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No ponto de ônibus Eu decorei aquele momento como se fosse um código para um cofre secreto. Cada detalhe, cada plano de fundo e cada cheiro. Tornei aquela situação um país da memória em que eu visitava sempre que sentia que faltava algo a mim. Meus movimentos tímidos incrivelmente eram semelhantes aos movimentos tímidos dela. Brincávamos de fazer silêncio e rir para o infinito. Jogávamos olhares rápidos para nossas bocas e viajávamos nas montanhas-russas de nossos lábios. Nossos cílios eram cortina de decoração de nossas faces esculpidas em nossas pupilas. Fazíamos samba com as mãos em nervosismo e em uma fração de segundos engolíamos frases que poderíamos ter dito um para o outro, mas sem nos saciar.

No ponto de ônibus

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Page 1: No ponto de ônibus

No ponto de ônibus

Eu decorei aquele momento como se fosse

um código para um cofre secreto. Cada

detalhe, cada plano de fundo e cada cheiro.

Tornei aquela situação um país da memória

em que eu visitava sempre que sentia que

faltava algo a mim. Meus movimentos

tímidos incrivelmente eram semelhantes

aos movimentos tímidos dela. Brincávamos

de fazer silêncio e rir para o infinito.

Jogávamos olhares rápidos para nossas

bocas e viajávamos nas montanhas-russas

de nossos lábios. Nossos cílios eram cortina

de decoração de nossas faces esculpidas

em nossas pupilas. Fazíamos samba com as

mãos em nervosismo e em uma fração de

segundos engolíamos frases que

poderíamos ter dito um para o outro, mas

sem nos saciar.

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Há um tempo eu não a via. Tempo que não

foi suficiente para deletá-la dos meus

arquivos mentais incompletos e dos meus

desejos ancorados. Nem deletar minha

sensação de ficar estagnado e entalado no

silêncio que ela me provocava.

Talvez por ela ter aquela risada analgésica.

Talvez por ela também não ser tão clichê.

Não digo o mesmo de mim, pois fazia o

mesmo sempre que a assistia. Ressuscitei

tudo que um dia imaginei ou tentei viver,

seja claro ou escuro, bonito ou trágico,

apenas fiz crescer no ébano dos meus

pensamentos. Até me recordei brevemente

de nossa história.

A minha cidade não é muito grande. Ela

tem em média um número de cidadãos que

nem os próprios cidadãos sabem. Mas a

gente finge que é um número razoável. Ao

menos para pegar ônibus não era tão difícil

quanto na capital. Ouvia isso também de

alguns cidadãos.

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Os ônibus não demoravam passar. Eram

pontuais, assim como quem os aguardava.

Eu o esperava todos os dias. A rotina era

religiosa, mas nem tanto iluminada.

Minha casa fica a uma distância

desproporcional a resistência dos meus pés

e da minha força de vontade. O ônibus era

minha ambulância: transferia gentilmente

meu corpo acabado pela longa labuta

diária. Quando o ônibus dava as caras no

cateto da rua, erguia meu braço e fazia

uma sinalização para parar como se fosse

um tom romântico de pegue o meu braço e

me leve, me possua, seja o meu guia

espiritual.

Meus olhos murchos e minhas bochechas

enrugadas me entregavam. Às vezes eu

fingia um sorriso para a trocadora. Mas ela

me devolvia um de volta provavelmente

ironizando meu cabelo desarrumado e

minha blusa do avesso.

Page 4: No ponto de ônibus

Mas nos finais de semana o ônibus não era

tão pontual, principalmente à noite.

Esperávamos mais do que o atraso

permitia.

Lá no ponto de ônibus não tinha assento,

era sofrer e pedir perdão para os pés, que

em vista da longa jornada já flutuavam e às

vezes nem sentiam o chão. Os olhos

bancavam de vigias. O pescoço clamava por

perdão pelas retorcidas, era cá e lá, lá e cá,

praticamente o tratando como uma tampa

de uma garrafa pet, só que sem abri-la

completamente. A cintura era encosto para

os braços, que quando repousados nela,

davam a entender que eu estaria tentando

algum tipo de dança estranha com o corpo

parado. As dores físicas eram só confeites,

as dores por dentro eram recheios de sabor

amargo. Eu já não sabia mais distinguir o

que era, o que eu queria e em que situação

eu me encontrava. Vivia perdido nos meus

devaneios e nas minhas preocupações com

Page 5: No ponto de ônibus

tudo que não se preocupava comigo. Era

abominado por uma confusão de

realidades, confusão de tempo e espaço.

Não encontrava na linha retilínea do

universo. Dava espaço até para aquele frio

que sobrevoava minha alma e pousava em

minha solidão. Eu já não me sentia mais

amado. Nem por mim mesmo. E nem me

sentia nos meus dias. Sequer um fiasco de

reciprocidade. Não. Nada.

Após percorrer a maratona dos trabalhos

ainda sem a bandeirada final, encostei em

uma das pilastras do que antigamente era

uma coberta para o ponto. Era confortante

e ficava exatamente no centro de tudo que

me rodeava e eu observava em silêncio. O

mendigo brigando com seus pés para ver

quem tinha todo o calor do pequeno

cobertor para si. A moça afogando o bebê

em seus seios numa tentativa desesperada

de parar o seu choro. E, para minha

surpresa, vindo em direção ao ponto, a

Page 6: No ponto de ônibus

mulher que não era manequim de loja, mas

tinha corpo para isso: a caixa da sorveteria

da minha rua.

Era uma menina surrada pelo seu ardo

trabalho. Quando tinha tempo, o retirava

para colocar os trabalhos da faculdade em

dia. Mas o que mais me surpreendia era

que ainda sim sobrava um pequeno tempo

para cuidar de sua enorme beleza. Não sei

se era só uma beleza que eu notava, ela

não era muito namoradeira, nem arrancava

assobios dos pedreiros do bairro. Tinha o

corpo magrinho, que apesar disso haviam

gordurinhas que davam as silhuetas das

suas curvas em seu quadril. O olhar era tão

profundo quanto um poema que eu queria

escrever sobre ele.

A minha admiração ia além do que os

outros podiam imaginar. O fato daquela

menina ser tão dedicada me fantasiava a

uma vida que eu queria muito compartilhar

e ser da rotina.

Page 7: No ponto de ônibus

Naquele dia, no ponto de ônibus, ela estava

muito bem arrumada. Um vestido que

parecia ter sido bordado por alguma tia

costureira que abusava do bom gosto nas

rendinhas florais rosadas e no brilho que

delineava-lhe as linhas do corpo. Um

encaixe perfeito no que se referia a alguém

que não se importava tanto em chamar a

atenção na sorveteria. Até esse bom senso

de não querer aparecer era afrodisíaco, por

mais estranho que isso soe. Talvez a

naturalidade da sua beleza – e o fato dela

não ter abusado da maquiagem nem

naquele sábado à noite – me instigava a ser

tão preso ao seu inigualável jeito.

Ela me cumprimentou.

- Olá, sabe se o ônibus do Vilarejo do Pinhal

já passou?

- Ainda não. Mas breve deve passar.

Me peguei numa vontade de esticar o

assunto, mesmo sabendo que ela estava

Page 8: No ponto de ônibus

preocupada enviando mensagens em seu

celular e eu não queria dividir a sua

atenção com um aparelho telefônico. Mas

o fiz mesmo assim.

- É um bairro de elite. Haverá alguma festa

por lá hoje?

- Sim. – disse sem desgrudar os olhos do

celular.

- É alguma festa de formatura, festa do

pessoal da universidade, não sei, algo desse

tipo?

- Festa de formatura.

Ela abusava do curto diálogo. Algo a

aprisionava ao seu celular de modo a não

querer se desgrudar dele a nenhum

momento. Nem dispensou uns risinhos

esporádicos e umas recolocações de suas

mechas atrás das orelhas.

Page 9: No ponto de ônibus

- Desculpa, mas não acha que perderá o

ônibus se não prestar atenção se ele está

vindo?

- Se ele aparecer, me avise, por favor.

- Olha! Lá vem ele!

Destrambelhada, deixou o celular cair ao

chão em susto. Ela desenhou um

desespero, mas se conteve quando,

cavalheiramente, me abaixei e peguei para

ela.

- Mas o ônibus nem vem. Por que você fez

isso?

Alguém cutucou minhas costas. Era a moça

que carregava o bebê.

- Moço, segure o bebê, por favor, por favor.

Eu imploro. Talvez eu volte. Mas segure

com toda a sua alma. – disse a moça com

os olhos refugiados em desespero e que,

logo em seguida, disparou a correr sem

rumo.

Page 10: No ponto de ônibus

- Ei! Volte aqui! – gritei sem muitas

esperanças de que ela voltasse. - Meu

Deus! E agora? O que eu faço? – disse

olhando para ela com os olhos arregalados.

- Estava irritada por ter deixado cair o meu

celular, mas acho que agora você pagará

por aquilo. – esbanjou aquele sorriso que,

mesmo irônico, me derrubava como se eu

fosse uma pilha de dominós levantados e

ordenados.

- Mas que preço salgado.

- Estou brincando. Dá cá esse bebê, deixa

eu tentar fazer ele parar de chorar.

O bebê instantaneamente se tranquilizou.

Além do dom natural de ter algo que me

encantava e que não sei decifrar, ela tinha

um toque fascinante de calmaria.

- Você leva jeito pra coisa.

- Surpreendentemente, sim. Mas pra falar a

verdade é que minha irmã mais nova teve

Page 11: No ponto de ônibus

um filho. 17 anos. Imatura para o mundo.

Engravidou precocemente. Minha mãe que

já não é mais aquela guerreira de outrora,

teve esse elefante jogado nos braços. Tive

de ajudá-la a cuidar do bebê enquanto ela

passava a roupa de metade do bairro de

Vilarejo do Pinhal. É toda uma história

muito chata e comum, desculpa estar lhe

falando isso.

- Não é incômodo algum me contar, eu

sentaria aqui para ouvi-la a noite toda,

afinal não podemos abandonar essa criança

sem devolvê-la à mãe.

- Exatamente.

- Toda semana passo para pegar um

sorvete no local que você trabalha. Não sei

se nunca me notou.

- São muitos clientes que frequentam a

loja, mas seu rosto não me é estranho.

- Nem o seu me é estranho.

Page 12: No ponto de ônibus

- Estamos partindo para aquela história

batida do cara que é encantado pela

menina, mas ela nunca o notou na verdade

e ele tenta a ludibriar dizendo que a achava

linda, com uma beleza diferente e um

sorriso lindo?

- Espero que não. Mas acho incrível o seu

dom de ler pensamentos.

- Não é a primeira vez que isso acontece

comigo. Um outro rapaz ia regularmente na

loja. Ele tentou de qualquer maneira me

conquistar. Se disse apaixonado, dominado

pelo meu olhar segundo ele “diferente”.

Não sou de menosprezar e nem gosto de

fazer ninguém sofrer, mas disse que não

seria possível. Não tenho tempo nem para

cuidar de mim mesma, que dirá cuidar de

dois, ou três, ou quatro. Eu não sei a

quilometragem certa que um

relacionamento pode ter. Pareço ser

egoísta com isso, confesso. Imatura e

medrosa, talvez. Mas eu conheço minha

Page 13: No ponto de ônibus

vida desorganizada. É uma insegurança de

querer trazer um passageiro para esse

comboio lotado.

Parecia que eu estava ouvindo a história do

meu eu futuro. Trágica, diga-se de

passagem. Mas agradecia por ter voltado

ao passado. Ela era a coisa perfeita para o

momento imperfeito. Um desencontro na

forma literal. Mesmo não sabendo se o que

eu sentia era algo de estalo ou repentino,

de certa forma ir a uma sorveteria

constantemente e se atentar a uma única

pessoa e querer trazê-la para si, para

dentro do seu livro de novas histórias não é

algo lá tão comum.

- Enfim. O que será que aconteceu com

aquela mulher para ela deixar um bebê nas

mãos de estranhos e sair correndo?

- Realmente não faz muito sentido. Mas

por que de repente mudou de assunto?

Page 14: No ponto de ônibus

- A gente nem se conhece, mas, com uma

frase, eu posso criar um laço entre nós. Um

laço estranho, mas posso criar.

- E qual seria?

- Com o pouco que você disse eu senti

como se você já tivesse visitado meus

pensamentos, feito uma releitura dos meus

desejos e colocado uma ancora naquilo

tudo. Uma repaginada no visual da minha

ilusão.

- Assim eu me sinto como uma megera.

- Não, não é. A culpa aqui é toda minha.

- Por que sua?

- Eu fui copiar a idéia errada do outro

rapaz. Deveria ter pensado em outra. Uma

mais convincente, quem sabe.

- Você é engraçado.

A mãe do bebê voltou. Pediu a criança de

volta e agradeceu. Parecia mais aliviada.

Page 15: No ponto de ônibus

- Aconteceu alguma coisa?

- O pai da criança me ligou. Queria me

encontrar. Disse que tinha algo urgente

para me dizer, mas eu já sabia que era só

uma artimanha para ver a criança, sendo

que ele não dá a mínima para ela.

- Malditos pais modernos.

- Mas muito obrigado por terem olhado a

criança. Principalmente você, moço, sei que

é de confiança pois sempre o vejo por aqui.

- Disponha.

- Que loucura, não? – disse colocando a

mão nos bolsos e respirando fundo.

- Essa vida não é fácil.

Dividindo um momento de pura falta de

assunto, não sabia se me aventurava a

tentar convencê-la do contrário ou apenas

me acostumar com a idéia de que aquela

situação não apresentava uma estrada de

Page 16: No ponto de ônibus

opção. Ela não se demonstrava interessada

e aquilo me trouxe a um universo de

frustração, devido às ilusões que alimentei

numa suposta perfeição de um ser que

queria ter no abraço nos finais dos meus

dias ácidos.

- Parece que o ônibus está vindo.

- É, já está chegando. Me desculpa pelo

celular. Ele estragou?

- Não, está intacto.

- Desculpa a intromissão e a minha

curiosidade, mas o que tanto prendia a sua

atenção e lhe arrancava algumas risadas?

- Era minha irmã. Disse que o meu sobrinho

falou suas primeiras palavras. Uma delas foi

o meu nome.

- Que coisa mais linda.

Page 17: No ponto de ônibus

- É sim. Bom, lá vem o ônibus. Deixa eu ir.

Obrigada pela companhia essa noite. Você

me parece um bom rapaz.

- Eu que agradeço. – disse levantando

vagarosamente os braços e dando um

tchau em tons de não se vá.

O meu ônibus passou logo em seguida.

Novamente, a trocadora com seus risos.

Naquele dia eu não estava tão

desarrumado e nem com a camisa do

avesso. Talvez ela debochasse de fato de

mim. Mas voltei para casa como quem não

tivesse completado sua missão.

No dia que nos encontramos novamente

naquela mesma situação e naquele mesmo

ponto de ônibus, o filme voltou a se exibir

nos meus olhos. Ela estava vestida do

mesmo jeito – talvez aquele vestido fosse o

seu preferido, ou talvez ela abusasse do

seu dom de fazer uma leitura dos meus

pensamentos e optasse pelo que eu achava

Page 18: No ponto de ônibus

que a deixava como uma rainha. A encarei

devagar, sem graça como me era de

costume e sem palavras como sempre me

faltara.

Ela me cumprimentou.

- Olá, sabe se o ônibus do Vilarejo do Pinhal

já passou?

- Ainda não. Mas breve deve passar.

Tiago Peçanha.