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Director: José Paulo Serralheiro http://www.apagina.pt/ [email protected] ano XIII | nº 131 | FEVEREIRO | 2004 · Mensal | Continente e ilhas 3 Euros [IVA incluído] Escola reprodutora de desigualdades Angelina Carvalho, professora de sociologia da Educação na Esco- la Superior de Educação do Porto, aborda, em entrevista a a Página, a dimensão socializadora da escola, desmitificando alguns "discursos", de alguns fazedores de opinião, sobre a escola que, ao contrário do que muitos pensam não pode dar aquilo que a sociedade lhe pede e que a própria sociedade não consegue assegurar. Diferenças atrapalham as escolas Enquanto em França a utilização, ou não, de si- nais de marcas culturais, como o véu islâmico, nos espaços públicos franceses, é polémica a abalar a forte tradição republicana francesa (ler página 7) por cá, descobre-se que a “escola ain- da é adversa à cultura cigana”, como reconhece Sérgio Aires, coordenador do Grupo de Trabalho Inter-institucional sobre a Etnia Cigana, e como sentem os próprios ciganos para quem a escola é vista como um espaço de “domesticação” on- de, por desconhecimento e racismo, as crianças ciganas são mal vistas e mal tratadas. Uma en- trevista para ler no face a face. Afinal toda a gente anda nas explicações Ricardo Vieira, da ESE de Leiria, descobre-nos um mundo onde os estudantes vivem em váruias dimensõers paralelas, onde se vive em duas es- colas paralelas: uma onde aprende, o centro de explicações. e outra onde se finge que aprende. É o universo oculto das explicações. Necessá- rias até para os bons alunos, sob pena de terem notas pouco diferentes das dos maus alunos. Fronteiras da Natureza “O Ambiente tem o sentido de tu- do aquilo que está lá fora, que su- postamente será infinito, imutável e inesgotável. Mas será assim connosco, humanidade, neste planeta redondo e finito? No quadro do sistema político vigente, na verdade, a palavra Ambiente passou a ser utilizada para delimitar uma frontei- ra entre o que é privado e o que é do domínio pú- blico ou de interesse social. É uma fronteira que se move”. Palavras de Rui Namorado Rosa para ler em Da Ciência e da Vida. 11 38 17 47 Sinais de desertificação A lenta agonia das escolas rurais Reportagem de “a Página” por caminhos perdidos na Serra do Marão e Dossier nas páginas 35, 36 e 37

Nº 131, Fevereiro 2004

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Jornal a Página da Educação, ano 13, nº 131, Fevereiro 2004

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Page 1: Nº 131, Fevereiro 2004

Director: José Paulo Serralheirohttp://www.apagina.pt/[email protected]

ano XIII | nº 131 | FEVEREIRO | 2004 · Mensal | Continente e ilhas 3 Euros [IVA incluído]

Escola reprodutora de desigualdades

Angelina Carvalho, professora desociologia da Educação na Esco-

la Superior de Educação do Porto, aborda, ementrevista a a Página, a dimensão socializadorada escola, desmitificando alguns "discursos", dealguns fazedores de opinião, sobre a escola que,ao contrário do que muitos pensam não pode daraquilo que a sociedade lhe pede e que a própriasociedade não consegue assegurar.

Diferençasatrapalhamas escolas

Enquanto em França a utilização, ou não, de si-nais de marcas culturais, como o véu islâmico,nos espaços públicos franceses, é polémica aabalar a forte tradição republicana francesa (lerpágina 7) por cá, descobre-se que a “escola ain-da é adversa à cultura cigana”, como reconheceSérgio Aires, coordenador do Grupo de TrabalhoInter-institucional sobre a Etnia Cigana, e comosentem os próprios ciganos para quem a escolaé vista como um espaço de “domesticação” on-de, por desconhecimento e racismo, as criançasciganas são mal vistas e mal tratadas. Uma en-trevista para ler no face a face.

Afinal toda a gente anda nas explicações

Ricardo Vieira, da ESE de Leiria, descobre-nosum mundo onde os estudantes vivem em váruiasdimensõers paralelas, onde se vive em duas es-colas paralelas: uma onde aprende, o centro deexplicações. e outra onde se finge que aprende.É o universo oculto das explicações. Necessá-rias até para os bons alunos, sob pena de teremnotas pouco diferentes das dos maus alunos.

Fronteirasda Natureza

“O Ambiente tem o sentido de tu-do aquilo que está lá fora, que su-

postamente será infinito, imutável e inesgotável.Mas será assim connosco, humanidade, nesteplaneta redondo e finito? No quadro do sistemapolítico vigente, na verdade, a palavra Ambientepassou a ser utilizada para delimitar uma frontei-ra entre o que é privado e o que é do domínio pú-blico ou de interesse social. É uma fronteira quese move”. Palavras de Rui Namorado Rosa paraler em Da Ciência e da Vida.

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Sinais de desertificaçãoA lenta agonia das escolas rurais

Reportagem de “a Página” por caminhos perdidos na Serra do Marão e Dossier nas páginas 35, 36 e 37

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um conto

Vindo do escuroNesta nossa aldeia remotaestamos sob a garra da terrí-vel ignorância e superstição.E eu, que queria sair e liber-tar-me, vejo-me impedidopor bandos de morcegos queesvoaçam como folhas so-pradas pelo vento de Outonoe batem, as asas, contra asvidraças da minha janela. Te-mo que algum deles se metano meu cabelo e eu nuncamais consiga arrancá-lo delá. Eis porque estou aqui sen-tado, camaradas, reprimindoo desejo de sair à rua, e por-que vos faço este relatório.

Pois bem, no que diz res-peito à compra de cereais,começou a decair desde queo diabo apareceu no moinhoe tirou o chapéu com um ges-to elegante. O chapéu era detrês cores: vermelho, azul ebranco, e tinha bordadas aspalavras Tour de La Paix. Oscamponeses têm evitado omoinho, e o moleiro- e a mu-lher, de tão preocupados,meteram-se no álcool, atéque, um dia, ele a regou com

vodka e lhe pegou fogo. De-pois, partiu para estudar Mar-xismo na Universidade doPovo a fim de, como ele di-zia, ter alguma coisa paraopor àqueles elementos irra-cionais.

A moleira morreu nas cha-mas, e assim temos mais umfantasma.

Devo dizer-vos que à noitehá algo que uiva por aqui e ui-va tão terrivelmente que onosso coração quase pára debater. Há quem diga tratar-sedo espírito do pobre Karas,que nunca teve um chavo,amaldiçoando os lavradoresricos; outros dizem que é oendinheirado Krywon, lamen-tando-se depois da morte dasexpropriações forçadas. Umaautêntica guerra de classes.

A minha cabana ergue-seisolada na orla da floresta. Anoite é negra, a floresta é ne-gra e os meus pensamentossão como corvos. Um dia omeu amigo Jusienga estavasentado num tronco de umaárvore perto da floresta, len-

do Os Horizontes da Tecno-logia, quando alguma coisa oatingiu por trás, de tal modoque, durante três dias, andoucom um ar vago e perdido.

Precisamos do vosso con-selho, camaradas, pois esta-mos aqui isolados, a quiló-metros de qualquer lugar, ro-deados apenas por distânciae tumbas.

Um habitante da florestadisse-me que, com lua cheia,nas clareiras, cabeças semcorpo rolam à toa, perse-guem-se, batem com as tes-tas umas nas outras como sequisessem alguma coisa, maschegado o alvorecer desapa-recem, e apenas ficam as ár-vores a murmurar, não muitoalto, pois têm medo. Céus!Nada me fará ir lá fora, nem amaior das necessidades.

E com o resto das coisasé o mesmo. Vós falais acer-ca da Europa, camaradas,mas aqui... Ainda mal deitá-mos o leite nas canecas, jáanões corcundas lhe cuspi-ram dentro.

Certa noite, a senhoraGlus acordou alagada emsuor. Olhou para a sua col-cha, e que viu? O pequenocrédito que nos tinha sidoconcedido antes das elei-ções (para a construção daponte). E morreu de repente,sem Extrema-Unção, com odito crédito mesmo ali sobrea colcha, todo verde e sufo-cado de riso. A velha desatoua gritar, mas ninguém veio vero que se passava. Como po-de uma pessoa saber quemgrita e qual a sua posiçãoideológica?

E no local onde íamosconstruir a ponte, afogou-seum artista. Só tinha doisanos, mas já era um génio.Tivesse ele vivido e havia deter compreendido e descritotudo. Agora, porém, nadamais lhe resta fazer senãovoar de um lado para o outroe exibir-se.

Como não podia deixar deser, todos estes factos modi-ficaram a nossa psicologia.As pessoas acreditam em fei-

tiçaria e na superstição. Ain-da ontem, encontraram umesque-leto atrás do celeiro deMocza. O padre diz que é umesqueleto político. Aqui acre-dita-se em fantasmas e coi-sas do outro mundo, e atémesmo em bruxas. É certoque temos uma mulher que ti-ra o leite às vacas e lhes pro-voca febres, mas nós preten-demos que ela se inscreva noPartido, privando assim osinimigos do progresso de,pelo menos, um argumento.

Como batem as asas des-tes malditos morcegos! Cris-to! como voam e chiam «i, i,i" e voltam a chiar «i, i, i". Nãohá nada como aquelas casasgrandes que têm tudo, evi-tan-do-nos assim ir lá fora fa-zer atrás das árvores.

Mas ainda há coisas pio-res do que isto. Enquanto es-crevia, abriu-se a porta e apa-receu o focinho de um porco.Está a olhar para mim muitoestranhamente, especado...

Não vos tinha eu dito queaqui as coisas são diferentes?

UM CONTOMrozeck;O elefante

© isto é

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editorial

José Paulo Serralheiro

Larguem os touros no Conselho de Ministros

Diz a piada que um pessimista é aquele que, perante uma situação degradada, diz: «isto não pode ficar pior». Um optimista é aquele que, perante a mesma situação, afirma: «isto ainda pode ficar pior».

É verdade que em política opoço nunca tem fundo. Isto é,numa perspectiva optimista acoisa pode ficar sempre pior.É assim que, perante a actualsituação do país, estou opti-mista.

Acorda-se pela manhã eescutam-se logo noticias ani-madoras. Hoje, por exemplo,fiquei a saber que — à seme-lhança do que fazem os pilha-galinhas do nosso comércioe industria — o Ministério daJustiça cobrou descontosaos trabalhadores e não osentregou à Segurança Social.Aqui temos um belo exemplode cumprimento da lei e decombate à fraude fiscal!

Olhando a vida políticaportuguesa com o olhar opti-mista da piada, eu não tenhodúvidas que os senhores Du-rão e Portas vão continuar adisparatar até que lhe tiremou se lhes acabem as pilhas.A tentação de muitos políti-cos, que governam em maio-ria absoluta, é a de se porema cuspir da varanda sobre ospopulares que lhes passampor baixo. Parece que isso osanima e descontrai. É o queeste governo tem feito de for-ma desastrada e arrogante.

João Benard da Costalembrava recentemente quese dizia, na primeira metadedo século XIX, na corte donosso obeso D. João VI que orei era bastante desbragado.“Comia pernas de frango quetirava dos bolsos, enquantometia a mão por baixo dassaias das raparigas” delician-do-se no apalpão às coxas defrango e das moças. Em Por-tugal vivemos um novo tempode desbragamento. Baixam-se os impostos e fazem-se to-das as vontades aos que játêm muito — dão-se-lhe co-xas de frango — enquanto seexplora, se amesquinha e sehumilha o povo. O nosso Go-verno banqueteia os podero-sos à custa da exploração dosmais fracos. É um governo depeito ancho, perante os maisfracos, e de cauda caída pe-rante os poderosos.

Este Governo do PSD/PPvai ficar conhecido como o go-verno dos ziguezagues, dasparagens e dos cortes. Extin-guir, fechar, parar e cortar, sãoas palavras mais ouvidas noscorredores governamentais.Tem um primeiro-ministro pro-fissional da vacuidade e de bo-ca cheia de futuro. Ignorandoque o poço da política não tem

fundo, vão dizendo que já lábatemos e anunciando a reto-ma no futuro. Virá tudo no fu-turo. Caminhamos para a re-toma, para a felicidade e parao desenvolvimento comoquem caminha para a morte. Écoisa certa. Um dia virá. Sónão se sabe quando.

Os nossos dois queridoslideres estão bem acompa-nhados no governo. Umexemplo. Com o seu ar será-fico, o Ministro do Trabalhovai levando avante a sua cru-zada. Por ele, o Ministério doTrabalho da Solidariedade eda Segurança Social, perdiaa Segurança Social e a Soli-dariedade e ficava só do tra-balho escravo. Com persis-tência vai destruindo o frágilmodelo social que se vinha,apesar de tudo, construindo.Fez um cocktail onde mistu-

rou os malandros, os pobres,os excluídos, os desempre-gados, os reformados, os al-drabões e os doentes. E vaitomando medidas tendo porobjectivo combater este gru-po imaginário de madraços.Tal como o resto do seu go-verno, está obcecado pelapequena fraude dos pobres eignora a grande fraude fiscaldos ricos e poderosos.

Como se conta noutra ane-dota quando eles chegaramao governo o País estava a umpasso do abismo. Agora jádemos um passo em frente.Fomos e continuamos a serempurrados para o desgover-no. Aos diversos níveis da hie-rarquia do poder instituído,somos governados por unsrapazolas desbocados eaparvalhados e por umas mu-lheres sem ponta por onde se

lhes pegue. Dizem tudo fazerem nome do déficite e do mer-cado. A verdade é que esta-mos a caminho de ficar semdireitos sociais, sem reforma,sem emprego, sem Estado,sem crescimento económico,nem desenvolvimento, nemconsolidação das tais maldi-tas finanças públicas.

Nesta República SARL(Sociedade Anónima de Res-ponsabilidade Limitada) Jor-ge Sampaio pela manhã ape-la à solidariedade social, àcoesão, à protecção dosmais desvalidos e pela tardepromulga as leis que hão-detornar os fracos ainda maisfracos. Veja-se o que aconte-ceu, por exemplo, com o có-digo de trabalho, a lei da se-gurança social, a das refor-mas ou, mais recentemente,a do subsídio de doença.

Oficialmente o governo éde direita e não de extrema-direita, mas é a extrema di-reita económica, social, cul-tural e política quem está, depeito feito, no governo.

Face ao desemprego quese propaga mais depressa doque a gripe dos frangos, o go-verno cruza os braços, fechaos olhos e intimamente rego-zija-se pois acredita que aonda de desemprego não émais do que o mercado a li-vrar-se dos fracos e a fortale-cer o tecido empresarial.

Este é o País da UE ondeas relações de trabalho sãomais frágeis e precárias, on-de o trabalho é mais mal pa-go, e, ao mesmo tempo, éaquele onde o patronato maisladra contra a rigidez das re-lações de trabalho e contraos salários altos. Agora, a es-tes velhos latidos privadosjuntam-se os do governocontra os salários e os direi-tos dos trabalhadores da ad-ministração pública.

As crenças primárias eegoístas dos (neo)liberais e(neo)conservadores leva-os auma persistente pregação.Pregam-nos a excelência dodeus mercado e a necessida-de de vender o Estado a reta-lho. Se pudessem, e fosse dointeresse dos poderosos, elesaté privatisavam os cometas.E mandar-nos-iam para lá tra-balhar com um contrato pre-cário, o salário mínimo e umbilhete de ida sem regresso.

D. João VI deliciava-secom as coxas das moças edos frangos, já o filho, o ab-solutista D. Miguel, organiza-va largadas de touros contraos ministros reunidos emconselho. Não é má ideia!Olhem uma largada agora!Imaginem os ministros emdebandada e a ministra dasfinanças, de tesoura em riste,e a gritar: — «eu corto, eu cor-to, eu corto». As orelhas dosbichos? As do povo?

Vivemos de profecias.Anunciam a ruína da Repú-blica já amanhã ou a sua sal-vação no dia seguinte. Nomeio do ribombar dos insul-tos e das ameaças, dos cor-tes de salário e de direitos aquem trabalha, também nosmandam vencer o desânimo,o pessimismo, a tristeza, adepressão. Coisa fácil. Bastamudar de governo. Não é?

Como diz a piada, eu souum optimista. Isto ainda vai fi-car pior.

© isto é

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nário – nada disto contribuirá para umdesporto novo. Há, nas minhas pala-vras, a acidez corrosiva do mero ran-cor? De modo nenhum, até porquenão odeio ninguém. Mas não deixo deacrescentar que, louvaminhados e tu-ribulados por umaafogueada subser-viência subfascista,muitos dos actuaispromotores do AnoEuropeu de Educa-ção pelo Desportonão estão em condi-ções psicológicas esociais para uma crítica sagaz dascausas primordiais que enodoam odesporto actual... a começar na com-petição desmesurada que despeja,no espaço desportivo, as cenas maislamentáveis! Às suas resoluções (quenão acredito possam aproveitar-se)acontecerá o mesmo que às resolu-

ções da ONU: sucedem-se umas àsoutras e poucas são aquelas queefectivamente se cumprem! Afinal, éa lei da força e não a força da lei queefectivamente se cumpre! Mas, dir-se-á, no desporto não há guerra! A

mão lenta, rendilho-sa, elegante de al-guns estudiosos dodesporto e os jorna-listas rendidos à ho-ra pandémica deuma só bandeira –não poderão escon-der nunca que o des-

porto que aí está, como afinal quasetudo o que aí está, se encontra ao ser-viço de um determinado tipo de so-ciedade e, por isso, inquinado poruma subtil atmosfera de imperialismotecnológico e financeiro! E onde háimperialismo há desigualdade – háguerra, inevitavelmente!

04a páginada educaçãofevereiro 2004

forum educação

Nenhum homem informado do nossotempo é contra a globalização – mascontra a globalização ao serviço dosmais fortes e poderosos, a qual sus-tenta e reproduz o trágico dualismoda sociedade actual, onde as elitesmais cultas são funcionários do Esta-do ou da alta finança e às massas alie-nadas pelas grandes centrais de ma-nipulação da opinião pública se dis-tribuem, como no tempo dos roma-nos, “panem et circenses” (pão ecirco). Em Portugal, por exemplo, umBenfica-Sporting, ou um Benfica-Por-to, em futebol, são, durante dias in-contáveis, o acontecimento mais im-portante de um país onde o desem-prego prolifera, onde os sistemas desaúde e de educação se encontramcondicionados e bloqueados pela as-neira falante da incapacidade estatal.É preciso dizê-lo, sem receios, a de-mocracia política, mesmo na Europa,mostra-se incapaz de institucionalizara democracia social. E, por isso, oproletariado, hoje, sabe ler e escrever,mas não sabe criticar, discernir, ajui-zar o mundo onde vive. A globaliza-ção neoliberal caminha a par com umatremenda ignorância colectiva.

É assim possível falar num Ano Eu-ropeu de Educação pelo Desporto,quando o próprio desporto (refiro-meao mais publicitado e propagandea-do) constitui uma afronta aos maiselementares princípios da ética e damoral? Um Desporto que aplaude osvencedores e esquece ou deprecia osvencidos potencia necessariamenteo egoismo, o individualismo, o narci-sismo. A separação, aplaudida pelatradição mais acrítica possível, entreo físico e o psíquico, com o esqueci-mento da dimensão sócio-política,não se produziu por acaso. Quantomais físico for o desporto, mais apo-lítico e acrítico ele será. É o reino dasbestas esplêndidas: são velozes,ágeis, fortes... mas não pensam! E as-sim os governos que a sociedade demercado controla não temem quemfaz desporto, mas... quem pensa! Os

milhões de euros que se gastam como espectáculo desportivo têm oaplauso dos governantes fartos desaber que ele conformiza e clorofor-miza multidões. Os meses de Junho(Euro-2004) e Julho (Jogos Olímpi-cos) vão propiciar-lhes dois meses deférias, em que ninguém vai descer àliça, lembrando os graves problemassociais que nos afligem. Não sou umpolemista, na vera acepção da pala-vra. Para o polemista todo o floreioexterno se damasquina de verrina,zombaria e troça. Por vezes, ele visachafurdar o adversário na lama damesquinhez, da verrina, da zombaria.Ora, eu o que pretendo é criticar, nosentido etimológico do termo, isto é,separar o trigo do joio, dizer o que, nomeu modesto pensar, é bom ou émau. Não acredito que o Ano Euro-peu de Educação pelo Desporto con-siga ultrapassar o carácter biomédi-co e técnico, que é apanágio de umdesporto neutral, bem comportado, àmaneira do “ancien régime”. O que háde livre e libertador, na prática des-portiva, não emerge no abandono ena recusa do político. No entanto, na-da melhor para minimizar a esfera po-lítica do que invocar que são mera-mente técnicos e médicos os proble-mas desportivos. Ou, no meio de umacascata de asneiras, jurar, a pés jun-tos, que a prática desportiva libertaos atletas do consumo da droga,quando o doping campeia, como sesabe, pelo desporto. Na sociedadede mercado, onde tudo se transfor-ma em mercadoria, tudo se compra ese vende, até no desporto.

Não passa de um puro sofisma ede uma falsidade proclamar que o AnoEuropeu de Educação pelo Desportovai transformar, etica e moralmente, aprática desportiva. Cá estamos paraver! Uma prosa embaladora; meia dú-zia de slogans e de palavras-de-or-dem; uma ou outra iniciativa pública,com criancinhas muito bem vestidas;pouca imaginação e uma assustado-ra ausência de equipamento doutri-

EDUCAÇÃO desportiva

Manuel SérgioUniversidade

Técnica de Lisboa

Ano europeu da Educação pelo DesportoJoseph Stiglitz, no seu livro Globalização – A Grande Desilusão (Terramar, Lisboa, 2002), afirma lucidamente: ”Hoje, a globalização não funciona.Não aproveita aos pobres do mundo. Não resolve os problemas ambientais. Não contribui para a estabilidade da economia mundial”. Com efeito,

“as regras do jogo económico mundial são fixadas em função dos interesses dos países industriais avançados e não dos que estão em vias de desenvolvimento”. Este Prémio Nobel da Economia sabe, sem margem para dúvidas, que a falsa globalização neoliberal esconde que há uma

globalização alternativa, ancorada no respeito pelo homem todo e por todos os homens considerados iguais no areópago da ONU.

© isto é

06.01Professores querem `cunhas' investigadas

O Sindicato dos Professores da Região

Centro pediu (...) à Inspecção-Geral da

Educação e à comissão parlamentar de

Educação que todas as situações de ale-

gadas `cunhas' na colocação de docentes

por si denunciadas sejam investigadas.

Nos últimos meses o SPRC denunciou 13

casos de suspeitas de favorecimentos na

colocação de professores em Viseu, Avei-

ro, Coimbra, Covilhã, Castelo Branco, San-

tarém, Portalegre e Bragança, mas apenas

dois deles foram alvo de uma investigação

pela Inspecção-Geral da Educação, solici-

tada pelo Ministério da Educação.

06.01Associação de Estudantesde Évora decreta falência

A Associação de Estudantes da Universi-

dade de Évora anunciou (...) o encerra-

mento de todas as suas actividades e ser-

viços por falta de verbas. A academia res-

ponsabiliza o Instituto Português da Ju-

ventude pela «situação de falência», por ter

indeferido o subsídio anual ordinário rela-

tivo a 2003, no valor de 65 mil euros.

08.01Menos exames e aulas com90 minutos no secundário

A revisão curricular do ensino secundário

foi (...) aprovada em Conselho de Minis-

tros. Haverá menos exames, uma carga

horária mais leve - composta por aulas de

90 minutos - e um currículo flexível que im-

põe uma formação geral a todos os cur-

sos, deixando a cada aluno a hipótese de

escolher as restantes disciplinas.

10.01Estagiários ficam de fora

O novo regime de colocação de professo-

res vai afastar durante um ano os docen-

tes estagiários. Ou seja: quem está a fazer

estágio durante o ano lectivo corrente não

vai poder participar no concurso para

2004/2005. Os professores que estão nes-

ta situação não se conformam e dizem que

muitos docentes que fizeram estágio em

2002/2003 conseguiram colocação neste

ano lectivo.

dia-a-dia

NÃO ACREDITO que o Ano Europeu de Educação pelo

Desporto consiga ultrapassar ocarácter biomédico e técnico,

que é apanágio de um desportoneutral, bem comportado,

à maneira do “ancien régime”

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a páginada educaçãofevereiro 2004

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forum educação

Voar em vê

Algures, em 11 de Setembro de 2007,

Querida Alice,Neste mesmo dia de há seis anos, pássaros metáli-cos derrubaram torres altaneiras e semearam a mor-te nas terras do norte. Na mesma terra de onde par-tiram, num outro 11 de Setembro, mensageiros damorte que semearam sofrimento no sopé dos An-des, nas terras do sul. É verdade, querida Alice. Nosdias que sucederam ao teu nascimento, o reino dospássaros vivia ensombrado pela compreensão deuma evidência: as sociedades que dispunham dasmelhores escolas eram as mesmas sociedades queproduziam exércitos ocupantes e seres egoístasque, em nome do seu conforto, envenenavam oscéus de todos os pássaros com gases letais. Nessetempo, também através da escola se perpetuavaminsanos ciclos de violência e morte.

Muito antes, no primeiro ano do vigésimo séculoda era dos homens (no tempo de um discreto anun-ciar da era dos pássaros), uma andorinha enunciouuma premonição jamais consumada. Essa andori-nha acreditava que o vigésimo século do tempo doshomens seria chamado “o século da criança”. Acre-ditava que a escola faria dos pássaros e dos homensseres mais sábios e mais felizes. Porém, durante to-do esse século, a Escola apenas reproduziria velhosrituais sem sentido. A escola dos homens não pro-duzia humanidade. Produzia bonsais humanos. E,no princípio do século em que nasceste, a escola jánem sequer ensinava (como pode uma escola ensi-nar, se nunca acariciou ninguém?).

Mas foi também por essa altura que uma outragaivota (de nome Jean) explicou o que a ciência doshomens havia aprendido com as suas companhei-ras vindas das terras do sul. Sendo as gaivotas danossa história pássaros “aprendizes até ao últimobater do coração” ficaram presas à descrição da

maravilhosa criatura. E a andorinha Jean contou àsgaivotas segredos que ajudaram a melhorar a es-cola das aves.

Quando a proximidade do Verão impelia as an-dorinhas a partir, elas voavam sempre em bando,desenhando no céu a forma de um vê. Quando umaandorinha batia asas, produzia uma corrente de arascendente que ajudava a progressão das compa-nheiras que voavam atrás de si. Se, por efeito de umgolpe de vento ou tentação de lonjura, alguma an-

dorinha se afastava do bando, logo regressava aoseu amplexo protector. E, quando a fadiga assalta-va a andorinha que ocupava o vértice da cunha voa-dora, logo outra andorinha corria a ocupar o seu lu-gar. Poder-se-ia pensar que a andorinha que voavaà frente de todas as outras cortava o vento sem aju-da de ninguém… Puro engano: se perante os seusolhos se estendia o sem fim do espaço, atrás de si,todo um bando a impelia para a frente e lhe confe-ria a escolha do rumo. Aliás, enquanto durou, a ciên-cia dos homens apurou que as andorinhas que voa-vam no aconchego do bando emitiam sons que ani-mavam as que, por contingência, ocupassem os lu-gares da frente.

Estas e muitas mais lições aprenderam as gai-votas – sempre prontas a aprender com outras aves–, mas a maior das lições foi dada por uma andori-nha que, apercebendo-se do drama vivido pela es-cola das aves, por ali se deixou ficar, enquanto du-rou o cerco imposto pelos abutres, negrelas e pa-pagaios. É certo e sabido que nenhuma andorinha,em seu perfeito juízo, se deixaria ficar, trocando o

certo pelo incerto, arriscando a vida. Mas esta acei-tara plantar ninhos noutros beirais. Como sempreacontecia perante a simplicidade e beleza dos pás-saros – que me traziam à memória a simplicidade ea beleza esquecidas por muitos homens – quedei-me num silêncio comovido perante o gesto da an-dorinha resiliente.

Pressinto, querida Alice, que te questionarás: co-mo pode essa andorinha arriscar expor-se aos ri-gores da invernia e ao peso das saudades do futu-ro? Sabemos que uma andorinha é criatura de há-bitos gregários, que não sobrevive à solidão e que,quando aprisionada, resiste secretamente em si-lêncios que falam de voos por dentro. Mas esta ma-nifestava uma alegria de existir maior que a sauda-de que sentia de África. É que a andorinha não es-tava sozinha, mas amparada. Eu explico…

No decurso das viagens, sempre que uma an-dorinha adoecia ou ficava ferida, logo as duas maispróximas abandonavam o bando, para a acompa-nhar e proteger, somente regressando ao aconche-go de um outro bando em migração, quando a an-dorinha que protegiam recuperasse a capacidadede voar, ou morresse. E eu bem vi, ao longo de umlongo Inverno, um ninho de lama a abarrotar do ca-lor de três pares de asas negras. Assim, as gaivo-tas receberam destas andorinhas que sonhavam oregresso da Primavera mais uma prova de que a so-lidariedade não era uma palavra vã.

Nesse distante mês de Outubro dos primeirosanos deste século, os primeiros frios de Outonoforam temperados com a chegada de pássaros detodas as cores e origens, que, seguindo o exem-plo das andorinhas solidárias, acorriam em auxí-lio da escola das aves. E já não era apenas umaescola que urgia perseverar, mas todas as esco-las onde, sob múltiplas formas esboçado, o futu-ro despontava.

do PRIMÁRIOJosé PachecoEscola da Ponte,

Vila das Aves

© isto é

A CIÊNCIA DOS HOMENS apurou que as andorinhasque voavam no aconchego do bando emitiam sons que animavam as que, por contingência,

ocupassem os lugares da frente.

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06a páginada educaçãofevereiro 2004

fórum educação

14.01Professores criticam

A Federação Nacional dos Professores

(Fenprof) criticou o anteprojecto de decre-

to-lei da reforma da educação especial do

Governo, considerando-o negativo por

"assentar num conceito limitador de ne-

ces-sidades educativas especiais", que

vai afectar milhares de alunos.

16.01Desemprego recorde entreos doutores

No final de Dezembro de 2003 havia mais

de 450 mil pessoas inscritas nos Centros

de Emprego, o que representa um aumen-

to de 19% em relação ao mesmo mês do

ano anterior. Particularmente grave é a si-

tuação que se regista ao nível dos licen-

ciados, com 39.785 pessoas titulares de

uma licenciatura à espera de trabalho. Foi

neste nível escolar que se registou o au-

mento mais acentuado, pois em Dezem-

bro de 2002 esse número era de 29.840, o

que representa uma subida de 33,3%.

20.01Desejo de Ascensão Social Prejudica Rendimento Estudantil

A vontade de suplantar um colega de tur-

ma ou a forte determinação em alcançar

um elevado patamar de classificação es-

colar são factores determinantes na ob-

tenção de sucesso académico. A conclu-

são é extraída de um estudo realizado na

Universidade do Porto.

20.01Portugal é o país com menoslicenciados em ciências

Portugal registava, em 2001, a pior marca

da União Europeia quanto à percentagem

de cientistas no total de novos licenciados,

revela um relatório do EUROSTAT ontem

divulgado em Bruxelas. Pior : a posição

portuguesa no "ranking" estabelecido pe-

lo documento contrasta com as posições

mais favoráveis ocupadas por alguns dos

países em vias de adesão à UE, ou que a

ela pretendem aderir a médio prazo.

dia-a-dia

Profesores duplicados, en versión metafórica

Podremos justificar en los contradictorios propósitos que suelen asociarse a las prácticas educativas, dentro y fuera de la escuela,

con dos tendencias bien definidas: de un lado, la que nos muestra suclara predisposición a imitar, perpetuar y legitimar el “orden” existente,

mostrándose insensible hacia las profundas desigualdades en las que se asienta; de otro, la que nos desvela el inexcusable papel de la

educación como un factor clave a la hora de innovar y cambiar las realidades sociales, abriendo el pensamiento y la acción

a un amplio abanico de valores y perspectivas.

En su último libro publicado en espa-ñol, el escritor y pedagogo francésDaniel Pennac, narra las peripecias deun dictador agorafóbico (temeroso delas multitudes y las concentracionespúblicas) que decide contratar a undoble que le sustituya antes de aban-donar su país para instalarse en Eu-ropa, donde dejará numerosas huel-las, aunque muy pocas dignas de ha-cer memoria. A este doble, al que sealude como un “sosias”, lo sustituiráotro, al que prolongan cinco o seis do-bles más, que el autor va retratandocon mayor o menor detalle desde suhamaca, incorporado al relato comoun protagonista más de la novela, cu-yo trasfondo - real e imaginario a untiempo - nos sitúa en Teresina, capi-tal del Estado brasileño de Piauí, alque describe como “demasiado po-bre para que sirva nunca de marco auna fábula sobre el poder”.

En este escenario, Pennac apela alhumor como una forma ética de cen-surar las miserias de un mundo opre-sivo y tenebroso, en el que irán emer-giendo episodios y vivencias quemuestran la permanente necesidadque sienten los personajes para ha-cerse con otros papeles, en otros es-pacios, bajo otros cielos..., movidospor la ambición y el atrevimiento quesubyace a sus intrigas y deseos. Asi-mismo, por la búsqueda –menos fá-cil– de un lugar en el que crezca la fe-licidad, la esperanza y la justicia.

Podemos asimilar el “territorio demetáforas” en el que nos sumergePennac a la escuela (y, por ampliación,al sistema educativo), y a su viejo afánpor reproducir vidas, sociedades yculturas, contando con la inestimablecolaboración de los profesores. Esposible que se trate de una compara-ción atrevida y hasta desafortunada,

cargada de subjetividades e inconsis-tencias, ya que nada o muy poco dellibro de Pennac la sugiere explícita-mente, más allá de las alusiones querealiza al aprendizaje de la escucha, alpeso de la memoria o a la voluntad detransfigurarse que anima a los “do-bles”, especialmente a aquel que emi-gra a Hollywood fascinado por lasimágenes cinematográficas de lasque son portadores algunos “convi-dados” de renombre, como RodolfoValentino o Charles Chaplin. A lo quepodría añadirse el hecho de que to-dos los “dobles” desempeñarán supapel a la perfección, manteniéndoseen un rol que obliga a los ciudadanosa que no se salgan del suyo.

Creo, no obstante, que hay razo-nes que permiten establecer ciertasanalogías entre el argumento al que seremite “el dictador y la hamaca” (Mon-dadori, 2003) y el universo de la edu-cación, con especial énfasis en el que-hacer docente y la ética. Y que, de unmodo u otro, podremos justificar enlos contradictorios propósitos quesuelen asociarse a las prácticas edu-cativas, dentro y fuera de la escuela,con dos tendencias bien definidas: deun lado, la que nos muestra su clarapredisposición a imitar, perpetuar y le-gitimar el “orden” existente, mostrán-dose insensible hacia las profundasdesigualdades en las que se asienta;de otro, la que nos desvela el inexcu-sable papel de la educación como unfactor clave a la hora de innovar ycambiar las realidades sociales,abriendo el pensamiento y la acción aun amplio abanico de valores y pers-pectivas. En este juego antagónico,por la complejidad y las responsabili-dades que encierra, cómo se posicio-nen los profesores, aquello que em-prendan y hagan, pero también lo que

ÉTICA e profissãoJosé Antonio

Caride GómezUniversidad de Santiago

de Compostela, Galiza

© isto é

dejen de hacer en función de un de-terminado juicio o criterio ético (y nosólo estrictamente profesional o téc-nico), son cuestiones esenciales.

Por estas y otras razones, acepta-mos que los profesores pueden o po-demos serlo de diversas maneras,aunque muchas de ellas consistan enpoco más que “duplicar” como lo sono han sido otros docentes, repitiendosus contenidos, metodologías, actitu-des, comportamientos, gestos, com-posturas, etc. a los que se toma comomodelos o patrones de referencia. Queesto pase explica la existencia de unconsiderable volumen de profesiona-les de la educación que desempeñansu labor adaptando, imitando o emu-lando lo que hacen otros, favorecidosy hasta legitimados por la proliferaciónde prácticas pedagógicas que invitana ello, con el aliento que le otorgan cier-tos tipos de formación inicial y/o con-tinuada, para los que ningún profesordeberá ser muy distinto de los ya exis-

tentes. Tal vez, aunque no se diga ex-plícitamente, con la intención de queel relevo generacional de los docentesse produzca con sosiego, a imagen ysemejanza de lo conocido, sin que na-da cambie sustancialmente.

Lo paradójico es que en socieda-des tan acomodaticias como lasnuestras, esto acabe juzgándose co-mo un signo de bienestar y progreso.Cuando es así, el problema no residetanto en que los profesores se dupli-quen y multipliquen ad infinitum con-forme a unas determinadas señas deidentidad. Lo objetable, desde unalectura ética, es que suceda apelan-do a los dictados de cualquier Refor-ma o promesa de calidad en la edu-cación; es decir, de un pretendidocambio a más y mejor, cuando habi-tualmente nos quedamos en simples“duplicados”. La obra de Saramago,con rostro y perfil humano, está llenade advertencias sobre el dramatismoque encierra verse en la situación.

Page 7: Nº 131, Fevereiro 2004

07a páginada educaçãofevereiro 2004

forum educação

A Escola, o Laicismo e a ‘Diferença’

A decisão do governo francês de reafirmar o laicismo do sistema educa-tivo surge, desde logo, como discutível, dado que a escola francesa,

(…) só formalmente pode ser considerada como laica.

Tomamos conhecimento através da

imagem e das palavras do presidente

Jacques Chirac, nas televisões, que o

governo francês deliberou não permi-

tir que a religiosidade se manifeste no

sistema escolar. Tal decisão decorreu

de um debate que se tem vindo a de-

senvolver nos últimos anos a propósi-

to da utilização ou não de sinais de

marcas culturais, no caso o véu islâ-

mico, nos espaços públicos franceses.

O estado francês possui, como se

sabe, uma forte tradição republicana

que pressupõe que as crianças, cida-

dãos a construir, são, para todos os

efeitos, ‘filhos e filhas da República’.

A dinâmica política que parece presi-

dir a esta perspectiva é a de que o es-

tado promove e constrói, através da

acção socializadora das suas institui-

ções, uma espécie de ‘etnia nacional’.

Neste sentido, para se ser cidadão em

pleno da República surge como obri-

gatória a aquisição dessa marca étni-

ca, sendo a escola o dispositivo polí-

tico privilegiado para essa mesma

aquisição.

Como chamava a atenção o so-

ciólogo da educação Basil Bernstein,

a escola não existe independente-

mente da sociedade. De facto, ela é

permeada pela cultura dos estados-

nação e, por sua vez, infunde-se nes-

sa mesma cultura. Assim, a organiza-

ção do ano escolar, por exemplo, nos

seus ritmos anuais, é pontuada por in-

terrupções que são profundamente

enraizadas na cultura nacional, in-

cluindo evidentemente aí as marcas

religiosas: a assunção da semana de

cinco dias tendo como referência o

‘dia sagrado’ de Domingo, as férias do

Natal, do Carnaval,

da Páscoa, etc. Esta

presença da cultura

nacional e das suas

normas não se limita

aos aspectos religio-

sos, as marcas culturais de teor mais

profano são também visíveis: a ma-

neira considerada apropriada de ‘ves-

tir para ir à escola’, as opções de ves-

tuário e o aspecto físico dos próprios

professores, para dar apenas estes

exemplos. Assim, torna-se claro que

a separação jacobina entre o particu-

lar cultural e o universal da cidadania

é, no fundo, marcada pela ‘etnicida-

de nacional’ que lhe está na origem,

isto é, a escola republicana francesa,

sendo republicana é também, indis-

cutivelmente, francesa, quer dizer, de

fundo judaico-cristão.

Desta forma, a decisão do gover-

no francês de reafirmar o laicismo do

sistema educativo surge, desde logo,

como discutível, dado que a escola

francesa, como argumentámos, só

formalmente pode ser considerada

como laica. Por outro lado, este tipo

de afirmação de republicanismo não

chega para velar o facto de o estado-

nação ser originalmente uma cons-

trução híbrida e, sobretudo, hoje ser

uma realidade de tal maneira compó-

sita que aquilo que significa ser ‘fran-

cês’, ser ‘português’, ser ‘alemão’,

etc., tem de ser reexaminado. Mais,

no caso francês a tradição jacobina e

republicana parece, a julgar pelas pa-

lavras de Jacques Chirac, dizer que

para se ser um cidadão francês na

máxima plenitude não basta ter na-

cionalidade francesa, sendo preciso –

e talvez isso seja o mais importante –

ter adquirido o que acima chamámos

a ‘etnicidade nacional’.

Não é possível negar que actual-

mente a escola francesa é constituída

por um público muito heterogéneo. De

acordo com o nosso argumento, é es-

ta a questão de fundo – a relação com

a diferença – e não a questão do lai-

cismo da escola francesa. Por outras

palavras, o governo francês parece

assumir que o laicismo escolar não é

mais do que a promoção da escola

‘francesa’ nos seus moldes tradicio-

nais. Proclamar, a partir do poder cen-

tral, que as ‘diferenças’ não têm lugar

na escola republicana francesa, é a

mesma coisa que declarar que a so-

ciedade francesa não tem, por exem-

plo, uma parte importante da popula-

ção constituída por muçulmanas.

Em suma, as palavras de Chirac

surpreenderam-nos porque parecem

veicular uma con-

cepção de constru-

ção nacional funda-

da num modelo de

sociedade marcada-

mente etnocêntrico.

O nosso receio é que, talvez, este

mesmo modelo seja extrapolado pa-

ra o nível da construção europeia, re-

metendo para a construção de uma

meganação e da respectiva ‘etnicida-

de’. Não se trata de defender que os

‘franceses’ não devem ter orgulho nas

suas ‘raízes’ culturais, o que se trata

é de abrir a possibilidade a que todos

os cidadãos nacionais possam exer-

cer o direito de exprimir igual orgulho

nas suas. Não se trata também de

querer pôr em causa o papel dos es-

tados-nação na construção da Euro-

pa, mas de não reduzir essa constru-

ção a uma remake da construção do

estado-nação.

RECONFIGURAÇÕESAntónio M. Magalhãese Stephen R. StoerFaculdade de Psicologia

e de Ciências

da Educação

da Universidade do Porto© is

to é

A ESCOLA REPUBLICANA francesa,sendo republicana é também,

indiscutivelmente, francesa, querdizer, de fundo judaico-cristão.

Page 8: Nº 131, Fevereiro 2004

08a páginada educaçãofevereiro 2004

forum educação

Identidade, identidades e educação

Depois de ter enganado o Conselho de Se-

gurança das Nações Unidas com supos-

tas provas irrefutáveis da existência de ar-

mas de destruição maciça no Iraque, Co-

lin Poweel, Secretário de Estado da Admi-

nistração de Bush II, admite agora que

Bagdad talvez não tivesse tais armas, em

nome das quais os Estados Unidos e o Rei-

no Unido justificaram a invasão e conse-

quente ocupação daquele país soberano.

A documentação apresentada pelos

norte-americanos nas Nações Unidas pa-

ra justificar a invasão do Iraque era há mui-

to contestada como sendo apenas um re-

latório encomendado por Tony Blair aos

serviços secretos britânicos e elaborado

com base numa tese de 1991, de Ibrahim

Al-Marash, num plágio tão convincente até

os erros de ortografia originais constavam

no novo documento.

Segundo Colin, citando Ibrahim Al-Ma-

rash, actual professor numa universidade

californiana, o regime iraquiano teria por

hábito “esconder armas de destruição ma-

ciça em residências particulares e mes-

quitas”. Blair e Bush acreditaram e os che-

fes dos governos de Portugal, de Espanha,

da Dinamarca, de Itália, da Hungria, da Re-

pública Checa e da Polónia também. Afi-

nal era mentira. É o próprio Colin quem,

agora, o admite.

Sabe-se agora (confessadamente) que

o Reino Unido e os EUA basearam a cau-

sus belli (a razão para a guerra) em infor-

mações falsas e tendenciosas. Sem que

tal pareça constituir grande escândalo. Em

nome da colonização do petróleo do Ira-

que, a mando do lobby da energia que ver-

dadeiramente manda em Washington.

Valha-nos o facto de haver água em

Marte. A menos que as provas científicas

desta evidência sejam também falsas e sir-

vam apenas para justificar o novo progra-

ma eleitoral, perdão, espacial da Adminis-

tração Bush. A caminho do planeta ver-

melho – o que tem o nome do Deus da

guerra – com uma escala na Lua. Uma lua-

de-mel para descanso dos guerreiros.

Haverá água em Marte?

sublinhadoJoão Rita

A leitura de uma recente entrevista deAnne-Marie Thiesse sobre nacionali-dades e cidadanias na Europa, suge-re questões fundamentais para aconstrução de uma cidadania euro-peia no espaço da União Europeia(UE). Em particular, faz pensar nas re-sistências que se colocam à realiza-ção do projecto de educação parauma cidadania europeia e a sua coe-xistência com a promoção das cida-danias nacionais. Em primeiro lugarporque não há ainda uma ideia do quedeverá ser a UE que permita agregarem seu torno e de um símbolo, cida-dãos de sociedades profundamentenacionais. O processo para consoli-dação de uma identidade europeia ede um sentimento de pertença à Eu-ropa realiza-se, essencialmente, atra-vés de dinâmicas económicas e so-ciais, de mobilidade e de comunica-ção, factores que mais têm caracteri-zado o projecto da UE. São essas queos cidadãos dos países membrosmais têm vivenciado. Mais difícil setorna a apropriação de factores histó-ricos e culturais – embora obviamen-te existam - na estruturação do senti-mento comum de pertença à Europa,factores que têm sido essenciais narealização das identidades nacionais.

Tendo em vista a promoção de umsentimento de identidade europeia enão apenas nacional, por parte dos ci-dadãos dos países membros, a UEpropôs a inclusão nos currículos deuma dimensão europeia. Tal dimensãoinclui, numa primeira fase (após 1988),a apreensão das raízes míticas, histó-ricas e culturais da Europa e dos paí-ses membros – os alicerces civilizacio-nais da Europa e dos valores e princí-pios fundamentais comuns; da histó-ria, economia, sociedade e cultura dospaíses membros – para, numa segun-da fase (Cimeira de Lisboa, 2000) acen-tuar o papel da educação e formaçãoenquanto meio para tornar, até 2010, aUnião Europeia na economia baseadano conhecimento mais dinâmica ecompetitiva do Mundo, capaz de ga-rantir um crescimento económico sus-tentável, com mais e melhores empre-gos, e com maior coesão social. Ape-sar da longínqua herança histórica co-mum, parece ser este o objectivo quemais congrega o sentimento de iden-

Não há ainda uma ideia do que deverá ser a UE que permita agregar em seu torno e de um símbolo, cidadãos de sociedades profundamente nacionais. (…) O processo para consolidação de uma identidade europeia e de um sentimento de pertença à Europa realiza-se,

essencialmente, através de dinâmicas económicas e sociais, de mobilidade e de comunicação…

tidade europeia, na medida que é atra-vés dele que cada país membro podeprogredir económica e socialmente epromover a qualidade de vida dos seus

cidadãos. É, sobretudo, nesta dinâmi-ca que os modos de vida e opiniões sevão tornando cada vez mais próximosgerando sentidos de identidade co-muns. E, naturalmente, os processosinerentes à integração europeia, e ou-tros factores, vão influenciando, com otempo, o sentimento de identidade ede cidadania nacionais em cada paísmembro. Mas, nesta dinâmica de rela-ções entre diferentes países, uns têmmais poder do que outros para afirmaras suas identidades nacionais. E este

tem sido um fenómeno muito eviden-te no evoluir recente da UE.

Prevalece um conjunto de compe-tências gerais de base a assegurar pe-

la escola, a todos os cidadãos da UEaté 2010. Delas parece ter emergidoa revisão curricular para a educaçãobásica estabelecendo, enquanto fina-lidade principal, a educação para a ci-dadania através do desenvolvimentode 10 competências transversais es-senciais. Faz sentido colocar agora al-gumas questões, certamente semresposta imediata, acerca da realiza-ção das finalidades propostas nessarevisão. Como é a educação para umaidentidade e uma cidadania nacional,

intencionalmente promovida? Queconceito de identidade e cidadanianacional pressupõe o currículo e aprática dos professores? Como estáo ensino e aprendizagem da Históriae Geografia de Portugal, da Língua eCultura Portuguesas como aspectosestruturantes de identidade nacional?Como tem sido equacionada a rela-ção entre mudanças culturais e cida-dania? Como é realizada a educaçãopara a coexistência necessária entreuma identidade europeia e de umaidentidade nacional? Quais são osfactores essenciais de identidade na-cional face a novos processos e de-safios globais, incluindo a integraçãoeuropeia e a imigração?

E finalmente: que formação de pro-fessores para educar para diferentescidadanias? Estão as escolas de for-mação de professores a realizá-la?

COMO ESTÁ o ensino e aprendizagem da História e Geografia de Portugal, da Lín-gua e Cultura Portuguesas como aspectos estruturantes de identidade nacional?

FORMAÇÃO e desempenho

Carlos [email protected]

© isto é

Page 9: Nº 131, Fevereiro 2004

09a páginada educaçãofevereiro 2004

forum educação

© isto é

Sabemos bem que sucedemos a umlongo período em que os doutora-mentos e até os mestrados estiveramreservados quase que exclusivamen-te aos docentes universitários por ra-zões de carreira e por existir o pres-suposto de que a eles só deveria teracesso uma elite intelectual. Porém,na sequência do processo históricorelativamente recente de democrati-zação do ensino e do corresponden-te acesso aos respectivos graus,aqueles acabaram por ser alvo deuma procura alargada. Acresce queos novos estádios de desenvolvimen-to científico e tecnológico impõem,com carácter generalizado, exigên-cias acrescidas de qualificação aca-démica e de produtividade da inves-tigação. As universidades vêem-seconfrontadas com novos desafios dasociedade, sendo compelidas a abri-rem as suas portas a importantes con-tingentes de estudantes de pós-gra-duação. No caso português, a con-corrência das restantes universidadeseuropeias e os normativos comunitá-rios impuseram, a este nível, a demo-cratização do acesso.

Retomamos aqui um tema ao qualjá demos aqui o devido destaque masa que queremos acrescentar mais al-gumas reflexões.

É que, apesar do que fica dito, asnossas universidades têm igualmen-te experimentado algumas dificulda-des em compatibilizar a referida de-mocratização do acesso com o apro-fundamento e renovação dos critériosde rigor, nomeadamente em matériade avaliação e classificação. Importa,de facto, evitar nesta matéria tanto aconfusão entre democratização emassificação como o enovelamentoda persistência do elitismo académi-co com a incapacidade muito expan-dida para se aplicarem os própriosdispositivos legais existentes. Vai serpreciso que, na realidade, todos en-tendam de uma vez por todas que, porexemplo, a hierarquia das classifica-ções e das menções deve ser mobili-zada mais do que nunca, não consti-tuindo de forma alguma solução, masapenas uma forma de capitulação, aeliminação pura e simples daquele es-calonamento em favor da simples in-dicação da decisão de aprovação...

A não utilização das menções dis-poníveis pela sua redução prática àmais elevada ou pela sua eliminaçãoformal concorrem decisivamente pa-ra um subtil deslizamento da demo-cratização para a massificação namedida em que passa a imperar umacinzenta homogeneização dos méri-tos relativos. Decorrem daqui váriasconsequências, nomeadamente a fra-gilização dos referenciais de qualida-de, o desincentivo ao aprofundamen-to dos níveis de investigação, a au-sência de indicações seguras parapotenciais empregadores e, claro, o

Impasses na democratização das pós-graduações

As universidades vêem-se confrontadas com novos desafios da sociedade, sendo compelidas a abrirem as suas portas a importantes contingentes de estudantes de pós-graduação.

DO SUPERIORAdalberto Dias de CarvalhoFaculdade de Letras da

Universidade do Porto

A NÃO UTILIZAÇÃO das menções disponíveis pela sua redução

prática à mais elevada ou pela sua eliminação formal concorrem

decisivamente para um subtil deslizamento da democratização

para a massificação na medida emque passa a imperar uma cinzenta

homogeneização dos méritos relativos.

desprestígio dos graus em causa.Vemos que, desta forma, a bene-

volência não constitui aqui uma qua-lidade mas um enorme defeito.

Parece-nos que há uma persisten-te dificuldade de adaptação à passa-gem de um regime selectivo por elitis-mo social para um outro em que a apli-cação da democraticidade social,afirmando-se pelo reconhecimento dodireito de entrada (dentro de condi-cionamentos específicos das compe-tências de acesso, segundo estritoscritérios técnicos e científicos) terá deser seguida por um exigente – e igual-mente tutelado – percurso de forma-ção especializada e de prática inves-tigativa. Acresce que, definidos crité-rios e níveis de exigência, a hierarquiadas classificações e das menções nãosó passará a espelhar a diversidadedos diferentes desempenhos comoterá mesmo um efeito regulador sobreos processos pedagógicos e de pes-quisa. Por outro lado, todos percebe-rão que, cumpridos os requisitos fun-damentais de cientificidade e rigor, po-derão ter acesso a diplomas que, em-bora dessacralizados, não perderam asua reputação e eficácia. Cultivar-se-ão assim as elites imprescindíveis pa-

ra a formação consequente e a todosos títulos inadiável dos nossos qua-dros com classificações que poderãocorresponder com as suas diferençasàs reais necessidades das várias em-presas, escolas, serviços e respecti-vos estádios de desenvolvimento.

Não pode, entretanto, o nosso sis-tema de ensino dar-se ao luxo de des-baratar recursos e energias com umasistemática e igualmente nociva rejei-ção da possibilidade de os estudan-tes concluírem os seus projectos depós-graduação. Através da aplica-ção, pela negativa, da mesma redu-ção da grelha de classificações o es-tudante é, por vezes, levado, se nãofor julgado excelente, a ter de aban-donar os seus propósitos de obten-ção de um diploma de mestrado oude doutoramento quando, no nossoentender, até ao nível mínimo de Bom,estes graus deveriam ser concedidoscom toda a naturalidade.

Hierarquizar segundo o mérito decada um faz parte da democratizaçãodo ensino e da investigação e é exac-tamente o contrário de homogeneizarou de excluir numa atávica mistura daincapacidade de distinguir com a se-dução pelo autoritarismo.

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10a páginada educaçãofevereiro 2004

forum educação

Durante a guerra civil em Moçambi-que foram desviados os recursos ne-cessários à produção, implicando nu-ma acentuada redução da capacida-de produtiva das empresas. As priva-ções em bens de consumo, foidesenvolvendo uma apropriação in-terna ou gestão de sobrevivência e demercado negro. Em que na maioriadas empresas, a produção era utiliza-da como moeda de troca pelos fun-cionários para aquisição de outrosbens escassos.

Após as privatizações o caráctersocial da produção deixa de ser prio-ritário e a gestão começa a atenderà rentabilidade com redução fortedos custos, e o consequente de-semprego para a força de trabalhoconsiderada excedentária. A lei dotrabalho de 8/98 de 20/06/98, comum forte conteúdo socializante nadefesa dos interesses dos trabalha-dores, passou a ser letra morta, jáque os mecanismos de inspecção dotrabalho, de controle sobre as condi-ções em que este se processa nãosão accionados pelo Ministério doTrabalho (aparentemente por falta depessoal e meios materiais). Por con-seguinte os patrões sabem da ine-xistência de quaisquer penalizaçõespara os infractores e por isso actuamcom a maior impunidade.

As relações de trabalho têm vindoa ser foco de conversações triparti-das na Comissão Consultiva do Tra-balho. As influências políticas do Es-tado continuam sendo extremamen-te poderosas nos acertos com os pro-tagonistas envolvidos, dada aposição dual do Estado no papel demediador e empregador duma partesubstancial do quadro do funciona-lismo e das empresas públicas. Osempregadores dada a sua conhecidafragilidade e inexperiência, na suagrande maioria, dependem substan-cialmente de decisões e regulamen-tação do Estado sobre uma grandeparte da actividade económica exer-

dia-a-dia

[em Moçambique] As influências políticas do Estado continuam sendo extremamente poderosas nos acertos com os protagonistas envolvidos, dada aposição dual do Estado no papel de mediador e empregador duma parte substancial do quadro do funcionalismo e das empresas públicas.

OLHARESMaria Antónia Rocha

da Fonseca LopesFaculdade de Economia

da Universidade Eduardo

Mondlane, Moçambique

Fragilidade nas relações de trabalho em Moçambique

OS EMPREGADORES [em Moçambique] dada a sua conhecida fragilidade e inexperiência, na sua grande maioria, dependem substancialmente de decisões e regulamentação do Estado…

20.01Portugal com mais mulheres em Ciências e Engenharia

Portugal é o país da União Europeia com

a maior proporção de mulheres licencia-

das. Em cada dez diplomadas, sete são

mulheres (67%), segundo dados do Eu-

rostat. Ocupa também o 1º lugar no “ran-

king” da percentagem de mulheres na to-

talidade de diplomados em Engenharia e

o segundo no sector das Ciências. Meta-

de dos licenciados em Ciências são mu-

lheres (48%), assim como 35,3% dos di-

plomados em Engenharia.

21.01Politécnicos querem equiparação

O recém-eleito presidente do Conselho

Coordenador dos Institutos Superiores Po-

litécnicos (CCISP), Luciano Almeida, defen-

deu ontem a igualdade ao sector universitá-

rio na atribuição de graus académicos - no-

meadamente nos graus de doutor -, que de-

ve ser em função das competências de cada

instituição, e não do seu nome.

22.01Governo lidera contributospara a subida da inflação

O Governo está a dar o maior contributo

para o aumento da inflação em 2004, as-

sumindo a liderança dos maiores aumen-

tos de preços. Os transportes, que pesam

cerca de 19% no cálculo da inflação, vão

aumentar em média 3,9%, depois de o

Executivo ter também agravado significa-

tivamente os preços na Educação. Os sec-

tores regulados, como a electricidade e te-

lecomunicações estão com aumentos da

ordem dos 2%. E as actividades sujeitas à

concorrência perspectivam para este ano

a estabilização ou mesmo uma queda de

preços devido à crise.

23.01Escolas do 1º Ciclo do nortesem leite desde o Natal

Desde o final de Dezembro que diversas

escolas do 1º ciclo do ensino básico, do

pré-escolar e do ensino mediatizado do

Norte do país deixaram de ter leite para

distribuir pelos alunos. O programa "Leite

Escolar", do Ministério da Educação, pre-

vê a distribuição gratuita e diária de paco-

tes com dois decilitros de leite.

cida. Por conseguinte, andam a re-boque daquilo que são consideradasas medidas que mais convém adop-tar para a sua sobrevivência.

Os trabalhadores e os sindicatosque os representam, ainda estão mui-to pouco habituados e adaptados anegociações que representem os in-teresses gerais dos assalariados, emtermos de desemprego, formação,qualificação e arranjos salariais maisou menos equitativos. As privatiza-ções apressadas da década finda, au-mentaram o desemprego e as leis dotrabalho são pouco obedecidas pelopatronato. Os sindicatos pela suagestação ligados ao partido no poder,herdaram uma grande sujeição aos in-teresses partidários e precisam de re-tomar o seu papel central na defesa

das reivindicações dos trabalhadorese uma postura estratégica mais inter-ventiva, em relação aos efeitos per-versos das racionalizações dos qua-dros de pessoal e das políticas neo-liberais do Fundo Monetário Interna-cional. O que em termos concretos,pode e deve passar pela definição deestratégias de longo alcance, na ten-tativa de poder enfrentar com algumrealismo, a reestruturação produtiva ea flexibilidade do trabalho presentesno mundo, desde a década de 80, doséculo XX. Neste contexto, o sindica-to deve intervir na vida económica,política e social, o que teria de passarpela participação com o governo e in-vestidores nas definições e opções deprojectos de desenvolvimento quesejam sustentáveis. Atender às ca-

racterísticas específicas dum país emque a maioria da população (cerca de70%) vive no campo, a força de tra-balho é pouco qualificada e as opçõespelo investimento em trabalho inten-sivo, tem de ser um factor a ser con-templado nas negociações por alter-nativas sustentáveis de desenvolvi-mento do país.

Os dilemas e paradoxos herda-dos continuam sendo fulcro de for-tes tensões que se manifestam pe-riodicamente em empresas privati-zadas e não só. A negociação e a suaaprendizagem, continua sendo a for-ma mais adequada para atingir osentendimentos parciais que vão sen-do obtidos entre os protagonistasnas relações de trabalho e na vidaem sociedade.

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entrevista

Após um percurso pela docência epela formação contínua de profes-sores, dedica-se agora à tese dedoutoramento que, segundo pudesaber, debruça-se sobre as estra-tégias sociais e pessoais de inser-ção na vida activa de jovens adul-tos que abandonaram precoce-mente a escola. Pode falar-nos umpouco acerca deste trabalho?Sim, a minha tese de doutoramentoretoma uma preocupação que já tinhaabordado na tese de mestrado e tempor objecto de estudo jovens da zonado Cerco do Porto que abandonaramprecocemente a escola ou que têmformas precárias de a percorrer, masque, apesar disso, se reorganizam oureconstroem as suas vidas com maiorou menor grau de sucesso social, in-clusivamente através de formas quepodemos considerar marginais. Emtodo este processo considero a es-cola como ponto de convergência da-queles sujeitos no processo de cons-trução dos seus percursos.

Neste trabalho tento descobriratravés dos seus discursos porquedesistiram da escola, porque não in-vestiram nela como forma de promo-ção social, que outros pontos de in-teresse encontraram, como se reor-ganizam, e sobretudo tentar com-preender como se constrói adimensão deles de "cidade", porqueé interessante descobrir que para osjovens que permanecem ali há comoque uma referência ao ethos em que

Angelina Carvalho, em entrevista à PÁGINA:

Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto (UP), Angelina Carvalho iniciou a sua actividade docente como professora do 2º ciclo, tendo sido presidente do Conselho Directivo da Escola Básica 2º e 3º ciclos do Cerco do Porto. Mais tarde, após

ter concluído a pós-graduação em Administração Escolar pela Escola Superior de Educação do Porto (ESEP), foi requisitada como docente de Sociologiada Educação na ESEP. Terminou o Mestrado na Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto (FPCEP) e continuou a ac-tividade enquanto formadora na área de formação de formadores para diversas instituições na área de Projecto e Organização Curricular no âmbito da

formação contínua de vários centros de formação. Está actualmente inscrita no doutoramento em Ciências da Educação na FPCEP. Trabalhou com diver-sas instituições no âmbito da investigação pedagógica, tendo coordenado e participado em alguns projectos no âmbito de instituições nacionais e es-

trangeiras. Tem diversos livros, artigos e comunicações publicados no âmbito da investigação da formação de formadores e em investigação pedagógica eeducativa. Ao longo desta entrevista, Angelina Carvalho aborda a dimensão socializadora da escola, alguns dos factores que, de acordo com uma in-vestigação que realiza, conduzem ao abandono escolar precoce e critica o "discurso hipócrita" sobre a escola de alguns fazedores de opinião pública.

se envolveram, embora esse ethosseja uma zona empobrecida da cida-de. Em suma, tento perceber qual é ainfluência que a escola exerce oueventualmente não exerce nos per-cursos de vida e que outros espaçosou instituições têm essa influência.

Que conclusões pode retirar par-tindo dos dados preliminares que járecolheu? Apesar de os dados disponíveis se-rem ainda escassos, parece confir-mar-se a ideia de que a escola é re-produtora de desigualdades sociais,que existe uma cultura ambiente quereafirma essas lógicas de empobreci-mento, que resultam numa situaçãode acomodação para alguns e, mui-tas vezes, uma revolta que acaba pornão se organizar como projecto mascomo uma situação adaptativa.

Isto corresponde um pouco àquiloque eu já tinha feito no trabalho ante-rior, mas dessa vez fi-lo junto de jo-vens que não concluíram a escolari-dade obrigatória – teriam à volta de 20anos na altura em que os entrevistei–, procurando saber como é que elesviam a escola e porque razão a aban-donaram antes do tempo. De umaforma geral, cheguei à conclusão queo faziam para arranjar outras saídaspara a vida que a escola não lhes pro-porcionava e sobretudo não garantia.

Estes, com quem agora trabalho,são mais velhos e já tiveram oportu-nidade de se reorganizar e ter um

percurso de vida próprio, apesar deeventualmente para alguns poder serprecário.

Nesse estudo que desenvolveu an-teriormente que motivos apresen-tavam os jovens para a desistênciado percurso escolar?Esse estudo está publicado pelo Ins-tituto de Inovação Educacional, intitu-la-se “Da Escola para o Mundo do Tra-

sino está descartado da realidade –um deles diz mesmo: uma coisa é euestar a trabalhar na oficina do meu pa-trão, darem-me um pedaço de ferro eeu transformá-lo numa peça, vendoqual é o objecto que me vai sair dasmãos, outra coisa é a escola onde eufaço coisas que não sei para que ser-vem. Ou seja, a não organização doensino com um sentido retira-lhe, emsi, o próprio significado.

Outra das observações diz respei-to à forma como se processa a ava-liação. Eles referem nas entrevistasque os professores só lhes dizem quealgo está errado no final de uma tare-fa e sentem que tudo o que estiverama fazer estava mal desde o princípio,ao passo que quando estão na ofici-na o patrão ou mestre detecta o erroe diz-lhes isso em tempo útil, mos-trando de que forma devem procederpara obter um bom resultado. Ou se-ja, emerge nesta percepção íntimaque alguma coisa falha quando seclassifica e não se avalia os proces-sos dando uma resposta satisfatória.

Por outro lado, está também pre-sente nos seus discursos a baixa ex-pectativa que a própria família originanos seus percursos. Eles não evocamisso directamente, mas ao dizeremque os pais também não estudaram,têm a quarta classe ou menos, e queo tio, que também não estudou, temuma oficina para onde irão trabalhar,estão a transformar esta visão numaexpectativa face ao futuro.

"De facto, a escola atravessa um momento difícil, mas não

é regressando à escola do tempo dos nossos pais que se resolve

o problema, porque essa escola jánão existe e essa sociedade também

não. É preciso encontrar soluções novas para novos problemas".

balho: uma Passagem Incerta”, e ne-le se conclui que a escola não vai aoencontro das expectativas deles. Hámesmo uma entrevista muito interes-sante de um jovem – na altura com 18anos e metalúrgico de profissão – que,apesar de não ter concluído a escola-ridade obrigatória, consegue descre-ver a escola através de uma curiosametáfora: uma corrida de obstáculosao longo da qual as pernas vão fican-do cansadas, e que quando se senteque a marcha continua e não temospernas para ela o melhor é desistir.

Outra das razões pela qual a esco-la não corresponde às suas expecta-tivas é o facto de sentirem que o en-

"A escola é reprodutora de desigualdades sociais"

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entrevista

Que os pode fazer desistir,inclusivamente, de ambicio-nar determinados percursosprofissionais… Sim, recordo-me até de umaoutra entrevista onde um delesdizia que quando era miúdo so-nhava ser astronauta, mergu-lhador, piloto de fórmula 1, ad-vogado, médico ou engenhei-ro, pondo todas elas no mes-mo plano de igualdade; logo,para estes jovens ser advoga-do ou engenheiro coloca-se noplano da impossibilidade e dosonho na mesma medida quepara um miúdo da classe mé-dia, cujos pais desempenhamprofissões liberais, se colocano plano do sonho ser astro-nauta mas não advogado ouprofessor.

Ou seja, no fundo a escolanão lhes garante uma saída, ecomo não garante essa saídamais vale sair e tentar arranjaruma ocupação. A dedicatóriado livro refere precisamente is-so: "ao David, ao Joel, … (e atantos outros que não recordo)que saltaram borda fora antesde serem empurrados".

Com estes mais velhos, quese calhar alguns deles serão osmesmos, tentei compreenderde que forma o ethos culturalenvolvente também reafirmouestas opções, lhes deu ou nãorazão ou se eventualmente elesalteraram estes percursos en-contrando posteriormente for-mas alternativas de formaçãoou de reestruturação social.

A escola de hoje consegueainda cumprir o seu papelsocializador?A escola deveria ter uma fun-ção eminentemente socializa-dora, mas podemos questio-nar-nos com base em que va-lores morais e em que mode-los. As situações que vivemosem termos sociais são tão caó-ticas que é difícil atribuir uni-camente à escola essa res-ponsabilidade, porque ela nãopassa de uma ilha. Uma ilha no

"É uma hipocrisia a sociedade estar a pedir à escola para dar aos alunosaquilo que ela própria não consegue

dar. Por isso, se me perguntar se a escola hoje ensina para os valores, eu respondo que não ou

que ensina pouco".

a escola deveria educar para os valo-res e vemos que responsáveis políti-cos e dirigentes que "metem cunhas"e tentam legitimá-las, cometem bato-ta e tentam justificá-la, alteram as re-gras do jogo e tentam que sejam acei-tes, assumem isso com a maior à von-tade e nada lhes é imputado; que aescola deveria educar para valoresque implicam uma certa estética - en-tendida com ética, como forma de es-tar na vida e de nos relacionarmoscom os outros -, e confrontamo-noscom programas televisivos que, parasobreviverem, vivem à base do fácil,do agressivo, do mau gosto…

Como havemos de nos espantar queos alunos digam palavrões e se empur-rem nos corredores ou à entrada da sa-la de aula quando um dos programasmais vistos na televisão mostra um con-junto de pessoas que utiliza palavrõesna sua linguagem quotidiana?

Como havemos de nos escandali-zar que os alunos destruam materialse ídolos, jovens sim, mas com res-ponsabilidades, que representamPortugal num acontecimento despor-tivo internacional destroem instala-ções e equipamento e assistimos, lo-go de seguida a uma tentativa debranqueamento da situação por par-te de responsáveis desportivos e atépolíticos? Que referências podem teros alunos?

É uma hipocrisia a sociedade estara pedir à escola para dar aos alunosaquilo que ela própria não conseguedar. Por isso, se me perguntar se a es-cola hoje ensina para os valores, eu res-pondo que não ou que ensina pouco.

Essa é uma das críticas que a so-ciedade imputa à escola: ela já nãoensina os jovens. Afinal qual é o pa-pel da escola hoje se já não ensinaou ensina pouco?Nesse tipo de crítica que se imputa àescola, acusando-a de já não ensinar,eu poria a tónica no “já”. A escola “já”não cumpre o seu papel, mas quandoé que alguma vez cumpriu? Na opiniãode muitos, já cumpriu mas eu diria quejá o fez quando a selecção social sefazia na própria sociedade e eram en-tregues à escola jovens "escolarizá-veis". Agora não cumpre porque a so-ciedade também “já” não cumpre, so-

zinha, esse papel e lança na escolacom expectativas de "ser para todos"aqueles que à partida estão "marca-dos para morrerem escolarmente".Então, a única maneira de resolver es-te problema é proibir o acesso à es-cola dos jovens não escolarizáveis,perdoe-me o cinismo… É este tipo dediscrepância, de não querer olhar pa-ra os problemas que a própria socie-dade está a produzir e atirando as res-ponsabilidades para a escola, que setorna o cerne da questão.

Muitos dos discursos que na co-municação social criticam a escola –estou a lembrar-me do José ManuelFernandes e da Filomena Mónica, doPúblico, ou do Henrique Monteiro, doExpresso – são habitualmente hipó-critas, porque só teriam razão de seras suas críticas se a escola fosse fre-quentada exclusivamente por meni-nos da classe média. Estes senhoreslevantam muitas questões relativa-mente à escola mas não nos dizem oque havemos de fazer aos miúdos quenão são originários da classe média,aos “outros, àqueles que vivem situa-ções sociais e familiares muito com-plicadas, e de que forma havemos dedescartá-los… na opinião desses se-nhores a escola tem de saber resolvertodos os problemas, mas não podeporque não consegue.

Esses discursos são manipulado-res, porque se é verdade que houveuma certa euforia na relação com aaprendizagem – nomeadamente atra-vés das práticas do movimento da es-cola moderna, da escola nova, quenos mostram a importância de traba-lhar de outra forma, de nos ligarmosaos alunos quando estão em dificul-dade – muitas das afirmações que sãofeitas não correspondem minima-mente à verdade.

Um artigo no jornal Público diziaque, hoje em dia, graças aos peda-gogos, os alunos podem fazer o quequerem porque não lhes são pedidasregras, que podem ou não fazer os tra-balhos de casa, que podem escolheraquilo que querem ou não querem es-tudar... Nunca ouvi nenhum pedago-go afirmar tal coisa. Afirma-se que is-so foi dito mas não se diz quem o re-fere, nem onde e utilizam-se estes ar-gumentos demagogicamente.

sentido em que está cercada por umasérie de situações e de contextos so-ciais que muitas vezes lhe são com-pletamente opostos, cercada por umasérie de exigências e de expectativascomo se esses contextos não existis-sem. Cercada por uma sociedade ca-da vez mais impregnada de um mo-delo hipócrita, dividida entre o quequer e o que pratica.

Assumimos, por exemplo, que aescola deveria educar para a solida-riedade e verificamos que as práticassociais são de um profundo egoísmoe de um absurdo de ignorância em re-lação às condições de existência demuitos dos nossos concidadãos; que

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entrevista

Entrevista conduzida por Ricardo Jorge Costa

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Apesar de se poder discutir a justiçadessas afirmações, o facto é que elasvão reflectindo o estado de espírito damaioria da opinião pública... Não te-me que a pressão exercida pela so-ciedade e pelo próprio poder políticotenda a converter o carácter eminen-temente socializador da escola numaperspectiva tendencialmente norma-lizadora?Corremos esse risco, de facto. Mas an-tes isso fosse possível, porque eu nãoacredito que o seja… Pode assumir-seessa postura em termos teóricos masna prática não é fácil socializar outransmitir normas de comportamentobásicos sem que eles tenham sidoapreendidos na primeira fase de socia-lização, na infância, junto da família.Aos alunos custa-lhes por vezes com-preender coisas simples como o factode não deverem escrever com a cabe-ça deitada na mesa... Se muitas vezesnão se consegue fazê-los compreendera importância destas normas básicasde comportamento, de que forma ire-mos conseguir transmitir-lhes normasmais elaboradas?

Então sejamos honestos: vamos es-tabelecer um conjunto de normas a par-tir das quais excluímos e descartamosos indesejáveis e passamos a ter umaescola expurgada daqueles que pertur-bam o sistema. Esses senhores tam-bém deveriam ter a coragem de afirmarisso, assumir que a escola, segundoeles, além de meritocrática deveria dei-xar o caminho livre para os "escolarizá-veis" e propor o que fazer aos "outros".De contrário, podemos elaborar regula-mentos mais ou menos rígidos mas quecontinuarão a não resolver as questõesde base.

A existência de uma sociedade multi-cultural é cada vez mais visível no nos-so país. De que forma está a escola aacolher e a trabalhar com as minoriasétnicas e culturais? Não se corre o ris-co de as normalizar culturalmente emvez de respeitar as suas origens, ten-tando até tirar vantagem dessa diver-sidade?Apesar de já se ter começado a traba-lhar a questão da interculturalidade naescola há mais de uma dezena de anos- nomeadamente eu própria o fiz há cer-ca de 12 anos num projecto que desen-

volvemos em equipa na Escola Superiorde Educação do Porto, coordenado porMilice Ribeiro dos Santos. Penso que,actualmente, a escola continua a não es-tar muito preparada para lhe dar res-posta.

Além disso, pelo que me é dado a co-nhecer, existe de facto muita pressão so-cial no sentido da sua normalização. "Sea escola é esta, a cultura dos outros te-rá de adaptar-se a ela", é o pensamentorecorrente. Mas podemos ser mais ra-cionais e pensar que querer conhecer ooutro não é uma questão de bondademas antes de eficácia pedagógica e edu-cativa. Porém, julgo que nem neste sen-tido ela é ainda trabalhada pela escola epelos professores.

Apesar de tudo, começa a verificar-sealguma preocupação na formação inicialdos professores relativamente a esta ma-téria, tanto do ponto de vista pedagógicocomo ético, perspectivando a escola co-mo um lugar de aceitação da intercultura-lidade e da multiculturalidade no plano daaceitação dos valores do outro, com a re-lativização que isso pode exigir. Mas emtermos práticos vamos sobretudo con-fiando na assumpção de que os portu-gueses não são racistas e que isso, só porsi, será um bom princípio, quando não o é.

Tem alguma mensagem em particularque gostasse de deixar aos leitores deA PÁGINA?Mais do que aos leitores, gostaria de re-lembrar aos fazedores de opinião que de-vem ser mais sérios nas acusações quedirigem e nas afirmações que deixampassar para a opinião pública.

Aos professores, sobretudo os maisjovens, que, tendo consciência da con-dição precária que é neste momento opróprio acto de estar numa escola, ten-tassem perceber que quando se sugereuma atitude de reformação e de reflexãodos contextos pedagógicos seria im-portante que eles próprios assumissemessa postura, tenham uma palavra a di-zer e não se limitem a consumir o que osoutros dizem.

De facto, a escola atravessa um mo-mento difícil, mas não é regressando àescola do tempo dos nossos pais que seresolve o problema, porque essa escolajá não existe e essa sociedade tambémnão. É preciso encontrar soluções novaspara novos problemas.

Que novos modelos de parceria com a comunidade eos agentes exteriores às escolas devem ser procura-dos de forma a tecer essa rede de relações que vemreferindo?Existem dois bons exemplos recentes daquilo que se de-

ve e do que não se deve fazer relativamente a essa ques-

tão. O exemplo da constituição dos agrupamentos, no

âmbito da reorganização da rede escolar, insere-se cla-

ramente naquilo que não se deve fazer. As escolas foram

completamente afastadas do processo e ignoradas as

experiências e as mais valias decorrentes da rede de re-

lações que se foram instituindo com a comunidade, li-

gando escolas entre si e construindo um território edu-

cativo com uma identidade própria, apenas pela ânsia de

a administração cumprir uma agenda política.

O exemplo contrário será o da Escola da Ponte, e vi-

mos o processo que a rodeou. A administração nunca te-

ve a coragem de dizer que ela não era um bom exemplo

e, apesar de ter imposto uma série de formas de avalia-

ção que acabaram por confirmar que era um bom pro-

jecto, tentou-se retirar-lhe a força e o espaço.

Até que ponto o argumento da necessidade de so-cialização das crianças serve os interesses da admi-nistração educativa? Será que as crianças e jovensnão continuarão, de certa forma, isoladas em comu-nidades que não são da sua pertença?Poderá eventualmente criar-se uma situação de guetiza-

ção quando chegam em minoria a um espaço maioritá-

rio de outra cultura e referentes, mas, de qualquer ma-

neira, não sei se não será proveitoso para as crianças

confrontá-las com situações que lhes permitam passar

de saberes particularistas para o confronto com saberes

universalistas. Nesse sentido, considero que há que pro-

ceder a rupturas, no bom sentido, de forma que se pos-

sa processar um enriquecimento cultural e das aborda-

gens sociais.

O que se deverá garantir é a existência de uma estru-

tura de apoio que reúna os professores as famílias e acau-

telar questões práticas como os transportes, os tempos

de espera e os espaços de convívio - quanto tempo per-

dem estas crianças em transportes? Onde ficam à es-

pera de transporte? À porta da escola? Num polivalente

sem aquecimento?

Acima de tudo, será importante construir este pro-

cesso em conjunto com as famílias e com as comunida-

des envolvidas nele e não através de decisões adminis-

trativas e burocráticas.

Concorda que a questão dos agrupamentos é sobre-tudo política e não pedagógica?Acho que essa assumpção se torna evidente. Até por

uma questão de agenda ela se torna suspeita.

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verso e reverso

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RETRATOSAndreia Lobo

Parou, sem quase querer, frente àmontra. Do outro lado do vidro pou-sava um manequim: camisa azul-tur-quesa ao xadrez miudinho, colete demalha em tons de cinza azulado e cal-ça de sarja azul-escuro. «Que elegân-cia», sorriu para o vidro. Tentou quelhe viesse à memória a última vez emque se olhara ao espelho e pensara omesmo de si. Nada. Nem no casa-mento do primo em que levou um fa-to de Terylene preto. Comprado na fei-ra ao gosto da Palmira...

O sorriso desvaneceu. O seu pró-prio reflexo destronara o manequim.Agora via apenas uma camisola demalha com borboto a condizer comumas calças de ganga coçadas. Bom,também, aquela era a sua roupa detrabalho. Ninguém esperasse quefosse para «a obra» de camisinha. Écerto que podia trazer uma muda no

saco. Sim, isso era possível. Não pre-cisava andar pela rua vestido «da-quela» maneira. Como um qualquer.Em algumas ocasiões até se sentira aparecer mal no autocarro. Em dias co-mo aquele em que trazia de casa asgalochas já calçadas. Que coisa. Jáse sentira assim numa outra altura.Envergonhado. Quando tinha aulasde educação física e era o único queia para a escola de fato-de-treino. Oscolegas troçavam um bocado. Masera um puto. E nessas alturas a coisaincha, desincha e passa. Agora não.

«30 euros a camisa?» A marca pa-ga-se bem. Sempre achou que a rou-pa comprada na feira fazia um vistaçoigual à da loja. Com a vantagem de sera metade do preço. Ao ver a montrapercebia que no fundo, no fundo nãoera bem assim. Se a Palmira o vissecom aquele modelito… «40 euros o co-

lete» Com a indumentária completa atéarranjava outra Palmira. Não que nãogostasse da rapariga. O namoro dura-va há mais de dez anos. Mas… falta-va-lhe estilo. Talvez fosse o excesso defuros nas orelhas. O piercing no nariz.E depois o fato-de-treino. Ao fim-de-semana Palmira não vestia outra coi-sa. Dizia que já sofria muito à semanapor ter de andar nos trinques. Afinal tra-balhava na recepção de uma clínica deanálises. Não podia descurar o look.Ainda que passasse o dia a atender ve-lhinhos. «50 euros as calças».

Estivesse ele empregado num es-critório e à semana só andaria de ca-misa e sapatinho de vela. Sim, porqueele, ao contrário de Palmira, até tinhaum certo estilo natural. Cabelo loiroescuro, olho castanho mel. Um lookmal empregado em cima dos andai-mes. Difícil seria mudar de ofício. Era

questão de fazer um curso. Ele até ti-nha cabeça. Tanto que acabou o 9ºano. Ia ser um orgulho para os pais.Sobretudo para a mãe. De certeza quea sua roupa se lavaria melhor se nãoestivesse encharcada de argamassa.Coitadinha da Palmira. Teria de arran-jar outro que a levasse ao shoppingno fim-de-semana.

«Que elegância», pensou quantoabria a carteira. 30 euros: o orçamen-to da semana. O equivalente a cincoalmoços, um maço de tabaco, duascolunas de totoloto, mais a meia tor-rada e pingo da Palmira: à quarta-fei-ra saía mais cedo da obra e criara ohábito de levar a rapariga a lanchar aoCafé da Praça. Voltou a pôr os olhosna montra. «Que se lixe!» Um homemtem de tomar decisões. E assim com-prou a camisa e prometeu a si mes-mo mudar de vida.

A montra da vida

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verso e reverso

NÓS e os outrosDaisi LeitãoProfessora

de Física e Química

Não há “retoma” que nos valha!Eu não sei quais foram os desejos formulados pelos responsáveis do Ministério da Educação

ao bater das 12 badaladas que marcaram a entrada no novo ano, mas não vejo razões para grande optimismo.

A “passagem de ano” é umtempo propício a balanços eprojectos. Despedimo-nos doano que termina com promes-sas de não repetir os erros dopassado e agarramo-nos aosprenúncios mais favoráveispara evitar qualquer dose ex-cessiva de cepticismo quantoao futuro. Eu não sei quais fo-ram os desejos formuladospelos responsáveis do Minis-tério da Educação ao baterdas 12 badaladas que marca-ram a entrada no novo ano,mas não vejo razões paragrande optimismo. Qualquerdesejo, por mais simples queseja, de melhoria da situaçãoactual na educação, arrisca-sea não passar de um devaneio,ou de um pesadelo.

O balanço de 2003 é ma-nifestamente negativo. Mui-tos são os exemplos que po-dem ser dados, mas limitar-

me-ei a três domínios:- A educação, como o

país, continua à espera da“retoma”. Não tanto da “reto-ma económica” mas da reto-ma dos valores da cidadania,da democracia plena, daigualdade de oportunidades,da integração dos excluídos,da justiça social, da defesa epromoção do bem público.Estes valores parecem estarem suspenso e as políticasque os deviam concretizarnão se vislumbram no hori-zonte. Em contrapartida, as-sistimos ao anúncio de medi-das que vão no sentido deagravar a exclusão, de refor-çar a selecção social, decombater a inovação e deameaçar os fundamentos daescola pública.

- O próprio funcionamen-to regular dos estabeleci-mentos de ensino encontra-

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É conhecido que a água, em con-

dições normais, congela a zero

graus Célsius. Também nos é

mais ou menos familiar ver colo-

car sal nas estradas para evitar

que no Inverno a descida de tem-

peratura origine a formação de

gelo tão escorregadio para os veí-

culos que circulam. O sal evita

que a água congele, mesmo que

a temperatura ambiente desça

abaixo de zero graus, pelo que se

diz que o sal é um anticongelan-

te (outros produtos, com o mes-

mo objectivo, são adicionados à

água das canalizações ou dos ra-

diadores dos automóveis poden-

do conseguir-se que a água se

mantenha líquida até -15ºC).

Ora no mundo animal existem

alguns insectos, peixes, répteis e

batráquios que, sob o controlo

do cérebro, fabricam um anti-

congelante que o coração distri-

bui por todo o corpo. É o caso da

rã selvagem, que passa uma par-

te do inverno a -10ºC e na Pri-

mavera retoma o seu metabolis-

mo normal.

Inspirando-se no facto de al-

guns animais conseguirem viver

num estado de "vida suspensa"

os cientistas criaram as bases da

criobiologia, disponibilizando téc-

nicas de congelação de células

(espermatozóides, óvulos...) e de

outras estruturas simples, mas

até à data não foi possível conge-

lar nenhum órgão humano res-

suscitando-o de seguida.

No entanto, o Homem sonha

com o grande sonho de "hiber-

nar" por longos anos e acordar

séculos e séculos depois no

mundo dos seus longíquos des-

cendentes, verificando, in loco,

se o planeta azul não hibernou de

vez. Talvez assim se compreen-

da que mais de um milhar pes-

soas, nos Estados Unidos, te-

nham solicitado a "hibernação" a

empresas e existam já algumas

dezenas de corpos congelados.

O preço já está estabelecido e um

próspero negócio assegurado.

E nunca se perca a esperança.

Poderá ser uma questão de

tempo, assim o afirmam os es-

pecialistas em criobiologia. Tal-

vez num futuro mais ou menos

longínquo, com os avanços em

nanotecnologia médica, se con-

siga introduzir, no organismo, mi-

cro-robots capazes de reparar,

uma a uma, os milhões e milhões

e milhões de células e estruturas

do corpo humano afectadas pe-

la congelação.

E o Homem espera e continua

a sonhar o grande sonho da imor-

talidade...

E agora uma experiência para

verificar o poder anticongelante

do sal:

Colocar um copo meio de água

no congelador ou arca frigorífica.

Colocar, simultaneamente, ou-

tro copo igual, também meio de

água, mas a que se junta uma co-

lher de sal (agitar para que o sal

se dissolva).

Aguardar até que a água no

primeiro copo congele.

Observar então o que aconte-

ce no outro copo.

"A estratégia da rã selvagem"

TEMOS VINDO A ASSISTIR a um reforço significativo

das tendências mais conservadoras de centralismo

político e administrativo no domínio da educação.

IMPASSES e desafiosJoão BarrosoUniversidade de Lisboa

se ameaçado e constitui mo-tivo de séria apreensão. Nãosão só os cortes orçamen-tais (que afectam mesmo al-gumas das “bandeiras” doactual governo, como o casoda internet nas escolas), queestão em causa. É o própriofuncionamento do sistemaque se tem vindo a desacre-ditar face a erros e omissõesque se acumulam desde acolocação de professores àavaliação das escolas, da au-sência de alternativas (políti-cas e institucionais) à extin-ção do Instituto de Inovaçãoe do INAFOP, do abandono aque foram votadas a forma-

ção dos professores, a des-centralização administrativae a autonomia das escolas,dos maiores atropelos às re-gras de bom senso na radi-calização dos “agrupamen-tos verticais” de escolas.

- Finalmente, temos vindoa assistir a um reforço signifi-cativo das tendências maisconservadoras de centralis-mo político e administrativono domínio da educação. Oque não deixa de ser parado-xal para um governo que ba-seou o seu discurso eleitoral,entre outras coisas, nas pro-messas de descentralização emodernização da administra-ção educativa. Basta olhar,por exemplo, para a lei orgâ-nica do ministério da educa-ção, para a constituição dosconselhos municipais da edu-cação, para o anunciado regi-me de colocação de profes-

sores, para vermos como aadministração central nãoabre mão dos seus poderes eprerrogativas, recuando mes-mo em relação a algumas ten-tativas tímidas de descentra-lização ensaiadas pelo ante-rior governo. E se conjugar-mos estes diplomas com aausência de medidas concre-tas no que se refere aos con-tratos de autonomia das es-colas, à transferência de com-petências para as autarquias,à reorganização das direc-ções regionais, à reforma daadministração dos serviçoscentrais, etc., vemos bem quala orientação dominante no mi-nistério e o que ela promete.

Por tudo isto, é difícil de-sejar votos de um bom ano de2004 para a educação. Nãohá “retoma” que nos valha setivermos que continuar a “to-mar” estas políticas.

Page 16: Nº 131, Fevereiro 2004

16a páginada educaçãofevereiro 2004

verso e reverso

A menos de um ano da eleição presiden-

cial nos Estados Unidos da América (EUA)

o eleitorado norte-americano está dividido

entre os partidos republicano e democra-

ta, facto constatado na anterior disputa pe-

la Casa Branca e confirmado agora em

2004. Nem os atentados que galvanizaram

o país em torno do actual presidente, Geor-

ge W. Bush, nem a guerra no Iraque mo-

dificaram esta tendência, o que leva os

analistas políticos a chamarem aos EUA a

"nação 50/50".

Os dados preliminares do próximo acto

eleitoral são diferentes dos de 2000: os re-

publicanos partem unidos em torno do

presidente, os democratas lançam nove

candidatos. Os primeiros apoiam em mas-

sa a guerra no Iraque, a detenção de pri-

sioneiros em segredo, as reduções de im-

postos e opõem-se aos casamentos entre

homossexuais. Os segundos estão dividi-

dos quanto a todas estas questões.

Dois estudos recentes demonstram que

as grandes crises que sacudiram os Esta-

dos Unidos nos últimos quatro anos - in-

cluindo o embaraço jurídico causado pe-

las eleições de 2000 e o escândalo finan-

ceiro da Enron - não tiveram capacidade

para modificar a paisagem política.

De acordo com o centro de sondagens

Pew Research Center, após consulta de 80

mil eleitores nos últimos três anos sobre a

sua filiação política, 30% dos americanos

identificam-se com os republicanos, 31%

com os democratas e 39% manifestam-se

independentes.

O instituto de pesquisas Gallup chegou

a conclusões idênticas depois de consul-

tar 40 mil pessoas em 2003. Segundo es-

ta sondagem, 45,5% dos americanos

identificam-se com o partido republicano,

contra 45,2% que se identificam com os

democratas. Há dez anos, os democratas

superavam os republicanos por nove pon-

tos percentuais (49% contra 40%), de

acordo com a Gallup.

"O século XXI será testemunha do que

trará esta nova guerra de secessão entre

os Estados Unidos tradicionais e moralis-

tas e os Estados Unidos leigos e progres-

sistas", refere a este propósito David Cor-

bin, professor da Universidade de New

Hampshire.

Fonte: AFP

Estados Unidos divididos para as eleições presidenciais de Novembro

Universidades e sociedadeAs universidades de língua

portuguesa espalhadas por trêscontinentes, quatro contando com

Macau, estão sujeitas em cadaum deles a condicionalismos

exteriores violentamente diferentes.

As universidades brasileiras desen-volver-se-ão, certamente, no meio si-multaneamente vasto e algo fechadodos horizontes sul-americanos. AsUniversidades africanas irão desco-brir os seus horizontes africanos e es-tarão presas, possivelmente por umlargo período, dos seus terríveis pro-blemas de desenvolvimento. Nós, nasUniversidades portuguesas, arrisca-mo-nos a ficar fechados em órbitasdemasiado europeias.

O que é que nos une? Sem dívidaa língua com o que ela contem de cul-tura, tradição e sentir comum.

Nesta brevíssima intervenção pre-tendo falar de uma faceta fundamen-tal das Universidades de língua por-tuguesa, que é a sua muito vincadatradição liberal e democrática.

É algo que vem de longe. José Bo-nifácio de Andrada e Silva, patriarcado Brasil, foi lente da Universidade deCoimbra, professor de Metalurgia,uma Ciência de ponta na época. Mas,além disso, organizou e comandouum batalhão académico quando daluta contra as invasões francesas. OImperador D. Pedro I, D. Pedro IV pa-ra nós, é o exemplo, possivelmenteúnico na História, de alguém que ten-do dado o grito de independência deum país em que foi Imperador, abdi-cou, e foi depois lutar no país de ori-gem, à frente dos chamados 6 mil bra-vos do Mindelo que desembarcaramna cidade do Porto onde estiveramcercados um ano, para depois, ao fimde uma longa luta, restabelecerem oliberalismo em Portugal.

Portugal, e muito em particular aUniversidade de Coimbra, foram du-rante todo o século XIX centros vivosde ideias liberais e democráticas. Osbacharéis brasileiros formados emCoimbra no século XIX não foram,pois, só lá aprender umas vagas lu-zes jurídicas. Foram, sobretudo, con-viver num dos mais vivos centro deideias liberais da época.

Não sou historiador e não vou alar-

gar o tema, mas vou falar de algo deque fui testemunha e foi de imensa im-portância para mim. Refiro-me aodeslumbramento que tive quando, em1963, emigrado político português,cheguei ao Recife e vi pela primeiravez um país de língua portuguesa a vi-ver em democracia.

Era o Nordeste, onde o latifúndioestava a ser posto em causa, onde aUniversidade se empenhava nas cam-panhas de alfabetização de Paulo Frei-re, com sindicatos livres, onde era tra-tado por cidadão António. Era, so-bretudo, o sonho de um grande Brasila acreditar em si próprio, com uma im-prensa em que tudo se discutia, emque os estudantes se empenhavam eligavam o seu futuro a projectos como

os da Electrobrás e da Minerobrás.Do Recife, onde só passei ano e

meio, guardo imagens que me acom-panharão toda a vida. São recorda-ções que me impõem, também, umaobrigação que cumpro aqui, diantedesta assembleia de universitários delíngua portuguesa, que é a de falar dedois jovens estudantes brasileiros, jo-vens porque morreram jovens, que ho-je seriam homens de 50 e poucos anos.

Fui há dois dias à Biblioteca Na-cional fazer uma pesquisa para lhesencontrar os nomes e encontrei-osnum velho jornal do Recife. São eles:Ivan Rodrigues de Aguiar , de 23 anos,e Jonas José de Albuquerque Barros,de 17 anos, que morreram no dia 1 deAbril de 1964 nas ruas do Recife, achoque posso dizer pela liberdade doBrasil.

Podia falar-vos, em primeira mão,do que sucedeu nesse dia no Recife,de aspectos até inéditos, mas seria fa-lar do episódio. Podemos passar porcima disso.

Mas há recordações. Faz hojeexactamente 33 anos que acompa-nhei a um cemitério do Recife o en-terro de um desses jovens. Lembro-me, para além das imagens, do quedisse o padre oficiante, professor daUniversidade. Não me lembro das fra-ses, lembro-me só de que falou lon-gamente dos anjos, o que me pare-ceu estranho e irreal. Levei anos a en-tender. Se me recordo hoje, é porquefoi um momento excepcional da vidade um país. Falar dos anjos só é pos-sível num país com uma antiga cultu-ra. É falar de algo que está fora dasregras e do tempo dos homens, de al-go que, sendo um começo, continuapara sempre. Acho que foi por issoque aquele professor da Universida-de do Recife falou nos anjos, naque-le cemitério em que ia a enterrar umdos primeiros mortos de uma luta queia ser longa e dura.

Nota:

Este texto é a 1ª parte de uma comunica-

ção apresentada em 3 de Abril de 1997, no

Rio de Janeiro, no VII Encontro da Asso-

ciação das Universidades de Língua Por-

tuguesa. Publica-se por se crer manter a

actualidade e pertinência. A 2ª parte será

publicada no próximo número.

Á LUPAAntónio Brotas

Instituto Superior

Técnico, Lisboa

solta

© isto é

PORTUGAL, e muito em particular a Universidade de Coimbra,

foram durante todo o século XIX centros vivos de ideias liberais

e democráticas.

Page 17: Nº 131, Fevereiro 2004

17a páginada educaçãofevereiro 2004

verso e reverso

Explicações é preciso: os filhos de peixe não sabem nadar

É caso para perguntar, professores para quê? É caso para afirmar: os bons alunos precisam de explicações. De contrário têm notas muito pouco diferentes das dos restantes colegas.

Que a teoria dos dons tinha fracassa-do já nós sabíamos.

Que com fome e frio os miúdos nãoestão motivadas para a aprendizagemescolar parece-nos evidente, muitoembora “nem só de pão viva o homem”.

Que o dito “filho de peixe sabe na-dar” sempre pôde ser lido tanto pelolado da natureza como pelo da cultu-ra também já sabíamos.

Que a probabilidade dos filhos dacultura legítima do Estado terem su-cesso era maior que entre os putos pro-venientes de culturas eminentementeorais também já estava demonstrado.

O que nem todos sabíamos era queos alunos provenientes de culturasmais desvalorizadas pela escola e se-leccionados até ao secundário já nãoprecisavam de explicações, ao con-trário dos meninos filhos de “douto-res e engenheiros” que, de repente,com sucesso e notas de bom não con-seguiam atingir a bitola do excelenteque permite o acesso às profissõesmais procuradas. Os outros aceitama nota que têm. Estes não!

Vejamos uma pequena história quea vida me contou recentemente.

Era uma vez um menino, aluno deboas notas no ensino básico, queconcluiu o 9.º ano. Tinha 15 anos etransitara para o secundário com no-ta cinco a tudo.

Mudou de escola e encontrou ummundo novo: novo nível de ensino,novos colegas, novas disciplinas, no-vos professores, novas metodologiasde ensino e, para seu espanto, difi-culdades pela primeira vez. Os pro-fessores agora já não repetiam osexercícios como forma de prepara-ção, para o teste. O menino não per-cebeu algumas coisas mas adiou pa-ra o dia seguinte o momento de ficaresclarecido, uma vez que nenhum dosoutros colegas manifestara qualqueratitude sinónima de não compreen-são. Só poderia ser acontecimentoúnico e, certamente, resultado dequalquer desatenção.

No dia seguinte o menino voltou anão perceber e questionou o profes-sor que respondeu que era preciso es-

Como é do conhecimento de todos, um

pouco por todo o mundo, os políticos an-

dam desorientados. Vive-se, a nível mun-

dial, com raras excepções, uma situação

de completa tonteria política. Tal situa-

ção decorre da aplicação, a nível global,

das políticas (neo)conservadoras e

(neo)liberais. Os políticos agora no poder,

fascinados pelo negócio privado, come-

çaram, nos últimos anos, a vender o Es-

tado a retalho e ao desbarato. Agora so-

fre-se a sua falência e a sua incapacida-

de de responder às suas obrigações mais

elementares.

Um sinal deste desconcerto, a que não

pude deixar de achar graça pela imagina-

ção demonstrada, deu-se em Janeiro na

República Centro Africana. Colegas nos-

sos de um sindicato de professores, ape-

lou a todos os trabalhadores assalariados

do sector público, para se juntarem na ma-

nhã de sábado, 17 de Janeiro, frente à bol-

sa do trabalho em Bangu, «para chorarem

sobre as ruínas da República».

"Camaradas professores(as), camara-

das trabalhadores(as), todos à bolsa do

trabalho, sábado, 17 de Janeiro a partir das

09H00 para chorarmos sobre as ruínas da

República", apelou a Interfederal da Edu-

cação da Republica Centro Africana.

No início de Janeiro, "o ministério das

finanças declarou a quem o quis ouvir

que o Estado Centro-africano estava in-

capaz de pagar aos funcionários públi-

cos (…) e que era difícil, senão impossí-

vel, para o governo, fazer face aos paga-

mentos regulares a todos os funcionários

e agentes do Estado e menos ainda de

encarar actualizações salariais”, lembra

a IFEC.

"O conceito apresentado aos trabalha-

dores pelo Presidente da República, «+tra-

balho e não + que trabalhar+» está esva-

ziado de sentido. Cada um deve trabalhar

agora ao seu ritmo e ao seu gosto pois

quem paga manda mas quem não paga

não manda", continua o sindicato.

Como se vê não é só em Portugal que o

primeiro ministro chora pela impossibilida-

de de actualizar os salários dos funcioná-

rios públicos. Não é apenas a República

Portuguesa quem está em ruínas e a abrir

falência. Como vemos, até em África acon-

tece o mesmo.

Vamos também chorar pelas ruínas da

nossa República?

CARTAS na mesaJosé Paulo Serralheiro

© isto é

O MENINO VEIO A DESCOBRIR – quando um colega casualmente lhe disse quetinha de ir fazer os trabalhos das explicações – que, afinal, todos os restantes

andavam em explicações em quase todas as disciplinas.

E AGORA professor?Ricardo VieiraEscola Superior

de Educação de Leiria

bém a descodificar os processos deresolução de problemas na Física e naMatemática uma vez que a aula nãotinha servido para isso. Sozinho en-controu muitos caminhos. Autoapren-dizagem, diremos. Deixou de ter tem-po para as actividades que até aí de-senvolvia. Mas, mesmo assim, o tem-po não lhe chegava para tudo.

A quantidade de dúvidas foi au-mentando e já não conseguiu ultra-passá-las sozinho. Falou com a mãe,que era professora, e levantaram al-gumas hipóteses que passaram aguiar as buscas de resposta para o im-bróglio. O menino veio a descobrir –quando um colega casualmente lhedisse que tinha de ir fazer os traba-lhos das explicações – que, afinal, to-dos os restantes andavam em expli-cações em quase todas as discipli-nas. E era aí que faziam os trabalhosde casa. E era aí que esclareciam asdúvidas. E era aí que reforçavam o In-glês que aprendiam no Instituto Britâ-nico e que a sua escola apenas ser-via para lhes fazer e corrigir os testes.E era aí que treinavam os tipos deexercícios os modelos de testes paraconseguirem passar do vulgar 15 ou16 para 18 ou, se possível, para 19 va-lores. O menino primeiro chorou e re-cusou-se ele próprio a ir para expli-cações. Ganhou coragem e falou comum professor. Depois com outro. Emtodos os casos lhe disseram que ago-ra estavam no secundário. Que nãopercebiam as dúvidas do menino.Que era preciso estudar.

O menino acabou por pedir à mãepara ir para as explicações. Vive ago-ra, tal como os seus colegas, duas es-colas paralelas: uma onde aprende, ocentro de explicações; outra onde fin-ge que aprende e onde espera por re-sultados que não lhe baixem a au-toestima, que o situem na escala quesempre conheceu: nota máxima.

É caso para perguntar, professorespara quê?

É caso para afirmar: os bons alu-nos precisam de explicações. De con-trário têm notas muito pouco diferen-tes das dos restantes colegas.

Venham chorar as ruínas da República

tar com atenção a tudo porque ele nãopodia repetir as coisas. A sua educa-ção levou-o a não responder e aaguardar pelo intervalo. Ganhou co-ragem e perguntou a um colega se eletinha percebido tudo ao que este res-pondeu que não. Que, aliás, não tinhapercebido quase nada. Mais, tambémmuitos dos restantes estavam emcondição semelhante. Só que nãoavançaram com mais nenhuma ideia.

O menino percebeu então que al-

go de estranho se passava: os alunosnão percebiam mas no dia seguintetodos tinham os trabalhos feitos, deforma exemplar, e avançava-se paraa matéria seguinte sem que se res-pondesse ao professor que havia dú-vidas da aula anterior. Por seu lado, omenino começou a pensar que algode mágico se passava. Passava todasas noites a passar cadernos, a fazeros deveres escolares, estes, de resto,como sempre fizera, mas, agora, tam-

Page 18: Nº 131, Fevereiro 2004

18a páginada educaçãofevereiro 2004

verso e reverso

Pedro viu e ouviu O Lobo

Uma marcha de "dalits" ou "into-

cáveis", o estrato mais baixo no

complexo sistema de castas que

prevalece na Índia há 2500 anos,

participou na inauguração do IV

Fórum Social Mundial (FSM) que

se realizou no mês passado de

Janeiro nesta cidade.

Tocando tambores, dançando e

carregando grandes faixas onde

se lia "Outro mundo é possível", a

palavra de ordem do Fórum, 1500

"dalits" chegaram à capital eco-

nómica da índia numa marcha que

começou no dia 4 de Dezembro

nos quatro cantos do país.

Ao mesmo tempo, no local on-

de se realizava o Fórum, nos arre-

dores de Mumbai, mulheres "into-

cáveis" desfilaram e dançaram ao

ritmo de cantos nos quais exigiam

o fim da exclusão e da discrimina-

ção contra a sua comunidade.

"Não podemos sequer beber

água do mesmo jarro das outras

castas", denuncia Rachana Ra-

saily, uma jovem "dalit" que par-

ticipou na marcha, o que descre-

ve as condições desumanas em

que vive uma grande parte da po-

pulação da Índia e do Nepal, que,

segundo as regras do sistema de

castas, deve exercer os trabalhos

mais degradantes da sociedade.

Na Índia, com uma população

estimada em 1 bilião de habitan-

tes, 138 milhões de indianos per-

tencem a este estrato dos "dalits",

considerados párias, embora a

Constituição tenha abolido há

mais de 50 anos o sistema de

castas hindu.

"Pela minha descendência,

estou excluída dos serviços bá-

sicos, como saúde, educação,

emprego. Negam-nos todos os

direitos", afirma Rasaily. "E por

ser mulher, sou duplamente dis-

criminada", acrescenta.

De acordo com as explicações

desta "intocável", os "dalits" são

considerados "impuros" e não es-

tão autorizados a tocar nos mes-

mos utensílios de comida das cas-

tas superiores: os "brâmanes", ou

sacerdotes, os "kshatria", que for-

mam a classe de guerreiros ou

administradores, os "vaisya", que

são artesãos e comerciantes, e

mesmo os "suda", a casta inferior,

composta por camponeses.

São párias da sociedade, que

vivem amarrados há séculos aos

trabalhos de recolher o lixo, lavar

casas e quartos de banho, sendo

também "vítimas de execuções

sumárias e de torturas", denuncia

uma activista da Campanha Na-

cional para os Direitos dos Dalits.

Fonte: AFP

Casta dos intocáveis manifesta-se em Mumbai

solta

Não sou alfabetizadora, mas acredito que todoeducador e educadora comprometidos com

a educação como prática libertadora, alfabetizam também seus educandos.

Estou me referindo à alfabetização no sentidofreireano, como leitura do mundo que

antecede a leitura da palavra, das relações entre o texto e o contexto.

vidade de apoio escolar com Literatura Infantil e Ju-venil, Música e Teatro.

Viajávamos no Tapete Mágico, lendo Sílvia Or-thof, Bartolomeu Campos Queirós, Ana Maria Ma-chado, e tantos e tantos outros; ouvíamos e cantá-vamos muita música do nosso folclore, da MPB emúsica erudita brasileira também; brincávamos deteatro com as histórias e músicas brasileiras da Es-colinha de Teatro do Ilo Krugli. Da mesma forma co-mo conheciam, dançavam e cantavam pagode, for-ró, rap e imitavam tudo que aparecia nas novelas daGlobo, pois já eram iniciados num outro repertórioatravés destas linguagens.

Os excluídos de Pedro do Rio, assistindo “Pedroe o Lobo”, de Prokofiev, no Teatro Municipal do Riode Janeiro, foi um sucesso e uma emoção que guar-damos até hoje – eles e eu.

Todos queriam saber quem eram aqueles 12 ado-lescentes (porque tivemos que optar em levar apenasos mais velhos) que percorreram o teatro todo, pedi-ram o programa, queriam saber tudo, e assistiram aoespetáculo, com a maior atenção. Tiveram direito atéa fotos com os atores (que conheciam muito bem,pois todos eram “globais”). Mas, o mais importanteera se sentirem com direito a um espaço e a bens cul-turais que sempre foram privilégio de poucos.

AFINAL onde está a escola?

Maria Francisca de Pinho Valle

Pedagoga,

Gerente de Educação

do SEOP, Brasil

Todo educador e educadora comprometidos com aeducação como prática libertadora, alfabetizamtambém seus educandos. É com este fio condutorque venho realizando uma experiência em educa-ção popular numa ONG, SEOP – Serviço de Edu-cação e Organização Popular -, com trabalhos emPetrópolis e na Baixada Fluminense, no estado doRio de Janeiro, Brasil. Os locais escolhidos para ini-ciar o trabalho eram sempre aqueles onde o PoderPúblico não chegava: áreas de ocupação, semágua, sem luz, sem saneamento básico, sem a mí-nima condição de dignidade humana.

Era assim na Vila Leopoldina, em Pedro do Rio,distrito de Petrópolis, em 1997, quando escrevi:

Lá, um dia passou um trem, por isto, Leopoldina.Mas, o nome conhecido mesmo, sempre foi BNH de Pedro do Rio.Por que? Ninguém sabe explicar.Lá passa o rio Piabanha,caudaloso, bonito,mas tão poluídoque chega a ficar colorido...E as pessoas? Teresa do Veloso como moradia teve uma caixa d’água.Teresona – a avó criança,um dia mostrei sua fotocom o neto – seu retratovisto pela primeira vez!O neto tão parecido, tão bonito, tão querido!No sorriso misto de criança e velhaas lágrimas rolaram na admiração.Com uma ventaniae forte temporal,das quatro paredes da casaficaram duas e a porta,abrindo para o vazio.(in: “Poema Pedagógico, Ensaios de Pedagogia do Excluído”)

Dois anos depois, durante as comemorações da Se-mana da Criança, vi anunciado “Pedro e O Lobo”no Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Não tive dú-vida, era a grande oportunidade das crianças am-pliarem suas leituras, mudarem o texto do contex-to. Sim, porque o trabalho que se iniciara com mãese crianças todas juntas, já estava organizado poridade (de 2 a 6 anos com mães eleitas como re-creadoras e merendeiras) e, a partir dos 6 anos, pa-ra os que freqüentavam a escola, inventei uma ati-

© isto é

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19a páginada educaçãofevereiro 2004

verso e reverso

solta

América Latina vira à esquerda sob o impulso do Brasil e da Argentina

Um princípio de nossa postura pedagógica expres-sa-se pelo trabalho com as atitudes e os procedi-mentos necessários às acções de estudo do objec-to, tanto da professora como dos alunos. Tais acçõesforam orientadas muitas vezes pelas crianças e emoutras havia a marca da função social da professora.Outro princípio consiste no que Paulo Freire chamoude pedagogia da pergunta (Freire e Faundez, 1985):atenção à fala e/ou pergunta da criança e transfor-má-la num problema a ser trabalhado e estudado, de-sencadeando ações na busca da resposta.

Professoras e crianças deram uma volta no quar-teirão da escola a fim de observá-lo e registrar naprancheta suas observações de pesquisa de cam-po. As crianças sentavam-se no meio-fio para es-crever e desenhar; copiaram o que viram escrito, masviram também uma escrita que não podiam ler e co-piar (pichação). Um aluno perguntou ao guarda detrânsito o que estava escrito em sua camisa e pediu-lhe que ficasse parado enquanto copiava a palavra.

Foi interessante ver alunos tão pequenos em ati-

A América Latina virou politica-

mente à esquerda em 2003 com

a chegada ao poder na Argenti-

na de Néstor Kirchner, que se

aliou ao brasileiro Luiz Inácio Lu-

la da Silva para se distanciar do

modelo neo-liberal americano e

reforçar a integração regional na-

quela área do globo. O novo ei-

xo Buenos Aires-Brasília cristali-

zou-se no final de Outubro do

ano passado, durante a primeira

visita do presidente brasileiro à

Argentina, depois da posse de

Kirchner a 25 de Maio.

Nessa ocasião os dois presi-

dentes assinaram - em contra-

posição ao neo-liberal Consen-

so de Washington - o Consenso

de Buenos Aires, um manifesto

no qual são preconizadas as

questões sociais (luta contra o

desemprego e a fome, a educa-

ção e o progresso tecnológico),

em detrimento do equilíbrio or-

çamental e do pagamento da dí-

vida externa.

Tanto Lula como Kirchner e Ni-

canor Duarte, o novo presidente

paraguaio, sublinharam na IX Ci-

meira de Mercocidades, realiza-

da em Setembro de 2003, em

Montevideu, a importância da in-

tegração regional, considerada

crucial para negociar melhores

condições com os blocos dos

países ricos como os Estados

Unidos e a União Europeia.

Kirchner e Lula aproveitaram a

visita ao Uruguai para integrar

neste "clube" Tabaré Vázquez, lí-

der da coligação de esquerda

Frente Ampla -Encontro Progres-

sista, grande favorita para as pre-

sidenciais de Outubro de 2004.

Vázquez declarou-se "em total

sintonia" com Kirchner, que mili-

tou em grupos da esquerda pero-

nista nos anos 70 e se destacou

recentemente pela sua atitude fir-

me nas negociações com o FMI.

Nesta corrente da "nova es-

querda" latino-americana podem

incluir-se outras figuras, como o

ex-jornalista boliviano Carlos

Mesa, que em Outubro substituiu

o ultraliberal Gonzalo Sanchez de

Lozada, derrubado por uma re-

belião popular.

Mesa conseguiu um acordo

com o líder da oposição indíge-

na boliviana, Evo Morales, para

dividir de forma mais equitativa

as receitas provenientes da ex-

portação de gás natural, e é mais

flexível nas negociações com os

camponeses que cultivam a fo-

lha de coca.

Fonte: AFP solta

Arquitectando paisagens

Atitudes e procedimentos para conhecer na pré-escolaEntendendo que a construção do conhecimento pelo aluno ocorre a partir de sua acção sobre o objecto

de estudo (Vygotsky, 2000), desenvolvemos actividades que propiciaram novas leituras de lugares já familiares aos alunos de cinco-seis anos da educação infantil o quarteirão onde fica a escola, a escola e a casa deles.

FORA da escolatambém se aprendeLilian Cristina A. T. de Aguiar — EspeditaAlexandra L. Mesquita— Ivone de A. Vivas— Elisabeth da Silva— Lúcia C. Fernandes— Jaqueline da C.Cardoso — MariaInês B. NettoIn, Número Zero, p. 6

© isto é

FOI INTERESSANTE ver alunos tão pequenosem atitude de estudo. Uma senhora perguntou a um

deles o que estavam fazendo fora da escola: "Estamos fazendo pesquisa!".

tude de estudo. Uma senhora perguntou a um de-les o que estavam fazendo fora da escola: "Estamosfazendo pesquisa!". -

Na roda de conversa, a acção de cada criança foia de fazer a leitura de suas anotações na pranche-ta e ditaram um relatório para a professora e, pos-teriormente, um texto colectivo foi elaborado.

Propusemos a elaboração da planta da sala, a suarepresentação em desenho visto de cima, "como seestivesse num balão", na expressão de uma criança.A observação de um menino expressa o seu proces-so de significação do novo conhecimento ao enun-ciar que "planta é a construção vista somente do chão".

O que nos levou a discutir nas turmas a respeitodo planejamento no processo de organização e ocu-pação do espaço pelas pessoas.

Assim, reflectimos sobre o trabalho de arquitec-to , urbanista e paisagista, por meio das histórias devida e da obra de Niemeyer, Lúcio Costa e BurleMarx, com material da internet e de jornais.

Então, um quarteirão fictício e o da escola, o con-domínio em construção, a casinha da boneca foramlugares escolhidos pelas turmas para representar bie tridimensionalmente. Em planejando a maquete,levamos os alunos a analisar a forma que a plantadeveria ter e seus outros elementos, buscando asrelações entre o que estavam desenhando e o es-paço planejado.

Com a maquete pronta e a respectiva planta ascrianças fizeram a leitura da maquete, estabelecen-do relações entre elas. São ilustrações dessa leitu-ra:

"A maquete não ficou toda igual porque a gentenão olhou na planta."

"A gente não olhou a planta, vamos fazer tudo denovo com paciência porque não somos arquitectos,ainda temos que estudar muitíssimo.”

Page 20: Nº 131, Fevereiro 2004

20a páginada educaçãofevereiro 2004

verso e reverso

Tecido empresarial não está receptivo à inserção de quadros superiores

A SIDA, a guerra, a exploração e o abuso

de menores, a expectativa de vida e a fal-

ta de investimentos em educação serão as

principais preocupações do Fundo das

Nações Unidas para a infância (Unicef) no

ano de 2004, anunciou a sua directora-ge-

ral, Carol Bellamy.

"Cada um destes problemas isolados

supõe desafios para centenas de milhares

de crianças e representam um imperativo

global para fazermos mais pelas crianças

em 2004", acrescentou.

Mais de 50% dos portadores do vírus da

SIDA que descobriram recentemente ter a

doença têm menos de 25 anos. No total,

há 14 milhões de crianças doentes, 11 mi-

lhões delas na África Subsaariana. Gran-

de parte perdeu os pais por causa da

doença, que deve deixar cerca de 20 mi-

lhões de menores órfãos até 2010, nas pre-

visões da Unicef.

No que se refere à guerra, mais de dois

milhões de crianças morreram e mais de

seis milhões foram gravemente feridas ou

sofreram deficiências crónicas devido aos

conflitos armados na década passada, ex-

plica a agência da ONU.

A exploração e o abuso sexual de me-

nores também serão um grande desafio pa-

ra a organização. Cerca de 240 milhões de

crianças trabalham em todo o mundo e 171

milhões em condições de grande risco.

Além disso, 11 milhões de crianças mor-

rem anualmente antes de completar cinco

anos de idade. Um número ainda maior tem

problemas mentais ou físicos e as suas fa-

mílias não têm condições financeiras para

comprar medicamentos no caso de doen-

ças como a malária, a rubéola ou a diarreia.

Para concluir, a Unicef destaca que os

governos dos países desenvolvidos e em

desenvolvimento não reconheceram, co-

mo deveriam, a importância dos investi-

mentos destinados à infância, sobretudo

na área da educação.

"Se continuarmos a investir nas crian-

ças e insistindo que elas são o eixo de qual-

quer discussão sobre o desenvolvimento,

poderemos fazer do mundo um lugar me-

lhor e mais seguro", destacou Bellamy.

Fonte: AFP

Sida, guerra e exploração infantil serão alvos-chaves da Unicef para 2004

solta

Uma das razões para estes númerospoderá estar na escassez de saídasprofissionais para quem pretende fa-zer carreira na área da investigação,sejam licenciados ou doutorados.Para Fernando Ramoa Ribeiro, pre-sidente da Fundação para a Ciênciae Tecnologia (FCT), a falta de colo-cação de quadros superiores no te-cido empresarial, é preocupante efruto “de uma mentalidade que épreciso mudar”. Através do progra-ma Inserção de Mestres e Doutoresno Sistema Empresarial a FCT temtentado fazer a ponte entre os in-vestigadores e as empresas. No en-tanto, por falta de “receptividade” dolado empresarial, “o programa nãotem tido muito sucesso”, lamentaRamoa Ribeiro.

Alternativas profissionais

No que toca às saídas profissionaisdos jovens investigadores, FernandoRamoa Ribeiro, acredita que o siste-ma científico nacional deverá integrar“uma parte” desses recursos huma-nos. “Há laboratórios [de ciência mé-dica] do Estado em que a própria si-tuação é preocupante e a idade mé-dia dos seus recursos humanos é mui-to elevada porque não têm admitidonos seus quadros novos doutores”,admite.

Uma outra porta de saída poderá,na opinião de Ramoa Ribeiro, seraberta pela nova lei sobre o financia-mento das universidades e dos poli-técnicos. A lei prevê que as institui-ções de ensino superior sejam finan-ciadas pela excelência e também pe-la percentagem que têm de doutores.“No caso dos politécnicos não temhavido a preocupação de inserir nosseus quadros novos doutores. Comesta lei, se estas instituições quiserem

ACONTECEAndreia Lobo

© isto é

ser financiadas, vão ter de o fazer”,conclui Ramoa Ribeiro.

A verba da polémica

O anúncio de Maria da Graça Carva-lho, ministra da Ciência e do EnsinoSuperior, da atribuição de uma verbade mil milhões de euros à investiga-ção científica é para Ramoa Ribeiroum sinal de que esta será uma áreaprioritária para o governo. Em con-traste, os partidos da oposição têmafirmado que se está apenas a anun-ciar o que já estava previsto e nego-ciado, desde o tempo do ex-ministroda Ciência, Mariano Gago. Tal verbafoi negociada no quadro do PRODEPpara ser aplicada entre 2002 e 2006,pelo que o agora anunciado — para2004-2006), seria apenas a parte jáprevista para esse período. Não setrata portanto, para a oposição, denada de novo. Trata-se apenas dedar cumprimento ao já anteriormen-te negociado e orçamentado.

“O que aconteceu é que havia umsérie de programas que tinham umareserva [de verba] que foi toda cana-lizada para a ciência. Todos os minis-tros concordaram que essas verbasque estavam adstritas aos seus pró-prios ministérios pudessem ser cana-lizadas para a ciência e a inovação”defende Ramoa Ribeiro.

Polémicas à parte, o presidente daFundação para a Ciência e Tecnolo-gia corrobora a convicção de que éfundamental combater a ideia “erra-da” de que em Portugal existem li-cenciados e doutorados a mais. “Épreciso motivar os jovens para a ciên-cia e tecnologia”. Até porque “se háuma área em que Portugal pode dizerque tem investigadores tão bons co-mo no estrangeiro é a da ciência”,conclui.

Ciência e Tecnologia não cativa jovens

Seis em cada mil portugueses, entre os 20 e os 29 anos, possuem uma licenciatura em Ciências e Tecnologias. Em 2001 apenas 5% do total de licenciados se formou nesta área. Percentagem que contrasta com os 11% da média da União Europeia

e é inferior à de países candidatos como a República Checa (11%), Estónia, (6%), Eslováquia (8%) e Turquia (9%). Esta conclusão consta de um relatório do Eurostat, gabinete de estatísticas europeu, divulgado em meados de Janeiro. E surge na mesma altura em o Governo anuncia a

atribuição de uma verba de mil milhões de euros à investigação científica em Portugal.

Taxa de desemprego mediante a qualificação (indivíduos entre os 15-39 anos)

Países candidatos à UE e Portugal, Espanha e Grécia*

Altamente Qualificação Baixa

Qualificados Média Qualificação

Bulgária 9.5 21.2 43

Chipre 3 4 6.9

República Checa 4.1 9 32.6

Estónia 8.6 15.2 23

Hungria 1.4 6.2 16.3

Letónia + 14.3 23.4

Lituânia 10.7 22.4 32.4

Polónia 9.3 24 36.7

Roménia 5.5 9.8 10.3

República Eslovaca 8 23 60

Eslovénia 2.8 6.5 13.8

União Europeia 5.3 8 13.6

Grécia 11.2 17.1 14.5

Espanha 10.3 12.7 14.8

Portugal + 4.9 5.3

Fonte: Eurostat, “Trinta Anos de Cooperação e Reformas Educacionais nos países membros e candidatos à

União Europeia”.

*Nota: A inclusão de Portugal, Espanha e Grécia nesta análise à evolução educacional dos países can-

ditos à União Europeia deve-se ao facto de entre todos haver um passado comum de regimes ditato-

riais que os torna comparáveis em muitos aspectos de desenvolvimento social e económico.

+ Não existem dados relativos a estes campos.

Page 21: Nº 131, Fevereiro 2004

21a páginada educaçãofevereiro 2004

verso e reverso

solta

Aprovada em 1986, a Lei de Bases doSistema Educativo (LBSE, Art.º 45º)consagrou os “princípios de demo-craticidade e de participação de todosos implicados no processo educati-vo”, também no tocante à administra-ção da educação, estabelecendo co-mo princípio (Art.º 3º, g) “Descentrali-zar, desconcentrar e diversificar as es-truturas e acções educativas”.Distinguiu ainda (Art.º 43º, 2) entre es-

A reorganização do centro para a recentralização (II)

LUGARESda educaçãoLicínio C. LimaInstituto de Educação

e Psicologia da

Universidade do Minho

AS AGORA DESIGNADAS “direcções regionais” não passam de “órgãos desconcentrados de coordenação e apoio”, de novo se remetendo para uma futura regionalização a criação de direcções regionais autónomas.

ção em sentido pleno e substantivo,isto é, enquanto órgãos descentrali-zados e autónomos. Mas uma recep-ção governativa particularmente res-tritiva da LBSE quanto às questões dadescentralização e da autonomia im-pediu a ocorrência de qualquer devo-lução de poderes nos anos seguintes,exceptuando o ensino superior.

Os trabalhos preparatórios da Co-missão de Reforma do Sistema Edu-

dos”, instâncias “intermédias” entre ocentro e as periferias escolares, ape-nas dotadas de autonomia adminis-trativa em função da sua “operacio-nalidade”.

Assim ficava definido um quadropolítico-institucional absolutamenteincompatível com as propostas de re-forma quanto à democratização, des-centralização e autonomia das esco-las. É certo que, à época, as propos-

o facto de as suas propostas exigirem“políticas de efectiva descentraliza-ção da administração educativa”, anova orgânica optava por uma lógicamodernizadora e gestionária.

Curiosamente, o diagnóstico apre-sentado pela orgânica de 1987 era tãocrítico quanto alguns dos textos apre-sentados pela Comissão de Reformaem 1986/1988. Logo no preâmbulo oMinistério é considerado uma estrutu-

© isto é

Enquanto o Japão se dispõe a enviar sol-

dados para o Iraque, a sua primeira mobi-

lização numa área de combates desde

1945, desenvolve-se uma polémica em

Tóquio depois de o Governo ordenar aos

poderosos meios de comunicação nipóni-

cos que se autocensurem para proteger a

segurança das tropas.

Recentemente, a Agência de Defesa en-

viou memorandos à imprensa local e es-

trangeira pedindo que não sejam difundi-

das notícias que possam "prejudicar a se-

gurança" dos soldados, ameaçando privar

de informações esses órgãos.

Desde então, os jornalistas protestam

contra o que consideram um regresso da

censura militar, totalmente contrária aos

supostos objectivos humanitários da mo-

bilização nipónica para o Iraque.

"É certo que o nacionalismo militante ja-

ponês desapareceu, mas os métodos de

controle dos meios de comunicação locais

continuam", declarou Teruo Ariyama, pro-

fessor de jornalismo na universidade Kei-

zai de Tóquio.

"A Agência de Defesa será a única ca-

pacitada para julgar se tal informação po-

de ser difundida ou não sem que ninguém

possa verificar os critérios, podendo sim-

plesmente dissimular a informação que vai

contra os seus objectivos e ninguém per-

ceber a diferença", acrescentou.

A maioria dos japoneses opõe-se ao en-

vio de tropas para o Iraque. Muitas pessoas

consultadas temem que os soldados nipó-

nicos terminem envolvidos nos combates.

"Nós esperamos que vocês façam o vos-

so trabalho de jornalistas, mas sem deixar de

levar em conta as medidas de segurança",

disse, o primeiro-ministro, aos repórteres.

Os influentes órgãos de comunicação

nipónicos - os jornais são os primeiros do

mundo em tiragem - e os especialistas na

imprensa não estão convencidos.

"Não há nenhuma diferença da propa-

ganda do quartel-general do exército im-

perial (durante a Segunda Guerra Mundial).

A atitude arrogante e anacrónica da Agên-

cia de Defesa supera toda a compreen-

são", denuncia um universitário num arti-

go publicado no jornal Mainichi Shimbun.

Fonte: AFP

Japão acusado de amordaçar imprensa antes de enviar soldados para o Iraque

truturas administrativas de âmbito na-cional, regional autónomo, regional elocal e anunciou a adopção de orgâ-nicas de descentralização e descon-centração dos serviços, tendo criadocomo nível administrativo novo os“departamentos regionais de educa-ção”. Estes assumiam, contudo, umafeição desconcentrada, embora a suaevolução para órgãos descentraliza-dos ficasse prevista, ocorrendo apósa criação das regiões administrativas(LBSE, Art.º 62º, 4).

Um importante elemento de de-mocratização da administração dosistema educativo ficaria assim de-pendente da futura (e até hoje adiada)regionalização do país, por forma a le-gitimar a existência de departamen-tos ou direcções regionais de educa-

cativo que incidiram sobre a direcçãoe gestão das escolas propuseram in-terpretações mais avançadas, embo-ra já em pleno contraciclo face a de-cisões governamentais que haviam jáoptado por uma reorganização do Mi-nistério da Educação com vista à re-produção da administração centrali-zada. Refiro-me ao novo ordenamen-to aprovado pelo Decreto-Lei n.º 3/87,de 3 de Janeiro.

No momento em que as propostasreformistas propunham a criação deórgãos de direcção próprios das es-colas, gozando de vários níveis egraus de autonomia, advertindo para

ra “complexa” e “ultrapassada”, re-presentando um quadro “desarticula-do” e “centralizador”. Mas chegadosao articulado concluimos que se tratade uma “redefinição organizacional”de tipo centralizado-desconcentrado.As agora designadas “direcções re-gionais” não passam de “órgãos des-concentrados de coordenação eapoio”, de novo se remetendo parauma futura regionalização a criação dedirecções regionais autónomas.

Estruturadas segundo o Decreto-Lei n.º 361/89, de 18 de Outubro, asreferidas direcções são definidas co-mo “serviços regionais desconcentra-

tas descentralizadoras e autonómicasnão granjearam muitos apoios e que,pelo contrário, tiveram poucos defen-sores; embora uma década mais tar-de alguns dos sectores mais críticostivessem assumido uma boa parte de-las. Em qualquer dos casos, e ao con-trário do que muitos supuseram no fi-nal dos anos 80, o principal, o maisforte e o mais decisivo opositor dadescentralização da educação, dademocratização da administração eda autonomia das escolas foi, obvia-mente, o poder central do Ministérioda Educação.

Neste capítulo, o destino da refor-ma da administração escolar estavatraçado, pelo menos em termos de-mocráticos e autonómicos. Até hoje,como veremos.

Ao contrário do que muitos supuseram no final dos anos 80, o principal, o mais forte e o mais decisivo opositor da descentralização da educação, dademocratização da administração e da autonomia das escolas foi, obviamente, o poder central do Ministério da Educação.

Page 22: Nº 131, Fevereiro 2004

22a páginada educaçãofevereiro 2004

verso e reverso

Literatura e educação

Um partido radical ultra-católico polaco

apresentou recentemente no parlamento

daquele país um projecto que visa erradi-

car os homossexuais do sistema educati-

vo, considerando-os como indivíduos

“desviantes” e “doentes”.

“A nossa proposta fecharia as portas da

docência às pessoas que declarem publi-

camente uma orientação sexual diferente”,

declarou perante a Comissão Parlamentar

de Educação Andrzej, deputado da Liga

das Famílias Polacas (LPR) – partido ultra-

nacionalista e anti-europeu, que conta

com 26 lugares num parlamento com as-

sento para 460 deputados.

“Não existe semelhante coisa como uma

orientação sexual diferente, o que existe são

desvios e doenças “, referiu Federowicz, de-

clarando ser necessário proteger a juventu-

de polaca contra tais desvios. “É como se um

daltónico nos tentasse ensinar as cores ".

A proposta do LPR pretendia alterar a

carta escolar polaca no sentido de os pro-

fessores prepararem os jovens para a vida

em casal entre homem e mulher, entendi-

da, na opinião deste partido, como a úni-

ca ligação legítima entre duas pessoas.

“O fundamentalismo religioso é o maior

perigo para a democracia. Proponho que

esta moção seja rejeitada com um voto de

profundo pesar”, respondeu a deputada

da Aliança da Esquerda Democrática (SLD,

no poder), Bronislawa Kowalska. Curiosa-

mente, apesar de o partido de Federowicz

representar pouco mais do que 4% do to-

tal de deputados no parlamento, a Comis-

são Parlamentar de Educação rejeitou a

proposta com apenas 16 votos contra cin-

co e uma abstenção.

Fonte: AFP

Polónia discute afastamento de homossexuais do sistema educativo

solta

Fomos ver a «Castro» ao Teatro Nacional de S. João. À porta aglomeravam-se pequenos grupos de adolescentes,

depreendemos que alunos do Secundário, acompanhados pelo que presumimos ser os seus professores. No átrio sentia-se uma espécie de festividade contida que nos obrigava a inquirir, num diálogo feito

em surdina, o que é que levaria aqueles jovens, naquela noite, a aventurar-se, através da encenação de Ricardo Pais, pelo mundo deluzes e sombras inexoráveis que António Ferreira, a pretexto do drama

de Inês, de Pedro e de Afonso, soubera criar.

Num tempo feito de cruzadas cínicasque nos querem fazer crer que as es-colas portuguesas são espaços vo-tados ao mais completo abandono,aqueles rapazes e aquelas raparigasconstituíam, naquele espaço e na-quele momento, um desafio. Um de-safio dirigido a todos aqueles que in-sistem em afirmar a degradação doscontextos escolares no presente, pa-ra poderem alimentar a ficção da ex-celência cultural das escolas do pas-sado. Um desafio dirigido, por isso,aos que insistem em valorizar a infe-liz inclusão, num manual de Portu-guês do 10º ano, do regulamento do«Big Brother», aí entendido como ma-téria de estudo, que afinal lhes servecomo expediente rasca para justifi-carem a necessidade de retornarema um tempo - mais idealizado que rea-lizado - em que o ensino da literatu-ra constituía uma condição do de-senvolvimento de uma relação maisexigente dos jovens com a língua por-tuguesa. Será que a maioria daque-les que foram compelidos a estudar,nos antigos Curso Geral ou CursoComplementar dos Liceus, algumasdas manifestações literárias mais em-blemáticas de autores como CorreiaGarção, Luís A. de Verney, Nicolau To-lentino, Marquesa de Alorna ou Fran-cisco Manuel de Melo são, hoje, lei-tores tão assíduos e interpelativoscomo seria de esperar que o fosseme se proclama que eles são?

Se isso não aconteceu, porque éque se continua a fazer crer, então,que as experiências culturais e edu-cativas vividas, no passado, em con-textos escolares diversos foram ex-periências exemplares, do ponto devista da afirmação das escolas comoespaços culturais pertinentes e signi-ficativos ?

Embora seja necessário admitirque muitas das propostas e das re-flexões produzidas no campo da ino-vação pedagógica contribuíram, vo-luntária e involuntariamente, para ca-ricaturar o acto de aprender e o con-junto dos saberes que constituemparte do património cultural que com-

pete à Escola divulgar, importa afir-mar, no entanto, que a alternativa nãoreside na valorização mitigada e son-sa de um passado que não é possívelnem desejável voltar a viver. Importareconhecer, por isso, que a questãoque se coloca às escolas de hoje temmais a ver com o desafio que consti-tui entender e transformar o patrimó-nio literário num instrumento e numaoportunidade de formação do quepropriamente em afirmar a concreti-zação do projecto de uma escola que,pelo contrário, se deve assumir comouma espécie de templo literário, su-jeito a rituais e a cânones que, paraalém de embalsarem os livros, contri-buem para nos tolher a centelha de vi-da que, por exemplo, um poema deNatália pode suscitar naqueles quetenham tido a oportunidade de oaprender a ler.

Que objectivo leviano é esse dequerer que um adolescente de de-zasseis anos se transforme numa es-pécie de crítico literário em miniatura,transformando-se num ser cuja dis-ponibilidade para papaguear um con-junto de frases feitas sobre o futuris-mo em Álvaro Campos só é compa-rável com a sua incapacidade parasentir e reconhecer a plenitude e a lu-minosidade da poesia deste heteróni-mo de Pessoa ?

Silêncio. Ouve-se o monólogo ini-cial de Inês, ingénuo e doce. Porqueé que aqueles jovens o escutam ? Co-mo é que o escutam ? Para que é queo escutam ? Não há respostas fáceispara esta questão. Não há, também,respostas certas e seguras. A não serque se entenda que a aprendizagemda literatura nas nossas escolas sedefine, apenas, como um acto de im-posição de significados, recusando-se assim o esforço e o investimentodos alunos como intérpretes, condi-ção da importância formativa que tan-to permite que a literatura adquira per-tinência curricular, como conduz à va-lorização do papel do professor comoagente de mediação incontornávelentre os jovens e as obras literárias.

Foi, por isso, que o escarcéu em

torno do regulamento do «Big Bro-ther» não nos aqueceu a alma, por aíalém. É que nunca vimos esses mili-tantes da causa da literatura a assu-mirem intervenções públicas tão vee-mentes denunciando, por exemplo,as práticas docentes que contribuempara desobrigar os alunos da leituradas obras literárias originais, no mo-mento em que os compelem antes,por força dos testes e da preparaçãoa longo prazo para os exames nacio-nais, a estudar arduamente o conjun-to de opúsculos onde se abordam e

analisam, a retalho, essas mesmasobras literárias.

O dilema em que Afonso mergulha,a solidão do poder onde submerge,pressente-se, agora, naquele palco.Na escuridão da sala não é possívelvislumbrar o rosto dos jovens quenesse momento nos acompanham.Como é que entendem aquele mo-mento dramático que, perante eles,os actores representam ? Não é estauma pergunta legítima ? Não é umapergunta obrigatória ? Não é, afinal,uma pergunta necessária ?

Imagem retirada do “Manual de leitura” Castro

DISCURSO directoAriana Cosme

Rui TrindadeFaculdade de Psicologia

e de Ciéncias

da Educação

da Universidade do Porto

SILÊNCIO. Ouve-se o monólogo inicial de Inês, ingénuo e doce. Porque é que aqueles jovens o escutam?

Page 23: Nº 131, Fevereiro 2004

23a páginada educaçãofevereiro 2004

reportagem

Escolas Rurais

Entre o encanto e a agoniaFecham as portas ao ritmo da desertificação. No interior do país o encerramento das escolas do 1º ciclo do Ensino Básico é apenas mais um indicador

deste fenómeno demográfico. Manter abertas escolas com menos de dez alunos implica um esforço financeiro incomportável, dizem as autarquias.Entre o encanto e a agonia da ruralidade, as “escolas primárias”, como as gentes ainda lhes chamam, resistem até ao último aluno. Em Aldeia Velha

e Carvalho de Rei, concelho de Amarante, os recreios têm vista para a Serra do Marão e as salas de aula aquecem-se a fogão de lenha.

Solidão. Frustração. São estas as pa-lavras que Sandra Pereira, 24 anos, usapara descrever o que sente enquantoprofessora de uma turma de quatroalunos. Situada na freguesia de São Si-mão, a 30 minutos de estrada nacionalde Amarante, a Escola Básica do 1º ci-clo de Aldeia Velha parece muito maiordo que é. São mesas a mais para tãopoucos alunos. Fernando, 10 anos (4ºano); Ana Cristina, 8 anos (2º ano); Da-

niela Filipa, 7 anos (2º ano) e Hélder, 6anos (1º ano) estão sozinhos na esco-la. A professora também.

É o segundo ano de Sandra Perei-ra como docente. “Vir para aqui foi umchoque!”, desabafa a professora. Apaisagem verdejante da Serra do Ma-rão, inspiradora de Teixeira de Pas-coaes, esconde alguns senãos, maisprosaicos. A miúda de 14 anos quedeixou a escola e anda a guardar ga-

do. Os meninos que à tarde vão paraos campos ajudar os pais e à noite es-tão cansados de mais para fazer ostrabalhos de casa. Os pais que não seinteressam pelas coisas que os filhosaprendem na escola. As dificuldadesdos meninos que passam para o 2º ci-clo e de repente se vêem numa esco-la com “gente de mais” para o que es-tavam habituados. E a certeza de quepara os seus quatro alunos “qualquer

novidade mínima será sempre umagrande novidade”. Por tudo isto umdesabafo: “É revoltante o esqueci-mento a que estas crianças estão vo-tadas.” Sandra encolhe os ombros esorri: “Como são poucas, deixam-nasestar no cantinho delas…”

Para quem se desloca diariamenteà aldeia, as dificuldades começam lo-go no acesso à própria escola. Semcarro a aldeia seria inacessível. Quer

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Andreia Lobo

Page 24: Nº 131, Fevereiro 2004

24a páginada educaçãofevereiro 2004

reportagem

para quem lá vai, quer para quem de-la quer sair. E sem transportes, plani-ficar actividades que impliquem sairda freguesia é tarefa complicada. Aíreside parte da frustração da profes-sora. “Ás vezes tenho vontade de osmeter no meu carro (risos). Mas quan-do as coisas são feitas de boa vonta-de, só funcionam se nada correr mal,não é?”, interroga-se.

Ainda assim duas vezes por mês aescola fica para trás. A autarquia deAmarante assegura o transporte, San-dra Pereira e os seus pupilos vão àpiscina municipal. “É uma oportuni-dade de eles conviverem com outrascrianças. Até porque como estãosempre os quatro têm tendência pa-ra se isolarem”, diz a professora.

Este comportamento faz com queSandra Pereira acredite que “mais doque aprender a ler e a escrever, estesalunos precisam de convivência so-cial.” Se Fernando passar de ano, aturma fica reduzida a três. Mas aindarestam duas crianças na aldeia queainda não atingiram a idade escolar.Mais cedo ou mais tarde a escola fi-cará vazia. Entretanto, pode aconte-cer que feche as portas e que os seusúltimos alunos sejam transferidos pa-ra outra escola de uma freguesia vizi-

nha. Uma hipótese, admite SandraPereira, que talvez pudesse beneficiaro desenvolvimento pessoal dos seusalunos. Ainda que do encerramentoresultasse menos uma colocação pa-ra um professor.

Jorge Pinto, vereador do pelouro daEducação da Câmara Municipal deAmarante, defende o encerramentodas escolas com menos de dez alunos.Não acredita, porém, que tal medidatenha obrigatoriamente de gerar maisdesemprego entre a classe docente.Defensor inequívoco das equipas edu-cativas de apoio à monodocência, Jor-ge Pinto, também ele professor de 1ºciclo, acredita que este seria um mo-do de contornar o problema.

Escolas Pólo

No concelho de Amarante existem 73escolas do 1º ciclo do Ensino Básico,pelo que a conservação do parqueescolar é “complicadíssima”, admiteo vereador. “As escolas funcionamcom grandes défices, temos poucascantinas porque são financeiramenteincomportáveis em escolas com 10,15 ou 20 alunos.” Neste cenário Jor-ge Pinto advoga pela junção de alu-nos em “escolas pólo”, que, segundo

o vereador, poderia contribuir parapotenciar ao máximo as estruturasexistentes na rede escolar: cantinas,bibliotecas, salas de informática. Ouaté implicar a construção de novas va-lências necessárias. Sendo que “ca-beria à autarquia assumir a responsa-bilidade do transporte dos alunos pa-ra a escola pólo”.

A quatro quilómetros da EB1 de Al-deia Velha, fica a EB1 de Carvalho deRei. A escola alberga nove alunos eum professor. Paulo Amor, 36 anos,pôs pela primeira vez os pés naquelaescola há 12 anos. Fez amizades en-tre as gentes da freguesia, ficou a co-nhecer bem o meio e gostou. Por is-so, este ano lectivo decidiu concorrerà mesma escola onde iniciou a car-reira. E talvez concorra de novo. “Aconstante mudança de professor nãoé benéfica para estes alunos e gerauma certa desconfiança entre ospais”, sustenta. Mas esta é apenasuma das dificuldades que enfrentauma escola rural. A maior delas, se-gundo Paulo Amor, é o isolamento.

“Os lugares onde as famílias vivemsão distantes uns dos outros, por is-so, a convivência entre os miúdos faz-se essencialmente na escola”, diz. Umfacto que dá uma importância acres-

cida ao espaço escolar. Não apenascomo lugar de aprendizagem mas deconvívio. Até porque, analisa o pro-fessor, “há miúdos que são os únicosnas aldeias onde moram e as suas vi-vências acontecem entre pessoasmais velhas que não descem ao seumundo.”

Fazer com que as populaçõesaceitem o encerramento da escola éoutro problema que se coloca às au-tarquias. “Quando uma freguesia sótem como equipamentos públicos aescola e a igreja é óbvio que não acei-ta que lhes ‘tirem’ um deles”, explicao vereador. E depois há também aquestão: como agrupar?

Para Jorge Pinto, o ideal seria quea resposta a esta questão pudesseser apoiada na realização de umaanálise sociológica e demográficadas freguesias com mais tendênciapara a desertificação. No futuro, ad-mite o vereador, uma reorganizaçãoda rede escolar que tivesse em con-ta o encerramento de escolas comum número baixo de alunos, poderiapassar pela eventual construção deuma escola que englobasse o 1º, 2ºe 3º ciclos. Um caminho já apontadopela nova proposta de Lei de Basesda Educação.

Andreia Lobo

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Page 25: Nº 131, Fevereiro 2004

25a páginada educaçãofevereiro 2004

reportagem

DISTRITO EB1 EB1< 10 alunos EB1 Total% < 10 alunos

Aveiro 67 575 11,7%Beja 53 133 39,8%Braga 68 490 13,9%Bragança 242 344 70,3%Castelo Branco 70 191 36,6%Coimbra 99 452 21,3%Évora 23 108 21,3%Faro 24 205 11,7%Guarda 207 355 58,3%Leiria 90 475 18,9%Lisboa 59 606 9,7%Portalegre 23 69 33,3%Porto 28 695 4,0%Santarém 101 450 22,4%Setúbal 31 218 14,2%Viana do Castelo 85 293 29,0%Vila Real 310 541 57,3%Viseu 285 747 38,2%Total Geral 1865 6947 26,8%

Fonte: Recenseamento Escolar Anual 2003/2004 | Departamento de Avaliação Prospectiva e Planeamento, Ministério da Educação

Andreia Lobo

© isto é

© isto é

No Inverno, o chão da Escola

da Aldeia Velha é frio.

Mesmo quando ardem cavacas

na salamandra da escola. A aldeia

também é fria: há dias em que

amanhece gelada e até dias

de neve. Neste cenário, comprar

pantufas para oferecer aos alunos

é um gesto de ternura que não cabe

no magro orçamento daquele

“estabelecimento de ensino”.

Sandra Pereira, professora, 24

anos, calçou de afectos os quatro

alunos da escola onde está

provisoriamente colocada. É prova,

inesquecível, de elevada inteligência

afectiva. As pantufas que os alunos

agora usam não dispensam

a lenha para o aquecimento.

Nem dessacralizam o sítio – apenas

o tornam mais caloroso.

João Rita

Um sítiocaloroso

Escolas públicas do 1º ciclo do Ensino Básico com menos de 10 alunos

No distrito de Bragança, 70% das escolas de 1º ciclo do Ensino Básico têm menos de dez alunos. O que faz com que

esta região seja a que mais sofre com a desertificação escolar que tem atingido o interior do país nos últimos anos.

Na escala seguem-se os distritos da Guarda (58%) e de Vila Real (57%).

Do total do parque escolar nacional do 1º ciclo do Ensino Básico, 26% das escolas têm menos de 10 alunos.

Page 26: Nº 131, Fevereiro 2004

26a páginada educaçãofevereiro 2004

olhares de fora

Geração do desenrasca

Desemprego a quanto obrigas

Reconhecer o “ Amor de Jesus Cristo “ ou

enumerar os “valores do casamento” são,

além da aprendizagem das tradicionais com-

petências de leitura e de escrita, alguns dos

conteúdos que passarão a integrar os pro-

gramas curriculares das escolas públicas e

particulares espanholas já no próximo ano.

“Não pode existir uma formação integral

– e, por isso, uma educação de qualidade

- se todas as capacidades inerentes ao ser

humano, incluindo as de carácter espiri-

tual, não sejam desenvolvidas”, assegura

o preâmbulo do programa da disciplina de

Religião e Moral, que passa a ser obriga-

tória nas escolas do país vizinho.

“O aluno irá descobrir (a sua capacidade

espiritual) na linguagem da Bíblia, nos mo-

delos cristãos e na presença de Jesus Cris-

to”, prossegue o preâmbulo, que garante a

primazia do catolicismo sobre as restantes

confissões religiosas. Além disso, nota des-

ta disciplina passará a contar em pé de

igualdade com as restantes para a passa-

gem dos alunos e para a média de entrada

na universidade, de acordo com a propos-

ta de lei do governo de José Maria Aznar,

que detalha os objectivos, conteúdos e cri-

térios de avaliação dos cursos de catequis-

mo, assegurados por pessoal escolhido pe-

la igreja e pago pelo Estado.

Em alternativa a esta disciplina existirá

uma outra intitulada História das Religiões,

ensinada por professores de História e de

Filosofia, na qual serão abordadas as três

religiões monoteístas e temas cruzados de

política e religião.

Os partidos de esquerda já manifesta-

ram a sua oposição a esta proposta, com

os socialistas a afirmarem uma “clara re-

jeição” ao ensino religioso obrigatório, que

consideram “inconstitucional” na medida

em que a constituição de 1978 estipula,

nomeadamente, que nenhuma confissão

tem o carácter de religião de Estado.

Por seu lado, a Confederação espanho-

la das associações de pais (Ceapa) apre-

sentou uma queixa formal no Supremo Tri-

bunal por considerar que esta medida “vio-

la os direitos de igualdade e os princípios

de neutralidade e de separação da Igreja

e do Estado".

Fonte: AFP

"Amor de Jesus" e "valores do casamento" nos currículos espanhóis

solta

Tirou o curso de Línguas e LiteraturasModernas, variante Estudos Portugue-ses, na Faculdade de Letras da Uni-versidade do Porto. Mas nunca quis“dar aulas”. Terminado o ano de está-gio, em finais de 2001, Ana Saraiva, 25anos, viu confirmada a sua “falta de vo-cação” para a docência. “Como nãopodia recuar no tempo”, decidiu enve-redar por um caminho “diferente”. Umque lhe permitisse ainda assim “apro-veitar” a licenciatura que tinha. A opor-tunidade de obter outra formação che-gou através do gabinete de saídas pro-fissionais da sua faculdade.

Durante seis meses Ana fez um cur-so de Inserção e Formação Profissio-nal de Jovens que formava assisten-tes administrativos para pequenas emédias empresas. No final, o Institutode Emprego e Formação Profissionalarranjava-lhe um estágio profissionalde meio ano numa cadeia de restau-ração. A sua função consistia em fa-zer a gestão de stocks e tratar do ex-pediente geral de escritório. Apesar deser uma área bem distinta daquela emque se tinha licenciado, Ana sentia-sehabilitada mas não gostava do que fa-zia. O trabalho ficava aquém das suasexpectativas. Além disso começarama surgir alguns problemas.

“Eu fazia o trabalho que me cabiamuito depressa, e claro, depois fica-va sem nada para fazer”, recorda Ana.Este “excesso” de produtividade aca-bou por se virar contra ela. Criou “atri-tos” entre ela e as suas duas colegas,cujo ritmo era mais “lento”. E fez o pa-trão perceber que não precisava decontratar Ana para conseguir dar res-posta ao volume de trabalho da em-presa. Bastava exigir mais trabalho àsduas funcionárias já contratadas.

Com o estágio profissional termi-nado e sem ter conseguido lugar naempresa, Ana voltou quase à estacazero: “Saí com uma mais valia, a deter aprendido muitas coisas de infor-mática e de técnicas administrativas”.

Os novos conhecimentos permiti-ram-lhe arranjar um emprego em part-time no escritório de um advogado.

PROTAGONISTASAndreia Lobo

© isto é

Ela ouve dizer que “a vida está má para os jovens”. Mas desconfia que poucos saberão quanto. Expectativas de emprego, goradas após a conclusãoda licenciatura. Formação de cinco anos reciclada em cursos do “centro de emprego”. Estágios profissionais, ou pior, não remunerados.

Empregos passageiros. A “estória” de Ana Saraiva, 25 anos, é apenas uma entre as muitas que dão corpo à apregoada “vida difícil” da sua geração.

Ana iria substituir uma secretária cu-ja gravidez atirou para a baixa. MasAna ainda não estava satisfeita. Tinhavontade de trabalhar em algo que a fi-zesse pensar, ligado às humanidadese aos livros. Com alguma “estabilida-de” e uns “dinheiros” no bolso, Anadecidiu investir numa pós-graduaçãoem Ciências Documentais variante bi-bliotecas e centros de documenta-ção, na Universidade Portucalense.Tinha decorrido um ano sobre a con-clusão da sua licenciatura.

No escritório, Ana passava pro-cessos a computador, atendia o tele-fone e fazia de professora. Como o ad-vogado era avesso à Internet e aoEmail, Ana teve de o ensinar a usar asnovas tecnologias. “Ensinei-lhe tudo,‘tintin por tintin’, com ele colado aomeu ombro de bloco na mão a tirar

apontamentos. É obra não é?”, gra-ceja. Entretanto, a licença de parto dasecretária acaba e o emprego de Anatambém. Desempregada, decide-sepelo voluntariado numa InstituiçãoParticular de Solidariedade Social.Começa a inventariar o espólio da ins-tituição, faz uma base de dados eaproveita parte do que faz para apre-sentar nos “trabalhos” pedidos napós-graduação.

Como o voluntariado não lhe traziaa “subsistência”, Ana continua à pro-cura de emprego. Passa por uma em-presa de telemarketing ligada ao turis-mo. Mas não aguenta. Os 50 telefone-mas das 9h30 às 14h e a pressão a queé sujeita para “vender” acabam por le-var a melhor. Surge uma outra oportu-nidade. Um novo emprego como ad-ministrativa, desta vez numa empresa

ligada ao sector do têxtil infantil. As coi-sas, porém, não lhe correm bem. O pa-trão, confessa Ana, era “insuportável”:“um daqueles sujeitos sem formaçãoque gostam de humilhar os licenciadose se sentem valorizados por os veremno desemprego”, atira.

Enquanto o seu trabalho consistiaapenas na gestão de stocks de enco-mendas e no atendimento aos clien-tes Ana foi ficando. As coisas piora-ram quando o patrão entendeu queAna devia também ser funcionária delimpeza e encarregar-se da lavagemdo armazém onde eram guardados oscaixotes das encomendas. Ana recu-sou-se e o ambiente ficou de “cortarà faca”. Depois de “aturar” alguma“má educação”, Ana acabou por co-locar um ponto final na história. Estádesempregada.

Page 27: Nº 131, Fevereiro 2004

es una trampa; significa que ya se haoptado políticamente. Pero a favor delstatu quo. Todo el mundo conoce lacínica expresión de Franco a un con-fidente: "Haga usted como yo: no semeta en política".

Hay que meterse en política por-que tenemos la obligación de ser ciu-dadanos. (O ciudadanas. Elena Si-món acaba de publicar un trabajoque tiene un signifi-cativo título: ¿Sabíausted que la mitadde alumnos son ciu-dadanas?). Tomarpartido, elegir la hu-manidad, luchar porla dignidad supone o exige tener encuenta los siguientes presupuestosconcatenados.

— El ser humano se distingue delos demás seres porque tiene capaci-dad de elegir. El ser humano actúa.Puede hacerlo de una manera o deotra, pero no puede dejar de actuar.Los animales están programados porsus instintos, por su genética. No go-zan de libertad.

— ¿Cómo saber si un acto ha sidointencionado? En la medida en que suagente es capaz de responder a las pre-guntas de "para qué" y "por qué" lo ha-ce. La pregunta de "para qué" se refie-re a la intención del sujeto y la de "porqué" se refiere al motivo o causa que

ha determinado la conducta. La res-puesta a la pregunta "por qué" está si-tuada en cinco grandes núcleos: nece-sidades, deleites, compromisos, pro-yectos y experimentos.

— Como seres humanos estamosen relación con otros. Convivimos conellos. Dice Victoria Camps: "Vivir esconvivir. Y convivir es un arte, al me-nos para los humanos. Si nos guiáse-

mos sólo por nues-tros instintos, comolos animales, si es-tuviésemos como el-los programados através de nuestrosgenes, la conviven-

cia entre nosotros sería infinitamentemás fácil, sería más o menos auto-mática".

— Somos responsables de nues-tra historia. Es decir que no somos fru-to del fatalismo o del azar. Podemossalir de un puerto, pero somos capa-ces de hacer un proyecto de viaje.Puede haber tormentas, pero la ca-pacidad de guiar el barco es nuestra.

— Como seres humanos somosdepositarios de los mismos derechos.Hay personas diferentes, pero no ca-tegorías diferentes de personas. DiceSavater": "En un estado democráticoexiste el derecho a la diferencia, no ladiferencia de derechos".

— No todo en la sociedad es acep-

table. Hay cosas buenas y malas. Hayque saber distinguirlas. Por otra parte,no hay una cultura superior a otra enel sentido de que una de ellas no pue-de aprender de las otras, pero unasson democráticas y otras no. Es decirque no todo es igual. Es malo el fana-tismo, pero también el relativismo.

— Nada humano nos es ajeno. Poreso hemos de tener conciencia ycompromiso con quienes padecenmiseria, e ignorancia. La compasiónhacia quienes sufren opresión, injus-ticia, maltrato, desigualdad... es la ba-se de la ciudadanía.

— La educación cívica es el eje delos aprendizajes democráticos. Y en-tiendo por educación no el llenar la ca-beza de datos, no la adquisición de ti-tulaciones sino la capacidad de pensa-miento, de respeto, de compromiso yde convivencia. Lo dice con su habitualclarividencia Fernando Savater en suúltimo libro "El valor de elegir": "Pode-mos compartir la desazón de Hamlet:¿por dónde empezar la revolución tandifícil pero necesaria? Pues bien, yo ele-giría comenzar por la educación".

Hay que analizar la naturaleza de lacerca. Hay que participar con todoslos demás ciudadanos y ciudadanasen el modo de saltarla o de acabar conella. No para que uno sólo pueda sa-lir sino para que todos podamos vivirjusta y libremente.

27a páginada educaçãofevereiro 2004

olhares de fora

solta

© isto é

Cientistas australianos descobriram que o ví-

rus de uma simples constipação pode curar

o melanoma, uma variante grave do cancro

de pele, anunciou recentemente a equipa da

Universidade de Newcastle, na Austrália res-

ponsável pelo estudo. "Descobrimos que as

células do melanoma podem ser destruídas

ao serem infectadas com o vírus de uma

constipação comum", explicou o professor

Darren Shafren, chefe da investigação, cujos

resultados foram publicados na edição de

Janeiro da revista da Associação Norte-

Americana de Pesquisa sobre o Cancro.

"Os resultados obtidos com células hu-

manas e em testes com animais têm sido

muito positivos. Se conseguirmos chegar

a resultados semelhantes em testes com

seres humanos, um tratamento poderá ser

disponibilizado no prazo de um ou dois

anos", informou Shafren.

O tratamento, que em princípio será tes-

tado numa primeira fase em doentes em

estado terminal, poderia estar disponível

num prazo mais curto, mas as autoriza-

ções necessárias para a distribuição de um

novo medicamento impedem que esse

prazo seja diminuído.

O processo consiste em injectar o vírus

da constipação no local em que se en-

contra o melanoma. Ao desenvolver-se, o

vírus destrói as células cancerosas. Em

poucas semanas, o tamanho do melano-

ma vai diminuindo até desaparecer. "De-

pois, numa fase secundária, esperamos

que o vírus circule no corpo para localizar

e destruir outros possíveis melanomas que

não puderam ser detectados anteriormen-

te", refere aquele cientista.

A descoberta representa uma nova es-

perança para a Austrália, país no qual a in-

cidência de cancro de pele é particular-

mente alta e onde a doença causa uma mé-

dia de mil mortes por ano.

Fonte: AFP

Vírus da constipação pode curar o cancro da pele

Ciudadanía

Un león fue capturado y encerrado enun zoo, donde se encontró con otrosleones que llevaban allí muchos años.El león no tardó en familiarizarse conlas actividades sociales de los res-tantes leones, los cuales estaban aso-ciados en distintos grupos. Un grupoera el de los socializantes; otro el delmundo del espectáculo; incluso habíaun grupo cultural, cuyo objetivo erapreservar las costumbres, la tradicióny la época en la que los leones eran li-bres; había también grupos religiosos,que solían reunirse para entonar can-ciones acerca de una futura selva enla que no habría vallas. Y había final-mente revolucionarios que se dedica-ban a conspirar contra sus captores.Mientras lo observaba todo, el reciénllegado reparó en la presencia de unleón que parecía dormido, un solitariono perteneciente a ningún grupo. Alreparar en la presencia del novato, elveterano león le dijo:

— Ten cuidado. Esos pobres locosse ocupan de todo menos de lo esen-cial: Estudiar la naturaleza de la cerca.

Hay muchas personas que se ma-nifiestan "apolíticas". Hacen esta de-claración de forma diversa, pero igual-mente clara y explícita: "Yo no quierosaber nada de política", "yo no soy po-lítico", "a mí la política no me intere-sa", "yo no entiendo nada de políti-ca"... Estas manifestaciones suelencompletarse con otras que descalifi-can a todos los que se dedican a ellao dicen estar interesados en su natu-raleza, funcionamiento y consecuen-cias: "Todos son iguales", "unos robanmás y otros menos, pero todos roban","son todos unos sinvergüenzas"...

No estoy de acuerdo con quienesdeclaran estar al margen de la políti-ca. Una cosa es pertenecer a un par-tido político y otra tomar partido enpolítica. Creo que, como ciudadanos,no tenemos la obligación de perte-nencia a un partido, pero sí la de par-ticipación en la vida pública. La obli-gación de pensar, dialogar, participary decidir. La obligación de estudiar lanaturaleza de la cerca. Y, consecuen-temente, de saltarla o derribarla paraque todos podamos vivir en libertad.Creo que no es posible vivir de espal-das a la política. Porque esa postura

EDUCAÇÃO e cidadaniaMiguel Ángel Santos Guerra Catedrático de Didáctica

y Organización Escolar

de la Universidad

de Málaga, Espanha

ELENA SIMÓN acaba de publicar un trabajo que tiene

un significativo título: ¿Sabía ustedque la mitad de alumnos

son ciudadanas?

No estoy de acuerdo con quienes declaran estar

al margen de la política. Una cosaes pertenecer a un partido político

y otra tomar partido en política.

Page 28: Nº 131, Fevereiro 2004

28a páginada educaçãofevereiro 2004

olhares de fora

Os espaços abertos de lazer e recreação na cidade

Algumas (novas) práticas e vocações territoriais

A mulher chinesa dá actualmente muito

mais importância à conta bancária do seu

potencial marido do que ao nível de instru-

ção, segundo um estudo citado recente-

mente pela imprensa chinesa.

Em 1985, 73% das mulheres que pro-

curavam um companheiro através de um

anúncio queriam casar-se com um homem

que tivesse diploma universitário. Em

2000, de acordo com o estudo realizado

por psicólogos da Universidade de Pequim

a partir de anúncios publicados por soltei-

ros durante dois anos, esse número bai-

xou para 29%. Assim, nesse ano 65% das

mulheres (contra 42% em 1985) procura-

vam um companheiro que já tivesse um

bom rendimento e uma perspectiva de car-

reira atraente.

Esta mudança de atitude das mulheres

demonstra que um nível de educação su-

perior não garante um bom salário nem

uma carreira interessante na China, afir-

mam os autores do estudo, citado pela

agência oficial Nova China na sua página

da internet.

Fonte: AFP

Mulher chinesa procura homem em boa posição económica... se for possível

solta

O lazer e a recreação são, na cidade,

uma fonte de forte representação pes-

soal, cultural e social, com um peso

significativo nas variáveis que carac-

terizam a denominada melhoria da

qualidade de vida.

No que respeita à qualidade de vi-

da, a cidade é criticada por não a ofe-

recer a quantos nela habitam. Ela é

também responsabilizada pelo stres-

se dos cidadãos, ou por todo um con-

junto de males e deteriorações que

assolam a vida das pessoas e dos gru-

pos e que se tem acentuado nas últi-

mas décadas.

Hoje, teoricamente, todos defen-

dem e almejam uma melhor qualida-

de urbana, independentemente da

sua condição social ou da sua maior

ou menor inserção e participação na

vida da cidade Contudo, por detrás

desta inocência e neutralidade, deste

valor supostamente humano e univer-

sal, encontram-se posições, e, sobre-

tudo, interesses bastante divergen-

tes, de que o espaço público é um me-

ro exemplo.

Desde o início dos anos 80 do sé-

culo passado que o valor do espaço

público se evidencia cada vez mais na

cidade como um dos principais vec-

tores em matéria de ordenamento ur-

bano e de primeiríssima importância

para as actividades de tempo livre dos

cidadãos.

Comparando as políticas urbanas

discutidas na última década, com as

caracterizadas pelos modelos de-

senvolvidos em anteriores decénios,

é de registar, por parte de algumas

profissões com intervenção na cida-

de, uma maior preocupação com os

valores culturais e os hábitos de vida

das pessoas.

As palavras de ordem são agora

para, reconhecendo as necessida-

des, os gostos e as aspirações dos

utilizadores, renovar e revitalizar os

espaços públicos e o edificado.

É neste sentido que, no quadro de

encontros de académicos e de pro-

fissionais, bem como no âmbito de

estudos das mais diversas discipli-

nas, têm aparecido conclusões que

apontam para a necessidade de polí-

ticas de renovação, revitalização e

reordenamento dos espaços urba-

nos. Trata-se de equacionar outras

formas de conceber e produzir a ci-

dade, nas quais os espaços públicos

abertos de lazer e recreação são uma

das vertentes de maior incidência a ter

em conta nestas tomadas de decisão.

O regresso ao interesse pelo espa-

ço público, em especial o destinado

ao lazer, aparece, essencialmente,

com o objectivo da qualificação do

quadro de vida das populações urba-

nas e enquadra-se nas preocupações

mais globais dos estilos e da qualida-

de de vida, com reflexos no bem es-

tar mais geral das sociedades. Con-

cepções e práticas, viradas para a

produção e o desenvolvimento des-

tes espaços, aparecem hoje, um pou-

co por todo o lado, valorizados e re-

conhecidos.

Os espaços públicos abertos para

além de continuarem a ser as encru-

zilhadas da circulação, ou as meras

vitrines da cidade, são também, e, ca-

da vez mais, os lugares de recreação

permanente, e de comunicação. Ne-

les, os habitantes reconhecem-se

produzindo territorialidade, tornando-

os seus, enquanto lugares represen-

tativos das suas práticas culturais e

sociais.

Qual o papel que cabem aos es-

paços de lazer e de recreação na me-

lhoria deste quadro de vida?

Quais são as orientações e os mé-

todos que os intervenientes na pro-

dução e organização dos espaços

públicos de lazer e recreação estão a

empreender para se adaptarem à

conjuntura actual e às perspectivas

futuras?

Como estão as cidades a organi-

zar-se, territorialmente, para dar res-

posta às ambições e expectativas dos

cidadãos?

Que representações e práticas ca-

racterizam os comportamentos das

pessoas em termos do usufruto dos

espaços de lazer?

As questões aqui levantadas fazem

parte de algumas das premissas que

se colocam no campo da concepção,

do ordenamento ou da participação

relativas ao espaço público da cida-

de.

Mas voltemos ao assunto central.

O das (novas) vocações territoriais.

É com o surgimento de novas vo-

cações espaciais para a cidade que,

em parte, se altera a maneira de a

habitar. A acompanhar estas voca-

ções emergem, no campo dos es-

paços abertos de lazer e recreação,

novas práticas activas nos territórios

urbanos.

Vejamos assim qual o significado

que, nos dias de hoje, têm por exem-

plo as Actividades Físicas e Despor-

tivas nos espaços abertos da cidade.

Todos os indicadores sublinham

que as actividades físicas e desporti-

vas de carácter recreativo se tornaram

um elemento maior, ao conquistarem

o seu lugar nos espaços urbanos.

Neles, milhares de equipamentos

foram edificados marcando hoje a

paisagem urbana; neles, dezenas de

milhares de pessoas se tornaram pra-

ticantes. Uns, os equipamentos, te-

cem uma verdadeira malha urbana, e

outras, as pessoas, exercem nela uma

função cultural, uma certa maneira de

expressão e uma não menos e evi-

dente forma de representação; aí se-

mearam uma dimensão mais huma-

na, mais lúdica, mais colorida e mais

festiva.

A cidade e os seus espaços aber-

tos são os palcos da diversidade pa-

ra os praticantes procurarem os luga-

res que melhor se adaptam à evolu-

ção das suas necessidades e dos

seus estilos de vida. Eles identificam-

se com o grau acentuado das mobili-

dades quotidianas ou de fim-de-se-

mana. Esta identificação assenta, por

seu lado, na procura de práticas mais

livres e autónomas, ligadas ao que se

tem vindo a chamar de «práticas de

deslize» e que se transformaram nu-

ma verdadeira contra-cultura despor-

tiva, isto é, «numa cultura desportiva

alternativa».

Mas onde se passa tudo isto?

Onde se encontram estes lugares

de prática na cidade?

Acima de tudo nos espaços públi-

cos abertos - nos chamados espaços

outdoor, com ou sem natureza.

Neles, as actividades físicas e des-

portivas vão, de uma forma não con-

vencional, tomando conta dos luga-

res. Estes englobam os espaços clás-

sicos "urbanos" (parques, praças,

ruas,...), os espaços para peões e ci-

cláveis (alas, pistas, frinchas,...), es-

paços de descanso (frentes de água,

jardins,...), espaços naturais de lazer

(trilhos, bosques, parques,...) e os es-

paços ditos desportivos (áreas de jo-

go, ou polidesportivos exteriores).

Não sendo, todavia, este um fenó-

meno totalmente novo, o que o faz tor-

nar mais evidente é a forma como se

desenvolve o processo e o tipo de in-

vestimento que nele é feito pelas pes-

soas.

Ao fim e ao cabo, do que também

se trata é de um conjunto de espaços

na cidade que se inscrevem num pro-

jecto individual, deixando a cada um

as possibilidades de prática, caracte-

rizadas por serem pouco constrange-

doras e facilmente adaptadas aos de-

sejos de cada interveniente.

É neste quadro de princípios e de

ideias que muitas práticas têm ga-

nho uma territorialidade concreta na

cidade. Trata-se de territórios com

especificidades que encerram em si

dimensões de tipo social, geográfi-

co e simbólico e que, de acordo com

a leitura política e jurídica, colocam

questões de organização e de en-

quadramento.

Podemos aqui evocar e multiplicar

os exemplos. No entanto, situemo-

nos em dois que nos parecem terem

tido uma progressão extremamente

rápida nas grandes cidades europeias

e norte-americanas. Eles, só por si, re-

presentam uma boa explicitação do

que queremos evidenciar.

Um deles é o patim em linha. O ou-

tro, a bicicleta.

(Continua no próximo número)

SOCIEDADEe território

António Mendes Lopes

Instituto Politécnico

de Setúbal

Page 29: Nº 131, Fevereiro 2004

29a páginada educaçãofevereiro 2004

olhares de fora

solta

Durante o Império, os assuntos liga-dos à educação estavam a cargo doMinistério dos Negócios do Império,"que na República recebeu o nome deMinistério dos Negócios do Interior. Apartir de 1891, passaram a ser trata-dos pelo Ministério da Justiça e Ne-gócios Interiores, que absorveu umatímida Secretaria de Estado dos Ne-gócios da Instrução Pública, Correiose Telégrafos, criada pelo governo pro-visório de Deodoro da Fonseca. A Re-volução de 30, afinal, criou o Ministé-rio da Educação e Saúde Pública.

Afinal a educação era arrolada, ex-plicitamente, entre os problemas daalçada do governo federal. Esta liga-ção com a saúde que de certa ma-neira faz sentido, uma vez que são osdois maiores problemas do país ain-da hoje, perdurou até 1953, no se-gundo governo Vargas, quando secriou um ministério para a saúde e ou-tro para a educação e cultura.

"Dobradinha" interessante que, nomeu entender, não deveria ter sido des-feita. Porque não posso ver educaçãosem cultura ou vice-versa. A não ser

que se considere educação apenas atransmissão de conhecimentos sedi-mentados. A grande experiência edu-cacional feita no Rio de Janeiro, a dosCieps, abortada como quase todas asboas iniciativas de um governo suce-dido por outro de par-tido oponente, tinhaesta visão. Os anima-dores culturais fa-ziam parte integrantedo corpo docente. Ea biblioteca era um destaque na arqui-tetura dos prédios especialmente pro-jetados para abrigar crianças em tem-po integral.

Trata-se no Brasil a cultura como acereja do bolo da educação, ou a florna árvore frondosa do saber. A provadisso é que o Ministério da Cultura es-tá aí, com um ministro que é um char-me, um luxo, mas que não tem dinhei-ro para tocar projeto algum. A grandeluta do momento, iniciada no Rio de Ja-neiro por iniciativa do vereador EliomarCoelho, é que este ministério tenha 1%do orçamento federal. Um por cento! Emuita gente acha que é utopia, que

nunca se conseguirá tanto. Tanto?Mesmo assim, acho que era melhor

quando estavam juntas, em um só mi-nistério, a educação e a cultura. Comoaceitar, por exemplo, uma escola semprofessor de música? Foi com esta in-

quietação que o Con-selho Estadual deCultura, em 2001, co-meçou a debater aquestão da educa-ção musical e sua

obrigatoriedade nas escolas públicas.O maestro Edino Krieger, membro docolegiado, fez um ante-projeto que en-caminhamos oficialmente à Secretariade Educação. Nada aconteceu. No iní-cio deste ano, o texto, mais detalhado,foi entregue à Secretaria de Cultura.Não sei ainda os rumos que tomou.Não é um projeto ambicioso ou inexe-quível. A ideia é começar devagar, comum município escolhido para pólo. E,aos poucos, ir formando professores eestendendo a obrigação a novas áreas.

Não é nenhuma inovação. Villa-Lo-bos já queria transformar o Brasil emum grande coral, e quase conseguiu.

Pelo menos, durante algum tempo,havia canto orfeônico nas escolas.Acabou. Como desapareceram osanimadores culturais dos Cieps. Éuma canseira este país, onde temosque recomeçar o tempo todo a lutarpor coisas que já tivemos.

Apesar da canseira, sou patriota.Adoro este país absurdo e surdo aosreclamos do povão que continua tor-cendo por ele. Mas um dia quase tivevergonha de ser brasileira. Estava emNova lorque; era tempo de Natal. Fuiassistir a uma apresentação do Mes-sias, de Handel. O maestro, antes decomeçar o espetáculo, pediu à platéiapara se identificar por voz: quem aquié tenor? quem é contralto? quem ésoprano? E por aí foi. Quase todos naplatéia levantaram os braços em al-gum momento. E quase todos canta-ram, fazendo o coro, partitura na mão(haviam trazido de casa!), enquantocantores profissionais entoavam asárias. Eu, muda. Foi deslumbrante.Um espetáculo assim, no Brasil, sódentro de um dos nossos poucos con-servatórios de música. E olhe lá!

Cultura não é flor; é tronco

CULTURA e pedagogiaAna Arruda Callado Jornalista e escritora

ex-Presidente do Conselho

Estadual de Cultura

É UMA CANSEIRA ESTE PAÍS, onde temos que recomeçar o

tempo todo a lutar por coisas quejá tivemos.

Trata-se no Brasil a cultura como a cereja do bolo da educação, ou a flor na árvore frondosa do saber. A prova disso é que o Ministério da Cultura está aí, com um ministro que é um charme, um luxo, mas que não tem dinheiro para tocar projeto algum.

As universidades canadianas estão a en-

frentar um fluxo inesperado de estudantes

estrangeiros que preferem estudar em

Vancouver ou em Toronto do que nos Es-

tados Unidos por causa do reforço das me-

didas de segurança contra o terrorismo im-

postas neste país desde os atentados do

11 de Setembro de 2001.

Os pedidos de inscrição triplicaram em

várias províncias, estimando-se que o nú-

mero de estudantes estrangeiros tenha

crescido em média 15% em relação ao ano

passado.

Muitos justificam a sua escolha por se

mostrarem decepcionados com a política

externa dos Estados Unidos desde a guer-

ra no Iraque, considerando que o país se

tornou hostil para os estrangeiros, em es-

pecial para os muçulmanos, temendo ser

rejeitados ou detidos nas fronteiras.

"Vim para o Canadá porque as pessoas

são mais tolerantes", afirma Talal Al Lamki,

um estudante de física muçulmano, origi-

nário do Oman, que escolheu a Universida-

de de Victoria, capital da província da Co-

lumbia Britânica. Desde os atentados do 11

de Setembro, refere Lamki, "quase nenhum

dos meus colegas foi aos Estados Unidos".

"Não queria estar no país errado, no mo-

mento errado, envolvido num conflito em

relação ao qual não tenho posição", refe-

re por sua vez o estudante de informática

tailandês Pat Gullayanon, da mesma uni-

versidade.

"Os canadianos são mais amáveis",

sustenta por sua vez o turco Necep Tata-

ri, estudante de administração, conside-

rando que "o Canadá é um país melhor pa-

ra viver do que os Estados Unidos".

A maioria dos estudantes estrangeiros

no Canadá são provenientes da França,

dos Estados Unidos e da China. No en-

tanto, cada vez mais estudantes indianos

e de países do Médio Oriente chegam ao

Canadá, segundo Ulrich Scheck, director

de estudos superiores da Universidade de

Queen em Kingston, no Ontario.

"Existem cada vez mais problemas pa-

ra se ser admitido em universidades ame-

ricanas. Os estudantes escolhem outros

países, como o Canadá", explicou, acres-

centando que "alguns reitores nos Estados

Unidos estão a ficar preocupados com es-

ta situação".

Fonte: AFP

Estudantes estrangeiros preferem o Canadá aos Estados Unidos

© isto é

Page 30: Nº 131, Fevereiro 2004

30a páginada educaçãofevereiro 2004

olhares de fora

A morte do avô

"Todos os dias, no Planeta, cer-

ca de 100 000 pessoas morrem

de fome e das consequências

imediatas da fome." (1)

A obra de Jean Ziegler "Os No-

vos Senhores do Mundo" vale a

pena ser lida. Nos agradecimen-

tos o autor refere o Professor

Emir Sader, companheiro de Pa-

blo Gentili, nosso amigo e estu-

dioso das relações escola/socie-

dade, pesquisador do Laborató-

rio de Políticas Públicas da

UERJ, que já por várias vezes co-

laborou na "Página".

Jean Ziegler, num estilo sóbrio,

vai analisando o mundo actual e

refere que um homem com em-

prego precário não é um homem

livre. É importante denunciar es-

tes problemas, porque são pro-

blemas reais. Não basta a exis-

tência de uma democracia for-

mal: se temos medo de exprimir

o nosso pensamento, pois pode-

mos ser condenados ao desem-

prego, não somos, de facto, ho-

mens livres. Para além disso tor-

namo-nos egoístas pelo medo;

em vez de solidários somos cada

vez mais solitários, procurando

resolver os problemas sem os ou-

tros... Na página 86 da obra que

refiro, Ziegler cita Rousseau: "Es-

tão perdidos se esquecerem que

os frutos pertencem a todos e que

a terra não pertence a ninguém".

Abordagens semelhantes encon-

tram-se na "carta ao grande pai

branco" do chefe Seatle, na poe-

sia de Walt Whitman ou nos ver-

sos de Fernando Pessoa (heteró-

nimo Alberto Caeiro). Mas, como

um dia disse Blaise Pascal, "to-

das as boas coisas já foram ditas,

mas não foram feitas."

(1) Jean Ziegler, "Os Novos Senhores

do Mundo e os seus opositores",

Lisboa, Terramar, 2003, p.17.

Solidários ou solitários?

QUOTIDIANOCarlos Mota,

Universidade de

Trás-os-Montes e Alto

Douro, UTAD, Vila Real.

Para Constança, essa rapari-ga de 11 anos, que me fazsentir.

Não é em vão que Alice Millerrecomenda, no seu texto de1999, que a verdade liberta osseres humanos, as pessoas.Mas liberdade para quê? Tal-vez para o caminho do enga-no e da falsa verdade que oadulto tenta transferir aos pe-quenos, por causa do seupróprio temor. Ou, por causada sua própria dor. O adultonem sempre entende o que éa realidade e pretende trans-ferir o seu entendimento, pa-ra fugir da tristeza que certosprocessos da vida lhe cau-sam. A morte é um deles. Es-pecialmente, a morte do paiou da mãe do adulto. Os gran-des ficam presos nos seussentimentos, do amor quetêm e tiveram e vão continuara ter, pelo adulto desapareci-do. Essa dor faz com que dis-farcem o real perante os maisnovos, facto que me faz pen-sar noutra ideia de Alice Mil-ler, a de 1981: “não deves sa-ber que...”. Mas, a verdadeque liberta, não está nos li-vros, está na vida e no decor-rer do nascimento até partir-mos para outro sítio. Qual olugar, quem vamos ver outravez, onde está a pessoa ama-da? E, principalmente, seráque uma criança coloca estapergunta? Nós, adultos, nãotemos resposta perante amorte. Para nós é um senti-mento, uma comoção. Umterramoto nas nossas vidas,como se o chão fugisse denossos pés. É um sentimen-to, mas não apenas de emo-tividade sem definição, é umsentimento de perda. Perdaque tem um nome: o luto dospais. Porque, antes de ser-mos pais, como uma vez re-feri nestas páginas, somos fi-lhos. Em consequência, ama-mos, confiamos, procuramosapoio encontrado no corpo,nas ideias, nas palavras dosnossos pais. Quando emcriança se perde um avô, háum adulto que perde um pai.Bem sabemos que os pais fa-zem tudo por nós: trabalham,

trazem o alimento necessá-rio. O alimento é a guloseimado nosso dia a dia, com a qualos pais nos adoçam a vida,fazendo do nosso quotidianoum prémio difícil para nós deentender, devido a nossa ten-ra idade. Nós, adultos, ao so-frermos uma perda familiar,sofremos toda uma históriade vida transcorrida entresimpatia, louvores, puniçãoou açoites se for preciso.Castigo que, em criança, pa-recem injustos, mas que, jácrescidos, sabemos enten-der como guia qual linha deorientação dos nossos deve-res. Essa história não é pornós percebida, não temosconceitos para entender. Pa-rece-nos natural que os nos-sos adultos andem fora decasa ou nos seus afazeresdomésticos. Afazeres quenos quais colaboramos, ouesquecemos por não saber-mos como se faz, nem per-ceber o tempo usado naconstrução da vida. Era paranós natural o silêncio dos ino-centes, frase que não é mi-nha, mas que uso para defi-nir as conversas nas quaisnós, pequenos, não partici-pamos devido aos pais não

quererem preocupar devido ànossa curta idade. Curta ida-de em palavras, em emo-ções, em entendimento docálculo matemático para or-ganizar esse processo quedenominamos vida. Vida quetranscorre entre mais pes-soas do que apenas as de ca-sa: visitas, parentes, amigos,a aceitação de nós feita poroutros. Esses outros defini-dos pelos adultos para entra-rem ou não em contacto comos mais novos, selecciona-dos num pronto-a-vestir, ànossa medida de entendi-mento, prazer, confiança,harmonias retiradas da vidapara nós crescermos em se-gurança e simpatia. A ausên-cia do pai é a silenciosa op-ção dentro de vida social queo adulto escolhe ou é obriga-do a escolher: uma lição daqual nada sabemos até ao diade sermos nós próprios asentarmo-nos na cadeira quevoa entre tanto ser humanoque devemos saber hierar-quizar para com eles agir ounão. Normalmente, enquantocrescemos, perguntamos setal e qual são os nossos ami-gos; há uma opção desseadulto para nos informar do

que é melhor e o quê o não é.Nem sempre aceitamos asideias e rebelamo-nos contraa autoridade paterna. Autori-dade sabida para aceitar a re-belião ou mandar ou um gri-to ou um violento não, des-ses que fazem chorar e nosretiram a confiança do maisvelho. Mais uma lição que nosensina essa liberdade neces-sária para sermos autóno-mos e conduzir as nossas vi-das sem mágoa ou tristezas,em tempo e altura de sermosnós próprios a escolher o quemais gostamos e desdenhardo que não tem interesse. Li-ção que o nosso adulto maiorsabe ensinar ao retirar da suaprática o que foi a sua própriaforma de lidar com os seus,nos dias da sua infância,quando o processo de vidaera construído de uma outramaneira. Às vezes, sem re-cursos; às vezes, a saber cui-dar do que possui. Lições queesses adultos um dia nos dei-xam ao passarem para umaoutra vida, ensinaram-nos,saibam ou não o que fizeram.Lições que ficam em nós, damesma maneira que eles fi-caram dentro das nossasideias e sentimentos. Se a

© isto é

criação for bem sucedida.Porque, pequena, não há es-cola de pais: temos que a in-ventar. A escola é esse dia adia que decorre do nasci-mento à morte; do berço àcaixa ou ânfora que guarde onosso corpo. A escola, enfim,e a calma que usam os nos-sos adultos para confrontaros dissabores que aconte-cem na História conjunturalque nos coube viver e que ésempre diferente do passadovivido pelos nossos adultos.Quando partem, o nossopranto é o luto pela escolaperdida. A morte, tão natu-ral, é essa parte da vida queé preciso confrontar com se-renidade e sem aflição, se alição quotidiana foi sábia enão escondida em abstrac-ções, deduções, induções,essa teoria da vida que, dizAlice Miller, o adulto prefereescolher para não se com-prometer na afectividade.Não foi por acaso, minha pe-quena, que comecei comteoria: para dizer que a trans-ferência de uma vida a outra,é um reajustamento para asnossas próprias vidas que,estou certo, sabemos fazer àmedida da emotividade dosnossos adultos para con-nosco. A morte do avô pas-sa a ser uma mudança de vi-da que causa tristeza, luto,solidão e silêncio, até a vidaretomar o seu andamento nomesmo sítio, dia e hora daentrada na nova forma de es-tar. A morte é a melhor liçãopassível de dar, se a enten-demos com carinho e acei-tarmos que há dor nas nos-sas alegres vidas. Essa ale-gria fica escondida dentro denós e derramamos lágrimasem silêncio, sem desespero,com a calma e serenidade deuma boa morte de quem vi-veu bem e com amor, passadesta vida a outra, sem nóssabermos. É assim a mortedo avô: a sua derradeiragrande lição de amor e ale-gria no fundamental convívioque tece o nosso futuro. Se-ca o pranto, ouve, entende eaprende. O avô fica conten-te, e os seus também.

DA criançaRaúl Iturra

[email protected]

ISCTE-CEAS

Amnistia Internacional

Membro da National

Child Project

Utrechct, Netherland

Page 31: Nº 131, Fevereiro 2004

31a páginada educaçãofevereiro 2004

olhares de fora

solta

Cantar fortalece o sistema imuni-

tário, segundo revelam estudos

realizados por cientistas da Uni-

versidade de Frankfurt efectua-

dos junto de um grupo coral ama-

dor daquela cidade. Os médicos

fizeram dois exames de conta-

gem de plaquetas nos cantores,

antes e depois de um ensaio de

60 minutos do Requiem de Mo-

zart, constatando que durante a

interpretação as concentrações

de imunoglobulina A (sistema

imunitário do organismo) e de cor-

tisol (hormona que actua contra o

stress) aumentaram considera-

velmente. O teste continuou uma

semana depois, quando os mem-

bros do coral ouviram uma grava-

ção da mesma obra musical mas

não cantaram. As contagens de

plaquetas realizadas antes e de-

pois dessa audição apresentaram

índices normais, sem nenhum va-

lor especialmente elevado.

De acordo com Guenther Bas-

tian, professor do Instituto de Pe-

dagogia Musical da Universida-

de de Frankfurt, que participou

na investigação, as actividades

musicais não só influem nos pro-

cessos fisiológicos do sistema

nervoso, fortalecendo o sistema

imunitário, como também me-

lhoram consideravelmente o âni-

mo dos cantores. As conclusões

deste estudo foram publicadas

na revista especializada Journal

of Behavioral Medicine.

Fonte: AFP

Cantar fortalece o sistema imunitário

Todos temos ideia que as tecnologias vão mudando ao longo dos tempos e que caracterizam as sociedades de uma determinada época influenciando os saberes, os hábitos e as interacções sociais que ficam marcadas por outros tipos de actividades,

utensílios e locais de encontro. E, mesmo que alguns não possam ou não queiram incluir nas suas práticas novos artefactos tecnológicos, a sociedade incumbe-se de os divulgar e mostrar as suas vantagens relativamente aos antigos que, embora não deixem, em muitos casos,

de existir e circular, são revitalizados ou remetidos para outros contextos de utilização.

mos que as calculadoras sãoutensílios que se encontramà “mão de semear”, comoevitar o gesto compulsivo dasua utilização em casos decálculos simples?

Contudo, os desafios nãoacabam aqui. Outras situa-ções que merecem atenção eque podem ser mais gravessão aquelas que advêm douso pouco criterioso da má-quina de calcular. Por exem-plo, utilizar a calculadora pa-ra multiplicar 21 por 25 e nãoquestionar o que aparece noecrã da máquina que pode ser5025 se, em vez de 21, for di-gitado 201, por engano. Co-mo afirma João Pedro daPonte, num documento poli-copiado de Novembro de2003, “O que os alunos deMatemática precisam não éque os proíbam de usar má-quinas de calcular (...) massim que os ensinem a usaradequadamente estes instru-mentos. Se não forem ensi-nados na escola a lidar cor-rectamente com estes pode-rosos meios, vão usá-los namesma, fora da escola. Mui-to provavelmente vão usá-losde modo inadequado, porquenão foram levados a reflectirsobre os problemas que po-dem surgir quando não se to-ma a devida atenção”.

No meu entender, as reco-mendações provenientes deum documento tão anuncia-do como este teriam a obri-gação de ir mais longe. Re-correr a uma recomendaçãoproibitiva é uma solução de-veras acanhada para um as-sunto com a actualidade ecomplexidade como o usodas tecnologias nas aulas deMatemática. Tanto mais quePortugal em matéria de ciên-cia e tecnologia precisa mes-mo de ser entusiasmado.

Termino por agora e, emMarço, os Textos Bissextoscontinuam com Elisa Costa.

Na verdade, generalizar a con-vivência com os poderososmeios tecnológicos da actua-lidade é um assunto comple-xo que deve ser pensado co-mo prioritário na cultura con-temporânea portuguesa. Atecnologia inclui artefactos dediversa natureza, com grausdiferentes de vulgarização eutilização, exigindo alguns de-les níveis consideráveis deabstracção e conhecimento.Contudo, é da familiaridadeglobal de um quotidiano queinclui desde o micro-ondas àInternet, que se define a ac-tualização e o avanço tecno-lógico de um país.

Como diz A. Pacey, no seulivro Meaning in Technology,de 1999, “a prática tecnológi-ca não envolve apenas instru-mentos, competências práti-cas e conhecimentos tecnoló-gicos, mas também envolveuma dimensão política e or-ganizativa e aspectos ’cultu-rais’ relacionados com valorese crenças”. É por isso impor-tante o papel da instituiçãoescolar ao nível da divulgaçãoe do ensino das formas de uti-lização das tecnologias con-temporâneas. Longe vai otempo em que se pensava quedesenvolvimento tecnológicoe literacia eram assuntos nãorelacionados.

Parece pois estranho quenuma altura em que os desa-fios educativos começam aser colocados pela familiari-dade com o ciberespaço seafirme: “desaconselha-se autilização indiscriminada dasmáquinas de calcular nos 1ºe 2º ciclos de escolaridade,dado que limita a aquisiçãodos automatismos de cálcu-lo imprescindíveis à realiza-ção em tempo útil das tarefascognitivas mais complexas”.Mas é exactamente isso quediz o documento “Comissãopara a promoção do Estudoda Matemática e das Ciên-

cias. “Recomendações” nas“Medidas de carácter especí-fico” (pp. 9-10), documento,aliás, não divulgado na pági-na do Ministério da Educa-ção, o que também não dei-xa de ser estranho.

As calculadoras são dosartefactos tecnológicos ac-tuais mais banalizados. Defacto, encontram-se tão vul-garizadas que se vendem cal-culadoras nas lojas de brin-quedos, ao lado de carrinhostelecomandados, barbies epuzzles. Além disso, qualquertelemóvel possui calculado-ras entre as opções que ofe-rece aos utilizadores (e é doconhecimento público quePortugal é um dos países demaior implementação destesaparelhos que as criançasmanipulam desde cedo) e omesmo acontece com oscomputadores. Com istoquero dizer que o referido do-

cumento pretende evitar a uti-lização educativa de um uten-sílio que, praticamente, já to-dos usam no dia-dia-dia.

Por outro lado, como mos-tra um estudo publicado pelaAssociação de Professores deMatemática, em 1998, as cal-culadoras são pouco utiliza-das no 1º ciclo e, consideran-do que é pouco provável queos professores não sejam cri-teriosos nos materiais que uti-lizam nas suas salas de aula,os termos – “utilização indis-criminada” – utilizados no re-ferido documento, constróemuma afirmação de interpreta-ção dúbia, uma vez que não é

Tecnologia e desafios educativos: a calculadora

TEXTOS bissextosDarlinda MoreiraUniversidade Aberta

[email protected]

© isto é

O QUE OS ALUNOS de Matemática precisam não

é que os proíbam de usarmáquinas de calcular (...)mas sim que os ensinem a usar adequadamente

estes instrumentos.

muito claro a que contextos serefere. Acrescente-se aindaque no Relatório Nacional dasProvas de Aferição do EnsinoBásico 4º ano-2000 as classi-ficações mais altas dos alunossão, maioritariamente, nositens relativos ao tema Núme-ros/Cálculo, pelo que, tam-bém não é claro porque é queo principal argumento parajustificar esta medida seja quea calculadora “limita a aquisi-ção dos automatismos de cál-culo”.

Claro que nenhum profes-sor, e muito menos de Mate-mática, quer ver, nem na es-cola nem na sociedade emgeral, alguém recorrer à cal-culadora para, por exemplo,multiplicar um número por 10ou por 100 ou para fazer adi-ções do tipo 52 + 14. Mas es-te é precisamente um dos de-safios que se coloca, isto é,sabendo como todos sabe-

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32a páginada educaçãofevereiro 2004

olhares de fora

Paisagem do (des)envolvimentoSe existe um tema que é discutido em meio a um emaranhado de ambiguidades, este é o do desenvolvimento. Seja por, digamos assim,

sua “raiz moderna”, seja pelas incômodas consequências, não necessariamente modernas, da lógica industrial (desperdício de recursos naturaisnão-renováveis, poluição do meio ambiente, distorções da urbanização, etc.), o desenvolvimento foi posto na berlinda. Isto não tem intimidado,

no entanto, os que professam o credo (neo)liberal a continuarem a sua “pregação teológica”. Roma locuta, causa finita: a autoridade do “laissez-faire, laisser-passer” continua a ordenar que se anexe, se for proveitoso para a produtividade, até as estrelas.

O anatomista alemão Gunther

von Hagens poderá ser submeti-

do a uma investigação judicial por

ter utilizado cadáveres de conde-

nados à morte na China nas suas

polémicas exposições interna-

cionais, informaram as autorida-

des da cidade de Heidelberg, que

investigam as denúncias.

Hagens reconheceu numa en-

trevista à revista Der Spiegel que

a sua equipa de colaboradores

negociou na China a entrega de

647 corpos que deveriam ser

vendidos a universidades ou exi-

bidos na sua exposição. Aquela

publicação fez referência na sua

reportagem ao facto de os cor-

pos terem sido obtidos, em par-

te, de forma ilegal, já que entre os

cadáveres estavam os de dois jo-

vens, entregues em dezembro de

2001, que foram executados

com um tiro na nuca.

A representante do ministério

público de Heidelberg, Elke O'-

Donoghue, disse que solicitou a

colaboração judicial das autori-

dades chinesas para esclarecer

os factos. Ao mesmo tempo emi-

tiu uma ordem de prisão contra

Hagens por usurpação do título

de professor, que não lhe é reco-

nhecido na Alemanha.

Os cadáveres, "plastificados"

para as exposições segundo

uma técnica inventada pelo pró-

prio Hagens, eram provenientes

de duas cadeias, uma para pre-

sos políticos e outra que funcio-

nava como campo de trabalhos

forçados, na cidade chinesa de

Dalian.

Apesar da polémica que habi-

tualmente envolve o trabalho des-

te artista alemão, quase 14 milhões

de pessoas visitaram as suas ex-

posições na Europa e na Ásia.

Fonte: AFP

Anatomista alemão processado por uso de cadáveres em exposições

solta

A crítica à tal visão já tem si-do bastante realçada por for-mulações contemporâneas,e a bem da verdade, deve serdito que ela pode ser ques-tionada mesmo a partir dopróprio pensamento socialclássico. A este respeito, sa-bemos, por exemplo, que adiscussão sobre racionalida-de formal e racionalidadesubstantiva, implica em con-ceber o desenvolvimento emdupla perspectiva: como al-go concernente à evoluçãode um sistema social de pro-dução, à medida que este tor-na-se mais eficaz - aumen-tando a produtividade -, mastambém como algo que ele-va o grau de satisfação dasnecessidades humanas. Eassim, tornando mais estritaa abordagem, enformadacom uma dimensão sócio-histórica, parece que há quese preferir Schumpeter às op-ções que traduzem os pro-blemas económicos em sis-temas de equações diferen-ciais, ou seja, há que se pre-ferir uma focagem que sepreocupa com as mudançasestruturais e os processosque dão especificidade à his-tória social.

Mas, dito isto, no reversoda medalha, como, de modomais específico, se passa aconceber o desenvolvimen-to? Ou seja, feita a crítica àideia convencional, o que en-tão se apresenta? Aqui co-meçamos a entrar no centrode uma problemática.

Já faz tempo que, utilizan-do uma expressão dos dis-cursos do contexto, debatestêm sido empreendidos embusca de um outro desenvol-vimento (another develop-ment). Encontros realizados,documentos escritos. A De-claração de Cocoyoc, o Co-lóquio de Argel, o Relatório deUppsala, as Conferências do

Rio de Janeiro são exemplosde iniciativas que, buscandoo outro desenvolvimento, im-pulsionaram um slogan quehoje volta à moda: pense glo-balmente e actue localmente(think globally and act locally).Desenvolvimento alternativo,ecodesenvolvimento e, nocaso da relação com a edu-cação, ênfase nas relaçõesde sociabilidade (ao invés dena qualificação de recursoshumanos para servir às es-tratégias económicas) – to-das estas foram elaborações

teóricas que emergiram nodecorrer das discussões.

As tantas terminologiascontudo são indicativas dealgo: falta saber o que efecti-vamente define o outro de-senvolvimento. E ainda mais:é preciso precaução com ac-ções que, dizendo-se a estefiliadas, levadas a cabo pordeterminadas agências inter-nacionais, o que fazem é re-produzir e repor as condiçõesque criam os problemas quese quer combater.

Entretanto, apesar das

suas limitações – ou exacta-mente por causa delas -, odiálogo com o outro desen-volvimento, ao invés de ocondenar à partida, deve, pe-lo contrário, estruturar dispo-sitivos que o credenciem co-mo alternativa perante às de-mandas e os desafios decor-rentes dos impasses dacivilização industrial. Nestesentido, não há como nãonos acompanharmos do eco-nomista hindu Amartya Sen,para dizer que o desenvolvi-mento deve ser concebido

como a ampliação da liber-dade em todas as esferas davida – de par, claro, com aampliação da igualdade so-cial. Isto significa realizaruma fusão entre os valoresdos bens culturais, as formasde organizar o quotidiano eos bens materiais. E por en-volver as diversas esferas davida de forma simultânea, éque as respostas aos proble-mas do desenvolvimento de-vem estar enraizadas no co-nhecimento local.

Aliás, tal perspectiva ape-la para que se preste atençãoa experiências que estão agerminar. Formas de coope-rativismo aqui, novos movi-mentos comunitários acolá.Contra estas experiências, aacusação que pode ser lan-çada é de serem isoladas, es-pecíficas, etc. Mas, e daí, qualo problema? Em contraposi-ção à esta acusação, convémrealçar uma lição literária. Is-to é, há que se ter em contaque mais vale aprofundar-sena análise de uma experiên-cia específica, e nela encon-trar a universalidade, do queperder-se em alegorias, empersonagens que não têmsubstância. Tolstói sabia dis-so, e assim não foi por acasoque começou o romance AnaKarenina dizendo que todasas famílias felizes são felizesda mesma maneira, mas quecada família infeliz vive suatristeza de forma única e in-confundível. Começou dizen-do isso e, aprofundando-sena vivência específica da tra-gédia, escreveu um romanceverdadeiramente universal.

Desse modo, portanto,não há razão para o outro de-senvolvimento recusar expe-riências específicas. A suaqualificação geral deve serfundada na singularidade.Deve desenvolver envolven-do todas as esferas da vida.

TECNOLOGIASIvonado Leite

Universidade do Estado

do Rio Grande do Norte,

Brasil

© isto é

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33a páginada educaçãofevereiro 2004

olhares de fora

Escolas rurais e cidadaniaQue compromisso?

A complexificação do mundo, re-sultante do desenvolvimentoeconómico e tecnológico, quepotenciou a descoberta de novosmercados, novas formas de co-municar e consequentemente oencontro de diferentes povos eculturas, conduziu, também, aoaniquilamento das zonas rurais,levando por razões económicas eculturais, a população a emigrar,ou pelo menos a transferir-se pa-ra zonas urbanas onde o empre-go era mais lucrativo, e onde nãohavia que lidar com a rudeza dotrabalho agrícola. Esta partida as-sociada às baixas taxas de nata-lidade, resultou na desertificação,abandono, isolamento e até aoesquecimento a que foram vota-das estas populações.

Mas foi também a conscien-cialização da existência de umapluralidade de contextos, quecontribuiu para a concepção ac-tual de homem, alargando por suavez o conceito de cidadania. A ci-dadania assume, actualmente,não só a qualidade de ser cida-dão, implicando que o homem ac-tue em conformidade com os nor-mativos sociais, senão que sejameles próprios fazedores de umasociedade solidária e em cons-tante construção. (Praia: 2000).

Compreendemos, assim, queo conceito de cidadania rasgouas barreiras do tempo, mas nãofoi impermeável. A sua evoluçãoacompanhou o percurso do ho-mem como actor histórico. Se acidadania diz respeito ao homemno seu encontro com a «cidade»,e tendo o homem construído no-vas formas de «cidade», entãoesta concepção adquire hoje umvalor axiológico diferenciado da-quele que lhe era atribuído emperíodos anteriores.

Este discurso determinou oaparecimento de novas perspec-tivas que possibilitaram ver a es-cola como um espaço que esti-mula a criação de uma consciên-cia crítica, um local de encontro

entre os velhos e os novos sabe-res, o reconhecimento da identi-dade pessoal e local, que favore-ce a integração das pessoas, nu-ma tentativa de construir uma so-ciedade mais solidária.

Este projecto deverá colocar ohomem frente às pluralidadesque interagem na sociedade ac-tual, mas sem perder o sentidoda sua identidade pessoal e cul-tural. E a escola deverá criar con-dições para o desenvolvimentodas capacidades do ser humano

e, num esforço de convivênciademocrática, constituir-se comoum espaço que promova a suarealização como pessoa e comocidadão.

E, no entanto, a escola que co-nhecemos, que faz parte da nos-sa memória de crianças e jovens,resiste e consegue, mesmo hoje,fazer coabitar técnicas novascom técnicas clássicas (Reswe-ber, 1995)

Coexistem assim dois discur-sos: o da necessidade de levar ohomem a construir-se como pes-soa e cidadão do mundo, basea-do em práticas democráticas eassente num acto pedagógicocooperativo, mas que tem sidoconstantemente adiado pelas re-sistências político-económicasque persistem e o discurso daperpetuação resultante desta re-sistência que faz com que o ac-to pedagógico possível seja o datransmissão de saberes alicerça-dos na reprodução de valoresque potenciam o individualismo.

Olhando a carta escolar do dis-trito de Bragança, somos confron-tados com a triste realidade dosnúmeros estatísticos que quantifi-cam crianças, professores, salasde aula, mas não nos mostram arealidade vivênvciada em cada

dia, as aprendizagens desenvolvi-das e realizadas e os sentimentospresentes em cada uma destaspessoas que se vão construindonestes contextos e dos quais re-cebem uma marca inalienável.

A problemática das escolas ru-rais tem escapado à sensibilida-de da nossa sociedade. Talvez,porque “...o meio rural não seconsiga fazer ouvir ...” ou porque“...a situação não é mais do queuma face, particularmente gravo-sa da desvalorização social doensino primário, não raro classifi-cado como o ‘parente pobre dosistema’” (Azevedo, 1995. p.41).

O futuro das escolas do inte-rior do país depende de um olharprofundo e de um posiciona-mento crítico sobre a ideia de in-fância presente na concepção deeducação que defendemos e nomodelo de sociedade que pre-tendemos construir.

Esperamos que não se conti-nue a persistir numa visão ro-mântica e tradicionalista queconserve as escolas com uma,duas ou três crianças. Mas de-sejamos também que a soluçãonão passe por projectos urbanis-tas e tecnocráticos que conside-ram o mundo do betão como osímbolo do progresso, aniquilan-do todas as possibilidades de de-senvolvimento do mundo rural edesenraizando as nossas crian-ças. A solução existe, mas é ne-cessário construí-la num esforçoconjunto de cidadania...

Ignorar ou subestimar as di-mensões locais e culturais do pro-blema adiando a sua resolução,implica aceitar as consequênciasfuturas em termos de cidadaniaque a problemática comporta.

Azevedo, J. (1995). Os nós da rede.

O problema das escolas primárias em

zonas rurais. Porto: Edições Asa

Praia, M. (2001). Educação para a ci-

dadania. Porto: Edições Asa

Resweber, J. (1995). Pedagogias No-

vas. Lisboa: Teorema.

Ficha Técnica

Director e Coordenador editorial José Paulo Serralheiro | EditorJoão Rita | Editor Gráfico Adriano Rangel | Redacção Andreia Loboe Ricardo Costa | Secretariado Lúcia Manadelo | Paginação--Digitalização Ricardo Eirado e Susana Lima | Fotografia JoãoRangel (Editor) | Ana Alvim | Joana Neves.

Rubricas e colaboradores

À LUPA — Ana Maria Braga da Cruz, Jurista, Porto. António Bro-tas, Instituto Superior Técnico, IST, Lisboa. Manuela Coelho, Esco-la Especializada de Ensino Artístico Soares dos Reis, Porto. Pa-tronilha Beatriz Gonçalves e Silva, Universidade Federal de SãoCarlos, Brasil | AFINAL onde está a escola? — Coordenação:Regina Leite Garcia, Colaboração: Grupalfa—pesquisa em alfa-betização das classes populares, Universidade Federal Flumi-nense, Rio de Janeiro, Brasil. | ANDARILHO — Discos: AndreiaLobo, Em Português: Leonel Cosme, investigador, Porto. Livros:Ricardo Costa. O Espírito e a Letra: Serafim Ferreira, escritor ecritico literário. Cinema: Paulo Teixeira de Sousa, Escola Espe-cializada de Ensino Artístico Soares dos Reis, Porto. | APONTA-MENTOS José Ferreira Alves, Universidade do Minho. | CIDADEeducadora — Isabel Baptista, Universidade Católica Portuguesa,Porto e Adalberto Dias de Carvalho, Universidade do Porto | CUL-TURA e pedagogia — Coordenação: Marisa Vorraber Costa, Uni-versidade Federal do Rio Grande do Sul e Universidade Luteranado Brasil | DA CIÊNCIA e da vida — Claudina Rodrigues-Pousa-da, Instituto de Tecnologia Química e Biológica da UniversidadeNova de Lisboa. Francisco Silva, Portugal Telecom. Rui Namora-do Rosa, Universidade de Évora. | DA CRIANÇA — Raúl Iturra,ISCTE Universidade de Lisboa. | DISCURSO Directo — ArianaCosme e Rui Trindade, Universidade do Porto. | DO PRIMÁRIO —José Pacheco, Escola da Ponte, Vila das Aves. | DO SUPERIOR —Adalberto Dias de Carvalho, Universidade do Porto. Alberto Ama-ral, Centro de Investigação de Políticas do Ensino Superior, Uni-versidade do Porto. Ana Maria Seixas, Universidade de Coimbra. António Teodoro, Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnolo-gias, Lisboa. Bártolo Paiva Campos, Universidade do Porto. | E AGORA professor? — José Maria dos Santos Trindade, PedroSilva e Ricardo Vieira, Escola Superior de Educação de Leiria. RuiSantiago, Universidade de Aveiro. Susana Faria, Escola Superiorde Educação de Leiria. | EDUCAÇÃO desportiva — Gustavo Pirese Manuel Sérgio, Universidade Técnica de Lisboa. André Escór-cio, Funchal. | EDUCAÇÃO e Cidadania — Américo Nunes Peres,Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, Chaves. MiguelÁngel Santos Guerra, Universidade de Málaga, Espanha. OtíliaMonteiro Fernandes, Universidade de Trás-os Montes e AltoDouro, Chaves. Xesús R. Jares, Universidade da Corunha, Galiza.Xurjo Torres Santomé, Universidade da Corunha, Galiza. | ÉTICAe Profissão Docente — Adalberto Dias de Carvalho, Universidadedo Porto. Isabel Baptista, Universidade Católica Portuguesa, Porto.José António Caride Gomez, Universidade de Santiago de Com-postela, Galiza. | FORA da escola também se aprende — Coor-denação: Nilda Alves, Universidade do Estado do Rio de JaneiroUERJ, Brasil. Colaboração: Grupo de pesquisa Redes de Conheci-mento em Educação e Comunicação: questão de cidadania | FOR-MAÇÃO e Desempenho — Carlos Cardoso, Escola Superior deEducação de Lisboa. | FORMAÇÃO e Trabalho — Manuel Matos,Universidade do Porto. | IMPASSES e desafíos — João Barroso,Universidade de Lisboa. Pablo Gentili, Universidade do Estado doRio de Janeiro, Brasil. João Teixeira Lopes, Universidade do Porto.José Alberto Correia, Universidade do Porto. Agostinho Santos Silva,Eng. Mecânico CTT. | LUGARES da Educação — Almerindo JanelaAfonso, Licínio C. Lima, Manuel António Ferreira da Silva e MariaEmília Vilarinho, Universidade do Minho. | OBSERVATÓRIO depolíticas educativas — Ana Benavente, deputada Partido So-cialista. 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Olhando a carta escolar do distrito de Bragança, somos confrontados com a triste realidade dos números estatísticos que quantificam crianças, professores, salas de aula,

mas não nos mostram a realidade vivênciada em cada dia, as aprendizagens desenvolvidas e realizadas e os sentimentos presentes em cada uma destas pessoas…

A PROBLEMÁTICA das escolas rurais tem escapado à sensibili-

dade da nossa sociedade.

À FLOR da peleCristina Mesquita PiresEscola Superior

de Educação de Bragança

Page 34: Nº 131, Fevereiro 2004

34a páginada educaçãofevereiro 2004

olhares de fora

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O projecto “Com as línguas e a arte acaminha da cidadania”, que se de-senvolveu ao longo do ano lectivo de2002/2003 em três escolas do Algar-ve, foi distinguido com o Selo Euro-peu para as Iniciativas Inovadoras naÁrea do Ensino/Aprendizagem dasLínguas (2003), um galardão da Co-missão Europeia atribuído, em Portu-gal, pela Agência Nacional dos Pro-gramas Comunitários Sócrates eLeonardo.

O projecto tinha como objectivocentral desenvolver e testar um mé-todo de ensino/aprendizagem de lín-guas estrangeiras, que pretende sereducativo e motivador, ao mesmotempo que procura consolidar e alar-gar os objectivos e o alcance peda-gógico das disciplinas de língua. Ne-le participaram directamente trêsprofessores: Alexandre Dias Pinto(da Escola Secundária José BelchiorViegas), Carlota Dias Pinto (da Es-cola Secundária de Vila Real de San-to António) e Ana Cristina Correia(Escola E.B. 2,3 das Naus – Lagos),tendo esta abordagem didáctica si-do desenvolvida nas aulas de Inglês,de Alemão e de Português (nas au-las regulares e de Apoio para alunosde outras nacionalidades) das refe-ridas escolas. Na medida em que aliteratura e as artes visuais têm umafunção central neste método, cola-borou neste projecto o Centro de Es-tudos Comparatistas da Universida-de de Lisboa.

O que caracteriza esta abordagemdidáctica e o que nela há de inovadorcomeça no conjunto de objectivos pe-dagógicos e didácticos que se propõeatingir e que são, resumidamente:combinar o ensino da língua com aformação pessoal dos alunos, pro-movendo valores humanos, como ajustiça, a solidariedade, a tolerância eo respeito pelo outro; consciencializaros alunos para o exercício da cidada-nia, contribuindo para que se tornemcidadãos participativos e críticos,com uma atitude construtiva na so-ciedade; levar os alunos a conhecer ea reflectir criticamente sobre aspec-

tos e questões do mundo actual bemcomo da cultura e da vivência de ou-tros povos. Esta é, pois, uma propos-ta de como se tratar nas disciplinasde língua as questões da cidadania eo conhecimento de outras culturas,conteúdos que, cada vez mais, devemfazer parte do ensino de um idioma.

A metodologia seguida para al-cançar estes objectivos assenta naabordagem comunicativa, centradano aluno, bem como nas teorias daEducação para a Cidadania e da Edu-cação Intercultural. Articulam-se comestas metodologias o uso da arte aoserviço do (e em articulação com) oensino das línguas. O material artísti-co explorado nas aulas (literatura, re-produções de pinturas e de escultu-ras, fotografia, trechos de músicaerudita, etc.), que terá forçosamentede ser desafiante e motivador, servede base a várias actividades do estu-do e da prática do idioma: um qua-dro, quando comentado, servirá pa-ra praticar a oralidade ou para intro-duzir vocabulário; um texto literáriopara desenvolver a competência daleitura ou apresentar um ponto gra-matical; uma fotografia (artística) pa-ra exercitar os conhecimentos gra-maticais ou como ponto de partidapara a redacção de textos; um ex-certo musical com texto ou um poe-ma lido para uma actividade de com-preensão de enunciados orais.

Como produtos resultantes destainiciativa, organizou-se um livro queexplica a metodologia desenvolvida,uma antologia de poemas sobre ci-dadania (que estão inéditos) e prepa-rou-se uma cassete de áudio com lei-turas de poemas da antologia. Alémdisso, coligiram-se numa disquete (in-titulada “Galeria Virtual”) reproduçõese os endereços electrónicos dasobras de arte.

Uma descrição mais completa doprojecto pode ser encontrada no siteda Escola José Belchior Viegas:www.esec-s-bras-alportel.rcts.pt.Mais informações sobre a iniciativapodem ser solicitadas aos autores doprojecto: [email protected].

“Com as Línguas e a Arte a Caminho da Cidadania”:

Notícia de um projecto didáctico

BASTIDORESAlexandre Dias Pinto

Centro de Estudos

Comparatistas

Universidade de Lisboa

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dossier

ESCOLAS EM MEIO RURAL

“A escola pode esperar, a construção da educação é urgente”

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Tem-se assistido nos últimos dias aoaparecimento de notícias e justifica-ções para o encerramento das escolascom menos de 10 alunos – escolas, emgeral, localizadas em contexto rural –que tendem a difundir a ideia de queuma vez integrados os alunos destasescolas estariam criadas as condiçõespara uma racionalização da rede esco-lar e para que, finalmente, se poderiamcriar as condições para se realizaremas promessas da escolarização.

Neste processo redentor da esco-la e das suas promessas, desqualifi-cam-se as potencialidades educativasdos contextos sociais, nomeadamen-te daqueles que, como os rurais, sãoestruturados por lógicas de proximi-dades e por relações intergeracionaisdensas, desqualifica-se a escola e assuas potencialidades como instânciacapaz de recriar e valorizar vivências,sociabilidades e cognitividades diver-sificadas e contextualmente pertinen-tes, ao mesmo tempo que se difundeuma visão mítica da escola urbanadescontextualizada, que surge, sem-pre, como contraponto simbólico deuma escola degradada e degradante,de uma escola isolada, solitária e tris-te, com défices “materiais e simbóli-cos” que, naturalmente, se degradou,como se as vitimas deste processo dedegradação fossem os eus principaisresponsáveis.

Mitifica-se, assim, uma escola ur-bana dotada de condições materiaise simbólicas que não existe, ao mes-mo tempo que se “naturaliza” o pro-cesso político de degradação mate-rial do processo de escolarização emmeio rural, desresponsabilizando po-líticas educativas que perante a com-plexidade dos desafios deste proces-so de escolarização e a diversidadedos contextos rurais procuram uma

resposta em torno da questão. “E nãoserá possível exterminá-los?”

Compreende-se também que osactuais discursos educativos reto-mem, em parte, alguns dos pressu-postos dos discursos que se desen-volveram durante o Verão perante atragédia (para alguns?) dos incêndiosque, tendo sido, objectos de uma me-diatização intensa sempre que amea-çavam os arredores da cidade, aban-donaram a cena mediática para setransformarem num “fenómeno natu-ral que regressa ciclicamente”.

Na realidade, estes discursos. pa-ra além de acentuarem privilegiada-mente os factores naturais ou culpa-bilizarem incontroladamente os com-portamentos humanos inadequadoscomo estando na origem dos incên-dios, referiam ainda timidamente a ne-cessidade de desenvolverem e apro-fundarem as medidas de reordena-mento florestal e de promoverem a“defesa das paisagens”. Raramentemencionam o combate à desertifica-ção humana das zonas rurais ou a pre-servação e distribuição das sabedo-rias populares que permitem protegera floresta e possibilitam, ao mesmotempo, a afirmação da cidadania da-queles que a habitam.

Com o mesmo ar douto com quese realça a importância destas políti-cas de ordenamento, já se noticiava,hipocritamente, o encerramento dasescolas com menos de 10 alunos co-mo sendo uma imposição da realida-de. Ou seja, com a mesma convicçãoafirma-se a necessidade de comba-ter a desertificação como instrumentode “preservação e de defesa da pai-sagem”, e louva-se as imposições deuma realidade que apela a decisõespolíticas tendentes a reforçar a deser-tificação que se diz querer combater.

De uma forma insidiosa, os discursosdominantes tendem a “naturalizar aideia” de que o denominado factor hu-mano constitui um óbice ao reordena-mento do mundo rural devendo, porisso, ser reduzido ao mínimo impres-cindível para a defesa da paisagem.

Ora, a construção de uma alterna-tiva a uma ideologia que subordina odireito à sociabilidade, à pertença e àfelicidade aos ditames da competiti-vidade económica e à preservação deuma natureza que só miticamente nãoé uma construção sócio-politica, exi-ge que se pense a problemática da es-colarização em meio rural encarando-a como um dispositivo de combate àdesertificação e como possibilidadede construção de acções educativasque por serem permeáveis às cir-cunstâncias locais e à densificaçãodas relações sociais e intergeracio-nais, se afirmam como uma alternati-va a um modelo de educação que areduz a uma escolarização pautada eregulada pelos ditames de uma eco-nomia da competitividade.

Estas alternativas não podem, por-tanto, fazer a economia do reconhe-cimento de que a escolarização emmeio rural, por ser potencialmentepropensa à produção de dinâmicasmais contextualizadas e mais per-meáveis às circunstâncias locais,apela a que o exercício do dever defelicidade seja indissociável com odesenvolvimento de um trabalhoeducativo em torno da escola emmeio rural, particularmente atento àssuas potencialidades transformantes.

O que neste caso está, com efeito,em causa é o reconhecimento de que,em meio rural, as promessas da es-colarização exigiram da parte dosprofissionais da educação a invençãode práticas profissionais que os des-

vinculavam do Estado para os inseri-rem nos contextos locais.

Ou seja, nestes contextos, um tra-balho educativo que procure assegu-rar o cumprimento das promessas daescolarização induz dinâmicas edu-cativas localmente globalizadas quenão se situam no prolongamento daslógicas dominantes na escola, masapelam antes para uma des-escolari-zação da escola, para a sua subordi-nação aos processos de produção decontextos educativos simultanea-mente “localizados” e globalizados.Potencialmente, aí pratica-se a soli-dariedade entre as gerações, as rela-ções inter e intracomunitárias e umagestão sábia das tensões entre a pre-tensa universalidade dos saberes es-colares e o carácter contextualizadodos saberes e das sabedorias locais.

Ao recriar a complexidade da ac-ção educativa e ao construir alterna-tivas aos reducionismos e às arbitra-riedades que marcam a concepçãoque a escola construiu dos mundosque a habitam, esta escola não podeesperar. Deste modo, ela experimen-ta modos de definição dos problemase soluções inovadoras e emancipató-rias que fazem dela um referencial dapossibilidade da construção de umaescola cidadã, de uma escola que nãose limita a formar cidadãos, mas éuma artesã da construção de novascidades e novas cidadanias.

Ao semearem ventos resultantesdo encerramento compulsivo destasescolas, os actuais responsáveis polí-ticos arriscam que as sociedades co-lham tempestades, cuja origem, con-vém, dizê-lo, não está em pretensos“factores naturais”, nem na multiplica-ção de micro- incúrias, nem na agre-gação de um conjunto de comporta-mentos individuais inadequados...

José Alberto CorreiaFaculdade

de Psicologia e de

Ciências da Educação

Universidade do Porto

A PÁGINA retoma no dossier de Fevereiro a questão das escolas em meio rural, tentando procurar novos sentidos para um tema que está longe de se esgotar no encerramento de milhares de escolas por esse país fora. Que consequências podem advir da reorganização da rede escolar em curso para o interior do país? Será esta a melhor forma de apostar no desenvolvimento e reordenamento do território? A tão apregoada

necessidade de “socialização” das crianças e jovens não terá por trás uma motivação de carácter político mais do que pedagógico? Neste número ouvimos Rui Trindade e José Alberto Correia, da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto,

e Rui D’Espiney, do Instituto das Comunidades Educativas. Em Março haverá lugar para depoimentos de autarcas, professores e investigadores que nos trarão mais alguns argumentos para esta discussão que parece estar longe de ser consensual.

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dossier

O encerramento das escolas do 1º Ci-clo do Ensino Básico situadas emmeios rurais continua a acontecer deforma tão acelerada quanto silencio-sa, num processo que se tem vindo adesenvolver ancorado num conjuntode argumentos que são, até agora,objecto de uma aceitação tácita queimporta questionar quer quanto aoseu conteúdo quer quanto às suas im-plicações concretas quer quanto aosriscos de uma tal atitude.

Não me perfilho no número da-queles que acreditam poder travar adesertificação do mundo rural atravésda manutenção no seu seio, e a todoo custo, das escolas que aí ainda exis-tam. Não deixo, no entanto, é de es-tranhar que a reflexão acerca destaproblemática se produza quer acen-tuando a dimensão negativa do papeleducativo dessas escolas quer, con-comitantemente, valorizando o con-tacto com outras crianças, em con-textos educativos melhor apetrecha-dos, como condição educativa incon-tornável que, só por si, permitesuperar todas as contrariedades deuma tal decisão. Não sei porque é quetão fácil afirmar que “as crianças nãodevem estar em escolas com dois outrês alunos” e é tão difícil enunciar osriscos educativos do êxodo diário dedezenas de crianças rumo às escolasdos centros urbanos. Não sei porqueé que só se reafirma esse isolamento,sem se referir e sem se ter em contaa qualidade de algumas experiênciasconcretas que permitiram e têm vin-do a permitir enfrentar esse problema,transformando-o num desafio que im-plicou romper quer com uma aborda-gem monolítica da gestão do tempoe do espaço escolar quer com uma vi-são normativa e normalizadora do ac-to de educar, as quais circunscrevemde forma excessiva tanto a noção de

actor educativo como a de projectode intervenção educativa.

É tempo de sermos capazes de pro-mover uma reflexão mais exigente quenos possibilite pensar em soluçõescredíveis e plurais que não nos confi-nem à inevitabilidade das respostasque não são capazes de romper comas idiossincrasias e os padrões de fun-cionamento administrativo, curricular edidáctico em uso, de forma diversa,nas escolas deste país. Tenho cons-ciência que este é um problema maisde carácter político do que de carác-ter pedagógico, da mesma forma quesei que os tempos que correm não sãomuito dados a utopias e ao desenvol-vimento de projectos inovadores, si-tuação que, contudo, não permite jus-tificar o conformismo em que tende-mos a atolarmo-nos em nome de umpragmatismo que, entre outras coisas,impede qualquer tipo de reflexão acer-ca da problemática em causa.

Só isso é que poderá explicar a au-sência de interpelações acerca dascondições de vida das crianças afas-tadas, a maior parte do dia, das suascomunidades de origem. Refere-se ascondições logísticas que as benefi-ciam (o aquecimento central, a biblio-teca e as salas confortáveis) masquantos se questionam acerca daspossibilidades dessas escolas se re-vivificarem como um espaço socialquer no decurso do tempo escolarpropriamente dito quer no âmbito dasactividades que ocorrem nos seustempos livres? Não se corre o risco deescolarizar este tempo imprescindívelà vida das crianças? Quem asseguraa qualidade dos projectos que acon-tecem neste âmbito? Como é queuma escola organiza tais programas?Quem são seus mentores? O que pen-sam as crianças sobre o assunto? Oque é que garante que as escolas não

sejam entendidas como uma espéciede parques de estacionamento dosalunos que provêm das comunidadesrurais? O que é que garante que crian-ças tão pequenas, antes penalizadaspelo isolamento das suas comunida-des, não sejam penalizadas agora pe-lo seu isolamento face a essas comu-nidades? Não sejam penalizadas,agora e também, pelo excesso de es-cola a que se encontram sujeitas?Porque é que vivemos sem informa-ções acerca da integração destascrianças nos novos agrupamentosescolares? Será que acreditamos quea socialização das crianças resulta deuma equação que se resolve, linear-mente, defendendo-se que basta ocontacto com mais crianças para queo problema da sua socialização deixede constituir um problema?

É tempo de deixarmos de recorrer auma visão tão simplista acerca do pro-cesso de socialização humana parajustificar as medidas que a actual equi-pa ministerial tem vindo a implementarface à problemática das escolas do 1ºCEB localizadas em meios rurais.

A socialização de uma criança é umprocesso mais vasto e complexo, de-pende, sobretudo, da qualidade dasinteracções com o meio físico, sociale simbólico que a rodeia, depende davivência que estabelece com outrascrianças, mas também com os adul-tos e dos espaços de referência ondeesses encontros acontecem. Um en-contro que lhes permita construir-secomo pessoa, um encontro que nãose programa, já que depende das vi-cissitudes da vida e das necessida-des da mesma. Um encontro feito demomentos rituais e canónicos, masque se constrói, igualmente, atravésde momentos fugazes e surpreen-dentes. Um encontro que permita àscrianças construir-se como um ser in-

tegrado numa comunidade, partici-pando assim e também na constru-ção dessa comunidade. Como é queos novos agrupamentos escolares li-dam e gerem com um desafio tãocomplexo e difícil de enfrentar? Comoé que se substituem à vida social au-têntica que as crianças experiencia-vam nas suas comunidades de ori-gem? Constituem, deste ponto de vis-ta, a melhor solução? Constituemsempre a melhor solução? Não po-dem coexistir com outras soluções?Não seria interessante e necessárioque coexistissem com soluções me-nos ortodoxas? Onde é que podemosencontrar uma reflexão explícita so-bre este processo?

Porque é que se visa simplificar,através do enunciado de lugares co-muns e de frases feitas, um processoque está longe de ser um processo li-near? Talvez pelas mesmas razõesporque ainda não assisti, ainda, à rei-vindicação do estabelecimento de umobservatório que nos permitisse a to-dos a obtenção de dados capazes desuscitar uma reflexão que nos condu-zisse a compreender a validade e osentido das decisões tomadas, nesteâmbito, quer pelo poder central querpelo poder autárquico.

Só a aceitação tácita de que a so-lução de retirar as crianças das suasaldeias é sempre a melhor solução éque poderá explicar o silêncio ensur-decedor que se faz sentir sobre estaproblemática. É tempo de questio-narmos tal atitude e de promover o de-bate, conferindo visibilidade às di-mensões mais relevantes dos projec-tos que se encontram em desenvolvi-mento, sejam aqueles que ocorremem Melgaço ou Alfândega da Fé se-jam os outros, de carácter diferente,que acontecem, por exemplo, na es-cola da Ouguela, lá no Alto Alentejo.

Rui TrindadeFaculdade de

Psicologia e de

Ciências da Educação

Universidade do Porto

Fechar as escolas rurais:A socialização como argumento

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Page 37: Nº 131, Fevereiro 2004

37a páginada educaçãofevereiro 2004

dossier©

isto

éEnquanto responsável máximo pe-lo Instituto das Comunidades Edu-cativas, como encara os argumen-tos apresentados pelo Ministérioda Educação para a reorganizaçãoda rede escolar, de que a facetamais visível é o encerramento demilhares de escolas em meio rural?Perante a sua questão começo comum comentário ao facto de me pediruma opinião “enquanto responsávelpelo ICE”. Penso que daqui pode re-sultar algum equívoco: Desde logo aideia de que é só o ICE que está emdesacordo, o que não é verdade.

O propósito de encerrar escolasvem de longe e é defendido expres-samente e intentado sistematica-mente pelos serviços do Ministériodesde que viram nas Escolas BásicasIntegradas o “caminho” (que faltava)para legitimar a concentração em queinvestem. Foram, no entanto, preci-sos 12/15 anos para o impor (e mes-mo assim de forma não totalmenteconseguida). Porquê? O que travouesse processo? O facto de muitas ou-tras instituições partilharem a mi-nha/nossa perspectiva.

A verdade é que o próprio projectodas Escolas Rurais tem na sua raiz nãoo ICE – que não existia – mas um(a)autarca; e foi a partir de uma EscolaSuperior – a ESE de Setúbal, ou maisprecisamente de uma projecto que sedesenvolvia a partir dessa escola – aRede de Pólos de Acção Educativas -que ele se estruturou e organizou.

Depois, a ideia de que é o ICE en-quanto instituição que se consideraposto em causa. De modo algum. Oque está em causa é o local (rural) eum projecto de escola de novo tipo.

Quanto aos argumentos propria-mente ditos concordar-se-á que nãoaceite discutir, nas dez ou vinte linhasde que aqui disponho o que vem sen-do dito, com direito a primeira páginaou a notícia de telejornal, por mem-bros do governo e da administração(para não referir conhecidos comen-tadores e mesmo sindicalistas).

Fi-lo em artigo que publiquei re-centemente no Notícias da Amadorae onde explico porque considero (econsidera a rede de parecerias impli-cada no projecto) que carece de vali-dade a ideia do Ministério de que apequena escola é, por pressuposto,uma escola de insucesso, a ideia quelhe está subjacente de que a criançade meio rural passa a ter sucessoquando transferida para uma escolagrande, ou, até mesmo, a ideia de quehá uma economia de custos na con-centração de escolas. O que aqui pos-so fazer é sugerir a sua leitura.

Entretanto poderá ajudar à com-preensão dos pressupostos em quese apoia este nosso olhar critico, otexto do professor José Alberto Cor-reia, incluído neste número.

Uma das principiais acusações fei-tas às escolas de meio rural é o fac-to de o seu isolamento favorecer o

O que está em causa não é o urbano ou o rural mas a sua periferização

Rui D'Espiney, Coordenador Nacional do Projecto Escolas Rurais e Director Executivo do Instituto das Comunidades Educativas, argumenta nesta entrevista, entre outras questões, porque razão encontra na periferização do mundo rural causas para o insucesso escolar.

Entrevista conduzida por Ricardo Jorge Costa

se deixa “contaminar” pela comuni-dade, ao mesmo tempo que contribuipara a construir e desenvolver.»

Reconhecendo-se, nesta uma sín-tese de apresentar o projecto que setrata de uma abordagem educativaque implica uma reconfiguração polí-tica da escola, sublinha simultanea-mente a equipa o facto dessa abor-dagem se operacionalizar através deum conjunto de “práticas educacio-nais em meio rural” que, em seu en-tender, definem a pedagogia do mo-vimento. De entre as práticas queidentifica enquanto “formas recorren-tes de acção pedagógica”, destacopela pertinência que poderá ter paraas aprendizagens “escolares”: a es-crituralização das culturas rurais, otrabalho da pesquisa patrimonial,prioridade à educação ambiental, apedagogia do fazer e as metodologiasde projecto e as pedagogias da co-municação e dos intercâmbios e daparticipação, a reconfiguração dosespaços educativos.

No que se refere aos adquiridos doprojecto, refere a equipa “a titulo deexemplo: a correspondência interes-colar (individual ou colectiva); integra-ção e desenvolvimento de projectospromovidos por várias entidades;criação e animação de Museus; ani-mação de Centros de Dia; recupera-ção de património local; publicaçãode brochuras; jornais escolares, feirasde produtos e tradições locais».

Acrescentaria: a criação de centrosrurais ambientais, ranchos, grupos deteatro e oficinas permanentes de pro-dutos culturais, etc..

Refere também no seu artigo que emmuitas pequenas escolas do paíspode encontar-se “uma riqueza derecursos que não deixa a desejar àque vemos nas grandes escolas” eque estas encontram o seu sentidose tirarem partido da sua heteroge-neidade e se forem vistas como es-paço educativo alargado da própriacomunidade. A aposta nesta esco-la, conclui, é “a aposta na possibili-dade de responder à crise do mun-do rural pela inovação e o futuro”.Como encaram esta perspectiva osprofessores e os parceiros educati-vos com quem tem trabalhado? Não é o ICE que dá vida aos pólos dedesenvolvimento que vêm sendo cria-dos. São os professores, as crianças,as famílias, as comunidades locais oque significa evidentemente, não sóque há adesão como entusiasmo. Na-turalmente estas apostas pressu-põem uma crença, mas uma crençaque se constrói com as apostas.

Uma única coisa se pode opor aoenvolvimento dos professores: osobstáculos levantados pela adminis-tração. O desalento que aqui ou alémse faz sentir não vem da descrença napossibilidade de recriar o local; vemdo desmerecimento, da insensibilida-de que enformam e informam váriasmedidas que os atingem.

insucesso escolar. No entanto, comoreferiu nesse artigo publicado no jor-nal Notícias da Amadora, “o centrode gravidade do insucesso não estána dimensão da escola mas na na-tureza periférica do mundo rural”. Ouseja, mais do que um problema denatureza meramente educativa está-se perante um problema de nature-za económica e social, agravado pe-la inexistência de uma política coe-rente que privilegie o desenvolvi-mento do interior do país. Concorda?Concordo plenamente. Nesse mesmotexto, que cita, recordo duas coisasque reforçarão o que diz.

Em primeiro lugar o facto de o in-sucesso escolar das crianças de meiorural não ser um fenómeno recente,inerente à escola “desertificada”: nopassado, quando as turmas eramgrandes, o insucesso em meio rural jáera muito superior ao do mundo ur-bano; e hoje, nos concelhos rurais on-de houve concentração de escolas,continuam a ser as crianças das al-deias as mais atingidas.

Em segundo lugar, o facto de o in-sucesso escolar também atingir, com

taxas igual ou ainda mais elevadas, ascrianças do mundo urbano periférico.

O que está em causa não é, de fac-to, o urbano ou o rural mas a sua pe-riferização, a sua exclusão.

O Instituto das Comunidades Edu-cativas tem desenvolvido nos últi-mos anos o projecto das EscolasRurais. Como o caracteriza e quebalanço faz dele?Para responder a esta questão socor-ro-me do relatório de uma investiga-ção realizada por uma equipa orien-tada pelo Manuel Sarmento, da Uni-versidade do Minho.

A partir dos documentos que con-sultou, das várias visitas que fez, dasiniciativas a que assistiu e das muitasreuniões em que participou, ao longode mais de um ano, considera, essaequipa, que o Projecto das EscolasRurais constitui, hoje, um movimentoque exprime “uma lógica de acçãoeducativa de sentido cívico e comu-nitário” que entende «a escola comoum elo de política social que se nãoesgota na transmissão de saberes evalores às novas gerações, mas que

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A escola ainda é alheia e adversa à cultura cigana

Sérgio Aires, coordenador do Grupo de Trabalho Inter-institucional sobre a Etnia Cigana

38a páginada educaçãofevereiro 2004

face a faceSérgio Aires, 35 anos, Sociólogo, coordena, desde 1998, como técnico nacional, a Rede Europeia Anti-Pobreza/Portugal (REAP), o Grupo de Trabalho

Inter-institucional sobre a Etnia Cigana (Grupo SINA), no âmbito da REAP, e a Rede Europeia SASTIPEN (Saúde e Comunidades Ciganas). No ano seguinte torna-se membro da Mesa Coordenadora Nacional da Rede Europeia Anti-Racista e é, desde 2001, Secretário do Bureau Europeu da EuropeanAnti-Poverty Network. No âmbito destas diferentes funções concebeu, coordenou e executou diferentes projectos de âmbito nacional e transnacional.

A PÁGINA foi entrevistá-lo para saber mais acerca da forma como a comunidade cigana vê a escola e como esta tem trabalhado a sua integração.

Partindo da sua experiência, de queforma encara a escola a comunida-de cigana? Ela é entendida como uminstrumento de valorização pessoale social ou como uma mera imposi-ção da sociedade não-cigana? A es-ta questão não deve ser concerte-za alheia a falta de diálogo e de re-conhecimento da diferença que ain-

da hoje caracteriza as duas partes...A escola ainda é encarada por umaparte significativa das comunidadesciganas, sobretudo aquelas que en-frentam processos de maior pobrezae exclusão social, como um espaçoalheio e adverso à sua cultura. A edu-cação das crianças ciganas era tradi-cionalmente feita no seio da família e

quando aceitam integrar um proces-so educativo fazem-no numa pers-pectiva minimalista, ou seja, apenaspara dotar as crianças dos elementosmínimos - aprender a ler, a contar e aescrever. A escola é vista como umespaço de “domesticação” onde, pordesconhecimento e racismo, ascrianças ciganas são mal vistas e mal

tratadas. Esta é a perspectiva cigana. Além disto, a permanência das

crianças ciganas na escola, sobretu-do as do sexo feminino, mostra-secomplicada para as comunidades ci-ganas, pelo facto de na sua opiniãopotenciar os casamentos e as rela-ções fora da etnia cigana. Não pode-mos esquecer que estas comunida-

© isto é

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39a páginada educaçãofevereiro 2004

face a face

des presentes no nosso território hámais de 5 séculos sempre estiveramvotadas a processos de fortíssima ex-clusão social.

Esta visão tem vindo a alterar-senos últimos tempos – diria na últimadécada. A esta mudança progressivanão são alheios os esforços de algunsprojectos e iniciativas liderados por di-ferentes organizações, designada-mente organizações não governa-mentais, e uma progressiva – mas cla-ramente insuficiente – abertura dascomunidades escolares à diferençapresente no nosso território e à edu-cação multicultural. A utilização de al-gumas medidas de política social – co-mo o caso do Rendimento Mínimo Ga-rantido – para favorecer e facilitar a in-tegração também mostraram algumaspotencialidades, ainda que, na minhaopinião, necessitem de uma forte ava-liação do seu verdadeiro impacto.

A solicitação da presença de figu-ras como os mediadores culturais por

Entrevista conduzida por Ricardo Jorge Costa

parte de algumas escolas é disso umexemplo. No entanto, ainda muito énecessário fazer para criar mais pon-tes e reforçar o diálogo. Na realidadeainda estamos muito longe de umaescola inclusiva...

Uma das conclusões do Relatório doEncontro Temático sobre Mediaçãoorganizado pela REAPN (2003) refe-re que é urgente continuar a apos-tar na sensibilização para a mudan-ça, em particular nas escolas, já queum dos problemas que persiste énão se ter conseguido promover ain-da uma verdadeira "educação paraa diferença". Para tal, refere-se nodocumento, é preciso preparar osprofessores e a escola. Que papelpodem desempenhar os mediado-res neste processo?A mediação é um processo de cons-trução de pontes. No entanto, e comorefiro muitas vezes, utilizando umaimagem metafórica, as pontes têmque ser construídas a partir das duasmargens... os mediadores pouco ounada podem fazer sozinhos. Aliás asua existência no estatuto de “sozi-nhos” é mais prejudicial do que útil.

Ser mediador não é fácil, implicasair da sua comunidade, ultrapassardesconfianças na comunidade maio-ritária e enfrentar desconfianças nasua própria comunidade. Ora, fazereste processo sozinho, para além demuito difícil é até perigoso para ospróprios mediadores que arriscam aficar num limbo entre uma cultura eoutra.

Por outro lado, o apoio das entida-des formadoras de mediadores tam-bém não é suficiente. De facto, o pro-cesso de mediação é um processo deconstrução activa de relações entre

duas ou mais comunidades. Os me-diadores e o processo de mediação po-dem jogar um papel fundamental paratornar as nossas escolas mais inclusi-vas. Mas para que isto aconteça a ini-ciativa tem que partir dos dois lados daponte e é aqui que na minha opinião épreciso concentrar os esforços....

Apesar do esforço de formação demediadores ter sido iniciado na dé-cada de 90 e da contínua solicita-ção destes técnicos por parte dasentidades públicas, continua a nãoexistir nem uma carreira, nem en-quadramento financeiro ou contra-tual dos mediadores já formados,bem a homogeneização e certifica-ção das formações e da sua inser-ção profissional. Qual é a situaçãoactual e o que tem vindo a ser feitopelo Estado para ultrapassar esteimpasse?Em primeiro lugar quero deixar claroque não são assim tantas as solicita-ções por parte das entidades públi-cas. Se no caso das escolas existemalgumas solicitações, noutras áreas,como na saúde ou na habitação talnão acontece.

Na realidade, pouco ou mesmo na-da tem sido feito para ultrapassar es-te impasse.

Por outro lado, importa referir quea mediação é um processo, uma dassoluções, enfim, um instrumento.Convém não pensar que simples-mente promovendo cursos de forma-ção de mediadores os problemas fi-cam resolvidos. Na realidade e na mi-nha opinião, Portugal deveria abordaresta questão da etnia cigana de umaforma séria, transversal e com recur-sos específicos.

À semelhança do que se passa emEspanha, se quisermos mesmo inte-grar este grupo na nossa sociedadede uma forma inclusiva, respeitandoas suas especificidades e não provo-cando uma assimilação cultural com-pleta, tal processo necessita de umaatenção específica e que se deveriatraduzir no desenho e implementaçãode um Plano de Desenvolvimento In-tegral das Comunidades Ciganas.

Tal processo deveria ser tambémuma forma de activação e envolvi-mento destas comunidades, ou seja,deveria contar com a sua participaçãoactiva. De outra forma, como noutrossectores da nossa sociedade, estare-mos sempre apenas a “costurar per-manentemente sobre remendos”... Enão deixa de ser interessante pensarque enquanto União Europeia esta-mos a impôr estas acções aos novospaíses da União Europeia sem no en-tanto termos resolvido estas situa-ções no seio de tantos estados-mem-bros da União dos quais Portugal éum exemplo bem demonstrativo.

Se no início deste processo a figurado mediador aparecia habitualmen-te associado a situações de resolu-ção de conflitos, hoje sabe-se queesta actividade pode ser potenciadae rentabilizada em diferentes senti-dos e âmbitos. De que forma?Quem confunde mediação com reso-lução de conflitos equivoca-se com-pletamente sobre o conceito de me-diação. A mediação é um processo,

uma forma, um “local” de aprendiza-gem. É sobretudo fundamental per-cebermos de que falamos quando fa-lamos de mediação. É preciso sepa-rar o trigo do joio. A concepção daideia de mediação não está bem ama-durecida e isso é um risco. Um enor-me risco!

A noção que muitas pessoas têmde que os mediadores são bombeirosque estão ao serviço das nossas difi-culdades enquanto sociedade maio-ritária para resolverem aquilo que nãosomos capazes, de que temos medo,que não desejamos que aconteça,com o qual não concordamos e quesegundos os nossos valores achamoserrado, é profundamente incorrecta eum equivoco. Este equivoco e estanoção deve ser combatida. É por is-so que falo da necessidade de saber-mos do que estamos a falar quandofalamos de mediação. É que sobretu-do hoje as palavras podem atraiçoaras melhores intenções...

se havia construído até ao momento.Corre-se o risco de muito rapidamen-te se destruírem as relações de con-fiança, de se frustarem expectativas.Claramente o risco de um retrocessoé evidente e até já se traduz em no-vas manifestações de xenofobia quenos fazem regressar aos tristes acon-tecimentos de Vila Verde em 1996.

A REAPN tem conduzido um con-junto de programas de formação di-rigidos à comunidade cigana. En-quanto coordenador desses pro-jectos, que balanço faz da sua exe-cução? Que outros projectos estãoactualmente em curso?Não é só em relação às comunidadesciganas que temos desenvolvidosprojectos. Temos aliás desenvolvidouma particular atenção em relação aosprofissionais que intervêm em diferen-tes e estruturas (públicas e privadas)com estas comunidades. Desde 1996que nos preocupamos em fortaleceras condições para que a ponte sejaconstruída dos dois lados. Neste sen-tido temos procurado trabalhar a sen-sibilização e a formação de diferentesprofissionais para uma mais fácil com-preensão das especificidades da cul-tura cigana, procurando desmontarestereótipos e pré-conceitos. Para es-te trabalho muito tem contribuído aconstituição desde 1997 do Grupo deTrabalho Inter-Institucional sobre a Et-nia Cigana (Grupo SINA).

Actualmente estão em curso doisprojectos os quais merecem um des-taque especial: o Projecto “Promotionof more active policies for the socialinclusion of the Roma and Travellerminorities”, que tem como principalobjectivo a identificação no âmbitodos Planos Nacionais de Acção paraa Inclusão de diferentes países (Por-tugal, Espanha, Grécia, Irlanda e Re-pública Checa) de metodologias e po-líticas específicas de promoção da in-clusão destas comunidades.

A segunda fase deste projecto quese inicia agora irá debruçar-se sobre acriação de indicadores específicos deinclusão destas comunidades nos dife-rentes países, contribuindo desta formapara monitorar os respectivos planos noque diz respeito a estas comunidades.

Um segundo projecto prende-secom a continuidade de uma anterioriniciativa no âmbito do Programa So-crates / Comenius (Formación y Apo-yo al Profesorado de Centros con Di-versidad Cultural) e que tem como ob-jectivo a identificação de instrumen-tos de formação e apoio para osprofessores do ensino secundário (naprimeira fase do projecto trabalhou-se com os professores do ensino bá-sico e os resultados deste projecto es-tão incluídos na publicação "Ensinare aprender em contextos de diversi-dade cultural – orientações e estraté-gias para as escolas”.

A REAPN, no âmbito das activida-des com o Grupo SINA irá por outrolado continuar a promover iniciativasde reflexão e investigação. No ano de2004, e tendo em atenção o contextoque vivemos, este grupo de trabalhoirá voltar a promover um conjunto deencontros de reflexão tendo como ob-jectivo preparar um conjunto de reco-mendações e propostas de trabalho.

Por outro lado, e como já afirmei an-teriormente, a mediação não é um ins-trumento apenas ao serviço das es-colas. Se este é um campo preferen-cial de actuação, outros se mostrammuito interessantes, como é o caso dasaúde, da habitação, do emprego...

De acordo com o mesmo relatórioatrás referido, assiste-se, desde2001, a uma estagnação deste pro-cesso relativamente a variadoscampos de intervenção, quando asnecessidades conhecidas e diag-nosticados demonstram que osproblemas continuam a ser os mes-mos. De que maneira poderá esteimpasse resultar num retrocessodas conquistas até agora obtidas?É precisamente aqui que corremos omaior perigo. Na minha opinião, e naopinião de várias organizações que hádécadas intervêm com comunidadesciganas, o pouco que se tinha conse-guido – e que na minha perspectiva pa-ra o tempo que havia decorrido até erabastante – desmorona-se todos os dias.O associativismo cigano praticamentedesapareceu e as associações que ain-da existem encontram as maiores difi-culdades de interlocução e legitimida-de. Uma boa parte dos mediadores queestavam nas escolas tiveram que aban-donar estes programas. Afinal trata-sede uma questão de sobrevivência equase todos tiveram que regressar àsactividades económicas tradicionaispara sustentar as suas famílias.

Para além disso, produziu-se umprocesso de descredibilização do que

"A escola ainda é encarada por uma

parte significativa das comunidades

ciganas, sobretudo aquelas que

enfrentam processos de maior pobreza

e exclusão social, como um espaço

alheio e adverso à sua cultura".

"O associativismo cigano

praticamente desapareceu

e as associações que ainda

existem encontram as maiores

dificuldades de interlocução

e legitimidade. Uma boa parte

dos mediadores que estavam

nas escolas tiveram que

abandonar estes programas".

Page 40: Nº 131, Fevereiro 2004

40a páginada educaçãofevereiro 2004

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Sampa. A metrópole cosmopolita que

agita o Brasil e é o seu coração indus-

trial e comercial.

Por que deram o nome do apóstolo

cristão Paulo à Vila de Piratininga?

Por que era tão estratégico aquele

território para a expansão do Comércio

e da Fé? Para sabermos como isso acon-

teceu, João Barcellos foi ´entrevistar´ o

jesuíta Manoel da Nóbrega.

Com você, Leitor[a], a metropolitana

São Paulo dos Campos de Piratininga!

Enquanto o fervoroso Anchieta escreve um

amantíssimo poema em branca nuvem,

“encontro” Nóbrega estabelecendo para-

lelos históricos e tentando se convencer,

qual bandeirante de Deus, como lhe cha-

mou João XXIII, que a melhor defesa de

Sampa é, sim, o Trabalho que faz a Rique-

za tendo a Fé como suporte...

- Ah, está aí um luso lá de Sampa – al-

guém anuncia para ele a minha presença.

Entro no celestial recinto entre pequenos

flocos de nuvens. Um cântico gregoriano

que, de alguma forma lembra salmos he-

braicos e cânticos telúricos pagãos, é a tri-

lha sonora do ambiente. Olho o velho mis-

sionário da Ordem de Jesus, e questiono:

- Há uma carta em que Anchieta descreve

a fundação da Vila de Piratininga, assim:

“Mandou o Padre Manoel da Nóbrega os

filhos dos Índios do Campo, a uma po-

voação nova chamada Piratininga que os

Índios faziam por ordem do mesmo Padre,

para receberem a Fé”. Ele chegou na Sam-

pa em 25 de Janeiro de 1554, ou seja, no

dia em que você mandou celebrar a mis-

sa de assentamento...

Nóbrega olha-me e sorri. Percebo que

sim, que a informação de Anchieta está cor-

reta. E ele diz, à guisa de complemento, que

“...construímos Casas para enquanto o

Mundo durar”! Ele havia estado, em 1549,

em Salvador, onde a 29 de Março fundara

o Real Colégio do Brasil, enquanto man-

dava Leonardo Nunes fazer o mesmo em

São Vicente; depois, em 1553, ele mesmo

subiu a Serra do Mar, por Paranapiacaba,

para conhecer um local, entre os rios Ta-

manduateí e Anhangabaú, onde pudesse

“estabelecer uma nova povoação”.

- Você subiu a Serra do Mar porque

quis uma Casa nova para as crianças, tu-

pis e guaranis [principalmente, os carijós

mbianos], de São Vicente, que, na verda-

de, eram das aldeias do planalto. Você

criou um novo lar?

- “...em casa de seus pais, em Pirati-

ninga, onde por sua contemplação princi-

palmente fiz aquela Casa, para que nós as

doutrinássemos e seus pais as sustentas-

sem e com eles ganhássemos todos os de-

mais” – diz, e dá uma olhada, além, sobre

a moderna Sampa, a metrópole sem fim.

Parece não desgostar muito do que vê,

quase meio milênio depois...

A sua Sampa cresceu, cresce. E lá vai

ela enquanto o Mundo durar, enquanto os

povos do Mundo acharem nela um porto

seguro, uma promessa de futuro.

- Quando, em 1567, após a vitória so-

bre os Franceses luteranos e os Tamoios,

você estabeleceu o Real Colégio do Rio de

Janeiro, e do qual foi “o seu primeiro reitor”,

como noticia Anchieta numa das suas car-

tas, tornou-se também um bandeirante...

- “Esta terra é nossa empresa”! – diz.

Ele deixa clara, aqui, a estrutura miliciana

com que a Ordem de Jesus foi celebrada

pelo Catolicismo, que enfrentava a expan-

são do Cristianismo protestante. Afasta,

com a mesma leveza insustentável, alguns

flocos de nuvens que nos separam por ins-

tantes, e eu aproveito: - Entretanto, você

viu que no Piabiyu [como os guaranis, e

mais os carijós, chamam ao Caminho do

Peru, e que vocês, jesuítas, tentaram bati-

zar sem sucesso de Caminho de São To-

mé...] estava a possibilidade de ganhar a

Terra Brasilis pelas bocas de sertam, e tu-

do a partir da Sampa, que

- “...se vai fazendo uma formosa po-

voação” - corta ele, entusiasmado. – E

continua: - “É por aqui a porta e o cami-

nho mais seguro para entrar nas gerações

do sertam”!

Esta era, então, a Fé que movia o mis-

sionário e guerreiro jesuíta Manoel da Nó-

brega. Ele tinha como guia espiritual o

apóstolo cristão Paulo, que fora um judeu

chamado Saulo.

- O noviço, que logo você ordenou pa-

dre, chamado José de Anchieta, lembra,

em carta, uma ordem sua: “Assim alguns

Irmãos mandados para esta aldeia, que se

chama Piratininga, chegamos a 25 de Ja-

neiro do ano do Senhor de 1554”.

Manoel da Nóbrega abana a cabeça po-

sitivamente. Sorri. Aquela nova Casa, feita

para “enquanto o Mundo durar”, recebera

13 jesuitas, que assentaram solenemente o

nome de São Paulo dos Campos de Pirati-

ninga, homenagem de Nóbrega ao seu guia

espiritual. E as trezes listras da bandeira de

Sampa homenageiam aqueles missionários

e Manoel da Nóbrega, o Mestre.

Que esta breve ́ entrevista´ ajude a escla-

recer, historicamente, o que era e como nas-

ceu São Paulo dos Campos de Piratininga.

Bibliografia de Consulta: Nóbrega – o fun-

dador de São Paulo, PIMENTA, José de

Melo, SP/Brasil 1990; Morgado de Ma-

theus – o grande governador de São Pau-

lo, BARCELLOS, João, SP/Brasil, 1991, 4ª

Ediç. 2003; Piabiyu, BARCELLOS, João,

SP/Brasil e Guimarães/Pt 2003.

Antidemocrática – O seu processo de

elaboração por uma convenção de “no-

táveis” já diz tudo sobre a sua preten-

sa democracia. É feita por cima das ca-

beças dos povos europeus e só pode

ser assim porque é feita contra os seus

interesses.

A Constituição eliminou qualquer re-

ferência aos povos da Europa, o que sig-

nifica que estes não podem esperar dela

qualquer reocnheimento do seu direito de

autodeterminação. Aprova as medidas

repressivas que os Estados apliquem

contra essa aspiração dos povos.

Neoliberal – Os bem conhecidos laços

entre os grupos de pressão das multina-

cionais e as instituições europeias dão lu-

gar a grandes escândalos periódicos.

Trata-se de uma verdadeira osmose, com

o pessoal dirigente a passar continua-

mente das funções oficiais para as priva-

das e vice-versa.

A Constituição não faz qualquer refe-

rência ao Acordo Geral para o Comércio

de Serviços, proposto pela OMC e acei-

te pela UE, o que significa que aceita o

princípio de que nenhum Estado membro

possa opor-se à privatização dos servi-

ços públicos.

Antiproletária – Aquilo a que se chama

a “Carta dos Direitos Fundamentais” li-

mita-se a harmonizar pelo mínimo os di-

reitos actualmente reconhecidos, aliás

precários ou inexistentes em muitos

países do Leste. As multinacionais

afiam o dente para os novos aderentes

que virão fazer pressão sobre os salá-

rios, aumentar a concorrência entre as-

salariados, ajudar a eliminar regalias

conquistadas.

O “direito ao emprego” é substituído

pelo “direito a trabalhar”.

Xenófoba – Ao abrir a porta o estabele-

cimento de uma categoria inferior à da ci-

dadania plena para os “residentes de lon-

ga duração não comunitários”, a Consti-

tuição cria cidadãos de primeira e de se-

gunda classe. Consagra a Europa

foraleza face a uma imigração que ela

mesma provoca.

Patriarcal – Os direitos das mulheres,

em particular o direito à contraepção e

ao aborto, assim como os plenos di-

reios para as uniões de facto, não são

reconhecidos.

Imperialista – A Constituição consagra o

“respeito pelas obrigações derivadas da

participação na NATO”, prevê que a Fran-

ça e a Alemanha desenvolvam uma força

conjunta, “no quadro da União”, adopta

a doutrina militar dos “ataques preventi-

vos”, legitima a ocupação do Iraque e do

Afeganistão e defende o monopólio das

armas de destruição massiva nas mãos

das grandes potências e dos seus alia-

dos fiéis, como Israel.

Devemos reclamar que tenha lugar o

referendo, a fim de mostrar a toda a po-

pulação a necessidade de uma rejeição

maciça desta Europa reaccionária, inimi-

ga dos trabalhadores e dos povos.

João Barcellosterranovacomunic

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SAMPA 450

A Constituição Europeia explicada às escolas

João António Cavaco Medeiros

Economista/Professor do

Ensino Secundário

Page 41: Nº 131, Fevereiro 2004

41a páginada educaçãofevereiro 2004

praça da república

A sociedade portuguesa alimentauma desconfiança em relação à es-cola, criticando-a com razão e semela. As sondagens da opinião públicaconfirmam a tendência em pedir à es-cola tarefas de enquadramento dascrianças e jovens. A escola de mas-sas não tem conseguido responder àpopulação discente heterogénea.

Nesta medida, as situações demal-estar na escola multiplicam-se enão afectam unicamente os alunos.Sendo certo que na escola actual(marcadamente tradicional) os alunostêm motivos de sobra para não sesentirem bem, porque será que mui-tos professores vivem emoções deansiedade, frustração e culpa?

Recorrendo ao trabalho de Har-greaves (1998)[1] aprendemos a lidarcom o problema da culpa e percebe-mos que, em doses moderadas, elapode representar um factor de moti-vação, de inovação e de aperfeiçoa-mento. O problema é quando a culpaestá ligada a sentimentos de frustra-ção e ansiedade podendo tornar-seum factor limitador para o trabalho epara a vida do professor.

Ao tomarmos consciência das ar-madilhas que no ensino criam os taisexcessos de culpa, será possível con-viver com estes sentimentos e procu-rar que eles sejam fonte de cuidado epreocupação pelos outros, no seio dacomunidade profissional de ensino.

Sendo possível lidar construtiva-mente com os problemas da culpa,quando ela é sentida em doses ele-

vadas o comportamento dos docen-tes pode degenerar no abandono doensino, em problemas de esgota-mento, no cinismo e outras reacçõesnegativas. Os antídotos para resolverestes problemas actuam, na pers-pectiva do autor, nos sintomas e nãonas causas de tais comportamentos.

Uma parte da solução para as ar-madilhas da culpa encontra-se a mon-tante da escola. Mas como travar a eu-foria legislativa que tem contagiado,fatalmente, os diversos governos?

A outra parte da resolução do pro-blema terá de ser encontrada na pró-pria escola, no âmbito da sua dimi-nuída autonomia, através dos actosde gestão e no domínio da formaçãocontínua de professores.

Hargreaves (1998) propõe um con-junto de soluções para lidar com asarmadilhas da culpa que têm sidoadoptadas em alguns locais:

"1. Baixar as exigências de presta-ção de contas e de intensificação doensino. (...) Deter a burocracia, reduzin-do a ênfase que é colocada sobre osresultados dos testes e outras formasimpressas de prestação de contas.

2. Reduzir a dependência em relaçãoao cuidado pessoal e ao tratamento dosoutros, enquanto motivo primordialsubjacente ao ensino elementar, emparticular, ampliando a definição de cui-dado, de modo a que este abarque nãosó uma dimensão pessoal, mas tam-bém uma dimensão moral e social, eequilibrando os propósitos educativosde importância equivalente.

3. Aliviar a incerteza e a naturezaaberta do ensino, criando, ao nível doestabelecimento de ensino, comuni-dades de colegas que trabalham emcolaboração, estabelecendo os seuspróprios limites de exigência profis-sional e permanecendo ao mesmotempo empenhadas num aperfeiçoa-mento contínuo. Tais comunidadestambém podem aproximar a vida pro-fissional e pessoal dos professores, deum modo que apoia o seu crescimen-to e permite que os seus problemassejam discutidos, sem receio de re-provação ou de punição (Idem: 177)".

Esta incursão à problemática daculpa é legitimada a partir do mo-mento em que assistimos ao avançode uma política e prática neoliberal eneoconservadora. A análise deste ti-po de questões em países como o Ca-nadá, Estados Unidos da América eGrã-Bretanha poderá oferecer algu-mas pistas para melhor compreen-dermos o que se passa hoje em diano nosso país. Mas seria um erro ficarpor aqui. A questão principal conti-nuará a ser a identificação dos cons-trangimentos que asfixiam a nossaacção educativa e, simultaneamente,encontrar ferramentas adequadasque potenciem a qualidade do nossotrabalho.

[1] Hargreaves, A. (1998). Os professores

em tempos de mudança - O trabalho

e a cultura dos professores na idade pós-

moderna. Editora McGraw-Hill.

Amadora.

Da "Página" de Janeiro de 2004

A bem do bom nome do SPN, dosseus sócios, e do deputado J. Teixei-ra Lopes, o mínimo que este deve fa-zer é pedir ao SPN-Bragança que lheforneça os documentos necessáriospara que se retrate, com artigo deigual dimensão no Jornal A Página. Hámuitas formas de levar a água ao nos-so moinho, mas não falando de cor,ou de cátedra. Ou, como aqui se diz,"falar do alto da burra"!

Saudações.

Amílcar [email protected]

A culpa

ESPAÇO dos leitoresMiguel PintoProfessor, Mestre em

Ciência do Desporto

[email protected]

O Deputado e o SPN

© isto é

Leia

volta sempre na1.a quarta-feira

de cada mês

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Page 42: Nº 131, Fevereiro 2004

42a páginada educaçãofevereiro 2004

praça da república

ESPAÇO dos leitores

Geilsa Costa Santos Baptista

Núcleo de Estudos

e Pesquisas Sobre

Formação

de Professores (NUFOP)

Departamento de

Educação – Universidade

Estadual de Feira de

Santana, Bahia, Brasil.

Em relação à despenalizaçãodo aborto é:

Ainda em relação ao aborto:

Se em Fevereiro houvesseeleições legislativas votaria:

Conhecida a política salarialpara a função pública a suaposição é:

A favor80%

Contra19%

Total Respostas: 641

Deve haver novo referendo:89%

Não deve haver novo referendo:10%

Total Respostas: 529

Concordo com a política do Governo:12%

Discordo com a politica do Governo:88%

Não tenho opinião formada00%

Total Respostas: 600

PSD11%

PS45%

PCP07%

CDS|PP00%

Bloco de Esquerda26%

PEV00%

Outros09%

Total Respostas: 622

inquéritos

Durante toda a sua história, a espéciehumana, enquanto ser integrante danatureza e de uma dada sociedade ecultura, enfrenta inúmeros desafiosque, por sua vez, exigem uma respos-ta concreta. Estes desafios envolvemdesde a compreensão do ambientenatural que o cerca até questões queenvolvem a própria sobrevivência, talcomo a busca por alimento. Para tan-to, esse mesmo homem pode agir demaneira aleatória ou planejar as suasatitudes. Para esta última opção, aeducação formal representa impor-tantíssimo meio que permite ao ho-mem a organização de suas idéias.

Se considerarmos a educação co-mo formação da competência huma-na, que envolve os conhecimentospopulares e científicos, veremos queessa formação pode acontecer den-tro e fora do espaço escolar. Assim, aeducação que acontece no cotidianodas pessoas, das suas experiênciaspráticas com o ambiente, seja ele so-cial, natural, cultural, etc, constitui-sea educação não formal. Diferente-mente, a educação que acontece naescola, de maneira ordenada, em bus-ca de determinados fins, constitui-sea educação formal. Porém, mesmoesperando que a escola seja um es-paço de socialização entre conheci-

mentos, é interessante notar que asatividades de planejamento de ensi-no constituem-se numa tarefa buro-crática e complicada em que, paracumprir as determinações politico-pedagógicas, como datas e preen-chimentos de formulários, os profes-sores organizam seus planos sem ne-nhuma reflexão e mudanças sobre osmesmos. Aí tem se manifestado umapostura acritica do ato de planejar emque, ao serem elaborados, são arqui-vados, ou até mesmo repetidos du-rante anos, como se a Ciência, o pró-prio aluno e o contexto social, cultu-ral e ambiental não sofressem modi-ficações. Planeja-se o ensino semreflexões sobre os contextos aosquais se destina e, como conseqüên-cia, acontece a prática de ensino e aaprendizagem mecânica, sem signifi-cados próprios para o aluno, onde es-te é conduzido a repetir conteúdos delivros didáticos, assumido uma pos-tura cientificista do aprender ciências.

É sabido que mundo atual sofrerápidas transformações e que essasafetam diretamente a vida das so-ciedades. Nesse contexto, o profes-sor precisa atualizar-se, colaborarpara que o aluno possa compreen-der o mundo e suas transformações,situando-os como indivíduos críti-

cos, participativos e integrantes douniverso social. As tendências maisatuais da educação no mundo apon-tam para o ensino que estimule o alu-no a procurar respostas para as suasdúvidas, a aprender fazendo, permi-tindo que o espaço da sala de aulaseja um local de cidadania em queos seres humanos que ali estão pos-sam interagir conscientemente so-bre suas realidades e sobre seu fu-turo social. Para tanto, é preciso queo professor busque a prática reflexi-va sobre suas atividades de planeja-mento, modificando-a, adaptando-aconstantemente, de maneira que le-ve em conta sempre as característi-cas próprias do contexto social, po-lítico, econômico e cultural no quala escola bem como a própria comu-nidade que dela faz parte se encon-tram inseridas. Esta ação reflexivaimplica em repensar a sua própriaprática de ensino, seus métodos, re-cursos, abordagens que envolvem asua prática docente. Consequente-mente, o ensino ganhará novo signi-ficado, em que o objetivo maior se-rá preparar os alunos para que dian-te das situações que envolvem seucotidiano, sejam capazes de agirconscientemente, de usar em bene-fício próprio os conhecimentos.

Prática reflexiva para o planejamento de ensino

em ciências

© isto é

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43a páginada educaçãofevereiro 2004

andarilhoNa altura de celebrar setenta anos deuma vida cheia de livros, crónicas, en-trevistas, reportagens, textos de elo-gio crítico, muitos e vários prefácios,numa actividade de jornalista que co-nheceu momentos altos como exce-lente profissional, Baptista-Bastosacaba de ser consagrado, e muito jus-tamente, com o “Grande Prémio daCrónica/2003”, atribuído pela APE-Associação Portuguesa de Escritoresao seu livro Lisboa Contada pelos De-dos, que reúne crónicas saídas em“papel de jornal” nas colunas de Re-pública, Diário Popular e outros, masno propósito firme de retratar uma Lis-boa sempre próxima e distante, no ca-lor da emoção e da memória, no fiocompassado dos dias e dos anos.

Nas crónicas que reúne neste livro,Baptista-Bastos estabelece pela suaescolha pessoal uma espécie de"breviário" para enaltecer, nos altos ebaixos de uma cidade como Lisboa,tudo o que de essencial um jornalistae escritor de obra reconhecida, sem-pre atento à valorização do quotidia-no, sabe captar tantas vezes de for-ma comovida no que se passa nomundo à sua volta. Daí que o autor deO Secreto Adeus faça neste livro umaespécie de "milagre" pelo arrancar deflagrantes situações da vida fragmen-tos ou imagens para a construção deum todo que reafirme a sua identifi-cação com todos os problemas, nu-ma comunhão de palavras e de sen-timentos, de ideias e emoções, nesseseu modo de falar em voz alta comoBaptista-Bastos gosta de dizer ou naspalavras do prefácio desta edição deLisboa Contada pelos Dedos: " Que-rer justificar a loucura e a soberba queme conduziram a reincidir na reunião

BAPTISTA-BASTOSrecebe Grande Prémio da Crónica

Neste último livro, Arsénio Mota reúne vá-

rias crónicas que incidem sobre a literatu-

ra em diferentes quadrantes de aborda-

gem, muitas vezes com uma certa ironia.

Mas o que se deve salientar em Letras Sob

Protesto é o carácter informativo e crítico

como trata questões que são de hoje e de

ontem, porque o nosso mundo literário,

pleno de equívocos e de situações que se

repetem no correr dos anos, não acorda

para novas perspectivas culturais que nos

façam abandonar o marasmo em que

sempre temos vivido. Assim, ao colocar o

dedo em muitas feridas (situação do mer-

cado editorial, preço dos livros, os que an-

dam na crista da onda muitas vezes sem

tal se justificar, a literatura para crianças, a

indústria cultural, mesmo as razões de es-

crever e de publicar, as questões da críti-

ca, etc.), Arsénio Mota faz isso com ver-

dadeiro conhecimento de causa, mas no

propósito de quem, não querendo endirei-

tar o que está mal, ainda acredita que tu-

do se pode remediar. E não é assim. Os

equívocos culturais neste País são atávi-

ESPíRITO e a letraSerafim Ferreiracrítico literário

Letras Sob ProtestoLivro em destaque

cos e sabemos que importa bem pouco

que o excelentíssimo biógrafo e drama-

turgo Freitas do Amaral ou a romancista

dona Margarida Rebelo Pinto tenham

grande sucesso de vendas com livros de

quarta categoria, mas que servem para ter

casa com piscina e cavalos, mesmo que

se não saiba nadar ou andar a cavalo...

Basta olhar atrás, e não recuar muito, pa-

ra se entender como há autores que tive-

ram êxito, foram da admiração pública e

hoje quase pedem licença para existir:

lembremos os “casos”, entre muitos mais,

de Abel Botelho, Guerra Junqueiro, Albi-

no Forjaz de Sampaio, Manuel Ribeiro e

até um Ferreira de Castro. A literatura e a

sua verdadeira função, isso é sabido, e sa-

be-o muito bem Arsénio Mota, está para

lá da “escrita” fácil e consumível por par-

te de clientelas que fazem aumentar a nos-

sa literacia. Assim, Letras Sob Protesto

tem a qualidade de lembrar todos estes

problemas, não para os resolver, mas pa-

ra chamar para eles a atenção dos leito-

res mais atentos.

Arsénio Mota

LETRAS SOB PROTESTO

Ed. Campo das Letras / Porto, 2003

P. S. - Olhe, meu caro Arsénio Mota, faça o que pe-

de o Pires Laranjeira no posfácio ao seu livro: “Con-

tinua sempre a escrever, pá!” E deixe que tudo an-

de como anda nesta nossa pobre, triste e queixo-

sa república das letras. Sim, a caravana passa de-

pressa e nem conta muito ser Nobel ou ter tiragens

de cem mil exemplares num país como o nosso. O

que sobretudo conta são as “coroas” suecas que

permitem comprar “uma casa na praia”.

Na história do Prémio Nobel, sabe tão bem co-

mo eu, ao fim de cem anos muitíssimos poucos

(e até se podem contar pelos dedos) são hoje os

autores consagrados que ainda se lêem, admiram

ou estudam sem um sorriso ao canto da boca. A

história literária, a nossa, tem muito pouco por on-

de se lhe pegue. Mas tudo isso são “histórias” que

davam outros quinhentos.... Um abraço do

Serafim Ferreira

de textos escritos em (e para) papelde jornal. As crónicas que deponhoagora nas suas mãos são, pretendemser, humildes quadros de pessoas queaprenderam sem ser ensinadas. Pes-soas que, embora atenuando as suasdesgraças, nunca apagam a lem-brança das suas revoltas”.

Em tudo o que arrisca e põe emquestão, na sua forma de denunciar eintervir, Baptista-Bastos revela nestelivro uma visão muito própria de re-tratar um mundo de gente com quemdialogou no fio dos anos e tudo se afir-ma de forma comovida ou irónica,mas numa intenção marcadamente

humanizada, na lembrança das ruaslisboetas de infância ou adolescência(Largo da Paz, Calçada ou Palácio daAjuda), na evocação de gentes queandaram a seu lado e com elas dialo-gou em tempos de aprendizagem, nadescoberta do mundo (Aquilino Ri-beiro, José Gomes Ferreira, Carlos deOliveira, Alves Redol e outros) ou namemória dos amigos de estúrdia eboémia por lugares que permanecemvivos na sua memória, enfim, sempreo sentido de crónica ou de reporta-gem está presente nas páginas de Lis-boa Contada pelos Dedos, como umcírculo ou périplo que se não fecha epercorre os meandros mais fundos davida em comunhão e solidariedadecom os outros.

Por isso, ao completar os seus se-tenta anos, é bom salientar uma vezmais em Baptista-Bastos a força e alimpidez da própria escrita: cortante,exacta e meticulosa nos pormenores,sempre rigorosa no que descreve enarra na certeza de saber que, dividi-do entre a ficção literária e a crónicaou reportagem jornalística, o autor deA Colina de Cristal é, sem favor, umdos nomes mais destacados da nos-sa literatura, não só pela qualidade daescrita, mas sobretudo pelo sentidopolémico e intervencionista como temsabido definir as suas posições comgrande verticalidade. E por isso nãoserá demais dizer e repetir as palavrasde Luiz Pacheco: "Leiam o livro todo.São trabalhos jornalísticos exempla-res. Há talento, há verve, há ousadia,há um homem, há um escritor".

Baptista-BastosLISBOA CONTADA PELOS DEDOSEd. Montepio Geral / Lisboa, 2001.

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44a páginada educaçãofevereiro 2004

andarilho

Quando um jornalista prestigiado e conhecido (agora diz-se mediático) comoMiguel Sousa Tavares publica um romance de fundo histórico, corre logo doisriscos: por parte dos críticos literários, o de ser julgado pelo grau de literarie-dade do texto; por parte dos historiadores, pelo grau de observância dos fac-tos históricos.

À primeira reserva, acresce o pendor dos críticos (mais acentuadamente seforem académicos) para questionar o estilo fluente, linear e objectivo (fílmico,diríamos), como é normalmente o do escritor-jornalista; à segunda, acresce atentação de confirmar se a narrativa confere rigorosamente com a história e -um terceiro e talvez maior risco - se o autor, citando imprudentemente a biblio-grafia em que se apoia, omite outras obras julgadas imprescindíveis.

Poderá o escritor, quando se reclama das liberdades comummente conferi-das à ficção, alegar que não pretendeu escrever um texto para selecta literária,tão-pouco um ensaio histórico, mas simplesmente contar uma "estória", pordeleite próprio e para desfrute dos seus eventuais leitores. E sentir-se-á gratifi-cado se essa "estória" for apreciada (ou comprada, o que não é a mesma coi-sa) por dezenas de milhares de leitores, contando, entre eles, um Vasco Gra-ça Moura, que afirma (lê-se na capa da 9ª edição do romance): "... há vinte anosou mais que eu não devorava um romance português, como me aconteceu comEQUADOR."

Não se trata aqui de fazer uma verdadeira recensão ao livro, que poderia sercoincidente ou não com a unânime opinião de muitos leitores, credenciados enão credenciados por formação literária. O nosso ponto de vista é meramente"colonial" ("colonial", contra a opinião de muitos teorizadores, não quer dizer"colonialista", mas tão-somente, como adjectivo, que é próprio das colónias) e,nesta posição, não nos detém a urdidura romanesca senão na medida em queela, desenvolvendo-se num determinado contexto histórico, há-de servir paraalgo mais do que deliciar o leitor romântico com as aventuras sexuais do pro-tagonista e os "peitos devastadores" das suas conquistas na Metrópole e nacolónia de São Tomé e Príncipe, para onde foi nomeado governador.

Há-de servir, e serve. São expostas criticamente as sociedades lisboeta esão-tomense do princípio do século (a primeira dominada pela vacuidade bur-guesa, a segunda pela exploração da mão-de-obra africana) - com lapsos (co-mo a importância do papel de "polvo" que o Banco Nacional Ultramarino de-sempenhou na economia daquelas ilhas), deslizes ou incorrecções que o pró-prio autor já reconheceu - para atingir uma posição ética: mesmo na época deuma exploração colonial que assentava no trabalho compulsivo, havia um go-vernador humanista...

Suicidá-lo é um recurso imaginístico do ficcionista. Mas houve, de facto, nascolónias, muitas outras figuras, governadores e não governadores, que não sesuicidaram, antes usaram a vida para questionar a política colonial. E foi penaque o autor, quando desenha, sem o nomear, um horrendo governador-geralde Angola (entre 1905 e 1906 só podia ser Eduardo de Noronha, a quem nãose ajusta o "retrato", e depois dele, Paiva Couceiro, muito menos) que evoca-va um antecessor (de há cerca de 40 anos atrás), este nomeado, Calheiros eMenezes, para "justificar" a remessa de negros "contratados" para São Tomé,não lhe tenha concedido o "favor" de poder defender o seu racismo com umargumento legal: é que para São Tomé também iam (e continuaram a ir até hádécada de 70) os condenados e os indesejáveis... sem "contrato".

Trata-se, pois, de literatura colonial (no sentido atrás definido), e tão "colo-nial" como os romances de Fausto Duarte sobre a Guiné, de Castro Sorome-nho sobre Angola e de Sum Marky ou Luis Cajão sobre São Tomé. Em 1977,Manuel Ferreira, um especialista de créditos incontestáveis, escrevia que "a Li-teratura Colonial define-se essencialmente pelo facto de o centro do universonarrativo ou poético se vincular ao homem europeu e não ao homem africano[em que] o branco é elevado à categoria de herói mítico, o desbravador das ter-ras inóspitas, o portador de uma cultura superior."

Esta definição continua de pé. Salvaguardando as diferenças que existementre aqueles autores citados e um Henrique Galvão, Ferreira da Costa ou ReisVentura, um ingrediente desta literatura - o exotismo - continua a ser, hoje, umatractivo tão operante como era há há quarenta ou setenta anos. Para quemescreve e para quem lê...

Neste aspecto, também os tempos não mudaram.EM PORTUGUÊS

Leonel Cosme

Revista Lusófona de EducaçãoEdições Universitárias Lusófonas

pp. 177

A Revista Lusófona de Educação é uma publicação científica se-

mestral que tem por objectivo a edição e intercâmbio de traba-

lhos de investigação, realizados no mundo lusófono, na área das

Ciências da Educação. Neste número, entre outros artigos, des-

taque para uma reflexão do Director, António Teodoro, sobre a

possibilidade de uma política de educação à esquerda.

Vale a Pena ser Cientista?Jorge Massada

Campo das Letras

pp. 164

Entre 9 e 30 de Outubro de 2003, sempre ao cair da tarde, qua-

tro homens e duas mulheres que a comunidade científica con-

sagrou deram a mais interessante e simples lição que podiam

dar: a falar é que a gente se entende, que é como quem diz, a

falar é que a gente os entende. Um conjunto de onversas com

Manuel Paiva, Boaventura de Sousa Santos, João Lobo Antu-

nes, Fernando Lopes da Silva, Irene Fonseca e Maria do Carmo

Fonseca, com prefácio de Manuel Sobrinho Simões.

A Irrequietude das PedrasReflexões e experiências de um arqueólogoVitor Oliveira Jorge

Edições Afrontamento

pp. 193

Este livro procura mostrar que a arqueologia consiste numa ac-

tividade moderna, centrada na nossa sociedade de consumo e

de produção de "património", preocupada com os paradoxos e

inquietações do presente, e projectada para o futuro. Assumi-

damente escrito na primeira pessoa, com muito de autobiográ-

fico, visa demonstrar como todo o conhecimento é uma expe-

riência, sensorial, afectiva, intelectual, simultaneamente solitária

e partilhada com os outros.

Agitar antes de OusarO movimento estudantil "antipropinas"Ana Drago

Edições Afrontamento

pp. 270

Em Agitar antes de Ousar, a autora procura traçar o caminho do

movimento estudantil de contestação à política educativa dos

governos sociais-democratas dos primeiros anos da década de

90, e que ficou popularmente conhecido como a luta contra o

aumento das propinas, ao mesmo tempo que esboça o modo de

"fabricação" de um movimento social de protesto.

Inverter a EducaçãoDe Gilles Deleuze à Filosofia da EducaçãoNuno Fadigas

Porto Editora

pp. 112

"Este primeiro livro de Nuno Fadigas revela-nos um jovem autor

pleno de potencialidades. Alguém que, a partir de um patamar

de questionamento filosófico, procura olhar criticamente alguns

dos lugares comuns do discurso pedagógico, designadamente

aqueles que se desenvolvem nos intermináveis debates prota-

gonizados pelas ideologias dos movimentos tradicionalistas e

por muitos dos que pretendem ser radicalmente inovadores".

(Retirado do prefácio de Adalberto Dias de Carvalho)

O EQUADOR de Miguel Sousa Tavares

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45a páginada educaçãofevereiro 2004

andarilho

João Rita

Educar para a SexualidadeHelena Alcobia

Alexandra Ribeiro Mendes

Helena Maria Serôdio

Porto Editora

pp. 95

A Educação Sexual é uma área de difícil abordagem pela maio-

ria dos professores, porque é um tema abrangente e multidisci-

plinar. Educar para a Sexualidade pretende ser um livro flexível e

moldável, que sirva de elemento de trabalho, de ponto de parti-

da ou de ancoradouro quando as dúvidas se amontoam, com al-

gumas sugestões inovadoras que podem levar os alunos a ad-

quirir competências em várias áreas muito para além da educa-

ção sexual.

Educação Especial e InclusãoQuem disser que uma sobrevive sem a outra não está no seu perfeito juízoLuís de Miranda Correia (org.)

Porto Editora

pp. 206

Este livro - o 13º da colecção Educação Especial - pretende dar

um pequeno contributo para aprofundar questões relevantes

nesta área do ensino, considerando temas e abordando ques-

tões com que se vem confrontando neste início de milénio, con-

tando, para isso, com a contribuição escrita de diversos autores

e investigadores nacionais e internacionais com experiência nes-

ta matéria.

Histórias de Longe e de PertoHistórias, contos e lendas de povos que falam também PortuguêsMaria de Lourdes Tavares Soares

Maria Odete Tavares Tojal

Ilustrações de Manuela Bacelar

Secretariado Entreculturas - Ministério da Educação

Paulinas Editora

pp. 222

"A colectânea de histórias tradicionais e de discursos transmis-

sores de experiências pessoais, que são o núcleo do projecto

Histórias de Longe e de Perto, inscreve-se nesse terreno tão mó-

bil e sensível que é o do encontro de pessoas provenientes de

grupos com memórias colectivas várias, traduzidas num legado

de valores, atitudes, expectativas e olhares muito diferenciados".

(Retirado da apresentação de Rui Tojal)

Da Cadeira InquietaIracema Santos Clara

Profedições

pp. 138

Na última década do século que findou conhecemos uma mu-

lher que queria ter sido arquitecta e que, por circunstâncias vá-

rias, não o foi de diploma, não perdendo, apesar disso, a vonta-

de de fazer esquissos de projectos na forma de palavras escri-

tas. No seu percurso conviveu com gentes e culturas diversas

que enriqueceram o exercício de reflexão sobre problemas do

mundo. Essa mulher, a Iracema, partilhou vivências com o jornal

"A Página da Educação". Partes de textos que aí foram parti-

lhados com emoção são agora publicados neste livro.

Circuito ou tendência alternativa de arte por correspondência, (...) fenómeno vivode resposta e criação, sem fronteiras, que usa técnicas e suportes diversificados.Iniciada nos anos 50 pela "Correspondance Art School", a "Arte Postal" desen-volve-se com o funcionamento universal dos serviços de correios potenciandouma ruptura com a tradição artística dos movimentos e academias de arte.

Grupos como os expressionistas do "Caballo Azul" e de "El Jinete", ou co-mo os dadaístas, futuristas e surrealistas, entre os quais Kurt Schwitters, Tris-tán Tzara, Marcel Duchamp e Marinetti, usaram a “Arte Postal” para divulgar ospontos de vista dos respectivos grupos. Na década de 60, iniciou-se na Amé-rica do Sul, um movimento de poetas e editores, que integrou, entre outros,Eduardo Antônio Vigo, da revista "Diagonal Cero", o uruguaio Clemente Padín,o brasileiro Wlademir Diaz Pino e o chileno Guillermo Deisler.

Arquivos, revistas, fanzines e exposições são algumas das formas escolhi-das pelos artistas postais para publicitar a respectiva arte. Ponto alto deste mo-vimento foi a inclusão, pela primeira vez - fora dos circuitos marginais e alter-nativos, de um secção dedicado ao fenómeno, na Bienal de São Paulo. a mea-dos dos anos 70.

É a aceitação (recuperação?) sem o questionamento de sua legitimidade,pelos meios oficiais, da existência e do funcionamento deste circuito de cria-ção artística, hoje com menos expressão pela via postal face ao avanço do cor-reio electrónico. Uma expressão minoritária que, apesar de tudo, resiste. A jul-gar por convocatórias abertas, a correr mundo, como a que pede olhares so-bre o futebol, a pretexto do Euro 2004.

tema: “Futebol é...”data limite: 31.05.2004suporte: qualquer objecto que circule via postal, habitual e preferencialmenteno formato de bilhete postaltécnica: livre

Endereço postalFutebol é...Apartado 45194000-001 PortoPortugal

Arte postal (renascimento?)«futebol é...»

Numa iniciativa da Associação para a Medicina, as Artes e as Ideias (AMAI) es-tá patente na Galeria do Palácio (Biblioteca Almeida Garrett, Palácio de Cristal,Porto) uma exposição de imagens que «documenta o fascínio com que o Ho-mem procura desvendar a beleza dos segredos dos seus mundos, rompendoinexoravelmente com a estabilidade de verdades estabelecidas». Denominada“Verdade & Beleza”, esta exposição de imagens que transmitem dados cientí-ficos parece submeter-se a cânones de uma qualquer corrente estética. Per-turbante, como a consciência de que a matéria observada se altera, e enigmá-tica, como seria equacionar a dúvida que reside na questão de saber se foi ovirus que gerou a vida (ou o contrário), a exposição, como escreve Denna Jo-nes, conservadora da Galeria Two Ten, em Londres, reflecte a relação simbióti-ca entre a verdade e a beleza, relação que torna a ciência e a arte parceiros desedução. De um olhar sobre um virus devastador a um cérebro mostrando ocortex visual, esta «Verdade & Beleza» não se pode perder na Galeria do Palá-cio (Biblioteca Almeida Garrett)

«Verdade & Beleza» (Biblioteca Almeida Garrett Palácio de Cristal/ Porto)Terça a Sábado das 10h00 às 18h00 ⁄ Domingo das 14h00 às 18h00até 29 de fevereiro

AMAI no Palácioaté 29 de Fevereiro

© isto é

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46a páginada educaçãofevereiro 2004

andarilho

CINEMAPaulo Teixeira

de Sousa Escola Secundária

Artística Soares dos Reis

Em 2003 a Associação Atractor reali-zou no Departamento de Matemáticada Faculdade de Ciências da Univer-sidade do Porto uma exposição dedi-cada ao "mundo da simetria." Comoroteiro da referida exposição foi edi-tado um livro, "O ritmo das formas".Na sua apresentação os editores es-crevem:

"(...) Narra uma viagem guiada pe-la matemática, que, como disciplinaincumbida de representar o mundoreal sob a forma abstracta, pode ofe-recer-nos uma acuidade de visão su-ficiente para detectarmos a harmoniaoculta em formas aparentemente dis-tintas, e ajudar-nos a descobrir umachave de leitura significativa, umapossibilidade de pôr ordem nos "ema-ranhamentos" de que fala Gombrich."

Num dos vários artigos apresenta-dos neste "roteiro", aparece um emforma de entrevista com (de) MicheleEmmer - matemático, escritor, realiza-dor de cinema, jornalista, organizadorde exposições. Um dos seus filmes vaipassar na série "Arte e Matemática" apassar na "Dois" aos domingos. Aquiestão algumas transcrições:

"O cinema é uma espécie de enge-nhoca que nos faz entrar num mundo"geométrico" à parte, onde quem diri-ge dita, em certo sentido, as regras.Sob a direcção do realizador a máqui-na de filmagem comporta-se como umoperador geométrico que "armazena"imagens para as quais o realizador de-cide antes de mais, com base no seupróprio gosto e nas suas inclinações,qual deve ser o ponto de vista privile-giado. (Os espectadores deverãoaperceber-se o menos possível destaintervenção e deverão julgar que asimagens que lhe são apresentadassão as mais naturais, as mais "justas"possíveis. Quanto mais espontâneoum filme parecer, mais hábil o realiza-dor terá sido a filmá-lo.) As imagens

Para o Alberto, Aurora, Conceições, Isabel, Júlio e Lurdes, pois arriscámo-nos a ser os últimos professores de Matemática da “Soares dos Reis”

O RECTÂNGULO DA FANTASIA

são depois modificadas com a mon-tagem, a dobragem, os efeitos espe-ciais e enfim projectadas numa telaplana: fazer cinema consiste, de certomodo, no reduzir a realidade tridimen-sional a uma película bidimensional edevolvê-la - através da projecção querecria o efeito tridimensional - filtradapelo olho do realizador.

Todas estas operações pressu-põem escolhas que não são de modoalgum neutras e nas quais a simetriatem um papel importante já a partir dodado objectivo ligado ao formato. Oformato cinematográfico é de factorectangular e portanto as imagens de-vem ser pensadas "mais largas quealtas". (Mesmo se uma das grandesinvenções de Orson Wells com "Quar-to Poder" tenha sido aumentar nosentido da altura as imagens, mos-trando o tecto - que antes nunca sevia no cinema! - para dar a ideia depotência, de poder). O formato esta-belece regras para as cenas, incluin-do aquela fundamental de que tudose desenrola num rectângulo mas de-ve parecer que se passa noutro lugar;ninguém se deve aperceber de queestá simplesmente a ver uma sombraprojectada por uma lâmpada a partirde fotogramas que passam sobre umrolo, acompanhado de música. O ci-nema é disfarce, mas não deve apa-recer como tal. As cenas devem ser

arquitectadas, mas sem o mostrar:não devem ser demasiado cheias nemdemasiado vazias; no primeiro casoparceria teatro, no segundo cinemapobre e banal.

Por outro lado a simetria intervémtambém ao regular as relações entrea cenografia, o movimento, as partesdescritivas, as partes de diálogo e en-tre todos estes elementos e a duraçãoda história. O tempo é de facto um ele-mento na organização do filme: o ce-nário, a história, as imagens são for-madas utilizando o tempo, tempodescontínuo que deve dar a impres-são de ser contínuo. Um segundo cor-responde a 24 imagens e a duraçãototal não deve superar 90-150 minu-tos. A montagem tem por isso de har-monizar as cenas, criar um equilíbrio,gerar uma ordem que frequentemen-te é ditada por exigências de simetria,ainda que não demasiado rígida. (Dequalquer modo, na história do cine-ma, têm grande importância tambémas situações em que se realiza umarotura desta simetria: por vezes o ci-nema que tenciona caracterizar-secomo antecipação, como inovação,fá-lo justamente através da quebra deuma simetria).

(...) O cinema nasceu como cinemacientífico, para recolher movimentosque de outro modo não se conseguiamcaptar: um cavalo a galope, a harmo-

nia de uma mulher nua em movimento.Não só se podem colher imagens

não visíveis a olho nu, como se podeconstruir uma realidade que não exis-te: pode-se visitar o reino dos mortos,pode-se andar no microcosmos, sobregaláxias. Obviamente a realidade é fru-to da fantasia. O importante é que se-ja sempre claro que toda a técnica es-tá disponível para fornecer meios a umaideia De outro modo fazem-se vídeo-jogos. E a imagem deve ser "necessá-ria" senão é muito melhor um livro.

E neste mundo de "potencialida-des harmónicas" temos necessidadenão só de ideias, mas também denormas: vêm-me à mente as palavrasde Ennio De Giorgi numa vídeo-entre-vista que me concedeu em 1966:"Precisamos de regras; em particularé necessário conhecer os instrumen-tos que se usam." No nosso contex-to é preciso conhecer bem a máqui-na de filmar, a montagem, a dobra-gem, o ritmo da música e das pala-vras, não se pode improvisar.

Para exercitar a fantasia é neces-sário ter regras. A liberdade sem leisfrequentemente não produz nenhumresultado interessante. Recordo-medas discussões há uns anos com Lu-cio Lombardo Radice a propósito doFestival de Cinema Jovem de Pisa.Ele e tantos outros sustentavam queera preciso colocar a máquina de fil-mar ou telecâmara nas mãos dos jo-vens sem os oprimir com regulamen-tos para não tolher a sua imaginação.Absolutamente falso! Assim produ-zem-se só os filmecos caseiros dosjaponeses ou os filmes que os do-centes passam nos departamentosde televisão universitários."

Para mais informações: www.atractor.pt

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47a páginada educaçãofevereiro 2004

ciência

FOTO ciência com legendaLuís Tirapicos

DA CIÊNCIAe da vidaRui Namorado RosaUniversidade de Évora

[email protected]

Foto

: NAS

A/JP

L/ (F

ever

eiro

200

4)

A 2 de Janeiro a Sonda norte-

americana Stardust passou mui-

to próximo do núcleo do Come-

ta Wild 2. O resultado foi esta im-

pressionante imagem, que mos-

tra um núcleo de forma irregular

com 5 km de diâmetro. As câ-

maras instaladas na sonda não

pretendiam recolher dados cien-

tíficos, mas apenas auxiliar a na-

vegação. O principal objectivo

dos cientistas era outro: recolher

amostras de partículas do come-

ta in loco. Um desafio tecnológi-

co, já que o encontro da sonda

com essas partículas se deu a 6,1

km por segundo. Em Janeiro de

2006 uma pequena cápsula re-

gressará à Terra transportando a

bordo os resultados da colheita

Coração de Cometa

O Ambiente tem o sentido detudo aquilo que está lá fora,que supostamente será infi-nito, imutável e inesgotável.Mas será assim connosco,humanidade, neste planetaredondo e finito? No quadrodo sistema político vigente,na verdade, a palavra Am-biente passou a ser utilizadapara delimitar uma fronteiraentre o que é privado e o queé do domínio público ou deinteresse social. É uma fron-teira que se move. No fundonão corresponde a nada quetenha a ver com a Naturezaela própria, mas sim com aorganização e a actividade dasociedade humana na sua re-lação com a Natureza. E poressa via tem significado polí-tico e é domínio de interven-ção política. Por isso há mo-vimentos ambientalistas e atépartidos que se reclamamambientalistas.

A Ecologia é uma discipli-na científica recente, quereúne conhecimentos sobreos seres vivos e minerais, eas condições físicas e quími-cas existentes à superfície daTerra, para se ocupar dassuas íntimas relações e inter-dependências. Mas muitasvezes essa palavra Ecologiaé utilizada de forma muito li-vre e até já sem qualquer re-lação com o seu verdadeirosignificado e âmbito de apli-cação. Outras vezes é utili-zada com sentido rigorosomas integrando, para alémdas esferas geológica e bio-lógica, a esfera da socieda-

Natureza e sustentabilidadeNo quadro do sistema político vigente, (…) a palavra Ambiente passou a ser utilizada para delimitar

uma fronteira entre o que é privado e o que é do domínio público ou de interesse social. É uma fronteira que se move.

de humana também, por es-se modo reconhecendo e su-blinhando as interdependên-cias vitais entre o homem e aNatureza. Nesta acepção, oconceito de Ecologia radicano materialismo dialéctico eno marxismo.

Os Recursos naturais maisbásicos à vida do Homem sãoo ar e a água, em terra são asrochas e o solo e os seres vi-

vos que sobre estes se supor-tam e são os mares e os seresvivos que os habitam. Mas pa-ra sociedades tecnicamentemais evoluídas, recursos sãotambém os minérios, os com-bustíveis fósseis (carvão, pe-tróleo, gás natural).

Nas quatro últimas déca-das, o próprio espaço exteriorse tornou em recurso tam-bém, neste caso não pelo que

vamos lá buscar mas pelo quepodemos ir fazer lá (observare estudar a Terra e o Univer-so, suportar redes de teleco-municações, e lamentavel-mente, até para fazer guerra).

As sociedades tecnica-mente mais evoluídas ten-dem a fazer utilização maisintensiva de todos os recur-sos. E se os interesses de al-guns prevalecem sobre os in-

teresses da comunidade, aexploração irracional dos re-cursos naturais, principal-mente os mais escassos oufrágeis, pode levar à sua de-gradação ou mesmo ao seuesgotamento, com conse-quências graves e duradou-ras. A utilização dos recursosnaturais, sendo componenteessencial à actividade eco-nómica, tem grande impor-tância e significado político.

Sustentabilidade é tam-bém uma ideia que ganhouimportância nas três últimasdécadas. A sua importânciaadvém do reconhecimento,agora universal, que os recur-sos naturais são limitados, al-guns são mesmo escassos.No fundo, as sociedades hu-manas dispõem de recursosnaturais indispensáveis parao seu trabalho o para seu sus-tento. A diversidade de recur-sos utilizados e a maneira co-mo são trabalhados, são ele-mentos caracterizadores dacultura (material e espiritual)da sociedade. A escassez ge-ra-se no conflito da evoluçãocultural com os meios dispo-níveis. Uma sociedade queutiliza mal os seus recursos,cria situações instáveis quediminuem ou agravam ascondições de vida dos seuscidadãos, e que podem con-duzir ao colapso da organiza-ção social, no imediato ou aprazo. Assim aconteceu comantigas civilizações.

Oxalá saibamos ser sá-bios para que tal não aconte-ça com a nossa.

A ECOLOGIA é uma disciplina científica recente, que reúne conhecimentos sobre os seres vivos e minerais, e as condições físicas e químicas existentes à superfície

da Terra, para se ocupar das suas íntimas relações e interdependências.

© isto é

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48a páginada educaçãofevereiro 2004

OBSERVATÓRIO depolítica educativa

Luísa MesquitaDeputada do Grupo

Parlamentar do PCP

PINTURA sem título

António Santiago Sottomayor

acrílico sobre madeira

60x60cm

ano 1979 ⁄ 80

em memória do artista

do professore do amigo

Recentemente, a Comissão Europeiaconcluíu que as estratégias e os ob-jectivos [delineados na Cimeira deLisboa] não se concretizaram ao rit-mo desejado e programado.

É esta a conclusão expressa no do-cumento de trabalho “Educação eFormação para 2010 – A Urgência dasReformas Necessárias para o Suces-so da Estratégia de Lisboa”.

Dos indicadores europeus quanti-ficados e pretendidos para 2010, jus-tifica-se referir o pouco empenha-mento do governo português na suaconsecução.

Em 2002, o abandono escolar pre-coce (percentagem da população en-tre os 18 e os 24 anos com apenas oensino básico e que não está a estu-dar ou em formação) posiciona-nosno pior lugar da tabela com 45,5%,enquanto a média da União Europeiaé de 18,8%.

Mas igualmente preocupante é averificação da diminuição do abando-no escolar ocorrida no início da déca-da de 90 e o seu posterior aumento apartir de meados desta mesma déca-da, que remetem o país para índicesde há pelo menos 10 anos.

Relativamente à conclusão do en-sino secundário só 44,9% da popula-ção com 22 anos termina este nível deensino, enquanto a União Europeiaatinge os 75,4%.

No que se refere às aprendizagensbásicas, 26,3% dos nossos alunoscom 15 anos têm capacidade de lei-tura igual ou inferior ao nível 1 da es-cala de competência em leitura.

Mas também na área da formaçãoao longo da vida Portugal possui opior índice da União Europeia.

Só 2,9% da população portugue-sa entre os 25 e os 64 anos participouem acções de formação nas quatrosemanas anteriores ao inquérito for-mulado em 2002, enquanto a médiada União Europeia atinge os 8,5%.

Também nas áreas do Ensino Supe-rior e Investigação Científica o cenárioportuguês é francamente negativo.

No que se refere à igualdade deoportunidades (homens/mulheres) odiferencial é de 26% a favor do sexomasculino.

Temos a mais baixa taxa de diplo-mação de toda a União Europeia epossuímos também a mais baixa dediplomação em Matemática, Ciênciase Tecnologias.

A Comissão, não obstante a dura ecrua realidade, reavaliou as estraté-gias e objectivos e definiu algumas ac-ções prioritárias, como por exemplo,sugerir que cada estado-membro con-centre as reformas e os investimentosnas áreas que considere determinan-tes, que cada estado-membro definaprogramas globais e concretos nas

áreas da educação e formação e quecada estado-membro utilize o progra-ma “Educação e Formação para 2010”como um instrumento de formulação,acompanhamento e avaliação das po-líticas nacionais.

Perante estes dados era natural-mente exigível que o Governo tomasseopções políticas capazes de responderadequadamente aos nossos deficits.

Mas o Governo prefere investir nonosso afastamento, pelo quarto anoconsecutivo, da média de crescimen-to da União Europeia.

O Governo opta por hipotecar o fu-turo do país e dos portugueses.

O Governo opta por submeter opaís aos ditames do Pacto de Estabi-lidade.

Ao longo destes quase dois anos degovernação, a maioria PSD/CDS/PPtudo tem feito para transformar as es-colas em empresas, numa lógica demercado e, por isso, não foram ingé-nuas as divulgações dos rankings, evi-denciando aquelas “empresas /esco-las” que, à partida, interessa posicio-nar nos lugares de topo.

Na perspectiva da maioria a escolaé um espaço de elites seleccionadas.

E se a este espaço educativo che-gam outros, que não os eleitos, propõe-se-lhe o mundo do trabalho precoce ouuma via profissionalizante mais ade-quada à sua origem de classe.

A exclusão, o abandono e o insu-cesso escolares são assumidos comofactos para os quais não se propõemmedidas.

Impõe-se antes a diminuição do fi-nanciamento para a escola pública.

A preocupação do governo e assu-mida pelo Ministro David Justino em se-de de Comissão de Educação é clara,não engana sequer os mais distraídos.

Educação sim mas com menosdespesa, com mais alunos por turmae com vínculos laborais mais precá-rios para os docentes.

Às instituições de Ensino Superiorforam retirados mais de 20 milhões deeuros no Orçamento de Estado para2004 que influenciarão de forma de-terminante a qualidade do seu fun-cionamento.

Na ciência a situação é idêntica.Onze Laboratórios de Estado dasmais diversas áreas tiveram um corteglobal de 12,3%, crescendo a pres-são sobre as instituições para procu-rar receitas próprias e subestimar asactividades de I&D.

E enquanto a qualificação dos por-tugueses e o desenvolvimento do paíssão trucidados por uma feroz política dedireita, o governo deleita-se no exercí-cio da cunha, do favoritismo da cliente-la política, nas irregularidades que põemem causa o direito do cidadão e lançamo descrédito sobre as instituições.

A União Europeia definiu em 2001, em Lisboa, metas educativas ambiciosas para atingir em 2010. A Europa afirmava pretender basear a sua economia numa dinâmica e competitividade do conhecimento, que fosse capaz

de garantir um crescimento económico sustentável, com mais e melhores empregos e com maior coesão social.

Da educação do Governo e da clientela política