aberto (offener Verfassungsstaat) caracteriza-se pela sua permeabilidade. Características internacionais e supranacionais encontram-se na estrutura estatal interna e características constitucionais nas organizações internacionais e supranacionais”. MALISKA, Marcos Augusto. Constituição e Estado..., p. 05.

[27] Assevera o autor que “a compreensão do lugar da Constituição implica na aceitação de que a abertura do Estado Constitucional promove a criação de uma rede de Constituições, que não apenas

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reconhecem mutuamente as suas soberanias, mas também estão aptas ao diálogo, tanto na construção de instituições supranacionais como poder decisório supranacional, como também na produção normativa internacional (Tratados) com força vinculante perante os Estados”. Ibidem, p. 07.

[28] MALISKA, Marcos Augusto. A identidade.... Aula 03. Mestrado em Direitos Fundamentais e Democracia. UniBrasil. Curitiba, 05 mar. 2008.

[29] PEREIRA, Débora Macedo Duprat de Britto. O Direito indígena a partir da Constituição Federal de 1988 – art. 231. In: Anais do Seminário sobre questões indígenas. Brasília: Escola da AGU, 18 a 22 de abril de 2005. Apud MALIKSA, Marcos Augusto. Constituição e Estado..., p. 08.

[30] HUDSON, Barbara. Direitos Humanos e “Novo Constitucionalismo”. Princípios de Justiça para Sociedades Divididas. In: CLÉVE, Clémerson Merlin; SARLET, Ingo Wolfgang; PAGLARINI, Alexandre Coutinho (Org.). Direitos Humanos e Democracia. Rio de Janeiro: Forense, 2007. p. 11-28.

[31] Este é, inclusive, o tema de pesquisa desenvolvido por Bárbara Hudson: “as sociedades democráticas, mas divididas”. Idem.

[32] MALISKA, Marcos Augusto. Constituição e Estado..., p. 09.

[33] Veja, por exemplo, o artigo 1º, inciso V, artigo 3º e artigo 4º (como um todo), ou mesmo o Título II inteiro (Dos Direitos e Garantias Fundamentais) da CR/88.

[34] MALISKA, Marcos Augusto. Análise da constitucionalidade das cotas para negros em universidades públicas. In: DUARTE PIZA, Evandro C.; GUELFI, Vanirley Pedroso (orgs.). Razões para uma ação afi rmativa I – o Plano de Metas para inclusão racial e social na UFPR. Curitiba: DP&A e NEAB-UFPR, 2006.

[35] Nota explicativa: aqui empregaremos o termo raça de forma genérica, para designar toda a sociobiodiversidade presente na Constituição: diversidade de sexo, região, cor, cultura, etc. – como indica MALSKA, Marcos Augusto. Constituição e Estado..., p. 09.

[36] E aqui nos referimos, de forma especial, à cultura indígena e negra que se apagaram no tempo. (Ibidem, p.08).

[37] A concepção do outro como o outro, e não como mera extensão de nós mesmos, não como um refl exo narcísico de nossa própria personalidade. In: FREUD, Sigmund. Cinco lições de psicanálise. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

[38]MALISKA, Marcos Augusto. Constituição e Estado..., p. 10.

[39] HUDSON, Bárbara. Ob. cit., p. 14.

[40] A grande questão, e aí segue a crítica, é que ainda hoje, as constituições e boa parte dos tratado internacionais/supranacionais de Direitos não estão devidamente elaboradas para ofertar mecanismos para proteger todos os povos das mais variadas partes do globo, povos cuja diversidade é múltipla e cujas divisões tornam-se cada vez mais díspares.

[41] Ou melhor: quais são as regras de direito, os mecanismos de poder e os efeitos de verdade. FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 2006.

[42] FOUCAULT. Michel. Em defesa da Sociedade. Curso no Collége de France (1975-1976). São Paulo: Martins Fontes, 1999. p. 29. Com isso, o autor quer dizer que o poder nos condiciona sempre a buscar a verdade: “... o poder não para de nos questionar, de inquirir, de registrar; ele

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institucionaliza a busca da verdade, ele a recompensa...”. E mais, somos submetidos à verdade, “pois a verdade é norma; é o discurso verdadeiro que decide, que veicula os efeitos do poder (...); somo condenados, classifi cados e obrigados a tarefas, destinados a uma certa maneira de viver ou de morrer em função de discursos verdadeiros, que trazem consigo efeitos específi cos de poder”.

[43] Cita: “... o Direito do ocidente é um Direito de encomenda régia”; “... o personagem jurídico central, em todo o edifício jurídico ocidental é o rei”; “... é do Rei que se trata, de seus Direitos, de seu poder, dos eventuais limites de seu poder, é disso que se trata fundamentalmente no sistema geral...”. Sejam os juristas defensores ou inimigos do Rei, é dele que sempre se trata..!! Neste tocante, não podemos nos esquecer que o resgate das idéias do Direito Romano em meados da Idade Média foi crucial para o desenvolvimento e afi rmação deste papel de importância do Monarca absoluto. Ibidem., p. 30.

[44] “Primeiro, se referiu a um mecanismo de poder efetivo (o da monarquia feudal); b)ela serviu de instrumento e justifi cação para a constituição das grandes monarquias administrativas; c)depois (no séc. XVI e XVII), a teoria da soberania foi uma arma que circulou num campo e no outro, seja para limitar ou para fortalecer o poder régio; d)por fi m, no século XVIII, encontramos esta mesma Teoria da Soberania em ROUSSEAU e seus contemporâneos, agora num novo papel: a construção de monarquias parlamentares (em substituição às monarquias absolutistas)”. Idem.

[45] Ibidem, p. 32.

[46] Idem.

[47] Observe que esta idéia é inversamente oposta àquela que foi proposta por HOBBES no “Leviatã” (esquema que toma como base um ‘homem fabricado’, individualidades reunidas por certos elementos constitutivos do Estado, e cuja alma é conformada exatamente pela idéia de soberania!!!) - pois FOUCAULT não visa estudar esta “alma” propugnada por Hobbes, mas sim os corpos constituídos como súditos.

[48] FOUCAULT. Michel. Em defesa..., p. 35.

[49] “Não é a dominação global que se pluraliza e repercute até em baixo”. Ibidem, p. 36.

[50] Como conclusão, FOUCAULT consagra que “...em vez de orientar a pesquisa sobre o poder para o âmbito do edifício jurídico da soberania, para o âmbito dos aparelhos de Estado, para o âmbito das ideologias que o acompanham, creio que se deve orientar a análise do poder para o âmbito da dominação (e não da soberania), para o âmbito dos operadores materiais, para o âmbito das formas de sujeição, para o âmbito das conexões e utilizações dos sistemas locais dessa sujeição e para o âmbito dos dispositivos de saber”. É preciso, pois, estudar o poder fora do modelo do Leviatã, fora do campo delimitado pela soberania jurídica e pela instituição do Estado, e sim, de analisá-lo a partir das técnicas e táticas de dominação. Ibidem, p. 40.

[51] O que não quer dizer que a Teoria da Soberania deixou de existir. Ao contrário, continuou a existir como ideologia do Direito e também como forma de organização dos Códigos. Perquirido sobre o porquê a Teoria da Soberania continuou a existir, Michel FOUCAULT respondeu que “...uma vez que as coerções disciplinares deviam ao mesmo tempo exercer-se como mecanismos de dominação e ser escondidas como exercício efetivo do poder, era preciso que fosse apresentada no aparelho jurídico e reativada, concluída, pelos códigos judiciários...”. Ibidem, p. 44.

[52] Quando essas técnicas da disciplina invadem o Direito é que se pode explicar o funcionamento global do que FOUCAULT chamou de “sociedade de normalização”. Ibidem, p. 45.

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Pluralismo e Estados Pós-Nacionais: O Discurso Normalizante dos Direitos Humanos

[53] FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes, 2006. p.143.

[54] Idem.

[55] Embora não seja imprescindível para os fi ns deste trabalho, vale lembrar que o sucesso do poder disciplinar – segundo FOUCAULT - se deve ao uso de três instrumentos principais: a)a vigilância hierárquica; b)a sanção normalizadora; c)um procedimento específi co chamado de ‘exame’.

[56] MALIKSA, Marcos Augusto. Constituição e Estados..., p.17-18.

[57]HUDSON, Bárbara. Ob. cit., p.13.

[58] PETTIT, Philip. Republicanismo. Una teoría sobre la libertad y el gobierno. Barcelona: Paidós, 1999.

[59] MALIKSA, Marcos Augusto. Constituição e Estado..., p.18.

[60] PETTIT, Philip. Ob. cit, p. 25.

[61] MALIKSA, Marcos Augusto. Constituição e Estado..., p.18-19.

[62]HUDSON, Bárbara. Ob. cit., p.15-16.

[63]Ibidem, p. 19.

[64] Ibidem, p.17.

[65] É o que se verifi ca na Declaração dos Direitos dos Homens e Cidadãos de 02 de outubro de 1789, ou ainda na Declaração dos Direitos Humanos da ONU de 1948. Embora o espírito que as tenha motivado seja nobre, percebe-se, do teor destes textos normativos, que o objetivo era exatamente o de acabar com a diversidade, ao invés de procurar observá-la e protegê-la...! O que, a nosso ver, gerou um indevido processo de normalização dos seres.

[66] HUDSON, Bárbara. Ob. cit., p.17. “As constituições contemporâneas devem se preocupar em acomodar a diversidade. Não são elaboradas como documentos fi xos para qualquer tempo, documentos que contenham todas as verdades e princípios que uma sociedade precise manter para si mesmo e para a sua homogênea cultura. Pelo contrário, as Constituições contemporâneas são ‘instrumentos vivos’ (termo empregado na implementação da Convenção Européia de Direitos Humanos) que necessitam ser continuamente reinterpretadas conforme as situações e demandas que surgem e se modifi cam”.

[67] FOUCAULT. Michel. Em defesa..., p. 47.

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Corpo Discente

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Título do artigo

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O APENAMENTO DO ESTADOINERTE, SEGUNDO A TEORIA

FUNCIONAL DO DELITO

Jeferson Alves Noronha1

RESUMO

Este artigo tem como fi nalidade propor o apenamento do Estado, concomitantemente à punição imposta aos indivíduos infratores, em virtude da sua inércia em efetivar as regras constitucionais voltadas para a construção da sociedade livre, justa e solidária almejada pela Constituição da República de 1988. Tal inércia, entendida como fator que colabora para o cometimento do crime, se verifi cada in concreto para o delito apurado, dará azo à pena em mão-dupla, com a qual se punem dois atores: o indivíduo delinqüente e o Estado inativo. Nesse sentido, utilizou-se a teoria funcional do delito como suporte à ideia de punir o Estado inerte, que não busca os objetivos constitucionais descritos pela Carta Política de 1988.

PALAVRAS-CHAVES: teoria funcional, política criminal, Estado inerte, pena de mão-dupla.

INTRODUÇÃO

O presente artigo propõe, através de uma das teorias do delito – a teoria funcional –, a punição do Estado que se nega a materializar a política criminal formal introduzida pela Constituição da República do Brasil de 1988.

Sabe-se que o funcionalismo não é a teoria majoritariamente adotada no Brasil, mas também é sabido que teorias nunca são aplicadas de forma estanque, ou seja, uma não elimina a outra, pelo contrário, elas dividem os espaços e coexistem no efervescente ambiente doutrinário.

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O Apenamento do Estado Inerte, segundo a Teoria Funcional do Delito

Assim, a teoria funcional do delito servirá de arrimo para ensejar mais um mecanismo de participação social, no sentido de compelir o Estado a avançar rumo à concretização dos anseios programáticos constitucionais, voltados para a efetivação de uma política criminal brasileira material.

A POLÍTICA CRIMINAL BRASILEIRA

O movimento funcionalista, iniciado na década de 1970, visava à transição do excessivo tecnicismo dogmático penal para a implementação da política criminal, com fi ns pacifi cadores da sociedade, baseada na teoria do consenso de HABERMAS1 e na teoria sistêmica de LUHMANN2.

Por essas teorias, a política criminal deveria ser estipulada de maneira ampla e abrangente, de modo a envolver a sociedade e o Estado, fomentando a inclusão e o comprometimento dos atores sociais com o desenvolvimento social.

Assim, afi rma JACKOBS3, “quem quer atuar de modo a não colocar em perigo outras pessoas, somente pode comportar-se não perigosamente, se souber quais são os modos de comportamento considerados arriscados. Não é possível respeitar a norma sem o conhecimento de como o mundo está regulado...”.

E como dar o conhecimento de como o mundo está regulado, segundo JACKOBS, aos membros sociais, para que não delinquam?

Isso, sem dúvidas, é dever do Estado, constitucionalmente vinculado a promover a educação, dentre outras áreas sociais de atuação obrigatória.

A Constituição da República de 1988, ao tratar dos temas sociais, encarrega o Estado brasileiro de agir sobre a saúde, a previdência social, a assistência social, a educação, a cultura, o desporto, a família e o trabalho, no sentido pô-los à disposição da sociedade da melhor e mais ampla forma possível.

Todos esses temas, que são apontados pela Constituição como de responsabilidade do Estado, são os contidos na idéia de política criminal brasileira, a qual, segundo SANTOS4, “constitui o programa ofi cial de controle social do crime e da criminalidade”.

Por essas constatações, e de maneira genérica, pode-se afi rmar que o germe da política criminal brasileira está disposto objetivamente pelos princípios e regras constitucionais,

1 Cf. GOMES, Luiz Roberto. O consenso na teoria do agir comunicativo de Habermas e suas implicações para a educação. Campinas, 2005. 159 f. Tese (Doutorado em Educação) – Setor de Filosofi a, História e Educação, Unicamp. Disponível em: <http://cutter.unicamp.br/document> . Acesso em: 29 abr. 2011. 2 WIKIPÉDIA. Niklas Luhmann. Disponível em: < http://pt.wikipedia.org/wiki/Niklas_Luhmann>. Acesso em: 29 abr. 2011.3 JACKOBS, Günther. DERECHO PENAL. PARTE GENERAL. 2. ed. Madri: Marcial, 1997. 5SANTOS, Juarez Cirino dos. DIREITO PENAL. PARTE GERAL. 3. ed. rev. e ampl. Curitiba: ICPC;Lumen Juris, 2008. 4 SANTOS, Juarez Cirino dos. DIREITO PENAL. PARTE GERAL. 3. ed. rev. e ampl. Curitiba: ICPC;Lumen Juris, 2008.

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plasmados formalmente nos temas sociais do Título II, Capítulo II – Dos Direitos Sociais, e do Título VIII – Da Ordem Social, da Carta Magna de 1988.

Dessa forma, não se podendo afi rmar pela inexistência da política criminal formal brasileira, necessário é que se avance para a sua efetivação, como política criminal material, lançando-se mão da teoria funcional do delito, no sentido de se efetivar os mandamentos constitucionais referentes à esfera social.

BREVE ABORDAGEM SOBRE A TEORIA FUNCIONAL DO DELITO

Nascida dos estudos de ROXIN5, em 1970, ocasionou uma revolução na ciência do direito penal, sustentando a ideia de reconstrução da teoria do delito em bases de política criminal.

Segundo SILVA SÁNCHES6, a teoria funcional do delito “não é mais que o produto da acentuação dos aspectos teleológicos valorativos já presentes na concepção dominante, não constituindo, assim, algo absolutamente novo, e que como tal ameace destruir toda a dogmática tradicional”.

Essa teoria assevera que o cometimento de uma infração penal consistiria em uma quebra do funcionamento do complexo social, justifi cando a repressão criminal como forma de comunicar à sociedade, e ao agente, que foi desobedecido um comando necessário para o desempenho da função sistêmica do Estado.

A teoria funcional do delito é, em poucas palavras, um sistema de informação social sobre “expectativas de comportamentos generalizados”7, frente ao que considera como justo ou injusto.

Tais comportamentos, em última análise, quando contrários à norma, são punidos no interesse de se recompor o dispositivo normativo maculado8.

Ao Estado fl agrado inerte em promover as políticas públicas que lhe cabe e, como tal, fomentador da violência social, a teoria funcionalista imputaria como transgressor da norma maior amalgamada na Constituição Federal, norma essa que deve ser recomposta ao seu status original, valendo-se da punição estatal para esse fi m.

5 ROXIN, Claus, Política Criminal e Sistema Jurídico-Penal. Tradução de Luís Greco. Renovar: 2002. 7 SILVA SÁNCHEZ, Jesús. María. Aproximación al Derecho Penal contemporáneo. Barcelona: ____, 1992. 7 Cf. VIDAL, Hélvio Simões. Funcionalismo e Complexidade Social. In: DE JURE – Revista Jurídica do Ministério Público de Minas Gerais. Disponível em: <http://aplicacao.mp.mg.gov.br/xmlui/bitstream/handle/123456789/103/Funcionalismo%20e%20com plexidade_Vidal.pdf?sequence=1>. Acesso em: 29 abr. 2011. 9 Idem.

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O Apenamento do Estado Inerte, segundo a Teoria Funcional do Delito

TEORIA FUNCIONAL DO DELITO APLICADA AO O ESTADO INERTE: A “PENA DE MÃO-DUPLA”

A inércia estatal, frente aos mandamentos constitucionais, representa um dos maiores fatores de incremento da criminalidade brasileira.

Inobstante a isso, o Estado continua a aplicar a política penal da punição pura e simples, ante a infração de algum dever funcional por algum indivíduo incauto.

Mas, e quando é o Estado que deixa a desejar no cumprimento de seu dever funcional, dando azo ao descumprimento das normas jurídicas? Ou seja, quando é o Estado que deixa de providenciar os meios necessários e formalmente estipulados pela Constituição, para a formação de indivíduos conscientes dos comportamentos considerados arriscados, bem como nada faz na tentativa de evitar e prevenir tais ações delituosas?

Nesse caso, o Estado inerte, como um dos atores sociais, também não deveria ser apenado?

É isto que se defende.

Entretanto, na prática, o que se vê é um Estado distante da massa social, entendida como todos aqueles excluídos do círculo de consumo – os cidadãos de baixa renda –, e, contrario sensu, defensor da minoria detentora da riqueza.

Agindo assim, o ente estatal efetua verdadeira seleção social, construindo uma sociedade elitista, pois, à medida que produz normas mais brandas e protetivas da conduta delitiva dos atores escolhidos, aparta os débeis, lançando olhar indiferente aos infratores localizados na base econômica do sistema, pinçando-os com o microscópio da lei e, fi nalmente, punindo-os com maior severidade.

Nessa tarefa, observa-se um Estado extremamente efi ciente ao que se propõe, no sentido de preservar o status quo vigente e eternizar a estrutura atual de poder político e econômico, através, sobretudo, da manipulação do Direito Penal e da construção da política criminal tal qual se apresenta.

Essa prática estatal promove tão-somente a aniquilação do sujeito apenado e, corriqueiramente, o incentivo a que continue transgredindo, por não oferecer os meios necessários para que ele alce a condição de se manter com dignidade no seio social, através da educação, do emprego, dos valores morais, apenas para citar alguns.

Por seu turno, o aparelho repressivo estatal recrudesce pelo aumento da criminalidade, ao mesmo tempo em que incentiva seu crescimento, gerando, como se vê, um ciclo vicioso em expansão, que se retroalimenta por seus próprios mecanismos.

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SABADELL9 assevera que “as políticas de segurança constituem uma política simbólica que tenta legitimar a repressão por parte do Estado, explorando a ‘insaciável necessidade de segurança’ propalada pelos políticos e pela mídia”.

Para a implantação da política criminal brasileira, é necessário que se deem passos fi rmes em direção à concretização da vontade constitucional. Porém, os instrumentos existentes para impelir o Estado a esse fi m têm se mostrado inefi cazes, pois são manipulados por aqueles a quem benefi ciam, através dos discursos políticos e dos meios de comunicação.

Como exemplo disso, a própria mídia, sitiada pela dominação elitista, ao explorar casos de exacerbado desvalor social – como o da chacina ocorrida na Escola Municipal Tasso da Silveira, em Realengo/RJ – volta-se totalmente para o sensacionalismo da tragédia, deixando passar, propositalmente, a oportunidade de promover com afi nco o anseio social por segurança.

Assim, o que se tem é um Estado que só pune com severidade os cidadãos economicamente hipossufi cientes, cerrando os olhos aos delitos de colarinho branco, não promovendo os valores da justiça social10, não reduzindo as desigualdades sociais11, e incentivando, como substrato desse processo, indivíduos potencialmente transgressores.

A proposta que se tem, frente à inação estatal, é que ao Estado desidioso sejam cominadas penas, na medida em que não cumprindo seu papel constitucional, torna-se propulsor das condutas tipifi cadas como crime.

Por esse raciocínio, no momento da fi xação da pena ao indivíduo delinquente, o Estado-Juiz estaria também apto a apenar o Estado-Administração, por não ter sido efi ciente em evitar o ilícito praticado pelo indivíduo in concreto, e/ou o Estado-Legislativo, por não ter sido capaz de prevenir tal prática – seria a pena aplicada em mão-dupla.

A imputação estatal, com base na teoria funcional, vislumbra solidarizar a responsabilidade entre agente infrator e Estado inefi ciente, concretamente, caso reste demonstrado que o não agir estatal contribuiu para o cometimento da infração pelo indivíduo fl agrado delinquindo.

O modelo atual não pune a inefi ciência estatal na efetivação e aplicação das normas sociais constitucionais, pelo contrário, da forma como está, o atual paradigma de Estado atende perfeitamente aos interesses da casta economicamente dominante, agraciando-a com as benesses da impunidade, em contraposição à mão de ferro com que atua nos demais casos.

10 SABADELL, Ana Lúcia. O Conceito Ampliado da Segurança Pública e as Mulheres no Debate Alemão. In LEAL, César Barros, PIEDADE Jr., Heitor (coord.). A VIOLÊNCIA MULTIFACETADA: estudos sobre a violência e a segurança públi-ca. Belo Horizonte:Del Rey, 2003, p. 29-39. 10 Art. 3°, I, da Constituição da República de 1988. 11 Art. 3°, III, in fi ne, da Constituição da República de 1988.

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O Apenamento do Estado Inerte, segundo a Teoria Funcional do Delito

O sistema contemporâneo confere ao Estado o ius puniendi sem exigir-lhe qualquer contraprestação face à irresponsabilidade pela quebra do funcionamento social.

Pela abordagem funcionalista, o que se propõe é a punição do Estado desidioso na proporção da punição dos indivíduos, no caso concretamente analisado.

Essa punição consistiria em imputar ao Estado (esfera administrativa e legislativa), em virtude de seu não agir, obrigações de cumprir o seu dever de efetivar as normas constitucionais de cunho programático-social, para cada punição cominada ao indivíduo infrator, funcionando como mola propulsora contra a conhecida “falta de vontade política”.

Com isso, os projetos sociais tenderiam a sair do papel para tomar forma na vida real, a política criminal, em todas as frentes sociais de atuação, começaria a ser posta em prática.

As punições estatais consistiriam em verdadeiras obrigações de fazer, em atuações de cunho social, que forçassem o Estado-Executivo e Estado-Legislativo a agirem na esfera do bem jurídico agredido pela conduta reprovável do indivíduo transgressor – seriam as penas-ações estatais.

O somatório fi nal das penas-ações infl igidas ao Estado-Executivo e ao Estado-Legislativo transgressores, certamente, constituiria um amplo programa de política criminal de fato, coordenado de maneira pontual, posto estar baseado nos fatos apurados, e de acordo com o que as infrações individuais comunicassem ao Estado-Judiciário.

Ressalte-se que as penas-ações deverão ser aferidas in concreto, dependendo do delito cometido pelo indivíduo, verifi cado o bem da vida lesionado, confrontando-se a infração com a atuação estatal positiva na esfera do tipo de injusto.

Dessa maneira, o fato do indivíduo que furta coisa alheia, desempregado por falta de investimento da Administração Pública, devidamente demonstrado, na ampliação do mercado de trabalho, ou o fato do sujeito empregado que rouba alimentos, motivado pelo salário-mínimo que recebe visivelmente não atender às despesas mínimas e necessárias para manter sua família, seria espeque para a aplicação da pena-ação, que obrigasse o Estado a pôr em prática políticas incentivadoras do mercado de trabalho ou a empregar os meios orçamentários necessários a se chegar a um salário-mínimo digno, que atenda aos ditames constitucionais.

Atuando concretamente, impulsionado por uma espécie de autofl agelo – pois não se há de esquecer que é o próprio Estado se punindo (por isso, pena de mão-dupla) –, ao pôr em prática o programa estabelecido pela pena-ação, o ente estatal tenderia a agir de acordo com as necessidades prementes da sociedade, combatendo, por fi m, e no longo prazo, o animus delinquendi dos indivíduos.

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Por outro lado, e em última instância, o somatório das penas-ações aplicadas daria a Administração Pública, certamente, uma visão gerencial ampla e dinâmica sobre as áreas sociais mais críticas e que, necessariamente, precisam de atuação priorizada, através de ações efetivas, com a fi nalidade de materializar a política criminal brasileira e aumentar a sensação de segurança social.

CONCLUSÕES

A possibilidade de o Estado cometer infrações e de ser passível a punições é assente em nosso modelo constitucional.

Essa premissa autoriza que se lance mão da teoria funcional do delito para a criação da pena de mão-dupla, ou seja, o Estado pune, mas também será punido à medida que seja constatado pelo Estado-Juiz que agiu com desídia, deixando de aplicar, de modo diligente, seus esforços para concretizar os preceitos constitucionais, no caso concreto averiguado.

Há que se ressaltar, ainda, que tal prática, adotada dessa forma, não fere a independência e a harmonia entre os poderes, sendo, inclusive, uma ampliação do sistema de check and balances defendido pelo ordenamento jurídico brasileiro, que abarca interferências as quais, no dizer de SILVA, “visam ao estabelecimento de um sistema de freios e contrapesos, à busca do equilíbrio necessário à realização do bem da coletividade e indispensável para evitar o livre arbítrio e o desmando de um em detrimento do outro e especialmente dos governados.”12

Os resultados desejados pela punição estatal são as ações que visem a efetivar os preceitos constitucionais que buscam realizar os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, amalgamados pelo art. 3° e incisos, da Constituição da República de 1988.

Por fi m, assevera-se que o presente trabalho não busca senão uma proposta de refl exão sobre a possibilidade de o Estado inerte também ser apenado, no sentido de se compeli-lo a pôr em prática políticas efetivas que coíbam e previnam a criminalidade de maneira democrática e que levem a cabo os objetivos da Carta Política, evidente é que, para tal, haverá que se estruturar um modelo penal que tipifi que as condutas estatais que confi gurariam inércia e se demandar uma série de adequações que dariam motivo a outro trabalho.

Ademais, da maneira como está posto, o sistema penal atende plenamente aos interesses daqueles que sobre ele constroem seus patrimônios e perpetuam seu poder político e econômico. Essa variável torna a proposta aqui exposta uma tarefa hercúlea, quicá utópica, para tempos de maturidade moral ainda não gozados em solo pátrio.

Contudo, o desafi o está lançado.

12 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional. 12. ed., rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 1996. p. 111.

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