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No Reino da Ficção: o Espaço e a Literatura Conventuais Ms. Sara Manuela Ribeiro Martins Augusto Universidade Católica Portuguesa “(…) houve uma hora em que as aves mostraram mais liberdade nos bicos, do que nas asas; com estas cortam o ar, com estes ensina agora aos racionais: ilustradas pela águia sua Rainha, que bebia luzes na esfera do Sol, se atreveram a dar documentos aos homens; começaram a missão pelos claustros; que aon- de são mais obrigatórias as virtudes, estão mais importantes os avisos, e nestes não se deve olhar a quem os dá, mas só ao que são”. (Soror Maria do Céu, Aves Ilustradas, 1734, p. 1) 1. O tempo passou pelo Mosteiro da Esperança de Lisboa 1 . Da sua influência, da sua riqueza, do seu espaço, hoje pouco resta: algumas peças de arte em museus, 1 Com a primitiva invocação de Nossa Senhora da Piedade da Boavista, o mosteiro foi fun- dado por D. Isabel de Mendanha, fidalga ilustre, para acolher religiosas nobres. Depois da autorização da bula pontifícia de 16 de Janeiro de 1524, começou a ser edificado em 1527, ainda não estando terminado em 1532, quando faleceu a sua benemérita fundadora. Foi D. Joana d’Eça que continuou a sua obra, aumentando e reformando os edifícios durante o século XVI. As primeiras religiosas, vindas do Funchal e de Santarém, entraram no Convento em 1536, tendo sido Soror Inês de Deus, a sua primeira abadessa. A invocação popular nasceu da fundação de uma Confraria de Nª Srª da Esperança na igreja do mosteiro, que conduziu, com a importância que foi ganhando, à designação de Mosteiro da Esperança, como desde então foi conhecido. Depois de extintas as ordens religiosas em 1834, só em 1888, quando faleceu a última freira do mosteiro, o Estado tomou posse do Convento, Igreja e demais dependências. Em Dezembro desse mesmo ano, procedeu-se ao inventário da riqueza do mosteiro, que rapidamente se dispersou por diferentes entidades que, com rara avidez, solicitaram os bens arrolados. Grande parte da superfície do mosteiro está hoje ocu- pada com a Avenida D. Carlos I e com o Quartel do Batalhão de Sapadores de Bombeiros, sendo praticamente imperceptíveis as suas originais configuração e riqueza. Sobre a história

No Reino da Ficção: o Espaço e a Literatura Conventuais Manuela.… · teremos lido nas longas e enredadas novelas as ... guarnecidas de “azulejo branco e azul de lavor seguido

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No Reino da Ficção: o Espaço e a Literatura Conventuais

Ms. Sara Manuela Ribeiro Martins AugustoUniversidade Católica Portuguesa

“(…) houve uma hora em que as aves mostraram mais liberdade nos bicos, do que nas asas; com estas cortam o ar, com estes ensina agora aos racionais: ilustradas pela águia sua Rainha, que bebia luzes na esfera do Sol, se atreveram a dar documentos aos homens; começaram a missão pelos claustros; que aon-de são mais obrigatórias as virtudes, estão mais importantes os avisos, e nestes não se deve olhar a quem os dá, mas só ao que são”.

(Soror Maria do Céu, Aves Ilustradas, 1734, p. 1)

1.

O tempo passou pelo Mosteiro da Esperança de Lisboa1. Da sua influência, da sua riqueza, do seu espaço, hoje pouco resta: algumas peças de arte em museus,

1 Com a primitiva invocação de Nossa Senhora da Piedade da Boavista, o mosteiro foi fun-dado por D. Isabel de Mendanha, fidalga ilustre, para acolher religiosas nobres. Depois da autorização da bula pontifícia de 16 de Janeiro de 1524, começou a ser edificado em 1527, ainda não estando terminado em 1532, quando faleceu a sua benemérita fundadora. Foi D. Joana d’Eça que continuou a sua obra, aumentando e reformando os edifícios durante o século XVI. As primeiras religiosas, vindas do Funchal e de Santarém, entraram no Convento em 1536, tendo sido Soror Inês de Deus, a sua primeira abadessa. A invocação popular nasceu da fundação de uma Confraria de Nª Srª da Esperança na igreja do mosteiro, que conduziu, com a importância que foi ganhando, à designação de Mosteiro da Esperança, como desde então foi conhecido. Depois de extintas as ordens religiosas em 1834, só em 1888, quando faleceu a última freira do mosteiro, o Estado tomou posse do Convento, Igreja e demais dependências. Em Dezembro desse mesmo ano, procedeu-se ao inventário da riqueza do mosteiro, que rapidamente se dispersou por diferentes entidades que, com rara avidez, solicitaram os bens arrolados. Grande parte da superfície do mosteiro está hoje ocu-pada com a Avenida D. Carlos I e com o Quartel do Batalhão de Sapadores de Bombeiros, sendo praticamente imperceptíveis as suas originais configuração e riqueza. Sobre a história

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azulejos dispersos e uma considerável produção literária, de temas diversos, entre a narrativa alegórica e o ensinamento moral, do melhor que na literatura barroca por-tuguesa se escreveu. Todo o espólio se funde no mesmo estilo eloquente, onde rei-nam a metáfora e a imagem, e se reafirma a mais do que antiga ligação entre litera-tura e pintura. No espaço envolvente, encontramos notícias da mesma exuberância, na extrema e rica decoração, na abundância da talha dourada, no constante trabalho de azulejaria e pintura, desde o interior sagrado da igreja e da sacristia, ao espaço comum no refeitório ou nos claustros. A vivência religiosa do Mosteiro tinha rosto, manifestando-se na linguagem simbólica das expressões pictórica e literária de uma forma similar e complementar. Desta forma, fomos encontrando figuradas na azule-jaria as narrativas contadas pelas ilustradas sorores do Convento da Esperança. Ou teremos lido nas longas e enredadas novelas as histórias contadas nos azulejos?

2.

Fundado em 1527, o mosteiro foi ricamente decorado no correr dos séculos XVI, XVII e XVIII, como nos mostra um dos mais importantes documentos sobre a fundação e a história do convento, o manuscrito F. 955, da Biblioteca Nacional. O Livro da Fundação, Ampliação e Sítio do Convento de Nossa Senhora da Piedade da Esperança, actualizado até 1750, apresenta um conjunto de informações que dá con-ta do embelezamento da igreja, dos edifícios, dos claustros, dos jardins e demais dependências do mosteiro, anotando as obras e respectivos gastos de cada abadessa. As notícias sobre a azulejaria não são abundantes e muito menos descritivas, mas permitem perceber como, em épocas distintas, se aplicaram diferentes tipos de azu-lejo nos mais diversos espaços do mosteiro. Entre 1594 e 16202, os apontamentos

e notícias do Mosteiro da Esperança, da sua fundação à demolição do edifício e suas depen-dências, cf.: Livro da Fundação, Ampliação e Sítio do Convento de Nossa Senhora da Pieda-de da Esperança da Cidade de Lisboa: o qual mandou escrever a Abadessa Soror Francisca dos Anjos, no ano de 1620. Sendo Ministro Provincial dos frades menores da observância o muito Reverendo Padre Frei Jeronimo de Deus; Francisco da Fonseca Benevides, No Tempo dos francezes, Lisboa, Tipografia “A Editora”, 1908, pp. 51-53; Jorge Cardoso, Agiológio Lusitano, vol. I, ed. facsimilada, com estudo e índices de Maria de Lurdes Correia Fernandes, Porto, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2002, p. 18 (f); João Baptista de Castro, Mapa de Portugal antigo e moderno, Lisboa, Of. Patriarcal de Luiz Ameno, 3 vols., 1762-1763 (vol. III, p. 429); Américo Costa, Diccionario Chorographico de Portugal, Continental e Insular, vol. VII, Ed. de autor, 1940 (1929-1949), p. 583-584; Durval Pires de LIMA, História dos mosteiros, conventos e casas religiosas de Lisboa, na qual se dá notícia da fundação e fundadores das instituições religiosas, capelas e irmandades desta cidade, 2 vols, Lisboa: Câmara Municipal, 1950-1972 (vol. II, pp. 317-327); A. Vieira da Silva, O Mosteiro da Es-perança, Lisboa, 1950; Bernardo Vasconcelos e Sousa (Dir.), Ordens Religiosas em Portugal. Das Origens a Trento – Guia Histórico, Lisboa, Livros Horizonte, 2005, pp. 301-302.2 Livro da Fundação, Ampliação e Sítio do Convento de Nossa Senhora da Piedade da Espe-rança: Soror Jerónima de Jesus, entre 1594 e 1596, “concertou o vão do claustro, fazendo repartimento nelle de alegretes [conjunto de banco com floreira ou canteiro, usado como

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são mais detalhados, mas, a partir de 1635, as referências tornam-se pouco especí-ficas, quase omissas3. De qualquer forma, permitem perceber como acompanham as tendências do azulejo em Portugal4. Nos séculos XVI e XVII utilizou-se o azulejo ornamental, com motivos decorativos variados, geralmente em composições inter-ligadas, chamado brutesco, fosse policromo ou a azul e branco, como é referido no Livro da Fundação. A imprecisão surge a partir de meados do século XVII: dá-se notícia do azulejamento de várias dependências e do gasto com o azulejador, mas sem qualquer referência mais específica. Contudo foi nesta altura que, no panora-ma da azulejaria portuguesa, se impuseram, em policromia, os painéis figurativos e os frontais de altar, além dos últimos padrões para “tapetes” (a partir de 1650), verificando-se, depois de 1680, a alteração cromática que conduziria à estandardi-zação dos “azuis e brancos”5.

O Livro da Fundação e os documentos que resultaram da inventariação do património, aquando da tomada de posse do Estado, em 1888, e da demolição Convento, nos finais do século XIX, permitem reconstituir parte de um cenário pri-vilegiado no campo da azulejaria6, agora disperso e descontextualizado. O nosso

mobiliário de jardim] de azulejo, tudo na forma em que hoje está”; neste seu segundo triénio como abadessa, também “fez o dormitório novo nas casas que foram da Rainha. Acrescentou e renovou a enfermaria” (f. 25r). Soror Madalena do Horto, abadessa por três triénios e responsável pelas avultadas obras na igreja do mosteiro, entre 1612 e 1614 mandou fazer obras na capela-mor do convento, sendo “o arco da dita capella e paredes della guarnecidas da mesma pedraria e azulejo brutesco” (f. 30r). Soror Inês de S. Paulo, entre 1606 e 1608, “mandou azulejar e dourar uma das paredes do corpo da igreja e o topo da banda do coro dela, e a outra mandaram fazer os irmãos das confrarias, e o mais com o outro topo do cruzeiro assi como está” (f. 28r). Soror Francisca dos Anjos, entre 1618 e 1620, levou a cabo grandes obras de reforma, sendo de maior interesse as do refeitório, em que “guarneceo as paredes deste de azulejo branco e azul de lavor brutesco”, combinando-as com painéis a óleo, e as obras no antecoro, onde as paredes foram guarnecidas de “azulejo branco e azul de lavor seguido que rematam sete painéis, que se refor-maram, e fizeram de novo as guarnições deles” (fls 34r-34v). 3 Ibidem: Soror Antónia da Piedade, entre 1635 e 1638, “mandou azolejar o capitolo, e reno-var a pintura dele” (f. 40v). Soror Margarida dos Anjos, entre 1664 e 1667, mandou “azulejar as duas casas da Portaria” (f. 59r). Soror Maria de S. José, entre 1670 e 1673, gastou 34.440 reis no “azoleyjo da mesma Sanchristia” (f. 61v). Soror Margarida dos Anjos, no seu segundo triénio, entre 1676 e 1679, pagou 9.900 reis ao “Azoleijador” (f. 64r). Por fim, Soror Helena da Cruz, entre 1694 e 1697, “mandou azolejar a caza das madres Abadessas” (f. 67v).4 Paulo Pereira (dir.), História da Arte Portuguesa, vol. II e III, Lisboa, Círculo de Leitores, 1995; J. M. dos Santos Simões, Azulejaria em Portugal no século XVII, 2 vols, 2ª ed. revista e actualizada, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1997. 5 J. M. dos Santos Simões, Azulejaria em Portugal no século XVII, vol. I, p. 13: sistematização da azulejaria do século XVII em quatro períodos principais, caracterizados pelas diferencia-ções tipológicas. 6 Sobre este aspecto cf. Francisco da Fonseca Benevides, No Tempo dos francezes, pp. 51-53; João Pedro Monteiro, “Os vasos floridos do Convento de Nossa Senhora da Esperança de Lisboa”, Azulejo, Lisboa, nº 1, 1991, pp. 33-43; A. Vieira da Silva, O Mosteiro da Esperança. Foi também consultada a Acta da Sessão Camarária de 8 de Abril de 1891, na Biblioteca do Arquivo Histórico da Câmara Municipal de Lisboa.

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estudo vai contemplar dois grupos distintos de azulejos, que chegaram até hoje em boas condições e que têm sido alvo de importantes estudos e reproduzidos em significativas publicações, procurando estabelecer as devidas e necessárias rela-ções com a produção literária do mesmo espaço conventual.

3.

O primeiro grupo corresponde ao conjunto da produção de azulejaria de me-ados do século XVII, constituída por azulejo brutesco, composto em silhar ou em tapete, e por painéis de vasos floridos7. Tendo em conta a dispersão do património do mosteiro, tem sido feito um trabalho fundamental de recolha e de sistematiza-ção8 de alguns dos mais significativos exemplares, apesar de, por alguns dados que recolhemos, pensarmos que estará longe de estar completo. Contudo, para este trabalho, mais do que um levantamento exaustivo, pareceu-nos mais interessante o facto de os estudos sobre estas albarradas e painéis figurativos afirmarem a neces-sidade de uma interpretação iconológica9, que ultrapassasse a mera função deco-rativa. Numa época em que as artes se conjugavam para “significar”, apresentando

7 J. M. dos Santos Simões, Azulejaria em Portugal no século XVII, vol. I, p. 13; sobre os pai-néis ornamentais ou brutescos: pp. 189-199.8 Foram recolhidas em: J. M. dos Santos Simões, Azulejaria em Portugal no século XVII, vol. II, p. Est. XXII-XXIII; Roteiro do Museu Nacional do Azulejo, 2ª ed., Instituto Português de Museus, 2005, pp. 67 e 82; Rouge et Or. Trésors du Portugal baroque. Paris, Musée Jacquemart-André, Institut de France. Catálogo da Exposição 25 septembre 2001/25 février 2002, pp. 222 e 223; José Meco, O Azulejo em Portugal, Lisboa, Alfa, 1993, p. 148; João Pedro Monteiro, “Os vasos floridos do Convento de Nossa Senhora da Esperança de Lisboa”, Azulejo, Lisboa, nº 1, 1991, pp. 33-43. Para além do silhar, encontramos duas albarradas no Museu Nacional do Azulejo; uma albarrada no Museu Aberto Sampaio, em Guimarães; duas albarradas na Escola Secundária Domingos Sequeira, em Leiria, acompanhadas de um painel figurativo (representando o pavão sobre o esquife); uma albarrada na Escola Secun-dária Marquês de Pombal, em Lisboa; um painel figurativo, fotografado por Santos Simões (obra citada, II, Est. XXII), de paradeiro desconhecido. Com a parte central destas albarradas coincide a representação de dois vasos floridos, amputados das figuras que os ladeavam, localizados no Convento de Nossa Senhora da Esperança, em Alcáçovas. J. P. Monteiro pronuncia-se sobre esta coincidência, obra acima citada, p. 39: “Assim, temos que azulejos de vasos floridos idênticos que tiveram a sua origem numa matriz erudita comum, surgiram em dois conventos que, no século XVII, eram da mesma invocação. Naturalmente trata-se de algo mais do que uma simples coincidência e acreditamos que, em ambos os casos, o vaso florido foi investido da mesma função: simbolizar a Virtude Teológica da Esperança. As duas encomendas poderão ter sido simultâneas e feitas à mesma oficina”.9 João Pedro Monteiro, “Os vasos floridos do Convento de Nossa Senhora da Esperança de Lisboa”, Azulejo, Lisboa, nº1, 1991, pp. 33-43; e ainda “O frontal de altar da capela de Nossa Senhora da Piedade, Jaboatão, Pernambuco”, Oceanos: Azulejos. Portugal e Brasil, nº 36/37, Outubro 1998/Março 1999, pp. 158-176.

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uma narrativa, do mesmo modo que a literatura assumia uma faceta pictórica, a decoração dos espaços revestia-se necessariamente de uma leitura alegórica.

Pelas quatro albarradas e pelos dois painéis figurativos, que constituem os exemplares conhecidos, multiplicam-se as aves e as flores. À exuberância dos ar-ranjos florais, de diversas e coloridas formas, corresponde o carácter exótico e fantástico das aves que ladeiam os vasos, sustentados por sátiros e decorados com carrancas e frutos. Entre as composições florais adejam e pousam pequenas pegas, acompanhadas dos papagaios, pavões e aves do paraíso pousados na base, em si-metria. Desde o final do século XVI que seria este o cenário do claustro do Conven-to da Esperança, com grande “repartimento de alegretes de azulejo”.

O significado dos elementos decorativos já foi sendo explicado, atribuindo às flores a virtude da Esperança e ao Pavão a vitória sobre a Morte10, tal como foi dada a relevância devida à obra de Frei Isidoro de Barreira, o Tratado das Significações das Plantas, Flores, e Frutos, de 169811, como fonte de interpretação aplicável tan-to às artes pictóricas como literárias12. No que diz respeito às aves, a sua alegoriza-ção tinha como esteio toda uma tradição, manifesta nos bestiários e nos livros de aves, que descobria nas coisas da natureza símbolos da criação divina, e que foi recuperada na arte barroca, conjugando a lição tradicional com o gosto pela alego-ria e pela procura de novas analogias13.

É todo este universo alegórico que perpassa igualmente pela obra literária de Soror Maria do Céu (1658-1753), duas vezes abadessa do Convento da Esperança. Levada por um sério intuito pedagógico e moralizador, Maria do Céu recorreu por

10 J. P. Monteiro, “O frontal de altar da capela de Nossa Senhora da Piedade, Jaboatão, Pernambuco”, pp. 172-173: “Também um painel seiscentista representando um pavão de cauda aberta sobre um túmulo (Escola Secundária Domingos Sequeira, Leiria), simbolizan-do a vitória sobre a morte, fazia um todo com um conjunto de seis vasos floridos, símbolos da virtude da Esperança (…) outrora encomendados para o Convento de Nossa Senhora da Esperança na mesma cidade, e por sua vez com o vaso idêntico a outros colocados num vão de janela no convento de Nossa Senhora da Esperança em Alcáçovas”. 11 Frei Isidoro de Barreira, Tratado das Significaçoens das Plantas, Flores, e Fruttos, que se referem na Sagrada Escrittura, Tiradas de Divinas e Humanas Letras, com suas breves con-siderações. Lisboa, Of. de Manoel Lopes Ferreira, 1698 (ed. facsimilada), Lisboa, Alcalá, 2005. Sobre as flores, afirma Frei Isidoro de Barreira, p. 16: “As flores em commum signifi-cão esperanças: porque assi como das flores se esperão fruttos, que ellas promettem, assi das esperanças bens, porque sempre esperanças se tem a respeito de bens, e não de males”.12 Cf. Ana Hatherly, “As misteriosas portas da ilusão. A propósito do imaginário piedoso de Sóror Maria do Céu e Josefa d’Óbidos”, in O ladrão cristalino. Aspectos do imaginário barroco, Lisboa, Cosmos, 1997, pp. 13-41; Sara Augusto, A Alegoria na ficção alegórica do Maneirismo e do Barroco, Viseu, Faculdade de Letras da Universidade Católica Portuguesa, 2004; idem, “O Papagaio Ilustrado – lição e exemplo na ficção barroca”, Máthesis, Viseu, 14, 2005, pp. 137-148; idem, “A multiplicação das fábulas na ficção narrativa de Soror Maria do Céu”, For-ma Breve. Revista de Literatura, Aveiro, 3, 2005, pp. 121-133. 13 Maria Isabel Rebelo Gonçalves, “Livro das Aves”, in Dicionário de Literatura Medieval Galego e Portuguesa, org. e coord. de Giula Lanciani e Giuseppe Tavani, Lisboa, Caminho, 1993. Cf. O Livro das Aves, Lisboa, Edições Colibri, 1999.

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sistema à dupla estrutura da alegoria, conjugando o deleite e a fruição do enredo com a lição que se propunha transmitir, processo exigido pela ortodoxia do contexto religioso. São três as obras em que as aves e as flores se multiplicam, se animizam, assumindo forma e voz, portadoras de sentidos edificantes: Escarmentos de Flores, ms. datado de 1681; Aves ilustradas em avisos para as Religiosas servirem os ofícios dos seus Mosteiros, de 1734, e Metáforas das Flores mostradas em documentos mui proveitosos, publicada em Obras Várias e Admiráveis, de 173514.

A primeira obra, Escarmentos de Flores, que até hoje se mantém inédita15, constitui uma pequena novela, em que cinco flores se lamentam do engano a que a vaidade as conduziu, tornando-se a sua infelicidade exemplo para as “flores hu-manas”. Em correspondência, cinco aves comentam as palavras de cada flor, dan-do maior consistência à lição que se pretende transmitir: que a vida terrena é efé-mera e que a alma humana não pode fundar a eternidade para que foi feita em valores terrenos como a vaidade e a lisonja16.

A mesma estrutura fundada na analogia compõe as Metáforas das Flores, de 173517, num total de vinte e quatro metáforas, que repetem uma sequência dupla, distinta mas complementar. A primeira parte é constituída por uma apólogo, onde variadas flores actuam como personagens, num sistema que tende para o dualismo enquanto representação da virtude e do vício, assim como dos respectivos recom-pensa e castigo. A segunda parte consiste no comentário e na interpretação de cada entrecho ficcional, sendo que, no final das metáforas, obtemos um equivalente conjunto de sentenças morais. A transmissão da doutrina tornava-se mais eficaz pelo recurso ao universo metafórico, que permitia a concretização e a visualização do conceito doutrinário.

Quanto às Aves ilustradas, obra publicada em 1734, constitui um fabulário cuja principal virtude claramente enunciada na folha de rosto seria constituir um conjunto de “avisos para as Religiosas servirem os ofícios de seus Mosteiros”18. Este conjunto de avisos foi organizado em catorze discursos, correspondendo a catorze aves diferentes, em que cada uma se constitui como narradora e como voz pronun-ciadora de conselhos destinados a distintas funções desempenhadas pelas religio-sas. Para além do simbolismo individual, torna-se mais evidente a analogia entre

14 A mesma estrutura é seguida em Apólogos das Pedras Preciosas (In Obras Várias e Admi-ráveis, Lisboa Ocidental, por Manuel Fernandes da Costa, 1735). 15 Trata-se do Ms. 199, da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, que atribui a auto-ria a Soror Maria do Céu. 16 Em correspondência com o desengano confessado pelas flores (Maravilha, Rosa, Girassol, Narciso, Margarida), o discurso das aves (Cisne, Rouxinol, Águia, Filomena, e uma Ave estrangeira) desenvolve um conjunto de antíteses que vem a constituir o principal temário da literatura barroca (Engano / Desengano, Vaidade / Efemeridade, Beleza / Ruína, Luz / Sombra, Aparência / Verdade). 17 In Obras Várias e Admiráveis, Lisboa Ocidental, por Manuel Fernandes da Costa, 1735.18 Aves ilustradas em avisos para as Religiosas servirem os ofícios dos seus Mosteiros, Lisboa, por Miguel Rodrigues, 1734.

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cada ave e as suas características e a função específica de cada religiosa, como é possível perceber pelo “Index dos discursos, de que se compõe este livro”19. Entre as diversas aves, o pavão empresta os “olhos” da cauda à Madre Abadessa, para vigiar o seu mosteiro; o Papagaio ensina à Rodeira o valor do silêncio; e a Pega recomenda à Escrivã o máximo de rigor nas contas do mosteiro. Por estes exem-plos, podemos mostrar a importância da alegoria e da fábula no contexto didáctico e religioso conventual de Seiscentos.

4.

O segundo grupo de azulejos, que pode ser visto na Casa Museu dos Patudos, em Alpiarça20, é constituído por cinco painéis, colocados na sala que faz a ligação entre diversas dependências e permite o acesso ao segundo piso. Posteriores a 1680, segun-do a cronologia da azulejaria portuguesa, os painéis figuram, numa paleta de azul e branco, cenas cuja temática religiosa e hagiográfica acompanham, à esquerda do aces-so pela escadaria, representações de cariz profano, à direita do acesso principal.

No sentido dos ponteiros do relógio, excluindo dois painéis claramente posterio-res não originários do Convento, começamos por encontrar apontamentos hagiográfi-cos. No primeiro painel, entre uma moldura de dois atlantes está representada uma fi-gura de eremita, descalço, com as vestes cingidas por um rosário e riscando o chão

19 Catorze discursos: O Pavão à Prelada; A Andorinha à Vigária da Casa; A Chamariz à Vigária do Coro; O Pintasirgo à Mestra das Noviças; O Pardal à Madre das Confissões; O Roxinol às Sacristans; O Galo à Porteira; O Papagaio à Rodeira; A Pega à Escrivã; A Rola à Celeireira; O Ganso à Provisora; A Pomba à Enfermeira; A Cegonha à Refeitoreira; A Coruja à Roupeira.20 A atribuição da origem dos azulejos da Casa dos Patudos ao Convento da Esperança de Lisboa constitui uma memória que perdura no tempo e que pode provir de dois aspectos determinantes. Em primeiro lugar, a figura conhecida de José Relvas (Golegã, 1859- Alpiar-ça. 1929) que, para além do papel que no panorama político desempenhou na instauração da República, foi homem de grande cultura, sensibilidade e requinte, pode ter estado na origem da instalação dos painéis na sua casa de Alpiarça. Com efeito, na Casa dos Patudos, em Alpiarça, que mandou remodelar no início do século XX, reuniu uma considerável co-lecção de arte, que, depois da sua morte, foi legada, juntamente com a Quinta dos Patudos, ao município de Alpiarça, vindo a constituir a Casa dos Patudos – Museu de Alpiarça, desde 1960. Por outro lado, à Igreja Paroquial de Alpiarça, acabada de construir em 1889 e que hoje apresenta um acervo de peças (altares, imagens, paramentos e quadros) dos séculos XVI e XVII, foi cedido um largo conjunto de elementos decorativos, por decreto de 24 de Janeiro de 1889, tendo sido entregues logo em Fevereiro. Cf. A. Vieira da Silva, O Mosteiro da Esperança, pp. 19 e 23: referem-se três altares, um oratório, imagens, sinos e objectos de ornamentação, cedidos à Junta de paróquia de Alpiarça, em Fevereiro de 1889. É pos-sível que, por via desta transferência, tenham também chegado a Alpiarça os azulejos em questão, mas que, também, por vontade de José Relvas fossem colocados no museu que já era a sua Casa dos Patudos, onde seriam preservados. J. M. dos Santos Simões, in Azulejaria em Portugal no século XVII, vol. II, pp. 156-157, não estabelece qualquer relação entre os azulejos do Museu de Alpiarça e o antigo Convento da Esperança.

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com um bordão. Fazendo esquina, estão representadas duas cenas hagiográficas, rela-cionadas com a vida de Santa Clara e os seus milagres, abundantemente relatados na Legenda21, composições que teriam todo o cabimento no espaço do Convento da Es-perança, de religiosas franciscanas.

Este mesmo ímpeto hagiográfico, abundantemente figurado na azulejaria, en-contramo-lo também na produção literária conventual, tanto de Soror Maria do Céu como de Soror Madalena da Glória. Em 1715, Maria do Céu narrou a história de Santa Catarina, Rainha de Alexandria22, e Madalena da Glória contou as vidas de Santa Rosa de Santa Maria23, “astro brilhante” e “flor do Paraíso”, e de Santo Agosti-nho, que mereceu os valorosos epítetos de “Águia real”, “Fénix abrasado” e “Pelica-no amante”24. As metáforas nos títulos apresentam uma exaltação da virtude num grau só comparável ao intuito didáctico pretendido. Desta forma, a leitura e a medi-tação sobre o exemplo tornavam-se essenciais na formação religiosa conventual.

21 Cf. Santa Clara de Assis. Escritos – Biografia – Documentos, Tradução, introduções, notas e índices de Frei José António Correia Pereira, Braga, Editorial Franciscana, 1985. 22 A Fénix aparecida na vida, morte, sepultura e milagres da gloriosa Santa Catarina, Rainha de Alexandria, Virgem e Mártir, com sua novena e perigrinação ao Sinai, Lisboa, na Oficina Real Deslandesiana, 1715. 23 Astro brilhante em novo mundo, fragrante flor do paraíso plantada no jardim da América: história panegírica e vida prodigiosa de Santa Rosa de Santa Maria, Lisboa Ocidental, por Pedro Ferreira, 1733. A esta mesma santa fez a Novena de Santa Rosa de Santa Maria, Epíto-me da sua vida, Lisboa, na Oficina da Música e da Sagrada Religião de Malta, 1734.24 Águia real, Fénix abrasado e Pelicano amante. História panegírica e vida prodigiosa do ínclito Patriarca que alcançou ouvir da boca de Deus o título de Grande, S. Agostinho, Lisboa, na Ofi-cina Pinheiriense da Música e da Sagrada Religião de Malta, 1744.

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No lado direito da sala, os painéis ensaiam figurações diferentes, de índole profana, que poderiam ocupar os espaços áulicos e de lazer do convento. Ocupan-do praticamente toda a parede direita, o primeiro painel está dividido em duas cenas similares. Por entre o cenário bucólico e edifícios de traça exótica, dois pares de figuras masculinas, separados por colunas e vegetação, de roupagens diferentes e consequente estatuto social diverso, representam situações de “conversação”, arte principal na sociabilidade barroca, em que os gestos e as expressões faciais acompanham a eloquência, exprimindo conselho e admiração.

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Fazendo esquina, situam-se os dois últimos painéis. O primeiro episódio apre-senta um confronto singular, pelo insólito e pela desigualdade de forças, entre um cavaleiro, vestido como cortesão e montado num cavalo aguerrido, e um hussardo em fuga; o segundo painel ensaia um episódio de sedução e de facécia amorosa, representando uma moça que, de olhar sereno, entre duas figuras masculinas colo-cadas em perspectiva desproporcionada, segura e apresenta flores no regaço. A mão de um dos moços, rodeando-lhe o colo, parece querer chegar às flores, de forma um tanto dissimulada e escondida.

Sara Manuela Ribeiro Martins Augusto - 1349

Estas mesmas representações profanas ganham mais sentido quando encon-tram correspondência na abundante produção ficcional narrativa de Soror Maria do Céu e de Soror Madalena da Glória, onde as cenas representadas na azulejaria se repetem de novela para novela, mesmo nas narrativas especificamente alegóri-cas. Neste último conjunto, situam-se A Preciosa. Alegoria Moral25, e Enganos do bosque, Desenganos do Rio26, da autoria de Soror Maria do Céu, e o Reino de Ba-bilónia27, de Soror Madalena da Glória. Trata-se de uma produção literária que, estruturada pela alegoria, permite a coexistência de dois universos distintos no mesmo enunciado, sendo que o segundo sentido assume um carácter essencial para a definição espiritual e didáctica da obra. Em qualquer uma das obras, o enre-do básico envolve uma protagonista feminina, prefiguração da alma humana, sujei-ta às mais duras tentações no seu caminho para a salvação eterna. Sucedem-se os palácios encantados, as festas e as galanterias mundanas, os príncipes malévolos e sedutores, combates mortíferos em que a fortaleza e as demais virtudes são a garan-tia da vitória e da recompensa divina.

Para além da alegoria, talvez seja, contudo, na produção ficcional de carácter moral, constituída pelas longas narrativas Agravo e desagravo da Misericórdia28, de Maria do Céu, e Brados do Desengano29, de Madalena da Glória, que a correspon-dência seja mais justa com a representação pictórica dos azulejos. Na sua estrutu-ra, cada uma destas obras é constituída por um longo universo diegético, disperso por níveis narrativos distintos, constituindo uma rede de narrativas de encaixe que envolve o leitor sobretudo pela diversidade de tempos e de espaços em que se si-tuam. Os enredos versam a matéria amorosa, que se vai desenrolando de uma forma tortuosa até a um final apoteótico de conversão, de reconhecimento e de união, recompensa devida depois de longas páginas de infelicidade, de engano, de desilusão, de disfarce, de vingança, de duelos e perseguições. Nas viagens, estrutu-ra privilegiada na narrativa barroca, os protagonistas e os seus interlocutores pas-sam por conventos, ermidas e eremitérios, por cidades e universidades, passam pelas durezas do combate, e nas cortes conversam e encantam formosas donzelas. Em todos os espaços, se impõe o perfil do homem cortês, educado nas maneiras e na eloquência, dando relevo à virtude da conversação. Entre o seduzir e o persua-dir, o aconselhar e o avisar, se vai da narrativa profana à narrativa moral.

25 A Preciosa. Alegoria moral, Lisboa Ocidental, na Oficina da Música, 1731. 26 Enganos do Bosque, Desenganos do Rio. Primeira e Segunda Parte, Lisboa Ocidental, por António Isidoro da Fonseca, 1741.27 Reino de Babilónia, ganhado pelas armas do Empíreo; Discurso Moral, Lisboa, por Pedro Ferreira, 1749. No mesmo grupo, apesar de uma configuração diferente da estrutura alegóri-ca, poderíamos colocar Orbe Celeste adornado de brilhantes estrelas e dous ramilhetes: um colhido pela consideração, outro pelo divertimento, Lisboa, por Pedro Ferreira, 1742.28 Ms., s.d. 29 Brados do Desengano contra o profundo sono do Esquecimento. Em três histórias exem-plares para milhor conhecer-se o pouco que duram as vaidades do mundo e o poder das divinas inspirações, Lisboa, por Domingues Rodrigues, 1749.

1350 - AtAs do IV Congresso InternACIonAl do BArroCo ÍBero-AmerICAno

5.

A representação na azulejaria, lado a lado, de cenas hagiográficas e de cenas profanas não constituiu um procedimento irregular ou insólito nos espaços religio-sos na época barroca. Da mesma forma, foi prática comum na produção literária conventual. O caso do Convento da Esperança será um dos mais significativos, com a produção literária de Soror Maria do Céu e Soror Madalena da Glória, nos seus diversos géneros e temas. O facto que nos pareceu digno de relevo e que pro-curámos demonstrar foi a singular correspondência entre a representação pictórica da azulejaria e os temas preponderantes da produção literária. Terão constituído partes distintas mas complementares de um programa comum da expressão da vi-vência religiosa e da mundividência barroca.