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Nº 15 - 18 de Julho de 2014 Levi Martins As irmãs Macaluso marcam presença no encerramento do 31. º Festival de Almada Viver em família e de olhos postos na morte As irmãs Macaluso aterraram ontem em Lisboa, vindas do Festival d’Avignon. No estran- geiro, naquela que foi a estreia de Emma Dante no festival francês, a recepção foi caloro- sa. Esta noite pisarão pela primeira vez os palcos do Festival de Almada, aos quais trazem a história de uma família que nos recorda que, em cada fim, algo novo tem início. A família Macaluso é “uma família muito pobre, com muitos problemas econó- micos e na qual as pesso- as estão habituadas a viver juntas o tempo todo”, explica Emma Dante na entrevista que deu ao jornal Expresso. “No seu interior há muitos ressentimentos, velhos conflitos e culpas que geram uma espécie de curto-circuito. No en- tanto, e apesar desses conflitos, estas pessoas não conseguem vi- ver separadas”. Não se desfazem os laços que unem as sete irmãs entre si, nem tampouco aqueles que as ligam a quem já partiu e continua a existir em recordações – os seus pais, o filho de uma de- las, sobrinho das demais. O mo- mento presta-se a convocá-los: a morte bateu outra vez à porta, vamos a mais um funeral. A família e a morte Ao jornal i Emma Dante justifica a sua obsessão pelo tema da famí- lia – que, já em 2008, constituíra o núcleo do ciclo de três peças (Carnezzeria, Vita mia e Mishelle di Sant’Oliva) que trouxe ao Centro Cultural de Belém: “É o meu tema preferido porque é na família que se estabelecem as mais importan- tes relações, é onde se formam os indivíduos, onde nascem, morrem. E a mim particularmente, interessa- -me explorar o mundo primordial, o início de tudo”. Mas o fim tam- bém não lhe é indiferente. Emma Dante teve a oportunidade de olhar a morte nos olhos, quando o irmão desapareceu ainda muito jovem e teve de conviver com o sofrimento da mãe. “Sobre a mor- te, tenho muita matéria…”, admite a dramaturga e encenadora sici- liana (que também representa, es- creve romances e realiza filmes). No entanto, há muito que esta dei- xou de ser, para si, algo misterioso ou problemático: “A morte é um problema dos vivos. Causa dor a quem resta, não a quem morre. Eu apenas trabalho sobre a memória e esta condição dolorosa que so- bra depois da morte e que atinge os vivos”. A ilha da Sicília e a cidade de Paler - mo em particular (de onde Emma Dante é oriunda) – com a sua so- ciedade patriarcal, fechada sobre si mesma, linguística e geografica- mente isolada – acentua também a angústia destas personagens, encurraladas entre as limitações do quotidiano, as expectativas alheias e os sonhos que, apesar de tudo, insistem em alimentar. Olhar catártico e optimista Emma Dante reconhece a sua in- capacidade de fazer concessões: “O meu teatro é muito frontal, e isso se calhar é que acaba por se tornar embaraçoso e desagradá- vel”. Mas, nesta peça, garante ter deixado espaço de sobra para a esperança. A felicidade é possível na terra – não num Além longín- quo no qual não acredita. A peça é a exposição poética, umas vezes tensa, outras tantas descontraída, das interrogações que levanta há anos e que encontram, no corpo e na espontaneidade dos actores que se recusa a dirigir, o veículo perfeito. O seu método é simples: Normalmente tenho um tema, depois trabalho com o meu gru- po sobre as formas como o quero trabalhar. Não dirijo”. N ão me vou despedir. Não consigo. O es- pectáculo vai acabar e a luz vai acender-se sobre a plateia uma última vez. Vamos todos levan- tar-nos e, lentamente, começaremos a subir e descer escadas. Alguns em silêncio, à espera de um lugar mais privado para comentarem o que viram. Outros já com as palavras à solta, sorrisos abertos, gargalhadas de alegria ou da tensão que precisam de aliviar. Assim que encontrarmos espaço aberto juntar-nos-emos em pequenos grupos, grandes grupos. No bal- cão os copos estarão já prontos, meio cheios de bebidas coloridas ou inco- lores, copos que vão aju- dar a segurar as conver- sas que se irão desenrolar como fios invisíveis que cada um puxará, e em que alguns darão nós, para conseguirem seguir em frente sabendo que, as- sim, podem sempre voltar atrás. Eu também lá esta- rei. A conversar. De copo na mão. Como os outros, também entrarei nessa dança de grupo em grupo, de conversa em conversa, tentando, porém, não ficar tempo suficiente em ne- nhum para que seja pre- ciso dizer adeus. E assim que começar a sentir que começámos a sentir que está a chegar o momento de ir embora – assim que me chegar aquele primei- ro tremor premonitório do fim –, vou afastar-me dis- cretamente e desaparecer sem que ninguém repare. Sem cerimónia

Nº 15 - 18 de Julho de 2014 Sem º Viver em família e de ... · micos e na qual as pesso- ... a morte bateu outra vez à porta, vamos a mais um funeral. A família e a morte

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Nº 15 - 18 de Julho de 2014

Levi Martins

As irmãs Macaluso marcam presença no encerramento do 31.º Festival de Almada

Viver em família e de olhos postos na morteAs irmãs Macaluso aterraram ontem em Lisboa, vindas do Festival d’Avignon. No estran-geiro, naquela que foi a estreia de Emma Dante no festival francês, a recepção foi caloro-sa. Esta noite pisarão pela primeira vez os palcos do Festival de Almada, aos quais trazem a história de uma família que nos recorda que, em cada fim, algo novo tem início.

A família Macaluso é “uma família muito pobre, com muitos problemas econó-micos e na qual as pesso-

as estão habituadas a viver juntas o tempo todo”, explica Emma Dante na entrevista que deu ao jornal Expresso. “No seu interior há muitos ressentimentos, velhos conflitos e culpas que geram uma espécie de curto-circuito. No en-tanto, e apesar desses conflitos, estas pessoas não conseguem vi-ver separadas”. Não se desfazem os laços que unem as sete irmãs entre si, nem tampouco aqueles que as ligam a quem já partiu e continua a existir em recordações – os seus pais, o filho de uma de-las, sobrinho das demais. O mo-mento presta-se a convocá-los: a morte bateu outra vez à porta, vamos a mais um funeral.

A família e a morteAo jornal i Emma Dante justifica a sua obsessão pelo tema da famí-lia – que, já em 2008, constituíra o núcleo do ciclo de três peças (Carnezzeria, Vita mia e Mishelle di Sant’Oliva) que trouxe ao Centro Cultural de Belém: “É o meu tema preferido porque é na família que se estabelecem as mais importan-tes relações, é onde se formam os indivíduos, onde nascem, morrem. E a mim particularmente, interessa- -me explorar o mundo primordial, o início de tudo”. Mas o fim tam-bém não lhe é indiferente. Emma Dante teve a oportunidade de olhar a morte nos olhos, quando o irmão desapareceu ainda muito jovem e teve de conviver com o sofrimento da mãe. “Sobre a mor-te, tenho muita matéria…”, admite a dramaturga e encenadora sici-

liana (que também representa, es-creve romances e realiza filmes). No entanto, há muito que esta dei-xou de ser, para si, algo misterioso ou problemático: “A morte é um problema dos vivos. Causa dor a quem resta, não a quem morre. Eu apenas trabalho sobre a memória e esta condição dolorosa que so-bra depois da morte e que atinge os vivos”.A ilha da Sicília e a cidade de Paler-mo em particular (de onde Emma Dante é oriunda) – com a sua so-ciedade patriarcal, fechada sobre si mesma, linguística e geografica-mente isolada – acentua também a angústia destas personagens, encurraladas entre as limitações do quotidiano, as expectativas alheias e os sonhos que, apesar de tudo, insistem em alimentar.

Olhar catártico e optimistaEmma Dante reconhece a sua in-capacidade de fazer concessões: “O meu teatro é muito frontal, e isso se calhar é que acaba por se tornar embaraçoso e desagradá-vel”. Mas, nesta peça, garante ter deixado espaço de sobra para a esperança. A felicidade é possível na terra – não num Além longín-quo no qual não acredita. A peça é a exposição poética, umas vezes tensa, outras tantas descontraída, das interrogações que levanta há anos e que encontram, no corpo e na espontaneidade dos actores que se recusa a dirigir, o veículo perfeito. O seu método é simples: “Normalmente tenho um tema, depois trabalho com o meu gru-po sobre as formas como o quero trabalhar. Não dirijo”.

N ão me vou despedir. Não consigo. O es-pectáculo vai acabar

e a luz vai acender-se sobre a plateia uma última vez. Vamos todos levan-tar-nos e, lentamente, começaremos a subir e descer escadas. Alguns em silêncio, à espera de um lugar mais privado para comentarem o que viram. Outros já com as palavras à solta, sorrisos abertos, gargalhadas de alegria ou da tensão que precisam de aliviar. Assim que encontrarmos espaço aberto juntar-nos-emos em pequenos grupos, grandes grupos. No bal-cão os copos estarão já prontos, meio cheios de bebidas coloridas ou inco-lores, copos que vão aju-dar a segurar as conver-sas que se irão desenrolar como fios invisíveis que cada um puxará, e em que alguns darão nós, para conseguirem seguir em frente sabendo que, as-sim, podem sempre voltar atrás. Eu também lá esta-rei. A conversar. De copo na mão. Como os outros, também entrarei nessa dança de grupo em grupo, de conversa em conversa, tentando, porém, não ficar tempo suficiente em ne-nhum para que seja pre-ciso dizer adeus. E assim que começar a sentir que começámos a sentir que está a chegar o momento de ir embora – assim que me chegar aquele primei-ro tremor premonitório do fim –, vou afastar-me dis-cretamente e desaparecer sem que ninguém repare.

Sem cerimónia

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Um Arraial entre o sagrado e o profanoAndré Braga, director artístico

dos Circolando, esteve on-tem à conversa com Eunice

Tudela de Azevedo, naquele que foi o último Colóquio na Esplana-da desta edição do Festival. Na noite anterior tinha sido apresen-tado o espectáculo Arraial delu-xe no Palco Grande, que contou com a música ao vivo dos Dead Combo, vários intérpretes de dife-rentes nacionalidades e a partici-pação do público. O espectáculo, que partiu de uma pesquisa que procurou compreender o que são hoje as festas populares, é um exemplo da “transdisciplinarida-de” característica do trabalho dos Circolando.

Inventar novos mundosA história dos Circolando nasceu do encontro entre André Braga e

Cláudia Figueiredo, ele vindo da Educação Física, ela da Socio-logia. Terá sido da junção destes dois caminhos que surgiu “uma vontade de criar, de inventar no-vos mundos, novos caminhos para a cabeça”, como explicou Braga, que sublinhou como o trabalho que desenvolvem acaba sempre por aliar aquilo que esteve presente logo no início – uma pre-ocupação com a fi sicalidade, no contexto das artes performativas, e um constante questionamento sobre “quem somos e porque es-tamos aqui”.

O sagrado e o profanoArraial deluxe, em que André Braga partilha a direcção com Madalena Victorino – coreógra-fa que tem desenvolvido vários trabalhos artísticos que incluem

a comunidade –, terá partido de um desejo de pensar “o Norte e o vento, um vento como medo, medo da tempestade”. Este dese-jo levou os Circolando a ir ver as festas do Norte, e a descobrir que continuavam a representar uma certa possibilidade de as pessoas se expurgarem da vida quotidia-na. Desse percurso, André Braga destacou uma história: numa das

festas, quando estavam entre dois ou três carroséis, cada um com a sua música a concorrer com a música do lado, subitamente som e movimento foram interrompi-dos. Ficaram só as luzes a piscar. Pouco depois, o silêncio terá sido cortado por uma procissão de ve-las. O sagrado atravessou o pro-fano e, em seguida, tudo voltou ao normal.

Eunice Tudela de Azevedo e André Braga

PALHETA ILIMITADA

Não: vota toda a gente.Diz que este é o único festival em que o público

vota no último dia para um espectáculo regressar no ano seguinte.

Não é lá muito original.E só os Assinantes é que votam?

À mesa com Osvaldo Obregón

Os leitores atentos da Folha informativa e da rubrica “À mesa com...” terão re-

parado já na assídua presença de garrafas de uma conhecida marca de água portuguesa: à esquerda ou à direita, à frente ou em segun-do plano, o transparente líquido acaba por se imiscuir na fotografi a. Osvaldo Obregón, no entanto, não parece incomodado com a presen-ça do objecto em primeiro plano, que lhe terá servido, inclusive, para ajudar a engolir o faustoso almoço do Restaurante do Teatro. Porque mesmo um investigador teatral chi-leno radicado em França, vencedor do Prémio Internacional de Jorna-lismo Carlos Porto em 2009, tem de comer – e não se deixa eclip-sar assim por coisas cuja principal qualidade é chegarem-se à frente.

Festa de EncerramentoO

convidado musical da festa de encerramento do 31.º Fes-tival de Almada é JP Simões.

Hoje, a partir das 23h00, será pos-sível escutá-lo na Esplanada da Escola D. António da Costa. Antes mantivemos com ele, por telefone, uma conversa atribulada sobre o seu último álbum e a sua relação com o teatro.

Um universo diversoLançado em 2013, Roma apresen-ta “estéticas diferentes” e espelha a vastidão do universo musical que o autor conhece e a infl uência de muitas das pessoas com quem já trabalhou. O título procura con-densar a “tensão polémica e a decadência desse império” e, por outro lado, remeter para a actual situação económica do país. A di-

versidade que JP Simões acarinha manifesta-se não apenas nos gé-neros musicais, mas também nas línguas em que canta e que vão do italiano ao inglês, passando pelo português do Brasil.

O teatro segundo JP SimõesJP Simões escreveu também o li-breto de Ópera do falhado, levado à cena e posteriormente editado em livro. No seu entender, o teatro é um “trabalho colectivo, uma arte com presença física, de represen-tação da vida”. Aquando da pre-paração da apresentação pública desta ópera, JP Simões percebeu que, no teatro, existe a “busca de ideias que movam” e um “questio-namento constante”. Afi nal, para o músico, o teatro “é uma boa des-culpa para fazer canções”.