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Noite de Reis - visionvox.com.brmesa e a chaleira estava quase fria. ... escutei a minha voz. dizer-lhes num tom áspero –, eu vou fazer pato com molho caseiro de ginjas para a ceia

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Ficha Técnica

Título original: Twelve Days of ChristmasAutor: Trisha Ashley

Tradução: Eugénia AntunesRevisão: Domingas Cruz

Capa: Neusa Dias/Oficina do Livro, Lda.ISBN: 9789897260315QUINTA ESSÊNCIA

uma marca da Oficina do Livro – Sociedade Editorial, Ldauma empresa do grupo LeYaRua Cidade de Córdova, n.º 22610-038 Alfragide – Portugal

Tel. (+351) 21 427 22 00Fax. (+351) 21 427 22 01© Trisha Ashley, 2010

e Oficina do Livro – Sociedade Editorial, Lda.Todos os direitos reservados de acordo com a legislação em

vigorE-mail: [email protected]

www.quintaessencia.com.ptwww.leya.pt

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Esta edição segue a grafia do novo acordo ortográfico.

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Para as minhas grandes amigas e colegasdo 500 Club,

Leah Fleming e Elizabeth Gill, comamor.

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PRÓLOGO

O Fantasma do Natal Passado

Embora o mês de dezembro ainda maltivesse entrado, a enfermaria foraenfeitada com uma minúscula árvore edecorações de plástico nas paredes, querepresentavam um gorducho Pai Natalcom bochechas rechonchudas eencarnadas e olhos escuros eamendoados. Oferecia o que parecia seruma barra de dinamite a Rudolfo, umarena de nariz bem vermelho, mas

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certamente só com uma energiaexplosiva é que se conseguem entregarquantidades gigantescas de presentesnuma só noite.

Ao longo dos últimos anos, a minhatática de defesa tem sido ignorar oNatal, fechando a porta a memóriasdemasiado dolorosas para enfrentar.Contudo, agora, depois de dia após diasentada à cabeceira da cama na qual aminha avó definhou como a neve noverão, parecia não haver escapatória.

A avó, que me criou desde pequena,não teria aprovado todo este aparatofestivo. Não só nascera uma batistaestranha, como também casara com umpastor daquela ramificação

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particularmente austera – e agora quaseextinta – da fé batista. Não celebravam oNatal da mesma forma que todas asrestantes pessoas – com presentes, gulae excesso, por isso, em criança, sempreinvejei secretamente os meus colegas deescola.

Mas depois casei-me e levei a coisaao extremo. O Alan encorajava-me –nunca perdeu o contacto com a criançadentro dele, razão pela qual, talvez,sempre foi um excelente professorprimário. Seja como for, adorava aquadra: com excesso, gula e tudo oresto.

Assim, eu fazia biscoitos de gengibreem forma de estrela para pendurar na

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árvore, sempre a maior queconseguíamos arrastar para casa desde ohorto mais próximo, em conjunto combengalas de rebuçado às riscasencarnadas e brancas, minúsculoscrackers de folha de alumínio e muitasluzinhas coloridas. Em conjunto,construímos quilómetros de festões depapel para decorar os tetos, pendurámosazevinho – embora nunca precisássemosde desculpas para nos beijarmos – eenchíamos as meias de cada um comsurpresas invulgares.

Depois do primeiro ano, decidimosrenunciar a um tradicional e completojantar natalício com peru e respetivosacompanhamentos a favor de pato

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assado com molho de ginjas caseiro, quese tornaria o meu prato característico.Na altura eu era sous-chef numrestaurante local. Fizemos as nossaspróprias tradições, misturando o antigocom o novo, como suponho que amaioria das famílias fará...

E éramos quase, quase uma família:preparávamo-nos para nos mudarmospara um minúsculo lugarejo às portas deMerchester, um cenário campestre idealpara as duas crianças – talvez três, se oAlan conseguisse levar a dele avante –que chegariam a intervalos regulares...

Nesta altura do meu devaneio, umcarrinho matraqueou bruscamentealgures do outro lado das cortinas

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floridas que rodeavam a cama,sacudindo-me de volta para o presente:conseguia até escutar uma ténue e fugazreprodução da canção natalícia «TheTwelve Days of Christmas», que pareciaperpassar das paredes como um miasmatípico da quadra.

Talvez a avó conseguisse também,pois, de repente, os seus penetrantesolhos cinzento-claros, tão parecidoscom os meus, esbugalharam-se com umaexpressão de assombro que nada tinhaque ver com a minha presença ou com atigela de custard caseiro que eu trouxerapara lhe abrir o apetite, a crostasalpicada de noz-moscada queimada daforma que ela gostava.

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– Ned? Ned Martland? – sussurrou aminha avó, contemplando alguém queapenas ela conseguia ver.

Nunca antes a vira tão animada echeia de vida como naquele momento, oque era irónico, tendo em conta queaquelas foram as suas últimas palavrase, só por si, um pouco enigmáticas, umavez que o meu avô se chamara JosephBowman!

Então, quem diabo era Ned Martland?Se é que o nome que a minha avósussurrara era Martland, claro, e nãoCartland, Hartland, ou algo parecido.Mas não, tinha quase a certeza que eraMartland – e era óbvio que essa pessoasignificara muito para ela em

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determinada altura. Assombroso: seriapossível que a minha avó, uma mulheraustera, séria e profundamentereservada, que, mais do que fechada eretraída, fora uma autêntica ostra,tivesse todos aqueles anos guardado umsegredo amoroso? Teria vivido a vidadela sem o homem que verdadeiramenteamava a seu lado, tal como eu vivia aminha?

Talvez fosse uma maldição familiar, oque explicaria o motivo por que, depoisda morte de Alan, ela não parara defalar sobre os pecados dos pais serempagos pelas gerações seguintes, embora,na verdade, como lhe fiz ver, tal setivesse repercutido em mim e não no

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meu marido. Porém, se a família estáassombrada por uma maldição, eu diriaque esta parece condenada a terminarcomigo, pois sou eu o fim da linha, jáultrapassei os trinta e cinco anos e omeu fruto corre perigo iminente demirrar na videira.

Ultimamente tenho tido demasiadotempo para pensar também nisto.

Não faço ideia de quais foram asúltimas palavras de Alan, se é quealgumas pronunciou, pois estava ainda adormir quando ele saiu para a suahabitual corrida matutina pelo parquelocal antes de ir para o trabalho. Quandoacordei e desci à cozinha, não havia

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sinal dele e tudo parecia lançar mauagouro. O rádio espalhava uma inanecanção de Natal pop pela cozinha e apasta dele, com o habitual fardo decadernos de exercícios corrigidos,estava no chão junto à porta. Uma tigelae um prato sujos e um Tupperware comsanduíches encontravam-se em cima damesa e a chaleira estava quase fria.

Estava ainda no meio da cozinha,confusa e começando a sentir asprimeiras pontadas de mal-estar edesassossego quando a polícia chegoupara me dar a notícia de que houvera umacidente e que Alan não regressaria acasa.

– Que disparate – escutei a minha voz

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dizer-lhes num tom áspero –, eu voufazer pato com molho caseiro de ginjaspara a ceia de Natal e é o pratopreferido dele.

Então, pela primeira e única vez naminha vida, desmaiei.

O Alan tentara salvar um cão quecaíra no gelo que o lago do parquecriava no inverno. É estúpido ou não é?Quero dizer, se o peso de um cão é osuficiente para partir o gelo, então, atéum homem ligeiramente bem constituídocomo o Alan partiria o gelo. O cão nãoera evidentemente um retriever, poisnadou pelo meio da fenda no geloprovocada pela queda de Alan, trepou

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para a borda e escapuliu-se dali.Fiquei tão furiosa com o Alan que no

funeral lancei literalmente a rosaencarnada que alguém me enfiara nasmãos para dentro da sepultura, gritando:«Onde tinhas a cabeça, parvalhão?»

E depois escorreguei na beira nevadada cova e quase segui o mesmo caminhoda rosa, embora tal se tenha devidointeiramente ao copo de brande que aminha amiga Laura, e também irmã doAlan, insistira que ambas bebêssemosantes de sairmos para o funeral. Porsorte, o marido dela, Dan, estava do meuoutro lado e puxou-me no último minutoe depois a avó contornou a sepulturadesde onde se encontrava mais um grupo

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de amigos da sua congregação batista eagarrou-me com força pelo outro braço,como uma carcereira.

Porém, por essa altura, já eu metransformara num balão desinflado: ador, a raiva e a culpa – porque merecusara a dedicar à corrida com ele –pareciam unir-se de forma tão perfeitaque não sabia onde uma terminava eoutra começava.

Alan deixara-me sozinha, fechando aporta ao futuro que havíamos planeadoao pormenor. Como fora capaz? Sempreachara que éramos yin e yang, duasmetades da mesma laranja, almasgémeas destinadas a ficar juntas paratoda a eternidade – se assim era, teria

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umas quantas e boas para lhe dizerquando por fim nos voltássemos areunir.

A minha estratégia para lidar com amorte dele fora fechar-lhe a porta a eleem troca, dando apenas livre curso àminha dor no aniversário da morte delenos finais de dezembro e escudando-mede todas as lembranças das felizesquadras festivas que ele me ensinara aamar durante os breves anos do nossocasamento.

Havia então ainda menos razões paracelebrar o Natal... Natal? Tudo nãopassava de um embuste!

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Capítulo 1

Pausa Fecunda

Uma vez que o declínio da avó jávinha a acentuar-se desde há algunsanos, a morte dela não constituiu paramim um grande choque, para ser sincera.E ainda bem, pois o meu trabalhoobrigou-me a partir à pressa para tomarconta de uma casa logo a seguir aoaustero funeral do estranho ramo batistaa que ela pertencia. No entanto,encontrar os diários dela na pequena

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arca de estanho na qual guardava os seustesouros mesmo antes de partirconstituiu um momento muito pungente...

Quando trancara a porta da suaestreita casa em Merchester – não quehouvesse no interior dela alguma coisaque valesse a pena roubar – levara aarca comigo para casa: a chave estavano chaveiro dela com as restantes. Tinhajá ideia do que continha de algunsvislumbres que captara ao longo dosanos – postais de Blackpool, onde osmeus avós passavam todos os anos asemana de férias de verão, as minhasfotografias escolares anuais,certificados e esse tipo de coisas.Camadas de recordações que iam

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recuando no tempo.Apenas a abrira com a intenção de lhe

adicionar a estreita aliança decasamento da avó, mas depois acabeipor levantar algumas das camadas depapéis para ver o que havia por baixo e,mesmo no fundo, estava um magro maçode pequenos cadernos baratos, dogénero dos que se usavam na escola,marcados «Esther Rowan», e unidos porelásticos velhos. Abri o primeiro edeparei-me com uma espécie de diáriointermitente acerca das experiênciasdela enquanto enfermeira por volta dofinal da guerra, uma vez que a primeiraentrada estava datada de outubro de1944, embora começasse por olhar para

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experiências do passado:

Começara a trabalhar comoauxiliar de enfermagem aosquinze anos, o que fez com que,quando a guerra rebentou, pelomenos não fosse enviada parafazer um trabalho árduo e sujona fábrica de munições comomuitas das raparigas deMerchester.

Pensei em como começavam atrabalhar cedo naquela altura, e, aoavançar para a entrada seguinte,apercebi-me do quanto ela era estoica:

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Tom, o meu namorado deinfância, alistou-se na marinhalogo de seguida, muito emboralhe tenha suplicado queesperasse até ser recrutado.Como seria de esperar, foi mortoquase imediatamente paragrande pesar meu e do seu pobrepai viúvo. Depois disto, decidicolocar de lado todas as minhaspueris ambições acerca do amore do casamento e entregar-me àsminhas tarefas comoenfermeira...

Aquela última linha impressionou-mepor se assemelhar bastante à forma

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como eu mudara de casa e me entregaraa um novo emprego logo a seguir àmorte de Alan. Só que, de alguma forma,no meu caso a decisão não pareciaestoica, mas mais uma negação dosmaravilhosos anos que havíamospassado juntos.

Sabia que a avó acabara por casarcom o pai do seu namorado de infância– ela dissera-me certa vez que amboshaviam sentido que podiam ser umconsolo e um apoio um para o outro –,portanto, onde entrava este tal NedMartland nesta história toda era ummistério! Começava por isso a pensarque talvez as últimas palavras da avófossem mais do que um truque da minha

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mente...Ela parecia ter enchido as páginas que

se seguiam com um moralizanteminissermão sobre os males da guerra,por isso voltei a guardar os diários naarca, planeando lê-los no meu regresso.

Passei uma semana em Devon, a tomarconta de uma cottage de um dos meusclientes regulares, de dois periquitoschamados Marilyn e Monroe, do Yoda,o yorkshire terrier e de seis galináceossem nome.

Foi muito tranquilizador e concedeu-me espaço e tempo para clarificarmuitas coisas na minha cabeça – etambém para tomar uma grande e

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potencialmente radical decisão – antesde regressar a casa preparada paradespejar a casa da avó, que pertencia auma organização de caridade geridapela igreja. Haviam começado apressionar-me para a esvaziar e entregara chave, por isso presumo que tinhamuma enorme lista de espera de viúvas declérigos sem abrigo e desesperadas.

Dispunha de uma semana livre até aomeu próximo trabalho para aHomebodies, período que considereimais do que suficiente. E estava cobertade razão, pois tinha quase terminado eansiava escapar para a remota casa nasHighlands que me ocuparia ditosamentedurante o Natal e o Ano Novo, quando,

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de repente, o trabalho foi cancelado.Ellen, a antiga amiga de escola – ou

assim ela se autodenomina, a Laura e eurecordamos as coisas de uma forma umpouco diferente – que gere a agênciaHomebodies, tentou ao invés dissoconvencer-me a cozinhar para uma festade Natal, mas fê-lo pouco esperançosade uma resposta positiva.

– Não sei porque carga de água se deusequer ao trabalho de mo perguntar –comentei com Laura, que aparecera parame ajudar a escolher e organizar o restodos pertences da avó. Bom, digo ajudar,mas uma vez que ela estavaextremamente grávida do quarto filho,em grande medida o que fez foi chá e

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falar pelos cotovelos. É loura, bonita epequenina – o meu exato oposto – ecarregava o bebé numa pequena e bonitaprotuberância sob um comprido ecoleante top tipo túnica do mesmo tomde azul dos olhos dela.

– Porque és uma excelente cozinheira,emprego que paga bem melhor do queisso de ser babysitter de casas –respondeu ela, colocando duas canecasde chá acabado de fazer em cima damesa de café. – Para além disso, tem oteto de um bulldozer.

– Mas ela sabe que eu necessito deuma pausa da cozinha no inverno e que oNatal não é a minha cena. Gosto departir para um local remoto onde

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ninguém me conheça e fazer de contaque não está a acontecer.

Laura afundou-se a meu lado no sofáhorrivelmente desconfortável da avó.

– Provavelmente, estava à espera quejá tivesses esquecido um pouco emudado de ideias. Já estás viúva hátanto tempo quanto foste casada. Todossentimos terrivelmente a falta do Alan,em especial durante esta época do ano –acrescentou ela num tom gentil. – Eleera o melhor irmão que alguém pode ter,mas de certeza que não quereria ver-nostristes para sempre, Holly.

– Eu sei e tu não podes dizer que eunão tenha apanhado os cacos e seguidocom a minha vida – argumentei, muito

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embora não tenha acrescentado que,mesmo ao fim de oito anos, a dorcontinuava ainda misturada, mais oumenos em partes iguais, com a raiva. –Porém, o Natal e o aniversário doacidente traz sempre muita coisa devolta e eu prefiro passá-lo calmamentesozinha.

– Suponho também que a Ellen seesqueceu de que não foste criada acelebrar o Natal da mesma forma quetodas as restantes pessoas.

Laura e eu conhecemo-nos desde oinfantário, por isso ela compreende aminha educação ligeiramente estranha,porém, a Ellen apenas entrou em cenamais tarde, na primária, e, embora agora

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o negue, dava-se com o grupo deraparigas que me arreliava e perseguiapor causa da minha altura.

– Não, os batistas estranhos acreditamque os ornamentos e decorações daépoca constituem manifestações pagãsda queda do Homem; muito embora aavó tocasse hinos natalícios noharmónio como ninguém.

Laura olhou para o espaço onde oinstrumento sempre estivera, encostadoao papel de parede texturado commagnólias.

– Não sei como conseguiste enfiar oharmónio na tua minúscula casa. Apostoque pesava uma tonelada apesar de nãoser muito grande.

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– Podes crer, mas não queria mesmodesfazer-me dele. Era a menina dosolhos da minha avó. As únicas ocasiõesem que parecia feliz eram quando otocava. Coube à justa no vão por baixodas escadas.

Tirando isso não guardara muito maiscoisas: o edredão de cetim rosa quecobrira a minha estreita cama emcriança e dois austeros marcadores emponto cruz bordados pela minha bisavó.Um dizia: «Estranhos são os caminhosdo Senhor» e o outro «Para que possarealizar a Sua obra, uma obraextraordinária». E pouco mais.

O que restou foi uma coleçãoheterogénea de móveis de má qualidade,

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tachos e panelas velhos de esmalte ealumínio, que iriam ser recolhidos poruma firma que comprava recheios decasas.

A casa estava imaculada, à exceção deum pouco de pó, e a avó nuncaacumulara tralha, portanto, não tivemuito trabalho. As roupas dela tinham jásido encaixotadas e recolhidas por umaorganização de caridade local e o quefaltava agora enfiar no meu carro erauma caixa de cartão com papeladadoméstica cuidadosamente arquivada.

– Acho que está tudo – declarei,tirando uma bolacha do pacote queLaura trouxera, embora as Garibaldinão sejam as minhas preferidas:

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demasiado finas e estaladiças. – Então,estás a pensar chamar a este bebéGaribaldi?

A pergunta não é assim tão patetaquanto possa parecer, uma vez quedurante a última gravidez a Laura ficaraviciada em Mars e resolvera chamarisso mesmo ao filho, Mars. Ainda bemque não se viciara em Twix ou Flake.

Ela soltou uma risadinha.– Nada disso! Mas, se for menina,

podíamos chamar-lhe Holly1, em tuahonra, muito embora vá nascer no inícioda primavera e não no Natal.

Eu detestava o meu nome – escolha daminha falecida mãe –, mas fiqueibastante enternecida.

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– Suponho que seria melhor queGaribaldi – admiti –, em especial se forrapariga.

Sorvi um pouco do pálido e fragrantechá, o Earl Grey que a Laura trouxeracom ela, ao invés do Yorkshire Tea, quea avó sempre fizera forte o suficiente aponto de conseguir equilibrar a colherde pé.

– A carrinha não tarda estará aqui,portanto, apenas temos a caixa de papéispara enfiar no meu carro e estamosdespachadas. O homem da luz veio fazera contagem enquanto estavas na cozinha,por isso presumo que a eletricidade nãodemorará a ser cortada também.

Como que ouvindo o que eu dissera, a

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esbatida lâmpada no mosqueado quebra-luz de vidro extinguiu-se, deixando-nosna penumbra crescente de uma tarde dedezembro.

– «Indica o caminho, amável luz, porentre a envolvente penumbra» – canteinum tom sepulcral.

– Conheces um hino para todas asocasiões.

– Também tu conhecerias se tivessessido educada por um batista.

– Seja como for, ainda bem que játinhas terminado – comentou Laura. – Atua avó não era de acumular tralha, poisnão?

– Não. Só aquelas poucas recordaçõesque guardou na arca de estanho que

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levei para casa. Tenho andado a leraquela espécie de diário que te conteique encontrara. Algumas partes sãofascinantes, mas pelo meio há muitaspassagens naquele tom moralistavitoriano.

– Não podias saltar essas partes? –sugeriu ela.

– Ainda pensei nisso, mas depoisdecidi que queria ler tudo, uma vez quenunca senti que a conheci a sério, naesperança de que talvez o diário medesse algumas luzes acerca do que amovia.

– Ela era de facto uma mulher muitoreservada e austera – concordou Laura,contemplando a sala esparsamente

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mobilada – e frugal, mas talvez sedevesse à educação que teve.

– Quando queria comprar-lhe umpresente ela dizia sempre que tinha tudoo que precisava. No entanto, nuncaconseguiu resistir a um sabonete delavanda da Yardley, mas isso foi o maislonge que alguma vez se permitiu cederno que às tentações da carne diziarespeito.

– Tinha muito orgulho em ti por teres atua própria casa e uma carreira.

– Suponho que sim, muito emborativesse preferido que eu tivesseestudado para ser professora, como tu eo Alan. Para ela, ser cozinheiro não eramuito melhor do que ser servo da gleba.

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E, quando deixei o restaurante e meinscrevi na Homebodies, ela achou quecozinhar para grandes festas no verão etomar conta das casas e dos animais deestimação de outras pessoas no invernoera equivalente a ir para o serviçomilitar.

– Mas tem corrido bastante bem, nãotem? Os trabalhos de verão pagam tãobem que te podes dar ao luxo de aceitaros mal pagos a tomar conta de casas noinverno.

– Encaro-os mais como uma mudançade cenário e umas férias, por isso ficarde borla na casa de outras pessoas nãome incomoda nem um pouco. Permite-me conhecer partes diferentes do país e

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as pessoas sabem que as suas casas eanimais de estimação ficam bem epodem desfrutar das férias sempreocupações.

– Mas agora que este teu trabalho foicancelado, podias passar o Dia de Natalconnosco, não podias? – sugeriu Laura.– Nós vamos jantar a casa dos meus paie a minha mãe está sempre a reclamarque pouco ou nada te vê.

– Oh, não, deixa estar! – respondi commais pressa do que tato.

– Seria melhor que ficares sozinha emcasa. E também convidei o meu primoSam para ficar connosco. O processo dedivórcio dele terminou há pouco e eleestá assim numa espécie de beco sem

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saída. Vocês os dois deram-se tão bemquando se conheceram no verão e atécombinaram aquele encontro.

– Laura, aquilo não foi nenhumencontro, apenas queríamos ambos ver omesmo filme. E ele é pelo menos unstrinta centímetros mais baixo que eu.

– Ena, que exagero! Uns cincocentímetros, quando muito! Seja comofor, ele disse que gostava de mulheresdecididas e que a forma como usas ocabelo o faz lembrar Nefertiti.

– A sério? – inquiri num tomduvidoso. O meu cabelo é preto,espesso e liso, e costumo usá-lo numaespécie de corte à tigela, comprido, comas pontas laterais a curvarem para a

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frente como se fossem asas. – Deviaestar apenas a ser simpático. Poucoshomens gostam de sair com uma mulhermais alta que eles.

– Talvez gostassem se ao menos umavez lhes concedesses essa oportunidade,Holly!

– Não vale a pena. Encontrei a minhaalma gémea e não acredito em segundasescolhas.

Alan também me achara bonita,embora a princípio eu tivesse algumasdificuldades em acreditar nele,principalmente depois de tantos anos aser troçada na escola por causa daminha altura e das minhas roupas muitoantiquadas...

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– Não tem de ser segunda escolha. Seique tu e o Alan se amavam, mas ninguémte censuraria, e muito menos eu, seentretanto te apaixonasses por outrapessoa. O Alan seria o último homem aquerer que ficasses de luto para sempre.

– Eu não continuo de luto, segui emfrente. Só que... – Detive-me, tentandoresumir o que sentia. – O que tivemosera tão perfeito que sei que não voltareia ter o mesmo.

– Mas era mesmo assim tão perfeito?Algum casamento o será? – questionouela. – E alguma vez pensaste que nãoestiveste casada o tempo suficiente paraque o estado de graça se desvanecesse?

Olhei para ela estupefacta.

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– Como assim?– Bom, vocês foram de facto muito

felizes, mas até as melhores relaçõesmudam com o tempo: as idiossincrasiasdo nosso marido começam a irritar-nose temos de aprender a ceder em algumascoisas. O Alan não era perfeito e tutambém não és. Ninguém é. Olha paramim e para o Dan, por exemplo. Ele nãoconsegue compreender por que carga deágua eu necessito de quarenta e seispares de sapatos e eu detesto vir emsegundo lugar na vida dele a seguir àporcaria do râguebi, mas ainda assimamamo-nos.

– À exceção do nosso trabalho, aúnica coisa que o Alan e eu não

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fazíamos juntos era correr.Partilhávamos tudo o resto.

– Mas com o passar do tempo, podiavir a dar-se o caso de um de vocês, ouaté ambos, começar a achar que isso eraum bocado claustrofóbico. O Alantambém era um sonhador, e sonhavaescrever. Não podiam fazer isso juntos.

– Bom, eu nunca o impedi –argumentei na defensiva. – Na verdade,até o encorajei, embora o ensino lhetomasse grande parte do tempo e daenergia. E, para além disso, eu iaescrever um livro de culinária dedicadoa festas em casa, portanto, tambémpartilhávamos esse interesse, de certaforma.

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– Ah, pois é... Já me tinha esquecidodo livro de culinária. Há uma eternidadeque não falas sobre isso.

– Está quase terminado, só falta umasecção.

Era a parte que dizia respeito aospreparativos para uma festa de Natal emcasa e andava a adiá-la.

– Eu sei que a dinâmica dorelacionamento ter-se-ia alteradoquando tivéssemos filhos, Laura, mastínhamos tudo planeado. Agora só mearrependo que tenhamos esperado tanto.

– Ora aí tens – devolveu elatriunfantemente –, se encontrares outrapessoa, não é tarde de mais paracomeçar uma família. Olha para mim!

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– Por mais engraçado que pareça,andei a pensar nisso em Devon e decidique, muito embora não queira outrohomem, quero um bebé antes que sejatarde de mais. Por isso, penseiexperimentar a inseminação artificial.Que achas?

Laura olhou-me fixa esobressaltadamente com os seus olhosazuis de compridas pestanas.

– A sério? Bom, suponho que não émá ideia – admitiu ela com relutância aofim de um momento. – Mas nãopreferirias tentar da forma naturalprimeiro?

– Não – respondi com naturalidade. –Prefiro que o bebé seja apenas meu.

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– E achas que financeiramente éviável, que conseguirias suportar oscustos? Já pensaste bem nisso?

– A casa é minha – fiz notar, porquesaldara a hipoteca da minha casa e doAlan com o dinheiro da seguradoradepois da morte dele e a seguir mudara-me para uma casa ainda mais pequenano campo, entre Ormskirk e Merchester.– E pensei que podia acabar o livro etalvez começar a fazer o catering defestas a partir de casa.

– Não sei se pensaste bem em todas asdesvantagens de teres um filho sozinha,mas sei como és quando decides umacoisa – disse Laura num tom deresignação. Depois animou-se e

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acrescentou: – Mas eu podia ajudar-te eseria maravilhoso poder ver-te commaior frequência.

– Sim, isso seria maravilhoso econtarei contigo para me aconselharescaso engravide.

– Mas olha que me surpreendeste, asério!

– Surpreendi-me a mim mesma, parate ser franca, mas houve uma coisa que aminha avó disse no final que me feztomar consciência de que precisavaarregaçar as mangas e lutar pelo quequero, antes que seja demasiado tarde.

– Queres dizer, quando ela chamou onome de um homem de quem nuncaouviras falar?

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Acenei que sim com a cabeça.– Foi a forma como ela o disse... E

também o conseguia ver. Nunca antes avira sorrir daquela maneira, portanto,suponho que o terá amado e perdido,fosse ele quem fosse. E talvez o diáriodela me venha a revelar isso. O rosto daavó suavizou-se, enterneceu-se, econsegui vislumbrar o quanto ela deveter sido bonita quando era jovem.

– Tal como tu, com o mesmo cabelopreto e olhos cinza-claros.

– Laura, não podes dizer que eu soubonita! Quero dizer, para além de ter aaltura de um poste de eletricidade, tenhoum nariz enorme e aquilino.

– És linda, e o teu nariz não é

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aquilino, apenas curva muitoligeiramente – contradisse-me ela,sempre leal para comigo. – O Sam temrazão, pareces-te mesmo com aquelebusto de Nefertiti que se costuma vernos livros... embora o teu cabelo sejaassim mais à Cleópatra.

Senti-me lisonjeada, mas não medeixei convencer. A pele da avó foraclara, suave e lisa como o rabinho de umbebé, ao passo que a minha tombavapara um tom moreno, que me tornariamediterrânica não tivesse os olhosclaros. A família da mãe da minha avóera inicialmente oriunda de Liverpool,por isso, atrevo-me a dizer que devehaver um qualquer marinheiro

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estrangeiro na minha ascendência aoqual tenho de agradecer pela minha tez,e talvez a minha altura também, que temsido a chaga da minha existência.

«Até simpatizo bastante com o Sam,pelo menos não falou para as minhasmamas como muitos homens fazem –admiti e depois arrependi-me deimediato, pois ela apressou-se aargumentar avidamente:

– Então posso contar contigo, aindaque apenas para o jantar de Natal?Prometo não vos empurrar para osbraços um do outro, ainda que isso teconcedesse uma oportunidade de oconheceres um pouco e...

O meu telefone emitiu um abafado

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trecho de Mozart e agarrei nele. Salvapela música enlatada.

1 Azevinho. (N. da T.)

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Capítulo 2

Little Mumming

No último hospital em que estiveera frequentemente deixadasozinha a tomar conta de umaenfermaria pediátrica numedifício separado, noite apósnoite. Quando as sirenes dosataques aéreos se faziam ouvir,levava as crianças todas parauma cave escura e húmida, ondetinha de matar e afugentar

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centenas de baratas dos berçosantes de deitar as crianças. Porfim, no início deste ano,debilitada por demasiadosturnos noturnos, falta de sono –era impossível conseguir dormirdurante o dia –, demasiadasresponsabilidades e máalimentação, a minha saúdedeteriorou-se e fui enviada paracasa para recuperar.

Outubro de 1944

Fiz figas para que o telefonema nãofosse do homem da empresa de recolhade recheios a dizer que decidira nãoficar com os poucos móveis e trastes da

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avó, mas não, era a Ellen, da agênciaHomebodies.

– Holly, lembras-te de te ter dito quenão tinha mais nenhuma marcação para oNatal? – começou ela no seu tomligeiramente áspero e sem qualquerpreâmbulo. Ellen nunca se maça comgrandes demonstrações de boaeducação, exceto com os clientes. –Pois, mas agora surgiu uma coisa e voupedir-te que me ajudes nisto. É umgrande, grande favor que me fazes!

– Um favor? – Animei-me deimediato. – Referes-te a um grande favorrelacionado com tomar conta de umacasa?

Laura cruzou o olhar comigo e fez uma

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careta, abanando a cabeça e dizendo,num sussurro, «Não te atrevas!»

– Sim, acabou de rebentar aqui umacrise – explicou Ellen. – Lembras-te daMo e do Jim Chirk?

– Já me falaste deles várias vezes,mas nunca os conheci em pessoa. Sãoum dos casais de maior confiança e quehá mais tempo trabalha para ti, não são?

– Eram – corrigiu ela num tomsombrio. – E era suposto estarem atomar conta de uma casa nas charnecasdo Leste do Lancashire durante o Natal.Já lá tinham estado duas ou três vezes eo proprietário da casa requisitou ospréstimos deles de novo, mas assim quechegaram lá receberam a notícia de que

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a filha dera à luz prematuramente eagora vão apanhar um avião rumo aoDubai para se juntarem a ela.

– Queres dizer que já partiram?– Vão a caminho de casa para refazer

as malas e buscar os passaportes edepois metem-se no primeiro avião queos levar daqui. Telefonaram-me mesmoantes de partirem... E só lhes fica bem,uma vez que me deixaramcompletamente na mão!

– Não me parece que tivessem outraescolha, Ellen, ou que possamoscensurá-los. É mesmo uma daquelascoisas inesperadas... Espero que o bebéesteja bem.

– Que bebé?

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– O bebé da filha deles.– Não faço ideia – respondeu ela num

tom indiferente, o que não constituíaqualquer surpresa, uma vez que, no quea negócios diz respeito, a Ellen ficacompletamente absorta. – Olha, podiassafar-me desta, aceitando tu o trabalho?Na verdade, era suposto ser para duaspessoas, pois é uma casa grande deprovíncia, um pouco remota, com quintaem redor e há também alguns animais deestimação para cuidar. Só que não tenhomais ninguém livre a não ser tu. Nãopodias ir? Amanhã? Eu asseguro-me deque recebes a dobrar – tentou elaconvencer-me.

– Se há animais de estimação, quem

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está a tomar conta deles de momento?– Os tios idosos do proprietário

vivem na casa do caseiro edisponibilizaram-se para manter ascoisas debaixo de olho até que tuchegasses, mas não me parece quetenham capacidade para aquilo, casocontrário, eu diria que Mister Martlandnão teria contratado os serviços daHomebodies.

– Martland? – interrompi.– Sim, Jude Martland. Já ouviste falar

dele? É um escultor bastante conhecido.Foi ele que fez o Cavalo de Ferro aolado da autoestrada perto deManchester, com tiras de metalsoldadas... Muito moderno.

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– Sim, sim, penso que ouvi falar. Mas,na verdade, ouvi esse apelidorecentemente num contexto diferente e éinvulgar, daí a minha surpresa.

– Deve ser apenas uma coincidência...A realidade é sempre mais estranha quea ficção – comentou ela, mexendodesinteressadamente em alguns papéis.

– É verdade – concordei, e é claroque estes Martland não haveriam de ternada que ver com o Ned Martland que aavó mencionara – partindo dopressuposto que eu a escutara bem. Aavó era uma rapariga da classetrabalhadora e não teria frequentado osmesmos círculos que a pequena nobrezaproprietária de casas senhoriais nas

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charnecas.– Seja como for, ele herdou a

propriedade, chamada Old Place, hámais ou menos um ano e encontra-sealgures no estrangeiro, mas até agoranão conseguimos contactá-lo para lhedar conta do sucedido. E ele sóregressará no dia de Reis.

Virei as costas ao ar desapontado deLaura, embora conseguisse à mesmasentir o olhar acusador dela na minhanuca. Começava a suspeitar que elaconvidara o primo Sam à pressa para oNatal assim que eu lhe dissera que omeu trabalho para a quadra afinal nãoiria para a frente. A ideia provavelmentenunca lhe passara pela cabeça até então.

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– Não me parece demasiado difícil –disse a Ellen. – Não seria a primeira vezque tomaria conta de casas grandessozinha. Que animais de estimação sãoesses que mencionaste?

– Um cão e... um cavalo.– Um cavalo? Chamas animal de

estimação a um cavalo? Ellen, eu nãotrato de cavalos!

– É uma pileca velha e tu tens algumasluzes sobre cavalos. Eu lembro-me quecostumavas ir a uma escola de equitaçãocom a Laura.

– Apenas ia fazer-lhe companhia!Dificilmente isso me qualifica paratomar conta do cavalo de alguém, não teparece?

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– Tenho a certeza que retiveste maisinformação do que pensas. A Mo diziaque o cavalo não dava trabalho nenhume as instruções estão todas por escrito.

– Sim, mas...– E suponho que o casal de idosos da

casa do caseiro te pode ajudar casotenhas alguma dificuldade. E há tambémuma mulher a dias e uma pequena aldeiaperto da propriedade, por isso não ficaassim totalmente isolada. Que me dizes?

– Bom... suponho que podia ir. Masestou um pouco apre-ensiva por causado cavalo. Acho...

– Oh, isso é maravilhoso! –interrompeu logo ela. – Tenho a certezaque o cavalo não constituirá nenhum

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problema. Provavelmente, anda à soltanum campo e apenas terás de olhar parao bicho uma vez por dia ou assim. E aboa notícia é que a Mo e o Jim ficaram asentir-se tão mal por terem de empurraro trabalho para outra pessoa quedeixaram todas as provisões que haviamlevado para o Natal para quem os fossesubstituir. Embora, pensando bem,também não pudessem propriamentevoar para o Dubai com um peru e todosos acompanhamentos na mala, não é?

– Claro, mas, ainda assim, foi umgesto simpático. Onde disseste que ficaa propriedade?

– Não disse, mas mando-te já asdireções e todos os pormenores por e-

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mail. Fica um pouco fora de mão, eafastado, mas habitualmente tu atéaprecias isso.

– Sim, especialmente no Natal. Nesseaspeto, a tua oferta é perfeita.

– Não sei o que irás fazer por lá, umavez que, aparentemente, a receção detelevisão é péssima e não há bandalarga.

– Não tem importância, eu levomúsica e muitos livros.

Desliguei a chamada, virei-me edeparei-me com Laura a olhar-mereprovadoramente.

– Oh, Holly, ia ser tão divertido sepassasses o Natal connosco!

– Acredita em mim, Laura, não seria.

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Ia ser como se tivessem convidado oGrich. E eu divertir-me-ei à minhamaneira. Só tenho dois animais paratomar conta, por isso terei muito tempolivre para experimentar receitas eescrever a última secção do livro. Paraseguir em frente com a ideia do bebé,preciso de o terminar e de encontrar umaeditora!

Laura suspirou e revirou os olhos numar de resignação, pois conhecia-medemasiado bem para me tentar persuadira desistir do trabalho.

– Ora bem, do que é que te recordasainda sobre como tratar de um cavalo? –inquiri esperançosamente.

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Imprimi as instruções da Ellen assimque cheguei a casa e ela tinha razão: acasa ficava num local remoto para onorte do país, perto de uma pequenaaldeia acerca da qual nunca ouvira falar.

Fazer as malas e preparar tudonaquela noite foi um pouco complicado,mas não resisti a continuar a minhaleitura noturna de uma página ou duas dodiário da avó, que estava de novo a ficarmais interessante, já que não falavaacerca do passado, mas antes dopresente. Por alturas de novembro de1944, era óbvio que estava bem osuficiente para regressar ao trabalho:

Agora que recuperei, fui enviada

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para o hospital de Ormskirk, oque me agrada, pois fica maisperto de casa e também do paido Tom, um homem gentil ebondoso que é também o pastorda capela batista estranhadaqui. Contudo, os meusaposentos são muito humildes,numa casa gerida por umamulher severa e desagradável. Acomida é escassa e de máqualidade e dormimos numaespécie de dormitório, por issopouca privacidade temos. Oregalo de um ovo fresco, umpresente de despedida da minhamãe, entreguei à minha senhoria

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para que mo cozesse para opequeno-almoço, mas nuncamais o vi e todas as minhasinquirições em relação aomesmo depararam-se comgrunhidos mal-humorados.

Li mais um pouco e fiquei a saber quefez novos amigos e se instalou, porém,estava demasiado cansada para manteros olhos abertos e teria muito tempopara ler os diários durante o Natal. Naverdade, decidira levar a arca dospapéis comigo para os organizar.

Bem cedo, na manhã seguinte, enfiei aarca de estanho na bagageira do carroem conjunto com tudo o resto que

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costumo levar comigo nestas missões –caixas de ervas aromáticas, especiariase outros ingredientes básicos,mantimentos, uma geleira com alimentosperecíveis, utensílios vitais, livros decozinha, computador portátil, as notasdo livro que andava a escrever e o meurádio portátil... O porta-bagagens estavajá bastante cheio e faltava ainda a malada roupa e as botas de borracha.

Laura, resignada com a minha decisão,viera ter comigo para me dar o meupresente de Natal – é a única pessoa queo faz. Em troca, entreguei-lhe um sacocom pequenas lembranças para afamília, algumas delas caseiras ecomestíveis.

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Deu-me também instruções rígidaspara que lhe telefonasse todos os dias.

– Depois contas-me tudo. Não sei,Old Place soa-me terrivelmente snobe enunca ouvi sequer falar da aldeia. Comodisseste que se chamava?

– Little Mumming. Fica perto de GreatMumming, pelos vistos. Também nuncaouvira falar dela, mas encontrei-a nomapa.

– Foi tudo tão à pressa, tens a certezade que tens tudo o que precisas?

– Sim, penso que sim. A maior parteestava ainda emalada e pronta a seguir.E ainda acrescentei galochas, calças deganga, o anoraque de passear os cães...

– E um vestido elegante, para o caso

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de a mulher do fi-dalgo local te deixarcartões de visita e tu teres de retribuir avisita?

– Tens mesmo de parar de ler JaneAusten – aconselhei num tom severo. –E eu diria que este Mister Martlanddeve ser, em Little Mumming, oequivalente do fidalgo da terra e, nessecaso, se houver uma mulher, ela teráviajado com ele, não te parece?

– A não ser que ela esteja no piso decima, no quarto do Barba Azul!

– Obrigada por partilhares essepensamento tão perturbador.

– Não tens de quê. Mas a casa nãodeve ser assim tão grande, pois não? Sefosse, teria criados internos.

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– Hoje em dia, não necessariamente –argumentei com base na minhaexperiência como caterer de festas emalgumas casas onde por vezes o únicopessoal contratado era eu e a ama. – AEllen mencionou uma mulher a dias.Bom, mas a propriedade é grande osuficiente para ter uma pequenaresidência para o caseiro, que é ondemoram os tios idosos do proprietário. Éa eles que tenho de me dirigir parareceber a chave da casa.

– Já percebi que estás desejosa de ir,mas ainda assim não gosto de pensar quevais ficar abandonada numa casa remotae passar o Natal sozinha – referiu Laura.– Tens o telemóvel e o carregador e

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comida e bebida suficiente para o casode a loja mais próxima ficar a muitosquilómetros? O boletim meteorológicoprevia tempo bastante frio e seco para apróxima semana e a probabilidade determos um Natal branco está a diminuir.

– Ora, Laura, desde quando osmeteorologistas acertam nas previsõesde longo prazo? E, pensando bem, comque frequência é que neva aqui, emespecial no Natal?

– Mas, provavelmente, o tempo édiferente no Leste do Lancashire, com ascharnecas e assim.

– Talvez seja um pouco mais frio ebatido pelo vento, mas só acredito emneve quando a vir. E a Ellen disse que o

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Jim e a Mo me deixaram a comida delestoda, uma vez que não vão precisar dela.Iam só fazer uma paragem rápida emcasa para refazer as malas e ir buscar ospassaportes e depois metiam-se numavião para o Dubai. Dificilmenteconseguirei comer um peru inteiro erespetivos acompanhamentos durante aquadra natalícia, ainda que fique retidapela neve. – Dei-lhe um abraço, mas nãomuito apertado por causa daproeminente barriga. – Eu fico bem, jásabes que sim. Beijos aos teus pais edivirtam-se muito. Vemo-nos no dia deReis!

Enfiei-me no bem recheado carro earranquei, a imagem de Laura no

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espelho retrovisor a acenar-me até terdobrado a esquina, dando-me conta doquanto gostava da minha melhor amiga.

Agora que a avó partira, haveria maisalguém no mundo que se preocupasseverdadeiramente comigo e me amassepara além dela? Ou que eu amasse dofundo do coração? Não me ocorria maisninguém... e isso de repente pareceu-metão triste e trágico. Tivera outrosamigos, na sua maioria, haviam sidoamigos do Alan também, masempurrara-os para fora da minha vidadepois do acidente.

No entanto, em breve, se os meusplanos de ter um bebé se tornassemrealidade, teria mais alguém para amar e

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que também me amaria...À medida que me afastava de casa, a

minha disposição melhorava, comoacontecia sempre, pois a alegria de cadatrabalho residia no facto de ninguém meconhecer, ou ao meu passado, ou tersequer muito interesse em descobrir.Para essas pessoas, eu era apenas acompetente e expedita Holly Brown, daagência Homebodies, que estava alipara fazer o seu trabalho: a MaryPoppins de Merchester.

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Capítulo 3

Weasel Pot

Travei amizade com a Hilda e aPearl, que dormem nas camas decada lado da minha na casa dehóspedes. São elas que me têmtambém orientado no novohospital. À semelhança demuitas das outras enfermeiras, oprincipal anseio delas pareceser casar, de preferência com umdos jovens médicos.

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Importunaram-me até euconfessar que perdera onamorado nos primeiros mesesda guerra e que, por isso,encarava agora a enfermagemcomo a missão da minha vida.

Novembro de 1944

Little Mumming ficava num pequenovale abaixo de um dos montes queatravessam o Leste do Lancashire e ondeuma longa cadeia de fogueiras foi emtempos antigos usada como sistema dealerta.

No mapa não me parecera ficar longeda autoestrada, mas a degradada estradanacional serpenteava interminavelmente

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para cima e para baixo, oferecendo-meuns ocasionais, distantes e tentadoresvislumbres de Snowehill, encimado poruma atarracada torre, mas parecendotardar em conduzir-me ao meu destino.

Por fim, cheguei a um entroncamentocom uma placa que indicava LittleMumming e Great Mumming para aesquerda, por uma perigosa estrada deuma só via, embora, por mais estranhoque pudesse parecer, também indicasseGreat Mumming em frente. Pelos vistos,todos os caminhos iam dar a GreatMumming.

Virei então à esquerda para a íngremeestrada, esperando sinceramente não mecruzar com nenhum veículo em direção

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contrária, pois, embora houvesse algunslocais onde a estrada alargava parapermitir o cruzamento de carros, haviatambém muros altos de pedrasempilhadas de cada um dos lados, queme impediam de os ver ao desfazer umadas inúmeras curvas tipo cotovelo.

Passei por um calhau, ao lado de umcaminho cheio de buracos, onde alguémpintara a indicação «Weasel Pot Farm»e reduzi a velocidade. Iria alguma vezver qualquer indício de uma aldeia?

Atravessei depois uma ponte antiga depedra corcovada, fiz uma última curvadepois de passar um par de portões deferro forjado e parei, pois à minha frentea estrada aplanava e alargava revelando

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Little Mumming em toda a sua glóriainvernal.

Era um lugarejo amontoado depequenas casas de pedra cinzenta, umpub e uma igrejinha na ponta de umcampo verde no qual as ovelhaspastavam como se a vida delas dissodependesse. E talvez assim fosse. Osinvernos eram presumivelmente maisduros aqui no Norte.

Bem alto na encosta do monte, a figurade aspeto celta de um cavalo havia sidotalhada na terra ou no arenito encarnado-escuro, usando apenas umas poucaslinhas fluidas. Podia ser uma antigamarca feita na falda do monte ou, quiçá,um mais recente aditamento à paisagem.

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Ao fim de um minuto, prossegui eestacionei junto ao campo, desligando omotor. Precisava de um momento paradescolar as mãos do volante depoisdaquela subida.

A aldeia parecia ter despontado eirrompido do solo, as paredes e telhadosmusgosos e cobertos de líquenes.Soprava um vento frio e áspero e amanhã ia a meio, por isso não estranheique as ruas estivessem desertas, muitoembora tenha ficado com a sensação deque estava a ser observada por detrásdas cortinas de renda de Nottingham...

No entanto, a única coisa que se mexiaera o cartaz, balançando ao vento àporta do pub, o Auld Christmas, que

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retratava um idoso de barba e mantoazul, segurando um pequeno abeto e comuma grinalda de folhagem em redor dacabeça. Muito estranho. O pubanunciava pequenos-almoços e almoçosde lavrador, o que teria sido uma boaideia não tivera a viagem demorado bemmais do que eu contava.

A loja de que Ellen falara ficavaperto, exibindo sacas de batata e caixasde legumes à porta. Mesmo ao ladoestava uma casa de chá, a Merry Kettle,embora tivesse aspeto de não abrirdurante o inverno; provavelmente, eraapenas um negócio sazonal, para osturistas.

Consultei o meu mapa, liguei o motor

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e prossegui viagem, passando por umtrio de minúsculas casas de estilogótico, por cima de uma segunda ponte,esta mais pequena, e outra tabuleta aapontar Great Mumming por uma tiraestreita e incrivelmente íngreme dealcatrão.

Não admirava que todos os veículosestacionados à porta do pub fossem detração às quatro rodas!

Ao fim de uns oitocentos metros, vireie meti pelo meio de um par de enormespilares de pedra, chegando por fim auma extensão de gravilha ao lado deuma casa do guarda, que fora aumentadanas traseiras de forma a converter-senuma residência bastante ampla.

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O local era muito tranquilo esilencioso. Apenas se escutava o correrde água algures por perto e o grasnidode gralhas num pinhal alto que deviaesconder a casa principal, pois não seavistava nem a chaminé.

Quando emergi do carro, um poucohirta – não me dera conta do quantoaquela subida me deixara tensa –, aporta da casa do guarda abriu-se umpouco e um homem de idade alto ecurvado fez-me sinal que entrasse.

– Já chegou! Entre depressa, antes queo ar quente saia – ordenou ele comurgência, como se eu fosse umcaprichoso animal de estimação.

Esgueirei-me com cuidado pela

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enorme e espinhosa coroa de azevinhopendurada à porta e vi-me numcomprido corredor. Assim que a portafoi fechada, o idoso virou-se e avançoupara mim com uma estranha forma deandar, semelhante a um caranguejo,estendendo-me a mão.

– Noël Martland. E a menina deve serHolly Brown. Bonito nome, a propósito,muito apropriado.

– Ah sim? Apropriado para quê?– Para o Natal – respondeu ele com

um ar vagamente surpreendido por ter demo dizer. Usava um bigode inclinadoestilo aviador que cobria parcialmenteas cicatrizes pregueadas e luzidias deuma antiga e extensa queimadura. Ao

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perceber que eu reparara, disse: – Aviãoabatido na guerra. Fiquei um poucochamuscado e a aterragem não correubem.

– Certo – disse, admirando aeconomia de palavras na descrição deuma cena que teria ocupado metade deum filme e obrigado os espectadores aroer as unhas das mãos e dos pés.

– É melhor dizê-lo logo de uma vez.As pessoas ficam sempre a interrogar-se, mas não gostam de perguntar.

Pegou no meu casaco e pendurou-ocom parcimónia num cabide de mogno epor fim conduziu-me a uma pequena salade estar quadrada e revestida a chita,que seria muito agradável se não tivesse

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sido convertida numa medonha casa dePai Natal. Festões e lanternas de papelpendiam do teto, fitas natalícias verdesrevestiam a prateleira da lareira e otopo de todas as molduras e viam-seglobos de neve e rostos de porcelana doPai Natal em todas as superfíciesplanas.

Na janela de sacada, havia luzinhas abrilhar por entre tantos enfeites napequena árvore de Natal de plástico queos ramos pendiam fatigadamente sobtamanho peso.

Observando a minha expressão deestupefação com algum agrado, NoëlMartland disse:

– Espetacular, não é? Aqui em Little

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Mumming gostamos de fazer as coisascomo deve ser. – E depois bradou semaviso: – Tilda! Ela já chegou!

– Vou já! – respondeu uma voz aguda eesganiçada e, com um estardalhantematraquear e chocalhar, uma mulherminúscula empurrou um grande carrinhode servir por uma porta de batente que,imaginei, daria para a cozinha.

– A minha mulher, Tilda – apresentouNoël Martland. – Esta é Holly Brown,querida.

– Assim presumo, a não ser que tenhasdesenvolvido o hábito de entreter jovensestranhas – devolveu ela mordazmente,examinando-me com os seusemurchecidos mas ainda perspicazes

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olhos azuis. Muito embora a idade lhetivesse roubado a frescura, não aimpedira de aplicar uma arrojadacamada de sombra turquesa naspálpebras e uma generosa demão debase, pó de arroz e batom escarlatebrilhante. Sob o avental brancopregueado vestia uma blusa de cetim corde pêssego com enormes mangas, queafunilavam nos estreitos punhos, e umvestido de peitilho em poliéster acondizer. As pernas, tão finas quantofósforos, e adornadas com meias cor depele um pouco largas terminavam nunssapatos afiados com salto de agulhamuito altos. Fiquei satisfeita por ela tero carrinho para se amparar.

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– A agência informou-nos que viriasozinha, muito embora um casal fosse oideal. Porém, suponho que já é umasorte arranjarmos seja quem for tão emcima da hora, e no Natal – referiu,mirando-me com um ar crítico.

– Tenho a certeza que correrá tudoesplendidamente! – declarou o maridodela.

– Isso ainda está para se ver, Noël –disse ela com brusquidão. – Miss ouMistress? – perguntou ela de repente,olhando de relance para a minha mãoesquerda desnuda.

– Mistress – respondi. – Sou viúva.Cozinho muito, por isso nunca fui grandeadepta de usar anéis.

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– Viúva? Que infortúnio – disse ela,tirando as coberturas a dois pratos querevelaram conter sanduíches de rolinhoe bolinhos.

– Não era preciso ter tido tantotrabalho – protestei. – Não estavasinceramente à espera que me dessem decomer, apenas as chaves!

– Não tive trabalho nenhum. Nósalmoçamos sempre cedo, por issolimitei-me a fazer um pouco mais. Aminha empregada foi passar o Natal acasa, como é costume, mas de qualquermaneira sou eu quem costuma cozinhar.Para mim não é nada de mais. Tive umprograma de culinária na televisão, nosbons velhos tempos. Se tivesse sabido a

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hora exata a que chegava, poderia terfeito um suflê.

– Isto tem um excelente aspeto –comentei, tirando uma sanduíche. – Foientão uma cozinheira como FannyCraddock?

O rosto dela ensombrou-se de formaalarmante e não precisei do ar aterradoe do abanar de cabeça de Noël paraperceber que cometera um faux pas.

– Não me fale dessa mulher – zangou-se Tilda. – Não passava de umaamadora descarada!

– Peço desculpa – apressei-me adizer.

– Naquele tempo, o meu nome eraTilda Thompson e era muito mais

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fotogénica do que alguma vez ela foicarregada de base e pestanas falsas.

Parecia ser um caso de diz o roto aonu, mas resolvi assentir em sinal deconcordância.

– Café? – ofereceu Noël num tombem-disposto, servindo-me uma chávenacom uma mão ligeiramente trémula.

– Sim, se faz favor. – Depois deprovar a sanduíche, estava ansiosa poraceitar qualquer coisa que pudessetirar-me aquele sabor da boca... fosse láo que fosse.

– Chamaste a Jessica? – perguntouTilda Martland ao marido.

– A caminho da porta, querida. Mastalvez seja melhor chamá-la de novo.

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No piso de cima, uma porta bateu eescutou-se um retumbar de passosescadas abaixo, como se fosse umadebandada de rinocerontes.

– Não é preciso – disse elasecamente.

Jess era uma rapariga alta, magra emorena de cerca de doze ou treze anos –não tão alta quanto eu fora com a idadedela, mas ainda mais escanzelada –,vestida de preto da cabeça aos pés,desde as armações dos óculos aossapatos. Não se parecia nem um poucocom alguém chamado Jessica quealguma vez eu tivesse visto. Destacava-se sem sombra de dúvida naquela saladecorada com chita, carregada de

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ornamentos e demasiado engalanada.– Esta é a nossa neta, Jessica –

apresentou Noël Martland.– Jess, avô – corrigiu-o ela num tom

paciente.Ele sorriu-lhe afetuosamente.– Jess, esta é Mistress Brown, que vai

tomar conta de Old Place até o tio Judevoltar.

– Por favor, tratem-me por Holly –sugeri.

– Nesse caso, tem de tratar-nos porTilda e Noël.

Jess olhou-me com curiosidade,daquela forma ligeiramente matreiraprópria dos adolescentes e que, de umaforma geral, não indica nada mais a não

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ser uma aguçada autoconsciência.– Só aqui estou sozinha porque os

meus pais estão na Antártida. Mas agorao meu tio-avô faleceu e o Jude ausentou-se para não sei onde e não podemospassar o Natal e o Ano Novo em OldPlace como costumamos fazer. É umaporcaria.

– Os pais da Jess estão a estudarpelicanos – explicou Tilda, descerrandooutra travessa de minúsculas sanduíches,desta vez cortadas com a forma deursinhos.

– Pinguins – corrigiu Jess. – Pinguins-imperador. E que idade achas tu que eutenho, avó?

– A julgar pelas tuas maneiras, seis.

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– Ah, ah – disse Jess, mas ainda assimpegou num ursinho sanduíche e, depoisde levantar a fatia de pão de cima paraexaminar o recheio aparentementeinócuo de fiambre, comeu-o.

– É uma pena tão grande que a Mo e oJim tenham tido de partir assim tãoinesperadamente, não é? – referiu Noël.– Mas, pronto, é a vida. Não tiveramoutra opção. Só espero que não ache istodemasiado remoto e solitário. Há umamulher a dias que costuma vir duasvezes por semana, mas o casal quecuidava do meu irmão, os Jackson,reformou-se e o meu sobrinho cuida delemesmo quando está em casa.

– Aquela mulher a dias é uma fraude.

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Eu acho que ela pouco mais faz queabanar o espanador durante uma meiahora e depois põe-se a beber chá e a lerrevistas – comentou Tilda. – Maspresumo que em breve porá tudo denovo num brinquinho, Holly.

– Certamente que me assegurarei deque as áreas da casa que usar sãomantidas limpas e arrumadas – fiz notarsem rodeios, uma vez que era umequívoco comum achar-se que aspessoas que tomavam conta de casastambém faziam limpezas profundas etodo o tipo de tarefas pela casa e pelojardim; por isso, frequentemente achavapor bem deixar este ponto bem clarologo desde o início. – Estou aqui

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simplesmente para assegurar que a casaé vigiada e os animais tratados. Pensoque há um cão e um cavalo, não é assim?

– A Lady era a égua do meu tio-avô,por isso é um animal velho – referiuJess. – O avô e eu fomos até lá acima nocarrinho de golfe ontem à tarde e denovo esta manhã e eu enchi o balde delade água e dei-lhe feno, mas não me pudeaproximar demasiado porque soualérgica a cavalos. Começo logo aespirrar.

– Oh, que pena – disse comsinceridade, pois bem que me daria jeitouma miúda doida por cavalos e comalguns conhecimentos de como tratardeles.

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– Sim, mas com cães não tenhoproblemas, desde que não os penteie,por isso levei o Merlin a dar um passeioe uma corrida.

– Isso já é ótimo – concordei, partindodo princípio que o Merlin era o cão deque me haviam falado.

– Deixámos a Lady dentro doestábulo, com a parte de cima da portaaberta, para o caso de a Holly chegartarde. Nesta altura do ano, anoitece tãodepressa – disse Noël – e a Holly decerteza que não iria querer trazê-la docercado para o estábulo às escuras antesde se familiarizar com o local e orientar.

– Foi bem pensado – respondireconhecidamente.

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– O Jude tem grande estima por aqueleanimal, porque era o cavalo da mãe dele– explicou Noël, comendo uma dasestranhas sanduíches de rolinho comaparente deleite. Eu esforçara-me porengolir o resto da minha sem mastigar.

– Ficou muito satisfeito por deixá-lade novo entregue aos cuidados dosChirk, mas não sei o que achará de atarefa passar para as mãos de outrapessoa que ele não conhece – referiuTilda.

– Ellen, a pessoa que gere aHomebodies tem tentado contactarMister Martland para o informar do queaconteceu. Caso ele vos telefone, possopedir-vos que lhe expliquem a situação?

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– Oh, sim, com certeza – respondeuNoël. – Ele é bem capaz de ligar nospróximos dias. Possivelmente, depoisfalará consigo também.

– Devo confessar que ficarei maisdescansada quando ele souber quehouve uma alteração nos planos.

– Bom, a culpa é dele por ficarausente durante tanto tempo – fez notarTilda. – Não acreditámos que ele falavaa sério quando de repente disse que nãotencionava regressar da viagem àAmérica senão depois do Natal, poisnão, Noël?

– É verdade, querida, poisnormalmente, como a Jess disse,mudamo-nos para Old Place para passar

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o Natal e o Ano Novo. A minha irmãBecca também costuma ficar sempredesde a véspera de Natal até ao diavinte e seis. Provavelmente, passou pelacasa dela a caminho daqui. New Place?Uns portões grandes de ferro forjadomesmo na outra extremidade da aldeia.

– É claro que ela passou pelo raio dacasa – exasperou-se Tilda –, ou achasque ela aterrou aqui de para quedas?

– Mudemos de assunto – sugeriu eleapologeticamente, mas piscou-me oolho.

Interroguei-me de repente se Alan e euteríamos acabado assim, comigo amandar nele a torto e a direito e ele aaturar-me pacientemente. Não havia

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como negar que eu era mandona econtroladora, mas também ele tinha oseu quê de teimosia...

– Ainda assim, teria sido um poucodifícil este ano, com a morte do meuquerido irmão em janeiro e depois azanga entre o Jude e o Guy – suspirouNoël.

– A culpa não foi do Guy, na verdade– afirmou Tilda desapaixonadamente. –Aquela rapariga é que o enfeitiçou.

Não perguntei quem era Guy porque,para ser sincera, não estava muitointeressada em pessoas que nunca iriaconhecer. Terminei o meu café e pouseio meu prato e chávena.

– Bom, não estava à espera deste

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banquete. Estava delicioso. Muitoobrigada! E agora é melhor ir andandopara me instalar.

– Sharon, a mulher a dias, é capaz deainda lá estar, por isso, peça-lhe que lhemostre os cantos da casa antes de sair. Ébem provável que seja a coisa mais útilque fará o ano todo – sugeriu Tilda.

– Suponho que faz o melhor que pode.É uma casa grande para apenas um parde mãos – argumentou Noël numa atitudeconciliadora. – Não que o Judedesarrume ou suje muito, uma vez que,quando está em casa, tende a passar amaior parte do tempo lá em baixo nomoinho, a trabalhar nas suas esculturas,ou então no seu pequeno escritório, ao

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lado da biblioteca.– Ah, sim, ouvi dizer que ele é

escultor.– É muito famoso – acrescentou Jess –

e tem muito mau feitio. Só cancelou oNatal porque viu aquele anúncio donoivado e eu acho que ele é maldoso.Aposto que nem sequer se lembrou queo meu pai e a minha mãe não poderiamcá estar este ano e eu viria sozinha.

– Jess, já chega! – ordenou Tilda e elaremeteu-se a um silêncio amuado.

Pus-me de pé.– Bom, é melhor ir andando enquanto

ainda há luz e ir tratando de me instalar.Noël levantou-se também e entregou-

me um enorme molho de chaves,

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apontando para a maior.– Essa é a da porta da frente. Suponho

que logo descobrirá por si as restantes.– Eu podia ir consigo mostrar-lhe –

ofereceu-se Jess rapidamente.– Então, Jess, sabes bem que

prometeste ir visitar a Old Nan estatarde. É melhor ires aprontar-te, nãopodes desapontá-la – fez notar Tilda. –De certeza que ela te preparou umlanche especial.

– Mais comida para bebés! –comentou Jess com desapontamento.

– E veste qualquer coisa que não sejapreta.

Jess resmungou e subiu ao piso decima contrariada e a bater com os pés.

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– Está muito desiludida por nãopassarmos o Natal em Old Place –confiou Noël num sussurro, como seachasse que seríamos ouvidos no andarde cima. – E diga ela o que disser, aJess adora o Jude. Receio que vá sermuito aborrecido para ela. A Mo e o Jimtinham-nos convidado amavelmente parapartilharmos a ceia de Natal com eles eisso teria sido muito divertido. – Voltoua suspirar. – Sou um perito emfestividades natalícias, sabia? Atéescrevi um livro sobre a história etradições da quadra, por isso gosto de acelebrar como deve ser.

– E é o que acontecerá! Tenho ali umabelíssima galinha que dará muito bem

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para nós os três – declarou Tildaestoicamente.

Interroguei-me de repente se estariamà espera que eu me oferecesse paracozinhar a ceia de Natal em substituiçãodos Chirk, muito embora não me tivessesequer ainda instalado em Old Place,portanto, apressei-me a dizer:

– Eu não comemoro o Natal.– Não comemora o Natal? – Noël

estava tão estupefacto como se eutivesse confessado um crime hediondo.

– Não, fui educada por batistasestranhos.

– Oh, estou a ver – disse eleirresolutamente. – Acho que já ouvifalar deles... E a senhora que gere a

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agência Homebodies... Ellen, não é...mencionou que a Holly acabou deperder a avó, por isso presumo queespírito natalício é coisa que não teráeste ano.

– Pois não, nem pinga... Este ano, ouqualquer ano, na verdade.

– Lamento muito, minha querida –disse Tilda e acrescentou,atenciosamente: – Nós compreendemosmuito bem... E, se sentir que precisa decompanhia, seja em que altura for, sinta-se sempre à vontade para nos vir bater àporta.

– Mas de certeza que com um nomecomo Holly terá um aniversário paracelebrar durante as festividades? –

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perguntou Noël de repente.– É no dia de Natal, na verdade, mas

também é coisa que não comemoro.– Também o meu e sinto o mesmo que

a Holly – aquiesceu ele. – Seriasimplesmente demasiado presunçosopartilhar do aniversário do Senhor, nãoé?

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Capítulo 4

Rosa de Saron

Fui educada de forma a encararos espalhafatosos ornamentosnatalícios, a prática da avarezae da gula extrema como nadaadequados ao modo comodevemos celebrar o nascimentode Cristo. Contudo, a alegriadas minhas colegas enfermeirasenquanto decoravam asenfermarias e se esforçavam por

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dar algum espírito natalício aosdoentes foi enternecedora.

Dezembro de 1944

De regresso ao carro, tentei decidirqual seria o recheio das sanduíches derolinho. O que quer que fosse, soubera-me a pasta de peixe fora do prazo, masparecera paté de azeitonas pretas. Eraum mistério insondável para mim etalvez tivesse de pedir a receita a Tilda,apenas por mera curiosidade.

O caminho subia ao longo de umriacho de margens íngremes, atravessavao pinhal e depois desviava-se deste,abrindo-se para um campo de ervamordida por ovelhas do outro lado do

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qual, por trás de um valado, avistei umcomprido e baixo edifício em estilojacobino. Era bastante maior do queesperara, embora talvez o tamanho dacasa do guarda me devesse ter dadoalguma ideia da casa principal. O baixosol invernal refletia-se nas janelas depinázios, mas não havia qualquer sinalde vida: nem sequer um pedaço de fumoa sair de uma das quatro chaminés altas.

Passei por cima de uma grade para ogado e estacionei na gravilha ao lado deum velho Ford Fiesta, reparando que oscanteiros que flanqueavam a enormeporta da frente, debaixo de um pórtico,tinham um aspeto negligenciado e que aaldrava, com a forma de uma cara com

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folhagem a fazer as vezes de cabelo ebarba, não era polida há meses.

Ansiei por me lançar a ela com limpametais. Não é que adore limpar, porquenão gosto, apenas aprecio que as coisasestejam arranjadas, limpas e ordenadas.Nas casas de outras pessoas tenhomesmo por vezes de combater esteímpeto; é de espantar a desarrumação esujidade em que as deixam.

Ao mesmo tempo que saía do carro,uma mulher ainda nova emergiu da casacom um cigarro aceso numa das mãos. Oseu cabelo magenta estava todopenteado com força para trás num rabo-de-cavalo, com exceção de umacomprida e inerte madeixa, que pendia

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pelo rosto como uma alga molhada, evestia um fato de treino de veludo cor desalmão que deixava um pedaço de peleflácida e semelhante a casca de laranja àmostra por cima do cós das calças.

– Olá – cumprimentei, estendendo amão. – Deve ser Sharon, a mulher adias? Ainda bem que ainda aqui está.Cheguei mais tarde do que pensava eachei que talvez já tivesse ido embora.

– Preparava-me para o fazer quandoouvi o seu carro – disse ela, pegando naminha mão como se não soubesse bem oque fazer com ela e largando-a deimediato. – Trate-me por Shar; e não soubem a mulher a dias, apenas dava umaajuda a Jude em troca de algum dinheiro

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extra porque o meu Kevin foi despedido.Não que ele me pague o que consta natabela, é demasiado forreta.

– Isso não é ilegal?– É dinheiro na mão, não é? E ele

sabe que eu bem preciso. Abra bem oolho antes que fique sem o seu dinheiro.

– Oh, não há problema, é a agênciaque me paga.

– Não me voltará a ver depois doNatal, pois vou começar a trabalhar nopub, em Great Mumming, um empregocerto. Portanto, Jude Martland podeenfiar o seu dinheirinho chorado e osseus comentários onde o sol não brilha.

– Certo – disse eu num tomindiferente, com a cabeça já

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ligeiramente à roda com tantainformação de uma só vez. – Então...Mister Martland sabe que se vaiembora?

– Eu disse-lhe que não trabalharia noNatal e que ninguém trabalha no AnoNovo – explicou ela num tom enfadado–, em especial quando, assim comoassim, também não vou receber qualquerbónus. Então, ele disse-me que uma vezque nunca percebia se eu tinha vindolimpar ou não, não merecia sequer o queele me pagava, quanto mais um extra. Émesmo um sarcástico filho da mãe!

– Estou a ver.– Portanto, se aceitei outro emprego, a

culpa é dele, certo? Não estou nem um

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pouco preocupada.– Presumo que seja.– Se ele telefonar, pode dizer-lhe que

tive uma oferta melhor.– Se ele telefonar, fique descansada

que eu digo-lhe que a Sharon sedespediu – concordei. – Ora bem, eagora, antes de se ir embora, tem tempopara me mostrar rapidamente a casa eonde está tudo?

– Eu não sei onde está tudo, não é?Apenas limpo o pó e aspiro e isso é demais para uma pessoa apenas. Havia umcasal de idosos que costumava cozinhare olhar pelo gerador, mas reformaram-sedepois de Mister Martland, o pai deJude, ter morrido. Foi em janeiro.

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– Parece que sim... Disse que há umgerador? Pensei que a casa tinha osserviços básicos.

– E tem, mas a eletricidade estásempre a falhar e a linha telefónica virae volta deixa de funcionar entre a aldeiae a Old House porque os postes jáprecisam de ser substituídos. Atelevisão também não funciona lá muitobem, porque não há parabólica, muitoembora na casa do guarda haja uma. Istoé um buraco, não sei como se vaiarranjar aqui sozinha.

– Não tem importância, não ligo muitoà televisão. Trouxe o rádio comigo emuita coisa para ler.

Sharon olhou para mim como se eu

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fosse uma espécie alienígena e estranhacom três cabeças.

– Também não há rede de telemóvel, anão ser que escale metade de Snowehillou desça por onde veio e passe a casado guarda – informou-me como quem dizcom esta é que te lixei.

– Então, se a linha telefónica ficarmuda, o exercício só me fará bem –argumentei com boa disposição. Não eraa primeira vez que trabalhava em locaisremotos. Na verdade, a casa de quedevia estar a tomar conta na Escóciaseria muito mais isolada que esta. Noentanto, tinha de admitir que nunca antestivera de lidar com um gerador. Sóesperava que a eletricidade não faltasse

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antes de encontrar as instruções sobrecomo operar o dito!

Sorri encorajadoramente para ela.– Agora, ficar-lhe-ia muito grata se

me mostrasse os cantos da casa.Normalmente, tentamos visitar apropriedade com antecedência econhecer os donos e ficar com uma ideiado trabalho, mas, como é óbvio, nestecaso tal não foi possível.

Carrancuda e relutantemente, Sharonconcordou e afastou-se para mefranquear a entrada num compridovestíbulo de pedra. Exibia uma fila decabides carregados de casacos, umsuporte de estanho cheio de bengalas echapéus de chuva e um velho banco de

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madeira sob o qual repousava umavariada coleção de botas de borracha ede caminhada.

– Por aquela porta ao fundo – instruiuela e dei por mim numa sala de estarcom um pé direito gigantesco e na qualcaberia um pequeno celeiro. Tinha umalareira com capacidade para assar umboi e um tapete gasto, de cores quentes ealegres, cobria a maior parte do chão depedra. Por cima dele estava disposto umsortido de mesas pequenas, sofásestofados a veludo e cadeirões. Umaescadaria elevava-se desde um canto atéuma galeria com balaustrada quepercorria três paredes da sala.

– Que sala magnífica! Parece ter

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começado por ser o grandioso salão deum edifício muito mais antigo.

– Diz-se que esta parte do meio dacasa é a mais antiga e original e que oresto foi sendo acrescentado mais tarde– explicou ela com indiferença. – A casatem duas alas. A da cozinha fica recuadae o acesso faz-se por uma porta por trásde um biombo de madeira ali. Esta alaonde nos encontramos é maior e contémos aposentos da família e outraescadaria. Venha daí, eu mostro-lho.

Conduziu-me apressadamente aolongo de uma série de divisões comlambrins de carvalho e soalhos demadeira. Algumas exibiam elaboradostetos de estuque, mas todas tinham um ar

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poeirento, apagado e negligenciado.Havia uma pequena saleta com umtelevisor, uma comprida sala de jantarcom um espetacular, se bem queincongruente, espelho veneziano porcima da lareira e uma bem recheadabiblioteca com uma mesa de snooker nocentro.

Deteve-se ao lado da porta que seseguia.

– O Jude usa esta sala para trabalhar etranca-a sempre que se ausenta. –Fungou para exibir o seu desprezo. –Dir-se-ia que não confia em mim.

Provavelmente, não confiava, embora,na verdade, também não fosse inéditopara mim encontrar divisões

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misteriosamente trancadas nas casas deque tomava conta: os quartos do BarbaAzul, como a Laura sugerira, muitoembora os segredos que continhamfossem provavelmente mais mundanosque os da história.

Porém, este quarto revelou os seussegredos, pois o painel de cima da portaera envidraçado – talvez tivesse sido oescritório do feitor da propriedade, oualgo do género. No interior via-se umestirador, um grande cavalete demadeira e várias mesas albergando umavariedade de objetos: frascos com lápis,pincéis e numerosos pequenos modelos,presumivelmente de esculturas. Àqueladistância era difícil perceber ao certo o

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que eram. Havia ainda o que parecia umdaqueles móveis para ocultar ocomputador, mas, se assim fosse, ainternet devia ser por linha telefónica,uma vez que ali não havia banda larga e,tendo em conta a fiabilidade das linhasde telefone, a possibilidade de ligação àinternet devia ser uma questão de sorte.Para mim não tinha importância. A Ellenera a única pessoa que me enviava e-mails, com os pormenores dos meustrabalhos.

– Nunca houve nada que valesse apena guardar a sete chaves aqui em OldPlace – comentava ainda Sharon comsarcasmo, muito embora eu tenhareparado num olhar anelante no rosto

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dela, como se fosse uma criança frente àmontra de uma loja de doces. – Noentanto, como o Jude agora é famoso,diz-se para aí que até os pequenosdesenhos de cavalos que ele faz paraaquelas esculturas esquisitas delepodem valer centenas de libras. –Acenou com a cabeça na direção doestirador. – E ele amachuca-os e lança-os para o cesto dos papéis!

– Bom, isso será decisão dele, não é?Talvez o faça por não ficar satisfeitocom eles.

– Seria normal que ele deixasse ocesto dos papéis para eu despejar, masnão, pega nos papéis amachucados ecoloca-os no incinerador do jardim! –

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Sharon obviamente que lamentavaamargamente o facto de aquela potencialfonte de rendimento ser reduzida acinzas.

– Isso parece de facto um poucoexcessivo – concordei, divertida.

Depois de um par de armários delouça e roupa branca, a única porta querestava naquele corredor dava para umpequeno solário com portas de pináziosque davam para a rua. A caixa dasferramentas de jardim sobre o bancoparecia não ser usada há meio século eestar à espera que a Bela Adormecidadespertasse, colocasse as velhas luvasde couro e começasse energicamente acortar as silvas.

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– Aquilo ali é uma horta – perguntei,espreitando por entre a penumbra.

– Sim, muito embora já ninguém tratedela desde que Mistress Martlandmorreu... – Franziu o sobrolho,pensando. – Faz uns dez anos agora,mais coisa menos coisa.

– Não há um jardineiro?– É um tipo de idade chamado Henry

que vem aí cultivar legumes em partedela, ainda que supostamente já estejareformado. Vive em Little Mumming, nascasas da igreja... Aquelas três casinhasmuito engraçadas perto da ponte.

– Ah, sim, reparei nelas. Góticovitoriano.

– Não faço ideia, detesto casas velhas

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– declarou e era fácil perceber peloestado em que Old House estava.

Havia uma pequena casa de banho aolado do solário com uma esplêndidasanita de porcelana vitoriana azul ebranca cujo interior retratava o Castelode Windsor e estava eu a pensar quefazer chichi numa das residências darainha deveria ter parecido sempre umato um pouco de lesa-majestade quandoSharon disse impacientemente: «Vamos,tenho de ir para casa», e deu-me umpequeno empurrão nas costas.

Subimos ao piso de cima por um lançode escadas mais grandioso do que o dasala de estar que tinha um elevador paracadeira de rodas dobrado contra a

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parede.– Isso foi mandado colocar para o pai

do Jude – explicou ela, apressando-mequando passámos frente a uma paredecom vários retratos de família, nãomuito bons, de mulheres louras e de arnobre e de homens morenos e austeros,pois presumiu que eu me deteria ali. –Seis quartos, se contarmos com o velhoquarto das crianças e o pequeno quartoao lado, e há mais dois na ala doscriados.

Abriu e fechou portas, concedendo-metantalizantes vislumbres de desvanecidanobreza, incluindo uma cama de dossel.O quarto das crianças, no cimo de maisuma escada, era lindo, com uma cama de

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madeira pintada de branco e um coraçãorecortado na cabeceira, um biombo derecortes e um grande cavalo de balouço.

– Há mais divisões neste piso, masestão fechadas e já não são usadas. Oaquecimento não chega até tão longe.

– Ah, sim, reparei que haviairradiadores. Todas as conveniênciasmodernas! Estou impressionada.

– Se eu fosse a si não ficava muitoentusiasmada. O calor que produzempara pouco mais dá do que impedir acasa de gelar. – Matraqueou com ossapatos escadas abaixo e estugou opasso ao longo do patamar. – Duas casasde banho, embora o Jude tenha mandadoinstalar uma no quarto depois de herdar.

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– Não é mau para uma casa destetamanho – referi. – Há também apequena casa de banho no piso de baixo.

– E outra na ala dos empregados, ondeirá dormir. Esta é a ala da família, éclaro. O seu quarto fica na outra, onde ocasal de idosos que costumava cuidar dacasa vivia.

Ficava claro que aos olhos de JudeMartland as pessoas que tomavam contada sua propriedade figuravam na mesmacategoria que os criados, porém, desdeque ficasse confortável e não passassefrio, pouco me importava onde o meuquarto ficava.

Os quartos ou davam para o corredorou para a galeria de chão de soalho,

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onde me detive para contemplar aenorme sala de estar, que parecia umpalco aguardando a entrada dos atorespara um desfecho tipo Agatha Christie,até Sharon ter começado a tamborilar asunhas cor de turquesa contra o corrimãoem sinal de impaciência.

Uma vez atravessada a porta para aoutra ala, a decoração tornou-se maisutilitária e a casa de banho revelou-semuito básica e antiga, embora tivesse umchuveiro elétrico por cima da banheirade pés de garras. O quarto onde eu iriadormir era simples, confortável e limpo.Presumi que a Mo e o Jim teriam tratadode o limpar assim que chegaram.

Como se tivesse lido os meus

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pensamentos, Sharon disse:– A Mo e o Jim mudaram a cama para

si, mas não tiveram tempo para lavar oslençóis, por isso hão de estar nalavandaria, suponho. Eu não trato daroupa.

Senti-me tentada a perguntar-lhe o quefazia ao certo, mas consegui contar-me:não era assunto que me dissesserespeito.

Descemos pelas escadas traseiras atéà cozinha, uma divisão bastante grandecom um fogão elétrico e um enorme Aga,uma grande mesa de pinho no meio, umpar de poltronas e uma cama de cão emverga. Parecia ser a divisão onde oproprietário vivia – era seguramente

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mais quente que o resto da casa.– O Aga funciona a óleo, o tanque fica

num dos anexos, lá fora, e tambémcomanda o aquecimento central, mas nãotem de cozinhar com ele, pois há umfogão perfeitamente bom e com fornoali.

– Oh, eu gosto de usar um Aga – disseeu e ela lançou-me mais um dos seusolhares como quem dizia «é doidinha detodo» e olhou para o relógio.

– Vamos. Aquela porta vai dar àlavandaria, à despensa, à copa, à cave...

Abriu uma porta para mostrar duasenormes arcas congeladoras.

– A daqui está cheia com a comida daMo e do Jim, bem como os armários, o

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frigorífico e a despensa.– Sim, eles disseram que a iam deixar

para mim, o que foi muito simpático daparte deles.

Fechou a porta e continuou a visita.– Aquela é a porta da cave e lá em

baixo está a lenha, bem como a caldeira.Aqui junto à porta das traseiras fica umasala onde é guardada a ração e osarreios e as coisas do cavalo.

Havia uma coisa que há já algumtempo me estava a intrigar.

– Certo, mas onde está o cão?– No quintal, não o quero de roda de

mim quando ando a limpar, não é?– Não está um bocado frio na rua? –

perguntei e ela lançou-me um olhar antes

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de abrir a porta das traseiras. Umenorme e venerando rafeiro, queestivera enroscado no degrau, levantou-se e entrou com um andar meio rígido eperro, farejou-me educadamente edepois prosseguiu na direção dacozinha.

– Este é o Merlin. Já está demasiadovelho, devia era ser abatido.

Eu não respondi e ela acrescentou,enquanto indicava o caminho até a umpequeno celeiro do outro lado do pátioempedrado:

– Como o cavalo. Era da mãe do Judee já tem mais anos do que devia, se quera minha opinião. Mas ele nem quer ouvirfalar disso.

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Havia qualquer coisa de familiar masde muito rancoroso em relação ao tomdela quando mencionava o nome de JudeMartland que me levou a suspeitar deum caso de mulher desdenhada. TeriaSharon aceitado o trabalho na esperançade algo mais da parte dele do que ummero cheque semanal?

Sharon olhava entretanto para mim desoslaio com um ar matreiro.

– É solteira?– Bom, sim... viúva.– Nesse caso, não crie expectativas.

Ele prefere louras magricelas, o nossoJude... Ainda que o irmão lhe tivesseroubado a última.

– Não estou minimamente interessada

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nas preferências dele e, seja como for,não irei conhecê-lo. Mister Martlandregressará depois de eu ter partido, naNoite de Reis.

– Oh, a Noite de Reis! Em LittleMumming é preciso ter cuidado na Noitede Reis! Alguma vez viu aquele filmeantigo, O Escolhido? – E riudesagradavelmente.

– Bom, acho que terei de arriscar, nãoé assim? – devolvi alegremente, uma vezque era óbvio que ela estava a tentardeixar-me nervosa. Tão certo como doise dois serem quatro, um minuto maistarde já falava sobre fantasmas eassombrações ao mesmo tempo quecorria o ferrolho e abria a porta do

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celeiro.Já cozinhei em algumas das casas

mais assombradas do país e tudo o queposso dizer é que a cozinha e os quartosdos criados não são o local que osfantasmas de uma forma geral costumamfrequentar.

Ao ver que comigo não tinha sorte,Sharon disse:

– As instruções sobre como tomarconta do cavalo estão na mesa dacozinha, naquele dossiê grande. JudeMartland adora dar instruções. –Apontou para o interior do estábulo. – Ocavalo está na outra ponta.

Avistei umas quantas cocheiras e apálida forma de um cavalo numa delas,

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mas não fui vê-lo. Haveria tempo paraisso depois de ler as instruções!

– E pronto, é tudo – declarou Sharon,voltando a fechar a porta e conduzindode volta à cozinha, onde vestiu umcasaco encarnado que destoava dasmadeixas magenta do cabelo e pegou namala. – Vou andando. Suponho que ocasal da casa do guarde a informará dealguma coisa que me tenha escapado e,seja como for, fome não passará, tendoem conta que havia aqui comidasuficiente para aguentar um cerco jáantes de a Mo e o Jim terem trazidoaquilo tudo.

Quando Sharon partiu, fiquei mais doque satisfeita por não a voltar a ver.

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Penso que o cão sentia o mesmo, poisquando regressei à cozinha carregadacom as primeiras malas tiradas do carro,ele abanou a cauda e sorriu daquelaforma cativante típica dos cães de raçacruzada e os seus olhos cor de âmbarlançaram-me uma expressão muitosábia.

– Bom, Merlin, és só tu e eu, miúdo –disse-lhe na minha melhor imitação deHumphrey Bogart.

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Capítulo 5

Farelada Quente

A Hilda deu-me uma barra desabonete do bom, com a qualfiquei muito contente, e a Pearlfez-me um pregadouro com umamor-perfeito em feltro roxopara eu pôr no casaco. Porsorte, Mr. Bowman – o pai doTom e pastor aqui da igrejalocal – tinha-me recentementepresenteado com vários

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marcadores de livro antigos comexcertos de textos bíblicos eborlas de seda, por isso tinhaalgo para lhes dar também emtroca.

Natal de 1944

Quando acabei de trazer tudo paradentro, colocar a comida perecível nofrigorífico e levar as malas para oquarto que me fora destinado, estavamais do que pronta para me sentar àmesa da cozinha com uma caneca decafé e o dossiê da Homebodies que aEllen dá a todos os clientes parapreencherem com informaçõesessenciais e números de telefone de

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emergência. O dossiê de Jude Martlandestava recheado de páginas impressas, amaior parte delas relacionadas com oscuidados a prestar ao cão e ao cavalo.

Primeiro li o bilhete que a Mo e o Jimhaviam deixado preso ao interior dodossiê para ficar com algumasinformações em primeira mão de quemjá ali trabalhara e fiquei a saber que oproprietário não se importava, e aliásaté gostava, que quem tomasse conta deOld House se servisse de toda a comidaque havia na casa, incluindo o peixe e acaça guardados na maior das duas arcascongeladoras. «Mas não das bebidasalcoólicas, uma vez que a adega estátrancada», fora acrescentado, o que para

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mim não constituía qualquer deceção,pois não era grande apreciadora. Paraalém disso, a Mo e o Jim avisavam quea receção da televisão era péssima e queo telemóvel só captaria sinal se noscolocássemos no dorso do cavalo nocimo do monte ou contássemos dezpassos a descer desde a casa de Nöel eTilda, acrescentando no final dois àdireita. Suspeito que descobrir tal factoterá ocupado Jim durante horas.

Consultei as instruções relativas aogerador e verifiquei que se encontravanum anexo e era automático, por isso,em teoria, não teria de fazer nada caso aeletricidade falhasse. Depois assegurei-me de que sabia onde ficavam a torneira

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de passagem e o quadro de distribuição.Encontrei este último na divisão ondeestava a ração e os arreios do cavalo,com uma lanterna, que funcionava, aolado dele numa prateleira em conjuntocom um par de velas e uma lanterna comdínamo.

Começava a formar uma imagem deJude Martland, que era obviamente umhomem bastante prático e que gostavados seus animais... Contudo, pagava umamiséria à mulher a dias e negligenciavaa sua bonita casa, portanto, ou estavafalido ou era mesquinho – talvez ambasas coisas. Ou seria que as pessoas detemperamento artístico simplesmentenão reparavam na sujidade?

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Regressei à cozinha, servi-me de maisuma caneca de café e entreguei-me àsinstruções sobre como cuidar dosanimais. Merlin, que estava agorarecostado contra a minha perna com acabeça no meu joelho, era de trato fácil:duas refeições por dia, com umcomprimido para a artrite de que sofriaesmagado na refeição da manhã.Necessitava ainda de caminhadasdiárias para exercitar as articulações.

E não precisaríamos todos?Tinha já visto a escova dele, a

comida, os biscoitos e uma coleção decoisas para ele roer num armário nacopa, ao lado de um cabide com umacoleira e uma enorme toalha castanha

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com o padrão de uma pata de cão eprestavelmente etiquetada «CÃO», nãofora eu ter dificuldades em entender efazer a ligação.

O equídeo era uma égua árabechamada Lady, que eu teria achado deuma raça demasiado delicada para umazona montanhosa e fria como esta. Tinhavinte e cinco anos e tal pareceu-metambém uma idade avançada para umcavalo, mas que sei eu sobre cavalos?

Tinha um cercado com um abrigo atrásda casa onde passava o dia a não serque o tempo estivesse extremamentemau, muito embora Jude Martland nãotenha especificado o que era«extremamente mau» para ele. Deveria

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assegurar-me que a água na tina nãogelava e que um molho de feno erapendurado na rede do cercado. Billysairia para a rua com Lady.

Quem, interroguei-me, era Billy.Meditei sobre isso por um momento edepois continuei a ler.

A égua era levada para o estábulo ànoite e este devia ser limpo todos osdias, e a tina da água reabastecida,tarefas de que me recordava vagamentedo breve período durante o qual Laurase dedicara à equitação. O coberjãodeveria ser mantido todo o dia, excetoquando Lady fosse escovada e tratada, oque aconteceria todos os dias.

À noite comia uma farelada quente,

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feita a partir de ingredientes que seencontrariam em recipientes metálicosna sala da ração, generosamentetemperada com um suplemento chamadoEquiflex...

Meu Deus! Começava a achar que aégua me iria ocupar a maior parte do diae seria mais complicada de tratar do queantecipara e, admito, estava a ficarligeiramente apreensiva em relação aisso. Portanto, decidi que o melhor seriaobservá-la bem antes que a luzdesaparecesse por completo. Merlin, aover-me vestir o casaco, ficoudeterminado a acompanhar-me, aindaque eu achasse que seria melhor ele nãoapanhar frio.

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Ao longo de um dos lados do pátioempedrado ficavam os anexos quecontinham a lenha, o gerador e o tanquedo combustível que alimentava ogerador e o aquecimento central, masexplorá-los teria de ficar para o diaseguinte.

Merlin e eu entrámos no celeiro eencontrei um interruptor ao lado daporta. Lady esticou a cabeça para ver doque se tratava e vi que não era muitomaior que os póneis que Laura montarae que tinha uma expressão carinhosa eolhos grandes e meigos. Encorajada,abri a porta da cocheira e esgueirei-melá para dentro para verificar a água e ofeno e as fixações do coberjão. Acabava

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de me inclinar por cima do baldequando a palha mexeu e algo marroucom força contra as minhas pernas: erauma cabrita pequena e preta.

Billy? Nem mais. Alguém podia termencionado que havia também um bode!Por sorte, não tinha cornos, mas olhava-me com um ar desconfiado.

Enchi o balde na torneira mesmo aolado da cocheira, malogrando a tentativade Billy de sair, pois não sabia se seriaou não fácil voltar a convencê-lo aentrar.

Havia feno com abundância, tantonuma rede fora do alcance de Billyquanto num suporte mais baixo. O quentecoberjão de Lady estava bem seguro e a

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égua parecia confortável, por issodecidi que não tinha mais nada a fazerali.

Uma vez que trouxera a coleira deMerlin comigo, resolvi colocar-lha.Não sabia se ele largaria a correr ounão, mas a minha longa experiênciaensinara-me que mais valia prevenir queremediar. Saímos pelo portão lateral eseguimos o caminho ao longo docercado que conduzia ao monte. Nãopercorremos uma grande distância,apenas o suficiente para esticar asvelhas pernas de Merlin e as minhas.Quando voltámos para trás já preciseida lanterna que enfiara no bolso e asluzes no pátio tinham um ar acolhedor e

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resplandecente.O vento era cortante, portanto, a

ameaçada vaga de frio talvez viesseafinal a caminho. Penso que ambosficámos satisfeitos por estarmos deregresso ao calor da cozinha. Começavaa sentir-me bastante exausta, mas haviaainda uma última tarefa a cumprir antesque me pudesse recolher: Lady tinha decomer a sua farelada quente.

Segui a receita à letra: uma colheradade beterraba desidratada, embebida emágua a ferver durante dez minutos, umacolherada de pedaços de alfafa, duascolheradas de biscoitos concentrados euma mancheia de linhaça. Deixei entãoarrefecer um pouco antes de adicionar o

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Equiflex.Tendo isso em conta, até nem cheirava

muito mal.Merlin teria vindo de novo comigo até

ao estábulo, mas achei que já tinhaapanhado frio suficiente para um dia edeixei-o trancado, malgrado a ar dereprovação que me lançou.

Lady estava ansiosa por enfiar acabeça no balde, mas tive de manterBilly à distância, pois também queriadaquela papa. Mesmo um bode pequeno,descobri, tem uma força surpreendente.Na sala da ração vira uma espécie debiscoitos num recipiente marcado com onome do bode e levara uns quantoscomigo, mas ele estava mais interessado

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na papa.Os cavalos emitem uma quantidade

surpreendente de calor, não é?

Merlin saudou o meu regresso com umenorme alívio, como se me tivesseausentado uma semana, por isso presumique deixara o pobre do animal a sentir-se terrivelmente confuso.

Depois de ter descongelado, telefoneia Laura, mas apenas para lhe dar onúmero do telefone da casa para que elame pudesse ligar de volta. Os clienteshabitualmente não gostam de ver grandescontas de telefone, mas, neste caso, usaro meu telemóvel iria ser complicado. Sóesperava que Sharon tivesse

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exagerarado na frequência com que aslinhas de telefone caíam...

– Como estão a correr as coisas? –perguntou Laura. – Que tal são osanimais?

– O cão, Merlin, é de raça cruzada, éuma doçura. Deve sentir-se um poucoperdido e sozinho, pois segue-me paratodo o lado. O cavalo é um árabebranco.

– Cinzento, os cavalos nunca sãobrancos.

– Podes chamar-lhe cinzento, mas aquia Lady é branca como a neve, com olhosenormes e escuros. É velhota, calma emeiga, por isso acho que cuidar dela nãovai ser um problema... o problema é que

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vive com um pequeno bode acerca doqual ninguém me falou.

– Um bode?– Encontrei-o na cocheira com a égua,

por isso presumo que seja a companhiadela. Tem um olhar assim um poucodesconfiado e não parou de tentar comera farelada quente da Lady. Tive de omanter à distância, mas o bode tem umaforça surpreendente.

– Farelada quente? Tiveste depreparar o jantar do cavalo?

Descrevi a farelada gourmet econfessei as minhas preocupações emrelação a ter de cuidar de uma éguaidosa e com um ar delicado. A Lauraescutou-me e mostrou-se

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tranquilizadora.– Amanhã trato da limpeza da

cocheira e da Lady. Bem jeito me davater-me interessado mais por este tipo decoisa quanto tu tiveste as tuas aulas deequitação. Bom, mas suponho que sejaapenas uma questão de senso comum.

– Levas a cama suja do cavalo nocarrinho de mão até ao monte do estrumee depois espalhas uma camada de palhanova... Simples. E limpar a cocheiraserá um bom exercício para aquecer.

– Sim, acho que tens razão.– Então, e que tal é a casa?– Lindíssima. Até agora ainda só fiz

uma visita rápida, mas percebi que émaioritariamente do período jacobino,

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embora uma parte da casa tenha ar deser ainda mais antiga. O aquecimentocentral não é muito eficaz, por issoprovavelmente amanhã acendo a enormelareira da sala de estar e assim talvezconsiga aquecer a casa toda. O meuquarto não é muito frio porque ficamesmo por cima da cozinha com o fogãoAga.

– A casa é muito grande?– Maior do que eu esperava, mas já

cozinhei para festas em casas maiores emais grandiosas que esta. A sala de estaré enorme e parece ter começado por serum salão medieval, mas depois foramadicionadas duas novas alas e muitoscaixotões de carvalho e tetos em

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estuque.– Isso a mim soa-me bastante

grandioso!– A minha casa caberia na ala da

cozinha e ainda sobraria espaço –confessei.

– Para os meus padrões, isso é umacasa senhorial... E tu, aí sozinha, és arainha e senhora da casa.

– Pois, mas eu sei o meu lugar: o meuquarto fica na ala dos criados, emboratenha uma casa de banho mesmo emfrente com um chuveiro elétrico que nãoé nada mau. Mas suponho que passarei amaior parte do tempo na cozinha eapenas darei uma rápida volta diáriapelo resto da casa a ver se está tudo

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bem.– Antes tu que eu a deambular sozinha

por uma casa antiga e assustadora nomeio de nenhures...

Soltei uma gargalhada.– Sabes que não acredito em

fantasmas ou no sobrenatural! Não tepreocupes que eu fico bem. A mulher adias mostrou-me a casa quando cheguei,mas não voltará, pois encontrou outroemprego. Não será uma perda de monta,contudo, uma vez que a casa está umaimundície e bastante negligenciada. Éimpossível que ela limpasse algumacoisa. Mas também, segundo ela, JudeMartland pagava-lhe uma miséria,portanto, não podemos censurá-la por

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isso.– Então, vais ficar completamente

sozinha todo o tempo? A casa não émesmo assombrada, pois não?

– Sharon, a mulher a dias, tentouassustar-me, falando-me de fantasmas ede uma cerimónia local anual na noitedo dia de Reis. Parecia sugerir que osaldeãos iriam querer usar-me como umaespécie de sacrifício cerimonial, mas eunem lhe prestei atenção porque era tudoum disparate pegado!

– Seja como for, também não vaisestar aí nessa noite, pois não?

– Não, parto nessa manhã, antes de ocliente regressar. Era essa a combinaçãoque ele tinha com a Mo e o Jim.

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– O local é muito isolado? Nemimagino o que irás fazer aí sozinha.

– Para além de tentar acabar o meulivro de culinária, trouxe aquela arca deestanho com os papéis da avó, paraorganizar, e quando me deitarcontinuarei a ler o diário. Ela foienviada para um hospital novo e fezamigas, por isso, está a ficar maisinteressante.

– Talvez esse tal Ned Martland queela mencionou fosse um dos médicos eela tenha tido uma paixoneta por ele –sugeriu Laura.

– Talvez – concordei. – Se descobrirquem ele é, fica descansada que serás aprimeira a saber. E não estou

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completamente isolada aqui, pois aaldeia fica a uns meros oitocentosmetros e, se me apetecer companhia, ocasal de idosos da casa do guardaconvidou-me a visitá-los sempre quequisesse. Mas já sabes como sou, gostode estar sozinha.

– O Sam ficou muito desapontadoquando lhe disse que afinal não vinhasjantar no dia de Natal – insinuou ela,mas eu limitei-me a rir.

Por esta altura já me parecia quepartira para Little Mumming há umasemana e decidi deitar-me mais cedo.

Merlin e eu jantámos e depois o cãoacompanhou-me numa percurso pelo

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piso térreo enquanto eu verificava setodas as portas e janelas estavamfechadas. Tínhamos regressado àcozinha e preparava-me para encher aminha fiel botija de água quente quandode repente o telefone tocouestridentemente no enorme aparador,assustando-me quase de morte.

– É Holly Brown? – inquiriu uma vozprofunda e grave que pareceu reverberaraté aos meus pés e de volta aos ouvidasde uma forma totalmente nova, emboraligeiramente perturbadora.

– Sim, é a própria.– Jude Martland. Acabei agora mesmo

de consultar o meu correio eletrónico edeparei-me com uma mensagem da

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Homebodies a dizer que os Chirktiveram de ir embora e que a Holly iatomar conta da casa.

– Sim, e está tudo bem. Fico satisfeitaque tenha ligado, porque...

– Não, não está nada bem, nem delonge! – interrompeu ele rudemente. –Telefonei agora mesmo ao meu tio e,pelos vistos, a senhora não só estásozinha como não tem qualquerexperiência com cavalos!

– Olhe, Mister Martland – prosseguitranquilizadoramente. – Eu trabalhosempre sozinha e as instruções quedeixou são muito pormenorizadas,exaustivas, mesmo. Bom, à exceção dacabra – especifiquei.

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– Como?– Billy. Não havia qualquer menção a

ela.– É claro que havia. A senhora não se

deu foi ao trabalho de procurar! Mas oque realmente importa é que deixei OldPlace, Lady e Merlin entregues em boasmãos, com pessoas que conhecia e emquem confiava e de repente chega-me anotícia de que alguém totalmenteinadequado foi recrutado e nem águavai!

– Olhe, para que saiba, eu sourepetidamente requisitada pelos mesmosclientes, ano após ano – expliquei semperder a calma. – E o senhor teve muitasorte que o trabalho para o qual eu

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estava requisitada este Natal tenha sidocancelado, deixando-me livre paraacorrer a este imprevisto! E, muitoobrigado, Holly Brown, por ter salvoesta emergência! – dei por mim aacrescentar com azedume.

Seguiu-se uma pausa e depois eleresmungou, contrariado:

– Suponho que não havia alternativa,mas ainda assim não estou contente coma solução, ou com o facto de aHomebodies ter feito isto sem sequer meperguntar.

– A Ellen esforçou-se ao máximo paracontactá-lo e, seja como for, ela sabeque eu sou totalmente de confiança ecompetente.

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– Enviar uma jovem sozinha paratomar conta de uma casa isolada, emespecial durante o Natal, não é nem delonge o ideal.

– Agradeço a sua preocupação, maseu não comemoro o Natal, não sou assimtão jovem e gosto de locais isolados.

– O meu tio mencionou que a Hollynão festeja o Natal, e isso é outroproblema, pois os meus tios contavampassar a ceia de Natal com os Chirk e eusentia-me melhor por saber que a Tildanão teria de a cozinhar. Eu sei que é elaainda quem cozinha para eles os dois,mas ultimamente ela tem-me parecidobastante mais débil.

– Pois, ela disse-mo, mas não me

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parece que ela vá cozinhar uma ceiatradicional. Vão comer galinha assada,pelo que ela disse – expliquei. – Esuponho que a neta lhe dê uma ajuda.

– Oh, meu Deus, já me tinha esquecidopor completo que a Jess este ano iriaestar aí sozinha!

– Mmm... Receio que não seja apessoa preferida dela neste momento,Mister Martland.

Nova pausa e depois ele sugeriu:– Talvez a Holly pudesse cozinhar o

jantar de Natal no lugar dos Chirk? Sabecozinhar?

– Na verdade, sou chef profissional, éessa a minha profissão durante o verão –informei-o num tom gélido – e os meus

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honorários são bastante elevados. Noinverno, prefiro tomar conta de casaspara descansar. Cozinhar para festasfamiliares não faz parte das minhasatribuições atuais e, para além disso, talcomo já disse, não festejo o Natal sejasob que forma for.

– Mas...– Mister Martland – interrompi-o com

firmeza –, muito embora lamente que osseus planos tenham ido por água abaixo,pode ficar descansado que tomarei contada sua propriedade e cuidarei dosanimais até ao seu regresso no dia deReis.

– Mas como posso eu ter a certezadisso quando não sei nada acerca de si,

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exceto que não entende nada de cavalose...

– Repare – disse –, não lhe resta outraalternativa! Se acha que vou beber o seugim e cair num coma alcoólico durante oNatal, negligenciando os animais epegando fogo à casa, sugiro que envieum e-mail à Ellen a pedir o meucurrículo e referências. Tenha uma boanoite, Mister Martland.

E desliguei-lhe o telefone na cara.Lamentei a minha insolência quase de

imediato. Talvez fosse do cansaço, mashavia também qualquer coisa nos modosdele que me irritava. Embora uma dosede impertinência pudesse ser tolerávelnuma chef do meu calibre, desde que

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produzisse refeições deliciosas, coisasque sempre fiz, já não é tão boa ideiacomportar-me assim com os clientes daHomebodies.

O telefone voltou a tocar quase deimediato. Suspirando, atendi.

– Desligou-me o telefone! – exclamouele, incrédulo.

– Lamento, mas a conversa parecia terchegado ao fim. Foi um dia muito longoe eu já estava a preparar-me para me irdeitar... Ah, a propósito – acrescentei,lembrando-me de repente –, a suamulher a dias despediu-se a partir dehoje. Mas a julgar pelo estadolamentável da casa, atrevo-me a dizerque não irá dar pela diferença.

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Desta feita, quando desliguei otelefone ele não telefonou de volta.Enchi a botija de água quente, fiz umafesta a Merlin, subi e enfiei-me na cama,onde, apesar de muito exausta, dei pormim a dar voltas à irritante conversacom Jude Martland. Assegurar-me-ia deque partiria bem antes de ele regressar acasa no dia de Reis!

Acabei por voltar a ligar o candeeiroda mesa de cabeceira e li mais algumasentradas do diário da avó, até que,embalada pelos pequenos dramas daenfermaria do hospital e as batalhas daavó com a sua horrível senhoria,adormeci por fim.

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Capítulo 6

Cavalo Dado

Chegou um caso novo àenfermaria da Pearl – umferimento grave numa perna, eestão a tentar tratá-lo compenicilina, que parece estar asurtir o efeito desejado. Odoente é um jovem e,aparentemente, membro de umafamília da pequena nobrezalocal. A Pearl e as outras davam

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risadinhas e sussurravam sobreo quanto ele era bem-parecido,muito embora eu lhes tenha ditoque o que conta é o que está pordentro, não a aparência exterior.Porém, devo confessar que,motivada pela curiosidade, maistarde fui espreitá-lo, para ver omotivo de tanta agitação, equase fui apanhada pela Irmã!

Janeiro de 1945

Depois do pequeno-almoço na manhãseguinte, fui ver como estava Lady e oseu malcheiroso companheiro, dei-lhesuns quantos pedaços de cenoura e abri aparte de cima da porta da cocheira.

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Estavam ambos muito bem, mas acheimelhor deixá-los onde estavam até o diaclarear por completo e levei Merlin adar um passeio pela encosta deSnowehill. Naquela manhã, parecia terum pouco menos de dificuldade acaminhar e suspeitei que nos últimosdias falhara uns quantos comprimidos ealgum exercício diário.

Quanto mais nos aproximávamos dafigura do cavalo no monte, mais difícilse tornava perceber do que se tratava. Afigura fora recortada na turfa e a terra deambos os lados fora amontoada paraformar um rebordo elevado. O arenitoencarnado natural ficava assimrevelado, muito embora não

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sobressaísse como as de cavalosbrancos que já vira algures nem tivessea mesma escala grandiosa destes.Interroguei-me se seria antiga, talvezcelta? Lembrava-me vagamente que osceltas eram grandes apreciadores decavalos. Ou seria que aquela figura eraum acrescento mais moderno à paisagemlocal?

Um caminho até ao sinal luminosopassava mesmo ao lado do cavalo e,olhando para baixo, percebi que ia dar àestrada por cima de Old Place, ondeficava outra quinta. Estava bem trilhado,por isso supus que muitos caminhantesvinham até aqui para subir até à figura.Eu própria o faria um dia também, mas

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não naquele: tinha muita coisa parafazer.

Preparava-me para voltar a descerquando ouvi um trecho de Mozart a soarno meu bolso. De alguma forma, o toquede chamada parecia não se adequar auma encosta ventosa no Lancashire, mastambém não sei ao certo o que seadequaria. A «Cavalgada dasValquírias»?

– Apanhei-te! – exclamou Ellentriunfantemente. – Liguei para casa, masninguém atendeu.

– Não, estou no monte por trás dacasa. Na verdade, só há rede detelemóvel aqui em cima e lá em baixo,perto da aldeia, por isso é uma sorte que

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me tenhas conseguido apanhar.– Que estás a fazer no monte?– A passear o cão, e ele é velho e

artrítico, portanto, não posso mantê-loparado por muito tempo.

– Queria apenas avisar-te que estamanhã encontrei uma caterva de e-mailsde Jude Martland na minha caixa e queele não está contente com a mudança deplanos. Mas ele devia era estar contentepor eu ter encontrado alguém assim emtão pouco tempo!

– Nem mais, foi o que eu lhe disse.– Queres dizer que falaste com ele?

Ele não mencionou esse facto... outalvez eu ainda não tenha chegado a essee-mail.

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– Telefonou a noite passada epareceu-me uma pessoa muitoautocrática e desagradável... Ecompletamente desarrazoado! Disse-lheque era muito competente e profissional,mas não tenho a certeza se teráacreditado na minha palavra.

– Eu disse-lhe basicamente a mesmacoisa, mas ele ainda assim queria ver oteu currículo e referências, por issoenviei-lhos por fax. Sãoimpressionantes, ele vai ficardescansado.

– Duvido. É que ele parecia maispreocupado com o cavalo do que comqualquer outra coisa e tens de concordarque eu não tenho qualquer experiência

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com cavalos. Ainda assim, as instruçõesque ele deixou eram bastante claras enão é nada que não consiga fazer. Ontemà noite preparei-lhe a ração e daqui anada vou levá-la para o cercado elimpar a cocheira.

– Oh, vai correr tudo bem – comentouEllen tranquilizadora, o que para ela erafácil, uma vez que não era ela quemtinha de lidar com o cavalo! – Bom,queria apenas avisar-te para o caso devires a receber um telefonema, mas éóbvio que já te entendeste com ele. Eassim que ele ler o teu currículo ereferências, suponho que ficará muitomais satisfeito. Eu disse-lhe que tiveramuita sorte que uma das minhas

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melhores colaboradoras estivesse livrepara resolver a emergência.

– Espero que sim, emboraprovavelmente vá querer relatóriosregulares sobre o cavalo e o cão. Algunsdonos exigem isso.

Ela concordou e desligou e eu eMerlin regressámos a casa. Estavaansiosa por dar mais uma vista de olhospela casa, mas achei melhor meter mãosà obra e limpar o estábulo primeiro. Doque ainda me recordava, era apenas umaquestão de retirar a palha suja esubstituí-la por nova: que dificuldadepoderia isso ter?

Vesti umas calças de ganga velhas,uma camisola de forro polar e botas de

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borracha, preparei-me para entrar emação e lá fui eu para os estábulos deAugias. Merlin ergueu-se do seu cestocom uma expressão resignada, mas eudei-lhe algo para roer e deixei-o nacozinha. Precisava de completaconcentração para o que ia fazer.

Pelo menos, no próximo ano jápoderia acrescentar ao meu currículoque sabia tratar de cavalos e de cabras,se bem que não estivesse inteiramenteconvencida de que alguma vez quereriavoltar a ver uma.

Estava ainda muito frio, embora umpálido sol invernal fizesse o melhor porbrilhar e eu não fazia ideia se devia ounão colocar Lady no cercado. Ou seria

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melhor no pátio empedrado, só enquantotratava da cama dela?

Não foi difícil encontrar a pá e ocarrinho de mão, bem como o monte doestrume, junto ao cercado. Havia fardosde palha e um ou dois de feno na pontaoposta do celeiro relativamente àcocheira de Lady, e mais alguns numpalheiro ao qual se acedia por meio deuma escada de aspeto pouco firme. Porsorte, sei distinguir a palha do feno poisjá tomei conta de porquinhos-da-índia,coelhos e galinhas.

Continuava a interrogar-me sobre oque fazer com Lady e o seu companheiro– e especialmente o seu companheiro –quando a ajuda chegou inesperadamente

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sob a forma de uma senhora grande e dealguma idade montada num garranocastanho. Cumprimentou-me do outrolado do portão, desmontou e conduziu ocavalo através do portão, fechando-o deseguida. Trazia um lenço axadrezado daBurberry atado à cabeça como se fosseum pirata, ao invés de um toque, e umcasaco encerado com uma capa enorme,por isso assemelhava-se a um salteadorligeiramente excêntrico.

– Olá – disse ela, estendendo a mão. –O meu nome é Becca, Becca Martland,irmã do Noël. Ele disse-me que amenina tinha chegado e eu lembrei-mede vir por aqui ver como estava.

Apertei-lhe a mão. Ela não era nem

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perto nem de longe tão alta quanto eu –com um metro e oitenta, poucasmulheres são! –, mas o que lhe faltavaem altura era compensado em largura.

– Fico muito contente por conhecê-la,em especial porque me preparava paramudar a palha da Lady e não sabia aocerto o que fazer com ela enquantolimpava a cocheira – confessei ao veralguém que obviamente percebiadaquilo. – Acha que está demasiado friopara a pôr no cercado?

– Não, nada disso, os árabes sãoanimais muito resistentes e ela mete-seno telheiro, se chover ou ficar muitovento. Tirou-lhe o coberjão e penteou-a?

– Não, mas ontem à noite fui verificar

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se estava bem preso.– Nesse caso, fazemos isso primeiro,

pois suponho que ninguém o faz há unsdias. Vá abrir a cancela para o cercadoenquanto eu vou prender o Nutkin noceleiro, para não apanhar este ventofrio, e trago as escovas da sala da ração.

Soltámos Billy enquanto tratávamosde Lady. Becca asseverou-me que elenunca se afastava muito da égua. Defacto, hesitou frente à porta aberta até eulhe dar um empurrão para sair. Depoisde fechar a porta, ficou do lado de foradesta, a balir.

– A Lady é um belo animal – afirmouBecca, tirando-lhe o coberjão eentregando-me uma das duas escovas

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ovais com uma concisa instrução: –Movimentos firmes na direção do pelo.

– Mas ela é muito velha, não é? Fiqueium pouco preocupada em relação a issoquando li as instruções de MisterMartland.

– Oh, vinte e cinco anos não é nadapara um árabe! Eu mesma tomaria contadela quando o Jude se ausenta, mas hojeem dia já demoro uma eternidade acuidar de um cavalo. E eu do raio dobode não trato – acrescentou ela. – ONoël disse-me que não tem muitaexperiência com cavalos.

– Pois não. Para ser sincera, a minhaúnica experiência com cavalos resume-se a acompanhar a minha melhor amiga à

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escola de equitação durante a fase emque ela foi doida por póneis – expliquei.– As instruções que Mister Martlanddeixou são excelentes e muitopormenorizadas, por isso tenho a certezaque me sairei bem, mas seriamaravilhoso se pudesse recorrer a sipara qualquer dúvida que me surgisse.Talvez Mister Martland ao sabê-lotambém fique mais descansado... Eletelefonou a noite passada e estavapreocupado que eu não conseguisse darconta do recado.

– Oh, ele telefonou? Suponho que nãoterá dito nada sobre se, afinal,regressaria para o Natal, pois não? –inquiriu ela esperançosamente, detendo

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as suas vigorosas escovadelas e olhandopara mim por cima do dorso alvo deLady.

– Não, receio que não. Achou quetalvez ele mudasse de ideias?

O rosto dela espelhou uma enormedesilusão.

– Na verdade, não. É que os Martlandsempre festejaram o Natal juntos, aquiem Old Place. Não parece correto ter ochefe da família do lado oposto domundo.

Becca pousou a escova e ensinou-mea voltar a colocar o coberjão e aprendê-lo bem, o que até era umamanobra simples com Lady, masimagino que possa ser muito difícil com

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um cavalo menos cooperativo!– O Jude adora cavalos e é

particularmente afeiçoado à Lady –explicou ela. – Era a égua da mãe dele,sabe, por isso é natural que se preocupecom ela. Mas é claro que pode contarcomigo se tiver alguma dúvida oureceio. Eu deixo-lhe o meu número detelefone. Não que consiga sempreligação, uma vez que as linhas pendemdos postes como se fossem fios deesparguete e uma vento mais fortepoderá cortar a ligação a Old Placedurante uma semana ou mais.

Referiu isto como se fosse a coisamais normal do mundo.

– As linhas não podiam ser

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consertadas? – Eu seguramente quetrataria do assunto bem depressa sevivesse ali!

– Pelos vistos, todos os postosprecisam de ser substituídos e acompanhia acabará por fazê-lo, masnesta estrada, até se chegar a GreatMumming, só há duas propriedades, OldPlace e Hill Farm, portanto, o assuntonão está propriamente no cimo da listadeles de prioridades no que diz respeitoà atribuição de recursos.

– Ah, sim, eu vi a quinta quando hojecedo fui com o Merlin dar um passeioaté ao cavalo encarnado. E reparei que atabuleta na estrada principal apontavaGreat Mumming por duas direções,

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portanto, presumivelmente, a estradaprossegue depois de Hill Farm?

– Sim, mas não é muito mais que umtrilho com alcatrão que dá à volta àencosta de Snowehill. Basta um poucode gelo para que seja uma aventuraarriscada meter caminho por ali – disseela e depois soltou uma gargalhada. –Aquelas maquinetas de GPS estãosempre a dirigir os automobilistas porali como um atalho para a autoestrada, etalvez seja, mas não de carro!

Os lamentosos balidos de protesto deBilly ouviam-se cada vez mais.Soltámos Lady no cercado e o bodeseguiu-a, marrando contra as pernasdela.

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Becca pegou numa forquilha.– Vamos, eu ajudo-a a limpar a

cocheira. Traga o carrinho de mão.Devia ter setenta e poucos anos, pelo

menos, mas era ainda capaz de manejaruma forquilha como poucos e deu-meuma muito útil lição. Sob a direção delalevei a palha suja até ao monte doestrume e espalhei uma espessa camadade palha nova na cocheira, reforçada emredor das paredes e em redor do baldelavado e enchido.

– Não precisa de fazer isto todos osdias. Apanhe apenas o estrume e espalheum pouco de palha nova se a cocheiranão estiver muito suja.

– Se fizer muito frio é melhor mantê-la

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na cocheira todo o dia?– Oh, ela pode sair até se nevar, mas

nesse caso terá de lhe pôr doiscoberjões – respondeu Becca.

– Está bem... – Jude Martland e a tiapareciam ter duas opiniões diferentessobre a fragilidade de Lady!

Quando terminámos a tarefa eu játinha calor e, provavelmente, fumegavasob o ar frio, tal como o reabastecidomonte de estrume.

– Pronto, está ótimo, prontinho para areceber no final do dia, antes queescureça. Ontem à noite conseguiupreparar a farelada quente?

– Sim, sim, foi apenas uma questão deseguir a receita. E muito obrigada por

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me ter mostrado como isto se faz. Foiuma lição inestimável – declarei comgratidão.

– Eu volto daqui a um dia ou dois paralhe dar mais algumas luzes – sugeriu ela.

– Isso seria maravilhoso, se não lhetomar muito do seu tempo.

– O meu irmão diz que a Holly é doOeste de Lancashire, perto de Ormskirk?Que costuma caçar por lá?

– Caçar? Eu não caço nada!– Pena... Aqui também não há grande

coisa, para além de um coelhito ou outroe pombos – lamentou-se ela –, masencontrará alguns, e uns quantos faisõestambém, numa das arcas congeladoras.

Muito embora tenha cozinhado muita

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caça ao longo dos anos para grandesfestas, penso que matar um animal sópor prazer é errado, porém, quandotrabalho, limito-me a cozinhar, não teçoopiniões!

– Na verdade, sou uma rapariga dacidade, criada em Merchester –confessei –, muito embora o meutrabalho habitualmente me faça estar nocampo desde o final da prima-vera atéaos inícios do outono, quando cozinhopara festas. O resto do ano aceitotrabalhos como este, a tomar conta decasas.

– Oh, a Holly cozinha? Nesse caso, éuma pena que não possamos dar umafesta em Old Place este Natal – referiu

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Becca num tom melancólico. – Acho umpouco egoísta da parte do meu sobrinhopartir assim, ainda que tenha sofrido umdesgosto de amor. O Guy, irmão doJude, fugiu com a noiva dele no Natalpassado, sabe?

– O seu irmão mencionou qualquercoisa a esse respeito – admiti. – Ele e amulher disseram-me que costumampassar o Natal todos juntos e que a netadeles ansiava muito por isso, mas averdade é que durante o inverno gostode fazer uma pausa de tantos cozinhadose, para além disso, não festejo o Natal.

– Vai contra a sua religião, suponho –aventou ela, olhando de relance para omeu cabelo preto e pele mais ou menos

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morena. As pessoas estão sempre aperguntar-me de onde sou e ficamsurpreendidas quando respondoMerchester.

– E para os mais velhos também é umasatisfação fazer o jantar de Natal aqui –prosseguiu ela. – Acho que ainda nem seaperceberam bem que este ano tal nãoacontecerá.

– Refere-se ao seu irmão e à suacunhada? – arrisquei. Claramente, elanão estava a incluir-se na fileira dosidosos!

– Bom, também, mas na verdadeestava a referir-me à Old Nan e aRichard Sampson, que foi o vigáriodaqui, até se ter reformado. Vivem nas

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casas da igreja, em Little Mumming. Ehá também o Henry, é claro, mas ele vaisempre jantar a casa da filha, incluindono Natal. Reparou nas casas da igrejaquando atravessou a aldeia?

– A fila de três pequeninas casas deaspeto gótico?

– Sim, é aí que se encontram osúltimos servidores da família. A OldNan tem noventa e poucos anos, mas éesperta como um alho, e o Richard deveter uns oitenta... rijo como um pero ecalcorreia milhas. A propósito, o Henryainda vem até aqui de vez em quandoentreter-se na estufa e no jardim. Épossível que se cruze com ele. – Fezsinal com a cabeça para um pequeno

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portão metido numa arcada. – Por alifica um pequeno jardim murado. A mãedo Jude adorava-o, mas agora estátomado pelas ervas, à exceção docanteiro dos legumes. A estufa confinacom os estábulos e o celeiro e o Henryarranjou um cantinho lá para ele e atétem um fogão de um bico para fazer chá.

– Está bem, ficarei atenta a ver se ovejo! Mas espero que os outros doistenham entendido a situação e tomadooutras providências para o Natal...

– Não sei, os velhos hábitos sãodifíceis de quebrar. – Becca abanou acabeça. – É como a Tilda, fala como sefosse ela quem cozinhasse, mas naverdade é a empregada, a Edwina, quem

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faz a maior parte, com a Tilda aatrapalhar e a dar ordens. Por isso,calhava sempre muito bem que eles semudassem para Old Place durante asemana do Natal quando a Edwina tiraférias.

– A ausência de Mister Martlandparece ter de facto dado azo a muitodesapontamento e embaraço – concluí,pensando que, tendo em conta que eledevia saber que todos estes idososdependiam dele, tivera realmente umaatitude muito egoísta ao partir assimpara o estrangeiro, ainda que tivessesofrido um desgosto de amor.

– Bom, a culpa não é sua –argumentou ela.

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– Tem tempo para entrar e tomar umachávena de chá? – convidei. – Trouxeum bolo de fruta.

– Maravilhoso! Vamos então.Não tirou o lenço da cabeça, mas

despiu o casaco, revelando um coleteacolchoado e calças de montar debombazina com um corte generoso eclemente. Merlin levantou-se do seucesto para a cumprimentar.

– Olá, rapaz – disse elaafetuosamente, afagando-lhe a cabeçacom a sua larga mão. – Ficaste aqui noquentinho, não foi?

– Já demos um passeio bom de manhãcedo e achei melhor deixá-lo dentro deportas – expliquei, pondo o chá a fazer e

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tirando o bolo da lata. – A casa pareceum pouco fria, apesar do aquecimentocentral, por isso pensei acender aquelagrande lareira da sala de estar maistarde.

– Muito boa ideia. No inverno,sempre foi costume ela estar acesa, é ocoração da casa, mas o Jude tem vindo anegligenciá-la desde que os Jackson sereformaram. Já tinham uma idadeavançada e foi com alívio que sereformaram assim que o meu irmãofaleceu. O Noël disse-me que tambémacabou de perder a sua avó... Lamento –acrescentou ela abruptamente mas comóbvia sinceridade.

– Obrigada, sim, foi há poucas

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semanas. Foi ela que me criou porque aminha mãe faleceu pouco tempo depoisde eu ter nascido.

– Isso é muito triste. A mãe do Jude jámorreu há uns anos, mas ele adorava-a.Penso que foi dela que ele herdou avocação para as artes, pois nunca antestivemos nenhum artista na família. Esuponho que seja por isso também queele tem esta devoção pela Lady. Mas,pensando bem, ele adora todo o tipo decavalos, ainda que por vezes tenham umar um pouco torturado naquelasesculturas que ele faz!

– Penso que a que vi perto deManchester não parecia torturada,apenas... moderna. Apesar de tudo,

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conseguia perceber-se o que era.– Ele tem um estúdio no pinhal, um

pouco acima da casa do meu irmão. Avelha casa do moinho. Há de ver que docaminho da entrada parte um carreiroque leva até lá, mas deve estar trancado,é claro.

Não havia nada nas instruções sobretomar conta do estúdio também, porsorte, mas seguramente que um dialevaria Merlin a dar um passeio por lá.

Muito embora o desapontamento dafamília em relação ao Natal não fosseculpa minha, a consciência pesava-meum pouco, por isso, quando ela selevantou, eu disse num impulso:

– Porque não ficam com o peru

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congelado e o gigante pudding que osChirk deixaram? Assim, a Becca, o seuirmão e cunhada e a Jess podiam fazerum verdadeiro jantar de Natal todosjuntos.

– Oh, eu não sei cozinhar nada maiscomplicado que um ovo quente! Porisso, parece-me que jantarei a galinhaassada da Tilda no dia de Natal e depoisirei para casa, onde me esperam queijo,carnes frias e picles.

Tal fez-me sentir ainda mais culpadamuito embora, por que carga de água euhaveria de me sentir assim quando nadadaquilo era culpa minha, seja ummistério! Tudo se devia ao egoísmo deJude Martland!

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Capítulo 7

De Fio a Pavio

A Irmã é um trambolho demulher, grande e fria osuficiente para afundar oTitanic. Apesar de tudo isso,desloca-se silenciosamente eapanhou a Pearl sentada nabeira da cama do novo doente,um crime abominável. Agora aPearl foi transferida para aenfermaria pediátrica e eu fui

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colocada no lugar dela, pois aIrmã diz que confia que eu nãonamoriscarei os doentes! Istonão impede, é claro, que osdoentes tentem namoriscar-me...

Janeiro de 1945

Depois de Becca partir – com umaenorme fatia de bolo embrulhada empapel de alumínio no bolso do casaco –,fiquei finalmente livre para dar umanova vista de olhos pela casa, comMerlin colado aos meus calcanhares.Ganhara o hábito de me seguir tão deperto que, se eu parasse de repente, elebatia com o focinho na parte de trás dasminhas pernas. Mesmo através das

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calças de ganga, conseguia sentir o frioe a humidade do focinho dele, de umaforma geral um sinal de boa saúde numcão, ainda que não num ser humano.

Queria familiarizar-me com a planta, eem especial com a localização dequalquer coisa que pudesse ser valiosa,e certificar-me de que não ignoraranenhuma janela quando fechara tudo nanoite anterior. Iria passar o meu tempoprincipalmente na ala da cozinha a nãoser que fosse acometida por um súbitoimpulso de ver televisão na pequenasaleta... Embora, na verdade, tivessesimpatizado muito com a sala de estar,apesar das suas enormes dimensões,portanto, talvez até lá passasse algum

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tempo assim que acendesse a lareira.Não posso afirmar que tenha

encontrado objetos de valor, para alémde um par de candelabros de prataempanados e uma salva gravada noaparador da sala de jantar, e uma fila defotografias em molduras de prata nopiano vertical na ponta oposta dadivisão.

Quando ergui a tampa do piano, fiqueisurpreendida ao descobrir que estavaapenas ligeiramente desafinado einterroguei-me quem ainda o tocaria.Escolhi a primeira parte de «LeadKindly Light» – um hino que a avó meensinara a tocar no seu harmónio –, queecoou pela sala. Era um bonito

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instrumento, mas, em caso de incêndio,sentir-me-ia mais inclinada a agarrar aspratas do que a empurrar o piano pelajanela fora.

Fechando-o, examinei as fotografias, amaioria delas bastante antiga e dereuniões familiares – casamentos,piqueniques, expedições em carrosenormes e descapotáveis, todos osprazeres das classes endinheiradasanteriores à guerra.

No final da fila encontrava-se umafotografia mais recente, e a cores, dedois jovens altos e morenos, um maior,mais entroncado e não tão bem-parecidoquanto o outro, embora houvesse entreeles uma óbvia parecença. O mais bem-

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parecido sorria para quem quer queestivesse a tirar a fotografia, ao passoque o outro tinha o semblante carregado– e, se a fotografia era de Jude Martlande do irmão, então era capaz de adivinharqual era qual, ainda que só tivessefalado com um deles uma vez!

A biblioteca continha uma seleçãomuito variada de livros, incluindovários romances policiais antigos, osmeus preferidos. Prometi a mim mesmaum Natal agradável e repousante,sentada frente ao lume com umfornecimento de café, chocolates e bolo,e Merlin e o rádio como companhia.

A única parede que não estava cobertade estantes exibia mais fotografias

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antigas de familiares e amigos – erafácil distinguir os Martland, sendo nasua maioria altos e morenos –, mastambém de homens estranhamentetrajados e participando numa qualquerespécie de espetáculo ao ar livre. Talvezfosse a cerimónia do dia de Reis queSharon mencionara. Caso fosse, pareciaum inócuo festival de dança Morris.

A chave das portas de vidrinhos quedavam para a rua estavam no meuchaveiro, por isso saí para o jardimmurado depois de vestir um enormeanoraque. Se pertencia a Jude Martland,então era bem maior do que eu – mais oumenos do tamanho de um urso pardo, naverdade!

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A horta revelava um aspeto meioesquizofrénico: metade tomada pelaservas e negligenciada, com rosas quehaviam trepado sem rei nem roque ehera por todo o lado; a outra metade,uma bonita e ordenada exibição deverduras e legumes. A estufa, de boasdimensões e encostada às traseiras doceleiro, estava a necessitar de umacamada de tinta, mas no interior tudo seencontrava arrumado e ordenado, comferramentas e vasos guardados debaixode bancos ou pendurados em suportes. Oesconderijo de Henry ficava numa dasextremidades, por trás de uma cortina deserapilheira. Tinha um pequeno fogão agás, uma chaleira, uma caneca e uma

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caixa de estanho que continha meiopacote de biscoitos já um pouco moles ealguns saquinhos de chá Yorkshire Tea.

Regressei a casa, a tremer. Estavadefinitivamente a ficar mais frio e, seviéssemos a ter gelo e neve, como asprevisões para a semana seguintesugeriam, de certeza que a íngremeestrada que conduzia à aldeiarapidamente se tornaria intransitável eficaríamos isolados. Era uma situaçãocom a qual já me vira confrontadamuitas vezes na Escócia, por isso aideia não me incomodava por aí além,muito embora tenha feito uma notamental para não me esquecer deverificar se tinha tudo o que precisava

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em casa, só por precaução. Podiatambém telefonar para Nöel e Tilda, acertificar-me de que estavam tambémbem preparados.

No piso de cima, queria verificar osótão, mas a porta que lhe dava acessoestava trancada e eu não tinha a chave –o que seria lamentável se os canos ou otanque da água vertessem oucongelassem! Mas talvez a chave tivessesido confiada a Noël, para emergências.Fiz mais uma nota mental para não meesquecer de lhe perguntar.

Detive-me no meu quarto parapendurar o resto da roupa e arrumar oslivros que trouxera e colocar o portátil eas notas para o livro de culinária em

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cima de um lavatório com tampo demármore, prontos para os levar parabaixo mais tarde. A pequena arca deestanho da avó parecia ficar ali muitobem, o tipo de objeto que umaempregada teria tido outrora... Sentei-me na beira da cama e folheei oprimeiro diário até chegar à página ondeficara na noite passada: as entradasseguintes pareciam mencionar cada vezmais o novo doente...

Resistindo firmemente ao impulso deler na diagonal, fechei o diário. Estava agostar de aos poucos ir descobrindo aminha avó por intermédio das páginasdos seus diários, umas quantas todas asnoites, e não queria apressar essa

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experiência.– Vamos, Merlin – desafiei, reunindo

os livros e a tralha que queria levar parabaixo. O cão levantou-se do pequenotapete entrançado ao fundo dos pés dacama e seguiu-me.

Larguei tudo na cozinha e fui ver acave, onde fiquei muito satisfeita porencontrar uma parede cheia de lenhapara a lareira da sala de estar e acaldeira a fervilhar. A adega estavatrancada, é claro, mas, estranhamente,Jude Martland parecia ter-se esquecidodo armário das bebidas com os seusdecantadores e garrafas de licor na salade jantar, portanto, se fosse de factoacometida pelo incaracterístico impulso

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de beber até à letargia, os meios para ofazer estavam à mão de semear.

Porém, tal seria muito poucoprovável: gosto demasiado de controlaro que me rodeia! Quando por fimregressámos à cozinha, Merlincomeçara a dar longos e mortificantessuspiros, por isso coloquei umamancheia de biscoitos na tigela dele etratei de almoçar também – pão, queijo eum excelente chutney de damascos quetrouxera comigo – antes de ir verificaras provisões.

Os armários da cozinha estavam bemabastecidos, embora alguma da comidaparecesse já estar ali há meses. Ofrigorífico continha manteiga, ovos,

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bacon e uma quantidade imensa dequeijo deixada pela Mo e pelo Jim, maisos poucos produtos perecíveis que eutrouxera comigo. A Mo e o Jimobviamente que gostavam de um jantarde Natal com tudo o que a tradiçãomandava, de fio a pavio, pois, para alémde um peru gigante e de um presunto nocongelador, havia um pudding dotamanho de um satélite, frasco atrás defrasco de mincemeat2 e até algunsdaqueles dispendiosos Desejos deChocolate – uma espécie de deliciosobolinho da sorte – que sãoconfecionados em Sticklepond, umaaldeia perto de onde eu vivo.

A arca de maiores dimensões estava

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recheada de caça, carne e peixe, e aoutra continha uma variedade de pão,pizas, chili e um fornecimento completode refeições instantâneas quereconfortam o estômago, e essasprovavelmente constituíam a dietaprincipal do dono da casa, o quedeixava entrever que ele não era umgourmet. Isso juntamente com umabastecimento abundante de caixas dechá, café, leite e sumo de laranjapermitia-me ter uma boa ideia daquilode que Jude Martland vivia quandoestava em casa!

Apontei qualquer coisa que achasseque pudesse acabar, e que a loja daaldeia provavelmente venderia, mas era

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óbvio que, em caso de um nevão,dificilmente morreria de fome.

Merlin, entediado, estava entretanto adormir profundamente no seu cesto juntoao Aga – boa!

Parti uma cenoura em pedaços e levei-a a Lady, oferecendo um deles a Billy,que tentava trepar pela vedação comuma avidez frenética. Os lábios da Ladysão suaves como o veludo e,estranhamente, embora o pelo dela sejaalvo como a neve, a pele por baixo énegra.

Devorada a cenoura, ela e o seuodorífero amiguinho deambularam paraa outra ponta do cercado e eu fuiverificar o nível de gasóleo no enorme

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tanque no anexo – satisfatoriamentecheio –, e dei uma vista de olhos aogerador. Era uma enorme e intimidantemáquina, mas aparentemente ligava-sesozinha se a eletricidade falhasse edepois desligava-se quando fossereposta. O dossiê da Homebodiesmencionava, contudo, que, se não seligasse de forma automática, serianecessário ligá-la manualmente...

Estava a observar o gerador,examinando os interruptores, quando derepente ouvi uma voz áspera atrás demim:

– Não é boa ideia brincar com essamaquineta, menina!

Girei sobre os calcanhares,

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sobressaltada, e descobri que tinhacompanhia, sob a forma de um homemidoso, pequeno e magro, com compridase flácidas madeixas de cabelo cor detabaco de cada lado da cadavérica cara.Segurava uma protuberante saca numadas mãos e um pau, erguido de umaforma ligeiramente ameaçadora, naoutra. Já vi idosos de aparência maissimpática.

– As mulheres não deviam intrometer-se no que não entendem.

– O senhor não será por acaso oHenry?

Ele assentiu com a cabeça.– A minha filha trouxe-me até cá

acima para vir buscar umas batatas e

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umas cenouras. E você é a menina queveio tomar conta da casa na vez do Jim eda Mo?

O tom com que colocou a pergunta nãome deixou qualquer dúvida de que, naopinião dele, tal não fora uma trocaaceitável. Na verdade, Jim e Mo Chirkpareciam-me cada vez mais uma duplainsuperável: pareciam ter-se tornadomuito populares para toda a gente ali!

– Há vários anos que ninguém sereferia a mim como «menina» –comentei agradavelmente – e na verdadeaté sou uma das colaboradoras maisexperientes da Homebodies.

– É uma moça alta e robusta, isso écerto – admitiu ele –, mas, ainda assim,

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não devia mexer no gerador. Ensinei aoJim como isto funcionava, mas nãodeixo que qualquer um mexa nele.

– Se a eletricidade faltar e o geradornão se ligar por si só, então terei desaber como ligá-lo, não terei?

– Não, deixa o assunto para quem lhesabe mexer.

– Ou seja, o senhor?– Isso mesmo.– Mas o Henry poderá não estar por

perto quando eu precisar de o ligar...Talvez haja um nevão e depois que heide fazer? Mas não se preocupe, MisterMartland deixou instruções precisas e aoperação parece-me uma coisa simples.

– Não mexa no que não sabe – insistiu

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ele obstinadamente.Parecíamos ter atingido um impasse.

Disse então num tom calmo e educado:– Lamento, mas faz parte das minhas

funções manter o bom funcionamento dacasa, portanto, se tiver de ligar ogerador, fá-lo-ei. Afinal de contas,ninguém pode esperar que eu passe oNatal às escuras numa casa fria, poisnão?

Ele lançou-me um olhar de enormedesaprovação, mas pareceu por fim, edepois de muita ruminação, aceitar alógica do meu argumento.

– Estou a ver que é uma criaturateimosa e determinada, tal e qual o Jude,que acha sempre que sabe mais... Bom,

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suponho que seja melhor mostrar-lheentão como isto funciona, mas só mexenisto se não for capaz de me contactar,certo?

– Com certeza – concordei, eapertámos a mão para selar o acordo,embora, tendo em conta que ele primeirocuspiu na palma, tenha sidopossivelmente a coisa mais nojenta quealguma vez tive de fazer ao mesmotempo que mantinha uma expressãoeducada.

Não percebi a que propósito era tantoespalhafato por causa do gerador,quando até era bastante simples. Depois,Henry disse que tinha a filha à espera eafastou-se a manquejar com a saca e eu

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regressei a casa e lavei as mãos com gelantibacteriano.

Tinha intenções de fazer uma incursãona horta dele, mas lavaria tudo muitobem antes de o cozinhar, pois nãocolocava as minhas mãos no fogo queele não mijasse no monte do adubocomo muitos hortelãos de outros tempos– se não mesmo pior.

Assim que descongelei, limpei alareira da sala de estar e dispus a lenha,com ramos e tarolos que fui buscar àcave com um cesto de vime de aspetoantigo. Fazia figas para que a chaminétivesse sido limpa recentemente, poispegar fogo à casa representaria comgrande probabilidade o final da minha

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carreira como house-sitter. Porém, porsorte, o fumo foi sugado para cima, aoinvés de empurrado para fora, e nemsinal de nuvens de fuligem.

Certificada de que tudo corria bem,coloquei o guarda-fogo frente à lareira efui abrir todas as portas a todas asdivisões para permitir que o ar quentecirculasse. As casas antigas rapidamenteficam bolorentas se não forem mantidasarejadas.

No final da tarefa, acomodei-me frenteà lareira para descansar na companhiade um bule de chá forte e bom e de maisuma fatia do meu bolo de fruta.

Achava que merecia uma pausa: havia

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muito para fazer em Old Placecomparado com outras casas de quetomara conta, mas tinha a certeza de queem breve criaria uma rotina com osanimais. Então, teria o resto do tempo sópara mim... só que, para passar maistempo nesta bonita divisão, teria de lhedar uma limpeza!

No final do dia, já tarde, não esperavaque Jude Martland voltasse a ligar, masera mesmo típico do homem com o qualcomeçava a travar conhecimento que, aoinvés disso, ligasse precisamentequando eu me acabara de sentar paradescansar! Para piorar a coisa, otelefone ali estava numa mesa redondajunto à janela e ao lado apenas havia

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uma cadeira de suma-pau.Desta feita, ele revelou-se

ligeiramente mais conciliador, talvezporque lera as minhas referências ecurrículo, e eu estava determinada amanter a calma.

– Miss Brown, acho que ontem nãolhe agradeci por ter aceite estaemergência assim do pé para a mão –começou ele num tom rígido.

– Mistress... e é claro que eu percebique estava preocupado que a sua casa eanimais estivessem ao cuidado de umatotal estranha. Mas pode ficardescansado: está tudo sob controlo e asua tia Becca veio aqui e deu-meexcelentes conselhos acerca da Lady,

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bem como o número de telefone delapara o caso de surgir alguma coisa.

– Ah, ótimo! – Soava aliviado. – Nãose esqueceu de colocar o remédio daLady na farelada dela ontem à noite,pois não?

– Não esqueci.– E manteve o Billy longe do balde

enquanto ela a comia?– Claro – respondi, embora tivesse

sido uma autêntica peleja impedir Billyde mergulhar no balde antes de Lady terterminado. – A Lady está ótima. E o seujardineiro, Henry, teve a amabilidade deme mostrar o que fazer se a eletricidadefalhar e o gerador não se ligarautomaticamente.

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– O Henry mostrou-lhe? – repetiu elecom incredulidade.

– É claro! Percebeu que seria degrande utilidade, para o caso de ele nãoestar disponível para vir aqui tratardisso ele mesmo. E amanhã planeio iraté Little Mumming, passando primeiropor casa dos seus tios para saber seprecisam de algumas compras. Portanto,como vê, não tem com que se preocupare pode desfrutar das suas férias –terminei amavelmente.

– Não são umas férias por completo.Ontem houve uma cerimónia dedescerramento de uma das minhasesculturas.

– Ah, sim, vi aquele cavalo que foi

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colocado num monte perto deManchester e está muito giro.

– Giro? Por favor, tente não soardemasiado impressionada – disse ele,parecendo um pouco irritado. – Amanhãé suposto ir para os Hamptons passar oNatal com uns amigos, mas não vejocomo poderei descontrair e divertir-mesabendo que está sozinha em Old Placea tomar conta de tudo. O tempo aí porvezes fica muito mau, sabe? Não éinvulgar Little Mumming ficar isoladadurante o inverno.

– Já me disseram, sim, mas, naverdade, até a pessoa menos percetívelseria capaz de perceber que, se aíngreme estrada que desce desde a

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aldeia estiver gelada, ficaráintransitável. Não se preocupe, já muitasvezes fiquei isolada pela neve naEscócia e isso para mim não constituiqualquer problema.

– Então, o isolamento não aincomoda?

– Não. Na verdade, até aprecio. Tenhotrabalho que quero terminar, um livro dereceitas para festas caseiras que estou acompilar.

– Sim, tinha-me dito que eracozinheira – comentou eleatenciosamente. – Olhe, eu sei que medisse que não comemora o Natal, mastalvez pudesse reconsiderar...

Percebi logo que se preparava para

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me pedir de novo que cozinhasse ojantar de Natal para a família,provavelmente devido a um súbitorebate de consciência, por issointerrompi-o com bastante firmeza antesque ele o pudesse fazer.

– Mister Martland, eu tento ignorar oNatal tanto quanto posso e, para alémdisso, perdi recentemente a avó que mecriou. Ela era uma batista estranha, porisso educou-me a não dar qualquerimportância às tradições mundanas daquadra.

– Que havia de estranho no facto deela ser batista? – perguntou ele.

– Nada. Os batistas estranhos foramuma seita separatista na viragem do

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século, muito embora já poucos restem.– Olhei de relance pela janela. – Agora,se me der licença, o seu tio e a suasobrinha acabaram de chegar numcarrinho de golfe, por isso é melhor irabrir-lhes a porta. O vento lá fora estáde cortar.

– Não, espere – ordenou ele –, chame-o ao telefone para eu falar com ele.Quero...

– Telefone-lhe mais tarde, se quiser –interrompi e desliguei o telefone.Silenciado de novo no seu auge. Estavaa tornar-se um hábito, mas ele começavaa revelar-se um homem assaz irritante,em especial aquela voz grave eretumbante: era tão perturbadora quanto

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um trovão distante!

2 Mistura de frutos secos, uma bebida licorosa,geralmente brande, e especiarias. Inicialmente, amistura levava carne, daí a designação demincemeat, «carne picada». (N. da T.)

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Capítulo 8

Frio de Rachar

A perna do novo doente está aresponder bem à penicilina, masele mete-se comigo quandoestou a mudar-lhe as ligaduras etenta fazer-me rir... e por vezes ébem sucedido, malgrado os meusesforços para manter um arsério.

Janeiro de 1945

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– Pensámos vir fazer-lhe uma visitapara ver como estava a sair-se –explicou Noël –, muito embora a Beccatenha passado lá por casa e dito queestava a sair-se muito bem. Mas euqueria também devolver uns livros àbiblioteca. O Jude não se importa que euentre e saia. E a Mo e o Jim diziam queisso também não os incomodavaminimamente.

– É claro, é a casa da sua família, porisso pode vir quando quiser – assegurei-o.

– Obrigado, minha cara – devolveuele com o seu cativante sorrisoassimétrico. – O problema é que agoraque tive de desistir de conduzir o carro,

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o carrinho do golfe é aberto e nadaadequado a condições atmosféricas deinverno.

– Fui eu quem trouxe o avô – referiuJess. – Estava aborrecida e gosto deconduzir o carrinho; só que não estouautorizada a fazê-lo sozinha.

Reparando que ela olhavaanelantemente para a minha fatia de bolode fruta, disse:

– São servidos de um chá e de umafatia de bolo? O meu já arrefeceuporque o seu sobrinho acabou de ligarde novo, por isso, de qualquer maneira,eu ia fazer um bule novo.

– Oh, o Jude telefonou? – perguntouNöel. – Que pena não termos chegado a

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tempo de falar com ele.– Ele tinha mesmo de desligar. Mas

presumo que vos ligue mais tarde.– É bem provável... Mas não

queremos incomodá-la, se estiverocupada – argumentou ele, olhando derelance para a pilha de papéis ao ladodo cadeirão.

– Não incomodam nada, eu ia apenasdar uma vista de olhos a umas notas paraum livro de receitas que estou acompilar: Cozinhar para Festas. Háanos que recolho receitas e dicas, masagora espero finalmente conseguirterminar o livro para o enviar para oseditores em Nova Iorque.

– As pessoas ainda dão grandes festas

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em casa? Quando era jovem era umcostume arreigado. E bem divertidas queeram! – comentou Noël num tomsaudoso.

– Oh, sim, ficaria surpreendido... Masprovavelmente são bem diferentesdaquelas a que costumava ir.

– Sei que a Becca ainda é convidadapara festas relacionadas com caçadas epescarias – referiu ele. – E a famíliasempre se reuniu aqui em Old Placeentre o Natal e o dia de Reis, portanto,suponho que tal constitua também umafesta.

– Eu acho que o seu livro precisa deum título menos entediante que Cozinharpara Festas – opinou Jess com toda a

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franqueza.– É apenas um título provisório, mas

se te ocorrer um melhor, diz-me.– Eu estou a escrever um livro de

vampiros, com montes de sangue –confidenciou ela.

– Bom, suponho que seja umingrediente essencial num livro devampiros.

– No Drácula, de Bram Stoker, nãohavia muito – referiu o avô dela.

– Pois não, mas no meu haverá. Voumatar todas as raparigas da escola dasquais não gosto... e de uma formahorrenda.

– Boa ideia, isso soa imensamentesatisfatório – comentei.

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Noël acomodou-se no sofá frente àlareira e Jess acompanhou-me até àcozinha enquanto eu fazia um novo bulede chá e colocava chávenas e pires numtabuleiro e o que restava do meu bolo defruta. Fui buscar um pacote de sumo delaranja ao vasto fornecimento dadespensa e abri-o.

– O Jude goste de beber isso aopequeno-almoço.

– Tendo em conta as refeições prontasna arca, eu diria que ele não cozinhamuito, pois não? Há montes de comidana arca, mas a maioria parece já lá estarhá uma eternidade, em especial a caça.

– Eu acho que metade do tempo eleaté se esquece de cozinhar, à exceção do

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pequeno-almoço. É a tia Becca que enfiaa caça e as trutas e essas coisas nasarcas. Está sempre de visita a amigos edepois volta com mais coisas do queaquelas que sabe cozinhar. Também asdá à minha avó. Gosta de coelho?

– Quando é bem cozinhado.– Eu não. São uns animais tão

queridos e inofensivos...– Bom, ninguém te vai obrigar a

comer nenhum, pois não? – argumenteicom um sorriso. – Mas eu um dia façoum coelho de que tu vais gostar: demanjar branco de chocolate! Há umaforma vitoriana de vidro lindíssima numdos armários e estou desejosa de aexperimentar. Podias vir lanchar

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comigo, se os teus avós deixarem.– Oh, de certeza que não se importam.

O que é manjar branco?– Uma espécie de doce de leite.– É assim tipo um pudim? A minha

avó tem uns pacotes disso no armário.– Mais ou menos. Sabes, alguém devia

comer a caça que está na arca. É umdesperdício ficar ali.

– Desde que não seja eu. Embora,talvez os seus cozinhados sejammelhores que os da minha avó. Acomida dela é toda um bocado esquisita.

– Se calhar, ela cozinha comocostumava fazer no início da carreira, sóque os gostos entretanto mudaram –disse com todo o tato. – A propósito,

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aquela pasta preta nas sanduíches derolinho que comemos ao almoço... poracaso não saberás o que aquilo era?

– É um segredo muito bem guardado.Eu chamo-lhe pneu rançoso picado.

– É uma descrição bastante precisa –admiti.

– Eu sei, a avó age como se fosse elaquem cozinha, mas na verdade é aEdwina quem faz tudo – confidenciouJess. – É essa a verdadeira razão porque eles se mudam para Old Placequando a Edwina vai passar o Natal e oAno Novo com os parentes dela. SóDeus sabe como será o jantar de Nataleste ano!

Senti novo rebate inexplicável da

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minha consciência. Devia ser JudeMartland a tê-los, não eu!

– Podes ajudá-la a cozinhar – sugeri.– Eu costumava ajudar a minha avó. Foiassim que descobri o meu talento e odesejo de me tornar chef.

– Ela é muito mandona e diz que nãoquer crianças na cozinha debaixo dassaias dela quando está ocupada, muitoembora eu tenha quase treze anos e sejabem mais alta que ela! Ajudo o avô alavar e secar a louça.

O chá estava pronto e levei otabuleiro até à sala de estar, encontrandoNoël a dormitar frente ao lume, emboratenha acordado assim que a louçachocalhou.

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– Muito bom ver a lareira aqui acesade novo – comentou ele –, a sala pareciatão fria e pouco convidativa.

– Pensei que seria boa ideia paraaquecer e a casa. As casas antigasparecem ficar húmidas e bafientas tãodepressa, não é?

– Sim, é verdade. É claro que, a faltarapenas uma semana para a véspera deNatal, esta sala habitualmente já estariadecorada para as festividades, com aárvore no canto ao pé das escadas e umacoroa de azevinho... – recordou elepesarosamente. – Os ornamentos estãono sótão, ainda que a mãe do Judecostumasse fazer festões de verduraapanhada do jardim. Tinha muito jeito

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para esse tipo de coisas.– O sótão está trancado, assim como

mais um par de divisões – fiz notar. – Enão tem problema, mas tem as chaves,para o caso de haver algumaemergência, como um cano roto, porexemplo?

– O sótão não está trancado, é apenasa porta que está muito perra – explicouJess. – Lembro-me disso porque noNatal passado jogámos às escondidas eeu fui para lá e ninguém me encontrava.

– Isso foi porque o sótão era zonaproibida – recordou-lhe Noël. – Mas,sim, eu tenho o resto das chaves,incluindo a do estúdio na azenha.

– Ótimo. Com certeza que não irei

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precisar delas, apenas gosto de estarprevenida. Penso que, para além da alada cozinha, apenas usarei esta sala. Temum ambiente acolhedor e simpático,apesar de ser tão grande.

– Sim, sempre foi o coração da casa.– Suspirou e o seu olhar deteve-se numafotografia de família a preto e brancoque se encontrava numa das mesinhas. –Éramos cinco, sabe, e agora já só resta aBecca e eu. O Jacob era o mais velho,mas foi morto em Dunkirk, pobredesgraçado, e um outro irmão nosso, oEdward, foi gravemente ferido maistarde. O Alex, o pai do Jude, herdou apropriedade, mas já só casou tarde.Agora todos desapareceram... – abanou

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a cabeça com um ar triste. – O Alexfaleceu em janeiro depois de umaprolongada doença.

– Reparei que a casa sofreu algumasadaptações para alguém comdificuldades motoras, como o elevadorna escada... e, desculpe, mas disse queum dos seus irmãos se chamavaEdward? – inquiri.

– Sim, embora nós costumássemostratá-lo por Ned.

Fiquei sobressaltada com a revelaçãode que existira de facto um NedMartland, e contemporâneo da minhaavó, mas seguramente que isto era maisuma daquelas estranhas coincidênciascom que a vida nos presenteia! Não

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estava nada a ver como é que oscaminhos de ambos se podiam algumavez ter cruzado...

– Ele era assim uma espécie devaldevino, mas sempre divertido etravesso. O irmão mais novo do Jude, oGuy, faz-me lembrar o Ned. – Noëlabanou a cabeça com um sorrisopesaroso. – Ele não fazia mal a umamosca, mas sempre foi a ovelha negrada família, suponho, ao passo que o Guyultimamente assentou e estabeleceu-se.É banqueiro internacional em Londres,sabe?

– Assentou e estabeleceu-se com a ex-noiva do tio Jude – fez notar Jess. – E eunão acho que o tio Guy seja muito

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simpático.– É muito amável da parte dele

arreliar-te – concordou Noël –, mas elenão o faz por mal.

Uma vez que Jess estava naquelaidade em que o nosso principal objetivona vida é passar totalmentedespercebido e ser invisível, achei aatitude de Guy Martland bastanteinsensível e maldosa! Na verdade, eratão condenável, à sua maneira, quanto oirmão Jude.

– Ainda bem que a noiva do Juderompeu o noivado com ele, foi melhorassim, pois seguramente que já nãoestava apaixonada por ele – fez notarNoël – e eu sou um firme crente no

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casamento para toda a vida.– Sim, eu também... e para lá dela –

murmurei, a minha cabeça ainda àsvoltas com Ned Martland.

– O Guy e a Coco, é esse o nomepalerma dela, acabaram de ficar noivos– disse Jess. – O anúncio vinha nojornal e acho que foi por isso que o tioJude decidiu só voltar da Américadepois do Natal.

– Oh, mas ele já tinha sido convidadopara passar as festas com amigos depoisdo evento de inauguração da escultura...Embora, talvez em parte tenhas razão,Jess – admitiu o avô. – Suponho que,caso o Jude tivesse ficado, não teriacustado nada ao Guy aparecer aqui para

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o Natal apesar de tudo o que aconteceu.– Não se falam desde o Natal passado

– explicou Jess. – O Jude convidou aCoco para vir conhecer a família e ela eo Guy tornaram-se muito amigos. O tioJude ficou muito zangado.

– Seria de esperar! – concordei, muitoembora a julgar pelas fotografias quevira e pelas breves conversas que tiveracom Jude Martland, tivesse a ideia deque ele estava sempre zangado.

– Depois, ela e o Jude tiveram umaenorme discussão e o Guy levou-a acasa e o caldo entornou de vez.

– Penso que o Guy não se comportoumuito bem, ainda que houvesse umaatração mútua entre ele e a Coco –

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referiu Noël com um ar aborrecido. – Omeu irmão também ficou muitoperturbado com o desentendimento entreos dois filhos e o Jude acha que issoacelerou o fim dele. – Abanou a cabeçacom um ar triste. – Não é que o Alextenha gostado muito dela. Na primeiravisita que fez a Old Place deixou bemclaro que esperava uma casa maior emais grandiosa.

– A mim parece-me uma casa bastantegrande e grandiosa – argumentei,surpreendida.

– Seja como for, ela não terá de viveraqui se casar com o Guy... E o Jude teráde esquecer o assunto.

– Também não me parece que depois

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ela aqui venha muitas vezes –acrescentou Jess. – Ela detestou ocampo e recusava-se a sair de casa anão ser de carro, pois não trouxera outrotipo de calçado a não ser sapatos desalto alto, embora pudesse ter pedidoumas galochas emprestadas. E pela-sede medo de cavalos e cães. A avó dizque ela é só casacos de pele e nada decuecas e que o Guy podia arranjarmelhor.

Engasguei-me ao sorver um gole dechá e larguei a tossir.

– Não me parece que devas repetiressa expressão – disse Noël num tombrando.

– Mas como conheceu ela o Jude? –

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inquiri. – Pelo que contam, diria que nãotinham muito em comum.

– Ela é modelo e penso que aspirantea atriz também. Alguém a levou à últimagrande exposição retrospetiva da obrado Jude e lha apresentou. Ela é muito,muito bonita, para quem gosta demulheres pálidas e louras.

– E o tio Jude deve gostar, não é? –disse Jess.

– Suponho que tenhamos tendênciapara nos sentirmos atraídos pelos nossosopostos – sugeri.

– A Holly é muito morena, por isso oseu marido devia ser louro, não?

– Jess, é falta de educação fazerperguntas pessoais!

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– Eu não me importo e, sim, o meumarido tinha cabelo louro e olhos azuis.A irmã dele mais nova é a minha melhoramiga e também é loura, e muito bonita.

Como desejara ser pequena, loura ebonita quando andava na escola, aoinvés de uma torre mais alta que todosos restantes, até mesmo os rapazes!Também era magra como um caniço, oque me tornara ainda mais constrangida.Todavia, quando finalmente encorpei, oshomens começaram a olhar-me para asmamas e não para mim, exceto o Alan, éclaro.

– Bom, é melhor irmos andando! –declarou Noël, levantando-se.

– Amanhã vou até à aldeia a pé –

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disse eu. – Passo por vossa casaprimeiro a saber se precisam que vostraga alguma coisa da loja.

– Eu pergunto à Tilda – prometeu ele.– É muito amável da sua parte!

Parecia-me bem que, longe de mesentir sozinha e isolada em Old Placeiria ser inundada de visitas!

O dia passara num instante, por issofui pôr a beterraba a demolhar numbalde para o jantar de Lady, peguei nunsquantos para Billy e fui atraí-los devolta para o estábulo.

Graças às valiosas dicas de Becca,aprendera que, se Lady me visse com obalde, me seguiria até à cocheira e Billyviria atrás dela. Fechei-os então

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confortavelmente e desejei-lhes uma boanoite.

Depois da minha conversa com Noël,pus de lado as notas para o livro deculinária e fui buscar o diário da avó,que li durante o serão. Mais uma vez mesenti tentada a passar várias folhas paraver se vislumbrava alguma menção aNed Martland, mas estava a apreciarimenso todos os pormenores acerca davida da avó ao mesmo tempo que elaemergia aos poucos da sua concha sob ainfluência de Hilda e Pearl e não queriaapressar isso: a minha avó era umarapariga cuja ideia de uma noite dedevassidão era uma ida ao cinema!

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Terminei aquele diário e li mais umaou duas páginas do seguinte na camaantes de adormecer. Por essa altura, aavó começara a referir-se ao novodoente como «N. M.»! Ocorreu-me quehavia uma forma muito natural de ocaminho dela se ter cruzado com o deNed Martland de Old Place e, depois doque Noël dissera acerca do irmão seruma ovelha negra, ficarei muitopreocupada por ela se vier a revelar-seser ele.

Contudo, suponho que, mesmo queseja, então, tendo em conta apersonalidade e a educação da avó,apenas poderá ter sido uma espécie deDesencanto3!

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3 Referência ao filme Brief Encounter(Desencanto), de 1945, dirigido por David Lean. (N.da T.)

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Capítulo 9

Adagas

A Hilda e a Pearl avisaram-mebondosamente que N. M. era umnamoriscador e que não devialevar nada do que ele dissesse asério, mas ele foi muito sinceroe amável quando lhe falei doTom e da minha intenção dededicar a minha vida àenfermagem. Ele é amável e umbom interlocutor quando está a

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falar a sério.Fevereiro de 1945

Na manhã seguinte, o vento amainaraum pouco, mas tudo exibia uma belacamada de geada. Não era de admirar, atemperatura tinha estado a descer desdeque chegara e, de acordo com a rádio, ashipóteses de virmos a ter um Natal comneve estavam cada vez mais a ficarreduzidas.

Com a lareira acesa, a casa começavaa aquecer, e mantinha-a acesa graças aoabundante fornecimento de toros que iatrazendo da cave. Apesar do tamanho,em breve a casa pareceria acolhedora.

Depois do pequeno-almoço – que

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comi com o mais recente dos diários daavó à minha frente – fui soltar Lady eBilly. Billy ignorou a cancela aberta esaltou por cima da vedação como um...bom, ia dizer bode!

Pendurei mais uma rede cheia de fenono anteparo, alta o suficiente para queLady não lhe enfiasse a pata quandoestivesse vazia – outro conselho dainestimável Becca! – e parti a finacamada de gelo que se formara nagamela antes de ir limpar a cocheira.

Uma vez que durante todo este tempoMerlin deambulara pelo cercado, acheique já seria exercício suficiente para elee por isso regressei a casa e preparei-me para fazer à sala de estar o tipo de

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limpeza a que a minha avó sempre sereferira como «uma bela barrela», algoque claramente a sala não via há muitotempo.

Um dos requisitos da Homebodies eraque mantivéssemos as divisões da casaque usáramos limpas e arrumadas, o quenão acontecia muitas vezes era que ascasas tivessem aquela escala degrandeza!

Não aprecio o processo de limpeza,mas adoro uma divisão limpa earrumada, por isso penso que podemosdizer que a tarefa proporcionasatisfação. No entanto, é uma satisfaçãoque em nada se compara à deproporcionar um excelente jantar para

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vinte e cinco pessoas com exigênciasdietéticas diferentes todos os diasdurante duas semanas, com uma períciaque não exige esforço. Isso sim ésatisfatório, e a um nível criativotambém – penso, por vezes, que cozinharé uma espécie de forma de arte efémera.

Seja como for, quando acabei deaspirar, devolvendo o padrão ao bonitotapete, de lavar o chão de pedra emredor do tapete, de tirar as teias dearanha dos cantos e de polir os móveis eo guarda-fogo – e até a aldraba da portada frente, uma vez que estava com a mãona massa –, ficou tudo com um armagnífico e eu fiquei com um ar imundoe tive de ir tomar outro banho.

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Por esta altura, a manhã ia já bemavançada, por isso vesti o meu casacode penas e iniciei caminho rumo à aldeiacom Merlin, uma vez que ele estavaansioso por seguir-me. O pobre animalparecia ter-se já afeiçoado a mim, mas avida devia ter sido muito confusa paraele ultimamente.

Para além de explorar, queria ver se aloja tinha as provisões extra queapontara na minha lista e qualquer coisaque Tilda pudesse necessitar, por issofiz figas para que à porta da lojahouvesse um sítio onde pudesse deixarMerlin preso. Suponho que devia terlevado o carro, mas gosto de andar e aminha mochila é bastante espaçosa.

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Noël insistiu para que eu entrasse porum momento, muito embora Merlinocupasse demasiado espaço na pequenae atravancada saleta e quando abanou acauda quase tivesse derrubado a árvorede Natal e um globo de neve. Já eusenti-me um pouco como a Alice no Paísdas Maravilhas quando bebeu a poçãopara ficar maior.

Tilda estava reclinada no sofá,resplandecente numa blusa de cetimlaranja e saia comprida preta, emborame tenha parecido um pouco cansadasob a abundante camada demaquilhagem. Jess estava sentada nochão a fazer um puzzle de vampiros emcima da mesa do café.

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– Não há cantos suficientes – declarouela em jeito de cumprimento.

– A vida por vezes é assim mesmo –compadeci-me. – Outras vezes hádemasiados.

Ela lançou-me um olhar por detrás dafranja.

– Já tentou o telefone lá de casa hoje?Vai reparar que a linha está sempre acair, por causa do vento – explicouTilda.

– O vento?– Faz balançar as linhas, mas está bem

pior que o costume – disse Noël. – Nósnão tínhamos reparado até GeorgeFroggat... o proprietário da Hill Farmmais acima no caminho... nos ter dito.

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Um dos postes está inclinado de talforma que o fio está praticamentetombado. Ele telefonou para acompanhia e disseram que só depois doNatal é que podem vir cá acima tratardisso, mas há mais de dois anos queaqueles postes precisam de sersubstituídos.

– É uma chatice – comentei, ao mesmotempo pensando que, pelo menos, issome pouparia a um ou dois dos irritantestelefonemas de Jude Martland!

– Será se tombar de vez e nos isolarpor completo – concordou ele. – Otelemóvel da Jess funciona, mas não naperfeição.

– E apenas se descer o caminho em

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direção à aldeia – acrescentou Jess. – Otio Jude telefonou ontem, quandochegámos a casa e o telefone já entãoestava esquisito, não estava avô?

– Muito. Só consegui escutarintermitentemente o que ele dizia.

– Suponho que estava de novoinquieto por causa de Lady?

– O nome dela foi referido – admitiuele. – Mas depois ele disse qualquercoisa acerca de a Holly se ocupar dela,por isso suponho que se tenha dadoconta de que tudo correrá bem. A linhacaiu depois disso e ele não voltou atentar ligar.

– Qualquer pessoa pensaria que seriaa desgraça de todos nós sem sua

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senhoria em casa – escarneceu Tilda. –Mas, mesmo quando ele cá está, passa amaior parte do tempo enfiado noestúdio.

– Querem que vos traga alguma coisada aldeia? – ofereci.

– O George traz-nos o jornal todas asmanhãs, foi por isso que ele passou porcá, mas podia trazer-nos uma garrafa dexerez do pub – pediu Tilda. – Naverdade, até devia almoçar lá; fazem umexcelente almoço de lavrador e empadasmagníficas.

– Ai sim? É boa ideia – respondi,recordando-me que ainda não almoçarae que o pequeno-almoço fora há umaeternidade –, mas terá de ficar para

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outro dia, pois não poderei entrar comMerlin.

– Oh, os Dagger4 não se importam.– Quem?– Os Dagger. O Auld Christmas

pertenceu desde sempre à famíliaDagger. Na verdade, Nicholas Daggerdesempenha o papel de Auld ManChristmas5 nas festividades da noite deReis – referiu Noël. – O Jude é SãoJorge e eu costumava ser o Dragão, sóque tive de entregar o papel a um homemmais novo.

– Com certeza que a Holly não estáinteressada nos nossos costumes locais,seu velho tonto – repreendeu Tilda.

– Parecem-me fascinantes –

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argumentei educadamente, muito emboranunca tenha sido grande adepta defolclore e, se ainda por cima este eranatalício, então era mesmo como tirar acereja do topo de um bolo que já por siera muito pouco apelativo.

– É uma pena que vá perder asfestividades – lamentou Noël.

– Pois é, parto nessa manhã, que équando o seu sobrinho regressa. E agoraé melhor ir andando.

– Posso ir consigo até à aldeia? –perguntou Jess. – Melhor, posso iralmoçar consigo ao pub?

– Bom, eu... – comecei,hesitantemente, olhando para os avósdela.

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– Se não a quiser levar, não háproblema – disse-me Noël.

– Receio que ela este ano esteja a terumas férias muito entediantes aquiconnosco – fez notar Tilda –, mas issonão é razão para ela abusar da suacompanhia caso prefira ir sozinha.

Na verdade, não me importava e,mesmo que importasse, teria sidoimpossível dizê-lo. Só esperava queestivessem certos acerca de o pubpermitir a entrada de cães. Jess foi acorrer buscar o casaco, preto é claro, eTilda obrigou-a a colocar um gorro eluvas. Depois, para sua completaaversão, entregou-lhe um cesto de vimeno qual repousavam três embrulhos de

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papel pardo.– Palitos de queijo – confidenciou

Jess assim que ficámos fora do alcanceauditivo de Tilda. – A avó fá-los a todaa hora porque são muito fáceis de fazer,mas não sabem a grande coisa, emespecial a queijo. São para os idososdas casas da igreja.

– Ah, sim, é a Nanny...– Toda a gente lhe chama Old Nan...

Tem noventa e não sei quantos anos.– E o vigário reformado?– Richard, Richard Sampson. Também

é bastante idoso, mas percorrequilómetros, embora já esteja um poucogagá e por vezes esquece-se de dar meiavolta e regressar. As pessoas depois

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telefonam ao tio Jude e ele tem de ir decarro buscá-lo.

– Nesse caso, façamos figas para queo tempo o mantenha em casa até o teu tioregressar! A outra casa é a dojardineiro, do Henry, não é?

– Sim, mas ele mantém-se muito ativoe, embora se tenha reformado, estáquase sempre em Old Place.

– Sim, o jardim e o gerador parecemser o feudo dele. Pareceu-me muitoterritorial em relação a eles.

– A filha dele vive na aldeia e dá umolhinho nele. No verão, ela trabalha naloja da quinta Weasel Pot. A Old Nan eo Richard já não têm familiares, por issoestão habituados a vir jantar a Old Place

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no dia de Natal. Não sei o que irão fazereste ano e nem sei sequer se já se deramconta de que não há almoço.

Fui acometida por mais um daquelesinconvenientes rebates de consciência –tão injustos, tendo em conta que nadadaquilo era minimamente culpa minha!

– Agora que o Jude foi embora, quemme dera que a Edwina, a empregada dosmeus avós, ainda cá estivesse, poischeira-me que o almoço de Natal daminha avó vai ser um enorme desastre –queixou-se Jess. – E anda a exagerar emtudo. Acho mesmo que ela não temestaleca para isto.

– A ausência do teu tio parece de factoter tornado tudo mais difícil,

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debandando assim egoistamente quandodevia saber que toda a gente dependiadele!

– Pois, ele é um grande egoísta –concordou ela e suspirou. – Até passar oNatal com a Mo e o Jim era algo por queansiava, mas agora é tudo tão entedianteque ontem até fiquei satisfeita por ver atia Becca.

– Não gostas dela? – perguntei,surpreendida. – Eu achei-a muitosimpática.

– Gosto, mas ela só fala de cavalos ede pesca e de caça e não esteve lá nemdois minutos porque o vento estavademasiado frio para deixar o Nutkin narua.

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– A mim ajudou-me imenso com osconselhos que me deu sobre como tratarda Lady. Um cavalo é umaresponsabilidade muito grande quandonão se está habituado a tratar deles.

– Ela disse que a achou muitocompetente e capaz e que portanto nãoteria quaisquer problemas.

– Eu também acho que não terei, massempre é bom saber que posso contactaralguém que sabe bem mais sobrecavalos do que eu, caso surja algumproblema.

– A tia Becca disse que a Mo e o Jimlhe deixaram o enorme peru e tudo oresto para o jantar de Natal que íamoster – fez notar Jess com um olhar de viés

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debaixo da sua franja. – Não podiasfazer antes tu o jantar, Holly?

Fui apanhada desprevenida pelafranqueza dela.

– Não andaste a falar com o teu tioJude, por acaso?

– Não, pareceu-me apenas uma boaideia.

– Bom, a ti pode parecer, mas não foio combinado quando concordei emaceitar este trabalho! Faço este tipo detrabalhos no inverno precisamente paradescansar do muito que cozinho o restodo ano – expliquei-lhe num tom firme eo rosto dela ensombrou-se. – E lembras-te de eu ter dito que não comemorava oNatal? Na verdade, esforço-me ao

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máximo por ignorá-lo.– Ah, é verdade, é contra a tua

religião.– Estritamente falando, já não

professo qualquer religião – admiti –,mas os avós que me criaram apenascelebravam os aspetos religiosos daquadra: idas suplementares à missa eleituras dos evangelhos, portanto, não éuma coisa de que sinta propriamentesaudades.

– Queres dizer que quando eraspequena não havia presentes, nem umsapatinho na lareira nem nada? –perguntou ela, erguendo os seusespantados olhos castanhos para mim.

– Não, não havia nada disso, nem um

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jantar especial com imensa comida,embora a minha avó até fosse uma boacozinheira. As empadas de porco delaeram lendárias.

As empadas de porco poucoimpressionaram Jess face às outrasprivações por que passara na minhainfância.

– Não havia árvore, decorações ouPai Natal...?

– Não, embora secretamentecostumasse trocar presentes com aminha melhor amiga, a Laura. Noentanto, quando me casei, o meu maridoadorava o Natal, por isso celebrávamo-lo como toda a gente. Comprávamos amaior árvore que conseguíssemos atar

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no cimo do carro e carregávamo-la deluzes e decorações; pendurávamosgrinaldas e lanternas chinesas eenchíamos a meia de cada um decoisinhas... Era divertido.

Mas também tudo o que fizera com oAlan fora divertido...

– Então, porque paraste?– Porque ele morreu – disse sem

aviso. – Foi mesmo antes do Natal eparecia não fazer sentido celebrá-losequer tendo em conta o que aconteceu.

– E ele morreu de quê? – inquiriu elasem os constrangimentos típicos dosjovens. – E foi há muito tempo?

– Foi um acidente... faz oito anos nasegunda-feira.

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Era uma data que eu habitualmenteassinalava sozinha e sem alarde,embora, pelo andar da carruagem, taltalvez acabasse por não ser uma opçãoali, a não ser que não abrisse a porta etirasse o telefone do gancho.

– Que tipo de acidente?– Caiu pelo gelo a dentro num lago.– Eu também estou sempre a pensar

que os meus pais vão cair pelo gelo naAntártida e que um cachalote ou assimos devora – confessou ela.

– Isso é pouco provável. Seguramenteque eles sabem o que andam a fazer.

– Sim, mas a minha mãe tem tendênciaa andar de costas com a máquina defotografar.

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Bom, aquilo soava de facto um poucoarriscado.

– Uma vez, quase foi apanhada por umleão... e eu vi. Durante as minhas férias,quando eles estão em trabalho, eu vouter com eles onde quer que estejam, masdesta vez não pude.

– Pois, suponho que não fosse muitofácil chegar à Antártida – concordei. –Quando lá chegasses, provavelmenteestava na altura de voltares para trás.Andas num colégio interno, não andas?

– Sim, e até gosto muito. Tenho muitosamigos.

– Na escola costumavam fazer troçade mim porque nunca me enquadrei esempre fui mais alta que os meus

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colegas de turma, até mais alta que osrapazes. Havia um grupo de raparigasque me fazia a vida num inferno. Eu eramuito constrangida em relação à minhaaltura.

– Por vezes, também me acontece omesmo, mas todos temos um mentor como qual podemos falar e eles tratam detudo.

– Parece-me uma boa ideia. Quem medera ter tido uma coisa assim.

Chegáramos entretanto à aldeia e Jessdecidiu distribuir primeiro os palitos dequeijo, começando pela Old Nan, que,quando abriu a porta, era do tamanho deum gnomo embrulhado num xaile de lãtricotada. Nos pés trazia chinelos de

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tartã com pompons e «colarinho» devirar em redor dos tornozelos.

Jess apresentou-nos e disse:– Não nos podemos demorar, Nan,

porque vamos à loja e ao pub almoçar,mas a minha avó mandou-lhe maispalitos de queijo.

Old Nan aceitou o embrulho semgrande entusiasmo.

– Uma pessoa de vez em quando podiatrincar uma coisa mais saborosa –resmungou ela.

– Pois, então tente a Nan vir viver lápara casa. É só puré de batata grumoso,rice pudding de lata e, de momento,pouco mais – confidenciou Jess. – Pelomenos, amanhã sempre vão a Great

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Mumming num minibus para o jantar deNatal dos Idosos do Women’s Institute,não é?

– Se o tempo se aguentar, pois vem aíneve. Seja como for, também não é comojantar em Old Place. No WI usam molhodaquele em pó e ervilhas enlatadas,sabias?

– Também a minha avó. Mas esperoque esteja certa em relação à neve, poisnunca vi assim um nevão à séria.

– Cuidado com o que desejas. Vá, vãoandando, já que não entram. Aqui assimparada, escapa-se-me o ar quente todo.– Deu meia volta arrastando os pés efechou a porta.

– Ela fica um bocado rabugenta

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quando o reumatismo a ataca – explicouJess, alçando a perna por cima de umpequeno muro divisório e batendo naporta ao lado.

O vigário reformado, RichardSampson, era um homem pequeno, seco,de cabelo branco, olhos cinza-claros euma expressão ausente. Veio à porta como dedo enfiado no livro a marcar apágina e, por um momento, pareceudebater-se para reconhecer Jess, quantomais para assimilar a apresentação queela fez de mim. Depois, um encantadorsorriso transformou-o e apertou-nos amão. Ao contrário de Old Nan, pareceugenuinamente satisfeito com os palitosde queijo.

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– Ele esquece-se de comer e decerteza que pouco ou nada cozinha –explicou Jess, avançando para a terceirae última porta. – Por vezes, come umarefeição quente no pub, se o Henry lhebater à porta a caminho de lá.

– Falai no diabo – murmurei, pois ovelho jardineiro, tendo presumivelmenteescutado que alguém batera na porta aolado, estava já na soleira da sua porpura curiosidade.

– Boa tarde – disse-me, e depoisacrescentou para Jess: – Se isso é maisuma das infernais oferendas queimadasda Tilda, podes levá-la contigo!

– Estes não estão queimados –argumentou Jess. – E, se não os quer, dê-

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os ao Richard, ele parece gostar. Ah, elembre-o do almoço dos CidadãosIdosos amanhã e não deixe o autocarropartir sem ele. – Enfiou-lhe aencomenda nas mãos. – E agora temosmais coisas para fazer. Adeus, Henry.

– Mulheres! – rosnou Henry, fechandoa porta.

Passámos pela pequena igreja junto aoorganizado cemitério. Ao lado, ficavaum edifício de chapa ondulada verde-escura, pouco mais que um barracão naverdade, que, de acordo com um cartaz,era o salão paroquial, mas o resto daaldeia ficava do outro lado de umribeiro atravessado por uma pequenaponte de pedra, onde quase fomos

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atropeladas por um enorme e reluzenteveículo de quatro rodas motrizes quenela entrou com demasiada velocidade.

Travou e fez marcha atrás, quase nosderrubando de novo, e a janela lateraldesceu, revelando um par de carasperdidas e irritadas.

– Onde fica a estrada para GreatMumming? – exigiu saber o condutor, decabeça rapada e desprovido de pescoço,uma vez que o queixo embicavadiretamente com o peito. – O GPS dizque podemos descer para a autoestradapor aqui.

– Não pode ser este caminho, poisnão? – inquiriu a mulher ao lado dele,pousando uma mão cheia de garras azuis

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no rebordo do vibro. – Não devemos tervirado algures.

– Não, esta é a estrada para GreatMumming, mas apenas se for uma ovelha– disse Jess. – É por esse motivo que aspessoas não param de seguir os seusGPS.

– Estás a armar-te em espertinha? –reclamou o homem num tom beligerante.

– Não, está apenas a ser sincera –apressei-me a responder. –Aparentemente, este caminho não émuito mais que isso mesmo, por isso oGPS tem um erro. Será melhor daremmeia volta e voltarem por onde vieram.

– À esquerda no sopé do monte echegarão a Great Mumming –

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acrescentou Jess.– Oh, merda, que perda de tempo! –

exclamou o homem.Sem uma palavra de agradecimento, a

janela deslizou para cima, o carroarrancou em frente, inverteuruidosamente a marcha frente à igreja edepois passou por nós a toda avelocidade. Porém, desta feita jáprecavidas, passáramos a ponte a correre estávamos já no passeio.

– Encantador – comentei.– As pessoas a seguirem os GPS são

mesmo como ovelhas – comentou Jess. –Pelo menos, a maioria dos condutoresde camionetas olha para o caminho nocruzamento e percebe que se trata de um

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erro. Mas houve um uma vez que semeteu por ele e ficou entalado naprimeira curva. Foi o cabo dos trabalhospara o tirarem de lá, segundo o meu avô,e depois foi preciso refazer uma secçãodo muro de pedra.

A pequena loja ao lado do entaipadocafé Merry Kettle extravasava para opasseio com uma banca de fruta elegumes, sacas de batatas, cenouras elenha.

– Adoro esta loja! Mistress Comforttem de tudo.

– É de facto o que parece, sim –concordei. – Que hei de fazer com oMerlin?

– Há um gancho na parede para o

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prender e uma tigela de água – apontouela. – Ali, debaixo da mesa.

Preso, Merlin sentou-se num pedaçode cartão com um ar de resignação.Penso que ele já ali tinha estado.

A loja revelou-se um verdadeiroarmazém, pois abrangia grande parte doque no início fora provavelmente asegunda divisão da casa. Na América,penso que chamam a este tipo deestabelecimento uma «loja devariedades» e neste havia por certo umainfinita variedade de coisas amontoadas.

Mrs. Comfort era roliça, com umacara redonda e maçãs do rosto altas quelhe convertiam os olhos em ranhurassempre que sorria. O cabelo castanho e

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liso estava puxado para trás com força epreso à cabeça com um enorme pente deplástico cravado de brilhantes.

– Olá, Mistress Comfort, esta é aHolly, que está a tomar conta de OldPlace enquanto o tio Jude está fora.

– Pensei que aquele casal estava cá denovo, aquele que costuma vir? – disseela, olhando para mim com curiosidadeao mesmo tempo que eu baixava acabeça para evitar as botas de borrachasuspensas das traves do teto com cordel.

– Tiveram de ir embora porque a filhadeles teve o bebé muito mais cedo que oesperado – expliquei.

– Pena... Espero que a criança estejabem?

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– Não sei, não nos disseram nada.– Ora bem, então, em que posso

ajudar-vos? – perguntou ela com umbrilho esperançoso no olhar.

– Tem jornais?– Sobrou um Mail, mas já é o último.

Tive aí um grupo de condutoresperdidos e todos levaram um. O GPS éótimo para o negócio!

– Acabámos de nos cruzar com outro– disse-lhe Jess –, mas pôs-se a caminhoa grande velocidade assim que percebeuque estava enganado.

– Suponho que deva haver mais unsquantos no pub. Por vezes, acho que osDagger pagaram às pessoas do GPSpara mandarem os carros para aqui;

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agora no inverno fazem mais negócio emcafés e almoços do que costumavamfazer.

– O azar de uns é a sorte de outros –comentei eu e ela acenoufervorosamente com a cabeça.

A loja tinha a maior parte das coisasda minha lista, incluindo fruta seca.Podia assim fazer outro bolo parasubstituir o que desaparecera. Compreitambém mais farinha pois, uma vez querecebia visitas diariamente, mais valiaoferecer-lhes umas tradicionais tartes demincemeat, aproveitando assim osenormes frascos que os Chirk haviamdeixado.

Enquanto eu comprava tudo isto, Jess

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despendera o seu tempo e atenção àcoleção de frascos de rebuçados eestava a escolher uma mancheia deles deformato triangular e coresalarmantemente garridas e um saco degomas apelidadas de wine gums.

– E podes provar que tens mais devinte e um anos, menina? – perguntouMrs. Comfort num tom trocista.

– Ah, ah, muito engraçada – devolveuJess. – Sabe bem que não há nem umagota de vinho nas gomas.

– E como tem corrido o livro,querida? – inquiriu Mrs. Comfort,pesando os rebuçados na balança edespejando-os para um saco de papel,cujas pontas torceu.

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– Já vou no capítulo seis e osvampiros estão num festim noturno.

– Parece divertido.– Não para as raparigas das quais eles

se estão a banquetear, mas elas bem quemerecem – comentou Jess. – MistressComfort é poeta – confidenciou-me elaquando saímos da loja e desprendemosMerlin. – Há cá muitos escritores: eu,Mistress Comfort, o meu avô com osseus livros sobre o Natal e os livros deculinária da avó. O Richard tambémescreveu uns quantos opúsculos sobre asfestividades da Noite de Reis e o cavaloencarnado.

– Estou a ver que Little Mummingfervilha de atividade literária! –

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exclamei impressionada.

4 A palavra inglesa dagger quer dizer punhal, adaga.(N. da T.)

5 5 Outra designação para Pai Natal. (N. da T.)

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Capítulo 10

Tramada

Dou por mim agora a ansiar porver N todos os dias, o que me fazsentir desleal para com amemória do Tom. Por isso,quando fui à capela, malconsegui olhar o pai dele nosolhos. Porém, em breve eleestará bom o suficiente parapartir e as coisas voltarão a sercomo eram.

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Fevereiro de 1945

O Auld Christmas era uma pequenaestalagem com um enorme celeiro atráse um pátio de entrada empedrado noqual alguns veículos estavamestacionados. Agora que estava maisperto, reparei que o idoso da tabuletaparecia ter uma coroa de azevinho efolhas de carvalho, mas era difícil ter acerteza, pois as camadas de verniz que aprotegiam haviam escurecido bastante.

– Tens a certeza em relação ao cão? –perguntei enquanto entrávamos.

– Sim, anda – incitou-me Jess,empurrando a porta.

Descemos para uma escura caverna,

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iluminada numa das extremidades poruma ribombante lareira e na outra pelobrilho mortiço de uma máquina de jogo.Atrás do balcão encontrava-se umamulher ruiva e rechonchuda de cerca dequarenta e cinco anos; perto da lareiraestavam dois homens, obviamentelocais, comendo pão e queijo. Um parde estranhos ainda mais conspícuoestava sentado a uma mesa e lançaramum olhar reprovador a Merlin.

– O cão pode entrar? – perguntei àmulher atrás do bar. – É que MisterMartland disse...

– Oh, nós já conhecemos o Merlin! OJude está sempre a trazê-lo até cá e eleporta-se melhor que a maioria dos

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nossos clientes – disse ela, lançando umolhar intimidante aos forasteiros queresmungavam e acrescentando em vozalta: – E quem não gostar pode ir ao baraqui ao lado ou pegar nas perninhas efazer-se ao caminho.

As vozes reclamantes calaram-se deimediato.

A mulher limpou a mão a um aventalazul manchado de rosa e estendeu-ma:

– Nancy Dagger. O meu marido, Will,está na cave, a mudar as barricas, e aliperto da lareira está o velho pai dele.

Um homem minúsculo com uma barbabranca e comprida inclinou-se derepente para fora de uma cadeira comuma espécie de capuz como eu nunca

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vira e disse numa voz aguda eestridente:

– Isso mesmo, sou o Auld ManChristmas, sou eu! – E riuasmaticamente, como um par depequenos foles musicais. – Heh, heh,heh!

– Não ligue – disse Nancy. – Sabemosque está a tomar conta de Old Place nolugar dos Chirk, que estiveram cá antes.O Henry contou-nos tudo ontem à noite.Mas os Martland não passarem o Natalem Old Place é coisa que nunca se viu!– E abanou a cabeça. Depois lançou-meum olhar penetrante e acrescentou: –Mas, pensando bem, suponho que sejada família?

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– Não, nada disso, apenas trabalhopara a mesma agência que o Jim e a Mo.

– Pareceu-me ter as feições dosMartland, sendo alta e morena e tudo –insistiu ela, observando-meatentamente... Mas não podemosesquecer que o pub estava poucoiluminado.

– Não, não partilhamos qualquerparentesco e Mister Martland regressarápara a noite de Reis, pois eu parto nessamanhã.

– Ele devia era estar aqui agora.Sempre assim foi – argumentou ela. – Aspessoas daqui não apreciam muitomudanças.

– Foi porque ele discutiu com o Guy e

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não queria vê-lo – explicou-lhe Jess. –Mas eu acho que é injusto da parte delenão pensar no resto de nós.

– Bom, ficarmos aqui à conversa nãoresolve nada – concluiu Nancy. – Quequerem as senhoras? Vieram almoçar?

Eu pedi uma tarte quente e, após muitadeliberação, Jess fez o mesmo.

– As tartes não são o que mais gosto –explicou ela –, mas comida fria já eucomo muito em casa da avó, por issomais vale comer qualquer coisa quenteenquanto posso.

– Presumo que os velhotes vãoestranhar muito este ano, pobrezitos –comentou Nancy. – Posso fazer-te umacaneca de chocolate quente, queres?

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Com natas por cima.– Oh, sim, isso seria maravilhoso,

obrigada! – disse Jess. – Ah, e o avôdeu-me dinheiro para pagar também oalmoço da Holly.

– Foi um gesto muito simpático –agradeci, enternecida... e tambémsentindo-me irracional econstrangidamente culpada depois doscomentários de Nancy.

Era um facto que tinha já toda acomida para o jantar de Natal e cozinhá-la não seria um problema... portanto,estaria eu obstinadamente agora acastigar Noël, Tilda e Jess apenasporque Jude me fizera eriçar? Estaria eua ser tão egoísta quanto ele?

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Custava-me assim tanto colocar asminhas inclinações pessoais de lado econvidá-los para uma refeição?

Pronto, não valia a pena, teria mesmode o fazer!

Podia encarar a coisa como umprojeto e incluir um capítulo sobre oNatal no meu livro, afinal de contas!

* * *

Quando chegámos à casa do guarda,entreguei a garrafa de xerez e disse:

– Estive a pensar e parece-me umapena tão grande desperdiçar aquelacomida toda que os Chirk deixaram parao Natal. É que não vou conseguir comê-la toda. Portanto, embora seja assim em

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cima da hora, estava a pensar se nãoquerem vir todos almoçar comigo no diade Natal.

– Sim, sim! – exclamou Jess aos pulosnas suas enormes botas pretas de canoalto.

– Mas a Holly não comemora o Natal,portanto, com certeza que isso seria ircontra os seus princípios e umaimposição – argumentou Noël.

– Não tenho de comemorá-lo, apenasde cozinhá-lo – assegurei num tomanimado. – Será uma coisa diferentepara variar. E isso também é bom.

– Bem, nesse caso... – disse ele,olhando para a mulher.

– É muita amabilidade da sua parte –

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disse Tilda. – É claro que estavapreparada para fazer um almoço festivo,mas tem razão acerca do desperdício dacomida dos Chirk.

– Ótimo, então, está combinado –concluí. – Se Mister Martland voltar atelefonar-vos, assegurem-lhe que Lady eMerlin estão muito bem, caso elecontinue preocupado, e informem-no damudança de planos, se faz favor. Eleontem sugeriu que eu levasse adiante oconvite dos Chirk, portanto, não teráquaisquer objeções.

– Ah, sim? Que amável e atencioso daparte dele – disse Noël.

– Foi, não foi? – respondi com umligeiro azedume.

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– É claro que para si representarámais trabalho do que aquele com queinicialmente contava – fez Nöel notar. –Suponho que, de uma forma habitual,cobre bastante pelo serviço de catering,não é?

– Sim, mas na verdade vocês até mevão prestar um favor, pois ainda tenhode escrever o capítulo sobre festas deNatal para o meu livro, portanto, seráuma espécie de pesquisa.

– Talvez eu até lhe possa dar algumasdicas úteis para o seu livro – sugeriuTilda graciosamente e eu agradeci-lhe.

– Penso que devia receber um poucomais. Eu falo com o Jude acerca disso –insistiu Noël.

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– Não, por favor, não o faça. Tenhotodo o gosto em cozinhar o jantar e éclaro que cobrarei a Mister Martlandqualquer comida extra que tiver decomprar.

Noël esfregou as mãos nodosas decontente.

– Ora, ora... os Martland vãocomemorar o Natal juntos, afinal decontas. Esplêndido! E estou a incluí-lana família, minha querida, pois é jácomo se fosse uma de nós.

– Nancy Dagger achou que a Holly erauma Martland – lembrou Jess.

– Só porque sou alta e morena – refericom um sorriso. – E a iluminação nopub também não ajuda, não é?

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– Suponho que sim – concordou ele –e, a propósito, trate o Jude peloprimeiro nome. Não vale a pena sermosformais tendo em conta que vamos ver-nos muitas mais vezes.

– Mas eu não vou ver sequer MisterMartland – fiz notar. – Se bem que, se otelefone funcionar, presumo que oescutarei bastantes mais vezes.

– Trate-o por Jude, ele não é dado aformalidades – insistiu Tilda. – É assimdo tipo artístico, já sabe.

– Pois, não sei, em termos de arte, omais longe que vou é na decoração debolos... E agora me lembro que os Chirknão deixaram nenhum bolo de Natal. Émelhor ir andando e começar a fazer um.

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Ainda bem que acabei de comprar frutaseca e casca cristalizada!

– Mas já é um bocado em cima dahora e não ficará muito saboroso –objetou Tilda. – Eu tenho um boloDundee numa lata que a Old Nan nosdeu, posso levar esse.

– Agradeço, mas não vale a pena. Eutenho uma receita rápida em que a frutaé macerada numa bebida alcoólicadurante dois dias e o bolo fica com umsabor ótimo. Se fizer isso hoje, aindapoderão ficar bastante tempo de molho.

– Ótimo – disse Jess. – E de qualquermaneira disseste que ias fazer mincepies.

– Sim, também. Importava-se que

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levasse este cesto emprestado, Tilda? Éque comprei muito mais coisas do quecontava. A Jess foi de uma grande ajudaa carregar tudo. Ela é que trouxe amochila, e estava bem pesada.

– Linda menina – elogiou-a Noël.– E eu vou ajudar-te a pendurar as

decorações – ofereceu-se Jess.– Decorações? – repeti, não tendo

pensado em mais nada a não ser nacomida, na bebida e na tarefa de limpara sala de jantar.

– Sim, as decorações estão no sótão ehá azevinho e hera nos bosques comfartura.

– Isso não me tinha ainda ocorrido –disse para me salvaguardar. – Deixa-me

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primeiro adiantar a parte da cozinha.– Está bem, e depois tratamos disso –

insistiu ela. – No sótão há uns baús comroupas velhas magníficas que talvezqueiras ver também... embora eu naverdade já não tenha idade para mefantasiar.

– Logo se vê, então.Tilda, subitamente com um ar muito

mais alerta e resplandecente, rodou aspernas para fora do sofá e enfiou os pésnum minúsculo par de chinelos de saltoalto de veludo preto, debruado a penasde marabu rosa.

– Que quer que nós levemos? Temosuma caixa enorme de crackers deexcelente qualidade e o Noël tem a

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chave da adega, é claro, portanto, podearranjar-nos algo decente para beber.

– Se tem a certeza que Mister... querodizer, Jude... não se importa?

– Não se importa nada, é a maisgenerosa das almas.

Até então, não vira sinal de mais nadaa não ser de egoísmo, mas talvez, paraalém de adegas escondidas, odesconhecido Jude tivesse qualidadesocultas também.

Porém, no que me dizia respeito,podiam permanecer ocultas: nunca antesum homem me desagradara tanto só pelosom da voz! E agora, por causa dele, aoinvés de passar o aniversário da mortedo Alan em calma contemplação, estaria

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afadigada com os preparativos para umafesta.

Levantei-me.– Bom, se me dão licença, é melhor ir

andando. Tenho muito para fazer.

Exausto, Merlin retirou-se para o seucesto junto ao Aga e ficou a observar-mecom os seus olhos cor de âmbarenquanto eu listava tudo aquilo de queiria necessitar antes do dia de Natal.

Viera todo o caminho de regresso apensar nisso: decidir o menu –tradicional –, dar início ao bolo e tirar oenorme presunto que vira na arca paradescongelar, encontrar o faqueiro e oserviço de mesa... e limpar a sala de

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jantar e a casa de banho do piso térreotambém.

Pelo menos tinha já limpo a sala deestar!

Ignoraria a parte acerca dasdecorações. Jess podia tratar disso, sequisesse muito, embora a mim meparecesse que, por um dia apenas, nemvalia a pena.

Encontrei uma enorme tigela num dosarmários e despejei nela a fruta seca e acasca cristalizada e cortada quecomprara naquele dia. Acrescentei umassultanas e um pacote de amêndoas àslascas – apenas um mês fora da data devalidade – que estavam no armário.

A esta mistura juntei o conteúdo

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escorrido e cortado de um frasco decerejas de cocktail e o brande dagarrafa da sala de jantar, temperado comum pouco de rum.

Cobri então a tigela com películaaderente e coloquei-a numa prateleira nadespensa, riscando no final essa datarefa da minha cada vez mais extensalista de afazeres.

Planear e organizar tudoatempadamente é a chave para o sucessode qualquer festa – e eu deixo isso bemclaro logo na primeira página do meulivro!

Não fiquei muito surpreendida quandoJude telefonou logo a seguir a ter dado a

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farelada quente a Lady e uma mancheiade biscoitos a Billy, fechando a cocheiraaté ao dia seguinte. O vento amainara,permitindo que uns quantos flocos deneve flutuassem como penas, portanto,presumivelmente, as linhas telefónicasnão estavam a ser abanadas de um ladopara o outro.

– Jude Martland – anunciou elebruscamente, como se eu não tivesse jáadivinhado quem seria.

– A Lady está ótima, acabou de comera farelada e está quentinha e confortávelcom o Billy ao lado dela – afirmei antesque ele tivesse tempo de perguntar.Desta vez estava determinada a nãopermitir que os modos autocráticos dele

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me irritassem, mantendo a minhahabitual calma e composturaprofissional. – E o Merlin tomou ocomprimido para a artrite ao pequeno-almoço e acabei de lhe dar uma boaescovadela, que bem precisava, apropósito.

– Ah... certo. – Soava ligeiramentedesconcertado. – Mas não era isso queeu ia dizer. Acabei de falar com Noël eTilda... Da última vez a ligação estavapéssima.

– Eu sei, foi por causa do vento.– Fiquei a saber que concordou fazer

o que lhe pedi e cozinhar o jantar deNatal para a família?

– Sim, mas apenas porque me

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encontrava numa situação impossível enão me restava alternativa. Mas aresponsabilidade era sua, de olhar poreles todos, não minha, que agora tenhode apanhar os cacos depois da suadebandada intempestiva.

– Eu não debandei intempestivamente!E, seja como for, o motivo por quedecidi passar aqui o Natal não lhe dizrespeito, e nem estou a entender porqueestá a fazer um bicho de sete cabeçaspor causa de um jantar de Natal, tendoem conta que já foi tudo deixado pelosChirk e ainda por cima é cozinheira!

– Chef – corrigi num tom gélido,embora de uma forma geral não meincomode ser tratada por um título ou

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outro. – E o senhor obviamente não tema mínima noção do trabalho que issoenvolve. É que não se trata apenas depreparar, cozinhar e arrumar a cozinha,mas também de limpar a sala de jantarque está imunda e a casa de banho dopiso térreo, que parece ter sido palco deum combate de luta na lama.

– Nesse caso, peça à... como é que elase chama... Sharon, para ajudar –decidiu ele.

– Já se deve ter esquecido que ela sedemitiu.

– Ah, pois é... Bom, mas também nãodeve estar assim tão mau, pois não? Estáa exagerar! Uma passagem rápida comum pano do pó e um aspirador...

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– Escute, estou habituada a manter aspartes da casa que estou a usar limpas earrumadas, embora habitualmente nãonecessitem de limpezas profundas, masisso é tudo o que o meu contratoestipula, para além de cuidar dosanimais! Pelo contrário, quando cozinhopara festas os meus clientes não esperamque faça mais nada a não ser produzirrefeições deliciosas... e os meushonorários para tal são extremamenteelevados!

– Oh, estou a ver! Suponho então queé disso que se trata, de tentar extorquir-me mais dinheiro?

– Não, não é! E de qualquer maneiranão teria como pagar-me – barafustei.

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– Segundo a sua empregadora daHomebodies, já lhe vou pagar o dobroda taxa habitual pelo serviço prestado,portanto, às tantas, sairia mais baratomandá-los comer a um bom restaurantede táxi – ponderou ele num tommelancólico –, só que eles não iriam.Parecem estar convencidos de que osconvidou por ser uma alma bondosa.Não fazem ideia de como é fria emercenária, Mistress Brown.

– Não sou nem um pouco fria nemmercenária, apenas não gosto de sercolocada numa posição em que tenho deapanhar os cacos da confusão quedeixou depois de ter virado as costas àssuas responsabilidades. E os idosos que

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vivem nas casas da igreja e quehabitualmente também passam o dia deNatal aqui?

– Enviei um cabaz de Natal a cada umdeles – fez ele notar indignado. – E aoHenry também.

– Que caridoso da sua parte, MisterMartland!

– Sabe, penso que podia começar atratar-me por Jude, agora que já nosinsultamos e tudo – sugeriu ele. – Onome Holly assenta-lhe na perfeição:espinhosa e intransigente!

– E você é autoritário e desagradável.E não lhe parece que está a fazer muitassuposições infundadas acerca de umapessoa que não conhece?

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– Diz o roto ao nu! Está a fazer omesmo.

– Não, baseio a opinião que tenho desi em provas sólidas. No entanto,acredite ou não, a única razão por queconcordei em cozinhar o jantar foiporque gosto do seu tio e da sua tia e daJess e tive pena deles. A Tilda já nãoestá capaz de semelhante tarefa. Maspense o que quiser. Entretanto, julgo quenão temos mais nada a dizer um aooutro. Boa noite... Jude.

– Não se atreva a desligar-me otelefone de novo – rugiu ele enquanto eufazia precisamente isso.

O telefone tocou de novo quase deimediato, mas eu ignorei-o. Mais tarde,

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quando planeava ligar a Laura, nãofuncionava.

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Capítulo 11

Não Há Mal

Hoje perguntei ao N como era acasa dele e ele disse que erauma casa antiga nos montes –mesmo abaixo de um dosbeacons6, na verdade. Por issoperguntei se era Rivington Pike,porque me lembro de em miúdalá ter ido num passeio dacatequese, mas ele riu e disse

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que não, que era bem maispequeno que esse monte e que apequena torre de pedra no cimodele não era grande coisa.

Fevereiro de 1945

Na noite anterior, na cama, estivera aler os diários da avó até tarde, cada vezmais convencida de que N. M. se viria arevelar ser o Ned Martland que elaamara e perdera – e a mesma pessoa quea ovelha negra de Old Place e, portanto,parente chegado do irritante Jude. Adescrição da casa fora o argumentodecisivo.

Por uma extraordinária coincidência,o destino conduzira-me ali, mas

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pensando bem, também é costume dizer-se que a realidade é sempre maisestranha que a ficção.

Percebi que a minha avó estava cadavez mais fascinada por ele – querapidamente se tornara simplesmente«N», por isso, presumivelmente,tratavam-se agora pelo primeiro nome –,mas a mim ele soava-me umnamoriscador inveterado. A minha pobree inocente avó não teria tido qualquerhipótese...

Contudo, tendo em conta que antes daspróximas entradas gastou duassoporíferas páginas com reflexõespiedosas acerca do estado do mundo,talvez até se tenha revelado totalmente

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inexpugnável.Havia uma fina camada de neve

quando saí para os estábulos, mas,recordando o que Becca me dissera,coloquei Lady e o seu malcheirosoamigo no cercado, onde ela começou deimediato a dar patadas na neve parapastar a erva.

Já começo a habituar-me a isto e nãotardei a ter a cocheira limpa e com umanova camada de palha. O exercício fez-me ficar com as faces rosadas, portanto,presumo que me tenha feito bem. Depoisdisso, Merlin e eu demos um passeio atéao cavalo encarnado, que agora estábranco, como tudo o resto, embora sejaainda possível ver os altos e baixos dos

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seus contornos.Encontrei um lugar abrigado por trás

de uns arbustos de giesta e telefonei aLaura do meu telemóvel. Acabara de irlevar os miúdos a casa da mãe parapassarem o dia e ela poder descansar.

Perguntei-lhe como estava e pareceu-me radiante, como ficava sempredurante a gravidez.

– Espero que a minha corra assim tãobem, quando eu seguir o plano A naprimavera – disse. – Estava a pensarcozinhar o verão todo para juntardinheiro e depois retirar-me até o bebéchegar. Partindo do pressuposto quefunciona, é claro, uma vez que na minhaidade não há garantias.

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– Não conheceste nenhum homemsimpático por aí? Fazia figas para queconhecesses e desistisses dessa ideiamaluca da inseminação artificial –referiu ela esperançosamente.

– Conheci. Noël Martland é amoroso,mas idoso e casado. E penso que podedizer-se que conheci Jude Martland,pelo telefone, mas fico mesmo contentepor já cá não estar quando ele chegar,pois é egoísta, mandão, autocrático...horrível! Acho mesmo que ele só sepreocupa com o cavalo e o cão.

– Pareces ter deduzido muita coisaacerca dele em apenas dois telefonemas– referiu ela, divertida.

– Discutimos sempre. O homem é

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insuportável. E tem assim uma voz graveque ribomba pelo telefone.

– Quê, uma daquelas vozes profundasque nos faz vacilar as cuecas? –perguntou ela toda interessada. – Aqueletipo de voz que vibra pela nossa colunaabaixo e acima?

– Laura! – exclamei e depois larguei arir. – Sim, dessas, e suponho que seriabastante sensual se ele não fosse tãoinsolente. E, infelizmente, eu pareço nãoconseguir impedir-me de lhe respondercoisas horrorosas, o que não é nada omeu género! De uma forma geral,consigo manter uma relaçãoprofissional, independentemente daprovocação. Mas não são apenas os

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telefonemas que me fazem antipatizarcom ele, é também ver como as açõesdele afetaram toda a gente aqui.

E contei-lhe que ele virara as costasao dever de cuidar da família e dosidosos da aldeia num acesso demelindramento depois de ter visto oanúncio do noivado entre o irmão e asua ex-noiva.

– Presumo que ficou tão perturbadoque nem pensou bem no que ia fazer –sugeriu Laura.

– É possível, mas podia terregressado ao dar-se conta do quefizera, não podia? E depois partiu dopressuposto de que, uma vez que osChirk tinham convidado os tios dele

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para o jantar de Natal, competia-mefazer o mesmo... e, na verdade –acrescentei – é o que vou fazer.

– O quê, cozinhar o jantar de Natalpara a família dele?

– Sim, os Chirk deixaram um enormeperu e pudding. E depois TildaMartland é tão frágil que não me pareceque deva sequer tentar fazer um grandejantar e, por último, a neta está comeles. Assim que me dei conta disso, nãohavia outra coisa a fazer a não serconvidá-los.

– És tão querida, Holly!– Não sou, não, a sério. Não queria

fazê-lo, só que às tantas comecei a acharque estava a ser tão egoísta e má quanto

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o Jude. – Suspirei. – Portanto, agoratenho de dar um jantar natalício defamília numa casa que não me pertence eque está a precisar de uma boa limpeza,usando comida deixada por terceiros!

– Oh, tu dás a volta a isso. Conseguessempre.

– Também tivemos alguma neve eestou a ver que ficaremos isolados acontinuar assim. Nunca vi uma estradatão íngreme, estreita e cheia de curvascomo a que conduz à aldeia! Por sorte,há uma loja bem apetrechada e comidasuficiente em casa para alimentar umexército, se uma pessoa não se importarde comer muito peixe e caça.

– O Jude caça, é?

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– Não, a tia dele, Becca, a que me deuas dicas sobre cavalos. E também pesca,por isso deve ser ela a responsável pelatruta e pelo salmão e pelo lúcio inteiroque está na arca congeladora.

– Um lúcio? Como sabes que é umlúcio?

– Está tudo etiquetado. Nunca cozinheilúcio, mas é suposto ser uma iguaria...Tenho uma receita de lúcio recheado nomeu livro sobre culinária inglesa antiga– acrescentei pensativamente.

Os meus livros de culinária preferidosvão sempre comigo para todo o lado,bem como o meu gigante caderno deapontamentos, e ainda bem. É deespantar o que às vezes me pedem para

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cozinhar!– Estás a falar a sério?– Sim, claro. Não conseguiria comer

um sozinha, é um peixe bastante grande,portanto, teria de voltar a convidar osMartland para me ajudarem a comê-lo.No dia de Natal será peru e todos ostradicionais acompanhamentos, é claro,porque é disso que eles estão à espera.

– É interessante, se pensarmos bem,que tenhas fugido da ideia de passar umNatal em família comigo, mas tenhasacabado a ter de ser anfitriã de um!

– Sim, tens razão, é de facto irónico –concordei. – Seja como for, depois doNatal as coisas acalmarão e podereirelaxar e voltar a pegar no meu livro.

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Entretanto, o Jude acusou-me de tentarextorquir-lhe dinheiro por cozinhar paraa família, quando nem sequer planeiocobrar o que quer que seja! Portanto,vou telefonar à Ellen e dizer-lhe que, seele telefonar, não lhe diga quanto cobropor cozinhar para festas. Eu disse aoJude que o dinheiro dele não chegariapara pagar os meus honorários.

– Mas ele não é rico? Pela tuadescrição, a casa parece ser grandiosa!

– Grandiosa, mas negligenciada. Só ainútil da mulher a dias é que tratava dacasa e ela ainda me disse que ele lhepagava abaixo da tabela, por isso, ou éforreta ou pobre... Ou talvez ambas ascoisas. Mas os artistas não costumam ter

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montes de dinheiro, pois não?– Eu acho que ele não tem problemas,

é bem conhecido no ramo. – Deteve-seentão. – É fim de semana! A Ellendetesta que lhe telefonem ao fim desemana, a não ser que seja umaemergência, não é?

– Temos pena.– E vai ficar furibunda se tu

engravidares e depois meteres baixa! Ésa melhor cozinheira dela, e a de maiorconfiança. Foi ela que mo disse.

– Paciência. Laura, lembras-tedaqueles diários de guerra da minhaavó?

– Sim, e pelo que já relataste,parecem fascinantes.

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– Estão a ficar ainda mais fascinantes– disse e contei que me parecia queestava a desenvolver-se um romanceentre a minha avó e um dos novosdoentes e que cada vez estava maisconvencida de que o Ned Martland queela outrora amara era o irmão mais novode Noël Martland.

– Parece de facto muito provável –concordou Laura. – Que coincidênciaque estejas precisamente aí. Parecemesmo um romance!

– Foi o que eu pensei, embora espereque não seja uma tragédia, pois o irmãode Noël parece ser a ovelha ronhosa dafamília. Terei ainda mais motivos paradetestar Jude Martland se o tio dele

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tiver partido o coração da minha avó!– Diz-se que toda a gente tem um

romance dentro de si, não é? Eu diriaque o da tua avó seria uma coisa assimmais composta, estilo Mistress Gaskell.

– Sim, é o que espero. E não meparece que tenha um romance dentro demim, mas sou capaz de ter um livro deculinária... Isto se alguma vez chegar ater tempo para o terminar, – acrescenteiamargamente.

– Como está a correr?– Não a grande ritmo, pois tenho tido

muito que fazer, não tem havido dia quenão tenha visitas. E, quando tenho algumtempo livre, os diários da avó sãodemasiado fascinantes para lhes resistir.

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– Bom, liga-me se descobrires maisalguma coisa de interessante!

Estava a ficar gelada entretanto equando liguei a Ellen fui atendida pelovoice-mail, por isso deixei umamensagem e dirigi-me a casa.

Mexi a fruta embebida no brande ecomeçava já a largar um aromadelicioso: não há como enganar comesta receita.

Consultando a minha lista de afazeres,cada vez mais comprida, pensei que omelhor seria arregaçar as mangas ecomeçar a limpar sob o princípio defazer primeiro o que menos se temvontade de fazer.

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Era já evidente para mim que osJackson, o casal idoso que se reformaradepois da morte do patriarca, gostavammuito da casa. O armário da roupabranca, onde se guardavam toalhas demesa, panos e guardanapos, cheirava asaquinhos de lavanda e um abundantefornecimento de materiais de limpezarecheava as prateleiras da lavandaria.

Enchi um balde de esmalte creme comtudo o que achava que iria precisar ecarreguei-o até à sala de jantar, emconjunto com o aspirador vertical e umespanador de penas de cabo comprido eligeiramente na muda.

Começa sempre de cima para baixo:foi uma lição que a avó me ensinou.

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Tratei das teias de aranha e continueipelos lambrins, depois liguei oaspirador na potência mínima e aspireialguma da poeira das cortinas com otubo da mangueira. Tinha já tratado dosmóveis e estava a lavar o chão quandoJess apareceu de repente.

Quase tive um ataque cardíaco quandoavistei a figura escura dela com o rostopálido, em silêncio na soleira da porta.Gritei e ela disse:

– Assustei-te? Eu bati à porta, mascomo tinha a chave do avô e tu nãorespondeste, resolvi entrar. A avómandou-me perguntar se precisavas deajuda. Não que eu seja fã de tarefasdomésticas – acrescentou ela

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sediciosamente.– Eu também não, mas adoro o cheiro

de uma divisão acabada de limpar. Seriaótimo se me pudesses ajudar. Já quaseterminei aqui e ia tratar do solário e dacasa de banho a seguir, portanto, sepudesses pegar no espanador e tirar asteias de aranha dos cantos, seriaestupendo.

– Ah... Está bem – concordou ela,animando-se ligeiramente, talvez porquenão lhe estendi de imediato o aspirador.

Merlin foi atrás dela. Mais um quenão gostava do aspirador.

Terminei o chão, fui buscar oscandelabros de prata e o tabuleiro elevei-os para a lavandaria para os

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limpar mais tarde. Fui então ver comoestava Jess a safar-se.

– O Merlin come aranhas – informou-me ela. – Deve achar que são biscoitoscom pernas.

– Ótimo, eu detesto-as.O principal contributo da Jess para as

limpezas a seguir a isso foi entreter-meenquanto eu trabalhava com pormenoresdo enredo do seu livro de vampiros, atéque por fim endireitei as minhas doridascostas e declarei:

– Intervalo para o almoço.– Estás toda mascarrada e a suar!– A culpa é do teu tio que deixou a

casa chegar a este estado... Devia tervergonha.

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– Acho que ele nem sequer se deuconta – disse Jess. – Quando está atrabalhar fica absorto, e passa a maiorparte do tempo a trabalhar. Mesmoquando não está, dá para perceber queestá ainda assim a pensar nisso. Quevais almoçar?

– Nada de emocionante... Umaomeleta, provavelmente. E tu?

– Só Deus sabe – respondeu ela numtom melancólico. – Provavelmente, sopaenlatada. E terei de ser eu a aquecê-la,hoje a avó está cansada e o avô éimprestável neste tipo de coisas. – Pôs-se de pé. – Amanhã talvez seja melhorvir ajudar-te a fazer as camas. Naverdade, foi por isso que a avó me

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mandou, para te dizer que não teesquecesses de arejar os quartos.

– Camas?– A avó disse que seria muito mais

conveniente se dormíssemos aqui nanoite de Natal.

– Conveniente para quem? –perguntei, sobressaltada. Estava crentede que o convite da Mo e do Jim foraapenas para jantar e não me recordavade ninguém ter mencionado dormidas emOld Place...

– Para ti, é claro, para não teres denos levar de carro a casa. E elesdisseram à tia Becca que o Natal estavade novo de pé, por isso ela também vem.

– Quê... para ficar?

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– Sim. – Contou pelos dedos. – Sãoentão três quartos, certo?

– Parece que sim – respondi num tomdesanimado. – Oh, que alegria! Sim, émelhor vires amanhã ajudar-me, poisassim terei de limpar os quartos antes defazermos as camas.

Teria também de rever o menu, poispelos vistos teria de cozinhar mais doque apenas o jantar de Natal! Ainda bemque o calor da enorme lareira chegaraaos quartos do piso de cima e expulsarao ar frio, à exceção do quarto do donoda casa, o quarto do Barba Azul, comoLaura lhe chamara. Se estivesse húmidoe frio quando ele regressasse, a culpaera apenas dele.

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– O teu tio Jude telefonou ontem ànoite, por isso presumo que o telefoneesteja de novo em funcionamento.

– Telefonou? Cá para mim gosta de ti!– Não, parece-me bem que seja o

oposto.– A tia Becca voltou a passar lá por

casa mais tarde para dizer que uma vezque o jantar de Natal sempre ia para afrente, ela dera um pulo à aldeia paraavisar a Old Nan e o Richard.

– Oh, meu Deus!– Isso constitui um problema?– Oh, não – assegurei sem nenhuma

convicção. – Quero dizer, depois deansiar por umas semanas calmas edescontraídas sozinha, devia estar

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felicíssima por agora ir ser a cozinheira,mulher a dias e faz-tudo de uma festa naqual toda a gente, à exceção de ti, é tãoidosa que provavelmente não será degrande ajuda, não devia? O que te deusemelhante ideia?

Jess esboçou um sorriso.– Sei que estás a brincar, e vai ser

muito mais divertido que no ano passadoem que o tio-avô Alex estava muitodoente e o Guy e o Jude discutiram porcausa de o Guy andar a namoriscar aCoco, muito embora o Guy namorisquetudo o que tiver saias. A tia Becca disseque ficou surpreendida quando viu oanúncio do noivado dele com a Coco,porque, embora ele sempre quisesse o

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que o Jude tinha, perdia o interesseassim que o alcançava.

Tal pareceu-me uma observação muitoperspicaz por parte de Becca.

– Uma síndrome de Caim e Abel? –inquiri, interessada, mas ela olhou paramim sem entender.

– Detesto o Guy, está sempre a irritar-me e nunca me dá um presente, limita-sea dar-me dinheiro.

– Isso é um presente, apenas significaque ele não faz a mínima ideia do que tuqueres.

– O Jude habitualmente dá-me umaprenda, ainda que por vezes seja umpouco estranha. Mas suponho que destavez nem pensou nisso, tendo em conta

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que largou tudo e se pôs a milhas.– Ele disse que enviou cabazes de

Natal à Old Nan e ao Richard, portanto,de certeza que se lembrou de ti também.

– Sabes – disse ela com um ar dequem fizera uma importante descoberta–, gosto mais do Jude que do Guy, aindaque ele seja mais rabugento! Quando dizque fará uma coisa, fá-la. E, quando estácá, deixa-me entrar no estúdio dele emexer na pasta de moldar e também mevai ensinar a soldar.

– Ora aí está uma habilidade quepoucas raparigas da tua idade têm.

– As horas que já são! – exclamou eladando um pulo – É melhor ir andandoantes que a avó comece a tentar abrir a

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lata sozinha.– Amanhã eu levo-vos sopa caseira –

prometi. – Costumo ter sempre umapanela feita, mas desde que chegueiparece que ainda não tive tempo paranada, por isso de momento não tenho.

Fazer sopa e dar uma volta aosarmários da cozinha ocupou-me a maiorparte do resto do dia e nenhumtelefonema de Jude Martland arruinou aminha tranquilidade... até que resolveutelefonar bem tarde, quando mepreparava para ir dormir.

– Mandei um e-mail à sua patroa daHomebodies a perguntar-lhe quantoeram os seus honorários como chef –

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disse ele sem qualquer preâmbulo. –Meu Deus, não sei quem conseguesuportar aqueles preços!

– Suponho que ela lhe terá fornecido atabela semanal, mas eu disse-lhe que osmeus préstimos não eram baratos. – E émesmo a cara da Ellen tentar extorquirmais dinheiro a um cliente sem sequerme consultar!

– Se a isso acrescentarmos o dobro dataxa dos serviços de house-sitting, éextorsão – disse ele. – E não vai fazernada que milhões de mulheres não façampelas suas famílias de graça no Natal.

– Fazem-no por amor, e dá que pensar,não dá? O Natal representa sempretrabalho árduo para as mulheres.

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– Não foi isso que eu quis dizer...embora talvez tenha razão – concordouele de má vontade.

Preparava-me para lhe dizer que nãofazia qualquer tenção de lhe cobrar oque quer que fosse, para além dotrabalho de tomar conta da casa, e quefalaria com a Ellen em relação a isso,mas algo me deteve. O mais provávelera que ele não acreditasse em mim.

– Queria mais alguma coisa outelefonou apenas para se queixar dospreços da Homebodies?

– Telefonei pelo puro prazer deescutar a sua voz – respondeu elesarcasticamente e deixou-me penduradano telefone: desligara-o na minha cara.

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Caí na cama exausta e irritada emigual medida e as páginas que li dodiário da avó não me serviram deconsolo, uma vez que eram evidentessinais ominosos de onde as coisas iriamparar:

Esta manhã, a Irmã apanhou-mena risota com N e deu-me umvalente raspanete. Fiquei muitoperturbada com o sucedido e foiuma sorte não ter sidotransferida daquela enfermaria.N foi um querido e asseverouque me compensaria assim queestivesse bem de novo, emboranão tenha dito de que forma...

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Ainda assim, talvez viesse a ter aoportunidade de descobrir mais acercade Ned Martland durante o Natal, daboca de Noël, portanto, não há mal quebem não traga, ainda que seja um bemrelativo.

6 Antigo sistema de sinalização e aviso. Em locaiselevados previamente identificados, alguns dos quaistinham estruturas de pedra para observação e abrigo,eram acendidas fogueiras em caso de ataqueiminente. (N. da T.)

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Capítulo 12

Frutado

O N recebeu alta hoje e foienviado para casa paraconvalescer, porém, antes de irembora, agarrou-me pela mão esuplicou que me encontrassecom ele na minha folga.Contrariando a minha sensatez,acabei por concordar, emboratenha estipulado que fossealgures longe dali, pois não

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desejo ser alvo de mexericos porparte das outras enfermeiras.

Fevereiro de 1945

A neve do dia anterior tinha jáderretido ao final do dia, mas acaboupor congelar durante a noite e a camadade neve fresca que caiu por cima tornoutudo bastante traiçoeiro lá fora. Estavapreocupada com Lady e telefonei aBecca a perguntar se fazia bem em soltá-la tendo em conta o empedrado do pátio.

– É claro – disse ela, e tinha razão,pois Lady atravessou o pátio compassos pequenos e cautelosos, como sefosse algo que fazia há muitos anos... ede facto até fazia.

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Becca dissera também que estavaansiosa pelo dia de Natal. Eu pareciaser a única que não estava. No dia emque liguei, apanhei-a de saída para aigreja. Aparentemente, o vigário vem deGreat Mumming uma vez de quinze emquinze dias para dizer missa aqui, e eranaquele dia. Antes de Becca desligar otelefone, ouvi os sinos tocarem àdistância.

A fruta embebida no brande para obolo de Natal cheirava deliciosamentequando a levei para a cozinha e comeceia reunir e a pesar o resto dosingredientes, que é a parte da receitamais demorada, em conjunto com untar eforrar a forma do bolo. Felizmente,

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havia uma boa seleção de formas detodas as formas e tamanhos e encontrarauma grande e adequada no armário.

Assim que enfiei o bolo no forno, bemcomo algumas mince pies para oferecerao meu permanente fluxo de visitasesfomeadas, sentei-me a descansar comuma caneca de café para me prepararpara mais uma sessão de limpeza, destafeita dos quartos.

Começava a ficar fartinha daquilo – jápara não falar de Jude Martland, a causade todo este trabalho extra! Por isso,quando a Jess me veio bater de novo àporta, tive muito menos remorsos de apôr a ajudar-me.

Disse-me em que quartos os avós e a

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tia Becca costumavam ficar e que elamesma dormia sempre no antigo quartodas crianças. Os quartos pareciam nãoter sido usados desde o Natal passado,por isso, para além de limpar o pó efazer as camas, não precisámos de muitotempo para os preparar – muito menosdo que eu antecipara.

Jess mostrou-me o armário cheio debrinquedos antigos no velho quarto dascrianças, embora algum deles fossemmais recentes, provavelmente de Guy eJude. O quarto ficava nas traseiras dacasa e, à semelhança do meu e do deJude, permitia uma excelente vista paraa figura do cavalo na encosta deSnowehill que, tal como o seu nome

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indicava, estava coberto de neve. Ocavalo encarnado era agora branco epraticamente indestrinçável, tal comoLady no cercado lá em baixo. Já Billyera uma pequena mancha escura.

Quando terminámos, o cheiro do bolode fruta no forno flutuara até ao andar decima e espalhara-se pela casa. Tirei-o efiz o teste do palito para ver se já estavaenquanto Jess devorava a primeirafornada de mince pies que fizera antes.

Lançou-me um olhar de curiosidade.– Porque estás a fazer buracos no

bolo?– Apenas um para ver se já está

cozido. Se não estiver, o palito sai commassa agarrada.

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– Ah, entendi. Estas mince pies sãomuito melhores que as de compra –acrescentou Jess com um ar dedescoberta.

– Fi-las da forma que mais meagradam, com montes de recheio e amassa fininha, mas as das lojas tendem aser ao contrário. Há uma caixa delas nadespensa, que os Chirk deixaram, masnão gostei muito do ar delas.

– Eu posso levá-las – sugeriu Jess. –O avô provavelmente ficaria todocontente com elas, pois são com certezamelhor que qualquer coisa que a avófaça, muito embora ele diga sempre quegosta muito de tudo o que ela cozinha.

– Como está ela hoje?

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– Bastante animada. Disse até que iafazer uma fornada de biscoitos, emborao mais certo é que saiam tão bons comoos palitos de queijo.

– Eu dou-te sopa para levares para oalmoço. Fiz uma panela dela.

Encontrara uma daquelas garrafastérmicas gigantes de boca larga paraguisados e sopa, escaldara-a e enchera-acom a sopa que fizera. – Aqui tens,espessa o suficiente para segurar umacolher em pé, como a minha avó teriadito.

– Cheira tão bem. É melhor levá-laentão para casa, porque não meadmiraria nada que tivessem decididocomer os biscoitos ao almoço e isso não

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chega para os alimentar. As refeições láem casa estão a ficar cada vez maisestranhas.

Depois de ela ir embora, comi umatigela de sopa com um pãozinho commanteiga – por sorte havia também umbom fornecimento de pão no congelador,e também várias daquelas baguetes delevar ao forno na despensa – e no finalcobri a extremidade da mesa da cozinhacom folhas de jornal e sentei-me a elacom um bule de chá a polir as pratas dasala de jantar.

Ao regressar de as devolver aoaparador, olhando pela janela da sala dejantar, reparei num trator com ummecanismo de limpar neve acoplado à

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frente que vinha a subir o caminho.Descreveu um círculo frente à casa, porpouco não acertando no meu carro, edepois desapareceu por um dos lados,mas não antes de eu ter conseguidovislumbrar Henry sentado ao lado docondutor.

Presumi que ia deixá-lo junto aoportão das traseiras e, de facto, quandocheguei à cozinha, Henry vinha aatravessar o pátio em direção à porta eainda ouvi o barulho do trator a afastar-se.

– Olá, Henry – cumprimentei –, aqueleera George Froggat, o agricultor daquinta que fica no cimo da estrada?

– Isso mesmo, Hill Farm. Deu-me uma

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boleia.– Foi simpático da parte dele.– Não, ele vinha até aqui de qualquer

maneira, visto que o município lhe pagae mais ao filho para limparem a neve daestrada até à aldeia, e o Jude paga-lhepara limpar o caminho até Old Place e ocaminho até à casa de Becca. Aindaganha uns bons cobres.

– Ah, sim, acho que a Tilda e o Noëlmencionaram qualquer coisa em relaçãoa isso.

– O George viu-a à janela. Diz quetinha ar de ser uma moça bem-parecida.Eu confirmei que não era nada de sedeitar fora – concedeu ele um pouco demá vontade.

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– Bom... obrigada – disse, digerindoaquele improvável par de elogios.

– Disse-lhe que a menina era viúva.Ele também é.

Lancei-lhe um olhar severo,interrogando-me se estaria a armar-seem casamenteiro rural e reparei quetinha um ar gelado, apesar das váriascamadas de roupa de lã que trazia porbaixo de um casaco de tweed, que foraobviamente feito para alguém com odobro do perímetro abdominal dele.

– Entre para se aquecer – ordenei e,apesar dos protestos dele, obriguei-o aaquecer-se na cozinha com chá e mincepies quentes. A primeira fornada estavajá quase esgotada, por isso ainda bem

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que tinha muitas mais a cozer no forno,que depois tencionava colocar nocongelador.

– O tempo está a piorar e posso nãoconseguir voltar durante o Natal, porisso vim mostrar-lhe onde estãoarmazenadas as batatas, e as beterrabase assim, para o caso de vir a precisardelas – disse ele depois de ter bebido ochá e ganho uma tez menos pálida.

Fiquei enternecida com estaamabilidade e saímos para o jardim,depois de eu ter vestido um casaco eposto as luvas.

Regressei meia hora mais tarde comum cesto de batatas e cenouras e umaréstia de cebolas, deixando Henry na sua

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toca na estufa, embora lhe tenha pedidoque antes de ir embora me avisasse. Afilha desta vez não podia vir buscá-lo eHenry planeava regressar a pé a casa,mas eu insistiria em ir levá-lo de carropor mais gelado que estivesse ocaminho.

O caminho que conduzia à estradaestava de facto escorregadio, masalguém – presumivelmente George –espalhara areia na parte mais íngreme,abaixo da casa do guarda, por issocorreu tudo bem.

A julgar pelo céu carregado, previ queiríamos ter mais neve e foi uma pena quea loja estivesse fechada, pois teria

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comprado mais provisões deemergência, aproveitando que levara ocarro, em especial porque tinha agoraainda mais visitas!

Parei frente às casas da igreja e Henryapeou-se, carregando como de costumea sua saca.

– Ali na ponta estão a chamá-la –disse ele com um sacão do polegar e euvi a Old Nan a acenar-me da janela comum surpreendente entusiasmo. Mas talem breve ficou explicado quando Jessemergiu a correr da casa dela, ainda aapertar o casaco, e trepou para o lugardo passageiro a meu lado.

– Maravilhoso, pensei que teria deregressar a pé – disse ela, virando-se

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para cumprimentar Merlin no banco detrás.

– Não sei se não é o que acontecerá anós duas, se o carro não subir ocaminho. Está bastante escorregadio.Que vieste fazer à aldeia?

– A avó fez para aí uns três milhões debiscoitos e não ficaram muito bons, porisso eu ofereci-me para trazer alguns àOld Nan e ao Richard, só para noslivrarmos deles mais depressa. Já a tuasopa estava uma delícia.

Consegui que o carro trepasse ocaminho e deixei-a à porta da casa doguarda, mas não entrei porque estava aescurecer rapidamente e a ficar aindamais frio e ainda tinha de recolher Lady

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e Billy.Devia ter deixado a luz do pórtico

acesa: estava ligeiramentefantasmagórico e silencioso quando saído carro. Apenas se ouvia a neve a sermastigada pelas minhas botas na entradae o súbito regougo agudo de uma raposanão muito longe, ao qual Merlin reagiucom grande desinteresse.

É curioso, mas ao crescer, emMerchester, tinha a ideia de que ocampo era um local silencioso, porém, àsua maneira, é de uma forma geral tãobarulhento quanto a cidade: as raposasregougam, os grilos estridulam, asovelhas balem, as vacas mugem, ospássaros cantam, as gralhas crocitam, os

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tratores roncam... é uma cacofonia! Umacacofonia entremeada de momentos deprofundo silêncio. Este era um deles.

Foi um alívio entrar e acender as luzesda sala de estar, onde as brasas dalareira apenas necessitavam de um toroou dois para se inflamarem de novo.

Quando olhei para o telefone repareique perdera uma chamada de Jude. Olhaque pena!

Falei cedo de mais, pois quandoregressei do estábulo ele ligou de novoantes de eu ter tempo para aquecer asmãos em redor de uma caneca de cháquente. Sentira-me tentada a mergulhá-las na farelada quente de Lady!

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– Há bocado não estava em casa –começou ele acusadoramente. – Já tenteiligar-lhe umas duas ou três vezes.

– Sabe, segundo os termos do contratoda Homebodies, estou autorizada a sairde casa durante algumas horas – devolvieu. – Eu disse-lhe que ia à aldeia fazerumas compras e passei por casa dosseus tios e estava tudo bem. Trouxe-lhesumas coisas que eles precisavam daaldeia.

– Ai sim? E esse pequeno serviçotambém é acrescentado à conta? –perguntou ele num tom mesquinho. – Etelefonei muito antes disso e tambémnão estava, portanto...

– Isto foi muito antes. Regressei há

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que tempos e fui diretamente tratar doBilly e da Lady e dar-lhe a fareladaquente. Estão ambos muito bem também.Esta manhã telefonei à sua tia Beccapara saber se estaria demasiado friopara os pôr no cercado e ela disse-meque não. Portanto, a única criatura aquique não está ótima sou eu, porque estoucansada, gelada e cheia de fome –acrescentei irada.

– Nesse caso, lamento muito tê-laincomodado!

– Não faz mal, já antes tive um ou doisclientes que eram tão neuróticos emrelação aos animais que telefonavamtodos os dias. Desta vez telefonou poralguma razão em particular?

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– De facto, não. Simplesmente o factode ter empregados a insultarem-meainda não se tornou algo corriqueiro.

– Em abono da verdade, não sou suaempregada – fiz notar. – Trabalho para aHomebodies. E devolvo-lhe o elogio: osmeus clientes tendem a elogiar-me, aoinvés de insultarem a minha integridade.

Penso que desta vez devemos terficado praticamente empatados adesligar o telefone na cara um do outro.

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Capítulo 13

Espíritos Natalícios

No meu meio-dia de folga, fui debicicleta encontrar-me com o Nna casa de chá. Um dos irmãosdele foi deixá-lo lá, se bem quenão tenha entrado, e ficou de irbuscá-lo mais tarde. Foi bomvoltar a vê-lo e, embora aprincípio me tenha sentidomuito envergonhada,rapidamente ficámos à vontade

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um com o outro, como era nohospital.

Fevereiro de 1945

Li mais um pouco do diário da avó aopequeno-almoço. Agora que ela pareciair embarcar num romance clandestinocom Ned Martland, a tentação de passara página e descobrir o que aconteceraera ainda maior, mas consegui conter-me.

Era ótimo, porém, que ela não sepusesse sempre com verbosossolilóquios acerca do estado da suaconsciência e sobre o que consideravaser o objetivo que Deus traçara para avida dela.

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Não parei de pensar nela enquantocumpria as minhas tarefas, por isso,quando levei Merlin para um passeio,pelo alto da encosta do monte paraassegurar uma boa receção, telefonei aLaura para conversar com ela acercadisso.

– Como estás? – perguntou-me.– Eu? – devolvi surpreendida. – Oh,

estou ótima, tenho é muito que fazeraqui. Laura, lembraste dos diários daminha avó?

– Claro, disseste que lias um poucotodas as noites e começavas a suspeitarque um dos Martland podia ser o amorperdido da tua avó. Vês, não perdi o fioà meada – fez ela notar

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encorajadoramente.– Sim, o Edward, Ned, o irmão mais

novo de Noël Martland. E tenho acerteza que é ele o N. M. de que a minhaavó está a cuidar no hospital. Ela pareceestar aos poucos a apaixonar-se por elee já têm encontros secretos!

– Bom, tu já sabias que ela o amava.Que será que correu mal?

– Não sei, só espero que ele não lhetenha dado um desgosto, uma vez que eleparece ser assim um bocado libertino.Penso que descobrirei mais coisasacerca dele durante o Natal... – comecei,mas depois ouvi um barulho de coisas acaírem e choro de crianças do lado delada linha e ela teve de desligar à pressa.

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Pelo menos, estava tudo mais oumenos adiantado para o dia de Natal.Tirei o belo presunto que os Chirkhaviam deixado no congelador ecoloquei-o no frigorífico para irdescongelando, o menu já estavaplaneado, o bolo só esperava o maçapãoe a cobertura e ainda havia tempo parafazer centenas de mince pies.

Porém, num ataque de insanidadelimpei o resto da casa também – ou pelomenos o que não estava trancado. Tendotraçado o meu objetivo, parecia nãofazer sentido deixar as coisas a meio gássó porque Jude Martland era um homemdesagradável e, fosse como fosse, asdivisões limpas davam ao resto da casa

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que estava por limpar um ar ainda pior...O cheiro ligeiramente mofento e

poeirento da casa deu lugar a aromasmais caseiros: a madeira, cera de abelhae verniz de lavanda, a café acabado defazer e comida feita no forno.

Enquanto trabalhava ia observando otempo, pois lá fora grandes flocos deneve tombavam como que pela calada.Vi George subir pelo caminho com olimpa-neve, dar a volta frente à casa evoltar a descer, mas desta vez vinhasozinho. Se o município lhe paga porcada viagem que faz, suspeito que overei muitas vezes!

No início da tarde, a neve tornou-semais espessa e não mostrava sinais de

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abrandar, por isso decidi trazer Billy eLady para dentro mais cedo, tirei-lhe ocoberjão e dei-lhe uma escovadela. Elapareceu gostar, mas Billy foi ummaçador, como sempre, marrando-meconstantemente nas pernas e roendo-meas bainhas das calças de ganga.

Tinha já quase terminado e estava acolocar o coberjão na Lady quando Jessfez mais uma das suas apariçõessilenciosas: creio que ela as pratica.

– Não fiques aí fora à neve, entra –convidei e ela entrou, lançando um olharcauteloso a Lady e esgueirando-se deBilly.

Creio que na verdade ela tem medo decavalos e inventou a alergia para ocultar

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o facto, pois nunca espirra ou revelaquaisquer outros sintomas.

– A que devo a honra desta visita? –inquiri, mas depois olhei melhor paraela e reparei no seu rosto pálido eansioso. – Que foi? Passa-se algumacoisa?

– O avô pediu-me para vir aqui dizer-te que a avó ontem à noite deu umapequena queda na cozinha.

Parei de apertar as correias docoberjão e virei-me para ela.

– Ela magoou-se?O lábio inferior de Jess tremeu

ligeiramente.– Bateu com a cabeça e ficou

inconsciente e nós não sabíamos se ela

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partira alguma coisa, por isso achámosque era melhor não a deslocar. Tive dechamar a ambulância.

– Oh, pobre Tilda... E pobre Jess,também – acrescentei, dando-lhe umabraço. – Mas porque não metelefonaste?

– Aconteceu tudo tão depressa!Quando a ambulância chegou, a avó játinha recuperado os sentidos, mas elesinsistiram em levá-la ao hospital parafazer radiografias e assim, por isso oavô e eu também fomos.

– Então, ela ainda lá está?– Não, recusou-se a ficar, muito

embora a quisessem lá manter durante anoite para observação. Voltámos os três

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de táxi cerca das duas da manhã. Foi porum triz que conseguiu subir o monte!

– Caramba, isso é que foi, hã? Bemque me podiam ter dito.

– O avô não queria incomodar-te, masse a avó tivesse ficado no hospital, eletelefonava-te a perguntar se eu podiamudar-me para aqui por um tempo.

– É claro que podias, isso não seriaproblema nenhum. Como está a tua avóesta manhã?

– Ainda na cama e o avô está a tentarpersuadi-la a ficar lá. Eu acho que elaestá um pouco abalada e magoada e,provavelmente, vai ficar com um olhonegro. Fiz torradas para o pequeno-almoço de nós os três, mas o almoço

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está mais complicado – referiu ela edepois acrescentou esperançosamente: –Lavei o recipiente da sopa e trouxe-o devolta.

– Bem pensado, uma boa sopa quenteirá fazer maravilhas por eles os dois. –Dei mais um abraço a Jess e acabei deapertar o coberjão de Lady. – Sabes, eudiria que eles já não têm capacidadepara tomarem conta deles mesmos, nãoachas? É uma pena que a empregadadeles se tenha ausentado logo agora,embora a pobre da mulher também tenhadireito às férias dela.

– Ela tira sempre estas duas semanas,porque o avô e a avó se mudam paraaqui durante o Natal e o Ano Novo e eu

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e os meus pais habitualmente também cáestamos. – Deteve-se e engoliu aslágrimas que teimavam em sair. – O avôdisse: «Imagina a tragédia, se a avóestivesse a cozinhar ou a segurar umapanela quente quando caiu.»

– Meu Deus, é verdade, ele tem razão.Podia ter sido bem pior! – «JudeMartland, tem muito por queresponder!», pensei, «virando assim ascostas e abandonando toda a gente,sabendo como os seus tios estão a ficaridosos e frágeis». – Anda daí – desafiei,dirigindo-me para fora da cocheira –,vamos telefonar ao teu avô.

– Não dá, foi por isso que tive de vircá acima falar contigo. A linha

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telefónica estava um bocado incerta estamanhã quando o avô telefonou para onúmero do telemóvel que o tio Jude lhedeixou e, logo a seguir a ter-lhe faladodo acidente da avó, a ligação caiu devez. Desci o caminho para dar uma vistade olhos e um dos postes estavatombado, portanto, acabou-se o telefonee estamos isolados.

– Ah, então, pelo menos o teu tio Judesabe do sucedido – referi, aliviada –,mas presumo que não terá dito nada deremotamente útil, não?

– Penso que nem terá tidooportunidade – respondeu Jess.

– Talvez ainda tente ligar para o teutelemóvel – lembrei.

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– Ele não sabe o meu número... e omeu telemóvel de qualquer maneiratambém já não está a funcionar porque odeixei cair na sanita, no hospital.

– Bhléc! Nem quero saber comoconseguiste semelhante proeza. Ou o quefizeste com o telefone a seguir.

– Está num saco de plástico que umadas enfermeiras me deu. – Olhou entãopara o relógio. – Tenho de ir andando. Oavô está muito cansado e deve estarcheio de fome, pois eu estou esganada enão quero que ele fique doente também.

Jess soava como se as preocupaçõesdo mundo estivessem sobre os seuspequenos ombros, pobre criança.

– Claro, e eu vou contigo – decidi e

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metemo-nos ao caminho depois de tercolocado mais sopa na garrafa térmica eter feito umas sanduíches de queijo etomate.

Preocupado, Noël ficou obviamentemuito aliviado ao ver-me.

– É muito amável da sua parte, minhaquerida. Não queria mesmo que istofosse mais um incómodo para si.

– Não é incómodo nenhum. Como estáa Tilda?

– Furiosa comigo por ter pedido àJess que chamasse a ambulância, masestá ainda na cama – contou ele,baixando o tom de voz. – Nada habitualnela, por isso a queda deve tê-laabalado bastante. Há pouco disse-me

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que lhe doía a cabeça, mas insiste quedaqui a bocado se levanta para fazer oalmoço.

– São quase horas do lanche, Noël!Mas eu trouxe sopa quente, sanduíches emince pies que podem comer agora. Edepois, acha que devemos chamar omédico por causa da dor de cabeça daTilda?

– Ela matava-nos! Só toma remédioshomeopáticos, sabe. Nunca deixa que asdoenças lhe levem a melhor! –acrescentou orgulhosamente.

Porém, não havia curas homeopáticaspara as invasoras enfermidades daidade, que a todos nos atingem no final...Parecia haver apenas uma forma de

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impedir que Tilda continuasse com atéagora e se magoasse ainda mais...

– Sabe, penso que seria melhor se semudassem para Old Place esta tarde eficassem até a Tilda se sentir melhor –declarei resignada.

– Sim, sim! – exclamou Jess todacontente.

– Pensei propor-lhe isso, mas nãoqueria nada sobrecarregá-la com maistrabalho – referiu Noël num tom ansioso.

– Nada disso. A Jess já me ajudou alimpar os quartos e a fazer as camas, porisso, não será trabalho nenhum – menti.

Uma expressão de enorme alíviotomou conta do rosto dele.

– Se tem a certeza... E talvez aprecie

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ter companhia? – aventou ele, animando-se. – A Jess e eu ajudá-la-emos em tudoo que pudermos, claro.

– Acha que a Tilda ficará satisfeitapor se mudarem para Old Place?

– Oh, sim, tenho a certeza que sim.– Nesse caso, daqui a algumas horas

venho buscar-vos no meu carro.– Não é necessário. O George virá

mais tarde trazer o jornal, se tiverconseguido chegar a Little Mumming, ecom certeza que não se incomodará denos levar lá acima no seu Land Rover.

– Ele parece muito prestável e temmantido o caminho livre de neve!

– O George é um sujeito muitosimpático. Ele e o filho, Liam, fazem um

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bom trabalho a manter a estradadesimpedida e depois os donos deWeasel Pot Farm, abaixo da aldeia,mantêm a estrada daquele ladodesimpedida também, embora, porvezes, quando a neve é demasiada,tenham de desistir ao chegar àqueletrecho mais íngreme que leva à estradaprincipal. – Lançou um olhar pelajanela. – Se a coisa se mantiver assim, ébem capaz que fiquemos isolados pelaneve uns dias.

– Então, lá em cima, em casa, será omelhor lugar para vocês. Comida nãofalta, está quente e se a eletricidadefalhar, há o gerador.

– É bem verdade! – Noël animava-se

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mais a cada minuto que passava, bemcomo Jess. – Bom, vai ser bemdivertido, não vai? Um verdadeiro Natalem família na velha casa, afinal decontas!

– Sim, vai ser maravilhoso –concordei com pouca convicção.

– Oh, mas já me esquecia, a Holly nãocelebra o Natal!

– Não tem importância, seguramenteque será uma agradável mudança –assegurei num tom corajoso e deixei-ossozinhos a almoçarem e a fazerem asmalas.

Assim que cheguei a casa, comecei apreparar as coisas para os meus

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hóspedes. George trouxe-os era jápraticamente de noite, no seu enormeLand Rover, em conjunto com as malas,uma caixa com alimentos perecíveis eum enorme saco de Pai Natal emplástico recheado de presentesembrulhados.

George Froggat era um homem demeia-idade, alto, bem constituído, comuma cabeleira muito loura, facessaudavelmente rosadas, olhos azuis e umsorriso cativante. Ainda bem que era umhomem robusto, uma vez que teve depousar Noël no chão e depois pegou emTilda ao colo e carregou-a até ao sofáfrente à lareira da sala de estar.

Regressou, cumprimentou-me com um

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aperto de mão e disse que era um prazerconhecer-me e depois começou a trazertodas as bagagens para dentro. Recusouuma bebida quente, mas ao sair, disse:

– Quase me esquecia! Trago aqui umacoisa da minha parte e da minha família.– Tirou então uma árvore de Natalembrulhada em serapilheira dastraseiras do jipe e colocou-a debaixo dopórtico.

– Meu Deus, isso é quase tão altoquanto eu! – exclamei.

– Sim, você é uma moça alta e bemconstituída – concordou ele num tomaprovador, olhando-me de cima a baixo.E enfiou-se ao volante do jipe. –Amanhã de manhã passo por cá para ver

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como vão as coisas, ou mando cá o meuLiam, quando limparmos o caminho.

Tilda e Noël estavam ainda na sala deestar frente à lareira, ao passo que Jess,com um ar martirizado, carregava asmalas para o piso de cima. Ouvi oguinchar do elevador das escadas, porisso não estava a transportar tudosozinha.

– Querem um chá? – perguntei. – Outalvez algo mais forte?

– Boa ideia! Há uísque, gim e brandenaquele pequeno armário na sala dejantar, e copos – disse Noël.

– Lamento, mas acabei com o brande– confessei – e a adega está trancada.

– Com este tempo, não me admira que

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tenha precisado de algo para se aquecer– referiu Noël. – Eu tenho as chaves. OJude deixa-as comigo quando se ausentae lá em baixo há muito mais.

– Na verdade, o brande foi para obolo de Natal. Não o bebi.

– Isso devia ter sido feito há meses, eubem lhe disse – comentou Tilda num tomdesaprovador e no seu refinado sotaquedas profundezas do sofá. Abalada eferida ou não, estava de sapatos de saltode agulha e maquilhada, apesar de trazerapenas vestido um casaco quente porcima da camisa de noite. Presumi que ossapatos e a maquilhagem completa afaziam sentir-se mais ela mesma.

– Cheirava divinamente quando a

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Holly o tirou do forno – fez notar Jess. –E, se não fosse assim, não teríamosnenhum!

– Eu achei sempre que o Jude não seausentaria no Natal – argumentou Tilda–, por isso fui adiando a compra de um.Mas há o bolo Dundee que a Old Nannos deu. Eu trouxe-o. Onde o puseste,Jess, querida?

– Na cozinha, com o resto da comida.– Não se preocupe, esta receita de

bolo de Natal é surpreendente e saisempre bem e mais tarde a Jess podiaajudar-me a cobri-lo – sugeri.

– Maravilhoso – comentou Noël,esfregando as mãos uma na outra. – Eamanhã podemos subir ao sótão e

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procurar as decorações de Natal. –Depois, desanimou-se. – Já me esqueciaque não temos árvore. Fizemos umapequena e artificial para a Jess, mas nãonos ocorreu trazê-la.

– Não se preocupe, o George deixou-nos uma de presente no pórtico –declarei. – Achei que por agora eramelhor deixá-la lá fora.

– Oh, esplêndido! É das grandes?Costuma sempre ficar ali no canto, juntoàs escadas.

– É enorme – respondi comresignação.

Parecia mesmo que iria ter um Nataltradicional, quer quisesse quer não,portanto, mais valia ceder de uma vez

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por todas e deixar-me contagiar!

* * *

Depois do chá e mince pies – ouuísque e mince pies, no caso de Noël –,Tilda foi para cima deitar-se, usando oelevador sob protesto, embora estivesseainda obviamente um pouco trémula.Quando, dali a pouco tempo, lhe leveiuma botija de água quente, dei com elajá meio adormecida sob o floridoedredão de cetim, provavelmente devidoà exaustão de comandar a neta nodesemalar das bagagens.

Noël estendeu-se no sofá para umasesta e Jess e eu fomos para a cozinha edivertimo-nos a cobrir o bolo com

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maçapão e açúcar e a decorá-lo commontes de ornamentos que encontrámosnuma lata de rebuçados Blue Bird numdos armários. Havia um conjuntocompleto de pequenos esquimós degesso, a esquiarem e a andarem de trenó,e até um iglo.

– Nem sequer tinhas um bolo de Natalquando eras pequena? – perguntou Jess,colocando um urso polarameaçadoramente perto de um dosesquimós.

– Não. A minha avó costumava fazerbolos de fruta muito bons, mas não noNatal, assim como bolo tradicional daquadra.

– Acho mesmo muito triste que nunca

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tenhas tido uma árvore, ou presentes eassim até já seres adulta.

– Quando andava na escola, tambémpensava isso – confessei num tompesaroso. – Tinha tanta inveja dasminhas amigas! Acho que foi por issoque depois, quando me casei, caí noextremo oposto, com montes depresentes, comida e decorações. Mas oespírito do Natal não devia ser esse,pois não?

– Mas é tão divertido! – protestou ela.– Eu adoro tudo em relação ao Natal,mas não tanto quanto o meu avô. Ele éum perito, sabias? Até escreveu umlivro sobre as festividades.

– Sei, sim, ele mencionou isso.

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– Chama-se Auld Christmas, como opub, e é sobre as antigas tradiçõesserem absorvidas e transformadas emcostumes novos, e coisas assim, e sobreo modo como os Revels7 da Noite deReis celebram o renascimento do novoano e remontam a uma época bemanterior ao cristianismo.

– É mesmo? Parece-me que te tornastetambém uma perita – comentei,impressionada.

– Oh, o avô não para de falar nomesmo e os meus pais sempre metrouxeram a Old Place para o Natal, porisso, acho que o assunto acabou por seentranhar em mim. – De repente, ficoucom um ar triste. – Quem me dera que

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eles pudessem estar cá também destavez... Mas eu entendo. Não podiampropriamente apanhar assim um avião daAntártida só para virem passar as fériasde Natal, não é?

– Pois não, mas aposto que devemestar cheios de saudades tuas.

– Oh, hão de estar tão absortos no queestiverem a fazer que nem se vãolembrar que eu existo até regressarem! –Jess soava tolerante, ao invés deofendida com isto. – Mas antes departirem gravaram um DVD adesejarem-me um feliz Natal, um poucocomo a mensagem de boas festas darainha, se bem que a avó só mo vaideixar ver no dia de Natal.

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– Ora aí está um belo presente e algopor que ansiar.

– Sim, e agora que vamos ficarcontigo não me importo tanto que elesnão estejam. O Natal vai ser muito maisdivertido! Importas-te muito quefaçamos um Natal à séria?

– Presumo que não, e começa aparecer-me que este ano terei um Natalque compensará todos os que perdi.

– E presentes também. Eu mesma façoos que ofereço e tenho um assim meiocambado que serviu de experiência eque pode ficar para ti – declarou elagenerosamente.

Não me passava pela cabeça o que ela

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fizera, mas agradeci-lhe de qualquermaneira.

– Não estava à espera de nada.Pensando bem, nem tão-pouco estava àespera de Natal! Ah, mas eu já tenho umpresente da minha melhor amiga.

– Como é ela?– É a irmã mais nova do meu marido e

o meu oposto sob todos os aspetos:pequenina, loura e de olhos azuis, comoele tinha... Mas tirando isso, ela não separece com ele.

– O teu marido era baixo? O tio Jude éum gigante.

– Ele tinha precisamente a mesmaaltura que eu, um metro e oitenta.

– Altura mais que suficiente para se

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ser modelo, só que elas são todas umasescanzeladas.

– Bom, sabes o que se diz: nuncaconfies numa cozinheira magricelas.

– Diz-se isso? – Franziu a testa. – Ah,já percebi. Quer dizer que não gostamde comida.

– E que não comem o que cozinham!Depois de terminarmos os enfeites e

de ter colocado um folho de papel –também tirado da lata de rebuçados –em redor do bolo, cobri-o com umaenorme cúpula de vidro num dos velhosarmários que ocupavam uma dasparedes da enorme cozinha e coloquei-ona despensa.

– Agora talvez seja melhor fazermos

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mais chá e tu podes levá-lo para a salaenquanto eu começo a preparar o jantar.Importavas-te de dar um pulo lá acima aver se a tua avó está acordada e lheapetece um chá?

Assim que regressara da casa de Nöele Tilda tirara carne picada paradescongelar e fiz rapidamente umenorme empadão e coloquei-o no forno.Depois descarocei maçãs para rechearcom frutos secos, açúcar mascavado ecanela. Havia natas, gelado e uma latade creme de natas que viera da casa deTilda com o resto dos alimentosperecíveis... E, quando olhei melhor,reparei que havia quatro latas e meia de

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chantilly em spray, portanto, deviadesempenhar um papel importante nadieta de Nöel e Tilda!

Tilda comeu na cama e nós os trêscomemos em redor da grande mesa depinho da cozinha. Depois de arrumar acozinha, de ter ido ver de Lady e dadoum pequeno passeio com Merlin, estavaexausta.

Contudo, sentia-me ainda assim tensa,ansiosa, como se esperasse algumacoisa – e dei-me conta de que era otelefonema diário de Jude! De certaforma, sentia falta da descarga deadrenalina de cruzar a espada com ele,ainda que ele tivesse conseguidoprovocar-me a ponto de perder a

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compostura em mais do que umaocasião.

Noël fora para a cama e Jess estava nasaleta a ver qualquer coisa na televisão,já meio a dormir. Mandei-a para a cama,mas ela obrigou-me a prometer que dalia alguns minutos subiria para lhe apagara luz. A criança dentro dela estavamesmo abaixo da superfície: acabei porlhe ler um excerto de The WaterBabies8, que encontrámos numa dasprateleiras, antes de lhe entalar a roupa,lhe dar o ursinho e lhe desejar uma boanoite.

Só consegui concentrar-me no diário otempo suficiente para descobrir que oprimeiro encontro da avó com N fora do

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hospital parecia ser o primeiro demuitos.

Depois os meus olhos começaram afechar-se, como se tivessem chumbo,apaguei a luz e mergulhei nas almofadas,acordando um momento depois, ocoração a bater a mil à hora, chocada ecom um enorme sentimento de culpaporque, pela primeira vez em oito anos,me esquecera do aniversário da mortedo Alan!

Pulei para fora da cama e fui buscar afotografia dele, na sua molduraitinerante, que estava em cima dolavatório: e foi assim que adormeci,agarrada ao meu amor perdido, o rostolavado em lágrimas.

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7 7 Festividades que marcam a décima segundanoite após o Natal (Twelfth Night), a noite antes daEpifania. Estas comemorações incluem, porexemplo, pequenas peças teatrais com personagenstradicionais, danças folclóricas, comida e muitabebida. (N. da T.)

8 Romance infantil escrito pelo reverendo CharlesKingsley e publicado em 1863. (N. da T.)

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Capítulo 14

Torradas e Melaço

Encontrei-me com o N de novo edesta vez ele pedira o carroemprestado ao irmão, embora euache que é ainda muito cedopara esforçar a perna ferida.Quando lho fiz notar ele riu edisse que estava ótimo e que embreve iria começar a guiar a suamotorizada. Ele que nem penseque eu ando naquilo!

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Fevereiro de 1945

Levantei-me bem mais cedo que todosos restantes e fui tratar de Merlin ecolocar mais um coberjão em Lady,como Becca sugerira se ficasse muitofrio, antes de a deixar sair com Billypara o cercado coberto de neve.

Estava um frio de rachar na rua e ovento parecia soprar diretamente datundra, por isso, depois de pendurarfeno na rede e partir o gelo da gamela,vi-me forçada a voltar para casa parame aquecer. A limpeza da cocheira teriade ficar para mais tarde.

Por esta altura, tinha encontrado umpapel com as instruções sobre como

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cuidar de Billy. Soltara-se do seu lugarno dossiê e fora enfiado num bolso dacapa. Porém, para além de algunsbiscoitos todos os dias, que eu já lhedava, o fedorento bode parecia comermais ou menos o mesmo que Lady. Nofundo da página impressa, Judeescrevera: Se o Billy adoecer e pararde comer, tentar persuadi-lo comtorradas e melaço.

Estaria a falar a sério?Tirei o presunto descongelado do

frigorífico e cozi-o, deitando a águafora. Barrei-o em seguida com mel emostarda, espetei-lhe cravinhos ecoloquei-o no forno.

Depois de ter feito um manjar branco

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e um bolo de chocolate rápido, com umadas minhas receitas preferidas, Noël eJess apareceram. Tilda estava, comoseria de esperar, ainda combalida,contusa e perra, embora aparentementeanunciasse ter intenções de descer maistarde.

Quando lhes perguntei o que queriampara o pequeno-almoço, Jess disse:

– Um McMuffin de bacon e ovo, sequeres mesmo saber.

– Há muffins no congelador, podiascomer ao invés disso um Holly Muffin,se não te importares?

Acabámos todos por comer muffinsrecheados com bacon e ovo, incluindoTilda, embora Jess lho tenha levado num

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tabuleiro, em conjunto com torradas,doce, manteiga e um pequeno bule dechá.

Aparentemente, é costume ela comerum pequeno-almoço forte, contudo, seconseguir deglutir aquilo tudo, entãodeve comer o seu próprio peso todos osdias, uma vez que é do tamanho de umpardal!

Fortificados pelo pequeno-almoço,Noël e Jess estavam preparados parauma expedição ao sótão em busca dasdecorações de Natal.

– Já só faltam dois dias para o Natal,por isso não há tempo a perder –argumentou Noël. Queriam que fossecom eles, coisa que, à luz do meu novo

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espírito natalício, concordei em fazer,assim que acabasse de arrumar a tralhado pequeno-almoço.

Jess foi mandada recolher o tabuleiroda avó e informá-la de onde estaríamos,não fosse ela pensar que aabandonáramos. Estava a verificar opresunto quando ouvi alguém bater àporta das traseiras.

George devia ter limpo de novo aneve do caminho, pois o trator com aenorme lâmina à frente estava do outrolado do portão e, a julgar pelas pegadasno nevado empedrado, tinha já feitoumas quantas viagens para lá e para cá.Havia um enorme saco e uma mala aospés dele e segurava nos braços uma

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variedade de outras coisas, incluindodiferentes tipos de verduras.

Lançou-me o seu cativante sorriso porcima delas, as rosadas faces brilhandosob a cabeleira tão loura que quaseparecia branca.

– Bom dia! Cruzei-me com o carteirona aldeia e pensei poupar-lhe a maçadade vir até cá acima, tendo em conta queeu de qualquer maneira viria. Tambémtrouxe o correio do Nöel e da Tilda,embora a maioria pareça ser postais deNatal.

– Muito simpático da sua parte.– Se quiser segurar nisto? – sugeriu

ele e eu aliviei-o de um maço preso comelásticos encarnados, duas encomendas,

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um jacinto num vaso e um molho deazevinho e visco branco.

– O Henry manda-lhe o jacinto, oazevinho e o visco branco são da minhaparte. Eu depois corto mais e deixo-o nopórtico.

– Oh, que simpáticos – agradeci,segurando com todo o cuidado oespinhoso ramo e tentando não deixarcair nada. – E as malas...?

George pegou nelas e colocou-as nasoleira da porta.

– São da Becca. Limpei a neve atéNew Place e ela pediu-me se as podiatrazer e deixar aqui.

– Ai foi?Supus que até fazia sentido, pensando

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bem, pois se continuasse a nevar elateria de vir a pé no dia de Natal. Noentanto, parecia ter emalado montanhasde coisas só para uma noite!

– Acabámos de tomar o pequeno-almoço, porque não entra e toma umacaneca de chá?

– Não, não tenho tempo, mas ponho-lhe as malas aí dentro se quiser. Umadelas é pesada. – Bateu com os pés paratirar a neve das botas e entrou, fechandoa porta atrás dele.

– É o George? – gritou Noël dacozinha. – Diga-lhe que entre!

– Não posso – gritou George de volta,mas avançou pelo corredor, enquanto euesperava para colocar o azevinho e o

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visco na lavandaria em conjunto com ojacinto, assim que encontrasse um pratoonde pousar o vaso.

Apesar do que alegara, George estavasentado à mesa da cozinha quando entreie Noël estava a servir-lhe uma canecade chá quente.

Coloquei um prato de mince pies àfrente dele e, farejando o ar tãoapreciativamente quanto um porco quedeteta trufas, ele disse:

– Há aqui qualquer coisa que cheiramuito bem!

– É o presunto a assar... e talvez obolo que fiz há pouco.

Enquanto devorava uma sucessão demince pies contou-nos em que condições

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estava a alcantilada estrada que davaacesso à estrada principal: bastante mápara outros veículos que não fossem dequatro rodas motrizes, em especial oúltimo troço, cheio de curvas e muitoíngreme, que passava junto a Weasel PotFarm.

– O filho deles, o Ben, está a fazeruma pipa de massa a tirar as pessoasque se guiam pelo GPS da valeta noprimeiro cotovelo. Sobem-no até meio edepois deslizam para baixo de novo.

– Seria de esperar que ao verem ondese estavam a meter se dariam conta deque o GPS estava errado – comentouNoël.

– As pessoas têm mais dinheiro do

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que juízo ao comprarem essasmaquinetas – devolveu George.

– Mas o carteiro conseguiu subir aestrada sem problemas? – perguntei.

– Ele tem um Land Rover dos correiose está habituado a fazer aquela estrada –explicou George. – Foi a menina que fezestas mince pies?

Eram bastante pequenas, mas aindaassim nunca antes vira ninguém enfiaruma inteira na boca. Acenei que simcom a cabeça, fascinada.

– Estão maravilhosas, é uma belacozinheira, para além de uma moça bem-parecida – comentou ele num tomaprovador.

Jess largou uma risadinha e George

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sorriu-lhe.– E tu também virás a ser uma bela

moça quando terminares de crescer.Jess corou, mas até acho que ficou

agradada com o pi-ropo.– As previsões apontam para mais

neve em terras altas – comentou Noël –,portanto, suponho que acabaremos porficar isolados.

– Talvez, embora habitualmenteconsigamos manter a estrada até à aldeiaaberta, não é assim? Mas agora nem detrator conseguiríamos atravessarSnowehill até Great Mumming. –George devorou a última mince pie quehavia no prato como se estivesse acomer Smarties e depois levantou-se. –

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Bom, vou andando: o cão ficou no tratore está um frio de rachar lá fora. Maistarde trago-lhe mais verduras, Holly,para as decorações. Este pequeno ramofoi mais um presente. E talvez já tenhapendurado o visco no pórtico quando euvoltar... – acrescentou ele com inegávelintenção e foi a minha vez de corar.

– Oh, sim, mais tarde temos dependurar o visco branco – concordouNoël – e decorar a sala de estar commuitos arranjos de verdura. Estávamosmesmo a preparar-nos para irmos aosótão buscar as decorações quando vocêchegou.

– Nesse caso, não se atrasem por mim.Noël acompanhou-o à porta e Jess

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pôde finalmente dar larga ao seu ataquede risinhos.

– O George gosta de ti!Continuei tranquilamente a colocar o

prato das mince pies e as canecas namáquina de lavar a louça.

– Gosta da minha comida, Jess, maisnada.

– Dirias que é um homem bonito?– Sim, é muito bem-parecido, assim

de um modo rústico e rude.Noël regressou.– Está um frio de gelar lá fora, não

está? E que são aquelas duas malas queele trouxe?

– São da sua irmã. Penso que teráachado melhor enviar as coisas dela

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pelo George enquanto ainda tinhaoportunidade, não fora o tempo piorar.Jess, podias ajudar-me a carregá-laspara o quarto dela, tendo em conta quevamos naquela direção. Tu levas o sacoe eu carrego a mala.

– Eu mais tarde vejo o correio – disseNoël.

– Já há ali uma pilha enorme para oJude. Está na mesa do vestíbulo –informei-o.

– Depois trago-a para dentro eorganizo-a – prometeu ele. – A maiorparte deve ser publicidade.

Largámos o saco e a mala no quartoque fora destinado a Becca e depoisNoël foi de novo ver de Tilda, que

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dormia profundamente, antes desubirmos ao sótão.

Jess deu um empurrão à porta do sótãoe esta abriu-se com relutância e umguincho de protesto.

– O Jude devia mandar arranjar isto,está sempre empenada – disse Noël,acionando um comutador e iluminando oenorme espaço bem recheado de tralha etarecos antigos.

– Há outro sótão, mais pequeno, porcima da ala da cozinha, mas não temgrande coisa, se a memória não mefalha. Nos tempos em que a casa tinhavários empregados, penso que algunsdormiam lá.

– Nem sequer me tinha dado conta de

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que havia um – confessei.– A entrada fica num canto escuro do

patamar e assemelha-se à porta de umarmário.

– Ah, então, deve ter sido por isso.Noël conduziu-nos até uma pilha de

tralha coberta por um lençol poeirentoentre uma arca enorme e uma miscelâneade cadeiras partidas.

– É aqui mesmo – anunciou e Jesstratou de tirar o lençol.

– Precisamos de todas as caixasmarcadas com um N e daquela baseencarnada para a árvore de Natal –começou ele, depois reparou queperdera a minha atenção. – Está aadmirar a arca espanhola, minha

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querida?– Sim, tem um ar muito antigo.– Partes da casa são extremamente

antigas e a arca sempre aqui esteve.Pensamos que talvez seja da épocaisabelina e tenha vindo para a famíliaquando um antepassado desposou umanoiva espanhola, ou talvez alguns anosmais tarde. Eu disse-lhe que, segundo alenda, a família Shakespeare terávisitado Old Place?

– Não – respondi –, embora não mesurpreenda, uma vez que há pouco tempotambém foram encontrados unsdocumentos pertencentes a Shakespeareem Sticklepond. Ele parece ter andadopor todo o lado, não é? Deve ser difícil

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encontrar uma casa senhorial na zonaoeste do Lancashire que alegadamenteele não tenha visitado!

– É bem verdade! – reconheceu Nöel.– Sabe, até há bem pouco tempo, eracostume representarmos Noite de Reisna véspera de Ano Novo: «Se a músicaé o alimento do amor, tocai...» –suspirou ele anelantemente. – Enfim...

– Eu não posso tirar fantasias para memascarar daquela arca – referiu Jess.

– Pois não, os fatos para asfestividades da Noite de Reis estão lá,embora as cabeças estejam guardadas nopalheiro por trás do Auld Christmas.

– As cabeças? – inquiri.– O Dragão e Red Hoss e a máscara e

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chapéu do Homem-Mulher – explicouele, embora tal não tenha servido paratornar nada mais claro, pelo contrário. –Sabe – acrescentou ele, olhando-me comum ar intrigado –, encaro-a de tal formacomo um membro da família que até meesqueço que não é e não conhece asnossas tradições e costumes. Mas jámencionei os Revels da Noite de Reis,não mencionei?

Fiquei contente por ser encarada comomembro da família, muito emborafizesse as vezes de cozinheira e faz-tudo, pois encontrava-me numa estranhaposição: é mais fácil quando façoapenas trabalhos de culinária, pois aísou definitivamente um membro do

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pessoal assalariado.– É assim um tipo de espetáculo

folclórico? Reparei nas fotografias, emespecial na biblioteca.

– Isso mesmo, danças misturadas comteatro. É apenas uma cerimónia muitosimples... – explicou ele vagamente. –Decorre no parque frente ao AuldChristmas e é uma tradição com séculos,embora é claro tenham havido mudançasao longo dos anos. Posso mostrar-lhemais fotografias depois do jantar, sequiser.

– Obrigada, seria muito interessante –aceitei, achando que podia ser umaforma de o pôr a falar acerca do seuirmão Ned.

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– Olhem, trenós! – exclamou Jess,reparando neles encostados à parede portrás das caixas. – Dois e de plástico,portanto, devem ter pertencido ao tioJude e ao tio Guy.

– Isso mesmo – confirmou Noël. –Também deve haver mais um par delesem madeira algures por aí, que nóscostumávamos usar quando éramosmiúdos... Ou talvez se tenham estragado,já não me lembro.

Havia tanta tralha; qualquer coisapodia estar ali em cima, incluindo o PaiNatal e todas as suas renas. Estava bema precisar de uma boa escolha earrumação.

– Acho que o azul era do Jude e o

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encarnado do Guy, embora o maisprovável é que tenham andado à bulhapor causa disso também. O Guy queriasempre o que o irmão mais velho tinha ehavia constantemente brigas.

– Suponho que seja natural –comentei.

– Numa criança, mas talvez não sejatão compreensível num adulto... mas,agora que o Guy se vai casar e assentar,eu espero que comece a ver as coisas deforma diferente. Não há nada como terfilhos para se ganhar uma novaperspetiva da vida.

– Eu fui um erro – anunciou Jess.– Mais uma surpresa agradável e bem-

vinda – corrigiu-a o avô.

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– Posso usar um dos trenós, avô?– Leva os dois para baixo, querida.

Está um tempo perfeito para andar detrenó e talvez a Holly queira juntar-se ati. Quem me dera que os meus pobres evelhos ossos ainda dessem para isso... –acrescentou ele melancolicamente.

Jess carregou os trenós para baixoprimeiro, depois regressou e começou alevar as caixas com as decorações paraa sala de estar. Eu peguei na base daárvore e numa caixa etiquetada«grinaldas e coroa da porta», ao passoque Noël agarrou numa caixa contendouma cena da natividade antiga, talhada àmão em madeira. Quando acabámos deempilhar tudo a um canto da sala de

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estar, estava na hora de começar a fazero almoço.

Tilda insistiu teimosamente em descerpara nos acompanhar numa sopa,sanduíches de ovo e bolo de chocolate.Para além de um olho um pouco negro,parecia estar melhor, embora ainda sedeslocasse com alguma rigidez. Depoisdisso, assentou arraiais no sofá da salade estar e começou a exibir uma ligeiratendência para dar ordens a todos nós,mas em especial a mim, querendo saberao certo como iria lidar com o menunatalício. Contudo, tal não meincomodou muito, pois quando cozinhopara festas estou habituada a discutir osmenus com os donos das casas, por isso

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sentei-me com ela para revermos tudo.– Felizmente a casa está muito bem

abastecida e eu trago sempre os meuslivros de culinária, caderno comreceitas e temperos preferidos comigo,portanto, não haverá qualquer problema.Na cozinha também há uma prateleiracheia de livros de culinária.

Ao folhear um ou dois deles, com umaspeto bastante usado, encontrara notasmanuscritas a lápis ao lado das receitas,portanto, alguém se dedicara à culinária:ou a última empregada ou talvez a mãede Jude.

– Talvez fiquemos sem salada, fruta ecoisas perecíveis se a aldeia ficarisolada pela neva, mas podemos passar

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sem isso – acrescentei. – Há montanhasde pão no congelador e manteiga, ovos,queijo, sumo, leite e natas. Certamenteque não morreremos à fome.

– E tem tudo o que precisa para otradicional jantar de Natal? – inquiriuela.

– Sim, nesse departamento, está tudotratado. Assei o presunto esta manhã e játirei o peru do congelador e coloquei-ona despensa a descongelar lentamente. Aque horas costumam comê-lo? Preferemum almoço ou um jantar de Natal?

– Por volta das duas da tarde, edepois apenas precisamos de uma ceiade sanduíches e bolo, ao invés de jantar.Fazemos o mesmo no Boxing Day9.

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– Certo... embora talvez seja boa ideiacomermos outra coisa que não peru denovo? Reparei que havia um salmãointeiro numa das arcas e pensei quepodíamos comê-lo nesse dia, e depoisentão o peru no dia a seguir, antes de euusar os restos em pratos como caril eassim para congelar.

Tilda concedeu a sua graciosaaprovação a todos os meus planos, eainda bem, pois também não os teriaalterado caso ela não aprovasse. Nãodeixo que os meus clientes interfiramcom o meu trabalho, exceto no caso derestrições dietéticas; contudo, uma vezque vou sorrindo e acenando que simcom a cabeça ao mesmo que os ouço a

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dar ordens, de certeza que acham que osdeliciosos pratos que surgem na mesasaíram todos das cabeças deles.

– Costumamos acompanhar a refeiçãode Natal com champanhe – disse Noël –,mas eu trato das bebidas, por isso nãotem de se preocupar com isso.

– Vou precisar de mais brande para opudding – informei-o –, pois usei todo oque estava no decantador.

– Eu vou já lá abaixo buscar eaproveito para ver que mais o Jude temna adega, em termos de vinhos – decidiuele.

– Não há pressa, deixe o almoçoassentar primeiro – argumentei. – Teveuma manhã agitada.

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– E agora que os menus principais jáforam decididos, penso que gostaria debolo ou scones para o lanche de hoje –declarou Tilda autocraticamente antes deregressar ao quarto para descansar.

– Peço desculpa, minha querida, ela éum pouco mandona e está sempre aesquecer-se que a Holly não é nossaempregada – desculpou-se Noël.

– Bom, suponho que na verdade atéseja, uma vez que estou a ser paga paraestar aqui.

– A Edwina não tolera despropósitose responde-lhe: «Comerá o que lhederem, minha senhora, e vai saber-lhebem!»

Sorri.

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– Hoje em dia já não se arranjamempregados respeitadores, não é?

– Cada vez a vejo mais como ummembro da família – voltou ele a dizeramavelmente –, se bem que, tendo emconta o monte de trabalho que lheviemos dar durante o Natal, mereça serpaga por ele. E se o Jude não fizer nadaem relação a isso, então nós trataremosde a compensar.

– Oh, não, ora essa, eu estou a gostarmuito da companhia e adoro cozinhar –insisti, porque ele é um amor. – Os meushonorários de house-sitter sãoperfeitamente adequados!

9 Feriado nacional britânico comemorado a 26 dedezembro. (N. da T.)

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Capítulo 15

Advento

Encontro-me com o N sempreque consigo escapar-me... Nãosou capaz de conter-me. Ele dizque o nosso destino é ficarmosjuntos, que o sabe desde que meviu, e eu sinto o mesmo, emboratambém horrivelmente culpadaquando penso no pobre Tom.Amei-o sinceramente, apenasnão da forma que agora amo o

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N...Fevereiro de 1945

O céu, que anteriormente se mostraraquase tão azul quanto os olhos deGeorge, carregara-se de novo. Jesslevou um dos trenós para a extremidademais alta do cercado, onde a inclinaçãoera mais íngreme, e eu pude por fim irtratar de limpar a cocheira. Estava acomeçar quando o portão lateralressoou. Estiquei a cabeça para verquem era e avistei Becca a conduzirNutkin.

– Viagem infernal! – cumprimentou-me ela, fechando o portão depois de elae o cavalo terem passado. – De manhã

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tive de subornar o George para metrazer as malas. Chegaram? Aquelehomem está a fazer uma fortuna à contado mau tempo.

– Sim, ele veio trazê-las depois dopequeno-almoço e já as pusemos no seuquarto. Mas estou surpreendida por vê-la, pois não está nada bom tempo paraandar a cavalo, pois não?

– Nos troços piores, trouxe o Nutkinpelas rédeas, mas não podia deixá-losozinho em casa havendo a hipótese deficar aqui retida, não é? – argumentouela com bastante bom senso. – O tempoestá de novo a piorar, por isso achei queseria melhor aproveitar a oportunidade evir já, em especial tendo em conta que a

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Tilda, o Noël e a Jess já cá estão.– Quer dizer... que também veio para

ficar?– Isso mesmo – confirmou ela. – Mais

um não fará grande diferença para si,pois não? Na verdade, até será melhor,pois posso dar-lhe uma ajuda com oscavalos.

– Ótimo – respondi sem grande ânimo,embora ter uma perita em cavalos à mãopudesse vir a ser um alívio se a nevenos isolasse.

Becca colocou Nutkin no estábulo eesfregou-o energicamente com molhosde feno. Depois fomos para casa dizer aNoël que ela chegara. Jess veioconnosco, pois já tinha os dedos

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congelados e o traseiro também.Noël, que dormitava num dos sofás da

sala de estar, acordou e pestanejouquando nós invadimos a sala.

– Becca! Que surpresa!– O tempo está a piorar, por isso

pensei mandar as malas e vir para cá já.Trouxe o Nutkin – explicousucintamente.

– Ena, que bom, uma agradávelreunião familiar! – Noël esfregou asmãos uma na outra. – É uma pena que osrapazes não possam cá estar também,mas é a vida.

– Passei pelo Auld Christmas paratrazer algo para animar. – Becca enfiouas mãos em dois bolsos fundos no

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interior do casaco encerado e pescouuma garrafa de xerez de cada um. – Aquitodos gostamos de um dedalinho dexerez do bom... A propósito, onde está aTilda?

– A descansar, mas mais tarde volta adescer. Diz que já não se sente tão perraagora que as equimoses saíram, mas estánegra, a pobre!

– Trouxe linimento de cavalo. Resultasempre comigo.

– Sim, mas tem um cheiro detestável,Becca – opôs-se ele.

– Nicholas Dagger pediu-me para tedizer que estão todos prontos para aNoite de Reis e que ensaiaram a dança.

– Ótimo, ótimo! – exclamou ele. –

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Não tiras o casaco?– Não, vou sair de novo para tratar

dos cavalos – respondeu Becca. – Acocheira da Lady precisa de ser limpa eterei de preparar a outra para o Nutkin.

– Mas deve estar gelada e eu possofazer isso – aventei.

– Nem pensar, já tem trabalho mais doque suficiente. Mas vou precisar que aJess empurre o carrinho de mão até aomonte do estrume e encha os baldes.

– Sou alérgica a cavalos e estougelada e molhada – argumentou Jessamuada. – Prefiro ajudar o avô apendurar as decorações.

– Queres dizer que és alérgica atrabalho árduo – respondeu Becca num

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tom severo. – Não tens de chegar pertoda Lady nem do Nutkin. Vá, agora correlá acima ao meu quarto e traz-me ocoberjão e a cabeçada do Nutkin. Estãono meu saco.

Jess cedeu, mas não de boa vontade.

Coloquei um guisado ao lume para ojantar, usando uma excelente carne devaca que havia na arca congeladora,cenouras do quintal e uma boa dose decerveja de um fornecimento de garrafasaltas que descobrira no chão de pedrada despensa, empurradas bem para trásda prateleira de baixo. Bebi o quesobrou – era uma cerveja boa eprovavelmente o ferro fazia-me bem.

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Jess voltou para dentro com um arpálido e inerte, por isso sugeri quecomeçasse a pendurar as decoraçõescom o avô assim que aquecesse mais umpouco.

Porém, Becca, que continuava cheiade energia, pediu-me o rádioemprestado e levou-o para a sala daração, onde estava sentada a limpar asela de Nutkin quando lhe fui levar umaenorme fatia de bolo de chocolate e umacaneca de chá para que os seus níveis deenergia não baixassem.

Mais tarde, fez a farelada quente evoltou a sair para recolher Lady e Billy,pois começava a escurecer, portanto,estava já a demonstrar que valia o seu

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peso em ouro.Jess e eu carregámos a árvore de

Natal para dentro e lá conseguimosenfiá-la na base de metal encarnada. Ocimo da árvore quase roçava novarandim por cima. Depois, ela e Noëlseguraram o escadote enquanto eudispunha as grinaldas sob a orientaçãodeles, de cada canto da divisão até aomeio do teto, e pendurava lanternas ebolas dos apliques de luz nas paredes.

Deixei-os então a desempacotar acena da Natividade e regressei àcozinha, onde até a sóbria Radio 4estava inebriada com o espírito doNatal.

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Por sorte, ninguém parecia terobjeções a comer na mesa da cozinha, oque tornava a vida mais fácil. Não erapreciso carregar louça de e para a salade jantar, embora no dia de Natal e nodia a seguir a fôssemos usar, é claro.

Para sobremesa havia manjar brancode chocolate com a forma de um coelho,que se revelou surpreendentementepopular junto de toda a gente, e nãoapenas de Jess. Desapareceu mesmo atéà cauda e, entre o manjar e o bolo dechocolate, comecei a desejar ter trazidocomigo mais uma lata de cacau emchocolate!

Tilda não tinha nenhuma em casa,apenas Ovaltine, o que não era a mesma

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coisa, mas tinha ideia que a loja daaldeia o vendia, por isso impunha-seuma nova visita à loja.

Depois de a louça do jantar ter sidoarrumada – e graças a Deus que haviauma máquina de lavar a louça! Se aeletricidade falhasse, só esperava que ogerador fosse potente o suficiente parafazer funcionar a máquina –, fomos paraa sala de estar já meia decorada e Noël,tal como prometera de manhã, foi buscaros álbuns de fotografias quedocumentavam os Revels.

Todas pareciam mostrar as mesmasfiguras vestidas e mascaradas de formaestranha e, tal como eu suspeitava, umaespécie de dança popular, mas com

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espadas, embora provavelmente nãofossem verdadeiras.

Uma fotografia de quatro jovens altose morenos junto de uma versão maisnova de Becca chamou-me a atenção.

– Este sou eu – disse Noël, apontandopara um dos jovens, pouco mais que umrapaz – e aquele é o Jacob, o meu irmãomais velho, o que foi morto em Dunkirk,pobre rapaz. O Ned também foi ferido,mas mais tarde. É ele aqui ao lado doJacob e depois está o Alexander, o paido Jude, que herdou Old Place.

– E depois estou eu – declarou Becca.– Reconheci-a de imediato, não

mudou muito – referi e ela fez um arsatisfeito.

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– Eu tento manter-me em forma –explicou ela. – E, é claro, sou a maisnova.

Olhei de novo para a fotografia.– Então... que aconteceu ao Edward?

Disse que foi ferido?– Teve um ferimento grave na perna,

mas no hospital experimentaram dar-lhepenicilina e a recuperação foi rápida.Depois disso, parecia até que ele iriaassentar, mas não estava destinado... enunca mais voltou a desempenhar opapel de Red Hoss nos Revels.

Noël parecia prestes e deixar-searrastar por uma antiga, e talvezinfortunada, recordação, por isso eudisse:

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– Red Hoss? Penso que já antesmencionara essa personagem.

Noël folheou as páginas do álbum atéencontrar uma fotografia de um homemcom uma máscara feroz e assustadora deum cavalo encarnado.

– É esta. Esqueço-me que não sabemuito sobre a tradição – disse eleapologeticamente. – Como já lhe tinhadito, parece que a conheço desdesempre, como se fosse um dos Martland.É uma estranha coincidência, não é?

– Sim, é certamente – disse num tommeio ausente, contemplando outrafotografia de Ned Martland, sem amáscara, ao lado dela. Não era nemgrande nem muito nítida, mas havia

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qualquer coisa na expressão dele que merecordou uma fotografia emoldurada daminha mãe, que sempre tivera lugar dehonra sobre o harmónio da minha avó...e ainda tinha, embora agora estivesse emminha casa. Mas depois, quando meinclinei para a frente para ver melhor,dei-me conta de que era apenas a formacomo a luz incidia.

– E suponho que antes nunca ouvirafalar dos Revels da Noite de Reis deLittle Mumming, pois não?

– Ou do geoglifo do cavalo encarnado– acrescentei.

– Tentamos não fazer publicidade denenhum deles e, na verdade, hoje em diaos Revels são mais uma cerimónia

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vespertina do que noturna. É assimdesde a guerra. Mas, tradicionalmente,era acendida uma fogueira no beacon ehavia uma procissão desde lá até àaldeia.

– Suponho que durante a guerra nãoera permitido fazer fogueiras ao ar livre.Seria demasiado perigoso.

– Pois, eram tempos de blackout. E,com a maioria dos jovens na guerra, osmais velhos que tomaram os lugaresdeles também já não tinham pernas paratrepar o monte. No entanto, o meu paimanteve os Revels tão bem quanto pôde.

– Mas publicitar os Revels não trariamuitos turistas até cá?

– A questão é essa mesma, minha

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querida. Já temos bastantes caminhantes,ciclistas e turistas desde a primavera atéao outono. O pub, a loja e a MerryKettle fazem bom negócio, a loja daquinta Weasel Pot prospera e o Georgefaz passeios com o seu trator até aobeacon. É o bastante para nós. Nãoqueremos que os Revels sejamapropriados por essa gente do artesanatoartístico que há de querer preservar tudocomo se fosse uma mosca presa noâmbar, ao invés de deixarem a tradiçãoevoluir como tem acontecido ao longodos séculos.

– Compreendo – concordei.– Richard Sampson escreveu um

pequeno opúsculo sobre os Revels e o

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cavalo encarnado para circulaçãoprivada. Posso ver se na biblioteca háuma cópia, se estiver interessada.

– Sim, adoraria lê-lo. Se o tempocontinuar assim, a neve não cancelará osRevels? A não ser que em breve haja umdegelo, é claro.

– Oh, não seria a primeira vez queteríamos neve em janeiro e ainda assima cerimónia se realizou. Todos vivemospor aqui e a aldeia fica a menos de umquilómetro. Se por essa altura aindahouver neve, a Jess pode puxar-me atélá no trenó!

– Podia, avô, mas depois para cá é asubir! – protestou ela.

– Estava a brincar, querida. O tio Jude

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já cá estará por essa altura e ele logoarranjaria uma solução.

Eu estava de novo absorta pelafotografia dos jovens Martland.

– Então, o Ned recuperou doferimento na perna? Que lhe aconteceudepois disso?

– Foi irónico, na verdade. Morreunum acidente de mota uns dois mesesdepois de a guerra ter terminado.

– Que tragédia! – comentei e, uma vezque Noël estava com um ar perturbado,não o pressionei por mais pormenores.

Talvez tivesse sido por isso que ogrande romance da avó não dera emnada. E, se assim fosse, era muito, muitotriste! Noël insinuara que o irmão era

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uma espécie de ovelha negra e, aoprincípio, pelo relato da avó, ficara coma ideia de que era um mulherengo; agoraparecia que se apaixonara pela avó, talcomo ela se apaixonara perdidamentepor ele.

* * *

Pobre avó – agora que sabia que afelicidade dela iria ser encurtada peloacidente de Ned, ler acerca do sucedidonaquela noite tornou o episódio aindamais pungente!

Quando abri o meu coração coma Hilda e a Pearl elasperguntaram: «Se ele te ama de

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verdade, porque têm os vossosencontros de ser em segredo?»Então, perguntei ao N quando éque dizíamos às nossas famíliasque namorávamos e ele disseque não havia pressa, pois nãoqueria partilhar as poucas epreciosas horas que podíamospassar juntos com maisninguém.

Ele devia ser muito encantador parapersuadir uma rapariga com a educaçãorígida da minha avó a encontrar-se comele em segredo! Parece muito estranho, aesta distância, que tivessem sentidonecessidade de manter o romance deles

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em segredo, mas, por outro lado, asdiferenças entre classes e os abismossociais eram mais relevantes naquelaaltura.

Então, os meus olhos tombaram sobrea entrada seguinte, muito curta, e fiqueide boca totalmente à banda: penso quesubestimei seriamente o encanto de NedMartland!

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Capítulo 16

Consolo

Sinto-me demasiadoenvergonhada para ir à igreja eolhar o pai do Tom nos olhos.Sou uma pecadora, uma terrívelpecadora.

Março de 1945

Acordei mais tarde que o habitual,com os olhos meio pesados depois de

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uma noite repleta de sonhos estranhos edesconfortáveis, e deixei-me ficar maisum pouco a pensar na avó. Continuavasem vislumbrar qualquer outrainterpretação para o que lera para alémda que me ocorrera inicialmente, e todoo tipo de possibilidades e implicaçõesrevoluteavam na minha cabeça.

Por fim, decidi tentar esquecer oassunto até ter oportunidade de odiscutir com Laura, embora tal fossemais fácil de dizer do que de fazer.Resolvi então levar o diário comigopara baixo para mergulhar nele setivesse um momento tranquilo sozinha.Podia colocá-lo na prateleira dos livrosda cozinha, pois nunca ninguém mexia

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aí.Quando corri as cortinas, o Sol ainda

não nascera, mas percebi que nevaramais durante a noite. Becca eraobviamente uma madrugadora também.Vi-a no pátio abaixo de mim,conduzindo Nutkin até ao cercado parase juntar a Billy e a Lady, bemagasalhada. A presença dela aqui erapor certo uma enorme vantagem, tendoem conta tudo o que eu tinha para fazer,embora, provavelmente, se Judesoubesse que ela assumira a maior partedas minhas tarefas relacionadas com ocuidado do cavalo e do bode, haveria dequerer um desconto nos meushonorários!

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Merlin, porém, continuava aos meuscuidados. Todas as manhãs lhemisturava os comprimidos na comida,embora ele seja tão dócil que o maisprovável era que até os tomas-se dasminhas mãos. Começava a afeiçoar-me asério a ele. É um cão tão obediente eafetuoso, sempre contente por me ver.

Becca e eu tomámos o pequeno-almoço juntas e depois ela sentou-se aouvir a rádio e a ver-me embeberpalitos la reine que encontrara noarmário num pouco de xerez, quedesviara do armário das bebidas na salade estar, e depois fazer uma terrina defaisão com as aves que deixara adescongelar da noite para o dia.

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– É muito organizada! – comentou ela.– O trabalho assim o exige. Planear e

saber o que preparar para os pratos quepretendo fazer já faz parte do meu ADN.

– Bom, quem dera que pudesse ficaraqui e cozinhar permanentemente.

Sorri.– Penso que o seu sobrinho não ficaria

muito contente com isso. Não nos damosassim muito bem quando ele telefona –confessei, embora estranhamente atésentisse saudades das nossas trocas depalavras azedas...

Quando Noël e Jess apareceram,Becca tomou um segundo pequeno-almoço com eles, mas Tilda voltou aquerer o dela na cama, embora tal

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pareça ser mais um hábito do que umsinal de que não está a sentir-se bem.

Enquanto comiam, discutiram osplanos para aquele dia. Jess e Noëlpropuseram terminar as decorações edepois fazer a árvore de Natal, mas,antes que pudessem pôr esse plano emação, Becca recrutou Jess para a ajudara limpar as cocheiras e a dar de comeraos cavalos.

Noël foi buscar o tabuleiro de Tildaenquanto eu arrumava a cozinha everificava a terrina, que cheirava bem etinha ótimo aspeto.

Becca e Jess não se demoraram na ruae regressaram com os narizesencarnados e as mãos frias ao mesmo

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tempo que Noël preparava um bule dechá, que parece ser a única habilidadeculinária que ele possui.

– O George passou por aqui e diz quedeixou mais azevinho e verduras nopórtico. Eu ajudo-vos a pendurá-lasassim que descongelar – prometeuBecca –, mas um dos meus filmespreferidos, Winter Holiday, vai passarmais tarde e estava a pensar vê-lo. Se aTilda descer, talvez queira vê-locomigo.

– Ela já desceu. Vim buscar-lhe umachávena de chá.

– Nesse caso, serve-me uma também,está de rachar lá fora.

– Nunca ouvi falar de Winter Holiday

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– disse Jess – e a receção é tão má aquique dificilmente conseguirão ver o quequer que seja. Não percebo porque éque o tio Jude não tem Sky como a avó eo avô. Pelo menos em casa deles dápara ver televisão de jeito!

– Tens aqui um leitor de vídeo e deDVD – fez notar Noël. – Trouxeste unsDVDs contigo, não trouxeste?

– Sim, mas já os vi todos um milhãode vezes. E também não posso jogar nocomputador porque o tio o tem noestúdio e o estúdio está trancado. Mas ocomputador é tão velho que não dariapara os meus jogos. Se ele não fosse tãosovina já podia ter comprado um novo.

– Não devias chamar nomes ao teu tio

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– admoestou Noël. – De certeza que oPai Natal te vai trazer um bom presenteda parte dele.

– Ora, avô! – revirou os olhos. – Jánão tenho idade para acreditar no PaiNatal e eu bem vi aquela encomendagrande com selos americanos que oGeorge ontem trouxe. E aposto quenaquele saco grande de presentes quetrouxemos connosco também há algunsdos meus pais.

Noël arqueou uma sobrancelha etentou fazer um ar misterioso. Dei-me derepente conta que seria a única que nãoiria dar ou receber presentes no dia deNatal... como no primeiro Natal da avóno novo hospital em Ormskirk, quando

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nada tinha para dar às amigas até se terlembrado dos marcadores de livros...

Eu nem sequer marcadores de livrostinha e, pensando bem, Jess dissera queia dar-me algo que ela mesma fizera,portanto, pelo menos um presente eu iriater.

Como se lesse a minha mente, Jessdisse:

– Podemos colocar os presentesdebaixo da árvore quando terminarmosde a decorar. Já quase acabei todos osmeus presentes, mas ainda me faltaembrulhá-los.

– A Jess é uma perita em origami –declarou Noël todo orgulhoso.

– Faço bijutaria em origami e vendo-a

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na escola – explicou Jess.– Ena, isso é muito giro – comentei. –

Adoraria ver algumas peças.Considerara uma viagem à aldeia para

comprar algumas coisas que tinham maisprobabilidade de se esgotar, como ocacau em pó, mas agora era melhorjuntar também à lista um pequenofornecimento de presentes de Natal deemergência!

– Queria ajudar-nos com asdecorações? – perguntou Noël. – Desdemanhã que não para, por isso, porquenão descansa antes um pouco, minhaquerida?

– Não é preciso, estou bem. Eu ajudo-vos durante um pedaço e depois acho

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que vou até à aldeia. Preciso de umascoisas de última hora da loja eaproveito para esticar as pernas. Masnão levo o Merlin, está demasiado friopara a artrite dele e teria de o deixarpreso fora da loja. – Percebi que Jessestava dividida entre vir comigo edecorar a árvore, por isso apressei-me aacrescentar: – Ficava-te muito grata setomasses conta dele enquanto eu estoufora, Jess. O pobre animal tem saudadesdo dono e grudou-se a mim, por isso nãovai ficar contente por eu sair sem ele.

– Sim, e eu vou precisar que tu subasao escadote enquanto eu o seguro –acrescentou Noël. – Eu não posso fazerisso sozinho e o nosso velho Pai Natal

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tem de ir para o cimo da árvore. –Segurou uma figura acastanhada empasta de papel. – O meu irmão Jacobcomprou isto com dinheiro dele quandotinha cerca de cinco anos, portanto, issofaz com que o boneco tenha bem mais deoitenta anos – contou ele num tomsentimental.

– É um venerável Pai Natal –acrescentei, emocionada – e merece olugar de destaque. Acho que, se meinclinar por cima do varandim, consigocolocá-lo no topo da árvore.

Da mesma forma consegui pendurarvárias bolas pequenas nos ramos maisaltos da árvore e ajudei a dispor oenorme fio de luzes em redor dela.

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Assim assegurei-me de que Jess não iriapôr-se a baloiçar em cima do escadote.

– Prometem ter cuidado enquanto euvou e volto?

– É claro, nós formamos uma equipa,não é Jess? – disse Noël. – Quandochegar, a sala de estar vai parecer umpostal de Natal!

– Tenho a certeza que sim – concordeie deixei-os entregues às decoraçõesenquanto tratava de mais umas coisas nacozinha e me agasalhava para acaminhada. Não acreditava que destavez o meu carro fizesse a subida deregresso.

Merlin começava a mostrar um aransioso, mas, quando regressei à sala de

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estar, Jess parou de desdobrar umagrinalda e tratou de o distrair.

– Vou então, mas deixei sopa napanela e sanduíches no frigorífico para oalmoço. Há também bolo de cenoura emince pies. Não precisam de deixarnada para mim. Eu como pão e queijo nopub.

– Eu trato do almoço e, a julgar peloque enumerou, não me parece quemorramos à fome na sua ausência –comentou Becca animadamente. – E, sea Holly não regressar, nós organizamosexpedições de socorro!

– Se eu lhe desse as chaves,importava-se de dar um pulo à casa doguarda e assegurar-se de que está tudo

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bem? – perguntou Noël. – Nesta alturado ano preocupo-me sempre que algumcano rebente.

– Sim, claro.– E, se precisar de alguma coisa da

cozinha, sirva-se à vontade – disse Tildaatenciosamente do cadeirão ondemontara arraiais para comandar asoperações de decoração.

– Obrigada, isso seria muito útil, emespecial se tiver essência de amêndoa ebaunilha?

– Tenho a certeza que há. Traga tudo oque precisar.

– Não queria abusar de si –acrescentou Noël –, mas se eu lhe desseo número de telemóvel do Jude, tentava

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ligar-lhe do caminho e dizia-lhe queestamos aqui?

– Eu tento, sim – concordei, emborativesse algumas dúvidas, pois não tinhao hábito de fazer chamadastransatlânticas.

– E já que vai à aldeia, vá ver se aOld Nan e o Richard estão bem –ordenou Tilda, embora o facto de se terlembrado deles revelasse o seu ladocarinhoso e atencioso.

– Na verdade, já tinha embrulhadomeia dúzia de mince pies para cada um.

– Boa ideia.– Gomas – disse de repente Jess. –

Podes trazer-me um saco dos grandes?– Ainda vais estragar os dentes todos

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– comentou Tilda.Deixei Jess a segurar a coleira de

Merlin e fiz-me ao caminho, sentindo-me como uma daquelas minúsculasfigurinhas numa enorme paisagemnevada pintada por Brueghel. Segui ocaminho aberto pelo limpa-neve –pareceu-me ter ouvido o rugir do tratorao início da manhã –, escorregando eresvalando um pouco na neve queentretanto quase cobrira o caminho. Eramais fácil seguir por baixo dospinheiros junto ao rio, onde o chão nãoestava coberto de neve e, num impulso,virei pelo trilho que dava acesso aoestúdio de Jude.

Passados poucos metros, as árvores

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rarearam, revelando um edifício alto eestreito com as ruínas de uma nora euma escura e profunda corrente de água.Espreitei pela janela e vi que o interiorera totalmente aberto até às traves eestava recheado de todo o tipo deformas misteriosas, semelhantes acavalos.

Estava muito frio, por isso não medetive e segui caminho até à casa doguarda, onde tudo parecia em ordem. Osarmários da cozinha não revelarammuito que eu não tivesse já, para alémde algumas especiarias, condimentos eamêndoas raladas, que coloquei namochila para o caso de me esquecerdelas no regresso.

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A estrada até Little Mumming foralimpa e tinha sido espalhada areia naparte pior da subida, mas ainda assimestava escorregadia, por isso fiqueimuito grata quando George parou o seuLand Rover e me ofereceu boleia. Tivede partilhar o banco da frente com o seuligeiramente fedorento cão-pastor, mas,sinceramente, a satisfação por já nãoestar ao frio superava o cheiro.

– Deve ter-se levantado bem cedo,George! Como está a estrada depois daaldeia?

– O Liam foi o primeiro a sair com olimpa-neve e disse que ainda erapossível subir e descer a estrada comum carro de quatro rodas motrizes, mas

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qualquer outro veículo teria sarilhos –respondeu ele. – O meu rapaz e o Ben,de Weasel Pot, são amigos, por isso umlimpa para baixo e o outro para cima eisso dá-lhes uma oportunidade para seencontrarem a meio caminho edesperdiçarem tempo.

Sorri.– Vocês trabalham tanto. Mesmo sem

este serviço de limpar as estradas, jádevem ter bastante com que seocuparem.

– Pois, mas os agricultores hoje emdia têm de diversificar as suas tarefaspara ganharem dinheiro e a câmara pagabem por estes serviços de limpeza dasestradas. Depois o Jude e mais um ou

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dois pagam-me para limpar os caminhosque dão acesso às casas deles, portanto,tudo ajuda.

– Sim, suponho que sim.– E, no verão, coloco bancos no

atrelado do trator e levo turistas a veremo beacon. Ganho mais do que com asovelhas, é certo.

– É muito empreendedor – comentei e,quando íamos a passar frente à igreja,acrescentei: – Nem me lembrei de saberse a loja hoje estaria aberta!

– Oh, a Orrie só fecha no dia de Natale no dia a seguir e, numa emergência,não se importa de abrir a porta. Ela vivepor cima da loja. A Orrie é uma raparigamuito prestável – acrescentou

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atenciosamente. Percebi que tinha aliuma rival!

– Tem seguramente um stock muitovariado, não é?

– Sim, mas também é uma merceariamisturada com uma loja de recordações.No verão fornece os turistas e abre ocafé do lado para servir chás e scones.Queria alguma coisa em especial?

– Nem por isso, apenas umas coisitasque me ocorreu que podiam esgotar-selá em casa e Tilda queria que fosse vercomo estão a Old Nan e o vigário. Podiadeixar-me lá? Tenho andado cá a pensarcomo é que eles vão chegar a Old Placepara o almoço de Natal. Assim derepente, presumo que eu mesma podia

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levá-los a casa no meu carro, mas tenhoa certeza que não subirá este monte.Teria de deixar o carro aqui.

– Nem pensar, aquele seu carrito nãoenfrenta gelo! É uma pena que o Judetenha levado o velho Land Rover comele, se não podia usá-lo.

– Mas eu não era capaz de conduzirum carro alheio e nunca antes conduzium Land Rover.

– Olhe, não se preocupe com o dia deNatal. O meu Liam pode limpar aestrada para a aldeia e o caminho paraOld Place logo de manhãzinha e depoisum de nós vai buscar os velhotes elevar-lhos.

– Mas seguramente que na manhã de

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Natal não vão andar também a limpar asestradas!

– Somos agricultores, Holly. Temosanimais para tratar todos os dias, sejamanhã de Natal ou não.

– É muito amável – agradeciatenciosamente.

– O prazer é todo meu – respondeu elecom um rápido olhar de esguelhaacompanhado do seu cativante sorriso.

Um bando de crianças estava a fazerum boneco de neve perto da igreja e ocenário parecia perfeitamente invernal...até reparar onde os miúdos haviamdecidido enfiar a cenoura.

– Malandretes – comentou Georgenum tom amigável, olhando para eles

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enquanto passávamos e dávamos a voltaao parque.

– O Noël falou-me um pouco acercados Revels. Disse que haveria umcírculo de doze braseiros bem comouma fogueira.

– Isso mesmo. Inicialmente, haviadoze pequenas fogueiras e uma grande,mas o Jude fez uns braseiros de ferroforjado que se cravam no chão, por issoagora usamos isso. A ideia é a mesma,apenas aplicada de forma mais fácil esegura.

Olhou-me de novo de esguelha com osseus olhos azuis cor do céu quandoparámos frente às casas da igreja.

– O Noël habitualmente não fala muito

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dos Revels com estranhos. Nenhum denós o faz, na verdade. Deve ter gostadomesmo de si.

– Eu penso que é porque se esqueceque eu não pertenço à família, por seralta e morena, características habituaisdos Martland.

– Sim, o lado moreno da famíliaparece ser o dominante, e a Hollypartilha de facto algumas semelhançascom os Martland. Reparei nisso logo daprimeira vez.

Não percebi se tal era um elogio ounão!

– Começo a lamentar ir perder osRevels. Também participa neles?

– Oh, sim, houve sempre Rappers de

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Hill Farm – respondeu elemisteriosamente enquanto eu saía dojipe e acrescentou que ia visitar a irmã,que vivia no lado oposto da aldeia, masque à volta me procuraria.

Embora Henry não estivesse em casa– deixei a encomenda dele numapequena prateleira no interior doalpendre, fazendo figas para que nãohouvesse problema –, os outros doispareceram satisfeitos por me verem eaceitaram como uma coisa natural anotícia de que alguém de Hill Farm osviria buscar e levá-los para Old Placeno dia de Natal. Na verdade, Old Nanaté me disse que George não precisavade se maçar, pois o Jude iria buscá-los,

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como sempre fazia. Obviamente, ela jáperdera o fio à meada.

Richard estava na mesma, uma vezque me chamou Miss Martland e pediu-me que informasse a família queconduziria uma missa do galo navéspera de Natal, pois o mais provávelera que o vigário de Great Mummingnão conseguisse chegar à aldeia.

– Ele habitualmente faz um serviçoreligioso mais cedo aqui e depois seguepara a igreja de Great Mumming.

– Não vai ficar exausto com umamissa tão tarde e com o frio que faz? –perguntei.

– Seja como for, hoje em dia já poucodurmo e há aquecedores a parafina na

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igreja... temos de combater a humidade.Não entrei em nenhuma das pequenas

casas nem os mantive muito tempo aofrio: queria continuar com os meusrecados para depois poder almoçartranquilamente... Trazia o diário da avóno bolso da mochila. Tinha a sensaçãoque depois de chegar a casa iria estardemasiado ocupada para passar muitotempo a descansar.

Havia uma cabina telefónica naaldeia, mas estava fora de serviço e sóDeus saberia a quantidade de moedasnecessária para ligar para um telemóvelnos Estados Unidos! Abriguei-me dofrio nela e tentei ligar do meu telemóvel

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para o número que Noël me dera, masuma voz do outro lado informou-me queo número não estava disponível.

Bom, pelo menos tentara... e uma vezque me preparara para a brusquidão deJude – em especial quando lhe dissesseque lhe iria cobrar pela chamada –,sentia-me agora estranhamentedesanimada!

Mrs. Comfort, sentada atrás do balcãoa tricotar, levantou-se com vivacidade ecumprimentou-me, entusiasmando-se emespecial quando lhe disse que precisavade alguns presentes de última hora.

– Os presentes estão ali ao lado, naMerry Kettle – informou ela, apontando

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para a porta aberta que dava acesso aocafé onde o excesso de mercadoriaestava exposto, provavelmente paratentar os veraneantes enquanto tomavamos seus lanches.

Conseguia sentir os pequenos,brilhantes e ansiosos olhos delacravados nas minhas costas ao mesmotempo que contemplava a limitadaseleção de brinquedos, jogos enovidades. Havia também um expositorgrande em madeira com tudo desdecanecas a panos da louça compensamentos inspiradores e etiquetados«Palavras de Consolo de OrielComfort».

Acima de tudo, estava curiosa, pois

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tinha já decidido fazer eu mesma ospresentes de emergência: reparara numfornecimento de frascos limpos decompota, discos de cera, etiquetas etampas de celofane na copa de OldPlace e tencionava enchê-los dechocolates e rebuçados.

Portanto, comprei uma mancheia doscoloridos e brilhantes de que Jessgostava em conjunto com gomas,caramelos, rebuçados de alcaçuz, dementol e coco, acrescentei fita gomada,etiquetas de Natal e um rolo de papel deembrulho meio transparente e garrido.Encontrei também guardanapos de papelde xadrez, que podia cortar em círculospara fazer tampas para os frascos, e um

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saco de elásticos para os segurar.À medida que a pilha de compras

crescia no balcão, Mrs. Comfort iaficando cada vez mais satisfeita ecomeçou a fazer sugestões.

– O Noël gosta de delícia turca –confidenciou ela – e a senhora deleadora chocolates Milk Tray... Elecostuma comprar-lhe. E que tal estasdecorações em chocolate para a árvorede Natal?

Sem que eu lhe pedisse, acrescentou-os à pilha e depois deitou uma vista deolhos ao stock, obviamenteinterrogando-se que mais podiaimpingir-me.

Tirei a lista das compras do bolso.

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– Precisava aqui de umas coisas, setiver, como cacau em pó, açúcar em pó,gelatina...

Na verdade, pouco havia que ela nãotivesse. Mrs. Comfort parecia ummágico a tirar infindáveis pombas deuma cartola.

– E vai querer as últimas embalagensde chantilly em spray – frisou ela.

– Já temos montes disso!– O Nöel e a senhora dele adoram

isso – assegurou-me ela. – Nunca sefartam.

Risquei a última coisa da lista – maisfósforos – com um suspiro: interrogava-me como é que iria transportar tudomonte acima se o George não me visse.

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Oriel adotou uma nova estratégia:– A Old Nan gosta de rebuçados de

chocolate e o vigário adora caramelos.O Henry é mais homem de rebuçadoscom sabor a mentol.

Seguramente, pensei, não precisariade presentes para pessoas que malconhecia e que apenas iriam almoçarconnosco? Mas, pensando bem, maisvalia prevenir que remediar.

– Pronto, está bem – capitulei –, mas omelhor seria deixar o presente já emcasa de Henry, para o caso de não ovoltar a ver antes do Natal.

– Eu dou-lhe um pedaço de papel deembrulho e mais tarde passo em casadele a entregar-lho, pode ser? – sugeriu

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ela amavelmente.– Se não fosse muito incómodo...– Incómodo nenhum.– Bom, acho que é tudo!Porém, ela não ia deixar-me ir embora

sem dar mais luta.– Então, e a meia de Natal da Jess?

Tem tudo o que precisa para ela?Olhei para Oriel estupefacta. Uma

meia na manhã de Natal como todos osmeus amigos haviam tido era a coisa porque eu mais desesperadamente ansiaraquando era criança! Mas com certezaque Jess já não tinha idade para isso.

– Ela tem quase treze anos, por issoachei que já tinha idade a mais paraessas coisas. Mas, se assim não é,

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suponho que a mãe ou Tilda terãotratado disso.

– Talvez sim... ou talvez não. Naminha opinião, nunca se é velho de maispara uma meia de Natal. Se calhar, nãofaria mal em levar umas coisitas, para ocaso de elas se terem esquecido dessepormenor.

– Como por exemplo? Não faço ideiado que ela gostaria!

– Deixe-me ver – ponderou ela. – Éuma idade interessante: num minuto sãoumas crianças e no minuto seguinte jásão muito adultos.

Tirou um frasco com ratinhos dechocolate com caudas de cordel branco,amarelo e rosa e preparou-se para me

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dar uma aula sobre a preparação de umameia natalícia.

– Vai precisar de um destes no fundo,com uma tangerina ou assim paracomeçar. Quando eu era miúda, eracostume porem uma mancheia de nozes,embora eu nunca tenha percebidoporquê, uma vez que dificilmente seconseguem partir nozes na cama com osdentes, não é?

– Temos fruta e frutos secos, mas nãome parece que a Jess vá ficar muitoentusiasmada ao encontrá-los na meia,tendo em conta que não são bensescassos em casa.

– Ajuda a encher a meia, maspodemos colocar em vez disso um

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pacote de pastilhas. A maioria dosbrinquedos que tenho é demasiadoinfantil para ela, mas tenho um baralhode cartas tipo UNO e umas partidas,como a flor que esguicha e a mancha detinta, que acho que ela é capaz de gostar.Talvez um peluche de um cão-pastor?Tenho-os à venda para os turistas, emconjunto com os postais e assim.

– Acha que ela é uma rapariga debonecos de peluche? – perguntei commuitas dúvidas, mas ela estava já aremexer num cesto de verga e pescou delá uma criatura preta e semelhante a umlobo com olhos amarelos.

– Lembrei-me que este vinhamisturado com a última remessa de

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collies e que não cheguei a devolvê-lo.– Está bem – cedi, e depois, num

impulso, adicionei uma pulseira depedras cinza-escuras.

– E que tal um puzzle? É uma coisaque toda a família pode fazer junta nodia de Natal.

– Tenho a certeza que há uma pilhadeles no velho quarto das crianças –argumentei de imediato.

– Este tem uma belíssima imagemnatalícia na frente... E, se depois modevolver com todas as peças, eucompro-lho de volta por metade dopreço – acrescentou ela engodando-mee, com a minha força de vontade por estaaltura completamente demolida, acenei

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que sim com a cabeça.Pagar por aquela carga toda deixou-

me praticamente sem dinheiro, uma vezque Mrs. Comfort não aceitava cartõesde nenhum género. Como a mochila jáestava cheia ainda tive de comprar umenorme saco de juta com um dasinspiradoras frases de Oriel: UmCoração Carinhoso Mantém-nosQuentes nas Noites de Inverno.

Tivera de escolher entre isso e Ondasde Amor – Mergulhe Numa.

Devo confessar que, quando olheimelhor, as coisas naquele expositoreram irresistivelmente horrorosas!

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Capítulo 17

Rapping

O N diz que não existe nada deerrado quando duas pessoas seamam de verdade, como nós,mas eu sei que o que fizemosapenas devia acontecer dentrodos limites do casamento...

Março de 1945

Carreguei as compras até à igreja e

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sentei-me num banco de pedra nopórtico, abrigada do vento, paratelefonar a Laura do meu telemóvel.Voltei obedientemente a tentar o númerodo Jude, mas recebi a mesma mensagem.

– Oh, ótimo – disse Laura quandoatendeu, soando aliviada –, tenhotentado ligar para a casa e ouço umamensagem a dizer que há uma avaria nalinha.

– E há mesmo, um dos postes caiu elevou o seguinte com ele. Está tudobem? Como te sentes?

– Oh, estou bem e o bebé farta-se dedar pontapés. Os outros três estão tãoexcitados por causa do Natal que estãohistéricos e o Dan desapareceu

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convenientemente, pelos vistos paracomprar o meu presente. Deixa tudopara a última hora! E tu, como estás?Estou preocupada contigo, com tantotrabalho e aí isolada.

– Isolado seria a última palavra queusaria para descrever Old Place, Laura!

– Pareces-me preocupada, o que não énada coisa tua. Que se passa, estás aachar tudo isso demasiado?

– Não, não, tu já sabes como eu sou,adoro um desafio – assegurei-lhe,embora ela ainda nem soubesse odesafio em que este meu trabalho setransformara! – Mas trago uma coisa nacabeça e queria falar contigo para ver seachas que estou a imaginar coisas.

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– Diz lá.– É por causa dos diários da avó. As

coisas entre ela e Ned Martlandaqueceram bastante e... Bom, eu achoque eles fizeram amor.

– Valha-nos Deus – comentou ela –,pensava que o sexo só tinha sidoinventado nos anos sessenta.

– Seguramente que não era parameninas batistas bem-comportadas comoa minha avó, em especial em milnovecentos e quarenta e cinco! Ela deviaacreditar que iam casar, mas isso claroque não aconteceu. E, tendo em contaque entretanto descobri que o Nedmorreu num acidente, conto que tenhasido por esse motivo e não porque ele a

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tenha abandonado!– Não saltaste logo umas páginas para

tentar descobrir? É o que eu teria feito!– Não, porque, para te ser sincera, tem

acontecido tanta coisa que quando chegoà cama já estou exausta e mal tenho umminuto para mim durante o dia, emboratenha dado mais uma vista de olhosrápida esta manhã enquanto tomava ocafé.

– E descobriste o que aconteceu?– Não, ela tem passado páginas e

páginas a debater-se com a consciência,mas tenho tido o diário na cozinha e voudando uma vista de olhos sempre queposso. Mas o que me está a preocupar éque Noël deixou entrever que o Ned era

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má rês no que a mulheres dizia respeito:encantador e amável, mas de muitopouca confiança. E eu não paro depensar: e se a avó engravidou e confiouque ele assumisse as responsabilidadesdele?

– Não estarás a pôr o carro à frentedos bois? Ela não disse nada disso, poisnão?

– Até agora, não, mas dá que pensar...– Detive-me. – Laura, tu sabes que eunão sou de fantasiar ou romancear, massenti-me em casa desde o primeirominuto em que aqui cheguei. E, paraalém disso, estou constantemente a serconfundida com um membro da família.Até Noël se esquece que não sou. Os

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Martland são todos altos e morenos,embora não tenham olhos cinza-claroscomo os meus e os da avó.

– A tua avó não era alta, mas não tinhao cabelo escuro quando era nova?

– Sim, e ela disse-me que o meu tomde pele vinha do lado dela da família.Os antepassados dela eram oriundos deLiverpool, um porto de mar, e eu sempreparti do pressuposto que haveria sangueestrangeiro na família. Portanto, possoapenas estar a imaginar a minhaparecença com os Martland... A minhamãe também era bastante alta e tinhacabelo escuro – acrescentei, embora talnada provasse. Infelizmente, não faziaideia de qual era o aspeto do meu pai,

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pois depois de a minha mãe ter morrido,pouco depois de me ter dado à luz, eleemigrou para a Austrália e desapareceudas nossas vidas. A avó eliminou-oentão com esmero de todas asfotografias de casamento.

Havia rumores de que ele começarauma nova família por lá, portanto, épossível que tenha irmãos algures, masainda que já tivesse uma vez tentadolocalizá-lo – sem que a minha avósequer sonhasse! –, não consegui nada.

– Estou a ver onde queres chegar comtudo isso, Holly, mas pode ser apenascoincidência o facto de seres alta emorena. E, sendo o teu avô um pastorbatista estranho, não me parece que

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tivesse casado com a tua avó sesoubesse que ela estava grávida de outrohomem, não dirias?

– Parece de facto bastante provável,quando o colocas dessa forma – admiti.

– Ele era bem mais velho que ela, nãoera?

– Sim, a avó disse-me uma vez que eleera o pai do seu amor de juventude,aquele que morreu na guerra, e pareceu-me natural que casassem e sereconfortassem um ao outro. Mal melembro dele, embora toda a gente digaque era um homem do mais amável egentil.

– Talvez seja melhor continuares a lero diário em vez de estares já a tirar

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conclusões precipitadas – sugeriu Laura.– Suponho que tens razão. E, para

além disso, tenho demasiadas coisaspara fazer para me preocupar com isso.Mas posso tentar descobrir quandoocorreu o acidente de Ned e depoisconfrontar isso com as datas decasamento da avó e do nascimento daminha mãe. Trouxe a arca da papeladacomigo. Se as datas não coincidirem,então saberei com certeza.

– É verdade – disse ela. – E não valea pena preocupares-te com isso, tendoem conta que tudo pertence ao passado.Quero dizer, não é que vás reclamar atua parte da fortuna da família ou assim,não é?

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Soltei uma gargalhada.– Não me parece que haja qualquer

fortuna! A casa está bastante degradadae Jude Martland não contratou nenhunsempregados internos quando os últimosse reformaram. Para além disso, pareceobcecado com a quantia de dinheiro queeu lhe vou custar, ou que acha que lhevou custar. Eu devia mesmo cobrar-lhepor todo o trabalho extra que vou ter,pois a coisa está cada vez pior!

– Então, que se passa? O almoço deNatal não era apenas para a família quevive na casa do guarda?

– Era, só que eles já se mudaram paraOld Place, e a irmã de Nöel, Becca,também, portanto, isto transformou-se

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numa festa familiar de Natal. Eu sou acozinheira, a lacaia, a criada e a mulhera dias, embora, para ser justa, Beccatenha assumido a tarefa de tomar contados cavalos.

E depois contei-lhe o acidente deTilda e que convidá-los para semudarem para Old Place de imediatofora a única solução possível, quedepois Becca aparecera com o seucavalo e que entretanto descobrira queiria haver mais dois convidados para oalmoço: o vigário aposentado e a velhaama da família.

– Se nada disto agradar a JudeMartland, paciência. Quando regressarque resolva a questão com a família,

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pois eu nada pude fazer, estava de mãose pés atados. E também não pudemosconsultá-lo primeiro porque as linhascaíram.

– Não podias tentar ligar-lhe do teutelemóvel? – sugeriu Laura.

– Acabei de o fazer e dizia que onúmero não estava disponível. É umalívio não tê-lo a ligar-me todos os diase a irritar-me, pois nunca nenhum dosmeus clientes me fez uma coisa assim!

– Há de correr tudo bem, Holly.Também, que outra coisa podias tu fazer,não é? É como tu disseste, estavas demãos e pés atados – disse ela, rindo.

– Tens razão, não havia nada quepudesse fazer, muito embora tal

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implique que vá ter muito mais trabalhoe que tenha de participar de uma grandefesta de Natal em família.

– Talvez até descubras que gostas –aventou ela.

– Pelo menos, há comida e bebidasuficiente na casa para um cerco de dozemeses e Noël tem a chave da adega,portanto, isso será responsabilidadedele.

– Então, mesmo que a neve vos isolepor completo, não haverá problema?

– Problema nenhum, e acabei decomprar quase o recheio todo da loja daaldeia! Havia umas coisas que seestavam a acabar e comecei ainterrogar-me se não haveria de comprar

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uns presentes.Quando lhe contei dos doces e

rebuçados e da sugestão de OrielComfort de que fizesse uma meia deNatal para Jess, Laura também achougraça.

– Se a Jess não for já crescida de maispara uma, não te parece que a avó ou amãe dela terão pensado nisso epreparado uma já? – referi.

– Talvez, mas nunca se tem coisas amais no sapatinho, não é?

– Comprei um puzzle enorme com umacena natalícia para manter toda a genteocupada se o tempo piorar muito. Adona da loja disse-me que, se eu depoislho devolver com as peças todas, ela mo

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compra de volta por metade do preço.– Essa mulher parece hilariante.– E é... e parece-me que é também

uma rival minha. George, o agricultorque hoje me deu boleia até à aldeia, émeu admirador.

– A sério? E como é ele? – quis saberLaura toda interessada. – Jeitoso?

– É bem constituído, tem cabelo muitolouro, olhos azul-claros e um sorrisomuito atraente.

– Parece ser um borracho!– Mas o lado menos positivo é que já

está à beira dos cinquenta, é viúvo e temum filho adulto. Referiu-se a mim comouma moça muito bem-parecida e disseque as minhas mince pies eram uma

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maravilha, o que por estas bandas atépode muito bem constituir uma propostade casamento. Só que parece-me, poruma coisa que ele disse, que Oriel era aeleita dele antes de as minhas mincepies lhe terem roubado o coração.

– E estás a pensar bater-te com elapor ele?

– Não, acho que provavelmente meretirarei da disputa... embora ele atéseja jeitoso. Comprei um dos opúsculosda Oriel com frases e poemasinspiradores para os teus anos, e traz umsaco de compras a condizer.

– Mal posso esperar! Telefona-me nodia de Natal, se tiveres oportunidade,mas sei que será difícil escapares-te,

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por isso não me preocuparei se às tantasficares um dia ou dois sem daresnotícias.

– Tentarei. E podias telefonar à Ellenpor mim e pô-la ao corrente do que setem passado? – pedi, para estarprotegida no caso de o irritante Judeficar enxofrado com as minhascombinações. – E diz-lhe que não cobremais ao Jude pelas tarefas de cozinhar elimpar, pois ela mandou-lhe a lista depreços e ele acha que ela o vai fazer.

Laura prometeu fazê-lo e depois tevede desligar. O meu traseiro entretantopraticamente congelara contra o assentode pedra. Deixei os sacos onde estavame fui dar uma vista de olhos rápida à

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igreja. Estava fria, mas era bonita, comuma velha janela de vitral numa dasextremidades mostrando a arca de Noé etodos os animais a entrarem nela, dois adois, incluindo um par que seassemelhava a lesmas gigantes. Paramim, Noé podia ter fechado a arca aesses e também às aranhas e outrascriaturas menos agradáveis.

Pegando nos sacos, avancei até aoAuld Christmas, onde comi um deliciosoqueijo estaladiço de Lancashire, pão epicles no conforto do pub, vazio àexceção do velho Nicholas Dagger, quese encontrava na mesma cadeira decapuz frente à lareira.

Cavaqueei com Nancy durante um

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bocado e depois, talvez despertadopelas nossas vozes, Nicholas esticou opescoço para fora da cadeira como sefosse uma tartaruga.

– Eu sou o Auld Man Christmas –anunciou ele. – O meu pai foi o AuldMan Christmas e o pai dele antes delee...

– Sim, nós já sabemos, pai – travou-oNancy calmamente, acrescentando paramim num sussurro em jeito deexplicação: – Ele fica mais excitadonesta altura do ano.

– Não tem importância, Noël Martlandfalou-me um pouco acerca dos Revels edepois George Froggat falou também, acaminho daqui, quando amavelmente me

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deu boleia.– Então, eles falaram-lhe dos Revels?

– Nancy olhou-me prudentemente.– Apenas um pouco. Sei que é uma

cerimónia privada, apenas para a aldeia.Também participa?

– Não, não, apenas assisto. Asmulheres nunca participaram.

– Não acha um bocado machista?Ela fez um ar duvidoso.– Não, porque nós não queremos fazer

parte. Mas há um homem que se vestemetade de mulher. Do que eu gosto maisé do Rapping.

– Sabe, o George disse-me queparticipava no Rapping, mas eu acheique tinha ouvido mal. Pareceu-me um

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pouco improvável. Para além de rap,também há breakdance?

Nancy riu.– Não, o Rapping é apenas uma dança

com espadas.– Como, assim no chão, como a dança

escocesa?– É mais ou menos isso. Os

dançarinos entrelaçam as espadas demodo a formar uma espécie de nó.Então, depois de o Dragão ter matadoSão Jorge, coloca a cabeça no meio donó e os dançarinos decapitam-na.

– O Dragão mata São Jorge?– Sim, mas é apenas a fazer de conta e

o Doutor cura-o. O vigário diz que acerimónia é profundamente simbólica,

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que tem a ver com o renascimento eassim. Está tudo no opúsculo que eleescreveu.

– Noël disse que ia procurá-lo nabiblioteca de Old Place para eu ler.Então, os Revels terminam depois de acabeça do Dragão ser decepada?

– Basicamente, sim. São Jorgeressuscita, voltam todos a dançar epronto, acaba. No final, costumamosabrir o pub, mas as pessoashabitualmente já estão bem quentes porcausa do wassail10.

– Parece ser divertido.– Mistress Jackson, a antiga

cozinheira e governanta de Old Place,costumava trazer os bolos dos Revels,

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mas reformaram-se depois de o pai doJude ter falecido.

– Ai sim? E como eram esses bolos?– Eram assim uns bolos pequenos e

com especiarias, uma cobertura deaçúcar e muito açafrão para ficaremamarelos. Assim enrolados tipo umcaracol.

– Interessante. Vou procurar a receita.Talvez esteja lá em casa algures, eladeixou muitos livros de culinária. Se eua encontrar e tiver os ingredientesnecessários, faço alguns antes de irembora e depois o Jude pode trazê-loscom ele para os Revels.

– Ou, então, podia ficar para os

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Revels e trazê-los você mesma?– Acho que o Jude está à espera que

eu já cá não esteja quando ele voltar. Eeu, provavelmente, por essa alturatambém já estarei exausta e pronta paraum descanso! Estou habituada a cozinharrefeições para muitas pessoas, é issoque faço durante o verão, mas tudo o quefaço é preparar a comida e cozinhá-la.Agora, para além disso, ainda tenho delimpar e arrumar.

– O Natal é uma altura muito difícilpara as mulheres: não fazemos maisnada a não ser cozinhar e lavar louça,cozinhar e lavar loiça... – suspirou ela.

– E a Nancy, para além de tudo, aindatem de trabalhar aqui.

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– Olhe, é o que tem de ser – disse elacom resignação e depois foi chamada aobar, que começava a ficar maismovimentado, e eu fiquei entregue aofogo que crepitava, aos roncos do velhoNicholas e ao resto do meu queijo e pão.

Fiquei ali tranquilamente sentada a leras entradas seguintes do diário da avó,embora sem fazer grandes descobertaspara além do desejo dela de tornar oromance de ambos oficial.

Quando me preparava para sair,lembrei-me que queria meia garrafa debrande para o pudding flamejante deNatal, pois o brande que Noël trouxerada adega parecera-me demasiado bompara esse fim. Nancy estava a dar-me o

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troco quando a porta do pub se abriucom estrondo e uma loura alta e magraavançou a titubear para o interiorarrastando atrás dela uma enorme ebrilhante mala cor de rosa sobre rodascom uma frasqueira presa no cimo.

– Deve ser mais uma vítima do GPS –sussurrou Nancy. – Deve ser doidavarrida, se tentou subir a encosta com ocarro e com este tempo!

10 Um ponche quente associado a festas invernais eoriginariamente feito com cerveja, sumo de maçã eespeciarias. (N. da T.)

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Capítulo 18

Rainha do Gelo

Hoje acusei o N de adiar falaraos pais dele acerca de nós portemer que eles não fiquemsatisfeitos ou não me achem boao suficiente, por ser filha deoperários. Ele disse que os meuspais também não o aprovariam,por não ser batista estranho oubatista sequer.

Março de 1945

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– Está alguém? – perguntou ela,olhando de uma de nós para a outra aomesmo tempo que puxava para trás umenorme chapéu de pele branca que lhetombara por cima da cara, muito bonita,apesar de estar vermelha e brilhante defrio, cansaço e irritação. – Graças aDeus que há algum sinal de vida nesteburaco. Começava a pensar que toda agente tinha sido aniquilada pela pestenegra ou assim!

– Desviou-se da estrada principalpara ir para Great Mumming? –perguntei-lhe. – Nesse caso, o GPSenviou-a na direção errada.

– Não, eu queria vir para aqui, mas o

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meu carro deslizou no gelo na primeiracurva e agora está na valeta. Preciso dealguém que me leve a Old Place.

Nancy começara a observá-laatentamente.

– Você não é aquela modelo queestava noiva do Jude e veio cá no Natalpassado, e que depois se juntou com oirmão dele? A que chegou com um e foi-se embora com o outro?

– Suponho que pode ser descritodessa forma. Sou Coco Lanyon. Presumoque me conhece do anúncio televisivoao elixir facial Morning Dawn.

– Não – respondeu Nancysimplesmente. Depreendo que ela nãotenha muito tempo para ver televisão.

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Para além do chapéu de pele, Cocotrazia umas botas Ugg rosa forte e umcasaco acolchoado branco e comprido.O cabelo era também de um louro-platinado, mas o rosto continuava quasetão rosado quanto as botas.

A voz, um pouco para o esganiçado,deve ter penetrado nos ouvidos deNicholas, pois de repente o rostoencarquilhado do idoso apareceu emredor da cadeira de novo e ele declarouna sua voz aguda de elfo:

– Sou o Auld Man Christmas,sabiam?!

– Nós sabemos, pai – respondeuNancy. – Deixe-se estar aí descansadoque eu trato dos clientes.

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– Eu não sou cliente – abespinhou-seCoco. – Estou meramente à procura detransporte.

– Mas porque quer ir para Old Place?– inquiri e ela rodou os seus olhos azul-gelo na minha direção e olhou-me docimo do seu nariz retorcido... ou tentou,pois eu era vários centímetros mais altaque ela.

– E quem é a senhora?– Holly Brown. Estou a tomar conta

de Old Place enquanto Jude Martlandestá fora.

– Ah, ótimo... O seu marido trouxe-ade carro? É que nesse caso podemlevar-me para cima com vocês agoramesmo.

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– Está a confundir-me com o casal quehabitualmente vinha fazer este trabalho.Eu não tenho marido e não trouxe o meucarro hoje, pois não conseguiria subir omonte. Seja como for, por que motivoquer ir para Old Place?

– Quer dizer que o Guy ainda nãochegou? – perguntou ela, olhando-mefixamente.

– Quando eu saí de lá, há um par dehoras, não chegara e o certo é que nãoestávamos à espera dele... Ou de si.Porque achou que ele havia de estaraqui?

– Porque ele disse que ia estar aqui,claro!

– Mas... seguramente que não viria

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para Old Place estando zangado com oirmão? – fiz notar, perplexa.

– Oh, mas ele telefonou a Noël noinício da semana passada, por isso sabiaque o Jude iria estar nos Estados Unidosaté depois do Natal e que seria segurovir esconder-se para aqui. Mas o Guyque nem pense que o deixo safar-sedesta! Não pode largar-me assim sóporque eu mandei o anúncio do nossonoivado para o The Times e marqueiuma data para o casamento! Vamospassar o Natal a casa dos meus pais eeles convidaram toda a família para umafesta de noivado no feriado de BoxingDay.

– Então, não disse nada ao Guy antes

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de fazer isso tudo? – perguntou Nancy,claramente fascinada.

– Ele tem uma verdadeira fobia acompromissos e teria continuado a adiareternamente – explicou Coco. – Atépode ter fugido para aqui num momentode pânico, mas é bom que entretanto jálhe tenha passado, pois vai direitinhopara Londres comigo.

Não me admirava nada, pois mesmozangada e vermelha do frio e da ira elaera deslumbrantemente bela... para quemgostasse de louras gélidas com olhosazul-gelo, e, presumivelmente, tanto Guycomo Jude gostavam.

Fosse como fosse, eu é que não queriaoutra visita inesperada, portanto, por

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mim, ela estava à vontade para o levar.– Suponho que seja melhor regressar

comigo a Old Place. Não estou a ver queoutra coisa poderá fazer. Talvez eleentretanto já tenha chegado...provavelmente parou para almoçar pelocaminho ou assim. – Virei-me paraNancy. – Importava-se que deixássemosas malas aqui por um bocado? Eu tenhoas minhas compras todas e não meparece que a Coco consiga carregarmuito mais do que a frasqueira. A mala égigantesca!

– O quê, esta coisinha? – espantou-seCoco. – É apenas um malinha para umanoite, para o caso de decidirmosregressar amanhã bem cedo em vez de

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hoje. E não vou carregar nada para partenenhuma, pois ainda estou exausta dacaminhada desde o carro. Você pode iraté lá a casa e dizer ao Guy que mevenha buscar. Eu espero aqui e...

George enfiou a cabeça na porta meiaaberta naquele preciso momento e,avistando-me, disse:

– Logo vi que estava aqui, Holly, aOriel disse-me que viera nesta direção.Quer boleia de regresso a Old Place?Está a nevar de novo e eu já vou devolta a casa.

– Eu quero certamente! – exclamouCoco e George ergueu uma sobrancelhaloura na direção dela.

– Esta é... – Detive-me. – Lamento,

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esqueci-me do seu apelido.– Coco Lanyon, a modelo.– É aquela que estava noiva do Jude o

Natal passado, mas que depois o trocoupelo irmão – explicou Nancyprestavelmente.

– Só que agora estão de candeias àsavessas – acrescentou Nicholas. Estavaevidentemente a seguir o intrincadoenredo sem dificuldade, agora queestava totalmente desperto. – Ela achaque ele está em Old Place e veio atrásdele.

– Ah, então já percebi! Pareceu-mever aquele enorme jipe preto do Guysubir a estrada – explicou George. –Está bem carregada de areia e saibro,

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por isso ele tentou a sorte eprovavelmente foi bem sucedido.

– Pronto, estão a ver? – disse Coco. –Ele sempre cá está.

– O carro que está enfiado na berma éseu? – inquiriu George. – O Ben deWeasel Pot disse-me que um loucoqualquer tentara subir o monte com umcarro desportivo.

– Um louco – corrigiu Nancy e Cocolançou-lhe um olhar mortífero.

– Sim, é meu, e queria que fosserebocado e levado para Old Place omais depressa possível.

George tirou o carapuço e coçou acabeça pensativamente.

– Os rapazes de Weasel Pot rebocam-

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no, mas vai custar-lhe dinheiro. E nãovale a pena tentarem levá-lo até láacima à casa, mais vale deixarem-noaqui na aldeia. Aqueles carros sãodemasiado baixos para andarem naneve, ou sequer no campo – acrescentouele depreciativamente.

– Talvez – respondeu ela num tomaltivo. – Agora, se faz favor, leve-me aOld Place.

– Se não se importa, George – pedi,encolhendo os ombros como quem pededesculpa. – Basta até à casa do Nöel,não quero dar-lhe mais maçada. Epodemos deixar as malas lá. Talvez oGuy depois possa ir lá buscá-las.

– Não seja palerma, eu quero ficar

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mesmo à porta de casa – insistiu Coco. –Você se quiser andar a pé, que ande.

– Eu a si levo-a de bom grado a casa,Holly, mas agora trago duas ovelhas noatrelado e o cão vai à frente, por issonão tenho espaço para mais passageiros.– Voltou a erguer a sobrancelha lourapara Coco. – A menina terá de ficar àespera a ver se o Guy vem buscá-la, anão ser que queira tentar pedir boleia aoBen... Deve estar ali no bar.

– Ben?– De Weasel Pot.– Mas que raio é essa tal de panela de

doninhas de que vocês não param defalar? – perguntou ela irritada.

– A quinta por que passou depois de

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ter saído da estrada principal – disse-lhe eu. – Têm um contrato com a câmarapara limpar a neve da estrada até àaldeia e aqui o George limpa a partir daaldeia para baixo.

– Isso mesmo e já agora pode pedir aoBen que lhe reboque o carro – sugeriuGeorge.

– Ouça, eu estou com muita pressa,portanto, você pede boleia a esse talBen e diga-lhe que me reboque o carro –decidiu Coco, falando para mim. Depoisolhou para George e apontou-lhe a mala,esperando obviamente que ele lhacarregasse. – Vá, estou pronta, mas teráde colocar o cão atrás.

– Lamento, mas não posso –

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argumentou ele, não lamentando nada. –E eu não lhe ofereci boleia a si. Nãogosto nada desse perfume que traz e, sedeixar o meu Land Rover a tresandar aalmíscar, os cães vão ficartranstornados. É espremido dasglândulas das doninhas, sabia?

Ela olhou-o fixamente.– Disparate! Este perfume é muito,

muito caro, e não usariam uma coisaassim!

– Não é das glândulas de um rato? –fiz eu notar. – Parece-me que é.

– Tem razão, Holly – admitiu ele.– Há um ditado antigo do Lancashire

acerca das doninhas – disse o velhoNicholas e depois declarou numa voz

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aguda e monótona: – «Se vires umadoninha, mija-lhe na orelha. Se viresoutra, ata-lhe o rabo com um cordel.»

– Que raio quer isso dizer? – quissaber Coco.

– Não faço ideia – respondeuNicholas. – He, he!

– Senil! – murmurou ela e, virando-lheas costas, lançou um sorriso sedutor aGeorge. – Por favor, leve-me até OldPlace. Estou tão cansada e gelada!Posso pagar-lhe o frete.

– Já lhe disse que vá tentar a sua sortejunto do Ben. Comigo não vai a ladonenhum – decidiu ele e ela arrancoufuriosamente na direção do bar.

– Esperemos que consiga livrar-se

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dela e do Guy esta noite – disse George,ajudando-me a entrar no Land Rovercom as minhas milhentas compras. –Caso contrário, ela não irá conseguir irpara casa naquele carro desportivo, poissó um carro alto de quatro rodasmotrizes conseguirá descer a estrada.

– Mas o Guy tem um desses. Não é?Suponho que ele a leve de regresso estanoite e depois tome providências emrelação ao carro dela – aventeiesperançosamente.

O cão-pastor acomodou-se no bancopara me dar espaço e seguimos viagem,recusando-se George a parar até termoschegado à porta da frente, ondeencontrámos um enorme jipe ainda a

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fumegar: Guy chegara.

Entrei em casa com as compras eencontrei a família toda na sala de estar,que alguém engalanara artisticamentecom festões e grinaldas de verduraartificial misturada com a verdadeiraque o George trouxera.

Tilda estava sentada no seu lugarhabitual no sofá, frente à lareira, Merlindormia profundamente no tapete aos pésdela, enquanto Noël, Becca e Jesscolocavam os toques finais na árvore deNatal.

Um homem alto, moreno, magro emuito bem-parecido estava inclinadosobre a prateleira da lareira a observar

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as decorações e facilmente o teriareconhecido a partir das fotografias defamília ainda que não estivesse à esperade o encontrar.

Quando entrei e pousei os pesadossacos, achei que a sala parecia uma cenade uma peça de teatro, em especial pelaforma como todos se viraram para olharpara mim como se lhes tivesse sido dadaessa deixa. Merlin levantou-se eavançou para mim com a cauda a abanarde alegria.

– Ah, Holly, já chegou! Tivemos umaadição inesperada à festa familiar –anunciou Noël alegremente. – Este é oGuy, o irmão mais novo do Jude.

– Como está? – cumprimentou-me ele

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com um encantador sorriso e um apertode mão. – A minha família já me pôs aocorrente de tudo sobre si!

– Dito assim, parece ominoso –respondi, dobrando-me para fazer umasfestas a Merlin. – Na verdade, eu jásabia que estava aqui, porque acabei deme cruzar com a sua...

– Trazes alguma coisa para mimnesses sacos de compras? – interrompeuJess.

– Sim, uns ornamentos de chocolatepara a árvore. – Remexi no saco de jutae encontrei-os.

– Boa! Não tínhamos nenhum e ao tioGuy não ocorreu trazer nada de nada.

– Não achei que precisava de trazer,

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pois estava à espera de encontrar aquelecasal que o Jude contrata quando seausenta. E, uma vez que sabia que elestinham convidado a Tilda, o Noël, aBecca e a Jess para o dia de Natal,pensei que mais um não faria qualquerdiferença.

– E sabias que o tio Jude não estavacá para te pôr na rua – fez notar Jess. –Foste cobarde e traiçoeiro ao fugirassim com a namorada dele, ainda queeu não gostasse muito dela!

– Nem eu, agora, e é por isso queestou aqui – disse ele num tom meiodesanimado e, pelos vistos, poucoofendido com a crítica.

– Jess, isso foi muito incorreto da tua

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parte – admoestou Tilda.– Mas não deixa de ser verdade.

Sempre quiseste o que o teu irmão tinha,desde criança. E depois, assim que oconseguias, perdias o interesse –declarou Becca sem rodeios. – E tivestemuita lata ao pensar que podiassimplesmente vir para aqui enquanto oteu irmão estava fora e seres apajeadopelo casal que estava a tomar conta dacasa.

Guy corou até à raiz dos cabelos.– Uma das razões por que vim foi

porque estava preocupado com o Noël ea Tilda, que iam ficar aqui sozinhos. Foiirrefletido da parte do Jude cancelar oNatal e ir-se embora assim do pé para a

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mão.– A ida a Nova Iorque já estava

agendada e nós dissemos-lhe quepassasse lá o Natal e não sepreocupasse connosco, que cá nosarranjaríamos. Na verdade, eu até queriavoltar a cozinhar um almoço de Natal –afirmou Tilda – e tê-lo-ia feito não foraaquela maldita queda.

– E terias cozinhado um almoçomagnífico, minha querida – disse Noëlpara a reconfortar. – Mas estamos muitofelizes por estar de volta à velha casa defamília e entregues aos melhorescuidados da Holly, não estamos?

– Percebi que era o que toda a gentequeria e não iria desapontar-vos –

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argumentou ela, colocando-se no papelde uma mártir com satisfação, emboraclaramente tivesse ficado mais do quealiviada por ter sido trazida para aqui eadulada. – Portaste-te muito mal, Guy,por isso compreendemos o motivoporque este ano o Jude quis algodiferente e afastar-se daqui, em especialquando descobriu aquele anúncio denoivado.

– Sim, isso está tudo muito certo, maso Jude agora é o chefe da família e temresponsabilidades, tais como garantir osdevidos cuidados à Old Nan e aoRichard – fez notar Becca, abanando acabeça. – Não precisava de convidar oGuy e aquela rapariga, e assim não

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haveria problema.– Pronto, esqueçamos isso. Graças à

amabilidade da Holly, tudo se resolveupelo melhor – argumentou Noël – e oJude regressará para a Noite de Reis,que é o mais importante.

– Ainda não nos disseste porque teaventuraste até aqui, Guy – disse Tilda.– Não nos disseste a semana passadaque irias passar o Natal em Londres comaquela rapariga? – Franziu a testa. –Como é o nome dela? Tem qualquercoisa a ver com palhaços.

– Coco – respondeu Jess. – Como ofruto. Embora fosse bem pior se sechamasse banana, não seria? –acrescentou inocentemente.

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– Pronuncia-se de forma diferente,presumo, como Coco Chanel – referi. –E por falar em Coco...

– Eu acho que banana fica-lhe bem.Vou passar a chamar-lhe isso a partir deagora – interrompeu Jess já nabrincadeira.

– Preferia que não o fizesses, querida– pediu Tilda.

Guy sorria.– Não seja uma desmancha-prazeres,

Tilda! Felizmente, não terás de lhechamar nada, Jess, porque ela não estácá. Assim como assim, no Natal passadoela não gostou muito de Old Place, émais uma menina da cidade a nossaCoco.

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– Devo presumir que te fartaste dela,como de todas as tuas restantesnamoradas? – perguntou Tilda com umaligeira indulgência. Guy parecia ser opreferido dela. Já Becca nãodemonstrara complacência. Suponho queaquele charme dele não tem o mesmoefeito em toda a gente.

– Digamos que houve umas coisas queme abriram os olhos – admitiu ele. – Ascoisas ficaram tremidas quando elapublicou aquele anúncio de casamentonos jornais, e depois, quando me disseque os pais dela estavam a organizaruma enorme festa de noivado no feriadode Boxing Day, eu pensei, «obrigado,mas não» e pus-me a milhas. – Encolheu

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os ombros. – Ainda não estou preparadopara esse tipo de compromisso.

– Como eu disse – observou Beccasem clemência –, assim que consegues oque queres, perdes o interesse.

– Obrigado por essa rápida avaliaçãode caráter, Becca, mas a verdade é queela foi tão fácil de roubar que acho quefiz um favor ao Jude. Se eles se tivessemcasado, seria um fiasco. – Lançou-meum sorriso encantador. Pareciadispensá-los em abundância. – Masprefiro estar aqui, no seio da minhafamília. Não se importa que eu fique,pois não, Holly? Não me poria na rua,ao frio e à neve, pois não? – adulou-meele.

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Era um adulador, tão encantador epouco digno de confiança quanto umacobra. Se saísse ao seu tio Ned, entãonão era nada de estranhar que a pobre daminha avó, inocente e educada de formatão rígida, se tivesse deixado encantartão depressa e de forma tãoirremediável!

Olhei impotentemente para Noël eTilda.

– Eu... bom, isto está tudo a fugir domeu controlo! Eu apenas fui contratadapara olhar pela casa e cuidar dosanimais e de repente vejo-me aorganizar uma festa de Natal familiarsem a permissão do dono da casa! Etambém não consegui falar com ele ao

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telefone, embora tenha tentado.– Oh, mas o Jude não objetará,

asseguro-lhe – disse Noël. – Elecompreenderá.

– Não sei se não, Noël, porque anamorada de Mister Martland está...

– O tio Jude não se importaráminimamente connosco – interrompeuJess –, mas não vai gostar de saber queo tio Guy cá está!

– Quem me dera que não mechamasses tio, querida, faz-me sentirterrivelmente velho – queixou-se ele.

– Tu és terrivelmente velho – disse elanuma voz trémula.

– Se achas que sou velho, minha Mini-Morticia, então, o teu querido tio Jude

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deve ser jurássico!– Mas eu não o considero velho

porque ele é divertido – argumentou ela,o que para mim constituiu uma surpresa,pois nada do que ouvira acerca dele atéentão me levara a pensar nele como umapessoa divertida. – És idiota e mau eestás a ficar cheio de rugas em redor dosolhos.

– Rugas de expressão – argumentouele, embora tenha virado a cara eexaminado ansiosamente o rosto noturvo espelho por cima da lareira. –Sim, rugas de expressão... É o ruído deum carro que ouço? – inquiriu ele. –Não estão à espera de mais ninguém,pois não?

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– Não estávamos sequer à tua espera –fez notar Becca.

Jess correu à janela.– Oh, olhem, é o Ben, de Weasel Pot!Ficou toda corada, por isso era óbvio

que tinha uma paixoneta pelo jovemagricultor. Mas depois lamentou-se:

– Oh, não, foi-se embora sem sequerentrar para dizer olá! Mas deixoualguém... Uma mulher com uma malaenorme. Quem será?

– É isso que tenho tentado dizer-vos –disse num tom desesperado. – É...

A Jess virou-se para nóssobressaltada.

– É a Banana, e vem com um armesmo zangado! Tranco a porta?

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Capítulo 19

Coco Ralado

O N foi dispensado do exércitopela junta médica e disse-meque um amigo do pai lheofereceu um emprego, paracomeçar assim que estivessecapaz para trabalhar. Achei queme pediria então em casamento,tendo em conta que em breve seencontrará numa situação emque poderá sustentar uma

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mulher, mas ele não o fez...Abril de 1945

Era tarde de mais para seguir a seguira sugestão de Jess e Coco nem sequer sedeu ao trabalho de bater, entrando derompante e com o aspeto de umaprincesa do gelo ligeiramente suja ebarata.

Suponho que não lhe ocorreu que iriaterminar a sua viagem na cabina de umtrator, amarrotada com a mala dela, quelargava agora na soleira da porta comum valente estrondo. Parecia estar defacto gasta e a precisar de substituição,tal como Coco: o branco não era talveza cor mais apropriada para viagens

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difíceis. Estava também obviamente comum humor explosivo, que não melhoroucom a receção que teve.

– Oh, meu Deus, que fazes tu aqui? –perguntou Guy num tom penoso, eBecca, Tilda e Noël olharam-nafixamente, assombrados e aborrecidos,como quem recebe visitas inoportunas.

– Como assim, que faço aqui? Nãopenses que podes dar-me com os pésdaquela forma e escapar impune sóporque entraste em pânico perante aideia do casamento. Conforma-te, poisvais voltar para Londres comigo agoramesmo!

– Isso é que era bom – respondeu ele.– Podias ter-me consultado antes de

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enviares anúncios de casamento para osjornais e de organizares festas denoivado.

– Tu concordaste comigo quando eudisse que um casamento em maio seria omelhor, mas que era preciso escolher adata depressa antes que ficasse tudolotado!

– Sou bem capaz, porque não ouçometade dos disparates que tu dizes. Masseguramente que nunca disse que queriacasar em maio ou noutra altura qualquer!

– Ora, foi por isso que ficámosnoivos, não foi?

Ele encolheu os ombros– Montes de pessoas ficam noivas e

isso não leva a lado nenhum, e tu não

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paravas de fazer um grande caso disso.Eu não fazia ideia que irias mandar oanúncio para a porcaria dos jornais! Edescobrir que os teus pais tinhamorganizado uma reunião familiar paranos darem a sua bênção foi a últimagota.

– Não convidaram a famíliaespecialmente para isso, apenas lhespareceu uma boa altura para brindar aonosso noivado, aproveitando que afamília estaria toda presente –barafustou ela.

– Então, vai tu brindar, eu vou ficaraqui mesmo.

– Ora essa, não sejas disparatado!Vim a conduzir este tempo todo e o meu

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carro acabou numa valeta, tudo porcausa de ti. É claro que voltas comigo.

Lançou um olhar furioso a Jess, queentretanto começara a entoar entredentes: «Ba-na-na, ba-na-na, ba-na-na!»

– A criança tem mesmo de fazer tantobarulho? – reclamou Coco.

– Jess, querida, já chega – disse Tilda.– Ela não gosta de ti – explicou Guy. –

Nenhum de nós gosta de ti.– Então, Guy – admoestou Noël. –

Que maneiras são essas! Coco,aproxime-se do fogo para se aquecer.Espero que não tenha ficado magoadaquando o carro caiu na valeta?

Coco tivera um dia longo e fatigante enão estava a ouvir Noël. Virou-se para

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Guy e, como seria de esperar, perdeu asestribeiras por completo, proclamandona sua voz, agora ainda mais esganiçada,algumas coisas muito pessoais acercadele, que, percebi, Jess estava a guardarpara uso futuro.

Provocado, Guy começou a retribuircomentários igualmente maldosos,portanto, uma vez que uma batalhacampal parecia estar a começar, pegueinos meus sacos e fui para a cozinhaseguida por Merlin.

Tive de acender todas as luzes porquecontinuava a nevar com força e parecianão ir parar tão cedo, o que era umpouco preocupante em termos dasperspetivas de vir a ver-me livre das

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duas visitas não desejadas...Arrumei tudo num instante,

escondendo os presentes sob uma pilhade panos de cozinha para o caso de Jessdecidir procurá-los antes de eu tertempo de os embrulhar.

Depois fiz uma chávena de caféenquanto me interrogava se conseguiaesticar o jantar de puré e salsichas commolho de mostarda que planeara paraincluir mais dois comensais, ou se seriamelhor descongelar mais salsichas. Asobremesa podia ser uma espécie deEton Mess11, com framboesas enlatadase mais chantilly trazido da casa deTilda. Ou podia fazer qualquer coisacom as bananas muito maduras deixadas

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pelos Chirk...

Consultei o menu do dia seguinte: trutagrelhada para os adultos – havia umabundante fornecimento na arca – edouradinhos caseiros de salmão para aJess, se ela não gostasse de truta. E asobremesa seria aquela que nãocomêssemos esta noite.

Acabara de colocar outro bolo rápidode chocolate no forno e de fazer umaentrada fácil de patê de sardinha para secomer com pão torrado, quando Becca eJess vieram ter comigo à cozinha.

– A Tilda e o Noël bateram emretirada para a saleta para veremtelevisão – disse Becca. – A coisa está a

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aquecer lá dentro. Suponho que aindahaverá lágrimas antes da hora de deitar.O Guy acabou de lhe dizer que não podelevá-la a lado nenhum esta noite, aindaque quisesse, porque bebeu doisvalentes uísques assim que chegou.

– Oh, meu Deus, a sério? – desanimei.– Estava com esperança que ele pelomenos a levasse à estação de comboiosmais próxima, uma vez que tem aquelejipe enorme. O tempo está a piorar e,mesmo que o carro dela não tenha ficadoavariado, não me parece que vá a algumlado com estas condições. O Georgetambém achava que não.

– Bom, não me parece que haja umcarro da polícia na berma da estrada

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com este tempo à espera de apanharcondutores embriagados – fez ela notar.– Ele é que simplesmente não quer fazê-lo.

– Gostaste das decorações de Natal? –perguntou Jess.

– Sim, muito bonitas; quando chegueinem tive oportunidade de as elogiar.Quem fez os arranjos com a hera, oazevinho e o visco? Muito maiselegantes do que enfiar os ramos emjarras, como eu fiz com o primeiro ramoque o George me deu!

– Fui eu – respondeu Becca –, umasdas inúteis coisas que aprendi na escolade etiqueta.

Lancei um novo olhar preocupado

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para a rua.– Continua a nevar. Acha que

devíamos trazer os cavalos para dentro?– Sim, foi por isso que eu e a Jess

viemos. Eu vou tratar disso e aproveitoe dou-lhes a farelada quente. A Jessajuda-me.

– Estou tão satisfeita que esteja aquipara cuidar da Lady – agradeci. – Vouestar tão ocupada com tudo o resto quesaber que a Becca olha pelos animais éum peso que me sai de cima dos ombros.

– Ora, eu assim como assim tambémjá teria de tratar do Nutkin, por isso,mais um ou menos um não faz diferençaquando tenho uma escrava voluntáriacomo a Jess para fazer o trabalho

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pesado e manter o raio da cabra longedo caminho.

Jess lançou-lhe um olhar pesaroso:limpar cocheiras e empurrar carrinhosde mão não era o passatempo preferidodela, obviamente, muito embora já setenha resignado ao seu fado.

– Aquele bode é o diabo – comentouela amargamente. – Tenho as pernascheias de nódoas negras das marradasque ele me dá.

– Antes do almoço levámos o Merlina dar um passeio – informou-me Becca.– Ele estava cheio de saudades suas.Extraordinária a rapidez com que ele seafeiçoou a si. Parece a sua sombra.

– É verdade, deve ser por sentir a

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falta do dono – aventei. Merlin, ouvindoo seu nome, abanou a cauda, olhandopara mim com os seus carinhosos olhoscor de âmbar.

– Depois de tratarmos dos cavalos,vou levar o trenó de novo para o cimodo cercado. Queres vir, Holly? –convidou Jess. – Podes levar o outrotrenó.

– Adoraria, mas preciso de prepararos legumes para o jantar e queriacolocar a camada de gelatina no trifle –argumentei. – Mas amanhã, estácombinado. E podíamos fazer e decoraruns biscoitos de gengibre parapendurarmos na árvore, se tu quiseres?

– Sim, boa, vai ser divertido!

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Depois de elas saírem, a discussão nasala de jantar continuava a ouvir-se,apesar de a porta do corredor estarfechada. Consegui escutar tiradasmelodramáticas como:

– Rompi o noivado com o Jude por ti!– Eu não to pedi. Era apenas uma

brincadeira até o Jude nos ter apanhado.– Não foi isso que disseste na altura.

Pensei que me amavas!– Não sou responsável pelo que

pensas, graças a Deus.Depois disso, fechei a porta da

cozinha também e liguei o rádio. Nãoprecisava de começar já a fazer o jantar,mas, tendo em conta que parecia que iriaficar sozinha durante algum tempo,

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aproveitei para fazer os meus presentes.Escaldei os frascos de compota vazios

e sequei-os muito bem antes de osrechear com os rebuçados e tapar cadaum deles com um círculo de celofane eoutro de guardanapo em xadrezencarnado e branco, seguro com umelástico encarnado. Ficaram muito giros.

Embrulhei-os e etiquetei-os, àexceção de dois que fiz a mais paraalguma emergência. Depois, voltei aesconder tudo de novo sob os panos,incluindo as coisas para a meia de Jess.Fiz uma nota mental para falar dissomais tarde a Noël ou a Tilda.

Becca voltou para dentro, os caracóissalpicados de neve.

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– Está quase de noite e continua anevar... e é impressão minha ou as luzesestão a tremer?

– Estão mesmo, e já há algum tempo.Espero que não nos cortem aeletricidade.

– De vez em quando acontece, mastemos o gerador. E aqueles dois? –Apontou com a cabeça na direção dasala. – Continuam a discutir?

– Eu diria que sim, a não ser que umtenha assassinado o outro e esteja lá foraa enterrar o corpo na neve.

– Capaz! – concordou ela. Olhouentão em redor com um ar de aprovação:– A cozinha tem um ar diferente desdeque a Holly chegou. Mais limpa, para

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começo, e é ótimo ver o Aga a ser usadode novo.

– Acho que a Mo já tinha começado alimpar aqui, mas a Sharon parecia nãoter tocado em nada de nada. Nemimagino o que fazia quando cá estava.

– A Sharon era pior que inútil. Eusugeri ao Jude para arranjar outro casalque cuidasse da casa, mas ele disse quesabia cuidar dele mesmo.

– Não é muito fácil arranjarempregados internos hoje em dia e,quando se encontra, são muitodispendiosos.

– É verdade, e então gente quetambém saiba cozinhar é como encontrardentes numa galinha. Que cheira aqui tão

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bem?– É outro bolo de chocolate. Os bolos

parecem desaparecer em três tempos!– Maravilhoso. – Becca inclinou a

cabeça na direção da porta, a ver seescutava qualquer barulho vindo da salade estar.

– Aquelas bandas estão ominosamentesilenciosas – comentou ela.

– Eu fechei a porta da cozinha paranão os ouvir.

Ela levantou-se e voltou a abri-la.– Ena, ena, ela agora chora de forma

histérica.– Ainda bem que descongelei mais

salsichas – disse num tom lúgubre. –Acho que nenhum deles vai a lado algum

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esta noite.– O tempo piorou desde há bocado,

por isso não é muito aconselhável até asestradas serem desimpedidas amanhã demanhã.

– A não ser que fiquemos totalmentecobertos de neve da noite para o dia, jápensou nisso?

Tilda entrou na cozinha, os saltos dosseus mules de veludo tamborilando nochão de pedra, e sentou-se numacadeira.

– O imbecil daquele rapaz deu umpouco de brande à Coco, para ela pararde chorar, portanto, só nos livraremosdela amanhã!

– Nós já nos tínhamos conformado

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com isso – disse eu. – Presumo queassim precisaremos de mais duas camasfeitas.

Guy apareceu então, com um arvexado, o que não era de admirar, umavez que se conseguia ouvir o chororuidoso e irado dela e o ocasionalinsulto, «Canalha, filho da mãe», desdea sala de estar.

– Tem um belo par de pulmões, lá issotem – comentou Becca.

– As coisas estão um bocadinhocomplicadas – disse Guy com umsorriso torcido. – A Coco quer ir paracasa, mas eu não arrisco o meu carro alevá-la lá abaixo a ver se o dela já foirebocado. Está a nevar tanto que não

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conseguiria voltar para cima. É umachatice que o Jude tenha levado o LandRover. Com ele já me safava.

– Pode levá-la de volta a Londres noseu carro amanhã de manhã – sugeri.

– Nem pensar. Eu já lhe tinha dito queestava tudo acabado entre nós, por issoé culpa dela que não tenha acreditadoem mim e tenha vindo até aqui em vão –respondeu ele cobardemente.

– Então, que vai ela fazer?– Tem de dormir aqui esta noite e

depois talvez amanhã consiga umaboleia até à aldeia com o George,quando ele limpar o nosso caminho,para ver se o carro dela ainda funciona.– Encolheu os ombros. – Se não, talvez

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possa subornar um dos rapazes para quea levem à estação. Por isso – concluiuele, lançando o sorriso mais encantadorque conseguiu esboçar na minha direção–, estava aqui a pensar se não seimportava de ser uma querida e fazermais uma cama para além da minha?

– Não fiz a sua – disse sem demoras–, nem vou fazer! Penso que saiba ondefica o armário da roupa de cama?

Ele foi apanhado de surpresa.– Ah... certo.– Acho que a Coco terá de ficar no

pequeno quarto no piso do quarto dascrianças, ao lado da Jess, coisa que nãolhe vai agradar nada. Tirando isso, só háo quarto do Jude, que está trancado, e

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nem o Noël tem a chave dele.– É quase uma casa cheia! – comentou

Becca– Há também o outro quarto dos

empregados nesta ala, já me tinhaesquecido disso, mas é um poucoespartano e tem um ar abandonado –referi.

– Ela não iria gostar nada disso –respondeu Guy.

– Nesse caso, dá-lhe o teu quarto e vaitu dormir num dos outros – sugeriuBecca.

– Nem pensar! Ela que fique no quartoao lado do das crianças. – Deteve-se,olhando-me de novo em busca de sinaisde que eu me compadecera dele. – Bom,

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suponho que é melhor ir tratar dascamas, então – declarou por fim.

Becca levantou-se.– Eu dou-te os lençóis, ou só Deus

sabe o que porás nas camas. Toalhas demesa, provavelmente. Mas, depoisdisso, estás por tua conta, pois eu játratei dos cavalos e estou cansada.

– É assim mesmo – disse-me Tildanum tom aprovador quando eles saíram.– Ele é bom rapaz, mas está sempre àespera que as pessoas façam tudo porele.

– Eu só queria tornar bem clara aminha posição. Não sou uma empregadae não vou andar a correr atrás dele.

– Com certeza que não. Nós temo-la

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na conta de convidada, quase ummembro da família – explicou Tilda comamabilidade. – E é muito boacozinheira, minha querida. Vem aqui umcheiro divinal.

– É o bolo de chocolate – voltei aexplicar. – É melhor tirá-lo do forno. E,se a Tilda ligar a chaleira, faço um chápara nós num instantinho. Também háscones de queijo.

– De compra? – torceu Tilda o narizao mesmo tempo que eu desenformava obolo.

– Não, caseiros, feitos por mim.Becca regressou e por acordo tácito

tomámos o nosso chá na mesa dacozinha, deixando Coco como ocupante

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solitária da sala de estar, embora eu lhetenha oferecido uma chávena de chá eum scone quando levei o tabuleiro como de Noël à saleta, que ela rejeitou comuma óbvia aversão.

Tilda perguntou-me o que era o jantare aprovou a minha escolha de puré comsalsichas.

– Comida reconfortante de inverno!– Fiz patê de sardinha para entrada.

Podíamos comê-lo com tostas na sala deestar.

– E a sobremesa?– Pode ser Eton Mess de framboesas

ou então tenho ali bananas já muitomaduras que os Chirk deixaram e podiafazer creme de bananas frio ou bananas

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em rum, com natas. Que lhe parece?– Oh, o creme. Com um pedacinho de

noz-moscada em cada tacinha.– Está bem – concordei. Para além

das natas em spray, a noz-moscada e apaprica, pela quantidade que vinha nacaixa trazida da casa dos Martland,pareciam ser ingredientes fulcrais nacozinha de Tilda. – É melhor entãocomeçar a fazê-lo para ficar consistenteantes do jantar.

Enquanto eu preparava o creme, Tildaprestou-se a cortar as bananas e acolocá-las nas tacinhas, conversandoacerca das suas glórias passadas natelevisão, em especial a sua série sobrecanapés, assunto em relação ao qual

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iluminara a nação.– Não precisa de se preocupar com

canapés enquanto eu aqui estiver –garantiu-me ela generosamente.

– Isso é uma enorme ajuda e umdescanso – assegurei-lhe.

– É melhor ir chamar a Jess – lembrouBecca. – Já me tinha esquecido que elaestá lá fora e já está escuro como breu.Ela já deve estar congelada.

Aproveitei para perguntar a Tilda seJess ia ter uma meia de Natal.

– O ano passado teve – disse Tilda –,mas a Roz, a minha filha, agora nãomencionou nada quando deixou asprendas da miúda. Talvez se tenhaesquecido, é uma desmiolada. Ou talvez

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a Jess já não seja disso?– Mistress Comfort disse que qualquer

idade é boa para uma meia, por isso eucomprei umas coisinhas para fazer uma.

– Nesse caso, faça então – ordenouela ao mesmo tempo que Jess entravacorada de frio e coberta de neve e foicorrida para o vestíbulo para despir ocasaco e as botas.

11 Sobremesa inglesa tradicional – uma mistura demorangos, pedaços de suspiros e natas batidas –servida na Universidade de Eton. (N. da T.)

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Capítulo 20

Apagão

Começo a interrogar-me se aHilda e a Pearl não estão certasacerca do N, pois, apesar daoferta de um emprego, ainda nãome pediu para casar com ele. Decada vez que nos vemos, eleassegura-me que iremos estarjuntos sempre, mas eu não possocontinuar assim, com estesencontros secretos, por isso

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disse-lhe que não voltaria aencontrar-me com ele a não serque concordássemos em falarcom os nossos pais eassumirmos um compromisso.

Abril de 1945

Por sorte, Coco retirou-se para o seuquarto assim que ficou pronto, portanto,toda a gente pôde regressar à sala deestar para desfrutar uma bebida antes dojantar frente à lareira enquanto punha amesa na cozinha para o jantar.

Agora que éramos tantos, suponho queteria feito sentido usar a sala de jantar,mas sentia-me demasiado cansada paraandar de um lado para o outro a carregar

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louça. Não, a cozinha servia muito bem.E, com um pouco de sorte e algumamelhoria do tempo, talvez meconseguisse ver livre de Guy e Coco demanhã. Fazer com que Coco chegasse sãe salva a casa era responsabilidadedele, afinal de contas. Também não oqueria a ele aqui, por mais charme queme lançasse.

Não fazia mesmo nada o meu género,mas se Ned Martland era de algumamaneira parecido com Guy, entãopercebia por que a avó se apaixonarapor ele e não me surpreendia nada queele agora estivesse a tratá-la daquelaforma.

Corri ao quarto para colocar um

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pouco de maquilhagem, pentear o cabeloe trocar as calças de ganga por outrasmais bonitas de crepe preto, vestindouma túnica com o decote debruado compérolas. A noite anterior, tanto Beccacomo Tilda haviam descido para jantarcom saias compridas, embora, tendo emconta que Noël e Jess não tinhammudado de roupa, talvez o tenham feitomais por uma questão de conforto.

É claro que, quando cozinho parafestas e reuniões, não me preocupo como que visto, uma vez que não como comos clientes mas na cozinha. Contudo,desta feita íamos comer todos nacozinha.

A família estava reunida na sala de

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estar quando entrei com o patê e astostas num tabuleiro. Tilda e Beccaestavam de novo de saia comprida eNoël vestia agora uma camisa dequadrados por baixo de um casaco develudo azul-escuro, ao passo que Guy,de caxemira cor de aveia, seassemelhava a um anúncio de roupa dehomem dispendiosa. Jess tinha umfornecimento infindável de calças deganga e tops pretos, portanto, eraimpossível perceber se mudara de roupaou não. Estava sentada à mesa junto àjanela, a fazer qualquer coisa compedaços de papel.

– Deixe-me cá ver isso que eu pego,parece muito pesado – ofereceu Noël,

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começando a pôr-se de pé como se eufosse uma criatura frágil e não umaamazona de um metro e oitenta.

– Deixe estar que eu ajudo – disseGuy com um sorriso deslumbrante,sobrepondo-se ao tio. Pousou otabuleiro na mesa do café e perguntou-me: – É servida de uma bebida? Xerez,gim tónico? Qual é o seu veneno deeleição?

– Não, obrigada, não sou grande fã debebidas, em especial quando cozinho.Miss Lanyon vai descer para o jantar?

– Coco... e tem de me tratar por Guy,pois sinto que já somos íntimos, agoraque toda a minha roupa suja foi lavada àsua frente.

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– Tenho a certeza que depois de hojesabemos muito mais acerca dos teusassuntos privados do que alguma vezdesejámos – comentou Tilda num tomsevero. – Então, a tua jovem mulher vaiagraciar-nos com a presença dela esteserão?

– Ela não é a minha jovem mulher,Tilda, e não faço ideia.

– Não me admira nada que ela o faça– disse Becca –, embora estejamostodos fartinhos dela. Devo confessar quefiquei muito aliviada quando partistecom ela no Natal passado, Guy.Imaginem o que teria sido se ela tivessecasado com o Jude e vindo morar paraaqui!

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– Na verdade, penso que foi a ideia depassar a maior parte do ano aqui que afez rejeitar o Jude antes mesmo de pôros olhos em mim – disse Guydesapaixonadamente. – Ela não é umarapariga do campo e para ela a carreiraé tudo.

– Se é que saltitar para cá e para láseminua numa passerelle se podeapelidar de carreira – referiu Tildaacremente.

– Também está a tentar ser atriz –prosseguiu ele e nesse momento a portaabriu-se e Coco apareceu, uma autênticavisão, angulosa e gélida. Era tão bonitaque chegava a ser irreal e não mesurpreendia nada que Guy e Jude tenham

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ficado de queixo caído por ela.Manteve a pose de passerelle o tempo

suficiente para que todos observássemosbem a espécie de macacão coleante deseda e uma só alça que ela quase vestia.Esperava sinceramente que a parte dotop que parecia rasgada estivessecolada de alguma maneira ao peito dela,pois, caso contrário, corria sérios riscosde que lhe caíssem no prato.

– Aqui estão todos – disse elaalegremente e depois lançou um sorrisoofuscante a Guy. – Querido, serves-meuma bebida? Já sabes o que eu gosto.

Era óbvio que resolvera mudar detática na esperança de voltar a seduzir oseu errante amante.

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– Com essa fatiota ainda apanha umapneumonia – observou Becca. – Tem acerteza que não vestiu isso ao contrário?

– É claro! É suposto ficar assimmesmo – respondeu ela indignada.

– É melhor eu emprestar-lhe umcasaco. Os da Tilda não lhe servirão.

– Estou muito bem assim, obrigada! –Colou-se a Guy enquanto aceitava abebida, colocou-lhe a mão no braço edisse sedutoramente: – Se tiver frio, oGuy pode aquecer-me, não é, querido?

– Oh, blhéc! A Banana está a ficarpiegas – disse Jess com repugnância.

– Por favor, sirvam-se da entrada e eujá vos chamo para a cozinha quando ojantar estiver pronto – sugeri,

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aproveitando para bater em retirada.– Não vamos comer na sala de jantar?

– ouvi Coco perguntar esganiçadamenteao mesmo tempo que me afastava. –Porque temos de comer na cozinha coma empregada?

Tal comentário fê-la descer mais unspontos na minha consideração, bemcomo o anúncio, assim que nos sentámosà mesa, de que não comia hidratos decarbono.

– Nem qualquer tipo de comidaprocessada – acrescentou, olhando paraas salsichas horrorizada.

– Estas salsichas são muito boas –respondi eu. – Lamento, mas, se quiseroutra coisa, terá de ser você a cozinhá-

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la.Coco olhou para mim de queixo caído.– Eu? Porque não o faz você? É para

isso que cá está, não é?– Não, não é! – escamou-se Becca.– Isso mesmo, a Holly não é a nossa

cozinheira e governanta residente,apenas veio para olhar pela casa e pelosanimais enquanto o Jude estava ausente– explicou Noël sem perder a calma. –Não foi contratada para cozinhar oucuidar da família dele e está apenas afazê-lo por amabilidade. E estamos-lhetodos muito gratos. – Lançou-me um dosseus encantadores sorrisos de esguelha.

– Ora essa, tenho a certeza que vamoster um excelente Natal – menti. – Muito

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mais divertido do que ficar sozinha.– E esta comida está deliciosa –

comentou Guy, devorando o puré comapetite. – Sabe cozinhar e édeslumbrante, portanto, é tudo o quealguma vez quis numa mulher: não quercasar comigo? – Jess soltou umarisadinha, mas Coco dardejou-nos aambos com o olhar, muito embora eleestivesse apenas a ser palerma.

– Tendo em conta o seu currículo, não.– Toma e almoça – comentou Becca.– Devo dizer que cozinhou isto muito

bem – elogiou Tilda. – E o patê tambémestava ótimo... Simples, mas bom.

– Comida simples e robusta é amelhor – concordou Becca. – Eu como

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as salsichas da Coco e o puré, se ela nãoquiser.

– Não se eu as roubar primeiro –disse Guy para a tia com uma careta.

– Ou talvez a Jess as coma. Precisa demanter-se forte para continuar a ajudar-me com os cavalos – sugeriu Becca. –Por sorte, parece estar curada da alergiaque tinha aos animais.

Jess lançou-lhe um olhar feroz, masparecia estar a devorar o jantar semdificuldade, muito embora eu tivesseavistado um pedaço de prata de um dosornamentos de chocolate da árvore emcima da mesa onde ela estivera a fazerorigami.

– Eu tenho de comer alguma coisa –

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argumentou Coco num tom amuado eserviu-se de uma salsicha, uma colherde chá de puré e de um fragmento decenoura.

A cozinha voltou a ficar às escuras,mas apenas por um momento.

– Porque estão as luzes nisto? Aeletricidade não vai falhar, pois não? –perguntou Coco, nervosa. – Não eranada boa ideia, tenho a certeza que estacasa está assombrada.

– Não se preocupe, se a luz falhar ogerador entra em ação – expliquei para aacalmar. – E, se não, o jardineiroensinou-me a ligá-lo manualmente.

– O Henry? – Estranhou Noël,esbugalhando os olhos. – Nunca me

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deixou sequer aproximar dele.– Ou a mim – fez notar Guy. – Não que

eu quisesse, não sou dado a maquinaria,ao contrário do Jude.

– És o beijo da morte de tudo o que émáquinas – disse Tilda ao marido. –Lembra-te do que fizeste à torradeira.

– Pilotei aviões durante a guerra,querida, por isso não podes dizer quesou imprestável com todo o tipo demáquinas.

– Isso é completamente diferente –abespinhou-se ela e eu percebi queTilda estava exausta e desejosa de se irdeitar. Penso que a queda a abalou muitomais do que ela deixou entrever, emborapelo menos o olho já esteja quase bom.

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Como seria de esperar, Coco rejeitouo creme de bananas que eu fizera para asobremesa e disse que ia fumar umcigarro para a sala de estar enquantoesperava pelo café.

– Lamento, mas é proibido fumar nestacasa. Está bem explícito no dossiê comas instruções que o dono da casa deixou– referi.

– Oh, não seja palerma – barafustouela – e, seja como for, o Jude não estáaqui para ver!

– Isso é irrelevante. Sou responsávelpela casa até ao regresso dele e tenho deseguir as instruções que me deixou.

– Sim, e nós concordamos com o Jude,portanto, terá de ir fumar para o

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alpendre, como no Natal passado –ordenou-lhe Tilda.

– Mas vou congelar!– Nessa fatiota, com certeza que sim –

concordou Becca. – Se fosse a si,primeiro ia vestir algo mais razoável.

– Não tenho nada mais razoável –respondeu ela amuada de novo.

– Bom, então o casaco e o chapéu quetrazia quando chegou.

– Pois, essa é outra coisa. O meucasaco branco custou-me uma fortuna e,depois de ter estado naquele trator,nunca mais será o mesmo!

Retirou-se com um ar ofendido epenso que todos exalámos um suspirocoletivo de alívio.

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– Presumo que irá fumar no quarto. Éa cara dela – disse Becca. –Francamente, Guy, estávamos muito bemsem ela, que mulher tão desagradável.Não sei o que tu e o Jude viram nela.

– Para além de ser deslumbrantementebonita, também consegue ser divertida,acreditem ou não – respondeu ele comindiferença. – Mas é tão superficialquanto uma poça de água ecompletamente narcisista.

– Nesse caso, tens muito em comumcom ela – disse Tilda causticamente. –Não percebo porque se separaram.

– Acho que estás cansada, querida –interrompeu Noël. – Não queres ir indopara cima e eu daqui a pouco levo-te um

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chá quente?– Talvez seja uma boa ideia –

concedeu Tilda. – Esta criança tambémhavia de se deitar cedo.

– Não sou criança – protestou Jess – equero terminar o último presente antesde subir.

– Meia hora, então – disse Tilda numtom firme.

Os restantes retiraram-se para a salade estar e eu levei o tabuleiro do café eregressei à cozinha para arrumar o quefaltava e rever o menu do dia seguinte,fazendo figas para não ter mais duasbocas para alimentar depois dopequeno-almoço!

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Guy trouxe o tabuleiro de volta.– Ainda a trabalhar? Já toda a gente se

foi deitar. Que está a fazer?– A colocar a camada de gelatina

neste trifle e depois, antes de me irdeitar, vou ver se os cavalos estão beme deixar o Merlin esticar as pernas.

E levaria o diário para cima comigo,pois, embora me sentisse exausta, querialer mais uma página ou duas. O diáriocontinuava a atrair-me como se fosseuma luz e eu uma traça.

A luz falhou de novo e depois, comgrande relutância, voltou a acender-se.

– Os cavalos hão de estar ótimos.Deixe o Merlin sair e venha tomar umúltimo copo comigo – sugeriu ele.

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– Obrigada, mas não.– Que pena. Bom, mas teremos ainda

muito tempo para nos conhecermosmelhor.

– Espero que não. Conto que tantovocê como a Coco se vão emboraamanhã de manhã.

– Bem, a Coco certamente que irá,nem que eu tenha de subornar um dosrapazes para a levarem de trator atéLondres. Mas eu fico.

– Isso é muito pouco cavalheiresco dasua parte!

– Não totalmente. Ela conduz tão malque eu não a deixaria voltar paraLondres a conduzir com este tempo,ainda que consigam tirar o carro dela da

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valeta.– Continuo a achar que a devia levar –

disse. – O Jude não iria querê-lo aqui eeu preferiria que se fosse emboratambém.

– Não está a falar a sério – adulou ele,mas, por fim, ao ver que os seusgalanteios não tinham efeito, pegou nasua pessoa e no seu odoríferoaftershave e foi-se deitar.

Coloquei o trifle no frigorífico e, nacompanhia de Merlin, fui abafar o fogona sala de estar. Para além dos habituaisrangidos e estalos de uma casa antiga,tudo estava calmo e tranquilo.

– Uma última corrida, Merlin? –desafiei, enfiando-me no casaco de

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penas e pegando na lanterna, pois,independentemente do que Guy dissera,sabia qual era o meu dever. Tínhamosacabado de chegar à porta das traseirasquando a luz foi abaixo – e desta vezassim ficou.

O gerador e eu estávamos prestes aconhecer-nos melhor.

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Capítulo 21

Ódio à Primeira Vista

Não tive notícias do N desde omeu ultimato e estou cheia desaudades dele. Os outros nãofalam de mais nada a não serdas celebrações da Vitóriaamanhã, mas, embora eu estejamuito contente que esta terrívelguerra tenha terminado, nãoconsigo entregar-me de alma ecoração a toda esta animação

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como eles.Maio de 1945

Quando abri a porta de trás, a nevecontinuava a cair em flocos grandes efofos e acumulara-se de tal forma quetive de avançar com a neve quase até aocimo das botas de borracha.

Merlin deu meia volta quaseimediatamente e pediu para voltar paradentro. Não podia censurá-lo, emborativesse preferido a companhia dele.

Acho que não avaliara o quantoestaria escuro como breu na rua sem asluzes do pátio acesas e a Lua escondidapor trás das nuvens. O vento fazia baterqualquer coisa contra o portão de ferro,

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mas, tirando isso, a neve parecia ter umefeito amortecedor nos habituais ruídosnoturnos do campo. Ainda bem que nãosou uma pessoa nervosa.

Liguei a minha lanterna e avancei paraos estábulos, com o seu cheiroadocicado a feno e a cavalos. Sonolento,Nutkin pendia a cabeça e quase nemmexeu as orelhas quando apontei alanterna na direção dele. Não conseguiavistar Lady a princípio e entrei empânico até a ver deitada muitoconfortavelmente na palha quente, comBilly a seu lado.

Voltei a sair sem fazer barulho etranquei a porta. Dirigi-me então aoanexo do gerador e à silenciosa

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escuridão. Estava quase tão frio ládentro quanto na rua, uma vez que aparede de trás estava provida delâminas de metal para ventilação.

Tinha tudo um ar ligeiramentediferente na penumbra, mas, segundoHenry, tudo o que tinha de fazer eraacionar um par de interruptores paraligar o gerador manualmente e depois,se isso não surtisse efeito, surpreender amáquina com um golpe rápido edissimulado numa parte vital da suaanatomia.

Tal, assegurou-me ele, nunca falhava.Acabara de acionar os interruptores –

sem qualquer resultado discernível –quando pressenti, mais do que ouvi, um

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ligeiro movimento na soleira atrás demim e percebi que já não estava sozinha.

– Que raio está a fazer aqui? –perguntou uma voz grave, ribombante eominosamente familiar, que depoisacrescentou com uma maior urgência: –E não toque nesse...

Mas foi tarde de mais, pois, após oprimeiro segundo de susto, a lógicadissera-me que não corria perigo, porisso ignorara-o e aplicara ao geradoruma pancada súbita. Isto teve o efeitodesejado: irrompeu de imediato numronco monótono e trepidante.

Depois, virei-me e disse calmamente:– Porque não acende a luz, agora que

o gerador já funciona, e se apresenta?

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Porém, infelizmente, quando ele o fezdecidi que gostava muito mais dele àsescuras. Dizer que ele era um homemgrande era como dizer que os ursospardos são ursos grandes, uma vez queele era não só extremamente alto comolargo de ombros também. Um par deolhos escuros, encovados eavermelhados espreitavam de um rostoque apenas as palavras «carrancudo» e«duro» pareciam descrever, enquadradopelo debrum a pele do capuz de umagigante parca.

– Meu Deus, é o abominável homemdas neves! – ouvi a minha voz exclamarinsolentemente, embora, em minhadefesa, tenha de admitir-se que tivera

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um dia muito longo e fatigante. – Era sóo que nos faltava!

Ele percorreu o espaço que nosseparava em duas rápidas passadas,empurrando o capuz para traz erevelando uma farta cabeleira escura, ocabelo curto todo em pé, e olhou paramim de cima – algo a que eu não estavahabituada – com a testa franzida.

Aquelas novas teorias que afirmamque todos nós possuímos um pouco doADN neandertal devem ser verdadeiras,afinal de contas.

– Holly Brown, presumo?– Sim... E não precisa de me dizer

quem é, pois tornou-se óbvio agora queo consigo ver melhor: Jude Martland.

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Pensei que estava na América!– Estava – respondeu ele. – Mas as

últimas notícias que recebi de Noëldavam conta de que a Tilda tivera umacidente e fora para o hospital, por issoresolvi vir-me embora! Estou em viagemdesde então.

Bom, isso explicava os olhosencarnados e a barba por fazer, pelomenos, embora a expressão de maugénio fosse provavelmente umacaracterística permanente.

– Estava tão preocupado queregressou de imediato?

Devo ter soado incrédula, pois umacentelha de fúria tremeluziu-lhe no olhare fê-lo disparar:

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– Com certeza! Com uma mercenáriaaos comandos da minha casa, não tinhamuita esperança que reunisse muitosapoios.

– Obrigada. Se pareci surpreendida ésó porque não me pareceu uma pessoaque se preocupasse o suficiente com afamília a ponto de voar de regresso deimediato.

– Não faço ideia onde foi buscar essaideia... – Deteve-se, dardejando-meainda com o olhar. – Eu conheço-a dealgum lado?

– Não. Alegro-me de poder afirmarque nunca antes na vida o tinha visto. –E, para ser franca, desejava que assimse tivesse mantido.

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– Parece-me vagamente familiar. Masnão importa... Onde estão o Noël e aTilda? Não havia sinal de vida em casadeles.

– Aqui, é claro! Mudaram-se com aJess no dia a seguir ao acidente e a suatia Becca veio no dia seguinte, por issotambém cá está. Eu tentei ligar-lhe parao telemóvel para o informar do queestava a acontecer.

– Provavelmente, por essa alturaestava sobre o Atlântico. – Olhou paramim pensativamente. – Então, quemconvidou mais para lhe vir fazercompanhia, um amigo ou outro? Haviadois carros junto ao portão, emboraestejam cobertos de neve.

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– É claro que não convidei ninguém! –barafustei. – Levo muito a sério o meuprofissionalismo! Nunca me passariapela cabeça fazer semelhante coisa, anão ser que tivesse consentimentoprévio do dono da casa.

– Então, de quem são os carros?– O mais pequeno é meu, mas o

outro...Uma voz suplicante oriunda da gélida

escuridão interrompeu-me.– De-desculpem – disse entre dentes

que tiritavam –, nã-não po-podiamconti-ti-nuar esta con-con-versa dentrode-de portas? É que eu a-acho que estoucom hipo-hipoter-mia.

Jude Martland deu um passo ao lado,

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revelando um acompanhante. Um homembastante mais baixo e louro. Parecia tervárias camadas de roupa vestidas,embora, a julgar pela de fora – umagabardina fina –, nenhuma delas pareciaadequada ao frio que fazia.

– Já me tinha esquecido de si! – disseJude e depois virou-se para mim: – Voubuscar o Land Rover para o alpendre dopátio. Leve-o para a cozinha edescongele-o.

– Pois, eu estou cá mesmo para isso –murmurei, mas ele passava as mãos pelovibrante gerador e nem me ouviu.Sinceramente, os homens e os seusbrinquedos!

– Está tudo bem – assegurei-lhe. – O

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Henry mostrou-me o que fazer se ogerador não se ligasse automaticamente.Não envolve qualquer apetênciamecânica, que eu percebesse.

– Exigirá, se algo correr mal –replicou ele e depois deu meia volta efoi-se embora.

– Bom, venha então para dentro –convidei o tiritante estranho e eleseguiu-me de bom grado. Fi-lo tirar ossapatos encharcados e as camadasexteriores de roupa no vestíbulo ecoloquei-os na lavandaria para secaremjuntamente com os meus.

Agora que conseguia vê-lo melhor,dei-me conta de que era um homemmuito bem-parecido, magro e louro –

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gelado, mas muito bem conservado.– O meu no-nome é M-Michael

Whiston – apresentou-se ele, estendendouma mão que mais parecia um peixecongelado.

– Holly Brown. Venha para a cozinhaque está mais quente. E não tenha medodo cão. O Merlin é inofensivo.

Merlin não pareceu muito interessadono estranho, mas ao escutar o barulho domotor do Land Rover e depois um parde ruídos surdos – provavelmente asmalas a serem lançadas pela porta dastraseiras – emitiu um latido e começou aabanar a cauda.

– Ao menos alguém que fique contentepor vê-lo – murmurei. Coloquei uma

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cadeira ao lado do Aga para Michael,fui buscar uma manta à lavandaria ecoloquei-lha por cima dos ombros. Eleofereceu-me um sorriso de gratidão.

Tinha já colocado a chaleira ao lume eestava a fazer chá quando Jude entrou,apenas de meias e a secar o cabelo àtoalha de Merlin. Lançou-a para o ladoe agachou-se para acariciar as orelhasdo cão.

– Fui ver a Lady... parece estar bem –referiu ele de má vontade.

– É claro que está bem, eu sempre lhedisse que estava. E a Becca tem olhadopor ela também. – Estendi-lhe umacaneca de chá. – Dê isto ao seu amigo,está com hipotermia. Pus-lhe brande.

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– Não o brande bom da sala de jantar,espero?

– Não, gastei esse no bolo. Isto é deuma garrafa barata que comprei no pub.

– Deitou o meu Armagnac no bolo? –perguntou ele, incrédulo.

– Tive de fazer um bolo de Natal àpressa e parti do princípio que não seriamuito bom, caso contrário tê-lo-iatrancado na adega com o resto dabebida. A Mo e o Jim não teriam tocadonele, fosse como fosse, e eu tambémnão... Todos os colaboradores daHomebodies passam por um rigorosoescrutínio em termos de honestidade,sobriedade e confiança.

– Quando me lembrei disso, já era

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tarde de mais. Mas era na Sharon que eunão confiava, não na Mo e no Jim. –Olhou-me fixamente. – Contudo, nuncame passaria pela cabeça que alguémfosse despejar o que restava do melhorbrande do meu pai num bolo!

– Não é a última garrafa. O Noëlencontrou outra na adega. E, seja comofor, o bolo é para a sua família e cheiradivinalmente. Agora, por amor de Deus,dê o chá ao seu amigo antes quearrefeça!

– O Michael não é meu amigo. Só nosconhecemos esta noite. É apenas maisum palerma que atascou o carro aotentar subir a estrada.

– O GPS indicava por ali – alegou o

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homem, agarrando avidamente a canecacom ambas as trémulas mãos, emborapelo menos os dentes parecessem terparado de tiritar. – Mas a altura de neveera demasiada e não consegui avançar.

– Tive de trazê-lo comigo. Não podiadeixá-lo a morrer de frio dentro docarro. Se continuar a nevar assim, pensoque nem o limpa-neve conseguirá fazer oque quer que seja.

– Estou espantada que tenhaconseguido sequer aqui chegar, se estáassim tão mau. O George Froggat disse-me que por vezes a parte de baixo daestrada do monte fica intransitável porcausa da neve e do gelo, e o facto é queo tempo piorou bastante.

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– Eu tinha correntes para os pneus natraseira do Land Rover, por isso parei ecoloquei-as assim que saí daautoestrada. Mas ninguém no seu juízoperfeito subiria estradas de provínciaestreitas com este tempo e semcorrentes. – Lançou a Michael um olharde desdém.

– Bom, obrigado por me ter socorrido– agradeceu Michael, esboçando umsorriso. – E por me ter obrigado a vestirmetade da roupa que trazia na mala!

Sentei-me à mesa com uma caneca dechá e Merlin abandonou de imediato odono e veio sentar-se encostado àsminhas pernas, como era seu costume,pousando a cabeça nos meus joelhos.

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Jude lançou-lhe um dos olharesfranzidos com que anteriormente mepresenteara, como se estivesse confuso.

Agora que me restabelecera dasurpresa do regresso dele, começara ainterrogar-me de que forma a chegada deJude me iria afetar: afinal de contas,estava ali para cuidar da casa e paraisso ele já não precisava de mim. Bom,haveria tempo para tratar disso demanhã. Iria rezar para um degeloinesperado!

– Terei de alojar o Michael esta noite– referiu Jude.

– Receio que tenha de ser ou no seuquarto ou no pequeno quarto dosempregados, ao lado do meu.

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Ele estava a pentear o cabelo paratrás, que começara a encaracolar com ahumidade, mas estacou e olhou para mimcom aqueles olhos castanho-claros.

– Porquê? Que se passa com os outrosquartos? Quero dizer, apenas trêsestarão ocupados, sem contar com o seu.

– Na verdade, engana-se, todos osquartos dessa ala estão a ser usados estanoite. O seu irmão Guy chegou ao inícioda tarde e a noiva dele... ou melhor, ex-noiva, tendo em conta que se zangaram...veio atrás dele. Coloquei-a no quarto daama, ao lado do da Jess, uma vez que oGuy se recusou a ceder-lhe o quarto delee não podíamos colocá-la no seu,porque está trancado e nem o Noël tem a

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chave.– O quê, o Guy e a Coco estão cá? –

barafustou ele, perdendo grande parte daminha explicação e indo direto ao cerneda questão.

– Sim, a Coco conseguiu despistar ocarro e não faço ideia onde estará agora,mas o outro carro lá fora é o do seuirmão.

– Foi preciso muito descaramento doGuy para vir para aqui sem eu cá estar!– A raiva toldou-lhe o olhar.

– Tem razão. Achou que podiasimplesmente aparecer, que os Chirkalimentavam-no e tomavam conta dele!

– E presumo que você deixou que elea ludibriasse e convencesse a ficar!

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– Ouça – comecei eu –, eu regresseide uma ida às compras na aldeia e ele jácá estava, com as suas tias e tio. Comque autoridade é que eu, a house-sitter,ia pô-lo na rua? Ah, e ele também játinha bebido dois valentes uísques poressa altura, portanto, não estava emcondições de conduzir para ladonenhum.

– Suponho que não – concordou elecom relutância. – Disse que a Coco teveum acidente? Ela está bem? Onde estátoda a gente?

– A Coco está ótima, se não contarmoscom a choradeira histérica depois dadiscussão com o seu irmão quando elachegou. Foi um dia fatigante e já foram

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todos para a cama. E eu preparava-mepara fazer o mesmo, depois de ver comoestavam a Lady e o Nutkin, mas a luzfalhou e o gerador obviamente que nãose ia ligar sozinho.

– Espero que tenha mantido oaquecimento ligado no mínimo, como eudizia nas instruções?

– Penso que não tem outra regulaçãoque não o mínimo, pois não? Mas nãotoquei no termóstato e também tenhomantido a lareira da sala de estar acesadia e noite e, por sorte, abri as portas detodos os quartos para os arejar epermitir que o ar quente circule.

– Exceto no meu, presumo?Encolhi os ombros.

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– A não ser que o ar se tenhaconseguido esgueirar pelo buraco dafechadura.

– Eu durmo em qualquer lado. Já estoumuito grato que me tenha acolhido –aventou Michael, soando muito maisrecomposto.

– O único quarto vago costumava serdos criados e é um pouco espartano, masé quente e confortável e eu faço-lhe acama e coloco-lhe uma botija de águaquente – afirmei.

– É muito amável: uma cama com umabotija de água quente parece-me oparaíso. – Presenteou-me de novo com oseu cativante sorriso e eu dei por mim asorrir de volta.

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– Ora essa. Terá de partilhar a minhacasa de banho, que fica frente ao quarto.Na verdade, seria melhor tomar umbanho quente antes de se deitar. Venhadaí.

– E a minha cama, não vai fazer-matambém? – inquiriu Judesardonicamente.

– Não, e se o seu quarto estiver frio ebafiento, culpa sua... Não o tivessetrancado.

Conduzi Michael pelas escadas dastraseiras, depois de irmos buscar as suasduas malas, de aspeto caro, que Judelargara no vestíbulo com as dele numapoça de neve a derreter. Fui buscartoalhas e pus a água a correr enquanto

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ele tirava o que precisava da mala edepois, enquanto ele usava a casa debanho, fiz-lhe a cama.

Ouvi Jude trepar a escada dastraseiras e avançar pelo corredor emdireção à ala dele e, à exceção deMerlin, a cozinha estava deserta quandofui buscar a botija de água quente.

Esperando que Michael não sedeixasse dormir no banho, regressei aoquarto depois de lavar as canecas edesejar boa noite a Merlin. Por sorte, acasa de banho já estava desocupada. Defacto, toda a casa parecia mergulhada nosilêncio quando cautelosamente abri aporta para a galeria e apurei o ouvido.

Tinha a sensação que não iria estar

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assim tão tranquila pela manhã...Por esta altura, já estava naquele

ponto para lá da exaustão em que pareceque vemos tudo como que por trás deuma vidro espesso, por isso meti-me nacama e peguei no diário da avó, dizendoem voz alta:

– Por favor, faz com que tenha tiradoconclusões precipitadas para que nãohaja qualquer possibilidade de serparente daquele detestável homem!

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Capítulo 22

Resultados

Tenho-me sentido doente, emespecial de manhã e, emboraseja ainda cedo para saber,tenho a certeza que estou deesperanças. Enviei um bilheteao N a pedir que se encontrecomigo urgentemente e planeioesgueirar-me de casa esta noite.A Pearl e a Hilda, a quemconfidenciei tudo, estão muito

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ansiosas por saber o resultado eficarão acordadas para meabrirem a porta.

Maio de 1945

Acordei muito cedo, antes mesmo de odia clarear, e fiquei deitada por algumtempo a pensar na minha pobre avó,para a qual o resultado que eu temeraparecia ter sido o que se concretizara.No final, acabou por não casar com NedMartland, mas não sei se porque ele aabandonou – o que me parecehorrivelmente provável – ou por termorrido no acidente antes que tal tivesseacontecido.

E ali estava eu, apanhada no meio de

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uma festa de Natal – precisamente o queeu tentara evitar –, que eu própria iriapreparar para a família do homem queseduzira a minha avó – bizarro!

Mas julgo que tudo em Old Place seprepara para mudar com a chegada dodono da casa, pois, provavelmente, eutornei-me agora redundante – umexcedente. Partindo do pressuposto, queJude sabe cozinhar.

E foi nesse inconveniente momentoque me dei de repente conta de que antesda chegada de Guy, Coco e dodetestável Jude, eu começara de facto agostar de todas os preparativos para oNatal e que teria muita pena de me irembora!

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Contudo, se as estradas ficaremdesimpedidas, suponho que Jude mandaCoco e o irmão embora e esperará queeu parta também. Talvez queira contar aspratas primeiro, uma vez que mepareceu um homem com uma mentemuito desconfiada e retorcida.

Até que tal momento chegasse, porém,sabia o meu dever e comportar-me-iacomo de costume, por isso levantei-me etomei um duche, vesti umas calças deganga e uma camisola e desci paradeixar Merlin ir à rua e dar um pouco decenoura aos cavalos.

Estava ainda bastante escuro, masreparei que a neve se amontoara numdos lados do pátio e não no outro, onde

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se encontrava o Land Rover. Não mepareceu, contudo, que estivesse pior quena noite anterior, apenas maisquebradiça e estralejante debaixo dospés.

Limpei as cinzas e avivei as brasas dalareira da sala de estar, preparei tudopara o pequeno-almoço e tratei dotabuleiro de Tilda.

Enquanto me afadigava, a rádio nãoparava de anunciar que era véspera deNatal, não fossem os ouvintes ter amemória de um peixinho-dourado, mas,de alguma forma, tais anúncios pareciamnão me magoar tanto quantohabitualmente magoavam, talvez porquede momento tinha muito mais coisas na

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cabeça.Ou talvez, por fim, estivesse a

começar a abrir mão do passado e aseguir em frente. Um novo começo noAno Novo – e talvez uma vida nova acondizer. Ainda bem que nos tempos dehoje ter filhos fora do casamento eratotalmente aceitável, ao contrário de notempo da minha avó!

Merlin estava a comer o seu pequeno-almoço, salpicado com uma boa dose doseu remédio, e eu já tinha feito um caldode miúdos e uma tigela de recheio parao dia a seguir e estava a colocar umtabuleiro de biscoitos no forno quandoMichael entrou acanhadamente nacozinha. Parecia uma pessoa diferente

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do homem congelado e molhado da noiteanterior: bonito, com feiçõesagradáveis, cabelo castanho-claro eolhos cor de avelã. Vestia uma camisolade caxemira clara, que rivalizava com ade Guy, por cima de umas calças cremes– uma fatiota tão prática para o campocomo qualquer uma das de Coco.

– Bom dia! Ouvi-a cá em baixo, porisso deduzi que não se incomodasse queeu descesse para beber um café. Sou umviciado... Cheira muito bem! –acrescentou ele, farejando o ar com umaexpressão de deleite.

– Biscoitos de gengibre para a árvore– expliquei. – Prefere cereais ou umpequeno-almoço mais substancial?

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– Bom, bacon, ovos e torradas seriaperfeito, mas eu posso fazê-lo, uma vezque está ocupada?

– Não, deixe estar, esta é a últimafornada de biscoitos. Mais ninguémestava acordado, por isso pensei em iradiantando isto porque prometi à Jess, asobrinha do Jude, que os decoraríamosjuntas esta manhã – disse, enternecidacom a amabilidade dele. – Mas há aliuma cafeteira e café no armário porcima... Talvez o Michael pudesse fazerum café para nós dois enquanto eucozinho?

Cavaqueámos enquanto ele tomava opequeno-almoço e eu lavava o que usarapara os biscoitos e que não podia ir à

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máquina, como os antigos cortadores demassa com a forma de árvores de Natal,sinos, estrelas e outros tarecos. Contei-lhe que ganhava a vida a cozinhar e atomar conta de casas e em troca eleconfessou, com um ar modesto, que eraator.

– A sério? Provavelmente, é um atormuito conhecido e eu devia tê-loreconhecido, só que raramente tenhotempo para ver televisão ou ir aocinema.

– Não sou assim famoso, não, sou atorde teatro maioritariamente, mas o anopassado entrei num filme e isso deu-mealguma projeção: The Darkling Hours.Uma espécie de Harry Potter cruzado

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com Tolkien e com uma pitada de C. S.Lewis, mas foi bem recebido e desdeentão tenho feito alguns pequenos papéisde destaque.

– Ah, sim, o filme foi um grandesucesso! Não o vi, mas ouvi falar dele.Entrou nele? – Estava impressionada.

– Deu-me certamente uma maiorprojeção. – Esboçou um sorriso triste. –Porém, enquanto filmávamos, a minhamulher teve um caso com um dos outrosatores e separámo-nos.

– Oh, lamento.– Tivemos... diferenças

irreconciliáveis. Na verdade, ocasamento não estava a correr muitobem. A Debbie levou a nossa filha,

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Rosie, para passar o Natal com os paisdela em Liverpool, por isso, como eu iapassar as festas em casa de uns amigosno Yorkshire, passei por casa dela paraa visitar e levar os presentes. Mas,depois disso, confiar nas indicações doGPS foi a minha desgraça.

– Deixe lá, podia ser pior. Pelomenos, conseguiu ver a sua menina antesde a desgraça acontecer. Que idade temela?

– Dois anos... E acho que já está aesquecer-se de mim – referiu ele numtom lamentoso. – A princípio, a Debbiedisse que preferia que eu não a visitassesequer, mas eu quero fazer parte da vidada minha filha e penso que eu e a minha

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ex conseguimos ficar amigos se nosesforçarmos, pelo bem da Rosie.

– Sim, claro, é o mais natural, e decerteza que a Debbie verá que isso é omelhor.

Ele sorriu-me.– Sinto-me melhor por falar no

assunto, por isso, ficar atascado na neveteve pelo menos um bom resultado! Masos meus amigos hão de ficar ainterrogar-se o que raio me aconteceu.Tentei ligar-lhes ontem, do carro, maseles não estavam e tive de deixarmensagem. E esta manhã não consigosequer captar rede!

– É natural, a receção aqui é péssima.Para conseguir rede terá de descer o

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caminho até à casa do guarda ou subir omonte por trás da casa.

– Não está propriamente tempo paracaminhadas, pois não? – notou, olhandode relance para a janela. – Será quealguém se importava que eu fizesse umachamada rápida do telefone aqui decasa?

– Penso que não, mas os postescaíram, por isso o telefone não funciona.Mas há uma cabina na aldeia, a cerca deoitocentos metros daqui.

– Nada a fazer, então. Seja como for,espero conseguir fazer-me ao caminhomais tarde, se tiver parado de nevar e asestradas tiverem sido limpas.

– Não me parece que tenha nevado

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mais desde a noite passada, mas é umbocado difícil dizer, porque foiarrastada pelo vento e congelou durantea noite. Está assim toda estaladiçaquando se pisa.

– Talvez descongele quando o Solnascer – aventou ele com grandeotimismo.

– Um agricultor local costuma limparo caminho até à casa e a estrada até àaldeia com o trator dele, por isso,quando ele passar aqui mais tarde podedizer-nos como está a coisa – disse-lhe.– Se não estiver muito mau, penso que oirmão do Jude e a namorada se irãotambém embora, portanto, talvez lhepossam dar uma boleia até ao seu carro.

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Ou eu, pois também estarei de partida,embora tenha de desenterrar o carroprimeiro. Só espero que pegue: há diasque não ando com ele.

Ele olhou para mim, surpreendido.– Mas... eu ontem à noite estava um

bocado atarantado, por isso posso terentendido mal... a Holly não está aquipara tomar conta da casa e cozinhar paraos parentes idosos do Jude?

– Não, na verdade, era suposto eu virapenas tomar conta da casa e dosanimais.

Fizera entretanto mais café e sentei-me à mesa com ele, enquanto ele comiatorradas com compota, para lhe explicaro que acontecera. E, enquanto falava,

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comecei a ver tudo que conduzira a estemomento com uma série de desgraças,um pouco como o filme Lemony Snickete, na verdade, algumas partes até erambastante engraçadas. De facto, quandoGuy entrou na cozinha, Michael e eudávamo-nos como se nosconhecêssemos há anos.

Fez um ar surpreendido ao ver ali umestranho e perguntou de imediato:

– Quem é este?Coco entrou a seguir, estremunhada e

etereamente bela num roupão diáfanocor de rosa e sem maquilhagem. Então,também ela avistou o estranho eexclamou, já bem desperta:

– Michael... querido!

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Ele pousou a caneca à pressa elevantou-se.

– Carla...? – aventou ele.Coco lançou-se a ele como um esquilo

voador rosa e beijou-o com umestridente muá! muá! em ambas as faces.

– Há que séculos que não o via!Lembra-se de mim, não lembra... CocoLanyon?

– É claro – asseverou ele, emborapela expressão que fez eu tenhadeduzido que não lembrava. Porém, eraator, por isso, devolveu o cumprimento,disse-lhe que estava maravilhosa eperguntou-lhe o que estava a fazer demomento e ela falou-lhe do anúnciotelevisivo ao elixir facial.

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– Este é Michael Whiston, um atorfamoso – expliquei a Guy enquantoCoco se vangloriava.

Guy serviu-se de café.– Amigo seu?– Não, antes de ontem à noite nunca o

tinha visto. Meteu-se pela estrada domonte por causa do GPS e...

Detive-me porque Noël, de roupão echinelos, e Becca e Jess, já vestidaspara tratarem das cocheiras, chegaramentretanto e depararam-se com umestranho no meio deles e foi precisoproceder a apresentações e explicações.

– O Michael e o Jude chegaram anoite passada quando eu me preparavapara ligar o gerador. A eletricidade foi

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abaixo e o gerador não se ligou de formaautomática – expliquei sucintamente.

– Quer dizer que o Jude está cá? –perguntou Guy, indo direto ao cerne daquestão.

Coco ficou branca, embora na verdadeela já seja bastante pálida para começo,uma espécie de loura nórdicatranslúcida.

– Oh, meu Deus, não está, pois não?– Cala a boca, Banana – comandou

Jess. – Que bom que o tio Jude está cá!Achas que ele me trouxe algum presente,Holly? Posso ir acordá-lo?

– O pobre rapaz deve estar exausto ecom um enorme jet lag – fez notar Noël.– Deixa-o dormir.

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– Não, tenho a certeza que está ótimo– argumentei cruelmente –, daqui apouco já poderás ir acordá-lo, Jess.Mas, primeiro, importavas-te de levareste tabuleiro à tua avó?

Enquanto as explicações eapresentações decorriam, barraratorradas com manteiga, fizera um ovoquente e acrescentava agora um pequenobule de chá ao tabuleiro.

– Pronto. Leva-me isso que eu voutratar do pequeno-almoço dos restantes.

– Mas, Guy... o Jude está cá! –choramingou Coco com um araterrorizado. – Que fazemos? Oh, quemme dera não ter vindo.

– Quem nos dera a todos – murmurou

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Becca.– Oh, não acho que ele me vá pôr a

mim, seu irmãozinho mais novo, no olhoda rua, com a neve e o frio que está –argumentou Guy com toda a certeza. –Não posso garantir que não o faça a ti,Coco.

– Que disparate, ninguém sairá daquiaté as estradas terem sido limpas –declarei.

– E é claro que o Jude não a porá narua também, minha querida – assegurou-lhe Noël.

– Ora bem, toda a gente quer umpequeno-almoço tradicional? –acrescentei para acabar com o assunto.

Coco estremeceu ainda mais.

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– Uma omeleta de claras para mim ecafé simples – ordenou ela.

– Pode colocar a chaleira ao lume efazer uma cafeteira nova – sugeri. – E hámontes de ovos, se quiser fazer a suaomeleta. Eu vou fazer ovos estrelados,bacon grelhado, tomates e torradas.

– E que bom que estava – elogiouMichael, presenteando-me com umamável sorriso e aparentemente nãoreparando no ar escandalizado de Coco.– Eu faço o café. Uma vez que sou avisita inesperada, gostaria de me tornarútil, e a Holly não me deixou fazer nada.

– Bom, o Noël e eu somos inúteis nacozinha, por isso, já ajudamos sesairmos da vossa frente – disse Becca.

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Porém, para minha surpresa, Guyresolveu tornar-se também útil e pôs-sea barrar manteiga nas torradas enquantoeu estrelava os ovos e grelhava o bacone partia os tomates.

Jess regressou, reportando que Judeestava a levantar-se.

– Recusou-se a dizer se me trouxeraum presente, portanto, provavelmentetrouxe. E disse à avó que o Jude estavacá e ela também ficou toda contente –relatou. – E disse que esperava que elete pusesse daqui a correr, Banana, e oGuy tivesse de te levar de volta no carrodele, pois assim livrávamo-nos deambos e teríamos um belo Natal.

– És tão cruel – disse Guy, sem na

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verdade estar ofendido, e começou afazer caretas à sobrinha até ela começaràs risadinhas. De repente, apesar de nãoo desejar minimamente, dei por mim agostar dele um pouco, embora fosse tãocruel com Coco.

– Aqueles biscoitos são para a árvorede Natal? – perguntou Jess, vendo-os narede a arrefecerem. – Quando os fizeste?

– Bem cedo esta manhã, quandoestavam ainda todos a dormir. Podíamosdecorá-los mais tarde e pôr-lhes fitaspara os pendurares na árvore. Temosaçúcar em pó e eu trouxe corantesalimentares comigo.

– Boa! – Sentou-se numa cadeira aolado de Noël e serviu-se de torradas e

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compota. – É feio brincar com a comida,Banana – ralhou ela num tom severo.

Coco, que tirara um ovo estrelado eestava a cortar-lhe a gema, olhou paraJess com desaprovação.

– Não percebo porque estás sempre achamar-me isso, mas gostava muito queparasses!

– Sim, é muito feio – concordouBecca, mas sem grande convicção.

Coco comeu umas garfadas de clarade ovo e empurrou o prato para o lado.Porém, uma vez que tinha o ar de quemse retirava para ir vomitar as refeições aseguir a consumi-las, provavelmentepoupou uma ida à casa de banho.

– Preciso de um cigarro.

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– Mas não vais fumá-lo em minhacasa – declarou a voz grave de Jude dedetrás dela e a enorme cozinha pareceuencolher com a entrada dele em cena.Guy empalideceu ligeiramente, apesarde toda a sua jactância, e Coco ficoucom um ar petrificado.

– Oh, olhem, é o elo perdido – disseeu involuntariamente, olhando para oqueixo obstinado dele, embora, emabono da justiça, com um queixo assimlhe fosse difícil ter um ar afável esimpático. E não faço ideia por quemotivo este tipo de comentários estásempre a escapar-se-me dos lábiosquando ele está presente, poisnormalmente, com os clientes, consigo

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manter a minha rebelde língua sobcontrolo!

– Bom dia para si também –devolveu-me ele sarcasticamente edepois tomou o lugar dele à cabeceirada mesa como se fosse dele pordireito... Pensando bem, era mesmo.

– Suponho que já não reste nada dopequeno-almoço.

– Claro que sim, fiz mais baconquando soube que já estava a pé e vouagora estrelar-lhe um ovo. Guy,importava-se de pôr mais umas torradasa fazer?

– Parece que temos aqui uma belafesta de família, hã? – comentou Jude,olhando em redor da mesa. – Estranho,

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não me recordo de ter convidadonenhum de vocês, tirando o Noël, aTilda e a Becca, que são sempre bem-vindos, é claro.

– E eu – reclamou Jess.– Não quando me acordas ao raiar da

aurora agredindo-me com uma almofada– disse ele num tom sério. Depoisergueu uma sobrancelha na direção deCoco e Guy. – Parabéns! Vi o anúnciono The Times. Quando é o casamento?

– Não há casamento, e nem sequer umnoivado – respondeu Guy. – A Cococolocou o carro à frente dos bois. –Pegou na torrada dele a acrescentou comindiferença: – Pensando bem, não haviatão-pouco carro... Há semanas que ando

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a tentar ver-me livre dela.– Isso é mentira! – exclamou Coco. –

Estava tudo bem! Não percebo quebicho te mordeu de repente, Guy!

– A sanidade?– Ele é inconstante, minha querida, sai

ao tio dele, Ned – explicou Noël, o quenão era definitivamente o tipo de coisaque eu queria ouvir acerca de NedMartland naquele momento!

– Ned Martland era mesmoinconstante? – não resisti a perguntar aNoël.

– Sim, minha querida, masapaixonava-se genuinamente por elas.Tinha um coração enorme e mole... masnão podia casar com elas todas, pois

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não?– Aí tens, Coco – concluiu Guy em

jeito de explicação. – Não posso evitá-lo, está-me nos genes. Já estouempenhado na próxima mulher. – Esoprou-me um beijo.

– Oh, disparate – barafustou ela, edepois, com um esforço, recompôs-se,levantou-se e beijou a face insensível –e por bar-bear – de Jude, enrolando osbraços juvenilmente em torno dopescoço dele. – Jude, querido, o Guy eeu tivemos um mal-entendido e elecontinua zangado. É por isso que está aser palerma, mas eu sei que ficaráscontente por nós em relação ao noivado.

– Não há nenhum nós, estou farto de te

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dizer – interrompeu-a Guy. – Enviar umanúncio de noivado para o The Timessem me dizer não constitui um nós.

Coco largou a chorar.– És tão cruel para mim! – soluçou

ela. Olhando em redor em busca decompaixão, lançou-se de novo aMichael, qual esquilo voador. – Porfavor, leve-me para longe destaspessoas horríveis, deste lugar terrível,terrível!

– Essa deixa é pavorosa e já a usastecomigo o Natal passado – fez notar Guynum tom crítico –, logo a seguir ao Judenos ter surpreendido juntos. E esquece aideia de seres atriz, a frase saiu-tepessimamente.

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Os soluços de Coco começaram apender para o histérico e Michael deu-lhe umas pancadinhas no ombro, aomesmo tempo que fazia uma careta paramim por cima da cabeça dela.

– Pobre rapariga – disse Noël. – Nãome parece que a tenhas tratado muitobem, Guy.

– Ora, encham o jarro de água fria edespejem-lha em cima – sugeriu Becca,algo que provavelmente aprendera naescola de boas maneiras.

Coco afastou-se à pressa do ombro deMichael, para óbvio alívio do mesmo, e,declarando que ia vestir-se e fazer asmalas, saracoteou-se para fora dacozinha. Pensei então que eu devia fazer

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o mesmo – a parte das malas, não dosaracoteio –, embora tal ideia não fossemuito convidativa. Porém, pensandobem, nem tão-pouco o era a de passar oNatal sob o mesmo teto de JudeMartland.

Noël levantou-se da cadeira, dizendopara Jude:

– É bom ter-te de volta, meu rapaz.Vou ver se a Tilda já se quer levantar.

– Como está ela?– Quase fina – asseverou ele. – Verás

por ti mesmo daqui a um pouco.– Foi muito amável em ter-me

socorrido – agradeceu Michael a Jude –,mas conto ir embora entretanto, também,assim que se souber que as estradas

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foram desimpedidas. Talvez me possadar uma boleia até ao meu carro? –sugeriu a Guy. – Ou talvez consiga,como a Holly sugeriu, que o agricultorlocal me leve no trator dele.

– Sim, George Froggat, o proprietárioda quinta no cimo da estrada, limpará aestrada e o caminho até aqui a casa estamanhã e dir-nos-á como estão asestradas. Eu seguramente que gostaria dever Guy e Coco a caminho de casa, esuponho que você esteja ansioso porpartir também, mas eu não posso pôr-vos na rua se as estradas estiveremintransitáveis – disse Jude, embora avontade dele fosse fazê-lo.

– É bom ouvi-lo, embora mais uns

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dias do histerismo da Coco e talvezmudemos de ideias em relação a isso –fez notar Guy. – Mas eu estou preparadopara pagar ao George bom dinheiro paraa levar daqui, portanto, nem tudo estáperdido ainda. Na verdade, vou levar omeu café para a sala de estar para verquando ele chega.

– Desde que ele nos alivie de titambém – gritou Jude para as costas doirmão.

– Não porias o teu irmãozinho maisnovo na rua, à neve e ao frio, pois não?– questionou Guy lamentosamente,virando-se na soleira da porta e levandoa mão ao peito num gestomelodramático.

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– Ah, poria, sim senhor – respondeuJude num tom obstinado. – E a Coco éresponsabilidade tua agora, por issocabe-te a ti certificares-te de que elachega sã e salva a casa.

– A lareira na sala de estar está acesa,se quiser ir indo para lá – sugeri aMichael.

– E está na hora de tratarmos doscavalos, Jess – anunciou Becca. – Está aficar tarde.

– Oh, mas eu vou decorar os biscoitoscom a Holly! – protestou ela.

– Eu preciso de arrumar a cozinha efazer uma ou duas coisas primeiro –argumentei eu. – Tratamos dos biscoitosquando voltares. E está tanto frio lá fora

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que nem sei se os cavalos deviam sairhoje, mesmo com dois coberjões.

– Então, de repente tornou-se peritaem equinos? – inquiriu Judeindelicadamente.

– Oh, só é preciso explicar as coisas àHolly uma vez e já está – referiu Becca.– Mas talvez os cavalos possam sair poruma hora ou duas. Têm o alpendre docercado.

Quando elas saíram, Jude levantou-setambém por pouco não batendo com acabeça no candeeiro por cima da mesa.

– Podemos conversar? – perguntei.– Mais tarde. Quero dar uma vista de

olhos à Lady à luz do dia e sem ocoberjão, para me certificar que ela está

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bem. E vou ver do gerador, do qual, apropósito, já não precisa de seaproximar, agora que eu estou de volta.E depois vou para o meu escritóriotratar do correio.

– Sim, mas...– Mais tarde! – barafustou ele de novo

e saiu antes de eu ter tempo de lhe dizerque, provavelmente, não iria havercorreio durante algum tempo e que, seele se referia ao correio eletrónico,também não havia telefone, o queimpossibilitava uma ligação à internet.

E antes de eu ter tempo de mencionaro meu urgente desejo de sair de debaixodo teto dele.

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Capítulo 23

Juntar as Peças

Ao ouvir a novidade que eutinha, o N ficou pálido dechoque, embora tenharecuperado rapidamente e metenha abraçado, asseverando-me repetidamente que tudoficaria bem. Parecia-se tantocom o N de antigamente,carinhoso e amável, queregressei a casa a sentir-me

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muito mais descansada.Maio de 1945

Pouco tempo depois, o gerador paroude rugir de repente ao mesmo tempo quea luz voltou. Segundo Noël, no inverno aluz vai e vem com maior frequência doque as luzinhas da árvore de Natal.Ainda assim, pelo menos, o geradordesligara-se sozinho, como era suposto.

A meio da manhã estávamos todosreunidos na sala de estar para um chá,café e, a pedido de Tilda, o boloDundee que era a prenda anual da OldNan para eles.

– Assim, podemos dizer-lhe queestava muito bom quando a virmos – fez

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ela notar.– E vamos vê-la? – perguntou Guy.– Sim, ela e o Richard virão ao

almoço de Natal como é costume.Jess e eu tínhamos decorado os

biscoitos com cores alegres e estávamosa pendurá-los na árvore com pedaços defio de bordado que ela encontrara numavelha caixa de costura vitoriana nasaleta. Becca segurava o escadoteenquanto eu tentava chegar aos ramosmais altos.

Tilda estava no sofá frente à lareira,com Merlin no tapete aos pés dela, eNoël, Michael e Guy sentados à mesajunto à janela, tentando terminar umaparte do puzzle que eu comprara na loja

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de Oriel, com Coco a observá-losimpacientemente do banco da janela. Háqualquer coisa de compulsivo emrelação a um quebra-cabeças, emboraparecesse não ter esse efeito em Coco;mas, pensando bem, talvez fosse daprivação de nicotina.

Jude retirara-se para o seu pequenoescritório ao lado da biblioteca, emboraprovavelmente tenha ouvido o guinchode Coco quando avistou por fim o tratorde George a subir o caminho,empurrando a neve para o lado como umquebra-gelo, pois estava na sala quandoeu regressei, corada e amarrotada, deabrir a porta a George, que ficou muitosurpreendido ao ver que Jude regressara

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da América.– Deixem lá isso – interrompeu Coco

do seu lugar à janela. – O que eu querosaber é se a estrada já está desimpedidapara nós podermos ir embora?

– Espero que com «nós», te estejas areferir a ti e ao Michael – disse Guy.

– Se vais continuar a ser assimmauzinho e eu não conseguir ir no meucarro, então seguramente que o Michaelme deixará numa estação de comboios.

George tirou o seu velho chapéu defeltro e passou os dedos pelo cabelolouro-argênteo, fazendo-o ficar de pé.

– Esperem lá! O Liam teve umatrabalheira dos diabos a desimpedir aestrada até à aldeia esta manhã. A neve

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antiga congelou por baixo da que caiuontem. E o Ben de Weasel Pot esteve nopub e disse que a estrada da quinta parabaixo está intransitável e que tambémnada passa na estrada principal paraGreat Mumming.

– Mas isso é ridículo! Se o Judeconseguiu cá chegar acima a noitepassada, com certeza que é possívelvoltar a descer! – exclamou Coco.

– A noite passada, a neve ainda nãocongelara com a camada de neve frescapor cima – explicou George, olhando-ade cima a baixo com indiferença, comose ela fosse uma bezerra escanzelada.

– E eu só consegui subir o monte atéWeasel Pot porque trazia correntes nos

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pneus – fez notar Jude.– Sim, e embora eu não duvide que

conseguisse descer até à aldeia e voltara subir até aqui, seria uma loucura irmais longe, pois qualquer viatura ficarápresa – concordou George.

– Mas você ou qualquer outra pessoacom um trator poderia levar-me daqui,não poderia? – adulou Coco numa vozpueril. – Eu pago-lhe o que o senhorquiser!

– Deem-me licença enquanto vomito –murmurei eu.

George abanou a cabeça.– Já lhe disse, está intransitável.– Mas, presumivelmente, por esta

altura a câmara já terá os seus limpa-

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neve a desimpedir a estrada principal,não é? – aventou Michael. – Será quemais tarde as estradas ficarãotransitáveis?

– Não devem ter ouvido as previsõesmeteorológicas ou visto as notícias... Aneve provocou o caos por todo o país. Acâmara não se preocupará com asestradas secundárias, quando nem mãosa medir terá para as principais.

– Guy! – barafustou Coco, virando-separa ele. – Faz alguma coisa!

– Não olhes para mim, não possofazer milagres – respondeu ele e elacomeçou a chorar.

– A culpa é tua que eu esteja aquipresa! A mamã e o papá hão de estar a

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questionar-se onde raio eu estou, econvidaram a família toda para BoxingDay para te conhecer porque estamosnoivos e compraram montes dechampanhe para os brindes... E...

– Oh, meu Deus, ela vai ficar histéricade novo – comentou Becca com aversão.– Acham que lhe deite um jarro de águaem cima? Por favor, deixem-me ser eu afazê-lo desta vez! Iria sentir-me muitomelhor!

– Então, Becca – admoestou Noël. – Apobre está perturbada.

Porém, Coco não estava assim tãotresloucada que não tivesse ouvido aameaça implícita. Bateu em retiradapara ir chorar no sofá o mais afastada

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possível de Becca e Michael seguiu-aao fim de um minuto e sentou-se ao ladodela, tentando acalmá-la.

– Bom, vou andando, então – declarouGeorge, olhando-me esperançosamente,mas eu evitei o olhar dele e deixei quefosse Guy a acompanhá-lo à porta.

– Parece que tenho mesmo de vosgramar no Natal, a não ser que haja umdegelo miraculoso entretanto, o queparece pouco provável – referiu Judecom resignação quando Guy regressou.

– Nesse caso, encaremos esta situaçãoo melhor possível – concluiu Guy. –Coco, para de fazer essa barulheira.

– Não posso evitá-lo... Quero ir paracasa! – baliu ela.

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– De momento, não me parece muitoprovável que tal aconteça.

– Lamento incomodá-lo desta forma –disse Michael a Jude, desculpando-se.

– Oh, você é a menor das minhaspreocupações. Não pense mais nisso.

– Talvez alguém me possa ajudar adesenterrar o meu carro, para o caso deo tempo melhorar esta tarde? –perguntei. Jude virou-se, olhou para mimcom a testa franzida e ripostou:

– Porquê, onde raio pensa que vai?– Para casa, se conseguir sair daqui.

Mas, se não, talvez o pub aluguequartos... Quero dizer, agora que voltou,o trabalho para o qual fui contratadaterminou, não é?

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– Isso é que era bom! – exclamou ele.– Convidou um monte de pessoas paraaqui e prometeu cozinhar para elas, porisso, não pode simplesmente virar ascostas assim e ir-se embora.

– Na verdade, eu apenas convideimetade delas.

– Mas, Holly, não podes ir –choramingou Jess –, não será tãodivertido sem ti! E, para além disso, otio Jude não sabe cozinhar!

– Há mais essa – admitiu ele. –Embora a Tilda saiba, é claro.

– A Tilda não está capaz para isso,depois da queda – fez notar Noël. –Ainda está em convalescença.

– Que exagero... estou ótima – insistiu

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Tilda. – Mas para quê complicar tudoquando a Holly e eu já temos tudoorganizado entre as duas?

Jude olhou-me com aqueles seus olhosescuros e ameaçadores.

– E, seja como for, quando é que eudisse que queria que se fosse embora? Apropósito, o pub não aluga quartos.

– Não disse, mas agora que está cá, atarefa para a qual fui contratada deixoude existir e de certeza que preferirá queeu me vá embora, portanto...

– O trabalho continua a existir, simsenhor! – interrompeu ele. – Vou pagar-lhe bom dinheiro para cozinhar para aminha família durante este tempo e asenhora vai ficar e fazer por merecer o

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seu dinheiro até ao último centavo!– Estás muito enganado, Jude – fez

notar Noël, com um ar surpreendido. – AHolly recusa-se a cobrar mais o quequer que seja, muito embora eu lhe tenhadito que devia ser paga pelo trabalhoextra que está a ter, tendo em conta queela estava à espera de passar duassemanas descansada, sem ninguém aaborrecê-la.

– Cozinhar para vocês não é maçadanenhuma – assegurei a Nöel.

– Com certeza que não – acrescentouTilda. – E a sua comida é muito boa.

– Obrigada – respondi, enternecidapor este inesperado elogio.

– Não tão boa quanto a minha,

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obviamente, mas muito boa – aproveitouela para deixar claro.

– Por mais que me custe desapontar-vos – disse Jude para os tios –, voumesmo ter de pagar uma valente maquiaà Homebodies pelos serviços da Holly.

– Não, não vai – corrigi-o. – É culpasua se partiu do pressuposto que eu fariaqualquer coisa que me pedisse desdeque me oferecesse a quantia certa, maseu já disse à Ellen que apenas lhepretendo cobrar pelo trabalho de tomarconta da casa e quaisquer merceariasque tenha tido de comprar. – Sorri paraTilda e Noël. – Na verdade, estou agostar muito de aqui estar.

– E é claro que tem de ficar, Holly,

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não nos passaria pela cabeça deixá-la ira lado algum! – insistiu Noël. – Assimcomo assim, não podendo sair daqui,que haveria a Holly de fazer, ir acamparsozinha para nossa casa até as estradasestarem transitáveis?

– Não me importo nada de ficar emvossa casa, se vocês não seincomodarem com isso?

– Não, não, é claro que fica aqui,minha querida!

– Obviamente, até porque jádecidimos os menus todos até à Noite deReis! – lembrou Tilda.

– E a Holly não só é uma excelentecozinheira, como é muito divertida –referiu Jess ao tio. – O Merlin também a

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adora – acrescentou ainda.De facto, Merlin, deduzindo pelo tom

de voz do dono que este estava zangadocomigo, trepou para o meu colo numaatitude protetora, enfrentando o dono.

– O cão parece de facto ser a sombradela, não percebo o que lhe deu –concordou Jude, olhando para Merlin. –Pelos visto, parece ter conquistado empouco tempo um lugar no coração dafamília, não é, Holly Brown? A mimparece-me uma perigosa Becky Sharp. Econtinuo a achar que a conheço dequalquer lado.

Tendo lido Vanity Fair12, não fiqueimuito agradada por ser comparada aBecky Sharp, pois não era certamente

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uma caçadora de fortunas que aliaterrara com o objetivo de casar comele!

– Todos nós achámos também que elatinha um ar familiar – disse Noël –, maspenso que seja apenas por ter os traçosdos Martland: o cabelo escuro, a alturae a pele morena. Portanto, não só asentimos já como um membro dafamília, como ela se parece com umMartland!

– Suponho que seja isso – concordouJude.

– Mas os olhos cinza-claros e ocabelo escuro herdei-os da minha avó –apressei-me a argumentar. – Na verdade,à exceção da altura e do facto de ser

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morena, não me pareço com nenhum devocês.

– É bem mais bonita que o Jude, isso écerto – referiu Guy, olhando-mepensativamente. – Embora bonita nãoseja bem a palavra certa... É de umabeleza invulgar, na verdade.

– O quê, eu? – respondi, espantada.Depois de anos a ser troçada por causada minha altura e traços fisionómicos, jápara não falar das constantes chamadasde atenção da avó para o facto de eu nãoter motivos para ser vaidosa, era difícilacreditar nas palavras dele.

– Sim... Até o George pareciaembeiçado por si, e se ele não lhepregou um beijo debaixo daquele ramo

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de visco branco no pórtico antes de oacompanhar aqui à sala, porque vinhacorada?

– Oh, isso foi apenas porque ele meapanhou de surpresa. Eu não tinhasequer reparado no visco até ele me teragarrado.

Voltei a corar, pois não havia comonegar que George estava caído por mim!

– Fui eu e a Becca que o pendurámos– explicou Noël. – É costume haversempre um ramo de visco lá.

Por trás de mim, ouviu-se a vozesganiçada de Coco a perguntar aMichael:

– O Guy disse que aquela

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empregadeca era bela... mas não é, poisnão? E, quer dizer, pode ter alturasuficiente para ser modelo, mas éobviamente demasiado gorda!

Girei sobre os calcanhares e protestei:– Se acha que ter um peso saudável é

ser gordo, então não está boa da cabeça!E, seja como for, preferiria ser gorda doque tão escanzelada a ponto de os meusossos chocalharem quando andasse! Eagora, com licença, se ninguém se vaiembora, o melhor é eu ir tratar doalmoço.

Regressei à cozinha pois, obviamente,não me restava outra opção a não serficar, a menos que por algum milagre asestradas ficassem transitáveis, o que era

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muito pouco provável. O almoço iria sersopa e sanduíches e seria servido nasala de estar. Começava a ficar farta deter tanta gente de roda de mim nacozinha. Havia umas bonitas tigelas desopa azul pálidas e com duas asas emontanhas de guardanapos de papel.Encontrara uma pilha deles em linho noarmário da roupa branca, mas, no queme dizia respeito, podiam muito bem lápermanecer até que Jude tivessearranjado uma escrava disposta a lavá-los e engomá-los para o seu senhor epatrão depois de usados.

Alguns minutos depois, Jude seguiu-me até à cozinha e fechou a porta,permanecendo de pé com os braços

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cruzados contemplando-me com aquelaexpressão franzida e confusa. Ignorei-oo máximo que alguém consegue ignoraralgo daquele tamanho a olhar-nosfixamente, enquanto colocava a sopa aolume e tirava umas pequenas latas ovaisde patê de caça caro que descobrira numdos armários. O prazo de validadeterminava no final de dezembro, por issotinham de ser comidas.

– Preferia que se sentasse e parassede me olhar assim – reclamei por fim. –Cozinhar não é um desporto paraespectadores, sabe?

Ele puxou uma das cadeiras da mesa esentou-se nela, e a cadeira protestou,mas moderadamente: imagino que a

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cadeira saiba o que é bom para a tosse.– A minha mãe gostava de cozinhar e

eu adorava ficar a vê-la – confessou eleinesperadamente.

– Invejo-o nesse sentido, pois eununca conheci a minha: morreu quandonasci. A minha avó fartava-se de mefalar dela, mas não é a mesma coisa –disse, amaciada por esta imagem deleem criança, por mais difícil que fosseimaginá-la agora. – Se calhar, algunsdos livros de culinária aqui na prateleiraeram dela?

– Suponho que sim, mas ela eraapenas uma amadora, ao passo que aHolly, pelo que me disse ao telefone, éuma cozinheira bem paga.

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– Chef.– Tanto faz. – Fixou os olhos cor de

melaço em mim e reparei pela primeiravez que tinham pequenos salpicosdourados, desconcertantes ehipnotizantes...

Afastei o olhar com esforço econtinuei com o que estava a fazer.

– Ouça, Holly, não sei que jogo está ajogar, embora seja bastante claro quealguma tem na manga. Contudo, uma vezque precisamos da sua ajuda, pagar-lhe-ei o que quiser. Assim como assim,parece que terá de ficar e de nosaguentar.

– A não ser que vá ficar a casa dosseus tios. Mas não tenho nada na manga

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e nem me ofereci para tomar conta dasua família a troco de dinheiro. Fi-loporque tive pena que você lhes tivesseestragado o Natal e também porquegosto deles.

– Então, está a dizer que queriaapenas troçar de mim quando disse queos seus honorários eram astronómicos eque eu não teria dinheiro para os pagar?– perguntou ele olhando-mecarrancudamente.

– Os meus honorários sãoastronómicos, mas eu não lhe disse comtodas as letras que iria cobrar-lhe poreles, pois não? Pedi à Ellen que não ofizesse.

– Permitiu que eu partisse do

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pressuposto que sim!– Apenas porque me irritou ao

presumir que eu era uma completamercenária.

– Não sei o que se passa consigo... Eudava-me na perfeição com o Jim e a Mo!Seguramente que não é assim tãoindelicada com todos os seus clientes!

– Apenas devolvo na mesma medidaem que recebo! Na verdade, sou umapessoa perfeitamente calma, competentee sensata.

– Oh, claro, perfeitamente! Afinal decontas, só insinuou que eu negligenciaraa minha família e deixou-me tãopreocupado por não tomar conta delesadequadamente que me meti no primeiro

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avião que arranjei. Depois descubro queme encheu a casa de pessoas.

– Eu enchi a sua casa? De quem é afamília, a horrível ex-noiva, o irmãoaproveitador e o ator refugiado, hã? –perguntei. – E alguém me perguntou seeu queria o dobro das pessoas para asquais inicialmente ia cozinhar? Ou seofereceu para me ajudar... para além doMichael, que nem sequer faz parte dasua família!

Dardejámo-nos mutuamente com oolhar. Ele tinha um ar um poucoviolento, fruto, quiçá, e em igualmedida, do mau génio e do jet lag... Outalvez aquele fosse o ar dele sempre.

– Se o seu tio e tia não se importarem,

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talvez fosse melhor eu mudar-me paracasa deles – sugeri ao fim de um minuto.– Eu deixo-lhe instruçõespormenorizadas de como cozinhar oalmoço de amanhã e o de hoje é muitosimples. Posso mostrar-lhe os menus e aTilda depois...

– Pode parar por aí! – rosnou ele e,depois, fatigadamente, esfregou a caracom a mão e deu um enorme suspiro. –Olhe, Holly, acho que talvez tenhamossimplesmente começado com o péerrado. Não poderíamos colocar opassado atrás das costas e começar denovo? Se eu pedir desculpa mil vezes enão mencionar o dinheiro, fica para oNatal e cozinha os seus menus?

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O pedido de desculpas e proposta nãolhe saíram dos lábios sem algum rangerde dentes, por isso eu perguntei num tomdesconfiado:

– Em que condição, na de escrava?– Como convidada que amavelmente

se ofereceu para cozinhar.– Vou pensar nisso – respondi. –

Talvez tenha razão e seja melhoresquecermos o que já passou ecomeçarmos de novo. No entanto, se asua apatetada ex-noiva me exigir quefaça outra omeleta de claras, é bempossível que lha faça e depois lhaesfregue naquela cara de parva.

Ele sorriu de repente com genuínasatisfação e fiquei estupefacta com a

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transformação: tinha um ar mais novo –talvez não muito mais velho que eu – eainda que não fosse bem-parecido, eraainda assim atraente... para quemgostasse de homens de feições duras e arde mau, claro está.

– Ela tem pais idosos que aestragaram com mimos, mas não éhabitualmente assim tão má. – Fez umapausa e acrescentou: – Foi imaginaçãominha ou ela estava a lançar charmepara cima de mim ao pequeno-almoço?

– Penso que apenas de uma formageral – respondi, pensando nisso. –Parece uma lapa sempre agarrada aoMichael, é claro, mas também eleaparentemente é um ator famoso e já se

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conhecem, portanto, não é de espantar.– Fiquei com a impressão que ele

estaria apenas a acalmá-la, pois, oumuito me engano, ou é por si que elearrasta a asa. Na verdade, se andou aosamassos com o George também, então jáconseguiu catrapiscar doisdesconhecidos em tempo recorde.

– Não estava aos amassos com oGeorge e não «catrapisquei», comodisse, nenhum deles – contrapus comdignidade. – São apenas ambos homensmuito simpáticos e boas pessoas.

– Bom, o meu irmão não é e pareciaestar a piscar-lhe o olho.

– O quê, por ter dito que sou bonita? –soltei uma gargalhada. – Oh, isso é um

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disparate. Ele estava apenas a irritar anoiva. Eu acho que ele está a ser umpouco cruel com ela, pois deve-a terlevado a pensar que casariam. Casocontrário, ela não teria mandado oanúncio do noivado para os jornais edado a notícia aos pais, não é?

– Já a conheceu. Responda você aessa pergunta. – Levantou-se da mesa. –Então, temos acordo? Passa o Natalconnosco e cozinha?

– Suponho que sim – concordeirelutantemente. – Mas estou a fazê-lopela Jess, pelo Noël, pela Tilda e pelaBecca... E pela Old Nan e o Richard.

– Richard? – Arqueou uma espessasobrancelha. – Outro homem que já trata

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pelo primeiro nome?– Deixe-se de palermices, seu grande

pedaço de nada – objetei comvivacidade, uma dos comentáriospreferidos do meu avô para gentepresunçosa, e ele sorriu de novo,claramente tomando o meu assentimentocomo garantido.

Porém, por aquela altura já me tinhadado conta de que bater em retirada paraa casa de Nöel e ser uma eremita nãoera uma opção quando havia um almoçode Natal para cozinhar e pessoas dasquais gostava e que ficariamdesapontadas comigo.

– Fico até dia vinte e sete, pelomenos, e depois veremos como estão as

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estradas. Porém, até lá, esta cozinha éminha e não tolerarei qualquerinterferência com o meu trabalho...entendidos?

– Não posso garantir-lhe isso da parteda Tilda – referiu ele.

– Não faz mal, ela não interfere,apenas sugere.

– Nesse caso, estamos entendidos –concluiu ele e estendeu-me uma mãobem proporcionada, de dedoscompridos e do tamanho de um cacho debananas. Pelo menos, ao contrário deHenry, não cuspiu na palma primeiro.

12 Vanity Fair: A Novel Without a Hero é umromance de William Thackeray (1811-1863)publicado em 1847. (N. da T.)

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Capítulo 24

A Mala da Ira

A Hilda e a Pearl disseram queo N me devia ter pedido emcasamento quando eu lhe dei anovidade, mas eu tenho acerteza que ele o fará quandonos voltarmos a encontrar naquinta-feira e depois tudo ficarábem.

Maio de 1945

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Depois de almoço, tornou-se bastanteóbvio que o tempo não iria mudar: naverdade, o céu apresentava de novo umominoso tom de peltre. Coco pareciaainda não se ter capacitado de que nãohavia forma de a fazer chegar a casa epor fim declarou que, já que ninguém aajudava, iria a pé até à aldeia, epossivelmente até à estrada principal,onde o seu telefone funcionaria epoderia pedir ajuda.

– A quem? – inquiriu Guy,interessado.

– Ao Automóvel Clube? À polícia? Aalguém que me leve de volta àcivilização!

– Conforma-te, isso não vai acontecer

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por muito que o quiséssemos – disseJude num tom impaciente.

– Pois, acho que só um helicópteroconseguiria alguma coisa, receio –confirmou Noël. – Mas de certeza queteremos um Natal muito divertido todosjuntos – acrescentou otimisticamente.

– Um helicóptero! – agarrou-se ela àideia como se fosse uma boia desalvação. – Os serviços de emergênciapodiam...

– Oh, não sejas estúpida –interrompeu-a Jude abruptamente. – Nãopodes pedir aos serviços de emergênciaque te venham buscar só porque queresir para casa!

– E, seja como for, não me parece que

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haja algum local plano o suficiente ondeeles pudessem aterrar – fez notar Noëlcom um ar pensativo. – Só no parque daaldeia e as casas ficam demasiado pertodele. É claro que eles podem içarpessoas...

– Nesse caso, o Jude podia levar-meaté à estrada principal, onde haverá semdúvida um local plano. Eu possotelefonar à mamã e ao papá e pedir-lhesque tratem disso. Ou podias emprestar oteu Land Rover ao Guy e podíamos osdois...

– Nada feito – declarou Guy. –Desiste.

– Vocês são todos tão horríveis paramim, à exceção do Noël e do Michael!

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Quero falar com a minha mamã e o meupapá – choramingou ela.

– Se começar com essa barulheiraoutra vez, dou-lhe uma bofetada –anunciou Becca num tom inflexível, quepareceu funcionar tão bem quantoameaçá-la com um jarro de água.

– Ouça, Coco – disse Michael numtom amável –, eu tenho de telefonar aosmeus amigos a informá-los do que mesucedeu, portanto, porque não descemosos dois em direção à aldeia até osnossos telemóveis captarem rede?Sempre nos dará também umaoportunidade de ver as condições dasestradas.

– Está bem – concordou ela, amuada

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–, mas, se conseguir encontrar alguémque me tire daqui, não volto!

– Nesse caso, o melhor é emprestar-vos algo mais prático para vestirem –observou Tilda. – Não irão longevestidos dessa forma.

Becca desencantou Wellingtons velhase casacos encerados que mais ou menoslhes serviam e eles lá partiram caminhoabaixo, o chapéu de pelo branco à Dr.Jivago de Coco a destoar de todo oconjunto. Avançaram pela neve recenteao lado do caminho, portanto, onde otrator limpara a neve, devia estardemasiado escorregadio.

– Só espero que não lhes suceda nadae que a Coco não cometa nenhuma

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imprudência – referi, observando-os dasala de estar até eles teremdesaparecido no meio dos pinheirosantes da casa de Nöel e Tilda.

– O Michael parece um tipo sensato,por isso, aposto que não irão muitolonge – argumentou Jude – e até mesmoa Coco verá que é impossível sairdaqui. Não é que eu a queira a ela ou aoGuy aqui, é claro, mas estou disposto asuportá-los tendo em conta as condiçõesatmosféricas.

– Obrigado – respondeu Guysecamente.

Jude olhou o irmão de cima a baixo.– Não penses que esqueci a forma

como te comportaste o Natal passado e

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o quanto isso perturbou o nosso painuma altura em que ele já estava tãodoente – devolveu ele.

Guy fez um ar ligeiramenteenvergonhado.

– Pois... Olha, lamento muito tudoisso! Mas é que assim que pus os olhosna Coco apaixonei-me perdidamente porela. É uma mulher linda!

– Apaixonaste? Achei que apenas matinhas roubado por ela ser minha noiva!

– Não – argumentou Guy num tomretorcido –, caí por ela de quatro. Masdepois desapaixonei-me assim da noitepara o dia logo a seguir a ela terenviado o anúncio do noivado para osjornais. Foi um chamamento à realidade.

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E tu?– Eu? – perguntou Jude. – Oh, foi

assim que a vi de novo. Na verdade,pensando bem, talvez me tenhas feito umfavor ao estragares a nossa relação.Acho que nunca me tinha dado conta doquanto ela é arejada! Deve ter ficadocego pela beleza dela.

– Eu também – concordou Guy. – Éestranho, mas quando eu achava que aamava, tudo o que ela dizia pareciaengraçado e carinhoso ao passo queagora me soa extremamente irritante.

– Seja como for, a culpa não é dela,mas é tua por a termos de gramar noNatal – fez notar Jude. – Terás de tomarconta dela e assegurar-te de que não

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aborrece toda a gente e se diverte umpouco também.

– Isso é uma ordem quase impossívelde cumprir... mas talvez o Michaelconsiga essa proeza. É um tipo bem-parecido e um ator conhecido e elaparece estar a deitar um pouco as garrasde fora para ele, reparaste?

Jude acenou que sim com a cabeça.– Sim, ela estava a murmurar qualquer

coisa acerca de uns papéis em filmes esobre um anúncio televisivo em queentrou. Muito bem, vamos impingi-la aele, isso deverá mantê-la contente eocupada.

– Isso é tão injusto! O Michael édemasiado boa pessoa para a Coco! –

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exclamei irrefletidamente e ambos osirmãos olharam para mim.

– Também está de olho nele, é? Teráde agir depressa se não quer que a Cocolhe roube a vez – aconselhou Guy. –Nunca a viu quando ela entra em ação!

– Não seja palerma, eu mal conheço oMichael – protestei. – Mas já percebique é uma pessoa amável e simpática,que é bem mais do que se pode afirmarde vocês os dois!

– É assim mesmo! – elogiou Tilda,meio sonolenta, do sofá. Depois, girouos minúsculos pés para dentro dos seusmules de veludo e marabu. – Bom, ficocontente que vocês os dois já sejamamigos de novo.

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– Eu não iria tão longe – argumentouJude, mas quando ela insistiu para queapertassem as mãos, ele fê-lo e atépermitiu que o irmão, visivelmentealiviado, o presenteasse com umapalmada afetuosa nas costas.

– Pax? – aventou Guyesperançosamente.

– Pax – concordou Jude.– Perdi alguma coisa? – perguntou

Noël, que estivera os últimos dezminutos a dormitar no seu cadeirão.

– Os rapazes são amigos de novo,Noël, e eu acho que me vou estender nacama a descansar um pouco – anunciouTilda. – O que pretendem fazer estatarde?

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– Eu vou até lá abaixo ao meu estúdiodurante uma hora ou duas – disse Jude. –Vou ver se está tudo bem.

– Podias ter aproveitado a boleia doMichael e da Coco – referiu Noël.

– Podia, mas não quis.– Posso ir contigo, tio Jude? – pediu

Jess.– Sim, se te agasalhares bem.– E a Holly também?– Eu, não – apressei-me a dizer. –

Estou ansiosa por umas horas sozinha nacozinha. Há muito ainda para fazer.

– Nunca para, Holly – comentouBecca. – Cozinhar parece-me umtrabalho muito árduo!

– E é, em especial para os pés e as

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pernas. É por isso que, de uma formageral, no inverno não cozinho. Mas eugosto de cozinhar e nunca antespreparara uma festa de Natal, portanto,tudo isto é uma novidade e um desafio.

– A Holly está a escrever um livro deculinária, mas ainda não pensou numbom título – disse Jess.

– Mais tarde, podemos fazer umasessão de brainstorming – sugeriu Guy.

– Agradeço, mas eu logo puxo pelaminha cabeça quando a altura seproporcionar – respondi e bati emretirada para o ambiente reconfortanteda cozinha. Merlin veio atrás de mim,muito embora tenha lançado a Jude umolhar como quem dizia que a sua

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lealdade estava dividida. Fica muitomais satisfeito quando estamos namesma divisão – e começo a ficar com aimpressão de que a Jess também!

Acrescentei mais legumes à panela dasopa e coloquei-a no Aga, depoisadiantei mais umas coisas para maistarde, incluindo trazer o peru para acozinha para que no dia seguinte jáestivesse à temperatura ambiente.Porém, o que eu queria mesmo fazer erafolhear os livros de culinária da cozinhapara ver se descobria alguma coisa dogénero dos bolos dos Revels que Nancy,do pub, descrevera. E o primeiro daprateleira, a versão grande, grossa eencarnada do livro de Mrs. Beeton,

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revelou-se uma caixa, recheada dereceitas escritas à mão e recortes derevistas e jornais: fascinante! Este tipode descobertas são um autêntico tesouropara qualquer cozinheira.

A receita dos bolos dos Revels estavalá, manuscrita em papel espesso creme.Copiei-a para o meu caderno deapontamentos e coloquei a original denovo na caixa. Parecia ser uma espéciede mistura para pãezinhos com muitasespeciarias, com um ou doisacrescentos, como açafrão e casca defruta cristalizada salpicada por cima, eimaginei que ao longo dos séculosevoluíra para aquilo a partir de umareceita muito mais simples. A massa é

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moldada num comprido rolo e depoisfazem-se pequenos caracóis,semelhantes a amonites fossilizadas. Seficasse em Old Place o tempo suficientee tivesse disponibilidade, podia fazeralgumas fornadas e deixá-las congeladaspara a Noite de Reis. Interroguei-mequantos seriam necessários.

A casa parecia ter ficadoagradavelmente tranquila e silenciosa e,quando enfiei a cabeça na porta da salade estar, estava vazia, à exceção deBecca, que dormia estendida no maiordos sofás. As paredes da casa pareciamexalar uma substância naturalmentesoporífera.

Ouvi, porém, a televisão da saleta, um

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desporto qualquer, a julgar pelos uivos,portanto, Guy devia lá estar com Noël.

Coloquei outro toro na lareira eregressei à cozinha, desta feita para lerum pouco mais do diário da avó. Agoraque conhecera Jude Martland e o seucharmoso – mas de pouca confiança –irmão, queria ainda com maior urgênciadescobrir se a avó estivera mesmográvida e, caso isso se confirmasse, seNed iria assumir as suasresponsabilidades. Não posso afirmarque a coisa de momento parecesse muitopromissora e se Guy for de factoparecido com o seu tio, então Ned nãoterá tido qualquer pejo em virar ascostas à avó. E, nesse caso, não me

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apetecia mesmo nada descobrir quetinha um parentesco com a família dele!

Contudo, se a minha mãe fosse filhade Ned Martland, então, o meu avô era oirmão do pai de Jude e Guy, o que faziade nós primos – e não afastados osuficiente para o meu gosto, caso Nedtivesse virado as costas à minha avó!

Depois pensei em Noël, Becca, Jess eaté mesmo em Tilda, com os quaissimpatizei e cada vez simpatizo mais, edei-me conta de que não meincomodaria nada ser parente deles.

Contive a vontade de saltar umaspáginas no diário, fazendo figas paraque a avó não estivesse grávida afinalde contas, rompesse o namoro com o

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instável Ned e casasse com o meu avô.

Infelizmente, tudo no diário apontavapara uma conclusão diferente – bemcomo a certidão de nascimento da minhamãe, quando subi ao meu quarto e, aoremexer na arca dos papéis, a encontrei.Talvez tenha sido por isso que fui umpouco brusca com Jude quando ele e aJess regressaram, trazendo uma lufadade ar gélido com eles.

Jess relatou que fizera um boneco deneve enquanto Jude se ocupava noestúdio e que o lago da nora estavaquase totalmente congelado. Estremeci.

– Não foste para cima do gelo, poisnão?

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– Não. Eu queria ir, mas o tio Judeproibiu-me.

– Que cheiro maravilhoso é este? Eisso são scones? – perguntou Jude comum ar esfomeado.

– É apenas a sopa. No inverno, gostosempre de ter uma boa panela dela. E osscones são de queijo, para o chá. Iaagora mesmo levar o tabuleiro para asala de estar. Talvez a Tilda já tenhadescido.

– Seja o que for que eu deveria pagar-lhe, merecia o dinheiro por inteiro –disse ele num tom sincero, levando otabuleiro que eu preparara.

– E como eu não me canso de lhedizer: o seu dinheiro não chegaria para

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me pagar.Ele olhou-me com curiosidade.– Não percebo por que motivo está

tão convencida que eu sou pobre.– Oh, tenho a certeza que não é

completamente pelintra, mas é um artistacom uma mansão negligenciada e semcriados internos, por isso, é óbvio quenão está propriamente cheio dele.

– É uma opção de estilo de vida.– O quê, a casa suja e negligenciada?– Não, referia-me à inexistência de

criados internos. Na verdade –acrescentou ele –, não me tinha dadoconta que a casa estava a ficar umesterco até ter regressado e constatadoque agora tinha um aspeto muito melhor.

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– Nesse caso, não devia ter sido tãoforreta com a Sharon. Ela não iriapropriamente esfalfar-se por metade dosalário mínimo, pois não?

– Foi isso que ela lhe disse que eu lhepagava?

– Sim, e que também não lhe dariasubsídio de Natal. Quer dizer... que nãoé verdade?

Ele soltou uma gargalhada.– Não, e bem feita para mim por tentar

fazer uma boa ação! Quando pus oanúncio, ela veio ter comigo com umatriste história acerca de o marido estardesempregado e tão frustrado quedescarregava nela. Fiquei com tantapena dela que a contratei... e lhe pagava

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o dobro.– O dobro?– Sim, acredite ou não. Depois dei-me

conta do quanto ela era imprestável eapanhei-a a tentar roubar alguns dosmeus esboços do cesto dos papéis noestúdio. Queria livrar-me dela, apenasnão sabia como fazê-lo.

– Oh... Nessa caso, peço desculpa.Pensei que era mesquinho para além depobre – desculpei-me.

– O tio Jude tem montes de dinheiro,Holly – fez notar Jess. – A minha mãediz que as esculturas dele se vendem porquantias astronómicas e que ele estácheio de dinheiro.

Jude lançou-me aquele sorriso

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estranhamente atraente que lhe suavizavaas duras linhas da boca e a faziaarquear-se num dos lados.

– Não achou que a Coco me queriaapenas pelos meus belos olhos, poisnão? Portanto, sim, sejam quais forem osseus honorários, teria dinheiro para ospagar. Mas, tendo em conta que não quercobrar nada, sinto-me em obrigaçãopara consigo.

– Não precisa de sentir, pois não estoua fazê-lo por si.

– Eu sei, mas ainda assim, sinto-meem dívida. Terei de arranjar outra formade a recompensar.

Dei-me conta que continuava a olharembasbacada – uma novidade em si

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mesma – para os olhos castanhossalpicados a ouro de Jude e apressei-mea desviar o olhar.

– Por acaso, cruzaram-se com a Cocoe o Michael?

– Não, mas todos os restantes estão nasala de estar. Achei que já estariam deregresso, mas talvez tenham continuadoaté à aldeia.

– Espero que a Coco não se ponhacom disparates.

– O Michael parece um homemsensato. Não me parece que o vápermitir.

– Que vai ser o jantar de hoje? –perguntou Jess, avançando para um temaque considerava mais importante.

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– Tarte de faisão com geleia degroselha e legumes de inverno. Estou aver se despacho os faisões congelados.E para sobremesa será o trifle, se tu meajudares a bater as natas e as espalharespor cima do trifle mais tarde.

– Ou podemos usar as natas em spray,são as minhas preferidas.

– Pois, eu reparei e acabei com ostock de Mistress Comfort, portanto,podes usá-las à vontade.

– Fixe! Mas eu não sei se gosto detarte de faisão.

– Provas primeiro e, se não gostares,há presunto, por isso, podes ficar com aprimeira fatia. É enorme e deve dar paravários dias.

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O que sobrasse transformar-se-ia emsopa de ervilha e presunto, a minhapreferida – se aqui ficasse o temposuficiente para a fazer.

Mais tarde esgueirei-me pela portadas traseiras e dirigi-me ao trilho quesubia o monte para telefonar a Laura,porém, a neve tapara-o por completo eera bastante profunda em alguns locais ea rede era ainda fraca quando ascondições me impediram de continuar.Depois a ligação estava sempre a cair, oque era frustrante.

Consegui falar-lhe da horrível Coco edo bem-parecido Guy se ter feito a mim.

– E se o Guy sair a Ned Martland,como já ouvi dizer que sim, então

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compreendo por que razão a avó seapaixonou por ele, embora cada vezmais me pareça que ele a engravidou edepois a abandonou, tal como eu temia.

A chamada caiu nessa altura, masquando voltei a ligar dei-lhe logo agrande notícia:

– Mas a cereja no cimo do bolo é queJude Martland chegou a noite passadatambém!

– Mas não era suposto ele estar naAmérica?

– Sim, mas ele achava que eu era umacabra insensível e mercenária que nãocuidaria do tio e da tia dele depois de aTilda ter tido o acidente! – expliqueinum tom indignado. – Por isso, meteu-se

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no primeiro avião de regresso. E gostoainda menos dele em pessoa do que aotelefone, se é que tal é possível.

– Mas o homem não terá qualidadenenhuma que o redima?

– Talvez tenha uma ou duas – admiticom relutância –, mas as falhassuperam-nas.

– Então, se o dono da casa chegou,porque não regressas?

– A neve deixou as estradasintransitáveis e ninguém pode sair daqui.

– Então, parece que vais ter um Nataldivertido!

– Pois – concordei sorumbaticamente.– A única coisa boa é que o Jude trouxecom ele um ator chamado Michael

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Whiston.– Oh, já ouvi falar dele. É muito

jeitoso!– Pois é, e também um homem muito

simpático e... oh, raio! – A chamadacaíra pela terceira vez, portanto, quandoconsegui ligação disse: – Não vale apena continuarmos. Tento de novoamanhã. Beijos para toda a família.

– E para o Sam? – inquiriu elaesperançosamente, mas o sinal de rededesapareceu mais uma vez e eu enfiei otelemóvel no bolso e desci o monte deregresso a casa, onde ninguém, a não serMerlin, reparara na minha ausência.

A tarde começava a escurecer e eu,

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pelo menos, começava a ficarpreocupada com Michael e Coco quandoo familiar trator surgiu no cimo docaminho, desta feita com um atrelado desaibro atrás e um jovem ao volante quesupus, pelo cabelo louro-argênteo, ser ofilho de George, Liam.

Apinhados na cabina com ele vinhamos dois nossos refugiadosdesaparecidos. Quando abri a porta,Liam estava a ajudar Coco, embriagada,com a maquilhagem esborratada edespenteada, a sair da cabina, seguidade Michael, com um ar de sofredorpaciente e carregando um dos sacos dejuta de Oriel Comfort com a seguintemensagem: As Gotas de Chuva São as

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Lágrimas de Alegria de Deus.Liam lançou-me um piscar de olho e

um sorriso que tive dificuldade eminterpretar – ou talvez não quisesseinterpretar – e depois saltou de novopara o trator e arrancou, lançando umaquantidade generosa de areia nocaminho.

– Estou a ver que encontraram a lojaaberta – comentei para Michael,acenando com a cabeça para o saco, eele sorriu.

– Assim que vi as condições dasestradas, ocorreu-me que, uma vez quevamos mesmo ter de passar o Natalaqui, devia contribuir para asfestividades. Depois, assim que entrei

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na loja, fui acometido por uma coisainvulgar...

– Quer dizer que foi acometido porOriel Comfort: ela é muito persuasiva.Devia ter visto o que eu comprei daúltima vez que lá estive! Mas entrem,estão os dois com um ar congelado.

Uma vez que Coco parecia capaz depermanecer ali tão pinguça quanto umavela a derreter-se, Michael pegou-lhepelo braço e arrastou-a atrás dele.

– Não estamos muito gelados, naverdade. Estávamos quando chegámos àaldeia, é claro, mas eu deixei a Coco nopub para ela telefonar aos pais e acabeipor descongelar na loja.

– Estou a ver. – Fechei a porta da

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frente e observei melhor Coco.Balançava ligeiramente e cravou osolhos azul-gelo turvos em mim.

– A mamã disse que o papá estavacom gripe, por isso o Natal e a nossafesta de noivado foram cancelados!Disse que não valia a pena eu ir a correrpara casa, que ficasse aqui, mas quenunca gostaram do Guy.

– Certo... – respondi num tomconciliador, despindo-lhe o casacoencerado e pendurando-o no bengaleiroe sentando-a para lhe descalçar as botasde borracha enquanto Michael sedespojava também das peças de roupaemprestadas.

– E quando lhe perguntei acerca dos

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meus presentes, porque queria muitouma mala Birkin, ela disse, «Que malaBirkin?» – prosseguiu Coco numa vozaguda. – Dá para acreditar? Disse-lhe hámeses para se inscrever na lista deespera, porque eu queria uma para oNatal, e o raio da vaca esqueceu-se!

– Não me parece que devesse chamarvaca à sua mãe – fiz notar, quaisquersentimentos de ténue compaixão por eladesvanecendo-se por completo. Cocotinha o afeto e profundidade emocionalde um charco de inverno: como raio éque homens aparentemente inteligentescomo Jude e Guy podiam ter-seapaixonado por ela?

Ela lançou-me outro olhar embaciado

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e disse ofensivamente:– Que importa o que você pensa? –

Depois levantou-se. – Vou tomar umbanho quente.

– Esperemos que não fiqueinconsciente e se afogue nele – disseMichael, embora não com uma grandepreocupação pelo que deduzi que elatambém esticara a paciência dele até aolimite. – Penso que vou subir e lhe sigoo exemplo, se puder ser?

– Claro, é uma boa ideia. Venha queeu preparo-lhe uma bebida quente paralevar consigo. Almoçaram?

– Sim, pão e queijo no pub, muitoembora o almoço de Coco tenha sidointeiramente líquido, como pôde

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perceber. Os pais deviam-na terbatizado Vodca, não Coco.

Como contributo para as festividades,Michael trouxera amavelmente duasenormes caixas de chocolates e trêsgarrafas do xerez muito especial do pubque Nancy lhe garantira ser o preferidodos Martland.

– Ótimo – comentei eu, aliviada. – ABecca trouxe duas garrafinhas, mas aoritmo a que é consumido, não iria durarmuito mais. E os chocolates tambémserão muito apreciados.

– Também comprei um pequenopresente para toda a gente – admitiu ele– da gama de Mistress Comfort chamadaOs Raios de Sol São os Pensamentos de

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Deus.– Eu também comprei umas

prendinhas, mas as minhas são na suamaioria comestíveis. Mais tarde voucolocá-las debaixo da árvore.

– Farei o mesmo, então, e compreipapel de embrulho, mas se tivesse umrolo de fica cola que me pudesseemprestar, seria ótimo.

Ele é um homem tão simpático eamável e atencioso! Gosto mesmo dele!Vou dar-lhe um dos frascos de doces quefiz a mais. Suponho que devia dar umtambém a Coco, mas ela não vai comcerteza querer rebuçados: têmdemasiado açúcar.

E, seja como for, aos olhos dela, nada

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se comparará à mala Birkin por que elatanto ansiava.

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Capítulo 25

Cântico de Natal

Esperei e esperei no nosso lugarhabitual e o N não apareceu.Que hei de eu pensar?Seguramente que alguma coisase passou que o impediu de vir eem breve receberei um bilhete.Ou será isto uma terrívelretribuição pelos meus pecados?

Maio de 1945

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Jude e Jess foram tratar dos cavalosjuntos para darem uma folga a Becca edepois Guy, lançando charme por todo olado, ofereceu-se para pôr a mesa – ojantar seria mais formal, na sala dejantar, tendo em conta que era vésperade Natal – e para ajudar em tudo o quefosse preciso, e eu aproveitei a súbitagenerosidade dele. Ele e Michael – queregressara para baixo com os seuspresentes todos embrulhados e oscolocara debaixo da árvore –, fizeramtodo o trabalho de carregar a louça paraa sala de jantar.

Depois de estar tudo sob controlo nacozinha e de toda a gente presente nasala de estar, incluindo a carrancuda

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Coco, ainda não completamente sóbria eataviada com uma fatiota escarlate ereduzida, levei um tabuleiro de entradassalgadas de massa filo e fiquei para umabebida.

Michael submetera o seu xerez echocolates à aprovação de Tilda,presumivelmente enquanto senhora dacasa em título, a fêmea alfa da nossaalcateia de lobos. Estava agora em tãoboas graças que, quando toda a gentepassou à sala de jantar e ele me veioajudar a levar o prato principal, medisse que se sentia como se tivesse sidoconvidado e que achava que o Natal emOld Place iria provavelmente ser maisdivertido do que com os amigos com

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quem era suposto ir passá-lo.– Irá de certeza ser diferente de

qualquer Natal que alguma vez tenhatido – referi e contei-lhe um pouco daminha educação como batista estranha eque sempre celebrara o Natal apenas nasua vertente religiosa, exceto durante osmeus breves anos de casamento. – Edepois o meu marido morreu numacidente nesta altura do ano e a minhamãe também... e agora foi a minha avó,que me criou. Portanto, como pode ver,comemorar o Natal para mim não é umacoisa muito natural!

– Pois, imagino que preferisse ignorarpura e simplesmente a quadra –concordou ele e depois presenteou-me

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com um amável abraço. – Pobre Holly!Jude, que acabara de entrar na

cozinha, estacou à porta.– Vim ver se queria que eu a ajudasse

em alguma coisa, mas estou a ver que oMichael já está a tratar disso –comentou ele num tom assaz carrancudo,dando meia volta e quase batendo com aporta ao sair.

– Que bicho lhe mordeu? – estranhei.– Presumo que ache que estamos a

ficar demasiado amigos – respondeuMichael com um sorriso. –Provavelmente, está com ciúmes.

– Palermice, ele nem gosta de mim,porque haveria de ter ciúmes? Talveznão aprove que os empregados e os

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convidados convivam uns com osoutros.

– Mas a Coco parece ser a únicapessoa que a encara como empregada.

– Ela parece estar a transferir aspreferências dela do Guy para si, járeparou? É melhor ter cuidado, Michael!

– Terei, mas julgo que seja apenasporque acha que a posso ajudar a seratriz, coisa que não posso, é claro, aindaque ela soubesse representar, algo queeu duvido muito.

– Pois, também acho que ela apenasconsegue desempenhar um papel: o deCoco – concordei.

A mesa de jantar estava linda, com

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uma toalha adamascada encarnada evelas da mesma cor nos candelabros deprata.

Coco permaneceu em silêncio etaciturna a maior parte do jantar,comendo pouco e bebendo demasiado eJude ficara também assaz macambúzio,embora, de qualquer maneira, não mepareça ser o tipo de pessoa sempredisposta a uma gargalhada. Mas todas asrestantes pessoas pareciam animadas:Jess demasiado excitada com aaproximação do dia de Natal.

Tilda chegou mesmo a elogiar-me pelatarte de faisão, afirmando que ela mesmanão faria melhor. Coco comeu apenasuma pequena garfada do meio da sua

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fatia acompanhada de uma colher desopa de legumes. Depois reagiu comaversão quando lhe foi oferecido umpedaço do trifle.

– Mas está ótimo! Fui eu que espalheias natas e fiz a decoração, não fui,Holly? – disse Jess.

– Sim, e ficou lindíssimo. E que taluma maçã ou uma clementina, Coco? Ouum pouco de queijo?

– O queijo está cheio de gordura e euodeio fruta.

– Então, o que come habitualmente emcasa? – perguntei cheia de curiosidade.

– Se é que come – comentou Judeentre dentes.

– Peixe cozido ao vapor e grãos de

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soja – respondeu Guy com uma careta.– Oh, há imenso peixe congelado na

arca, Coco. Na verdade, tenho planeadosalmão para o Boxing Day. Mas grãosde soja não temos.

– Nem sequer sei o que isso é – feznotar Jess.

– Só se popularizaram há poucotempo. As celebridades fartam-se declamar que os comem. Não sei porquê,uma vez que não têm um sabor assimmuito interessante – disse eu.

– Tenho a certeza que o Michael sabeo que são – referiu Coco, o sorrisocúmplice dela claramente querendoindicar que habitavam o mesmosofisticado mundo. Agora que bebera

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mais um copo de vinho, animara denovo, infelizmente, e começava a lançartodo o seu charme na direção deMichael, que parecia um pouco nervoso.

Disse que lamentava o que se passaraantes, mas que sabia que elecompreendia o temperamento artístico.Depois, voltou a falar-lhe do anúncio doelixir facial e que o agente iria arranjar-lhe um papel importante num novo filme,e blá-blá-blá, continuou ela, mesmoquando a Jess suspirou audivelmente ereclamou:

– Nós já sabemos tudo isso, Banana!Contudo, esta animação ligeiramente

febril, desvaneceu-se um pouco quandopassámos à sala de estar e ela reparou

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na pilha de presentes debaixo da árvore,pois lembraram-na de que não iareceber a sua mala Birkin.

Jess, que estivera a acariciar os quetinham o seu nome, disse:

– Tens aqui uns presentes, pelo menostrês, Banana.

– Não percebo porque estás sempre achamar-me esse disparate – disse ela,mas estava um pouco mais aplacada,embora eu não imagine que ela vá ficardelirante de alegria ao receber opresente de Michael, da vasta gama deOriel Comfort, ou o frasco de esfolianteque eu fizera à pressa na cozinha comsal marinho, azeite e óleo essencial delavanda.

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Não fazia ideia do que era o terceiropresente, mas a julgar pelo embrulhodescuidado, fora Jess quem o lá pusera.Fiz figas para que não fosse algodesagradável.

Jude insistiu em fazer o café e levá-lopara a sala de estar enquanto eudescansava, o que foi inesperadamenteamável da parte dele, embora tenhaestragado tudo ao trazer também ospetits fours que eu fizera para BoxingDay. Agora teria de fazer mais.

O café estava bom, por isso ele não étotalmente desprovido de talentosculinários. E parecia decididamentegostar de maçapão...

– Tem mais amêndoa ralada em casa,

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caso a minha se esgote? – perguntei aTilda.

– Oh, sim, tenho a certeza que temos.A Edwina usa muito. Quando quiser, válá a casa e reviste os armários dacozinha e traga o que quiser – ofereceuela.

Os homens foram jogar snooker para abiblioteca e Coco rumou atrás deles.

– Acham que ela será anorética? –inquiriu Becca, sentada frente ao puzzle,que não ia muito avançado. Inclinei-mesobre o ombro dela e desloquei umaspeças de uma extremidade para a outra.De onde eu me encontrava era bastanteóbvio onde deviam estar.

– Ela parece de facto desaparecer

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durante bastante tempo a seguir àsrefeições – referiu Tilda. – Também nãoé que coma muito. Será que vai vomitaro que come?

– Ela toma montes de laxantes –informou Jess inesperadamente. – Éestranho, não é?

– Como sabes? – perguntei,surpreendida.

– Vi-a a comer o que parecia umamancheia de doces quando ela achavaque estava sozinha, por isso, fuiespreitar a mala de mão dela e estárecheada de caixas deles. A gaveta damesa de cabeceira é a mesma coisa, eela está sempre a ir à casa de banho.

– Jess, querida, não devias bisbilhotar

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no quarto das outras pessoas – ralhouTilda. – Mas não admira que ela passe amocidade na casa de banho!

– Deve ser assim que ela se mantémtão magra quanto uma bicha solitária –concordou Becca. Ela e Jess ajudaram atransportar as coisas do café para acozinha e foram jogar Monopólio comTilda enquanto eu carregava a máquinade lavar a loiça, arrumava a cozinha edava de comer a Merlin.

Quando regressei à sala de estar, todaa gente tinha regressado e Guy, Michaele Coco, entediada, estavam reunidos emredor do puzzle. Jude, Tilda e Jessestavam a terminar um jogo deMonopólio, que Tilda ganhou, uma

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verdadeira magnata do imobiliário.Noël parecia estar à minha espera.– Ah, aí está você, minha querida,

mesmo a tempo para uma tradição dafamília Martland. – Pegou num volumeencadernado a couro de Cântico deNatal, de Charles Dickens, e começou aler em voz alta.

Até Coco rodou a cabeça e fixou osolhos nele, embora, quando ele chegou àparte dos fantasmas, tenha começado alançar olhares nervosos por cima doombro, como se pudesse haver ummesmo atrás dela.

No final, todos aplaudimos e Noëllevantou-se e agradeceu com umapequena e modesta vénia.

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– Obrigado! Também costumávamosler umas cenas de Noite de Reis, mas navéspera de Ano Novo.

Coco ganhou vida ao ouvir isto edisse:

– Noite de Reis? Eu conheço isso,tivemos de representar excertos da peçana escola. Tem muitas partes entediantesque é suposto serem engraçadas e cenasde amor que são uma confusão também.

– Há muitos anos, desempenhei opapel de Sebastian, em Stratford –contou Michael.

– Nesse caso, talvez devêssemosrecuperar a tradição e o Michael podiadesempenhar de novo esse papel? –aventou Noël.

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– Partindo do pressuposto de queainda aqui está na véspera de Ano Novo– referiu Guy.

– Podíamos fazê-lo antecipadamentese as estradas descongelarem e ascondições melhorarem a ponto depermitir que saiamos daqui, nãopodíamos? – sugeriu Coco e depoisacrescentou, entusiasmada: – E porquenão desempenhamos mesmo os papéis,ao invés de apenas os lermos?

– Suponho que podemos fazê-lo, sequiserem – acedeu Noël. – Temos váriascópias impressas das cenas quecostumávamos ler.

– O Michael pode fazer de Sebastian eeu serei a bela Olivia – destinou Coco,

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fazendo uma pose. – Guy, tu podes serOrsino e penso que seja melhor a Hollyfazer de Viola, tendo em conta que éirmã gémea de Sebastian e consegueparecer-se com um homem.

– Obrigada – disse eu. – Mas é capazde não resultar, não é? É supostoSebastian e Viola serem muitoparecidos.

– O público terá simplesmente depuxar pela sua imaginação – decidiu elae eu percebi que o fito dela era fazer ascenas amorosas com Michael. Contudo,do que me recordava da peça, o meu paramoroso seria Orsino.

– Detesto representações – disse Guy.– Nem sequer participo nos Revels, por

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isso, o meu papel será para o Jude. ONoël ligará as cenas como de costume eservirá de ponto e eu mais a Tilda, aJess e a Becca seremos o público.

– Eu também não sou grande ator – feznotar Jude.

– É como eu – aproveitei para alegartambém.

– Pronto, então, nesse caso, tu e aHolly podem apenas ler os vossospapéis, está bem? – disse Coco num tomimpaciente.

Era a única pessoa verdadeiramenteinteressada em desempenhar um papel,presumivelmente para exibir as suascapacidades perante Michael e, talvez,para se aproximar mais dele. Contudo,

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ninguém protestou muito mais e Noëlafirmou que procuraria as cópias dapeça no dia seguinte.

Penso que teremos ficado todosdemasiado aliviados com o facto deCoco ter encontrado algo com que seocupar para objetarmos à ideia dela.

Porém, achei que na véspera de AnoNovo há muito que já estaríamos longedali e que ela desistiria da peça numápice assim que vislumbrasse umaoportunidade de regressar a casa!

Tilda decidiu ir-se deitar e ordenou aJess que o fizesse também, mas ela nãoqueria ir.

– Estou demasiado excitada, não vouconseguir adormecer.

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– Assim sendo, o Pai Natal não virá –argumentou Tilda.

– Oh, avó! Os presentes já ali estãotodos e eu sei que foi a minha mãe quefez a meia o ano passado, porque estavahorrível. Desta vez nem sequer voupendurar nenhuma... – disse ela num tommeio triste.

– É muito tarde, mas foi um serãomuito agradável – declarou Becca eNoël concordou:

– Sim, acho que também vou subindo.Até Coco parecia disposta a ir-se

deitar também. Toda a emoção do dia eo álcool a haviam exaurido, mas repareique se deteve ainda um momento a olharpara os seus presentes debaixo da

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árvore.Com desejos de boa noite, o grupo

separou-se e desapareceu um a um, àexceção de Jude, que foi soltar Merlinpara uma última corrida e ver oscavalos. Eu fui amainar o fogo erecolher uns copos de xerez e estava nacozinha a lavá-los quando ele voltoupara dentro. Trazia o cabelo cheio deflocos de neve, portanto, seria mais umanoite de nevão.

Merlin cumprimentou-me como se nãome visse há um mês e Jude olhou-o comdesaprovação.

– Este animal deve ter ficado senil naminha ausência! Acho que esqueceu aquem pertence!

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– Já me esquecia, tenho de embrulharo presente dele quando ele não estiver aver.

– Comprou um presente ao meu cão?– Apenas um osso grande para ele

roer, na loja de Mistress Comfort. Elatem de tudo, não é?

– De tal forma que estou sempre àespera que um dia a loja impluda de tãocheia – concordou ele. – Por acaso nãotem papel de embrulho a mais? Compreiumas coisinhas no aeroporto, noregresso, no tempo de espera entre osvoos.

– Tenho, Mistress Comfort só tinharolos enormes, portanto, ainda há muitode sobra, muito embora o Michael

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também já tenha levado um pedaço –disse eu, tirando o papel do armário.

Ele murmurou qualquer coisa que mesoou a «Aposto que sim!» e dirigiu-se àporta, detendo-se na soleira paraperguntar:

– Vai-se deitar agora?– Sim, falta-me só fazer aqui uma

coisa ou duas.Ele olhou para o relógio.– Quase me esquecia... É quase meia-

noite e, neve ou não, o Richard estará naigreja. Venha daí!

Agarrando-me pela mão, rebocou-mepela casa vazia até à porta da frente, quedestrancou e abriu. Uma saraivada deneve bateu-me na cara e tenuemente,

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trazida pela brisa, ouvi a distante emágica toada de sinos de igreja no valelá em baixo.

– Feliz Natal! – declarou Jude quandoos sinos pararam. Por cima das nossascabeças o ramo de visco branco giravana brisa e ele ficou muito quieto,olhando fixamente para a minha cara.Então, como que impelido por umaqualquer compulsão à qual teriapreferido conseguir resistir, inclinou acabeça e roçou rapidamente os lábioscontra os meus.

Estremeci, mas a estupefação fez-meaquiescer, e estava ainda estacada nasoleira da porta, a neve a rodopiar juntoaos meus pés e o rosto inclinado na

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direção do dele, quando ele, com amesma subitaneidade, deu meia voltaaos calcanhares e se afastou sem maisnenhuma palavra.

Homens!

* * *

Transferi os rolinhos de salsicha ebacon, o recheio e o bread sauce13 daarca para o frigorífico antes de subirpara o meu quarto.

Escondera todos os itens querecheariam a meia de Natal de Jess nomeu roupeiro, por isso, depois de tervestido a camisa de noite comprida e oroupão que a avó me fizera no modeloarcaico que ela mais gostava, dispus

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tudo em cima da cama ao lado de umameia grande. Uma meia muito grande.

Coloquei uma clementina no fundo,junto aos dedos, uma vez que tinha umaforma que se adequava, e decidi nãocolocar as nozes. Depois, enfiei tudo oresto que comprara, pressionando bem,com a cabeça do lobo de olhos amarelosa sair por cima.

Depois, sentei-me a ler o diário daavó até me parecer que Jude já teria idodeitar-se. Quanto à minha pobre avó, asminhas suposições estavam certas e ogrande romance dela parecia estar a irpelo cano.

Uma vez que chegara àquele ponto decansaço em que nos sentimos

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narcotizados, mas totalmente despertos,li durante mais tempo do que pretendera.Quando por fim peguei na meia eavancei em bicos de pés e sem fazerbarulho – à exceção de um estranhoruge-ruge por parte da meia – pelagaleria e ao longo do corredor para aala oeste em direção ao quarto dascrianças, a casa estava mergulhada nosilêncio e toda a gente dormiaprofundamente...

Ou assim eu achava, até ao momentoem que a porta do quarto de Jude seabriu silenciosamente, qual alçapão deuma casa dos horrores, e ele me agarroue puxou para dentro do quarto, fechandoa porta atrás de mim. Soltei uma espécie

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de latido abafado e empurrei-o, asminhas palmas contra a pele nua de umpeito musculado... de um peito muitomusculado.

– Chiu! – exclamou ele, acendendo aluz, o que foi talvez ainda maisassustador, pois ele estava junto a mimapenas de calças de pijama meio largase o cabelo escuro de pé. Não ficariasurpreendida se o meu estivessetambém! Afastei as mãos como se metivesse queimado e dei um passo atrásquando ele me largou o braço.

– Que raio andava a fazer, a esgueirar-se à sorrelfa pela casa a esta hora? Ondeia? – perguntou ele num tom desconfiado

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e ameaçador.– Não estava a esgueirar-me – sibilei

furiosa – e quase me provocou umataque cardíaco, seu grande imbecil!Ainda bem que não sou de me assustarcom facilidade.

Olhou-me de cima a baixo, desde ofino roupão branco aos pés descalços, ede baixo a cima.

– Miss Havisham, presumo? – disseele sarcasticamente. Reparou então naprotuberante meia que eu transportava. –Espere, deve ser a Mãe Natal! E issonão é uma das minhas meias?

– Sim, caso a tenha deixado enfiadanuma bota junto ao bengaleiro. Lavei-aontem e cosi-lhe este pedaço de fita para

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a pendurar aos pés da cama dela... Épara a Jess.

– Também não pensei que a tivessefeito para mim. Mas a Jess não tem jáidade a mais para esse tipo de coisa?

– Segundo Mistress Comfort, não. Eunão sei, em criança nunca tive uma. Masa Jess referiu que a do ano passado foiuma grande desilusão e que acha que amãe apenas se lembrou disso à última dahora.

– A minha prima Roz é um poucodespistada. Enfiou apenas umaclementina e uma pequena caixa dechocolates na meia. – Franziu a testa. –Disse que nunca teve uma meia deNatal?

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– Fui criada pelos meus avós. Pelaminha avó, maioritariamente, pois o meuavô era muito mais velho que ela. Maseles eram batistas estranhos. O meu avôera pastor da igreja local.

Fiquei à espera que ele meperguntasse de novo o que havia deestranho neles, mas ao invés disso,disse:

– Ah, sim, penso que mencionou issocomo motivo pelo qual não comemoravao Natal. Um pouco como os PlymouthBrethren14?

– Suponho que sim, em algunsaspetos: eles seguramente que apenascelebravam os aspetos religiosos doNatal.

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Não calçara chinelos porque acharaque faria mais barulho com eles, masentretanto os meus pés haviam-setransformado em blocos de gelo e estavamais do que na hora de ir andando.

– Por mais fascinante que seja discutira minha infância e religião consigo ameio da noite, Jude, se me dá licença,vou andando.

Tentei avançar, mas ele continuava abloquear a passagem, uma expressãoinescrutável no rosto.

– Continuo a achá-la difícil deentender, Holly Brown!

– Não vale a pena dar voltas ao miolopor causa disso – argumenteiamavelmente. – Sou um livro aberto. E,

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agora, gostaria de terminar a minhamissão porque pus o despertador paramuito cedo, tenho de colocar aqueleenorme peru no forno e, se não me deitarem breve, nem vale a pena deitar-mesequer. É um monstro!

Acho que ele ficou sem perceber se oepíteto se referia a ele ou ao peru, maspor fim deu um passo para o lado e eubati em retirada. Porém, infelizmente,assim que emergi para o corredor, deide caras com Noël, que devia estar deregresso da casa de banho.

Ele limitou-se a sorrir, de uma formapouco surpreendida, e murmurou:

– Ah, a conhecerem-se melhor, estou aver. Ótimo, ótimo! – sem qualquer

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insinuação e prosseguiu.

Tive um ataque de riso e tapei a bocacom força com a mão para conter osrisinhos histéricos, enquanto, atrás demim, Jude disse, soando divertido:

– Esperemos que ele estivessesonâmbulo e de manhã já tenhaesquecido que nos viu em circunstânciastão comprometedoras.

Virei-me para lhe lançar um olhargélido e em troca ele presenteou-mecom um sorriso enigmático que eu teriagostado de desfazer à estalada. Depois,deu meia volta e fechou a porta doquarto sem fazer barulho.

Murmurei uma palavra muito feia e

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continuei em bicos de pés até ao quartodas crianças, rodei a maçaneta da portae esgueirei-me lá para dentro. Jessestava debilmente iluminada por uma luzde presença com a forma de uma lua,enroscada na cama com um braço emredor do seu ursinho e com um arangélico e muito mais jovem. Pendurei ameia aos pés da cama e esgueirei-me delá para fora.

Fazia figas para que não fosse umadesilusão para ela, embora seguramente,em comparação com a do ano anterior,esta meia fosse uma significativamelhoria.

Desta feita, avancei pelo corredor dolado oposto ao do quarto de Jude, mas a

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minha precaução foi desnecessária.

13 Molho servido quente ou frio e feitotradicionalmente com leite, manteiga ou natas eespessado com miolo de pão. É temperado comcebola, sal, cravinho, noz-moscada e louro eacompanha pratos de aves, como peru ou galinha.(N. da T.)

14 Movimento conservador cristão evangélico cujasraízes se encontram na Irlanda no início do séculoXIX. (N. da T.)

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Capítulo 26

Presentes

Continuo sem ter notícias – ter-me-á ele abandonado mesmocom tão pouca compunção? Vejoagora sem margem para dúvidaque apostatei e creio que o bebéé o meu castigo por isso. Não seio que fazer... a quem recorrer. AHilda e a Pearl são o meu únicoamparo – e como me arrependoagora de não ter dado ouvidos

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aos avisos delas!Maio de 1945

Desci bem cedo, de calças de ganga ecamisola, preparada para cozinhar, nãousei as escadas das traseiras, mas a decaracol, da galeria. Descendo devagarpara a escurecida sala de estar, senti osaromas, estranhamente emocionantes, amadeira queimada e agulhas de pinheiro,que de imediato me fizeram recordar asmanhãs de Natal passadas com Alan,ainda mais pungentes por seremrecordações felizes.

Carreguei a lareira e aticei o lume,compus as almofadas, coloquei algumaspeças do puzzle nos seus lugares – uma

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compulsão difícil de resistir – e ligueias luzes da árvore. Tremeluziram nocanto escuro sob as escadas, refletindo-se na pilha de prendas em redor daárvore. Parecia ter aumentado desde aúltima vez que olhara, com uma camadade pacotes mal embrulhados no papelque eu comprara.

De repente, avistei o meu nome num,escrito numa caligrafia ousada quereconheci das instruções acrescentadasao dossiê da Homebodies. Preparava-me para pegar nela quando me detive,uma vez que não era uma criança comoJess, incapaz de não mexer nas minhasprendas!

Lancei as cinzas da lareira no tapete

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de neve do lado de fora da porta dastraseiras, como a minha avó costumavafazer, e deixei Merlin sair e farejar o arainda escuro. Pelo menos, parecia terparado de nevar, embora a neve do diaanterior tivesse mais uma vez congeladodurante a noite.

No estábulo, ambos os cavalosestavam ainda meio adormecidos, masBilly baliu lamentosamente ao ver-me.Dei a todos pedaços extra de cenouracomo prenda de Natal e deixei-ossozinhos, pois Becca prometera tratardeles mais tarde. Estava um frio derachar na rua, o vento gelado ameaçandomais neve, por isso talvez fosse melhorque os cavalos ficassem dentro de

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portas hoje. Preocupava-me ainda maiscom Lady agora que me afeiçoara mais aela e até começava a gostar de Billy.Ainda assim, era uma decisão que agorapodia deixar sem problemas nas mãosde Becca e Jude.

Merlin e eu ficámos satisfeitos porestarmos de novo dentro de portas, masmesmo enquanto sacudia a neve dasbotas e lhe dava o pequeno-almoço jáestava a pensar nos menus daquele dia.

Havia o pequeno-almoço parapreparar e toda a gente desceria aospoucos, atrapalhando-me na cozinha seeu não tomasse alguma providência. Nãopodia servi-lo na sala de jantar porquequeria pôr a mesa para o almoço de

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Natal, por isso decidi estender umatoalha por cima da mesa redonda da salade estar e levar o suporte das torradas, amanteiga, a compota e a marmaladepara lá, e depois as pessoas podiampassar pela cozinha para levar HollyMuffins como os que fizera para Jess háuns dias e ir comê-los para lá.

Mas primeiro o mais importante: omonstruoso peru foi recheado, cobertocom papel de alumínio e enfiado numdos fornos maiores, com uma majestosatravessa azul e branca preparada para oreceber quando estivesse assado, quetinha molheiras e terrinas com tampa acondizer para os legumes.

Na noite anterior tinha já tirado as

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salsichas chipolata enroladas em bacon,o recheio de salva e tomilho, o caldo demiúdos para ir hidratando o peru e omolho de pão do congelador, por issocomecei a preparar as couves-de-bruxelas e coloquei-as num saco deplástico no frigorífico. Os nabos ebatatas em breve estavam descascados ea repousar em água fria e o puddingfornecido pelos Chirk podia ir para omicro-ondas de tamanho industrial deJude...

Terminado isso, fui tirar o salmão dodia seguinte da arca, em conjunto com oúltimo pacote de massa filo que trouxerae uma embalagem de camarões, parapreparar a entrada de hoje, e deixei-os

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numa prateleira de pedra na despensapara que descongelassem lentamente,uma vez que o frigorífico estava cheio.

Depois de esvaziar a máquina daloiça, verifiquei a minha lista de tarefase horário e constatei que estava bemdentro do previsto. Uma vez que eraainda extremamente cedo, sentei-me poruns minutos com uma bem merecidachávena de café antes de começar opequeno-almoço.

Uns minutos foi mesmo tudo o quetive, pois de repente Jess apareceu,ainda de pijama e roupão, trazendo ameia com ela para me mostrar o querecebera. Pousou-a na mesa da cozinha ecomeçou a esvaziá-la.

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– Fui acordar o tio Jude e ele disseque a meia era dele e a queria de volta,mas sem a fita cor de rosa.

– Pois, tem de ser dele, mais ninguémtem um pé assim tão grande.

– Disse-me que não fora ele o PaiNatal e eu acho que já vi algumas dascoisas na loja de Mistress Comfort, porisso talvez a minha mãe se tenha mesmolembrado este ano e tenha pedido à avóque me fizesse uma?

– Deve ter sido, não há outraexplicação. De que gostaste mais?

– Oh... do lobo, acho eu. Ou talvez dapulseira... Quando achas que podereiabrir o resto dos meus presentes?

– Depois de toda a gente ter descido e

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tomado o pequeno-almoço, presumo.– O tio Jude disse que se ia levantar,

tendo em conta que eu já o acordara.– Podes dar agora o teu presente ao

Merlin, se quiseres – sugeri comoconsolação.

– Sim, boa! – Saltou alegremente. –Sabes, por vezes acho que dar presentesconsegue ser quase tão bom quantorecebê-los.

– Sem dúvida!Merlin ficou todo contente e depois

de empurrar o papel de embrulho com ofocinho, foi-se deitar no seu cesto juntoao Aga, onde ficou a roer o osso decouro cru enquanto eu fazia bacon eovos para dois muffins de pequeno-

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almoço. Mandei então Jess ir vestir-se.– A avó gosta que eu vista um vestido

no dia de Natal – contou eladesgostosamente.

– Oh, é costume vestirem-se maisformalmente? – perguntei. – Tambémnão costumo vestir vestidos no inverno,mas talvez daqui a pouco seja melhorsubir e mudar de roupa também.

– Eu sentir-me-ia melhor se tu ofizesses também.

– Está bem, mas agora é melhorvestires umas calças de ganga e ajudaresa tia Becca com os cavalos, se não teimportasses. Seria uma grande ajuda.

– A menos que o tio Jude desçaprimeiro e o faça ele – argumentou ela

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esperançada.– Se assim for, então talvez me possas

ajudar a pôr a mesa na sala de jantar.Quando Jess voltou a descer, Becca

estava já na cozinha a terminar o seupequeno-almoço e nem sinal de Jude.Agasalharam-se então as duas muitobem e foram para o estábulo. Fui buscaros últimos sacos de muffins aocongelador: subestimara a fome de todaa gente naquela manhã e já tinhamdesaparecido dois por pessoa. Haviaainda muito pão de outras qualidades,por isso, dificilmente passaríamos fomenesse departamento. E um dia tambémpodia fazer um pão, para variar.

Mais ninguém apareceu, por isso,

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depois de me ocupar de mais umascoisas, riscando cada vez mais tarefas àminha lista, subi para mudar de roupa evesti um vestido de veludo encarnado-escuro e sabrinas rasas e pretas decouro. Os cozinheiros passam tantotempo de pé que tendem a optar peloconforto em detrimento do estilo e, fossecomo fosse, saltos altos tornar-me-iamuma gigante. Embora ali não destoasseassim tanto, uma vez que Coco é apenasuns cinco centímetros mais baixa que eue Jude ultrapassa-me em altura.

A cor do vestido ficava muito bemcom o meu tom de pele moreno-claro ecabelo escuro, que balançavalustrosamente contra o meu pescoço. É a

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única vantagem de ter cabelo liso eespesso: tomba obsequiosamente paraonde quer que o façamos pender, comoum pesado cortinado. Acrescentei umpouco de maquilhagem e depois,recordando-me do comentário de Sam,um risco preto fininho, tipo Nefertiti, emredor dos olhos e um pouco de batom.No final, tentei fazer um ar misterioso aoespelho, mas não fui bem sucedida.

Coloquei os brincos de granada quehaviam sido o último presente de Alan –encontrei-os escondidos e embrulhados,semanas após a morte dele – com umsentimento de tristeza e pesar ao invésda habitual mistura de dor e ira. E dei-me de repente conta, com uma sensação

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de perda, de que desde que chegara aOld Place já não sentia a reconfortante econstante companhia dele. Suspeitei queele desaparecera de vez, deixando-meseguir em frente completamentesozinha...

Ainda bem que o meu eyeliner era àprova de água. Sequei os olhos com umlenço e apressei-me a regressar àcozinha, onde atei um grande aventalbranco que achara na gaveta por cima dovestido. Cozinhei uma quantidadeenorme de fatias de bacon e ovos, queacabara de colocar num prato quente ecom tampa, preparados para ospróximos muffins, quando Jude chegoupor fim, o cabelo escuro ainda molhado

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do banho. Vestia uma camisa azul largade cambraia, com uma T-shirt por baixo,e calças de ganga, que era bem mais doque trazia vestido a noite anterior...Senti-me enrubescer e fiz figas para queele não reparasse.

– Desculpe o atraso, mas voltei aadormecer depois de a Jess me ter idoacordar e... – deteve-se e observou-mecom a testa franzida. – Esteve a chorar?

– Não, a picar cebola. Farto-me delacrimejar.

– Pois – respondeu ele sem grandeconvicção. – Queria descer mais cedopara tratar da lareira e trazer mais lenhada cave, bem como tratar dos cavalos,para que a Holly ou a Becca não

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tivessem de o fazer, mas acabei por medeixar dormir.

– Deve ser ainda do jet lag, mas eraótimo se fosse buscar mais lenha, poisainda não o fiz e o cesto está quasevazio. A Becca e a Jess já foram tratardos cavalos, não devem tardar aí. Játomámos o nosso pequeno-almoço.

– Penso que foi o cheirinho do bacono que finalmente me despertou –confessou ele.

– Estou a fazer bacon e ovo e hámuffins e torradas, mas o pequeno-almoço será na sala de estar, pois nãoquero toda a gente de roda de mimenquanto preparo o almoço. – Coloquei-me junto ao fogão com uma espátula e

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um prato aquecido na mão. – Quer ummuffin ou dois?

– Dois, pelo menos. Também não mequer de roda de si? Achei que talvezquisesse uma mãozinha, ainda que de umtrabalhador não especializado.

– Tenho tudo bastante bem controlado,obrigada. Sou muito organizada, sabe?

– Sim, já tinha reparado – respondeuele num tom sério, olhando de relancepara as folhas com os menus e as listas ehorários que eu prendera no quadro decortiça da cozinha.

– O Michael também alistou a ajudadele como lacaio e ele é muitohabilidoso na cozinha.

– Eu também sou muito capaz... ainda

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que não perceba muito de culinária. Umdia gostaria de aprender.

– O quê, a cozinhar?– Uma pessoa também se cansa de

refeições prontas – admitiu ele.– Bom... suponho que poderia dar-me

uma mão.À medida que os restantes comensais

foram descendo, fui enxotando-os parafora da cozinha enquanto Judetransportava chá, café e muffins para asala de estar.

– O Noël é o último – declarou ele,regressando à cozinha com um tabuleiro–, disse que apenas queria um.

– Ainda bem, pois depois desse já sónos resta um. Não me diga que a Coco

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comeu um?Jude fez uma careta.– Comeu, mas depois saiu a correr

para a casa de banho, por isso, suponhoque não lhe faça grande proveito.

– Eu acho que ela usa métodosalternativos para controlar o peso –comentei para espanto dele. – Laxantes.Não me parece que o muffin tenhasequer tempo de ser absorvido. Quedesperdício de boa comida!

– A sério? Não fazia ideia. Achavasimplesmente que ela não comia osuficiente.

– Ela é tão aflitivamente magra quetalvez devêssemos trancá-la na sala dejantar depois de almoço, longe da mala

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de mão, até ter digerido alguma coisa –sugeri.

– É na mala de mão que ela os tem?– Sim, segundo a Jess. – Preparei

rapidamente o último muffin e coloquei-o num tabuleiro com um bule de chá. –Importava-se de levar o tabuleiro aTilda? Presumo que ela depois desça.Era bom, pois já ouço a Jess e a Beccade regresso e a miúda está tãodesesperada para abrir os presentes queprovavelmente explodirá se tiver deesperar muito mais tempo!

– Ela ficou toda contente com a meiaque fez – comentou ele, olhando-mepensativamente. – Acha que foi a mãeque pediu à Tilda para a fazer. Foi muito

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amável da sua parte ter-se lembradodisso.

– A ideia, na verdade, foi de MistressComfort... e não diga à Jess que não foia mãe – pedi ao mesmo tempo que elairrompia pela porta.

– Tio Jude, tio Jude, já posso abrir osmeus presentes? – gritou ela,precipitando-se para ele.

– Depois de teres lavado as mãos emudado de roupa já poderás, pois a tuaavó não tardará a descer – argumenteieu. – Eu já fui pôr o meu vestido, porisso, agora tens de cumprir a tua partedo acordo.

Ela fez uma careta e saiu a correr dacozinha, trepando as escadas como se

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fosse uma manada de elefantes.– Está muito bonita no seu vestido

encarnado, Holly – declarou Jude, comose o elogio lhe tivesse sido arrancado aferros e depois deu meia volta e foi-seembora.

Uma vez que a maior parte da minhapessoa estava coberta por um aventalvitoriano de folhos, penso que estariaapenas a ser educado para compensar ofacto de quase me ter morto de susto anoite anterior... Se bem que, pensandomelhor, na altura ele não tenha parecidomuito contrito.

Os homens são tão estranhos.

Quando se é bem organizado, é

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possível ter tempo para outras coisasmesmo enquanto se cozinha um almoçode Natal, portanto, quando fui chamada àsala de estar para uma orgia dedesembrulhar de presentes, não tiveproblema em deixar as coisas no pontoem que estavam, mas tive o cuidado detirar o avental primeiro. Merlin, o ossode couro firmemente preso entre osdentes, veio atrás de mim.

Jess estava incumbida de transportaros presentes até aos seus recipientes e,para minha surpresa, acabei com umabela pilha deles, embora incluíssetambém os de Laura, que trouxera parabaixo comigo quando fora mudar deroupa.

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– Há aqui outro para o Merlin – feznotar Jess.

– É melhor desembrulhares esse porele – sugeriu Jude, por isso percebi quea bola de borracha era dele. Merlinenfiou-se debaixo da mesa mais próximacom o seu saque, de onde se ouvia devez em quando o guinchar da bolaquando ele lhe ferrava os dentes.

Enquanto Jess rasgava o papel dospresentes dela o mais depressa queconseguia, nós, os restantes, começámosde forma mais contida. Decidi abrir aprenda da Laura primeiro: umlindíssimo lenço de caxemira verde-esmeralda envolto em redor de um livrojá bem manuseado que reconheci de

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imediato: a cópia dela de O GuiaCompleto da Gravidez e do Parto. Nointerior, ela escrevera:

Feliz Natal, Holly! Sei como ésquando metes uma coisa nacabeça, por isso, uma vez que aoquarto vou fechar a loja, passo-te isto a ti. Porém, não possodeixar de fazer figas para quefiques aí presa pela neve nacompanhia de um homemsimpático – esse tal Georgepareceu-me ter potencial – emudes de ideias em relação alançares-te nisto sozinha!

Com amor, Laura

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Lancei uma rápida vista de olhos emredor, mas ninguém parecia estar a olharna minha direção à exceção de Jude, queesperei estivesse demasiado longe paraperceber que livro era. Tratei logo de ovoltar a embrulhar no lenço.

Jude tinha já enviado presentes aTilda, Noël e Jess quando achara quepassaria o Natal na América, mas numimpulso – para matar o tempo entrevoos, uma vez que não podia saberquantas pessoas iria encontrar em casa –parecia ter comprado também metade daloja de presentes do aeroporto. Haviamoedas de chocolate gigantes, lingotesde ouro de chocolate, pequenos ursos depelúcia vestidos de Beefeaters e porta-

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chaves com os autocarros londrinos. Ositens foram etiquetados à sorte, mastodos recebemos pelo menos um. Eufiquei com uma moeda e um urso. Coco,de novo inclinada a lamentar a malaBirkin, recebeu um lingote e um porta-chaves.

Ao contrário de Michael, queatenciosamente comprara e embrulharaum pequeno artigo da loja de OrielComfort para casa pessoa presente –canetas e blocos de notas com ospensamentos motivadores de Oriel –,Coco apenas recebeu, não deu nada aninguém – nem um obrigada.

Para além das prendas de Jude e da deMichael, Tilda e Noël deram-me uma

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cópia do livro de culinária TildaThompson’s Party Pieces, editado em1958, com tudo sobre a arte do canapé.Fiquei encantada e beijei ambos comgratidão.

– A mim não me deu nenhum beijopelos meus presentes – observou Jude e,uma vez que não percebi se falava asério ou não, beijei-lhe a face, emboratenha tido de me colocar em bicos depés, o que para mim era uma novidade,bem como o invulgar e extremamentemasculino aftershave dele. Depois, poruma questão de justiça, beijei Michaeltambém.

– Obrigada, Michael, adorei a canetae o bloco!

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– Ei, então e eu? – reclamou Guy. –Onde está o meu beijo?

– Não me deu nenhum presente – fiznotar. Guy, que, à semelhança de Jude,tinha já enviado os seus presentes paracasa dos tios, não sentira necessidade defazer mais nada.

– Eu não dei presentes a ninguém –declarou Becca. – Nunca dou. Apenasdinheiro à Jess, para ela comprar o quequiser.

– Trouxeste-nos duas garrafas dexerez muito bom, minha querida –argumentou Noël.

– Pensei que me ias dar um anel comoprenda de Natal, Guy – disse Coco comum olhar acusador. – Achei que este

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Natal ia ser verdadeiramente especial!– Pensaste mal – devolveu ele sem

consideração. – Mas quem sabe nãoencontras um no teu cracker ao almoço?

– Oh, sim, são uns crackers muitobons. Fomos nós que os comprámos –referiu Noël. – Nunca se sabe o quepodemos encontrar neles!

– Porque não abre o resto dos seuspresentes, Coco? – apressei-me a dizer.

Os meus frascos de rebuçados echocolates haviam sido muito bemrecebidos, muito embora Coco não setenha entusiasmado muito com oesfoliante caseiro e o presente deMichael, largando-os no sofá ao ladodela, meio desembrulhados. Mas depois

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abriu a prenda de Jess e pareceu por fimgenuinamente agradada com o colar decontas de origami em fio de seda.

– O teu foi a minha primeiraexperiência, Banana, e ficou um poucodefeituoso, por isso achei que mais valiaficares tu com ele – explicou Jess. –Ainda tive tempo de fazer outro para aHolly, se não seria ela que ficaria comesse.

Becca, Tilda e eu tínhamos bonitoscolares também.

– São todos lindíssimos – comenteielogiosamente. – És muito habilidosa.Deve ser bem complicado fazer estaspequeninas contas de papel.

– É, um bocado, mas agora já lhe

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ganhei o jeito e sou muito boa a fazê-las– disse ela com modéstia. – Na escolacostumam encomendar-me colares. Játenho um belo negócio e estou a pensarcomeçar a fazer brincos também.

– E o meu é encarnado-escuro, talcomo o meu vestido. Uma extraordináriacoincidência, não é? – fiz notar,colocando-o ao pescoço e inclinando acabeça para o ver.

– Não. Fui espreitar no teu roupeiro esó lá havia um vestido, por isso foifácil.

– Jess, é muito feio bisbilhotar nosquartos das outras pessoas, já todissemos antes – ralhou Becca num tommais severo.

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– Não bisbilhotei, apenas olhei. Haviauma pilha de cadernos em cima dacómoda e acidentalmente derrubei-os...– acrescentou ela inocentemente,olhando-me através da espessa franja. –Um deles caiu aberto e parecia umaespécie de diário.

– E é mesmo, mas não é meu. É umdiário que a minha avó manteve, muitointeressante, acerca dos tempos em quefoi enfermeira durante a guerra.Encontrei-o numa caixa com a papeladadela.

Jess perdeu o interesse de imediato emudou de linha de ação.

– Tio Jude, a Holly fica muito bonitade encarnado-escuro, não achas?

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– A Holly fica linda de qualquermaneira – respondeu Guy com um dosseus encantadores sorrisos. – Qualquerpessoa com a beleza dela que tambémsabe cozinhar merece a minha totaladoração.

– Oh, que disparate – repliqueiembaraçada, pouco habituada a este tipode galanteios, embora tenha notado queJude não dissera nada num sentido ounoutro, ainda que apenas por educação.Na verdade, parecia ter voltado aos seusolhares desconfiados. – Não sou nada defazer perder a cabeça a ninguém.

– Não seja modesta, minha querida! –comentou Noël galanteadoramente.

– Alguma vez alguém lhe disse que

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parece o busto de Nefertiti? – perguntouGuy como se estivesse a fazer umapergunta muito original.

– Sim, o primo da minha melhoramiga, embora eu não entenda porquê.

– Quem é Nefertiti? – quis saber Jess.– Uma antiga rainha do Egito, famosa

pela sua beleza – informou-a Noël. – Háuma foto num dos livros da biblioteca.Eu mais tarde vou buscá-lo para temostrar. E por falar em fotografias...

Tirou uma pequena máquinafotográfica do bolso do casaco e afamília gemeu resignadamente.

– Mais um Natal da família Martlandpara ser registado para a posteridade!

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Capítulo 27

Tricotar

Hoje uma das enfermeirasmostrou-me uma revista dasociedade que um doente lhedera, afirmando que vinha nelauma foto de N com a noiva, afilha de um lorde, e perguntou-me se eu não estivera embeiçadapor ele quando ali estiverainternado. É uma pessoa muitomaldosa e queria magoar-me,

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mas não podia saber que talnotícia seria como uma facadano meu coração e destruiriatoda a fé que eu tinha no homemque amava! Durante todo otempo em que acreditei quenamorávamos, ele estiveracomprometido com outrarapariga – e da sua própriacondição social.

Maio de 1945

Noël insistiu em tirar váriasfotografias para o álbum de família,embora, como Michael fez notar, algunsdos presentes não pertencessem àfamília.

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– Mas são todos amigos – argumentouele alegremente. Tinha já reparado queele, Tilda e Becca eram capazes dedespachar entre eles valentesquantidades de xerez, contudo, o dia deNatal parecia ter-lhes concedidopermissão para abrirem os festejos logoa seguir ao pequeno-almoço.

– Eu estava nas fotografias do anopassado – referiu Coco num tom amuado– e vejam onde isso me levou!

– Isso foi porque deu com os pés noJude e preferiu o Guy – disse Tildaacremente. – Por isso, se em troca levoucom os pés do Guy, bem feita para si.

– Sim... Bom, mas isso são tudo águaspassadas, não é assim, minha querida? –

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apressou-se Noël a deitar água nafervura e depois ordenou-nos em váriosgrupos, quer gostássemos quer não.Coco assumiu automaticamente poseslânguidas de modelo ao ouvir o cliqueda máquina. Vestia uma túnica de cetimdourado, semelhante a uma saca defarinha, por cima de umas leggings corde mostarda e uns botins.

– Pronto. Quando a Old Nan e oRichard vierem, tiramos com elestambém – decidiu Noël por fim. Depoissorriu-me e acrescentou: – Agoratambém ficará para a posteridade nosálbuns de família!

– E a Holly queria ficar? – perguntouJude, observando-me de novo com o

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mesmo ar desconfiado.– Um destes dias estivemos a ver os

velhos álbuns de família, em especial asfotografias dos Revels – explicou Noël.– E bem fascinada que ficou, não foi,minha querida?

– Completamente – respondi,aproveitando o momento para tentardescobrir mais alguma coisa. – Gosteiem especial daquela em que está com osseus irmão e Becca nos Revels, tiradamesmo antes da guerra.

– Oh, sim, essa foi a última em queficámos todos juntos – disse Becca numtom sorumbático. – O Jacob foi mortoem Dunkirk e o Ned faleceu naqueleacidente pouco tempo depois da

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guerra... E agora também o Alex se foi.– Ora, não vale a pena embarcarmos

em sentimentalismos – argumentou Tildacom aspereza.

– Tens razão – concordou Becca. – Émelhor recordarmos o quanto nosdivertimos... Éramos todos tão jovensnessa fotografia!

– O Noël disse que o Ned era aovelha negra da família? – incitei-a.

– Sim, embora não fosse de todo mápessoa, apenas instável no que diziarespeito a mulheres. Mas era muito bem-parecido e encantador... Pobre Ned. OGuy parece-se muito com ele.

– Obrigado – disse Guy secamente.– Já tiveste mais namoradas que eu

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tive refeições quentes – disse Becca semrodeios.

– Mas pelo menos nunca engravidounenhuma – realçou Tilda. – Pelo menosque nós saibamos.

– Quer dizer que o Ned engravidoualguma? – inquiri, estupefacta, massimulando uma expressão que, esperava,fosse de curiosidade inocente.

Com um ar perturbado, Noël acenouque sim com a cabeça.

– Uma rapariguinha operária de umafiação... Ou pelo menos penso que era.Já passou tanto tempo que já nem merecordo bem. Veio para casa a correrpara contar aos nossos pais e elesficaram horrorizados, não só porque

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achavam que não era uma noiva à altura,mas porque ele estava já comprometidocom a filha mais nova de lordeLennerton e ia começar a trabalhar paraele. Os nossos pais tinham esperançaque ele assentasse por fim.

– Bom, não podem dizer que eu soucomo ele – argumentou Guy meioindignado. – Tenho um bom emprego enunca deixei uma rapariga assim emmaus lençóis. E nem tão-pouco –acrescentou, lançando um olhar sombrioa Coco – fiquei noivo de nenhuma! –Deambulara até ao puzzle e estavaentretanto a olhar para ele. – Alguémcolocou as peças das extremidades emfalta que a noite passada não

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conseguimos encontrar!– Fui eu, esta manhã bem cedo.

Calharam a chamar por mim quando eupassei – expliquei num tom apologéticoe voltei de novo a conversa para o pontoem que ficara: – Então, que aconteceudepois de o Ned ter contado aos paisacerca da... rapariguinha operária?

– Nada, porque morreu pouco depoisdisso – respondeu Becca.

– Ele sempre conduziu um poucodepressa de mais e de forma poucoprudente – explicou Noël. – Calculoumal uma curva e pronto. Trágico, muitotrágico.

Estava precisamente a pensar que oassunto fora ainda mais trágico para a

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minha avó, quando Jude de repente medisse:

– Porquê tanto interesse na família eem especial no meu tio Ned?

– Por nada, apenas porque acho ashistórias e fotografias familiares umacoisa fascinante – respondifrivolamente, enfrentando o olharsombrio e desconfiado dele com um arde inocência. – Trouxe uma caixa delasda minha avó que ando a tentarorganizar... Papeladas e fotografias tudomisturado.

– Ah, sim, não nos tinha dito que elafora casada com um pastor batista? –perguntou Tilda.

– Batista estranho – corrigiu Jude e

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Coco, como seria previsível, perguntou:– Porquê, que tinha ele de estranho?– Nada, era apenas o nome da religião

– expliquei pacientemente. – Foiinspirado numa citação da Bíblia,«Estranhos são os caminhos do Senhor»,embora alguém me tenha dito certa vezque se trata de um erro de tradução queapenas surgiu numa versão da Bíblia.

– E é a mesma caixa de papéis ondeencontrou o diário que a sua avómanteve nos tempos de enfermeira,durante a guerra? – inquiriu Jude comperspicácia.

– Sim – respondi sem maisexplicações e levantei-me. – Comlicença, preciso de regressar à cozinha.

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– Posso fazer alguma coisa paraajudar? – perguntaram Michael, Guy eJude quase em simultâneo.

– Sim, podem pôr a mesa, se fazemfavor. Havia um entremeio de Natal parao centro da mesa no armário da roupabranca. Está no aparador, ao lado doscrackers que a Tilda e o Noëlcompraram. E, Jude, importava-se detratar das bebidas? Eu não sou grandeapreciadora, por isso não sei o quepreferem.

– A Jess e eu também ajudamos –anunciou Tilda, pondo-se direita eenfiando os pés nas habituais mules. –Vamos fazer um ouriço-cacheiro.

– Um ouriço-cacheiro? – Talvez fosse

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o que recheava aquelas horríveissanduíches de rolinho no dia em que euchegara: um animal morto!

– Sim, pedaços de queijo e cebolasem palitos de cocktail, espetados emmetade de uma toranja – explicou Jessao mesmo tempo que me seguiam até àcozinha. – A avó faz-lhes olhos e umnariz com cravinhos.

– Ah, sim... Que giro! – comentei. –Mas acho que não temos toranjas. Podeser uma batata grande, se eu a lavarprimeiro?

– Sim, mas a Jess trata disso – disseTilda. – Com certeza que a Holly temmuitas outras coisas para fazer.

– Só tenho de colocar estas

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almofadinhas de camarão picante noforno. Não demoram muito a ficarprontas. Isso e o ouriço-cacheirodeverão ser mais do que suficientes paraaguentar os estômagos até o almoçoestar pronto.

Terminado o ouriço-cacheiro, Jess, emconjunto com Noël, Tilda e Becca forampara a saleta ver a mensagem de Natalque os pais de Jess haviam gravado numDVD. Ela veio a correr à cozinha einsistiu para que eu o visse também, porsorte numa altura em que tinha dezminutos para dispensar.

Achei os pais dela doidos varridos.Estavam ambos vestidos de Pai Natal, a

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rigor, mas de uma forma divertida. Roz émais uma Martland alta e morena.

Liam, o filho de George, trouxe a OldNan e Richard até Old Place por voltada uma, e ficou combinado que maistarde os levaria de volta. Eu estavaocupada na cozinha quando eleschegaram e, quando levei o tabuleirodas almofadinhas para a sala de estar,eles estavam já a beber xerez frente àlareira, portanto, ainda bem que Michaelcomprara mais!

– Fui eu e a avó que fizemos o ouriçode queijo e picles – salientou Jessorgulhosamente. – É queijo deLancashire e cebolas de cocktail, mas

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tivemos de usar metade de uma batatapara espetar os palitos, porque nãotínhamos nenhuma toranja.

– Está muito bonito – elogiou Noëlenquanto, prestavelmente, Michaelpassava pratos e os guardanaposencarnados decorados com renas que eucomprara na loja de Mistress Comfort.

– As cebolas de cocktail contêmhidratos de carbono? – perguntou Cococom um ar duvidoso. Deve ter recusadoo xerez, pois segurava um cálice dequalquer coisa verde-escura. Crème dementhe, talvez? Havia todo o tipo debebidas no armário da sala de jantar.

– São desprovidas de calorias e oqueijo é praticamente magro – menti e

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ela animou-se um pouco e escolheu opalito com o pedaço de queijo maispequeno.

– Mais xerez, vigário? – ofereceuGuy, piscando-me o olho.

A velha ama, sem que ninguém lheperguntasse, estendeu o seu cálicetambém e sorriu-me por cima dele,exibindo uma ofuscante dentadurapostiça.

– De que ramo da família é que disseque era oriunda, querida? Já me esqueci– perguntou ela num tom amável. – Deum primo afastado, sem dúvida, masqual...?

– Não pertenço à família sequer. Vimapenas para tomar conta da casa –

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expliquei-lhe e ela lançou-me um olharsevero e declarou obstinadamente:

– Claro que pertence... Não engana aOld Nan!

– Ela confunde-se muito – sussurrou-me Becca. – Mais vale concordar comela e pronto.

– Seja como for, trouxe-lhe umpresente – disse Old Nan e, depois devasculhar no enorme saco do tricô,pescou vários embrulhos e estendeu-meum. – Os restantes venham buscar osvossos!

– Que chapéu tão bonito – disse,desembrulhando uma entrançada earredondada criação às riscas azul-elétricas e rosa forte. – Muito obrigada!

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Sem aviso, Jude tombou pesadamentea meu lado no sofá, que emitiu umguincho em jeito de protesto, e euprovavelmente fiz o mesmo, pois asalmofadas inclinaram-se e fizeram-medeslizar praticamente para o colo dele.

Examinou o meu presente com umolhar crítico.

– Na verdade, acho que o seu é umabafador para o bule, pois tem umburaco de cada lado. O meu é um gorro.

– Podem ser para as orelhas!– Não me parece, pois assim ficaria

com elas congeladas e seria totalmentecontrário ao objetivo de usar um gorrode lã, não acha?

– O seu é um abafador para o bule –

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informou-me a Old Nan.– Obrigada, vou estimá-lo para

sempre.A velha ama distribuiu as suas

oferendas tricotadas de modo a que todaa gente, incluindo Michael e Coco,recebesse um gorro, um cachecol ou umabafador para o bule, ou, no caso daJess, um rato com uma comprida caudade lã e bigodes.

– A Tilda e o Noël já receberam overdadeiro presente deles, é claro –referiu intencionalmente Old Nan.

– Ah, sim, o bolo Dundee... E receioque já o tenhamos comido todo –confessou Noël – e que delicioso queera.

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O rosto enrugado dela murchou dedesânimo.

– Todo?– Sim, mas há um excelente bolo de

Natal para encetar que a Holly fez paranós.

– Usando prodigamente o melhorbrande, a última garrafa que o meu paideixou – referiu Jude sombriamente.

– Nesse caso, está bem – animou-seOld Nan e depois lançou a Coco,sentada ao lado de Michael, um olharsevero.

Michael evidenciara um genuínodeleite com o seu cachecol magenta erosa e enrolou-o em volta do pescoço,mas Coco continuava a olhar para o seu

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gorro verde-lima com uma expressãodesprovida de sentimento. Contudo, orepertório completo de expressões delaparecia incluir apenas a carência desentimentos ou o amuo, o que nãoaugurava nada de bom para asaspirações de atriz dela.

– Aquela não é a serigaita que estavanoiva do Jude no último Natal e quedepois fugiu com o Guy? – perguntouOld Nan a Becca num sussurro bemaudível.

– Não fui com ninguém – barafustouCoco. – Na verdade, quem fugiu foi oGuy!

Richard sorriu benignamente em redorda sala.

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– Mas agora o passado está esquecidoe perdoado e aqui estamos todosreunidos mais um Natal. A Coco e o Guyestão noivos, Nan.

– Ninguém está noivo de ninguém –contradisse Guy firmemente.

– Mas então, se não estãocomprometidos, que faz ela aqui? – quissaber Old Nan. – Da última vez nãogostei dela!

– Igualmente! – devolveu Coco com asua habitual insolência.

– A Old Nan é minha convidada – fez-lhe notar Jude. – Já de ti não se podedizer o mesmo, portanto, atenção aosteus modos.

Jess saltou de repente de onde estava

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sentada, exclamando:– Oh, quase me esquecia... O Liam

trouxe um presente do pai dele para ti,Holly! Deixei-o no vestíbulo enquantopendurava os casacos.

Foi a correr buscá-lo e eu pergunteiesperançosamente:

– Toda a gente recebeu um?– Não, apenas a Holly – respondeu

Becca com um sorriso.Jess regressou com um embrulho

comprido que apenas poderia ser umbordão – e era, com uma cabeça decarneiro magnificamente talhada nocabo.

– É uma honra ter um destes –comentou Jude, tirando-mo da mão e

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examinando o entalhe. – Ele é famosopor estes bordões, mas habitualmentevende-os. É raro dar assim um.

– Está apaixonado por ti, quer casarcontigo! – cantarolou Jess, dançando emredor de mim como um feiticeiro.

– Ora, nada disso – contradisse comtoda a compostura, embora talvez tenhacorado ligeiramente, pois estava toda agente a olhar para mim.

– Então, porque te deu ele um presenteespecial?

– Jess, não aborreças a Holly –admoestou Tilda.

– Quem poderá censurar o velhoGeorge por estar embeiçado? –argumentou Guy, arqueando uma

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sobrancelha. – Ele é viúvo, Holly, eproprietário de uma quinta e tudo. Umbom partido. Podia sair-se bem pior.

– O tio Jude também é viúvo – disseJess – e é dono de Old Place e temmontes de dinheiro porque as estátuasdele se vendem por uma pipa de massa.

– Isso é um ligeiro exagero da minhanubilidade – referiu Jude, semconstrangimento.

– Não sabia que tinha sido casado –disse eu, virando-me para elesurpreendida.

– Tendemos a esquecê-lo porque foihá muito tempo e ela morreu jovem, umpouco como naquele filme... Como era onome? – questionou Becca. – História

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de Amor, é esse.– Não foi nada como História de

Amor – contestou Jude, o rosto deletoldando-se. Era obviamente ainda umamemória dolorosa, mesmo passado todoaquele tempo.

– E ele também não é pretendente daHolly, por isso não tem qualquerimportância, pois não? – lembrou Cococom uma gargalhada nervosa. – Nãopercebo para que é tanta excitação, sóporque um velho agricultor deu umabengala à cozinheira.

– Ele não é assim tão velho, apenascurtido pelo tempo – realçou Becca. –Quarenta e muitos, no máximo.

– Isso é bastante velho – disse Jess. –

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O tio Jude tem apenas trinta e oito.Ela parecia pensar que tal era motivo

para congratulação.– E eu tenho uns meros trinta e seis –

informou Guy, concedendo-me um dosseus arrebatadores sorrisos, embora semqualquer efeito. Ao contrário da minhaavó, não iria ser ludibriada por um bem-parecido e mulherengo Martland.

Tinha a certeza que ele na verdade nãogostava de mim e o mais provável é quegalanteasse automaticamente qualquermulher no raio de alcance dele.

– E sou um banqueiro deinvestimentos muito bem sucedidotambém – acrescentou ele comoargumento decisivo.

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– Trapaceiro será mais o termo –murmurou Jude a meu lado,surpreendendo-me a ponto de me fazerroncar para suprimir uma gargalhada.

– Não lhe dê ouvidos – disse Guy. –Verá que sou muito mais divertido que oGeorge, que passa o dia a falar com asovelhas.

Não estava habituada a este tipo degalanteios, por mais fingidos quefossem, nem tão-pouco sabia como jogareste jogo, por isso foi um alívio escaparpara a cozinha.

E só esperava que Jess não tivessemetido na cabeça tentar fazer decasamenteira entre o seu querido tioJude e eu, pois era uma ideia condenada

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pela nossa mútua antipatia!

Noël recebeu-nos na sala de jantarcom uma animada interpretação docântico de Natal «The Twelve Days ofChristmas», acompanhando-se a elemesmo ao piano. Tilda juntou-se a eleno último verso num vacilante tom desoprano.

E o almoço de Natal, se é que possodizê-lo sem parecer demasiadopresumida, estava magnífico.

O peru, dourado e assado no ponto, assalsichas enroladas em bacon, o molhode pão, as batatas e cherovias assadas eestaladiças, as pequenas e firmescouves-de-bruxelas da horta de Henry e

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o excelente molho, tão espesso que acolher se segurava de pé... tudo estavaperfeito.

Depois de toda a gente ter bebido aponto de estar razoavelmente bem-disposta, puxámos os crackers,partilhámos os lemas e colocámos ascoroas de cartolina argêntea – que,estranhamente, era a Jude que melhorficavam, com a larga testa, o narizgrosso e direito e o queixo vigoroso,parecia um príncipe robusto acabado devir do campo de batalha. Começámosentão a comer, e até Coco, com um ar detemerária despreocupação, quiçáproporcionada pela bebida verde quetomara antes do almoço, comeu pelo

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menos uma colher de chá de tudo.Só esperava que a comida ficasse no

sistema dela o tempo suficiente para teralgum proveito e, embora eu andasse aesconder-lhe o stock de laxantes sempreque tinha oportunidade, não sabia aocerto qual o efeito que a privação delaxantes teria nela...

Por fim, Jude incendiou o brande porcima do enorme e abobadado pudding etransportou-o até à sala de jantar, àsescuras, as chamas azuis dançando.Michael vinha no fim da procissão,transportando o molho de brande e omolho branco.

No final da refeição, Jude abriuchampanhe e toda a gente brindou aos

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meus cozinhados, o que foi muitogratificante. Depois, propôs um segundobrinde ao aniversário de Noël.

– E ao da Holly também – fez notarNoël, erguendo o seu copo para mim. –Partilhamos a mesma data deaniversário.

Retiraram-se então todos para a salade estar, cheios até ao cimo, emboraJude, Jess e Michael me tenham ajudadoprimeiro a levantar a mesa.

Enfiei o máximo que consegui namáquina da louça e juntei-me a eles,depois de colocar um pouco de peru natigela de Merlin e lhe ter dado um beijonatalício no cima da grisalha cabeça.

Old Nan e Tilda tinham adormecido

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em ambas as pontas do enorme sofá, ospés em cima das almofadas, e Noëlreclinara-se no mais pequeno, mas oresto do grupo estava a jogar Monopólionuma das mesas, incluindo Coco,embora estivesse sempre a rir pornenhuma razão em especial e a afirmarque apenas compraria propriedades corde rosa.

Eu dirigi-me ao puzzle – irritam-meaté estarem terminados, porque gosto detudo bonitinho e no seu lugar – e repareide imediato que uma das peças estavade cabeça para baixo. Corrigido o erro,depois de examinar cuidadosamente aimagem na caixa, completei uma porçãointeira do céu.

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Mas, pensando bem, a vida ensinou-me que compensa sempre escrutinar aembalagem.

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Capítulo 28

Natal Presente

No final, tive de enfrentar ainelutável verdade de que o meuamor me abandonara. Não haviaoutra coisa a fazer. Emdesespero, regressei a casa econtei a minha situação aosmeus pais. A cena que se seguiufoi muito pior do que alguma vezpoderia ter imaginado.

Maio de 1945

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Liam apareceu como combinado noenorme Land Rover da quinta comcorrentes nos pneus, pronto para levaros dois idosos de regresso a casa.Ambos levavam embalagens com bolo,rolos de salsicha e sanduíches de peru erecheio, para comerem quando o almoçojá tivesse sido digerido, embora eu,pessoalmente, me sentisse como umapitão que engolira uma cabra.

Entreguei a Liam outro frasco dedoces feito à pressa para retribuir opresente do pai dele, embora tenha feitoum para ele também, para que o gestonão parecesse demasiado íntimo –sentia-me lisonjeada, mas queria ser

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cautelosa! Já se me esgotara o stock dedoces e tivera de rechear o frasco deLiam com as geleias que comprara paramim mesma.

– Posso pedir-te que me leves até àcasa do guarda? – perguntei. – Sóconsigo apanhar rede de telemóvel lá equeria telefonar a uma amiga a dar asboas festas. Depois regresso a pé, faz-me bem andar.

– Não tarda ficará escuro – fez notarGuy.

– Dificilmente me poderei perder noregresso, não é? E levo o Merlin parame fazer companhia, se por ti estivertudo bem, Liam? Não demoro.

– Nós trataremos dos cavalos

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enquanto isso – decidiu Becca. –Ajudas-me, não ajudas, Jess?

– Ou posso fazê-lo eu, Becca, sequiser descansar? – ofereceu Jude.

– Não é preciso, obrigada. Fazes tuamanhã de manhã e assim nós dormimosaté mais tarde!

– Eu dou-lhe a chave da casa, se nãose importar de mais uma vez ver se estátudo em ordem? – pediu Noël.

– Com certeza, e talvez possa trazer láda cozinha uma ou outra coisa que jáquase temos em falta? – Não sabia aocerto o que Nöel achava que pudessecorrer mal em casa dele, para além deum cano rebentado ou a possibilidade deo abominável homem das neves ter lá

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acampado... algo que não aconteceria,uma vez que já vivia em Old Place!

E, quando esse pensamento me veio àcabeça, cruzei o olhar com Jude, que mefitava desconcertante e cogitantementemais uma vez, com a testa franzida.Estaria a pensar se eu não aproveitaria opedido de Nöel para roubar as pratasdos tios?

Tive de vestir o casaco comprido deinverno, ao invés do anoraque de penascom capuz: uma das desvantagens deusar vestidos no inverno. Mas era issoou arriscar ficar com as extremidadescongeladas.

Richard e Old Nan foramtemporariamente reanimados por um ar

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tão frio que podia ser sentido em todasas pequenas ramificações dosbrônquios, mas iam de novo a dormitarquando Liam me deixou com Merlinjunto à casa de Nöel.

Estava tudo bem e saqueei osarmários da cozinha em busca de maisamêndoa ralada, frutos secos e outrascoisas de que poderia precisar caso ogrande congelamento continuasse.Depois, tranquei a porta com cuidado ecaminhei uns metros ao longo da beirado caminho, os meus pés esmagando aneve virginal, até o meu telemóvelindicar que tinha rede.

Laura demorou bastante tempo aatender, provavelmente porque a

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barulhenta festa familiar que se ouviaem pano de fundo a impedira de ouvir otelefone. Quando por fim atendeu, disse-me que estava ótima.

– Sóbria como um abstémico, éclaro... oh, as alegrias da gravidez! Logoverás.

– Pois, por falar em gravidez, estamanhã desembrulhei aquele livro que medeste frente a toda a gente!

Ela riu.– Desculpa lá, mas não me lembrei

que não irias estar sozinha. Alguém viu?– Escondi-o rapidamente e apenas o

Jude parecia estar a olhar para mimnaquela altura. Estava do outro lado dasala, porém, para isso precisaria de uma

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visão de rapina para conseguir ler otítulo. Desde então, tem-me mandadoassim uns olhares estranhos, mas issonão é nada de novo: o olhar carregado edesconfiado parece ser a imagem demarca dele.

– Ah, sim, e como é o senhor fidalgo,para além do olhar tipo Heathcliff e davoz grossa e sensual?

– Chegámos assim a uma espécie detréguas, mas ele continua muitocircunspecto e pareceu-me desconfiadoquando hoje coloquei algumas perguntasa Nöel acerca de Ned Martland. Comosou alta e morena, à semelhança damaioria dos Martland, é possível queele tenha começado a ficar preocupado

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que eu seja um membro bastardo dafamília com ambições à herança. E,pensando bem, posso ser um membrobastardo da família, ou a filha de um,mas não quero sê-lo.

– Então, o que leste do diário aindanão te permitiu ter essa certeza, não é?

– Pois não, embora as perspetivas nãosejam propriamente animadoras.

– Depois conta-me tudo. Esperava queo Jude se revelasse mais simpático doque tu contavas e que acabassem por seembeiçar um pelo outro – referiu elanum tom otimista. – Ele ao menos égiro?

Pensei um momento.– É moreno, mas não bem-parecido

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como o irmão, Guy, porque tem umasfeições demasiado rudes e um queixoquadrangular que lhe dá um arcarrancudo. Mas tem um sorriso muitoatraente, quando se dá ao trabalho de oesboçar.

– Deve tê-lo usado, pois, casocontrário, tu não saberias descrevê-lo! Enão é alto para além de moreno? Ser-sebem-parecido não é tudo!

– Sim, deve ter um metro e noventa eoito, ombros largos e grossos, embora otronco vá afunilando até às ancas... Naverdade, é bastante jeitoso e em formasem roupa! – acrescentei para me metercom Laura.

– Holly!

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– Não te excites, só me cruzei com elequando ia pendurar a meia de Natal daJess, e ele estava apenas de calças depijama.

– A mim parece-me que ele temmuitos argumentos a favor dele, se tuconseguires ultrapassar a tua antipatiainicial. Quero dizer, se ele é bem maisalto do que tu, isso tem de ser bom,certo?

– Mas eu não estou habituada a umhomem que me faça sentir pequena, porisso, estou a achar a experiência umpouco desconcertante, para ser sincera.Beijou-me debaixo do visco branco,apesar de não gostar de mim, portanto,não sei porque se deu sequer a essa

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maçada. Os homens são tão estranhos!– Mmmm... – comentou ela

pensativamente. – Então, e a restanteclasse?

– Simpatizo cada vez mais com oMichael, é um homem muito amável etambém gosta de cozinhar, mas o pinga-amor do Guy não me interessa nem umpouco, pois aparentemente é muitoparecido com o seu tio Ned.

– E também, presumivelmente, porquesabes que ele é um mulherengo?

– Pois, há isso, embora por vezes dêpor mim a simpatizar com ele,contrariando o meu bom senso. Charmeé o que não lhe falta. Ele e o Judeparece terem feito as pazes, mas é óbvio

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que ele tem ciúmes do irmão, o que nãoé uma característica muito cativante, etem sido totalmente inconstante e cruelcom a Coco. Começo a sentir um poucode pena dela, na verdade – acrescentei.

– Mas pensei que a tinhas odiado àprimeira vista?

– E odiei, mas o que se passa é queela, apesar de ter vinte e quatro anos, écompletamente infantil e toda a sua vidafoi a princesinha da mamã e do papá,portanto, não sabe lidar com o facto denem sempre conseguir levar a delaadiante. Faz birra ou então amua. OMichael e o Noël são os únicos que têmsido amáveis para com ela, porque sãoambos uns corações moles. Porém, ela

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agora começa a revelar sinais de quererferrar as garras no Michael, portanto,provavelmente ela até já deseja não tersido tão amável!

– Ai, sim? – perguntou Laura todainteressada. – Então, ele suspira por ti?

Soltei uma gargalhada.– Nada disso, e tenho a certeza que o

Guy também não, muito embora não secanse de me namoriscar. Mas o Michaele eu estamos a ficar bons amigos.

Laura suspirou.– Tantos homens e não te agrada

nenhum, nem sequer um bocadinho?– Não te esqueças do meu verdadeiro

admirador, o George.– O George?

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– O agricultor ligeiramente curtidopelos elementos, louro e jeitoso. Hojeaté me mandou um presente: umabengala magnificamente entalhada. Peloque soube, é uma grande honra serpresenteada com uma, embora eususpeite de uma coisa que o filho dele,Liam, deixou escapar enquanto me davaboleia até aqui, que ele resolveuaumentar a parada, oferecendo umatambém à Oriel Comfort, a dona da lojada aldeia.

– Então, até gostas dele, Holly!– Um pouco... É bastante atraente, lá à

maneira dele, mas não me estou a vercomo mulher de um agricultor. Oumulher de quem quer que seja. Outra

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vez não. Não ando à procura de outromarido. Quero seguir com o meu planosozinha, como pensei inicialmente.

– Não estarás sozinha, se fores emfrente com a inseminação e correr bem –fez ela notar. – Olha, porque não esperasuns seis meses primeiro, Holly? Sai comuns homens e...

– Saí com o Sam e não resultou.Ela voltou a suspirar.– Uma vez, o que dificilmente dá para

o que quer que seja, e desde então nãovoltaste a sair com mais ninguém, poisnão? Quando algum homem demonstraqualquer interesse, tu recuas deimediato.

– Mas muitos não demonstram, ou

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então não é a sério, como o Guy,portanto, mais vale encarares-me comouma causa perdida. Encontrei a minhaalma gémea e perdê-la doeu demasiadopara me fazer querer tentar de novo,ainda que eu acreditasse que havia poraí outro senhor certo, que não acredito.

– Não tens remédio! – exclamou ela,mas afetuosamente. – A propósito, osmiúdos adoraram os presentes deles.

– É bom que sim, foste tu que medisseste o que eles queriam!

– Mas não te disse o que eu queria, eadorei também.

– Fácil! Quando a empregada daDebenhams te borrifou o perfume nopulso, achei que nunca mais irias lavar o

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braço! Gostei muito do meu lenço.Trago-o ao pescoço agora mesmo. Levemas muito quentinho.

– O resto da família está a mandar-tebeijinhos e a dizer que gostavam queestivesses aqui connosco.

– Provavelmente, até é melhor que nãoesteja; apenas serviria para vos recordarque o Alan não está connosco.

– Não sejas palerma, sabes bem queele está sempre nos nossos pensamentos,em especial por volta desta altura doano. Mas aceitámos o que aconteceu eseguimos em frente com as nossas vidas,embora sintamos muito, muito a faltadele... E, desde que a tua avó faleceu,fiquei com a sensação de que tu estavas

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finalmente a começar a fazer o mesmo.– Sim, dei-me conta de que lidei com

a morte do Alan fechando-lhe a porta emvez de fazer um luto como devia ser.Mas agora estou sempre a pensar nele ea recordar os bons momentos quepassámos juntos, em especial no Natal.

– Eras duas vezes mais mandona eáspera quando te mudaste para o campoe começaste a trabalhar para a Ellen,mas agora pareces-me muito mais avelha Holly, se bem que com um poucode mais garra.

– Obrigada.– Diria que teres sido obrigada a lidar

com o Natal te fez muito, muito bem.– É bem provável que tenhas razão,

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mas ainda assim sinto-me culpada porme ter esquecido do aniversário damorte do Alan.

– Não, isso foi um sinal muitopositivo e saudável; não tens nada porque te sentir culpada.

– Há tanto para fazer todos os dias emOld Place que mal tenho um minuto paramim mesma, quanto mais para matutaracerca do passado... E, quando tenhotempo, é para matutar sobre o passadoda avó, pois estou em pulgas paradescobrir o que aconteceu.

– Mas se há montes de coisas parafazer, então, mesmo que as estradasdescongelem, é possível que o Judequeira que tu fiques – aventou ela.

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– Na verdade, eu concordei ficar ecozinhar até depois do Natal. Não tinhamuitas mais alternativas. Depois disso,logo se vê. Pelo menos, agora há outraspessoas para cuidar dos cavalos e tratardo gerador se a nossa eletricidade forabaixo de novo.

– Esse «nossa» até parece que a casate pertence!

– Já me esforcei e trabalhei tanto aquiem Old Place que sinto como se tivessedinheiro empatado nela – referi. –Também me afeiçoei muito ao Merlin...e a Lady é uma querida. Faz assim umaespécie de ronco pelo nariz quando mevê, mas talvez seja porque estou semprea dar-lhe pedaços de cenoura. Para te

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ser franca, já sinto saudades de cuidardela agora que a Becca assumiu essasfunções – admiti. – Ela costumava enfiaro focinho pela minha nuca abaixoquando eu ia limpar a cocheira.

– Quê, a Becca?– Não, a Lady, sua palerma!Por esta altura já escurecera bastante

e estava demasiado frio para ficar aliespecada muito mais tempo. Os meuspés haviam-se transformado em pedrasde gelo apesar de ter Merlin sentado emcima deles – parvo é que ele não é –,por isso despedi-me de Laura e rumei acasa.

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Capítulo 29

Abominável

O meu pai ficou ali sentado,estupefacto, durante váriosminutos, e depois disse-memuito friamente que não erafilha dele e que devia abandonara casa dele para nunca maisvoltar. A minha mãe, emboratenha chorado, não foi contraele. Ele ordenou-lhe queemalasse o resto das minhas

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coisas e mas enviasse.Maio de 1945

Avançava penosamente caminhoacima, pelo escuro bosque de pinheirosacima da casa de Nöel e Tilda, quandouma enorme e ameaçadora figura semeteu mesmo à minha frente.

A adrenalina corria-me pelas veias etinha a pesada lanterna comrevestimento de borracha à mão para medefender, mas ocorreu-me que Merlinnão se alarmara minimamente. Virei-aao contrário e acendi-a, seguindo-oenquanto ele dava um pulo para a frentee cumprimentava Jude, que vinha pelotrilho que conduzia ao seu estúdio.

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– Olá, meu palerma inconstante –disse ele, afagando as orelhas deMerlin. Depois olhou para cimaapologeticamente, semicerrando osolhos de uma forma que em nadaajudava à sua beleza. – Desculpe,assustei-a? Apeteceu-me um pouco de arfresco e pensei vir até à nora e talvezfazer-lhe companhia no regresso. Nãome agradou a ideia de andar a vaguearpor aí sozinha no escuro e na neve.

– Na verdade, não estava nem umpouco nervosa até o Jude ter aparecidoassim inesperadamente. Tenho umalanterna muito boa, como vê.

– Sim, reparei... e afastar o feixe dosmeus olhos seria uma caridade – referiu

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ele.Baixei-o ligeiramente.– Obrigado, era como estar a ser

interrogado sob um holofote. Deve seruma lanterna grande, não?

– Melhor ainda para o agredir, casoviesse a revelar-se um malfeitor –expliquei. – Cobertura de borracha e porisso apenas lhe teria deixado umacontusão, no pior dos casos. Ou nomelhor.

– Nem pensar, não conseguiria chegartão alto!

– Talvez tivesse de fazer pontaria aum alvo diferente, mais mole – admiti eele encolheu-se. – De uma forma geral,contudo, a maioria dos assaltantes não

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será mais alta que eu.– Suponho que não – concordou ele,

avançando estrada acima ao meu lado eao mesmo ritmo que eu. Merlin assumiua sua posição com o focinhopressionado contra a parte de trás daminha perna, ou melhor, a parte de trásdo meu comprido casaco de inverno.

Não havia neve sob a denso conjuntode pinheiros, embora mais à frente elatremeluzisse, onde o bosque se abriapara o relvado frente à casa. Algures àdistância, para a esquerda, ouvia-setenuemente o curso do ribeiro,misturando-se com o som do gélidovento sacudindo o cimo das copas.

– O almoço de Natal estava

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maravilhoso – disse ele por fim,quebrando o silêncio. – Eu cheguei adizer-lhe?

– Sim, até propôs um brinde aos meuscozinhados. E adorei os meuspresentes... Obrigada. Foram umasurpresa, pois não estava à espera denenhum, à exceção do colar da Jess, aque ela já aludira.

– Não tem de quê. Eu é que ficocontente por ter tido aquele impulsotresloucado na loja do aeroporto. Deveestar cansada, mal parou desde manhã.

– Não, não me sinto cansada. Estouhabituada a cozinhar para gruposgrandes, embora habitualmente não façamais nada a não ser preparar, cozinhar e

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tratar dos pratos. Esta noite o jantar seráapenas sanduíches, rolos de salsicha,bolo, mince pies e trifle, que colocareina sala de estar. Ou então, quem quisercomer a ver televisão, pode pegar numtabuleiro e levá-lo para a saleta.

– Estou-lhe muito grato por ter trazidoa Tilda e o Noël para Old Place depoisdo acidente da Tilda – agradeceu ele. –Dei-me conta do quanto eles estãofrágeis... Penso que vê-los todos os diasme deverá ter cegado para isso.Encarava tudo o que a Tilda dizia sobrecozinhar como verdade.

– Na cabeça dela, a Tilda ainda écapaz de fazer tudo o que costumavafazer e parece ter-se iludido a ela

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mesma e ao Noël de que ainda cozinhatodas as refeições, embora, segundo aJess, seja a empregada deles que faztudo.

– Eu acho que o Noël sabe, masconcorda sempre com tudo o que ela dizem prol de uma vida pacífica. Já repareique ela tenta mandar em si também.

– Isso não me incomoda. É umcomandar tipo chef executivo, e não énada que não tenha tido de aguentarquando comecei a minha carreira numrestaurante, em Merchester. Acabei porchegar a chef executiva nesse mesmorestaurante antes de... bom, antes de medespedir e me ter tornado colaboradorada Homebodies.

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– Isso foi depois da morte do seumarido?

Deixáramos a pequena mata para tráse avançávamos pela neve dura na bermado caminho, onde o solo estava menosescorregadio.

– Sim, eu queria uma mudança decento e oitenta graus.

Se ele estava a colocar perguntaspessoais, então não havia motivo paraeu me coibir de o fazer, portanto, disse:

– Não sabia que também era viúvo.– Sim, conheci a Kate na faculdade de

belas-artes, casámos antes determinarmos o curso e depois, comoprovavelmente terá percebido, elamorreu de leucemia alguns meses mais

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tarde.– Tão jovem! Como era ela?– Amorosa, talentosa, divertida...

corajosa, em especial mais para o fim –recordou ele com algum pesar na voz. –Eu senti-me culpado simplesmente porser saudável quando ela definhavaliteralmente frente aos meus olhos. ACoco parece-se um pouco com ela.Penso que terá sido isso o que me atraiunela, embora, em termos depersonalidade, não se assemelhe emnada à Kate.

– Lamento muito: não devia tê-lorecordado dela.

– Não faz mal... É melhorenfrentarmos os nossos demónios, não

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é?– Foi também a essa conclusão que

cheguei – concordei –, mas demorei achegar lá.

– Mas a sua perda é muito maisrecente que a minha: perdi a Kate hátanto tempo que ela entretanto já setransformou num memória distante etriste... embora tenha percebido que nãoqueria voltar a sentir a dor que sentiquando a perdi – acrescentou ele em vozbaixa, mais para ele mesmo, pareceu-me, que para mim.

– Eu fui casada durante oito anos e aminha melhor amiga é a irmã do meumarido, portanto, conheci o Alan durantea maior parte da minha vida. Éramos

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muito felizes.– Presumo, então, que ele gostava de

ser mandado – aventou eleescandalosamente; e lá voltava o velhoJude, mesmo quando eu começava asentir-me muito mais em sintonia comele.

Preparava-me para contradizer talsugestão com toda a veemência quandoas palavras como que me ficaramcoladas à língua, pois era verdade,ainda que Alan não se importasse comisso.

– Não era assim – expliquei. – Ele eraum rapaz bonacheirão, mas teimosotambém. Quando metia uma coisa nacabeça, nem eu o fazia mudar de ideias.

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Como começar a praticar jogging, porexemplo, que o conduzira à morte...

– Segundo a Jess, ele morreu numacidente?

– Sim, pouco antes do Natal. Maisuma razão por que nunca mais desdeentão o celebrei. Na verdade, costumopassar o aniversário da morte delealgures num local tranquilo, ondeninguém me conheça.

– Então... – deteve-se. – Oh, agorapercebo a sua relutância em fazer o queeu lhe pedi! Lamento que tenha sidoforçada a uma celebração que naverdade não desejava!

– Não tem importância. Estou a chegarà conclusão que toda esta festividade

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forçada acabou por me fazer bem. E oAlan era um homem sensível e calmocom um forte sentido de humor... Comcerteza não quereria que eu me tornasseuma eremita por causa dele, ainda queapenas uma vez por ano.

– Não, se a amava, com certeza quenão haveria de querer isso – concordouele. – Voltou a sair com alguém desdeque...?

– Com o Sam, o primo dele. – Nãomencionei que nem sequer fora umasaída a sério, pois não queria dar aentender que ninguém se interessara pormim. – E o Jude? – atrevi-me aperguntar também.

– Oh, montes de raparigas, mas nada

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de muito sério até ter conhecido a Coco:havia qualquer coisa de vulnerável nela.Achei que ela precisava de alguém quetomasse conta dela. E, claro, édeslumbrantemente bela.

– É verdade – admiti, sentindo-medemasiado alta, feia e capaz, tudocaracterísticas pouco atraentes. – Elatem assim qualquer coisa de meninaperdida, não é? Mas suponho que seriacomo viver com uma criança petulantepara sempre.

Esperei que o meu comentário nãosoasse demasiado ressabiado.

Continuámos a avançar na direção decasa e então ele perguntou sem mais nemmenos:

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– A avó que a criou... é a mesma cujosdiários anda a ler?

– Sim – admiti com relutância –,embora não seja bem um diário, masmais uns apontamentos pessoais acercada carreira dela enquanto enfermeiradurante a guerra. A minha mãe morreuao dar-me à luz, o que parece assim umpouco dickensiano, mas ela sofria deuma insuficiência hepática grave. E omeu avô era muito mais velho que aminha avó, por isso, pouco me recordodele.

– A sua vida parece ter sido umasucessão de tragédias!

– Não muito mais que a vida damaioria das pessoas. A sua também não

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parece muito melhor, se pensarmos bem,pois primeiro perdeu a sua mulher edepois a sua mãe e pai.

– Bom, não vale a pena chorar sobre oleite derramado – disse ele num tommais energético. – Pelo menos, graçasao Noël, o Natal em Old Place semprefoi um ponto alto no ano, aconteça o queacontecer. Ele adora esta quadra. E eutambém, na verdade. Decidir manter-meafastado este ano foi uma ideia estúpida.Sinto-me culpado por ter esquecido queos pais da Jess não iriam estar cá paraas festas.

– Parece ser de facto o tio preferidodela.

– Ela também se afeiçoou bastante a si

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– referiu ele e depois acrescentou: –Assim como aqui o Merlin. Tem andadoa pôr alguma coisa na comida deles?

– Apenas coisas boas – respondi. – ONoël parece ter também um entusiasmoilimitado pelos Revels, não é?

– Os locais parecem ter partilhadoconsigo muitos pormenores acerca dacelebração, coisa que não costumamosfazer – fez ele notar com um arpensativo. – Devem esquecer-se de quenão é de cá, provavelmente porque,como o Noël disse, a Holly é alta emorena como os Martland.

Parecia haver um ligeiro tom dedúvida na voz dele, por isso achei que omelhor seria esclarecer tudo de uma vez

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por todas – pelo menos, o melhor queconseguia, tendo em conta as certezasque não tinha.

– Até há umas semanas, nunca tinhaouvido falar de si – expliquei, o que eraverdade. – Saio à família da minha avó,oriunda de Liverpool. A minha avósempre acreditou que havia na árvoregenealógica um antepassado que fora ummarinheiro estrangeiro.

– Ai sim? O tom de pele dos Martlandremonta a uma antiga noiva espanhola eesses genes parecem ser ospredominantes, apesar de séculos demulheres louras que a família foiacumulando. O cabelo da Becca tambémera escuro antes de ter ficado grisalho,

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muito embora a pele dela tenha sidosempre clara, não assim meiodescorada, como a minha e a do Guy. ABecca era uma beldade nos seus tempos.

– Uma vez que, primeiro o primo doAlan e agora o Guy, me acharamparecida com Nefertiti, talvez tenhasangue egípcio e devesse fazer umaregressão para descobrir – mencionei.

– Eu não levaria nada do que o meuirmão diz demasiado a sério.

– Acho que sou esperta o suficientepara chegar a essa conclusão por mimmesma, obrigada, e, seja como for, elenão faz o meu género.

– E qual é o seu género? – inquiriu elecom curiosidade. – Como era o seu

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marido?– Da mesma altura que eu, mas magro,

louro, olhos azuis...– Parecido com o Michael.– Realmente, tem razão. Ele é também

um homem muito amável, como o Alan,simpático e atencioso – disse num tomafável e depois disso permanecemos emsilêncio até chegarmos a casa.

Entrámos pelo pátio para Jude ir verde Lady e eu secar Merlin com a toalhadele antes de o deixar entrar em casa.Tinha o pelo cheio de gotículas geladas,como se estivesse coberto de cristaisSwarovski, mas para mim ele era já umobjeto precioso.

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Por insistência de Coco, Noël foradesencantar os excertos impressos deNoite de Reis, para que ela pudesseensaiar as suas cenas com Michael. Talpareceu-me um pretexto da parte delapara o atrair para um canto, embora eletenha firmemente declinado ir para umadivisão mais calma onde pudessem estarsozinhos.

Noël disse que os restantes de nóspodíamos ler os nossos papéis no diaseguinte, o que seria mais do quesuficiente, uma vez que não iríamosrepresentá-los.

– Embora até pudessem todosrepresentar as vossas personagens,ainda que não memorizem as palavras e

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tenham de ler os vossos discursos – fezele notar. – Seria engraçado, para variar.

A mim, aquilo parecia-me tudo, comoo Bardo diria, muito barulho por nada,mas se isso mantinha Cocorelativamente calada e ocupada, estavapreparada para aguentar quase tudo!

– Já gostas do tio Jude? – perguntouJess quando, depois de ela ter insistido,subi para lhe dar um beijinho de boanoite.

– Bom...– É que ele não para de olhar para ti,

por isso acho que ele gosta de ti.– Eu acho que isso é apenas para

formar uma opinião sobre mim.

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– Ele é muito mais novo e rico que oGeorge.

– Isso é bem verdade, mas eu nãoestou à procura de marido, seja ele ricoou novo, Jess, portanto...

– Acho que ele gosta mesmo de ti –insistiu ela.

– Estás enganada, Jess. Não faço ogénero dele, nem ele o meu – asseverei-lhe, embora simpatizasse um pouco maiscom ele desde a nossa conversa. –Curiosamente, ele hoje perguntou-mecomo era o meu marido e eu disse-lheque era louro de olhos azuis.

– A mulher do tio Jude também eraloura. Já vi a fotografia dela.

– Sim, como a Coco. Os opostos

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muitas vezes atraem-se.– Mas nem sempre?– Não, nem sempre. – Olhei para ela,

aninhada na pequena cama com o seuurso de pelúcia, o lobo e o ursoBeefeater e disse: – Mas, no caso do teutio Jude e eu, tira o cavalinho da chuva,miúda!

Ela fez um ar descrente, mas deixou oassunto por ali... por agora, muitoembora parecesse muito interessada naideia.

– Vou dizer-te um segredo – anunciouela –, a Banana ressona!

De volta ao meu quarto, peguei nodiário da avó, algo por que ansiara todo

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o dia, só que agora as palavras pareciamdançar nas páginas, por isso nãoconsegui avançar muito.

Porém, tinha o coração apertadinhopela minha avó e já odiava NedMartland!

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Capítulo 30

Um Pequeno Enigma

Quando deixei a casa dos meuspais, levava os olhos cegos delágrimas, de modo que malconseguia ver por onde ia.Encaminhei-me para umapequena represa, no meio deuma escura mata, e admito queme passou pela cabeça acabarali com tudo. Porém, de repente,um único raio de luz do Sol

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penetrou pelas árvores epareceu-me ouvir uma vozamável dizer-me que deviacontinuar. Transgredira, éverdade, mas parecia que Deusainda tinha uma missão paramim.

Maio de 1945

Acordei cedo, como de costume, noferiado de Boxing Day, reli a entrada nodiário da avó e chorei, embora soubesseque na verdade ela não se afogara comoa heroína de um melodrama vitoriano,mas que acabara por casar e ficar com acriança – a minha mãe.

Pobre avó, parecia tão torturada pela

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culpa e pelo desespero!Por mais que goste de Noël, Tilda e

Becca, a indiferente descrição da minhaavó como uma «operária de fiação emapuros» por parte de Noël não os deixanada bem vistos. Evidentemente, nenhumdeles alguma vez se interrogou sobre oque acontecera com ela depois de Ned ater abandonado!

Porém, terei de aceitar que faço partedesta família, quer queira quer não,embora agora pelo menos haja umaexplicação racional para a atração quetenho sentido tanto pelas pessoas – oupor algumas delas – como por Old Placedesde que aqui cheguei.

A casa continuava mergulhada no

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silêncio quando me levantei e deixeiMerlin sair para a escuridão do pátio.Varri então a lareira e espalhei as cinzasnas traseiras da casa, como de costume.Por esta altura, tinha já ensaibrado umbom trilho quase até aos estábulos!

Merlin voltou para dentro comigo,sacudindo a neve do pelo cinza-escuro,e comeu o seu pequeno-almoço,temperado com o medicamento para aartrite, com apetite enquanto eu meesgueirava até à cocheira de Lady comuma oferenda matutina de cenouras dasafra de Henry para ela, Nutkin e Billy.

Abri a parte de cima da porta doestábulo e estava na cocheira com umbraço por cima do dorso quente de Lady

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enquanto ela comia pedaços de cenourada minha mão quando Jude espreitou lápara dentro. Percebi quem era porque oenorme corpo dele eclipsou toda a luzque entrava do pátio até se deslocar umpouco para o lado.

– Bom dia... Esqueceu-se que ficaracombinado vir eu tratar dos cavalos estamanhã?

– Não, vim apenas dar um pouco decenoura à Lady. Não tenho tempo paratratar dela e fazer tudo o resto! –respondi mal-humorada. Podia sercompletamente irracional, mas estavazangada com ele porque fora o tio delequem colocara a minha avó naquelaterrível situação!

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– Deixe estar, eu faço – disse ele,soando um pouco surpreendido, mas,tendo em conta que parecíamos terchegado a um melhor entendimento nodia anterior, suponho que não estaria àespera que eu lhe falasse naquele tom.

– E ia também limpar a lareira. Deixeessas coisas para mim, agora que estoude volta.

– Gosto de fazer algumas coisas logocedo, mas alguém devia aspirar a salade estar mais tarde, se quer mesmo serprestável – fiz notar e ele lançou-me umolhar espantado.

Lady, tendo comido a cenoura, girou acabeça e roçou vigorosamente o narizpelo meu braço acima e abaixo, e Jude,

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de repente, exclamou com urgência:– Fique assim, não se mexa!Não tive tempo de me questionar se a

ordem era para mim ou para Lady, pois,em segundos, ele tirara uma pequenamáquina fotográfica do bolso edisparara-a com flache mesmo nos meusolhos.

– Mas que raio...? – comecei areclamar, mas ele ignorou-me econtinuou a disparar. Lady parecia assazblasé em relação àquilo: em abono daverdade, manteve a pose bem melhorque eu.

Nutkin, que fechara os olhos eadormecera depois de engolir a suacenoura, abriu-os e contemplou-nos

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espantado por entre a divisão combarras que separava as cocheiras.

– Agora fique assim enquanto eu voubuscar um bloco de esquiços – pediuJude, enfiando a máquina no bolso.

– Não posso, tenho coisas para fazerna cozinha. E porque precisa de mim?Pensei que só se interessava porcavalos.

– São o meu tema principal, masesculpo todo o tipo de coisas e muitasvezes incluo uma forma humana nasminhas esculturas de animais. A formacomo estava com um braço por cima dodorso da Lady enquanto ela virava acabeça para si era magnífica, cheia delinhas subtis e fluidas – explicou ele

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num tom lamentoso ao mesmo tempo queeu fazia uma última festa a Lady epassava por ele. – Não importa... tenhoas imagens na máquina e na cabeça –disse ele, embora parecesse ainda umpouco relutante em sair-me da frente atéao último momento, olhando-me comaqueles olhos cavados e escuros, quaispequenos e perigosos charcos...

Tudo isso só me fez lembrar de novo aminha avó.

De volta ao conforto da cozinha, dissepara Merlin: «O teu dono é um enorme,carrancudo e autocrático urso!» Se bemque, na verdade, desta vez a carrancudafora eu: ele fora apenas mandão. Merlin

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abanou a cauda diplomaticamente.Preparei tudo para o almoço, que na

verdade iria ser outro almoço tardio,mas facílimo: o salmão inteiro que tirarada arca na manhã anterior, batataDuchesse, ervilhas e um molhoapimentado.

Jude ficou lá fora tanto tempo que jáme esquecera dele. Quando regressou,Michael tinha também descido eestávamos os dois a rir por causa dequalquer coisa disparatada enquanto eupreparava bacon para o pequeno-almoço e ele punha a mesa.

Jude – agora que o via melhor sob aluz da cozinha, exibia uma barba porfazer tão negra no impressionante

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maxilar que mais parecia um bandidomexicano – dardejou-nos sombriamentecom o olhar e atravessou a cozinha semuma palavra. Talvez seja uma daquelaspessoas cujo humor de manhã não orecomenda? De manhã e em qualqueraltura do dia!

Reapareceu mais tarde, lavado,barbeado e cheirando tenuemente àquelecativante aftershave e devorou umpequeno-almoço gigantesco. Porém, nãose juntou à conversa com os restantes,embora provavelmente também nãotivesse arrancado grande coisa a Coco.Entrou na cozinha silenciosamente,vestindo o seu diáfano négligé rosa,qual espécie de acalefa emaciada, e

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sentou-se com uma caneca de café até euter cortado a gema a um ovo estrelado ecolocado o que sobrava num prato àfrente dela. Ela estrebuchou.

– Coma! – ordenei e ela olhou-me umpouco alarmada e pegou na faca e nogarfo.

Jude foi ficando cada vez maisabsorto e não tardou a bater em retiradapara o seu estúdio-gabinete ao lado dabiblioteca. Talvez grande parte dataciturnidade dele seja na verdadetemperamento artístico e ele apenasmergulhe numa ideia a ponto de ficartotalmente absorto. Eu própria tambémfico um pouco assim quando estou aelaborar uma receita nova, só que sem a

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irritabilidade, é claro... ouhabitualmente sem a irritabilidade. Éum facto que achava que fora mazinhacom ele de manhã cedo, culpando-o poralgo que não era responsabilidade dele.

Todos os restantes – exceto Coco –haviam conversado animadamenteenquanto comiam, sem lhe prestaratenção, como se ele fosse o fantasma –ou Yeti – que todos viam mas ninguémmencionava, portanto, presumo queestejam bastante habituados aos humoresdele.

Jess obrigou-me a prometer que assimque terminasse de arrumar a cozinha iriapara o cercado andar de trenó com ela,Guy e Michael. E por fim até Coco se

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aventurou a sair, de botas de borrachaemprestadas e com o seu casaco depenas outrora branco.

Não era a primeira vez que andava detrenó, é claro, embora sempre o tivessefeito com um pedaço de cartão, masnunca fizera anjos na neve até Jess eGuy me ensinarem: tombando de costaspara o chão e abanando os braços paracima e para baixo para fazer as asas. Oscavalos e Billy estavam estupefactos.

Foi muito divertido, bem como abatalha de bolas de neve... até me terentrado uma pela nuca abaixo.

Estávamos todos gelados eencharcados quando voltámos para casapara nos secarmos e mudarmos de

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roupa, mas também com boas cores. Etoda a gente ficou ainda com melhorescores quando Guy confecionou um vinhoquente no pequeno forno elétrico,exigindo paus de canela e outrosingredientes enquanto eu me afadigava acolocar o salmão no Aga, envolto numenorme papelote de folha de alumíniocom manteiga e folhas de louro.

Guy deixou a panela e toda a confusãopara eu limpar e arrumar, é claro, mas,pensando bem, é típico da maioria doshomens quando cozinha alguma coisa,não é?

Não bebi o pequeno copo de vinhoque ele me estendeu. Apenas dei umgolinho para provar – não estava nada

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mau.Michael entrou em casa bem depois

de toda a gente, pois subira ao montepelo meio da neve para telefonar à filha,porém, desta feita a ex-mulher não odeixara falar com ela.

– Disse que só serviria para a deixarperturbada, porque desde o meu últimotelefonema ela não tem parado deperguntar pelo papa e tem andadoirrequieta.

Michael estava tão aborrecido que lhedei um abraço para o animar e, nessepreciso momento, Jude entrou, lançou-nos um olhar difícil de interpretar,serviu-se de uma caneca de caféacabado de fazer e voltou a sair.

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Tem um excelente sentido deoportunidade! E presumo que tenhatirado todas as conclusões erradas – se éque sequer reparou, pois pareceu-me tãoimerso noutro planeta quanto aopequeno-almoço.

Estendi a Michael o meu vinho quentee com isso ele pareceu animar umpouco.

Comemos uma entrada de pequenasquiches de tomate e queijo que eu fizerae congelara há uns dias. Becca levou umprato de quiches a Jude, ao escritóriodele, e disse que ele estava a trabalhar,mas ainda não descera quando passámosà sala de jantar para degustarmos o

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belíssimo salmão – adornado com oúltimo pedaço de pepino, cortado emfatias quase transparentes –, por isso fuichamá-lo.

Estava recostado na sua cadeira, ascompridas pernas esticadas para a frentee o prato – onde apenas restavammigalhas – junto ao cotovelo. Asecretária e o quadro de cortiça atrásdele estavam cobertos de esboços efotografias de mim e de Lady, por issoele devia ter imprimido logo as fotos.

– O jantar está na mesa – anunciei emvoz alta, mas, quando ele por fim olhoupara mim, os olhos dele demoraram unsminutos a focar-me. Depois sorriu,aparentemente de forma involuntária, e

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com um encanto e doçura tãoinesperados que dei por mim a reagir namesma moeda. Então, o sorrisodesvaneceu-se tão subitamente como senunca tivesse existido, deixando apenasa sua memória pendendo no ar como osorriso do Gato de Cheshire.

– Jantar – repeti e por fim elelevantou-se e seguiu-me obedientementeaté à sala de jantar, embora parecessenão estar a reparar no que estava acomer, mesmo quando Tilda fez notarque as alcaparras no molho haviam sidoideia dela. Foi uma sorte que ele não setenha engasgado com alguma espinha dosalmão. Mas eu sei executar a manobrade Heimlich, por isso tê-lo-ia salvo.

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Antes da sobremesa – os restos dotrifle e do bolo de Natal –, ele levantou-se abruptamente, declarando que ia parao estúdio na velha nora trabalhar porumas horas.

– Posso ir contigo outra vez, tio Jude?– perguntou Jess ansiosamente. –Prometeste que me ensinavas a soldar.

– Hoje não, noutra altura – respondeuele e Jess fez um ar desiludido. – Holly,vá ter ao estúdio daqui a uma meia hora,quero que pose para mim.

– Eu? Nua não! – disse, horrorizada,depois senti-me corar ao ver toda agente a olhar para mim.

– Se não quiser, não é preciso, emborapor essa altura os caloríferos já tenham

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aquecido um pouco o estúdio –respondeu ele, um dos cantos da bocaarqueando ligeiramente. Achei que eleestava a brincar, mas certeza não tinha.

– Nem pensar – afirmei com firmeza.– Tenho umas leggings de veludo pretoe uma camisola justa tipo túnica, masisso é o mais coleante que aceito.

– Eu contento-me com isso – disse elenum tom solene.

– Eu estou a gostar muito disso! Possoassistir? – inquiriu Guy comdescaramento.

– Ou talvez eu devesse ir como pau decabeleira? – sugeriu Michael, piscando-me o olho.

Jude lançou um olhar carrancudo a

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ambos, o seu súbito acometimento debom humor desaparecendo.

– Desnecessário! – ripostou ele eabandonou a sala. Uns minutos depoisouvimos a porta da frente bater comestrondo.

– Aquele rapaz passa a maior partedos dias no estúdio quando está em casa– referiu Noël. – Trabalha muito.

– A Edwina costuma levar-lhe café esanduíches para o almoço – revelouTilda. – Tem um carinho enorme por elee tenho a certeza que o Jude morreria àfome se ela não olhasse por ele, poisaquele rapaz, quando está a trabalhar,até se esquece das horas.

– Faz esculturas muito boas, em

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especial as dos cavalos – comentouBecca. – De perto, parecem metalretorcido, depois afastamo-nos... e láestão eles! Parece que vai figurar numadelas, Holly.

– Não percebo porque a quer elecomo modelo quando me podia ter tido amim – fez notar Coco com tendência aficar ainda mais amuada que Jess.

– Oh, mas qualquer pessoa te pode ter– argumentou Guy ambiguamente,embora por sorte Coco pareça não terentendido o duplo significado.

– É porque ficarias bidimensional,Banana – explicou Jess.

– Essa foi muito boa, Jess – disseTilda imparcialmente –, ainda que um

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pouco descortês.– Foi só porque esta manhã me viu

com a Lady e gostou da forma como euestava com o braço por cima dela –esclareci. – Presumo que, se tivessesido a Becca que ele vira, seria elaquem iria posar.

– Oh, não me parece! – contradisseBecca, com uma das suas gargalhadasgraves. – O rosto que afundou milembarcações.

– Ele pareceu-me mais interessado emlinhas do que em feições.

– Nesse caso, eu tenho certamentemuitas mais do que a Holly.

– Eu continuo a achar que ele é mau –queixou-se Jess. – Prometeu que me

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ensinava a soldar e também há montesde pasta de modelar no estúdio. Estouaborrecida.

– Não percebo como podes estar coma carrada de presentes que recebesteontem, minha menina – observou Tilda.– Vai brincar com aquela coisa do ui-uique os teus pobres e desaguisados paiste compraram.

– É Wii, avó! – corrigiu Jess.– Espero que não fiquem no estúdio

durante muito tempo, pois pensei quepodíamos todos ler as nossas partes dapeça esta tarde – sugeriu Coco, o queera otimista no que a mim e ao Judedizia respeito pelo menos, uma vez quetínhamos já ambos outras coisas com

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que nos ocuparmos.– Quando voltar, terei coisas para

fazer na cozinha. Talvez tenha de ficarpara depois do jantar – aleguei e elavoltou a amuar.

– Não sei se o papel de Viola não serámais adequado para mim, com Michaelcomo Orsino, agora que tiveoportunidade de o ler – referiu ela. –Talvez tenhamos de mexer no elenco.

– É mesmo? Pensei que Olivia era agrande protagonista romântica? – referi.

– Viola parece ter as melhores deixase tenho de fazer de conta que meapaixono por ela a maior parte dascenas!

– A sério? – interroguei, surpreendida.

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Tinha mesmo de arranjar tempo para leras cenas!

– É uma comédia de erros, com doisromances entrelaçados – explicouMichael. – Mas eu vejo-me mais comoum Sebastian do que um Orsino, e jáconheço o meu papel.

– Nesse caso, suponho que o melhor émesmo eu ficar com o papel de Olivia –cedeu ela com relutância.

– Nós podíamos praticar as nossascenas sozinhos algures, Michael, se osoutros estão ocupados?

Coco lançou-lhe um sorrisopromissoramente íntimo e uma fugazexpressão de pavor atravessou-lhe orosto. Então, com enorme aprumo

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instilado pelo instinto deautopreservação, Michael lançou-lhe umbelo engodo:

– Noël, não tinha dito que havia trajosde fantasia algures no sótão que nóspodíamos usar caso quiséssemos mesmoencarnar os nossos papéis?

– Oh... guarda-roupa! – exclamouCoco, mordendo avidamente o isco.

– Eu sei onde estão, na arca! – referiuJess, animando-se de imediato também.– Eu posso mostrar-vos!

– Talvez seja melhor eu ir com vocês– argumentou Noël um pouco ansioso. –Não é a arca grande que está à frente,essa tem os trajos dos Revels, emboraas cabeças e as espadas estejam no

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celeiro do pub. Não, é o baú grande queestá mais atrás.

Para ser franca, teria preferido irexplorar o baú dos trajos com eles doque ir enfrentar a neve para ir posarpara Mister Mandão Martland, mas tinhaa sensação de que, se não aparecesse lá,ele viria cá acima e levava-me à força:bem capaz disso seria ele.

– Acho que devíamos todos trajar-nospara os nossos papéis – opinou Jess. –Não te preocupes, Holly, eu encontroqualquer coisa bonita para a tua grandecena de amor com o tio Jude.

– Que grande cena de amor?– Ainda não leu a peça? – perguntou

Coco.

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– Sim, na escola, mas já me esquecidos pormenores; foi há muito tempo. Eainda nem sequer tive tempo de ler ascenas impressas que o Nöel nos deu.Mas eu achava que o romance principalera entre Sebastian e Olivia?

– Há uma espécie de emaranhadoamoroso duplo – explicou Noël. – Asraízes da peça encontram-se naspantomimas, com muito travestismo epersonagens que não são quem parecemser... Um pouco como os Revels!

Tenho mesmo de tentar dar uma vistade olhos pelas páginas que Nöeldistribuiu e descobrir ao certo aquilo emque me fui meter!

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Capítulo 31

Ouro dos Tolos

Senti-me guiada por esta voz avisitar o pai do meu namoradode infância, o pastor batistaestranho da capela emOrmskirk. Andava a evitar Mr.Bowman desde a minha«queda», algo que o deverá terao mesmo tempo confundido emagoado.

Maio de 1945

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Vesti as minhas leggings de veludopreto e a camisola-túnica verde, trajoque habitualmente apenas visto quandoestou sozinha em casa, uma vez que ébastante coleante, em especial notraseiro e na zona dos melões.

Quando bati à porta do estúdio, nãoobtive resposta, mas entrei à mesma:estava demasiado frio para ficar aliespecada como uma indesejada cantoradas janeiras.

Jude mal levantou os olhos do queestava a fazer, que era carregar barrasde metal e arame de um grande balde deplástico, e grunhiu para mim, porém,como não falo «porquês», deixei as

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botas à entrada e deambulei por ali demeias até ele acabar com a sua imitaçãode O Triunfo dos Porcos.

O edifício tivera outrora dois pisos,embora agora o superior tivesse sidoretirado e claraboias instaladas notelhado para se conseguir um espaçomaior e melhor iluminado. As paredesestavam pintadas de um branco cremosoe cheirava a uma estranha, mas nãodesagradável, mistura de aquecedor agás, serapilheira húmida e metal quente.O aftershave de Jude talvez fosse umaessência daquilo.

Havia um par de enormes portas numadas paredes, presumivelmente parapermitir a retirada das esculturas

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terminadas... e, pensando bem, devia serpor isso que o trilho que conduzia até alidesde o caminho era largo e sulcado,porque, provavelmente, havia carrinhasque tinham de vir de marcha atrás até aoestúdio.

Estava mobilado com um grande eelevado estrado de madeira, semelhantea um pequeno palco, uma porta maispequena que talvez desse para uma áreade armazenamento de materiais, umaespécie de pequena fornalha, cavaletes,mesas, um estirador e mesas de trabalhocheias de uma confusão de esboços,suportes para pincéis, ferramentas demodelar e lápis, pedaços de barro,pequenos modelos de esculturas e

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fragmentos de metal torcido. Pareciaestar tudo a precisar de uma boaarrumação e limpeza, na minha opinião,mas julgo que ele prefira assim.

Espalhadas pelo chão havia esculturasterminadas em vários materiais, amaioria montada em bases, plintos ousuportes de vários tipos. A maior – emtamanho real, na verdade – erainegavelmente de Lady, ainda que fossecomposta por triângulos de metal, masBecca tinha razão e de pertoassemelhava-se a um monte de sucata.Outra era apenas uma série de linhafluidas em metal tubular dobrado, querepresentava também de forma inegávelo cavalo celta encarnado da encosta do

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monte.Ele não mentira quando dissera que o

estúdio ficaria razoavelmente quentedepois que acendesse os irradiadores,mas nada me teria induzido a ficar empelo, muito embora tenha por fimdespido o anoraque e pendurado numcabide. Era o mais longe que estavapreparada para ir.

Quando me virei, reparei que Jude meolhava como se estivesse a avaliar-me,um canto da boca de novo ligeiramentearqueado, como se estivesse divertido.

– Muito dríade.Sou um pouco grande e larga de mais

para danças disparatadas pelos bosques,por isso encarei o comentário como

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sarcástico e perguntei:– Queria-me para quê?– Para tentar captar a forma como

estava esta manhã, com o braço porcima da Lady e a cabeça dela virada nasua direção. Parecia que estavamfundidas uma na outra... embora fossemelhor se ela não tivesse o coberjão.Ainda assim, tenho montes defotografias, esboços e modelos delacomo este. – Apontou para a esculturaem tamanho natural. – Se se colocar aolado dela, na mesma pose, eu podia tirarumas ideias da escala e de como devoprosseguir, ainda que o cavalo nãoesteja na posição certa.

Ele parecia falar a sério, por isso

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trepei para o bloco retangular onde aescultura estava assente e coloquei umbraço por cima dela como ele meinstruiu, ao mesmo tempo que eleprendia um bloco de esboços numcavalete.

– Esta já está vendida para algures? –perguntei. – Não trabalha sempre porencomenda?

– Só às vezes. De uma forma geral,faço o que me apetece e depois vendo-o... ou não, se preferir ficar com a peça.Decidi ficar com essa. Vire-seligeiramente para a cabeça dela... Não,apenas a sua cabeça, não o corpo todo!– exclamou ele e a seguir, com duaspassadas impacientes, agarrou-me e

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manipulou-me para me colocar naposição que ele queria, o que foi muitoestranho.

Depois, regressou ao cavalete eexaminou-me minuciosamente, como seeu fosse um carro meio duvidoso queconsiderava comprar, por falta de algomelhor, antes de rapidamente fazeresboço a seguir a esboço, que depoisdeixava cair no chão a seus pés, usandopedaços de carvão.

A princípio, senti-me desconcertadapela forma como ele mal tirava os olhosescuros e macambúzios de cima de mim,a testa franzida de tanta concentração,mas aos poucos fui relaxando ao mesmotempo que me fui dando conta de que era

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um escrutínio remoto e imparcial: nãoera eu enquanto pessoa que ele estava aver sequer!

De tempos a tempos, ele arrastava ocavalete para uma posição diferente,para poder desenhar-me de todos osângulos. Pareceu demorar umaeternidade, mas também eu não soubidimensional.

– Quem me dera ter a Lady aqui –queixou-se ele a determinada altura edepois murmurou como que para elemesmo: – E quem me dera que tirasse aroupa!

– Pois aposto que sim, mas não vaiacontecer! Olhe, tenho um dos ladosdormentes. Já me posso mexer? Já devo

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estar aqui de pé há horas.– Oh... Sim, suponho que sim – disse

ele, pestanejando para mim como se setivesse esquecido de que eu era umobjeto animado, com voz e muitasopiniões. – Acho que já tenho osuficiente para começar.

– Uma escultura? – Desci do pedestal,ligeiramente hirta, e fui buscar a garrafatérmica de café que tivera a previsão detrazer comigo.

– Sim, mas primeiro farei umamaqueta ou duas.

– Maqueta?– Um pequeno estudo tridimensional

para explorar ideias.– Okay.

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– Veremos se a Lady se presta àmesma pose sem o coberjão quando atrouxer para dentro mais tarde e depoispoderei tirar mais algumas fotografias. Evou precisar que venha de novo até aquiamanhã.

Jude veio sentar-se a meu lado noestrado de madeira e eu estendi-lhe umacaneca de plástico de café e uma mincepie de uma caixa de plástico.

– Mal posso esperar – disseeducadamente.

– Não foi assim tão mau, pois não? –perguntou ele, soando surpreendido.Estava tão perto de mim que conseguiaver todas as fascinantes partículas deouro, provavelmente ouro dos tolos, que

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flutuavam nos olhos castanho-escurosdele.

– Bom, não... – admiti –, emborapensasse que ia apenas fazer um ou doisesboços rápidos, não dúzias.

– Irá ser imortalizada em aço soldadopara a posteridade – prometeu ele, o quedeve ser a melhor oferta de qualquerespécie que tenho em muito tempo, eestá seguramente acima das pipocas eCoca-Cola que o Sam me comprouquando fomos ao cinema.

– Onde está o Merlin? – perguntouele.

– Deixei-o em casa. Não sabia se elepodia entrar aqui no estúdio.

– Pode. Ele vem sempre comigo, a

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não ser que seja atraído por dríadesdesconhecidas – disse ele, e depoisficámos ali sentados em silêncio, massociavelmente, bebendo o nosso café ecomendo mince pies.

– Desculpe ter-lhe falado torto hoje demanhã. Estava aborrecida com umacoisa – disse eu às tantas.

– Não tem importância... Algumacoisa que queira partilhar?

Desviei a cara do olhar inquiridordele e abanei a cabeça firmemente.

– Os outros foram para o sótãoprocurar o guarda-roupa para a peça –informei-o, mudando de assunto. – Daforma como a Coco anda entusiasmada,vamos acabar a ter de representar os

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nossos papéis também, embora, no meucaso, eu tenha de ler as minhas falas,pois não vou ter tempo de as aprenderde cor.

– Também não as sei de cor: a Becca,a Tilda e o Noël é que costumavam ler.Pelo menos, não é coisa que demoremuito, porque não só a peça é bastantepequena como o Noël retirou toda acomédia grosseira e a parte deMalvolio, preenchendo-a com um breveresumo de ligação – disse ele e depoisolhou para mim de relance por baixo dassuas espessas sobrancelhas escuras eacrescentou, a voz grave e ribombantetornando-se ainda mais grave: – Mas, serepresentarmos as nossas partes,

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suponho que conseguirei algumas açõesapropriadas.

O canto da boca voltou a erguer-se,mas não percebi bem o que ele queriadizer com aquilo, uma vez que a maiorparte das ações dele para comigo atéagora tem sido altamente inapropriada,como arrastar-me para dentro do quartodele na véspera de Natal!

Jude regressou a casa na minhacompanhia. Entrámos pelas traseiras enos estábulos encontrámos Becca, queacabara de trazer os cavalos para dentroe começara a tratar de Nutkin.

– Estava a jogar às escondidas com osoutros, mas eu e a Tilda fomos as

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primeiras a ser descobertas, por trás dascortinas da sala de estar – contou ela. –Tinha um dos pés de fora. Toda a gentejá fora descoberta, à exceção da Coco,quando decidi que era melhor vir tratardos cavalos, por isso deixei-os lá aterminar o jogo. A Coco é tãoescanzeladinha que provavelmentedeslizou por alguma racha nas tábuas dosoalho.

– Isso é um pouco exagerado, mas elaestá de facto preocupantemente magra –referiu Jude.

– Estou a pensar confiscar-lhe oslaxantes – confessei. – Não quero queela vá definhando enquanto eu estou àfrente da cozinha e ficar com isso a

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pesar-me na consciência.– Ainda que o faça, o mais provável é

que ela volte a tomá-los quando se forembora – fez ele notar.

– Talvez, mas pelo menos tereitentado.

Jude tirou o coberjão a Lady e tiroumais fotografias de mim ao lado dela,embora tenha recusado descalçar asbotas desta vez. Relutantemente, despi oanoraque. Ainda desenhou um par deesboços rápidos, embora a luz noestábulo não fosse grande coisa e Ladynão parasse de tentar mordiscar aspontas do papel.

– Agora é uma musa – disse Becca,detendo-se enquanto escovava Nutkin. –

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Já li umas coisas acerca de artistas esuas musas... Tenha cuidado, Holly! – Eriu com gosto.

Por sorte, acho que Jude nem se deuconta do que a tia disse, pois já seretirara mentalmente para o seu mundo,fechando o bloco de esboços edirigindo-se a casa sem qualquerpalavra a mim ou a Becca.

Trocámos um olhar e depois eu vesti oanoraque e comecei a escovar Lady, quedeve ser um dos melhores exercícios detonificação dos braços do mundo.

Quando entrei em casa pouco tempodepois, Coco continuava desaparecida etoda a gente começava a ficar ansiosa.

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– Não faço ideia de onde ela se enfiou– disse Guy. – Até já procurámos nosótão, que era suposto não fazer partedos esconderijos, mas não há sinal delaem parte nenhuma.

– Viram se o casaco e o chapéu delaestavam no bengaleiro? Talvez ela tenhasaído – sugeri.

– Sim, eu pensei nisso – disseMichael –, estão lá. Seja como for, achoque ela não teria ficado muito tempo láfora, está demasiado frio. E ela não épropriamente o tipo de pessoa que gostede caminhadas, portanto, não estaráperdida lá forma.

– Não, apenas me ocorreu que elativesse sentido um súbito impulso de ir

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até à aldeia, mas é óbvio que não.– Viram em todas as arcas e baús? –

inquiriu Tilda do sofá, onde estavaconfortavelmente reclinada enquantoobservava as buscas. – Recordei-me derepente daquela história acerca da noivaque se pôs a brincar às escondidas noseu dia de casamento e desapareceu e oesqueleto dela só foi encontrado muitosanos depois numa arca.

Noël fez um ar de quem recebera umaepifania.

– É claro! É mesmo o tipo dedisparate que ela faria, e há duas ou trêsno sótão, bem como a arca de sândalono patamar.

Guy, Jude e Michael correram escadas

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acima, mas eu não estava nada a verCoco enfiar-se numa arca às escuras.

– Viram na cave e na adega? –perguntei a Jess.

– Sim, e na despensa e em todo o ladoque me ocorreu. Anda, vamos pelasescadas das traseiras ver se eles já aencontraram.

Segui-a escada acima, detendo-mepara procurar no roupeiro do meu quartoe no de Michael e no armário da roupabranca entre os dois quartos. Então,recordei-me de repente de Noël me terdito que havia outra porta no cimo daescadaria, que conduzia a um lanço deescadas de acesso aos quartos dosempregados – agora fechados – num

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sótão mais pequeno por cima desta ala.Ficava num canto escuro, fácil deignorar, mas de detrás dela vinha umténue esgaravatar e trémulo grito de«Socorro! Socoooorro!»

– Coco? Está tudo bem, tiramo-la daínum instante – gritei, puxando pelamaçaneta, que se recusava a ceder. –Depressa, Jess, vai chamar o teu tio e osoutros. Não consigo abrir a porta.

Jude conseguiu abri-la com um puxãoforte, revelando uma pálida figuralavada em lágrimas e caída num montãoaos pés da escada.

Ele pegou-lhe como se ela nãopesasse nada e ela agarrou-se a elechoramingando:

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– Achei que nunca mais meencontrariam e que morreria ali! E subias escadas para ver se havia outra saídae uma coisa grande e branca deu-me umapalmada!

Tremendo, afundou o rosto no ombrodele e Jude acariciou-lhe o cabelo edisse num tom amável:

– Está tudo bem, Coco, já passou.Naquele momento, senti uma pontada

de algo que temia poder ser ciúmes:nunca ninguém me segurara tãoternamente nos braços como se eu fossefrágil e leve como uma pena! O Alanteria caído, se tivesse tentado.

– É melhor pô-la na cama dela –sugeriu Guy. – Vá lá, Coco, agora estás

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em segurança e nós acabaríamos por teencontrar.

– Nem sequer tinha reparado quehavia ali uma porta – referiu Michael.

– O Noël uma vez falou-me dela e derepente lembrei-me. Mas o Guy temrazão e é melhor ela ir deitar-se umbocado. Um de vocês prepare-lhe umabebida quente e eu faço-lhe companhia.

– O Guy poderá fazer isso enquanto euprocuro a misteriosa e fantasmagóricacoisa branca – declarou Michael. – Seeu desaparecer, já sabem onde estou!

Segui Jude, que deitara Coco na camadela e estava a tentar arrancar os braçosdela do seu pescoço.

– Oh, já aí está – disse-me ele com

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algum alívio.– O Guy foi fazer-lhe uma bebida

quente e o Michael foi ver o que aassustou no sótão.

– Oh, era horrível, lançando-se paramim do meio da escuridão! – exclamouCoco estremecendo e esticando osbraços de novo para Jude, embora eleestivesse já fora do alcance dela.

Guy trouxe-lhe uma caneca de chá edisse:

– Já informei os outros de que aencontrámos e o Michael diz que haviaum pombo no sótão. Uma das janelasestá partida, por isso deve ter sido issoque voou na tua direção.

Coco sentou-se na cama e aceitou a

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caneca, satisfeita com toda a atençãoque estava a receber e começando aganhar cor.

– Isto tem açúcar? – perguntou eladepois de um pequeno gole.

– Adoçante – respondeu Guy, emboraeu tenha a certeza de que estava amentir. Trocou um olhar com Jude ebateram ambos em retirada enquanto euaproveitava o momento para fazer aCoco um bom discurso acerca dosperigos para a saúde dela de devorarlaxantes como se fosse M&M. Elareagiu como uma menina que ouvira umralhete e eu senti-me um século maisvelha e uma megera quando terminei.

Depois, tirei-lhe as embalagens que

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estavam escondidas na mesa decabeceira.

– Sei que tem mais na mala de mão,mas sugiro que os racione para umadose normal por dia até se esgotarem edepois que pare de os tomar de uma vezpor todas. Se comer refeições pequenase saudáveis, tudo correrá bem. Nãoprecisará deles.

– E não vai contar nada à minha mãe,pois não? – pediu ela, uma vez que euusara esse argumento como ameaça,embora sem qualquer intenção de alevar em frente. – É que ela manda-metrancar numa clínica de desintoxicação!

Concordei em não o fazer e depoispeguei no saque e fui enfiá-lo pela sanita

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mais próxima abaixo. Foi preciso puxaro autoclismo várias vezes para fazertodos os compridos desaparecer.

Coco desceu mais tarde num estado deespírito ligeiramente recatado e calado,mas rapidamente mostrou sinais derestabelecimento uma vez que toda agente, à sua maneira, estava a seramável com ela. Trouxera a mala demão e manteve-a sempre junto de si, porisso era óbvio que receava que eumudasse de ideias e lha esvaziassetambém!

Depois do jantar, Jess mostrou-me ocomprido vestido de cetim queescolhera para mim e que era não

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apenas de um tom salmão ligeiramentepálido como cerca de trinta centímetrosdemasiado curto, embora,aparentemente, eu fosse passar a maiorparte da peça disfarçada de homem.

Coco apropriara-se de um vestidobranco no qual se assemelhava a umanoiva emaciada. Jess usava uma coroade papel-mâché e joias de vidro.Também a usara durante o jantar.

– Gostei dela – explicou elasimplesmente. – Sei que não preciso deum trajo porque sou apenas a diretora doguarda-roupa e adereços, embora oMichael tenha dito que é uma das tarefasmais importantes no teatro. Tenho de meassegurar de que toda a gente está

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vestida para o seu papel na altura certa,com tudo o que precisa.

– Penso que seria melhor que usasseum sobretudo de homem até ao final dapeça, altura em que se descobre que éirmã de Sebastian... Há um nobengaleiro do vestíbulo. As suas mamassão demasiado grandes – disse-meCoco, fazendo-me de imediatoarrepender por ter sido tão simpáticacom ela anteriormente. Contudo,suponho que agora que estava a sentir-semelhor, estaria a vingar-se pelo que lhefizera aos laxantes.

– Não posso secundar essa opinião –afirmou Guy e eu lancei-lhe um olhargélido.

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– A Holly é perfeitamenteproporcionada – disse Jude. – Eu seiporque passei grande parte da tarde adesenhá-la.

Não sabia se havia de ficarembaraçada por ver a minha figura serdiscutida daquela forma ou encarar ocomentário dele como um elogio.

– Ainda assim, é demasiado alta, atépara modelo – objetou Coco.

Jude fez um ar ligeiramentesurpreendido.

– Achas? A mim parece-me ter aaltura certa.

– Eu sou perfeita, todos os grandesdesigners o dizem – fez notar Coco.

– Bom, vivemos num mundo estranho

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e há gostos para tudo! – exclamou Noëlalegremente. – E que escolhemos para oJude usar na peça?

– Apenas esta capa de veludo azul-escuro – disse Jess. – E uma espada eum bigode.

– Não me importo de usar a capa, masrecuso-me a colocar bigodes postiços –afirmou Jude num tom firme.

– Eu diria que, se quisesses, podiasdeixar crescer um até amanhã –argumentou Tilda do sofá frente àlareira. Penso que foi um comentário umbocadinho exagerado... talvez oconseguisse em dois dias.

Guy regressou ao quebra-cabeçasmeio terminado, embora, a julgar pela

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sua expressão, o irritasse que eu tivessecolocado mais algumas peças. Lançou-me um olhar de suspeição que me fezlembrar o irmão dele.

Colocámos cadeiras num semicírculojunto à árvore de Natal, preparados paralermos os nossos papéis pela primeiravez, mas primeiro Noël fez-nos umabreve sinopse do enredo e daspersonagens que iríamos representar.

– Orsino, duque de Iliria... tu, Jude...está apaixonado por Olivia,desempenhada pela Coco.

– «Se a música é o alimento do amor,deem-ma em abundância para que oapetite, farto, possa enfermar emorrer...» – declamou Tilda

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arrebatadoramente do sofá.– Nem mais, minha querida –

comentou Noël. – Ora bem, Sebastian ea sua irmã gémea Viola... a Holly e oMichael... são vítimas de um naufrágio.Viola acredita que o irmão está morto,por isso disfarça-se de homem, e entraao serviço de Orsino sob o nome deCesario.

– Todo este travestismo devia serainda mais estranho no tempo deShakespeare, em que o papel de Violateria sido desempenhado por um rapaz, afazer as vezes de mulher disfarçada dehomem – referiu Michael com umasorriso.

– Ainda bem que não tenho de fazer de

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conta que sou um homem... Nuncaconseguiria fazê-lo – disse Coco. –Olivia é uma condessadeslumbrantemente bela, mas o seucoração não bate por Orsino.

– Isso é uma interpretação –respondeu Jude. – Uma coisa é certa,muito esperta ela não é, pois quandoOrsino envia Viola-Cesario para acortejar, vestida de homem, elaapaixona-se por ela.

Eu estava já a ficar confundida e Cocofranziu a testa.

– Não aprecio muito essa parte,podemos mudá-la?

– Penso que devíamos deixá-la comoo Bardo a escreveu, minha querida –

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respondeu Noël –, é parte integrante doenredo. Portanto, basicamente –prosseguiu ele – Viola apaixona-se porOrsino, que acha que ela é um rapaz.Olivia apaixona-se por Viola, idem,Orsino acha que ele ama Olivia, eSebastian afinal não morreu, indo acaminho do ducado com o seu amigoAntonio.

«Depois tudo se complica com muitosmal-entendidos e identidades trocadas,até que por fim Sebastian casa comOlivia e Orsino decide que escolheráViola.

– Mas apenas se ela ficar bem devestido – comentou Jude com um olharde esguelha na minha direção, mas eu

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não mordi o isco.Lemos então os papéis em voz alta,

com um pouco de zombaria bem-humorada por parte de Becca e Tilda.Por sorte, eu não tinha demasiadaspieguices para dizer a ou sobre Jude-Orsino, uma vez que só mesmo no final éque ele fica a saber que Viola não é umrapaz. Foi um pouco embaraçoso quandoCoco teve de fazer de conta que estavaapaixonada por mim enquanto Cesário...

As cenas de Michael com Olivialocalizavam-se também mais para ofinal, quando todos os nós se desfazem,mas ainda assim ela pareciadeterminada a ficar sozinha com ele sobo pretexto de as ensaiarem, ardil a que

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ele estava claramente decidido a resistiraté à morte! Não percebi se Coco seapaixonara por Michael – o que não mesurpreenderia uma vez que ele é muitobem-parecido –, ou se o viasimplesmente como um trampolim parauma carreira de atriz; o certo é quedesistira de qualquer pretensão a Guy ese lançara de cabeça numa ofensiva decharme.

Entretanto, Guy persistia nos seusintentos de me cortejar e o facto de nãoestar a chegar a parte alguma pareciaestar a deixá-lo cada vez mais confuso.Mais tarde, seguiu-me até à cozinha,quando fui fazer cacau quente para quemqueria, que era apenas eu, Jude e Jess,

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pois o resto do grupo ia atacar o xerez eoutras bebidas.

– Sabe, gosto mesmo de si, Holly –declarou ele – e quero conhecê-lamelhor. Mas, sejamos honestos, nãoestou a ir muito longe, pois não?Porquê? Sou demasiado frívolo ou nãogosta da cor das minhas meias?

– Simplesmente não faz o meu género.– Estava a enfiar panelas e talheres namáquina da louça para a pôr a lavar.

– Não? É estranho, pois sempre meconsiderei um género universalmenteapelativo, tipo tamanho único – disseele com modéstia.

– Não no que a mim diz respeito: e aminha avó tê-lo-ia descrito como sendo

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muita parra e pouca uva.– Isso é bom?– Não. Não se esqueça de que eu

testemunhei em primeira mão omulherengo que é... E toda a gente dizque sai ao seu tio Ned, que abandonouuma pobre rapariga quando estavagrávida porque na altura estava jácomprometido com outra – fiz notaracremente. – Portanto, não, não meparece que fosse um grande pretendente,ainda que acreditasse que estava a falara sério e não apenas a ser pateta.

Ele suspirou.– Tem uma ideia totalmente errada de

mim... mas eu fá-la-ei mudar de opinião.Até lá, não podia tentar gostar de mim?

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– Por vezes, até gosto um bocadinho –admiti. – Consegue ser bastanteengraçado.

– Não sei ao certo se isso é bom oumau. Porém, segundo a Tilda, a mulhercerta far-me-ia mudar da noite para odia... e a Holly a mim parece-me muitobem.

– Sempre pensei que só umalobotomia frontal chegaria para o mudar– disse –, mas ela conhece-o de factobem melhor que eu.

Ele riu.– Estou arrependido de ter deixado o

Jude ficar com o meu papel comoOrsino. Ele é que vai ficar com a açãotoda.

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– Não haverá ação nenhuma e euapenas concordei em fazer esta peçapara manter a mimada da sua namoradade bom humor e não estragasse o Natal atoda a gente... e para a animar um pouco,pois tive pena dela.

– Ela já não é minha namorada e játratou de alinhar a mira dela para oMichael para preencher a vaga. Ele estáa revelar-se surpreendentementeresistente aos encantos dela, porém, talcomo a Holly aos meus.

– Isso é porque ele também não énenhum palerma.

– Ou talvez porque tem outrosinteresses...

Olhei para ele surpreendida e soltei

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uma gargalhada.– Refere-se a mim? O Michael e eu

estamos a tornar-nos bons amigos, masnão há atração de nenhuma espécie entrenós. Por mais estranho que lhe possaparecer, sou perfeitamente feliz solteira.

– Eu também – afirmou Michael,entrando na cozinha mesmo a tempo deouvir a última frase. – Se ao menosalguém dissesse isso à Coco!

Guy fez uma careta e regressou parajunto dos outros e eu disse a Michael:

– Não gosto nada da forma como oJude e o Guy não param de empurrar aCoco para si, só porque já estão fartosdela. Acham que persegui-lo a manterádivertida e ocupada.

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Ele encolheu os ombros.– Não é a primeira vez que sou

perseguido, não querendo parecerpresumido, e ela nem faz o meu género.Estou a encarar tudo isso como umaespécie de preço a pagar por ter sido tãobem recebido aqui no Natal.

– Eu não diria que o Jude o está afazer sentir-se muito bem-vindo!

– Eu acho que ele tem as razões dele –argumentou Michael com um sorriso. –Tal como eu suspeito, o Guy tem-nacortejado em parte para irritar o irmão,embora isso não queira dizer que elenão a ache atraente também, pois eu vejoque sim.

– Não estou a ver por que razão o

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Jude se importaria se o Guy de facto meconquistasse. Seja como for, é coisa quenão acontecerá, ainda que Guy pareçaestar crente que conseguirá fazer pôr-meaos pés dele desde que use a quantidadede charme necessária.

– Teremos de continuar a salvar-nosum ao outro se formos encurralados –sugeriu Michael.

– Demoram muito a regressar à salade estar? – perguntou Jess, aparecendona soleira da porta ainda de coroa depapel. – Estou outra vez aborrecida!

– Terminei agora mesmo – declarei,colocando as canecas de cacau quenteno tabuleiro, em conjunto com algunsrolinhos de parmesão e tigelas com

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frutos secos e azeitonas.Jess entrou então na cozinha e lançou

um olhar interrogador a Michael.– Michael, estás de beicinho pela

Holly? É que o Guy, o George e o tioJude estão.

– Jess! – exclamei.– Não – respondeu ele num tom sério.

– Acho que ela é muito boa pessoa eespero que sejamos sempre amigos, masnão estou de beicinho por ela.

– Ótimo, é exatamente o que eu achava– disse ela, desfranzindo o sobrolho. –Ela não gosta muito do tio Guy, jápercebi, e o George é demasiado velho.Portanto, só resta o tio Jude, não é?

– Para quê? – inquiriu Jude, trazendo

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um tabuleiro cheio de copos sujos, todosde cristal de chumbo que teriam de serlavados à mão.

– Oh, estávamos apenas a discutirquem é que aqui é guloso – apressei-mea responder. – Jess, queres que te ensinea fazer suspiros instantâneos e bolo dechocolate numa caneca, tudo no micro-ondas?

– Quê, agora? – perguntou ela. – Nãoé já tarde?

– Não, é coisa para demorar poucosminutos. Depois podes comê-los antesde ires para a cama.

– Ótimo! – exclamou ela. – Quem medera que estivesses sempre aqui, Holly,não era, tio Jude?

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– Não sei – disse ele, olhando-memelancolicamente. – A Holly é umpouco como um irritante grão de areianuma ostra, e não sei se irá transformar-se numa pérola ou não.

Se Michael e Jess estiverem certos eJude estiver de facto um pouco atraídopor mim, então soa-me que na verdadenão queria estar – e eu sinto exatamenteo mesmo em relação a ele!

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Capítulo 32

Peças do Puzzle

Mr. Bowman é um homemamável e bondoso e, embora eusoubesse que ele iria ficarprofundamente entristecido coma minha história, esperava queencontrasse dentro do seucoração compreensão e algumtipo de perdão para a minhaconduta.

Junho de 1945

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A história da avó é terrivelmentetriste, mas é claro que agora vejo paraonde tudo se encaminha e fico muitocontente que alguém tão amável quanto omeu avô a tenha salvo! Porém, não é deadmirar que ela ficasse tão reservada eretraída depois do sucedido!

Contudo, se bem que consigaadivinhar o resultado, estou determinadaa não saltar até às últimas entradas, masa lê-las por ordem, embora depois dadecisão de ir falar com o pastor, a minhaavó tenha passado mais três páginas aexaminar o estado da sua consciência ea profundidade da sua culpa de umaforma tão exaustiva que acabei por

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adormecer.Esta manhã, depois de ter aberto a

porta a Merlin e ter dado um pedaço decenoura aos cavalos, regressei à cozinhapara pôr a chaleira ao lume e deparei-me com Jude lá, de calças de gangavelhas e camisola azul, pronto para aação, sentado à mesa da cozinha a calçarmeias.

– Acha que conseguia salvar a minhaoutra meia das mãos da Jess e tirar-lhe afita cor de rosa? – perguntou ele,levantando a cabeça. – Para as botas deborracha só tenho mais este par e estão aficar puídas nos calcanhares.

– Está bem, a não ser que prefira queeu cosa uma fita a condizer na outra?

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– Talvez não – respondeu ele e saiu,dizendo que ia buscar mais lenha aoabrigo da rua e colocá-la na caveporque já se estava a esgotar.

A seguir limpou a cinza da lareira dasala de estar antes de voltar a sair paratratar dos cavalos. Eram tarefas que debom grado abria mão para ele, talvezexceto cuidar de Lady, pois gostava depassar tempo com ela.

Dei o pequeno-almoço a Merlin econsultei os menus e o horário paraaquele dia para que, quando eleregressasse dos estábulos, eu estivessejá a colocar tartes de peru e presunto noforno.

Revelou-se útil para fazer chávenas

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de chá enquanto eu trabalhava e depoissentou-se numa cadeira junto ao Agacom um caderno de esboços, os seusolhos seguindo-me pela cozinhaenquanto eu fazia um tabuleiro debarrinhas de mincemeat e acrescentavauns legumes frescos ao caldo quefervilhava para confecionar uma sopa.

Agora que sabia que a forma como osolhos de Jude me seguiam pela divisãoera apenas um exame artísticoimpessoal, não me incomodava nem umpouco. Na verdade, cheguei a esquecer-me que ele estava ali e a comportar-mecomo sempre fazia quando estavasozinha – conversando com Merlinquando lhe dava algum resto e, presumo,

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cantando ocasionalmente. Suponho quefico quase tão absorta no meu trabalhoquanto ele no dele.

– E pronto – disse por fim, riscandomais uns itens da lista de tarefas –,agora só falta tratar do pequeno-almoço.

– Levanta-se assim tão cedo e faztanta coisa todas as manhãs? – perguntouele com curiosidade.

– Sim, quando tenho de cozinhar paragrupos grandes. Quando se trata apenasde tomar conta de uma casa, trato dosanimais, das plantas ou do que for, edepois o dia é todo para mim –respondi. – Quando cozinho, gosto deplanear os menus e as tarefas comantecedência, pois isso torna tudo muito

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mais fácil depois.– Sinto muito culpa por agora, em

especial porque insiste em não aceitarqualquer pagamento extra. Terei depensar noutra forma de lhe agradecerpor este trabalho árduo todo.

– Não se preocupe, pois estou a fazê-lo voluntariamente, embora, é claro, nãosoubesse que iria ser o dobro do númerode pessoas que convidara inicialmente.

Jude colocou o caderno de lado eajudou-me a fazer o pequeno-almoço,que, tal como lhe disse, parecia ser aúnica refeição que ele sabia fazer sem omicro-ondas.

– É óbvio que não encontrou ainda omeu tesouro secreto de pequenos-

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almoços congelados e pré-cozinhados –comentou ele sardonicamente. – Se bemque diz o roto ao nu. Não fui eu queensinei a Jess a fazer sobremesas nomicro-ondas.

– Não sou contra micro-ondas, apenascontra o que fazemos com eles. Ossuspiros e o bolo são uma espécie deatalho, mas também divertidos. E agoratambém têm o selo de aprovação daTilda.

– Eu também aprovo. A propósito,depois do almoço, conto consigo denovo no estúdio.

– Pensei que já tinha terminado o queprecisava de mim ontem?

– Não, não se lembra? Eu disse-lhe

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que ainda queria fazer uma maqueta ouduas.

– Sim, mas não achei que precisassede mim para isso. E é domingo, por issoteremos mais um almoço tardio: carnesfrias, batatas assadas e legumes. Tenhode fazer uma incursão às cenouras doHenry, dei a última aos cavalos. Ah, e asobremesa será Arctic Roll15 congelado,pedido especial do Noël. Também deveser uma das suas preferidas, pois há seisna arca.

– É mesmo – admitiu ele –, mas, pormais estranho que pareça, gosto de ocomer com montes de custard por cima.

– Bom, posso fazer também, emborapareça de facto estranho.

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– Presumo que o Richard fará umpequeno serviço religioso hoje, tendoem conta que o vigário habitual nãoconseguirá chegar à aldeia – referiu elenum tom pensativo. – O Guy pode levara Becca, o Noël e a Tilda à igreja nomeu Land Rover, se eles quiserem ir, oque é bem provável, e ficar no pub atéserem horas de os trazer de volta. ACoco e o Michael podiam ir com ele,desde que desta vez não deixe a Cocoembebedar-se.

– Também gostaria de ir até ao pub –mencionei anelantemente –, mas émelhor ficar aqui para ir adiantando oalmoço.

– Receio que acabem por trazer a Old

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Nan e o Richard de volta com eles –disse Jude como quem pedia desculpa. –E alguém lhe disse que eles tambémcostumam jantar connosco na véspera deAno Novo? São mais público para asrenascidas leituras da Noite de Reis.

– A cozinheira é sempre a última asaber. Mas mais duas pessoas não meassustam. Há sopa para entrada, montesde peru e presunto e farei mais legumes.

– Penso que ainda deve haver umfrasco ou dois do chutney de fruta deMistress Jackson na despensa – aventouele.

– Há e eu trouxe um do meu, dedamascos.

Começou entretanto a ouvir-se mais

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barulho pela casa: os canos da água aestalarem, o soalho a ranger e, não desomenos importância, o inegável baquesurdo dos pés de Jess enquanto corriapelo patamar e galopava pelas escadasde madeira abaixo.

– Não tarda, desce toda a gente e estassalsichas já estão prontas, por isso vouandando para o estúdio – anunciou Jude,entregando-me a tenaz. – Fale ao Guy daida à igreja e do Land Rover. Até logo...Não venho almoçar, por isso, depoisleve-me qualquer coisa para comer.

– Sim, chefe – respondi com sarcasmoe aquele sorriso completamentetransformador iluminou-lhe o rosto denovo por um instante, e logo depois

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desapareceu, e ele também.

Mais tarde, Guy, Coco e Michaelconseguiram enfiar-se no Land Rover deJude juntamente com o grupo que ia àmissa, onde se incluía uma mutinosaJess que preferiria ir ao pub. Noël disseque regressariam com George, que comcerteza não se importaria de lhes daruma boleia no seu enorme jipe, trazendode caminho a Old Nan e o vigário.

O Land Rover parecia uma autênticalata de sardinha, muito embora Jess eCoco não ocupassem muito espaço eTilda seja basicamente do tamanho dafada Sininho. Becca, porém, é bastantesubstancial. Assim que se acomodaram

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todos, as janelas embaciaram e Guyinclinou-se por cima do colo de Coco efez descer a janela do passageiro.

– Pode telefonar à sua mãe a saber seo seu pai já está melhor, Coco – sugeri eela olhou-me inexpressivamente.

– Porquê? Não importa que esteja,pois já é tarde de mais. O meu noivadoestá terminado de uma vez por todas.

– E não tens sequer uma mala Birkinem casa à tua espera – compadeceu-seGuy e ela ficou lívida de raiva.

– Odeio-te, Guy Martland!Ele ignorou-a e virou-se para mim:– De certeza que não quer vir? Há

lugares ao colo.– Não, obrigada, tenho de ir tratar do

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almoço – respondi, embora, agora quepensava nisso, o que me apetecessemesmo fosse algum tempo só para mim.

E foi uma bênção. Dei umaarrumadela rápida na casa, compondo asalmofadas da sala de estar e detendo-mepara colocar mais umas peças no puzzle.Não percebo porque estão a demorartanto tempo a fazê-lo, e sei que Guy vaificar irritado quando descobrir que metide novo o bedelho, mas há qualquercoisa de irresistível num puzzle, não há?Oriel tinha razão.

Depois disso, levei o computadorpara a cozinha e atualizei as notas domeu livro de culinária com coisas quetestara durante o Natal, conversei com

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Merlin e saí com ele para um pequenopasseio pelo trilho acima.

Uma crosta de gelo tinha-se formadona gamela do cercado e tratei de aquebrar e deitar as lascas de gelo aochão antes de partirmos. Lady pateava aneve em busca de erva, ignorando a redecom feno, mas Billy estava de pé sobreas patas traseiras, equilibrado na cerca,a comer o feno que pendia da rede.Nutkin mastigava ponderadamente umpedaço que tirara da parte de cima.

Há alguns dias que não nevava, porisso talvez o pior já tivesse passado eem breve começasse o degelo. Então, eue o resto dos membros, não desejados enão convidados, do grupo poderíamos ir

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embora.Estranhamente, tal já não constituía um

pensamento tão animador.

O grupo expedicionário regressou deLittle Mumming em dois Land Rover, ogrupo que estivera no pub bastantealegre, em especial Coco. Ainda assim,Michael, pelo menos, não se esquecerado meu pedido de que trouxesse maisxerez para os membros mais velhos dafamília, pois as garrafas que eleoferecera no Natal estavam quase nofim.

George ajudou Tilda, Noël e Old Nana saírem do seu Land Rover, emboraRichard e Becca tenham saltado sem

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ajuda do de Jude, sendo ainda bastanteágeis. Depois, reuniu-os todos econduziu-os a casa, um pouco como umcão-pastor amistável e preocupado.

Aproveitei a oportunidade para lheagradecer pelo bonito presente e elesorriu de orelha a orelha e agradeceu omeu.

– Não quer entrar? – convidei.– Só até ao visco, já que insiste! –

disse ele expressivamente e piscou-me oolho e, por um momento, admito que mesenti tentada!

– Oh, caiu, por isso tivemos de o pôrnum jarro – disse Jess muitorapidamente, aparecendo de repente ameu lado. Tilda obrigara-a a vestir um

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vestido preto curto e colãs para ir àigreja e ela completara o conjunto combotas de cano alto de atacadores e umcasaco comprido. – Já não podecolocar-se debaixo dele – acrescentou–, por isso não conta.

– Que pena – comentou ele de bomhumor.

Agora que estava mais perto dele,reparei numa ténue marca de batomnuma das magras e rosadas faces dele,num estranho tom de framboesa que mefez lembrar Oriel, portanto, era óbvioque ele andara a cavar noutro quintaltambém.

Porém, não se foi emboracompletamente desapontado, pois fui

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buscar uma tarte de peru e presunto àcozinha e embrulhei-a em papel dealumínio, para ele e Liam. Ele abriu umdos cantos do papel para espreitar eachei que iria ajoelhar-se ali mesmo naneve e pedir-me em casamento.

– O que tem ele que eu não tenho? –perguntou Guy quando ele arrancou.

– Sinceridade? – sugeri.

Pusera a mesa na sala de jantar, o que,para uma grupo tão grande, era maisfácil, e depois arrumei a cozinha edeixei-os na sala de estar com café,xerez, barrinhas de mincemeat e o querestava do bolo de Natal, e fui vestir asleggings e a túnica e preparei um cesto

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com comida para levar para o estúdio,desta feita na companhia de Merlin.

Não fui diretamente para lá, porém.Primeiro, desci mais um pouco ocaminho, até à casa de Nöel e Tilda,para contar a Laura que me tornarasubitamente modelo para um artista.

– É estranho porque ele me olhafixamente enquanto desenha, mas é umacoisa impessoal. Não é que noutrasocasiões não se ponha a fitar-metambém... O Michael e a Jess estãoconvencidos que é amor.

– Como sabes que ele te fita? Éporque o olhas também – argumentou elaastutamente.

– Ele é um bocado difícil de ignorar

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quando está na mesma divisão – admiti.– Na verdade, é difícil ignorá-lo atéquando está na mesma casa que nós:digamos que até a atmosfera muda.

– Mmmm... – comentou ela num tompensativo. – Talvez goste mesmo de ti.

– Talvez, um pouco, mas, tendoenviuvado e agora sido trocado, não meparece que queira... E, seja como for,continua a achar que eu ando a planearalguma.

– E estás, de certa maneira, a tentardescobrir a verdade acerca da tua avó –disse Laura. – E parece-me que te sentesmais atraída pelo Jude do que estás aadmitir, porque também tens medo devoltar a apaixonar-te!

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– Um pouco de atração física não querdizer nada! Ele não faz o meu género e,a julgar pela Coco, eu não faço o dele!No entanto vai ser muito embaraçosofazer o papel de Viola quando ele éOrsino – comentei, e fiz-lhe uma brevedescrição do nosso drama. – O Michaelfaz de Sebastian, meu irmão gémeo, porisso, no final, fica com Coco, no papelde Olivia, mas quem lhe dera que nãoficasse, pobre homem. Sentir-se-iamuito mais seguro comigo. Mas, pelomenos, a peça tem mantido a Cocoocupada e divertida. Ontem conseguiutrancar-se no sótão e teve um ataque depânico e eu aproveitei a oportunidadepara lhe fazer uma palestra sobre o seu

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consumo de laxantes e confisquei-lhe amaioria deles.

– Não achas que foi um bocadoditatorial e arriscado?

– Foi para o bem dela. Se a neve nãoderreter em breve, talvez consiga pôr-lhe um pouco de carne naqueles ossos ecor nas faces antes de ela regressar acasa.

– Então, depreendo que continua semhaver hipótese de fuga?

– Não, mas, no meu caso, não meparece que o Jude me deixe ir emboraaté ter acabado comigo.

– Isso parece... esquisito, masinteressante.

– Enquanto modelo para a estátua,

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palerma!

Juntara uma porção, cortada aospedaços, de tudo o que o almoçoincluíra, e pusera numa das marmitastérmicas da cozinha para que nãoarrefecesse.

Uma coisa boa acerca dele é que,mesmo absorto com o trabalho, continuaa apreciar os meus cozinhados. Partilheia garrafa térmica do café com ele,sentados de novo numa dasextremidades do estrado de madeira emsilêncio enquanto ele comia.

Merlin sentou-se entre nós,encostando-se alternadamente a um edepois ao outro e suspirando imenso.

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– Que se passa com este palerma? –perguntou Jude por fim, intrigado.

– Conflito de lealdades, penso eu.Sente que devia estar consigo, mas, poroutro lado, também não me quer deixar.Idealmente, ele queria que estivéssemosambos no mesmo sítio a toda a hora.

– Mas reparo que, quando se trata dacomida, ele vai mais atrás de si do quede mim.

– Sim – admiti –, mas, quando eu mefor embora, ele vai esquecer-me. Vou termuitas saudades dele!

Coloquei um braço em redor deMerlin e dei-lhe um abraço.

Jude observou-me com uma expressãoausente à qual já me estava a

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familiarizar e disse:– Mmmm... mais tarde tenho de fazer

uns esboços de vocês os dois. Mas,primeiro, de volta ao trabalho. Estou afazer uma armadura para suportar aescultura. As maquetas estão ali namesa, se quiser ver.

Levantou-se e regressou à construçãode qualquer coisa grande e com a formavaga de um cavalo e uma pessoa comvaras de metal fletidas, soldadas a umenorme estrutura sobre uma base fixa.

Havia três pequenos modelos sobre amesa, um em barro, outro no que pareciaarame contorcido e outro em pedacinhosde lata colados com gotas de cera.

Estranho.

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Fui sentar-me de novo na ponta doestrado e fiquei a observá-lo por ummomento a ver se ele precisava de mimpara alguma coisa, uma vez que fora tãoinsistente que eu fosse ter com ele aoestúdio; mas penso que já se esquecerade mim de novo. Talvez apenas quisesseque eu lhe levasse o almoço?

Parecia não ter frio. Embora nãoestivesse assim tão quente no estúdio,ele despira a camisola e a fina T-shirtpor baixo estava colada a umaimpressionante coleção de músculos deque eu me recordava muito bem dovisionamento privado que tiverainesperadamente na véspera de Natal. Otronco largo ia-se adelgaçando até à

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cintura e às ancas...Estava eu a pensar que, embora ele

fosse um gigante, era-o de forma bemproporcionada e firme quando elelevantou a cabeça e me presenteou comuma daqueles súbitos e incapacitantessorrisos encantadores antes de regressarao trabalho.

Penso que ele nem se dá conta de queestá a fazê-lo e suponho que seja apenasuma expressão de sublime felicidade, debeatitude no ato da criação.

Esse sentimento repercutiu-se alguresnos recessos mais distantes da minhamemória...

De tempos a tempos, fez umcomentário fortuito, evidentemente a

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pensar alto. Uma vez disse: «Tenho dearranjar uma forma de a Jess falar comos pais, quando pudermos sair de LittleMumming», e mais tarde disse-me queas minhas linhas eram quase tão belasquanto as de Lady. Encarei isso comoum elogio.

Às tantas, quando me dei conta de quea luz lá fora começava a escassear,levantei-me e Merlin espreguiçou-separa vir atrás de mim.

– Jude, vou andando. Não se esquecede voltar para o jantar, pois não?

Ele olhou para mim com um arausente.

– Não, está bem – disse, mas eu nãoapostaria que ele se lembrasse, a não ser

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que o estômago desse sinal.

Quando regressei, Becca e Jess hámuito que haviam tratado dos cavalos eGuy levara a Old Nan e Richard a casano Land Rover de Jude.

A cozinha estava um poucodesarrumada porque Jess estivera aensinar a avó a fazer suspiros e bolo dechocolate no micro-ondas. Prometi aTilda que apontaria a receita dossuspiros para ela. Já imaginava que setornariam um enorme sucesso em casadela, guarnecidos com natas em spray e,talvez, morangos às fatias, no verão.

– Há bocado, demos com a Coco noteu quarto – disse Jess – à procura dos

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«rebuçados» dela.– Tudo porque já quase não tenho

nenhum na mala de mão – argumentouela a amuar. – Só queria mais alguns.

– Lamento, mas deitei-os todos nasanita – confessei e depois, num tomligeiramente histérico, ela acusou-me dequerer arruinar a figura dela, a carreirae a vida inteira.

Tilda disse-lhe que devia estar gratapor alguém se preocupar com a saúdedela, mas que, se ela se visse muitoaflita, lhe faria um bom chá de sene.

Tal pareceu ter um efeitoextraordinariamente mitigante nela.

* * *

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Jude recordou-se de regressar para ojantar, que foi apenas rolos de salsicha,tomates – os últimos –, sanduíches desalmão fumado e mais bolo e suspirosde micro-ondas, com espirais de natasem spray, claro. Estaremos umas bolasno Ano Novo.

Guy reparara que o puzzle tinha maispeças e acusou-me de as ter posto, comose tal fosse um crime. Quando admiti aculpa, ele disse num tom irritado que,uma vez que eu parecia ser tão boa afazer puzzles, mais valia fazê-lo todosozinha.

Ele e Coco têm tanto em comum que éuma pena que tenham desfeito onoivado!

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Disse-lhe que comprara o puzzle paratoda a gente e que todos fizéramos umpouco, até mesmo Coco –provavelmente as peças ao contrário – eque por isso ele podia parar de fazerbirra.

– Apoiado, apoiado! – respondeuBecca.

Sinceramente, orgulho masculinoferido por causa de algo tão trivialquanto um puzzle? E, está bem, tê-loprimeiro derrotado no snooker e depoisno Scrabble, provavelmente também nãoajudara...

Teria continuado de bom grado a jogarMonopólio, Scrabble ou Cluedo com osrestantes todo o serão, mas não, Coco

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obrigou-nos a praticar as cenas da peçade novo, embora ela apenas quisesse umpúblico que a visse inconscientementerepresentar com grande dramatismo.Chama-se àquilo exagerar.

Contudo, inspirada nela, comecei aexagerar um pouco também, e depois,para minha surpresa, Jude pôs-se a fazero mesmo, por isso não foi tãoaborrecido quanto podia ter sido.

15 Sobremesa que consiste em gelado de baunilhaenrolado numa fina camada de pão de ló de modo aformar um rolo. Entre o gelado e o bolo é costumehaver uma fina camada de molho de framboes a. (N.da T.)

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Capítulo 33

Peru a Rodos

Mr. Bowman ficou extremamentechocado e desolado com aminha história, mas disse que,embora eu tivesse agido mal, aculpa não era inteiramenteminha. Ofereceu-se paraprocurar N e fazê-lo ver quetinha responsabilidades, mas eurecusei, pois é óbvio que o N meabandonou e que nada do que

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tivemos foi a sério, pois jáestava comprometido com outrapessoa. Rezámos então juntospara que Deus nos guiasse...

Junho de 1945

Ontem à noite adormeci durante maisuma das longas e moralizadoraspassagens do diário da avó, desta vezdescrevendo o que Mr. Bowman disseranas suas orações – que obviamentedevem ter sido proferidas em voz alta,uma vez que ela não era telepática – e oquanto lhe estava grata por ele não a terescorraçado como os pais haviam feito.

Depois, demoradamente, comparou oseu fado a uma cena de The Pilgrim’s

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Progress16, que, aparentemente, incluíaum Pântano do Desespero.

Os tempos eram tão diferentes naquelaaltura: continuava sem compreendercomo é que Ned pudera ter sido tãoinsensível a ponto de a abandonar.

Quando abri a porta para Merlin ir àrua, reparei que não nevara mais, mas apaisagem gelada não dava sinais depermitir fugas tão cedo.

Jude desceu mais uma vez poucotempo depois de mim, mas eu não meimporto que tal se torne um hábito, poisele não se mete no meu caminhoenquanto trato dos preparativos para asrefeições do dia. Na verdade, dá jeito

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ter alguém que me ofereça chávenas decafé ou chá enquanto trabalho, que cuideda lareira e se encarregue de maisalgumas tarefas, embora até agora nãotenha mostrado quaisquer sinais dequerer pegar no aspirador.

Becca desceu também bastante cedo,mas Jess foi entretanto aliviada dotrabalho de limpar as cocheiras demanhã para sua grande satisfação.Presumo que esteja já a treinar para setornar notívaga quando for adolescente.

A primeira tarefa desta manhãconsistira em retirar a restante carne dacarcaça do peru e colocar os ossos numapanela ao lume para fazer caldo. Depoistransformei o que restou – uma

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surpreendente quantidade, ainda assim –num bom caril para congelar. Algunspedaço de peru foram parar à boca deMerlin.

A cozinha estava impregnada doaroma a caldo a fervilhar e a carilquando Becca e Jude regressaram dosestábulos, acrescentando à mistura notasde feno e cavalo, não totalmentedesagradáveis.

– Cheira aqui bem – comentou Judenum tom satisfeito.

– É apenas caldo e caril de peru paracongelar.

– Que está a fazer agora? – perguntouBecca. – Isso não é a velha máquina depicar?

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– Sim, encontrei-a numa das gavetas.– Acabei de a aparafusar firmemente aotampo da mesa da cozinha. – Vou picarcarne para hambúrgueres. Serão o jantarde hoje.

– Quê, vai transformar os meusmelhores bifes em hambúrgueres? –inquiriu Jude, vendo-os numa travessa.

– Não há bifes suficientes para toda agente, mas, se eu fizer um picado,poderei preparar hambúrgueres paratodos. E serão deliciosos, vai ver –prometi, dando com energia à manivelada máquina.

– Tenho de acreditar em si –respondeu ele, observando-me comaquele familiar encurvar de um dos

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cantos da boca –, tudo o que temcozinhado até agora tem sido!

– É bem verdade e o Jude devia eraoferecer-lhe um emprego permanente –aventou Becca com um sorriso.

– Não teria dinheiro suficiente parame pagar.

– Tinha, sim. Não entendo porquepersiste em presumir que estou com umamão à frente e outra atrás. – Deteve-se àporta, de saída talvez para fazer a barbae mudar de roupa, pois já parecia denovo um bandido mexicano. – Podemoscomer batatas fritas com oshambúrgueres?

– Podem comer a minha versão, noforno com um pouco de azeite e algumas

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ervas aromáticas.Quando ele voltou a descer, com um

ar tão civilizado quanto um Yeticonsegue ter, ajudou-me a fazer opequeno-almoço para toda a gente maisuma vez e depois foi para o estúdio,recordando-me que passasse por ládepois de almoço e lhe levasse algumacoisa para comer, portanto, era óbvioque o padrão dos nossos dias ia passar aser este. Talvez só me queira deprontidão, para o caso de sentir umasúbita ânsia de verificar a pose ouassim. Ou, então, pode ser umaperspicaz manha para ter quem lhe leveo almoço todos os dias até a Edwinaregressar a casa de Tilda e Nöel.

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* * *

Depois do pequeno-almoço, Tildalevantou-se e decidiu juntamente comNoël e Becca ver um filme antigo emvídeo – parecem gostar especialmentede musicais.

Jess e Guy eram a favor de se voltar asair com os trenós, mas parece-me queMichael teria preferido continuarsentado à mesa da cozinha a beber cafée a discutir receitas comigo, só queCoco disse que, se ele não planeavasair, podiam praticar as cenas de amorjuntos e ele acabou por mudar de ideias.No final, acabámos por sair todos,embora eu tenha regressado mais cedoque os restantes para fazer mais manjar

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branco de chocolate com a forma decoelho, tendo em conta que o anteriorfora muito bem recebido por Jess, mastambém como uma agradável surpresapelos mais velhos. A seguir preparei umalmoço de tarte de presunto e peru, pãode alho quente – pasta de alho e asbaguetes pré-cozinhadas que havia nadespensa – e o que restava do patê emlata.

Terminado o almoço e a arrumação dacozinha, parti para o estúdio com osubstancial piquenique de Jude e agarrafa térmica de café.

Por essa altura, Coco conseguira levara dela avante e ela e Michael iriam

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passar a tarde a treinar os respetivospapéis... se bem que não sozinhos, mascom Noël lendo prestavelmente a minhaparte e a de Jude, com Jess de serviçoenquanto diretora do guarda-roupa e dosadereços, de coroa na cabeça.

Jude tinha terminado a armadura eestava a soldar pedaços de folha demetal em redor dela quando eu entrei noestúdio, embora tenha parado e me tenhaestendido uns óculos protetores como osque ele tinha.

– As faúlhas não voarão até aqui aoestrado, pois não? – perguntei, emboratenha reparado que Merlin olhara para odono e se escondera atrás do estrado.

– Não, mas a luz do maçarico é muito

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intensa. Mais vale prevenir queremediar – respondeu ele e voltou aotrabalho.

Tal como no dia anterior, pareciaapenas querer ter-me perto dele, nãoprecisando de mim na verdade.

O maçarico era alimentado por doistipos diferentes de botijas de gás e acheique aquilo tinha tudo um ar perigoso,embora ele parecesse saber exatamenteo que estava a fazer.

– Vai mesmo ensinar a Jess a fazerisso? – inquiri, servindo-lhe uma canecade café quando ele parou por fim paraalmoçar.

– Sim, porque não? – Sentou-se nabeira do estrado a meu lado. – É

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bastante seguro se eu a vigiarconstantemente. Sei o que estou a fazer.Porém, preferia esperar até que elaregressasse, nas férias do verão. Assimjá teria os treze anos feitos.

– Ela costuma passar grande parte dasférias escolares com o Noël e a Tilda?

– Depende. Os pais dela ausentam-sebastante. Já terá depreendido que a Roze o marido, Nick, estudam a vidaselvagem e fazem documentários, porisso a Jess costuma vir parar aqui muitasvezes. Mas também acontece ela ir tercom os pais a locais exóticos.

– É o tio preferido dela. Ela ficoufelicíssima quando o Jude regressou.

– Parece também ter-se encantado

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consigo e, tal como o Merlin, fica aindamais satisfeita se estivermos ambos namesma divisão!

– Tenho a certeza que eu fui apenasuma sua substituta; o Jude é a pessoa queela vê como uma segurança –argumentei. – Ela parece aceitar muitobem que os pais passem muito tempofora e que ela tenha de estudar numcolégio interno.

– Ela adora andar lá. É uma escolasurpreendentemente antiquada, estilo asdescritas por Enid Blyton, onde asraparigas podem andar a cavalo e teranimais de estimação, mas, depois dostreze anos, têm de partir, portanto, issovai ser difícil para ela. Não quereria

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educar os meus filhos assim, casotivesse algum – referiu ele, lançando-meum olhar de esguelha que não conseguiinterpretar. – Quereria que estivessemperto de mim, não expatriados para umsítio longe de casa.

– Eu também. Não vejo o objetivo deter filhos se não for para isso –concordei e ficámos em silêncio por umminuto. Eu pus-me a pensar no facto deme ir tornar mãe solteira e no quanto iriaser diferente para mim, comparado como que fora para a minha pobre avó, masainda assim era uma empreitadaassustadora. Um bom planeamentoantecipado será obviamente crucialnessa situação, tal como na cozinha.

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E só Deus sabe no que Jude estaria apensar.

Quando ele voltou ao trabalho,trocámos alguns comentáriosesporádicos – e por vezes iluminados! –e ao fim de algum tempo Merlin e euescapulimo-nos e regressámos a casa...ou a Old Place, que, de alguma forma,começo a sentir como se fosse o meu lar.

Derrotei Guy três vezes ao snooker, ecom isso, e o facto de eu ter terminadouma secção inteira do puzzle naquelamanhã quando fora colocar mais lenhana lareira, ele ficou um poucosuscetível.

Estranhamente, tal não o impediu de

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me cortejar depois de termos feito maisuma leitura das cenas da peça. E achoque Michael tinha razão, porque Guyapenas decide namoriscar-me quandoJude está presente! Portanto, deve acharque está a fazer ciúmes a Jude... a nãoser que esteja a interpretar mal ointeresse de Jude em mim.

Jude não tivera até então quaisquergestos próprios ou impróprios, paraalém de sacudir um bigode imagináriode uma forma tenuemente lasciva naminha direção e lançado uma das pontasda sua capa de veludo azul por cima doombro. Estávamos a ficar cada vez maisdramáticos nas nossas encenações e talestava a dar com Coco em doida, em

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especial quando Michael se juntava àparódia.

– Não estão a levar isto a sério! –gritou ela praticamente quando Jude e euestávamos a parodiar a cena em queOrsino diz que está apaixonado porViola, agora que sabe que ela é umamulher, mas que gostaria de a ver devestido. E eu que pensava que Judeestivera a brincar acerca daquela fala.

– É apenas divertimento familiar,afinal de contas – argumentou Noël. –Porque não havemos de nos rir?Presumo que fosse o que Shakespearepretendia quando escreveu a peça.

– Tenho a certeza que o Michaelpreferiria que a representássemos mais

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seriamente – apontou Coco.– Não, já desempenho papéis sérios

que cheguem todo o ano.Coco fez logo beicinho, algo que não

fica bem a uma criança de quatro anosquanto mais de vinte e quatro.

– Ela sabe representar? – perguntei-lhe mais tarde, quando ninguém nospodia ouvir. Michael passa a vida arefugiar-se de Coco na cozinha, naminha companhia, e está a revelar-semuito útil a descascar legumes e a lavarquaisquer peças de louça que nãopossam ir à máquina, embora o faça comas minhas luvas de borracha. Suponhoque os atores não possam dar-se ao luxode ter mãos secas e gretadas.

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– Não, é tão inexpressiva quanto umtarolo de lenha – respondeu ele com umacareta.

– Pois, foi o que pensei. Pobre Coco!– Pobre nada! Os pais dela são super

ricos e estragaram-na por completo commimos, portanto, já vai sendo tempo deela aprender que o dinheiro não compratudo.

– Não irá seguramente comprar-lheuma carreira como atriz se ela é umtarolo, não é?

– Também não irá comprar-lhe aminha pessoa – acrescentou elesinistramente e eu soltei uma gargalhada.

– Vai ser cá um alívio para si pisgar-se daqui!

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– Não, na verdade, tirando a Coco,tem sido uma das melhores semanas daminha vida! Estou a gostar muito. E aHolly?

– Eu? Bom, é apenas trabalho, naverdade; mais uma quadra natalíciapassada a trabalhar, como as suas, mas...sim, suponho que estou a divertir-me e agostar. Ou da maior parte dela. Éestranho porque anteriormente sempreme senti infeliz nesta altura do ano.

– Não é de admirar, tendo em contatodas as infelicidades que lheaconteceram perto desta quadra – disseele compreensivamente.

– Sim, mas, em retrospetiva, perceboque esconder-me e ficar toda pesarosa e

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triste aos primeiros acordes de umcântico de Natal e de uma ponta de fitanão era a melhor forma de lidar com osmeus sentimentos – admiti. – Masparece-me que estou agora imunizadacontra o medo do Natal.

– Ou imunizada com ele, de modo aque agora tenha de celebrá-lo? – sugeriuele.

Michael era bem capaz de ter razão.

A terça-feira seguiu basicamente omesmo padrão dos dias anteriores, coma exceção de que assim que o Sol nasceufoi possível reparar que o gelocomeçara a desfazer-se no empedradodo pátio e na parte do caminho que

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George e Liam haviam limpo de neve.Fui à aldeia com Guy, Coco e Michael

a meio da manhã, para reforçar asprovisões de comida que começavam aescassear, mas já sabia que não iriaencontrar ainda fruta, pão ou legumes,quanto mais um novo fornecimento denatas em spray tão do agrado de Tilda eJess!

Entrámos todos na loja de Oriel.Penso que todos nos sentíamos como sehá meses não víssemos uma.

– Ouvi dizer que o George lhe deu umdos bordões dele como presente? –perguntou-me Oriel, empilhando farinha,bicarbonato de sódio e folha dealumínio à minha frente no balcão.

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– É verdade, magnificamente talhado.Foi muito amável da parte dele –respondi cautelosamente.

– Oh, sim... o nosso George é muitoamável, é – disse ela num tom ciumentoe eu senti uma súbita comiseração:achava George muito atraente, mas nãoestava seriamente interessada nele e atéao meu advento Mrs. Comfort não tiverarival. E se ela estivesse apaixonada porele?

–É verdade, quem me dera ter um paicomo ele – afirmei e ela fez um arsatisfeito e sorriu de orelha a orelha.

– Um pai? Quem diria? Presumo queele seja bastante mais velho que você. –Era... embora não assim tão mais velho!

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Fosse como fosse, o meu comentárioteve o efeito desejado e num impulso deboa vontade ela presenteou-me com umsaco de papel de gomas das minhaspreferidas, as que tinham a forma debebés.

Esgueirei-me enquanto os outroscontinuavam a debater as suas compras,deixando Oriel a dizer firmemente aCoco que não podia vender-lhe todo oseu stock de laxantes, pois estava aracioná-los a um pacote por cliente atéreceber nova remessa.

Fui ver se a Old Nan e Richardestavam bem e dar-lhes as últimas fatiasda tarte de peru e presunto e um poucode bolo que trouxera comigo. Depois

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telefonei a Laura do alpendre da igreja,onde estava mais abrigada.

Ela disse-me que a Ellen lhetelefonara, queixando-se de que nãoconseguia contactar-me para me falar domagnífico trabalho que tinha alinhadopara mim, logo no fim de semana aseguir à Noite de Reis, e que tinha acerteza que eu não me importaria decozinhar para a enorme festa de umcliente do Médio Oriente que tinha umacasa em Londres, agora que tivera umaboa oportunidade para descansar.

– Espero que a tenhas posto na linha!– exclamei indignada. – Não tenho feitomais nada a não ser preparar e cozinharrefeições desde que aqui cheguei. E ela

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sabe bem que eu até à Páscoa apenastomo conta de casas.

– Irritei-a, dizendo-lho que tinhamgostado tanto de ti que provavelmente teiriam pagar uma soma fabulosa para temanterem como cozinheira permanente.

– Por mais engraçado que pareça, oJude disse mais ou menos a mesmacoisa... e eu retorqui que ele não teriadinheiro para me pagar, masaparentemente ele é de facto um homembastante abastado. Tinhas razão.

– É claro que é, palerma! Asesculturas dele são vendidas por largosmilhares, eu fiz uma busca pelo nomedele no Google!

– Bom, seja como for, não vou aceitar

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um cargo permanente aqui. Assim que asestradas permitirem, esgueiro-me parafora da vida deles. E desde que o Judejá não precise também de mim comomusa.

– Eu diria que tu até gostas!– É emocionante vê-lo com o

maçarico a soldar metal – admiti. – Eleparece gostar de me ter lá, embora fiquetão absorto que às vezes nem se dá contade que não está sozinho. Depois pareceque desperta do transe, vê-me e sorri ediz qualquer coisa.

– Como por exemplo?– Oh, todo o tipo de coisas: por vezes,

faz-me uma pergunta sobre mim, mas deuma forma habitual é o que quer que lhe

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tenha vindo à cabeça naquele momento.Ao início da tarde levo-lhe o almoço,depois de todos termos comido.

– Isso parece-me estar a tornar-setudo muito íntimo e acolhedor! – troçouela. – Não é verdade que as musas demuitos artistas eram também suasamantes?

– Talvez, mas é muito pouco provávelque eu siga por esse caminho depois doexemplo da minha avó e, ainda porcima, com um membro da mesma famíliaque a desiludiu, não te parece? –lembrei-lhe. – Quero dizer, ainda que euachasse homens grandes, taciturnos emandões atraentes, o Jude é quase decerteza meu primo.

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– Mas nem sequer primo direito.– Não, o pai dele era irmão do meu

avô... acho eu – disse, tentando fazer aconta.

– Não é um parentesco muito próximo– referiu ela num tom encorajador. –Ninguém poderá censurar-te por isso.

– Oh, Laura! És tão terrível quanto aJess.

– A miúda pequena? Anda a fazer decasamenteira?

– Não é assim tão pequena, tem quasetreze anos e vai ser outra Martlandgigante. Mas, sim, anda a tentarempurrar-nos para os braços um dooutro a cada oportunidade. Adora o Judee parece ter-nos escolhido para o papel

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de pais substitutos, uma vez que os delase ausentaram. Creio que ela gostariaque tal se tornasse uma coisapermanente, mas já tratei de lhe dizerque não acontecerá!

– Não o negues à partida – afirmouLaura e eu argumentei que ela era umaromântica incurável, mas que, nestecaso, mais valia que desistisse.

No pub encontrei Coco a beber vodcacom soda e Guy e Michael com umacerveja, conversando acerca de futebol,algo que não desperta o meu interesse.Assim, pedi um café e pus-me àconversa com Nancy, até que por fimtive de correr com eles dali ou não teriahavido almoço na mesa naquele dia.

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Com isto, só muito mais tarde que ohabitual levei o almoço a Jude noestúdio e tal levou-o a ficar um poucoirritado quando lhe disse porquê, achoque as pontadas de fome lhe haviamtravado a inspiração ou qualquer coisado género.

Contudo, animou-se depois de tercomido e enquanto trabalhoudesfrutámos de várias trocas de ideiasagradáveis e também de vários silênciosigualmente aprazíveis. Começo a acharo tempo que passo no estúdioestranhamente relaxante...

A boa disposição de Jude durou oresto do dia, até mesmo ao final de maisum ensaio totalmente desnecessário da

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peça, altura em que voltou a ficarmacambúzio e neandertalóide. Pensoque foi porque entrou na cozinha quandoMichael e eu estávamos a zombarcruelmente das capacidades de atriz deCoco.

Eu acabara de proferir a fala deOlivia num falsete dengoso:

– «Vem, peço-te: não queres serguiado por mim?»

E Michael, como Sebastian, agarrara-me nos braços dele, gritandoapaixonadamente:

– «Quero, senhora!»– Façam de conta que não estou cá! –

exclamou Jude e depois pousou otabuleiro de copos na mesa de tal forma

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que um tombou e partiu-se e depois saiubatendo com a porta da cozinha.

Michael lançou-me um olharentendido e eu lancei-lhe a luva decozinha. Está bem, admito que Judeestava com ciúmes, mas isso não querdizer que pretenda fazer qualqueravanço sobre mim e – agora que tenhoquase a certeza que ele é meu primo –ainda bem!

Nessa noite, confortavelmenterecostada na cama e a folhear o últimodos diários da avó para encontrar ondeficara, uma minúscula fotografia a pretoe branco voou para cima do edredão.

Era inegavelmente Ned Martland –

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conhecia agora tão bem aquelas feiçõespor causa do álbum de família. Porém,tinha ali um ar muito jovem e garboso eestava de pé junto a uma motorizada. Noverso, ele escrevera: «Todo o meu amor,o teu Ned.»

Obviamente, não lhe pareceraadequado mencionar que ela apenasteria todo o amor dele temporariamente.

Encostei a fotografia ao despertadorpara a examinar melhor, tentandodecifrar o caráter dele a partir dasfeições. E foi assim que adormeci emergulhei numa confusão de sonhos emque Jude estava a soldar um pedaço deuma velha motorizada e vestia poucomais que a máscara de soldar...

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Foi bastante perturbador, só vos digo,e acordei toda transpirada.

16 Alegoria cristã do escritor e pregador batistareformado inglês John Bunyan (1628-1688) econsiderada uma das mais importantes obras daliteratura religiosa britânica. (N. da T.)

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Capítulo 34

Ligeiro Degelo

Mr. Bowman disse que, nãotivera Tom perdido a vida naguerra, estaria por esta alturacasado e teria constituídofamília, e que sentia que Tomhaveria de querer que ele meajudasse. Só lhe ocorria umaforma de o fazer, e era dar-me aproteção do seu nome, por issopediu-me de imediato em

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casamento. É a pessoa maisamável e generosa do mundo e,uma vez que também eu não viaalternativa, aceitei com toda agratidão.

Junho de 1945

Jude voltou a descer bem cedo no diaseguinte, ainda irritado e taciturno, e aminha incapacidade de o olhar nos olhosdepois dos sonhos quentes que tiveraprovavelmente também não ajudou.

Depois voltou a desaparecer no pisode cima assim que voltou de tratar doscavalos com Becca, por isso não tiveninguém que me estendesse chávenas dechá enquanto trabalhava ou me ajudasse

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a cozinhar o pequeno-almoço ao mesmotempo que trocava comentárioscomigo... e, de alguma maneira, sentitambém falta dos silêncios partilhados.Curioso a velocidade com que noshabituamos a uma coisa... ou a alguém.

Ao atravessar a cozinha, Beccaperguntou-me se nos tínhamos zangado.

– Não sei que bicho mordeu nesterapaz esta manhã!

– Que eu saiba não, embora mal tenhafalado comigo desde a noite passada –disse-lhe, embora não tenhaacrescentado que achava que talvez eletivesse interpretado mal o facto de meter encontrado nos braços de Michael denovo, uma vez que tal talvez conduzisse

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a muitas outras perguntas sobre as quaiseu nem queria pensar.

Quando voltou a descer, já toda agente, à exceção de Tilda, estava atomar o pequeno-almoço e mesmo entãonão se sentou, limitando-se a fazer umasanduíche de bacon que embrulhou empapel de alumínio para levar com ele.

– Hoje não precisarei de si –informou-me, curto e grosso.

– Então, posso eu ir, tio Jude? –perguntou Jess num tom ansioso.

– Não – respondeu ele e virou costas,e Merlin, para variar, seguiu-o, emboraà porta me tenha lançado um olharincomodado. Talvez se estivesse areligar ao seu dono?

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– Detesto o tio Jude! – disse Jessamargamente.

– Pensei que era a mim quedetestavas, Mini-Morticia? – referiuGuy.

– Só quando me chamas Mini-Morticia, Tio Guy – respondeu ela, e eleencolheu-se.

– Não ligues ao teu tio Jude, pareceter acordado com os pés de fora poralgum motivo – argumentei eu. – Nem sedeve ter dado conta do que disse.Porque não começas a fazer um bonecode neve na parte da frente da casa, agoraque o degelo parece estar a começar. Éaproveitar enquanto há neve. Depois,quando eu tiver arrumado a cozinha, vou

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ajudar-te.– Suponho que podia fazê-lo – admitiu

ela meio amuada. Esperei que algunsdos outros se oferecessem para ir comela, mas Michael decidira subir aomonte para telefonar à ex-mulher, naesperança de que ela tivesse cedido naquestão de não o deixar falar com afilha, e os restantes não me parecerammuito interessados, embora Noël tenhadito que mais tarde iria dar uma vista deolhos para ver como estava a ficar.

Porém, quando ao fim de cerca devinte minutos fui ter com ela, não a viem parte nenhuma, e não havia qualquersinal de atividade para além de uma páespetada num pedaço de neve virgem e

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um trilho de pegadas que conduziam aocaminho.

As botas e casaco dela não estavamno bengaleiro, por isso fui procurá-laprimeiro ao pátio e ao cercado e depoisdentro de casa, mas sem sucesso.Michael regressara entretanto e estavacom Guy na biblioteca a jogaremsnooker, mas, quando lhes perguntei,disseram-me que não a tinham visto.

– Esqueci-me por completo de ir vercomo corria o boneco de neve –confessou Noël num tom culpado quandofui à sala de estar relatar odesaparecimento dela.

– Aposto que foi até ao estúdioimportunar o Jude até ele a deixar

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brincar com a pasta de moldar, ou assim– sugeriu Becca.

– Oh, sim, deve ser isso – concordouNoël –, embora, é claro, ela nos devesseter vindo dizer primeiro onde ia.

– Mas depois nós tê-la-íamosimpedido de ir perturbar o Jude –realçou Tilda. – Bem sabes que, quandoestá imerso numa escultura, fica comoum urso irritado.

– Não é só nessas ocasiões –acrescentou Coco. Estava sentada frenteao puzzle, por isso presumo que játivesse encatrafiado mais algumas peçasà força no sítio errado. Depoisabandonou a sala, provavelmente paraengolir mais uns quantos laxantes do

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fundo da mala de mão ou para ir fumarum cigarro às escondidas no quarto, coma janela aberta.

– Aquela rapariga é um desperdíciode espaço – comentou Becca e depoisacrescentou que alguém devia ir até aoestúdio e trazer Jess de volta. – Mas nãoolhem para mim. Acho que comidemasiado e quero dormitar um poucofrente à televisão. Vai dar de novo ofilme Natal Branco.

– Ai sim? Sou capaz de me juntar a ti– disse Noël.

– E eu também, se a Holly nãoprecisar de mim – concordou Tilda,embora nem me passasse pela cabeçapedir-lhe que descesse o caminho nos

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seus chinelinhos de veludo, penas demarabu e salto alto para ir procurarJess.

– Eu vou até lá e trago-a. E aproveitoe telefono à minha amiga.

– Oh, ótimo! Diga à Jess que foi muitoteimosa e traga-a imediatamente de volta– disse Tilda.

Caminhei pela neve na berma docaminho, definitivamente menosestaladiça que no dia anterior. E tambémnão parecia tão profunda, por isso talvezestivesse a começar a ceder de baixopara cima.

Era mais do que possível que Judetivesse mandado Jess de volta para casa,

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por isso ia à espera de a encontrar asubir amuadamente o caminho,arrastando as botas. E decidira que nãonecessitava de telefonar a Laura denovo, pois não acontecera mais nadadesde o dia anterior que valesse a penarelatar para além do aparente ataque deciúmes de Jude.

Ocorreu-me que já não tinha maisninguém no mundo a não ser Laura quese preocupasse genuinamente comigo.Não tinha mais família ou outros amigoschegados. É certo que havia um círculode pessoas que conhecia desde ostempos de escola e que se reuniaocasionalmente, incluindo Laura e aminha chefe, Ellen, mas não era nem de

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longe a mesma coisa...A família de Laura era sempre

amável, mas afastara-me demasiadodeles depois da morte de Alan e agora aponte tornou-se intransponível.Chorámos a morte dele de formasdiferentes: eles celebraram a vida dele eeu fiz de conta que nunca acontecera.Porém, eu mudara tanto nas últimas duassemanas...

E ali em Old Place estava de repenterodeada por familiares há muitoperdidos, muito embora nenhum delessequer sonhasse os laços que nosligavam e provavelmente ficassemaltamente envergonhados se soubessem!Jude acreditaria de imediato no pior,

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que eu queria deitar as mãos a umaherança, e que tivera razão desde oinício em desconfiar de mim!

Ainda assim, uma vez que não faziatenções de lhes contar, também não tinhaimportância.

Continuava a não haver sinais de Jessquando me desviei do caminho para otrilho por entre a mata de pinheiros, porisso pensei que Jude teria acabado porceder e permitido que ela ficasse.Porém, quando os pinheiros abrirampara as margens do ribeiro por baixo doestúdio, avistei de repente a figura negradela mesmo no meio da represacongelada, batendo com um dos pés paratestar o gelo.

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Fez um som estranho, agudo e canoroe o meu sangue gelou-me nas veias.Corri para a margem, gritandourgentemente:

– Jess! Jess! Para com isso e volta jápara aqui!

Ela virou-se um pouco, sobressaltadapela minha voz e seguiu-se um terrívelestampido de algo a quebrar-se e umapequena explosão e ela caiu à água comum grito. Por um agoniante momento,desapareceu por completo... e depois acabeça dela apareceu à superfície e elachafurdava no meio dos pedaços de geloque flutuavam na água negra e gélida.

Nem parei para pensar. Corri deimediato para a represa gelada e deitei-

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me de barriga para baixo, esticando osbraços para ela. Consegui primeiroagarrar uma das pequenas mãos friasdela, e depois a outra, encharcando-meaté aos ombros.

– Está tudo b-bem – disse ela a bateros dentes e com a cara branco-azulada–, eu s-sei na-na-dar.

Mas quanto tempo duraria na águaàquela temperatura? E o gelo por baixode mim começava a rachar-se também eeu não sabia se era capaz de deslizarpara trás e puxá-la comigo ao mesmotempo, e certamente que não iria largá-la.

Parecia, portanto, que em breve mejuntaria a ela – embora nesse caso talvez

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conseguisse empurrá-la para cima dogelo para que fosse chamar ajuda –quando ouvi a porta do estúdio bater e avoz grave de Jude exclamando:

– Mas que raio!Talvez os meus gritos tivessem

alertado Merlin, pois ouvia os latidosabafados dele.

– Acho que o gelo por baixo de mimse está a partir – disse com toda a calmaque consegui. – Mas, se isso acontecer,eu tenho um plano para tirar a Jess e oJude pode ir chamar alguém.

– Tenho um plano melhor: conseguemantê-la agarrada se eu vos puxar aambas para fora?

– Sim, consigo, se for rápido. Já tenho

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as mãos a ficarem entorpecidas.Ele foi rapidíssimo: senti os

tornozelos serem agarrados com umaforça de ferro e, com um forte puxão,estava a deslizar pelo gelo como umamorsa em marcha atrás, trazendo o pesoencharcado de Jess comigo.

– Oh, meu Deus, Holly, podia ter-vosperdido às duas – disse ele, apertando-me num abraço sufocante assim que noscolocou em segurança, e depoissentando-me rapidamente na neve efazendo o mesmo a Jess. Disse-lhe entãocom um ar carrancudo: – Jess, sabesmuito bem que não deves brincar junto àágua sozinha, quanto mais no gelo!

– Tu esta-estavas aqui, não es-ta-esta-

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va sozinha – argumentou ela a bater osdentes.

– Mas eu não sabia onde tu estavas e aHolly não sabia a profundidade da águaquando veio salvar-te – fez ele notar,descalçando-lhe as botas de borracha edespejando a água. – Podias ter morridocongelada. E se eu não vos tivesseouvido ou a Holly não tivesse chegadonaquele momento? Quanto tempo achasque terias durado?

– Tu aca-ba-ba-vas por ouvir os me-meus gri-gri-tos – disse Jess. – Ou ta-tal-vez eu tive-vesse conse-gui-gui-dotrepar de novo para o gelo.

– Pouco provável. E não tardava a quea Holly estivesse dentro de água

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também, a congelar.– Isso agora não interessa. Ela não

tarda apanha uma pneumonia, secontinuar aqui sentada, encharcada atéaos ossos – fiz notar.

– Também está bastante molhada egelada – disse ele, franzindo a testa. –Vou só desligar umas coisas ali noestúdio e buscar o Merlin e depoisteremos de correr para casa. Não háoutra solução.

– Correr? – repeti, incrédula, poiscomeçava a sentir-me entorpecida etrémula.

– Sempre aquecem – argumentou ele edesapareceu dentro do estúdio eregressou um minuto depois com

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Merlin, que nos lambeu a cara com alíngua quente numa demonstração dealívio.

Jude voltou a enfiar as botas nos pésde Jess, colocou-nos a ambas de pé eimpeliu-nos à força rumo a casa numacorrida desajeitada e trôpega,escorregando e deslizando na neve. Só oamplexo firme dele nas nossas ancas nosmantinha de pé.

Presumo que teríamos um ar bastantecómico, embora eu não achasse graçanenhuma.

Por sorte, Becca viu-nos chegar pelajanela da saleta e deduziu que algo sepassara. Ocupou-se eficazmente de Jess,

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tratando de a meter na banheira.– E a Holly também – disse-me Jude,

tirando-me as botas e o anoraque nacozinha como se eu fosse uma criançapequena... que era na verdade como mesentia.

– Oh, eu estou bem – protestei,embora tremesse de frio e choque. – Vousó mudar de roupa.

– Isso é que não vai. Primeiro tomaum banho quente e eu vou já pôr-lhe aágua a correr – insistiu ele. – Venha,pode despir o resto da roupa enquantoeu trato do banho.

Tinha os dedos tão gelados que tivedificuldades a despir as calças de gangae, quando entrei na água quente, senti um

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formigueiro agonizante à medida que acirculação se restabelecia.

Depois, sentia o corpo pesado e semenergia, embora a minha cabeçafervilhasse de pensamentos dolorosos: aexperiência perturbara-me sob muitosaspetos. Não só Jess e eu poderíamoster morrido – embora eu estivesse aindaconvencida de que teria sido capaz desalvar Jess, caso tivesse caído à água –,como trouxera de volta todo o trauma damorte de Alan.

Porém, não podia ficar ali parasempre e Jude deve ter ouvido a águaser despejada, pois havia uma chávenade chá quente e doce, temperado comuísque, na minha mesa de cabeceira

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quando emergi... mesmo ao lado da fotode Ned que encostara ao despertador,embora, uma vez que parecia tertombado de face para baixo, houvesse apossibilidade de ele não a ter visto.

O chá era horrível, mas bebi-o àmesma, não fora ele querer verificar, oque não me admiraria nada. Comecei asentir o uísque aquecer-me por dentro.

Quanto desci por fim à cozinha, numadas minhas camisolas compridas econfortáveis e calças de ganga secas,Jude estava lá à minha espera com maischá, insistindo para que me sentassejunto do Aga.

– Mas sem seis colheres de açúcar ouuísque! – protestei.

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– O açúcar faz bem ao choque eestava preocupado que tivesse sofridoalgum dano duradouro... mas talvez nãodevesse ter acrescentado o uísque? –concluiu ele, soando preocupado.

– Não, penso que, de certa forma, meterá feito bem.

– Que foi? – perguntou ele, virando-secom a caneca na mão e olhando-me comatenção. – Não está a sentir-se doente,pois não?

– Não, estou bem. Não é isso... É queo meu marido, o Alan... foi assim quemorreu... Correu para um lago geladopara salvar um cão e o gelo partiu-se eele caiu à água... Só que o lago eraprofundo e ele não nadava muito bem,

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por isso morreu e... Bom, só agora medei conta de que ele não pôde evitá-lo! –As palavras saíam-me da boca numatorrente imparável e os olhosmarejaram-se de lágrimas, cegando-me.– Passei todos estes anos zangada comele, achando-o um palerma por me terdeixado sozinha daquela forma só parasalvar um cão... Mas eu teria feitoexatamente o mesmo pelo Merlin, oupor qualquer outro ser vivo, quanto maispela Jess!

E as lágrimas irromperam semcontrolo e Jude pousou a caneca epuxou-me para o seu quente,reconfortante e largo peito numenvolvente abraço, afagando-me as

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costas com a sua enorme esurpreendentemente afável mão enquantoeu chorava.

– Ele não teve escolha, não pôdeevitá-lo! – solucei para o ombro dele deuma forma lamentosa. – Não pôde evitá-lo!

– Não, a descarga de adrenalina e osinstintos tomaram conta dele no impulsodo momento, tal como aconteceuconsigo... e ainda bem que estava lá,pois eu podia não ter ouvido a Jess eacho que ela não teria conseguido sairda represa sozinha. Era a morte dela. Ea Holly arriscou a sua vida para asalvar, por isso, eu podia ter-vosperdido a ambas.

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Podia ter feito notar que nunca foradele para que me pudesse perder, masestava demasiado abananada e anecessitar de consolo. Tirei o lenço dobolso, sequei os olhos e limpei o nariz.

– Já se sente melhor? – perguntou elee, quando levantei os olhos para lheresponder, aquele fugaz e maravilhososorriso dele apareceu de repente...

Então, não sei bem como, os meusbraços estavam à volta do pescoço delee estávamos a beijar-nos como se nãofôssemos nunca parar... Até quesubitamente ele descolou os lábios dosmeus e segurou-me à distância de umbraço.

– Lamento muito, Holly! Não deveria

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ter-me aproveitado de si, assim emchoque... mas fui apanhado de surpresatambém. Não era minha intenção beijá-la.

– Não faz mal, está tudo bem. Esqueçao sucedido – disse tremulamente,recordando todas as razões por queaquele beijo tão arrebatado não deveriater acontecido entre nós. – Penso quedeve ter sido do uísque... Não estouhabituada a beber.

– Terá sido mesmo só do uísque?Fiquei com a sensação de que queriabeijar-me tanto quanto eu a queria beijara si – argumentou ele e os nossos olhos,afastados meros centímetros, cruzaram-se e olhámo-nos fixamente durante um

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longo momento.Fui a primeira a desviar o olhar.– Talvez... mas foi apenas uma coisa

física.– A sério, Holly? – inquiriu ele em

voz baixa. – Penso que precisamos defalar quando estiver a sentir-se melhor...Mas, primeiro, há uma coisa que precisomesmo de lhe perguntar agora... –começou ele.

Mas fosse o que fosse, teria deesperar, porque nesse momento Beccaenfiou a cabeça na porta para nos dizerque a Jess parecia não ter sofrido danosdo mergulho no gelo e estavaembrulhada num cobertor frente à lareirada sala de estar com a Tilda, a ler um

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livro.– Já se sente melhor – perguntou-me

ela amavelmente. – O Jude está a cuidarde si?

– Sim, estou ótima, obrigada –respondi, embora soubesse que os meusolhos estariam todos encarnados, umexcelente indício de que nem tudo estavabem. – É melhor ir tratar do almoço,pois devem estar todos esfomeados.

– Eu trato disso – declarou Jude.– Não é necessário, obrigada; eu dou

conta do recado.– Então, dê-me o recado a mim. Senta-

se ao lado do Aga e comanda-me... jeitonão lhe falta.

– Diz o roto ao nu – devolvi e ele

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sorriu.– Estou a ver que já está a sentir-se

como nova!Cedi e sentei-me, pois por esta altura

o uísque parecia já me ter descido àspernas.

– Tinha pensado fazer sanduíches depasta de anchovas acompanhadas desopa e seguido de barrinhas demincemeat ou das últimas mince pies.Tirei-as do congelador de manhã.

– Penso que até eu consigo fazer isso.E a verdade é que não sou um cozinheiroassim tão imprestável, pense o quepensar.

– Não se esqueça de que eu vi a suacoleção de refeições prontas no

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congelador.Estávamos a ser surpreendentemente

bem-dispostos na nossa troca degalhardetes agora que o embaraço de umbeijo que nos apanhara a ambosdesprevenidos parecia ter-sedesvanecido. Porém, emborapudéssemos ter reconhecido uma atraçãofísica mútua, suponho que ele estariaentretanto a recordar-se de todas asrazões por que levá-la adiante seria umapéssima ideia. Eu estava a fazer omesmo.

Interroguei-me o que raio ele seprepararia para me perguntar quandoBecca entrara na cozinha: talvez se eunão seria uma pretendente secreta ao

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trono de Old Place?

Ao final da tarde já me sentia bem einsisti em cozinhar o jantar eu mesma,embora Michael e Jude, numa aliançaligeiramente circunspecta, tenhaminsistido em ser meus assistentes. Tildae Jess fizeram mais um ouriço comqueijo e cebolas de cocktail em palitos.

Pelo menos, Jess e eu fomosdispensadas do último ensaio da peça epudemos recostar-nos no sofá aobservar os outros, até sermosmandadas para a cama com botijas deágua quente por Jude. Quando protesteique ainda tinha coisas para fazer nacozinha, ele argumentou que não havia

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nada lá que não pudesse esperar até aodia seguinte de manhã e que eraperfeitamente capaz de arrumar o quehouvesse para arrumar e trancar tudo,realçando que conseguira sobrevivermuito bem sozinho antes da minhachegada; portanto, fui obrigada a ceder.

Todo o serão me lançara olharesperscrutadores, mas uma vez que nãoeram muito diferentes daqueles com queme presenteava quando me estava adesenhar, achei que estaria talvez aavaliar-me para mais uma escultura:tendo em conta a experiência matutina,talvez uma pequena sereia.

Não foi frete nenhum ir deitar-me, naverdade, pois começava a sentir-me

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exausta e estranhamente tonta, emboracalma – a experiência no gelo revelara-se muito catártica, pensando bem.

Agora que aceitara que Alan nãopudera controlar as ações que haviamconduzido à morte dele, podiafinalmente perdoá-lo, libertando-me daraiva que me oprimira ao longo dosúltimos oito anos e permitindo-merecordá-lo muito simplesmente comamor.

E a minha avó? Segundo o diário,parecia estar determinada a fazer algomuito semelhante:

Ontem fiz as malas e abandoneio meu quarto sem espalhafato e

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casei-me nessa mesma tarde porlicença especial, sendo ocasamento celebrado por umamigo do meu marido numa vilavizinha. Tudo aquilo me pareceuum sonho estranho, mastenciono agora expulsar daminha cabeça todas asrecordações do que aconteceuanteriormente e tornar-me amelhor esposa possível paraJoseph, muito embora a nossarelação nunca venha a ser maisdo que a de amigos queridos.

Junho de 1945

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Capítulo 35

Ação

Esta manhã, o Joseph colocou-me um jornal na mão, apontandopara a notícia da morte do meuamante num acidente demotorizada. Depois deixou-mesozinha. Mais tarde, rezámosjuntos por N. Lamento tantopela família dele e pela noiva,caso ela o amasseverdadeiramente. Esse capítulo

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da minha vida está agoraterminado... à exceção dacriança que trago dentro demim.

Junho de 1945

Jude desceu cedo e mais uma vezdispôs-se a ajudar-me com o pequeno-almoço. Havia ainda algum embaraçoentre nós dois, no meu caso em largamedida porque o ardente beijo forapresença constante nos meus sonhosnaquela noite. Sabia que ele estava apensar nisso também: os nossos olharesnão paravam de se cruzar e depoisdesviávamo-los ambos de imediato.

Sentia-me perfeitamente bem, sem

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quaisquer efeitos secundáriosperniciosos, e isso mesmo lhe assevereiquando ele mo perguntou, a questãoacompanhada de um dos seusinquisidores olhares.

Estava satisfeita por sermosaparentemente amigos de novo e eleparecia até bem-disposto –provavelmente pelo alívio de eu não terlevado o beijo demasiado a sério!

Acatou mesmo a sugestão de Coco derevermos as nossas cenas rapidamentedepois do pequeno-almoço e, antes deele partir para o estúdio, uma vez queera véspera de Ano Novo – algo que,com tudo o resto que estava a acontecer,eu conseguira esquecer por completo! –

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e que a peça seria levada a palco nofinal do dia, frente ao resto da família eao público convidado: Old Nan eRichard.

Desempenhámos os nossos papéiscom seriedade, nada de zombaria ebrincadeira desta vez, e depois Jude foitrabalhar, ordenando-me que lhe levasseo almoço ao estúdio mais tarde.Portanto, estávamos de regresso ànormalidade, ou ao que passava porisso.

– Está bem – concordei –, mas nãopoderei demorar-me muito, pois tenhodemasiadas coisas para fazer. Querotransformar o osso do presunto em sopade ervilhas com presunto para amanhã e

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pensei fazer pão rápido.– Parece-me muito bem – disse ele. –

É verdade, Guy, um de nós terá de ir àaldeia esta tarde buscar a Old Nan e oRichard.

– Eu trato disso, se quiseres –voluntariou-se ele e depois lançou-meum sorriso galanteador. – A Holly podevir comigo.

– A Holly vai estar muito ocupada acozinhar o jantar para onze pessoas –respondi sem rodeios.

– Já discutimos o menu. É tudo muitodescomplicado – referiu Tilda. – Mussede cavala fumada em tostas triangulares,a minha receita, cordeiro assado comrosmaninho e treacle tart com custard.

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– Maravilhoso – comentou Becca. –Não vou querer regressar a casa quandoas estradas ficarem transitáveis. Talvezpudesse pedir ao Richard que rezassepor mais neve!

Merlin ficara comigo esta manhã, masacompanhou-me ao estúdio quando fuilevar o almoço a Jude.

Estava a soldar, totalmente absorto notrabalho, por isso coloquei os óculosprotetores e sentei-me no lugar habitualno estrado a vê-lo trabalhar, até que porfim desligou o maçarico.

– Está a compor-se, não lhe parece? –perguntou ele, examinando o seutrabalho com um olhar crítico. O que

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começara por parecer-se com umconjunto de folhas de metal unidas,alongara-se já e contorcera-se, dandolugar às formas interligadas de umcavalo e uma mulher. Estava a ficar umpouco como uma das maquetas que elefizera, portanto, dava para ver mais oumenos para onde tudo aquilo seencaminhava.

– Sim, e acredito agora que lhepaguem bom dinheiro pelas suasesculturas – zombei e ele sorriu.

– É muito boa a depreciar as minhasqualidades e pretensões, mas fiquesabendo que o meu trabalho tem grandeprocura! «Uns nascem grandes, outrosalcançam a grandeza e outros veem a

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grandeza ser-lhes impelida à força.»– Isso é da peça? Não me lembro

dessa fala.– De uma das cenas que não vamos

fazer – disse ele, sentando-se a meulado. Merlin saiu de onde se deitara eveio enfiar-se entre nós dois,encostando-se afetuosamente ao ombrode Jude; embora, se calhar, estivesseinteressado nas sanduíches.

Jude permaneceu em silêncio enquantocomia, a cabeça claramente no trabalho,mais do que em qualquer outra coisa,mas, depois de terminar, e quando euestava a guardar tudo de volta no cesto,disse de repente:

– Holly, precisamos de conversar

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acerca de ontem, quando eu...– Oh, esqueçamos tudo isso –

argumentei num tom animado. –Estávamos ambos atordoados e ochoque leva as pessoas a fazerem ascoisas mais estranhas. Já estou muitomelhor agora.

– Sim, mas Holly...Peguei no cesto e encaminhei-me para

a porta.– Tenho de ir, vemo-nos mais tarde.

Será um alívio ver esta maldita peçapara trás das costas!

O público da peça de véspera de AnoNovo, bem alimentado por um belojantar de cordeiro assado e um copito ou

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outro de xerez, estava preparado paraver três atores amadores e umprofissional massacrarem cenas escritaspela pena do Bardo com equanimidade.

Na verdade, teria preferido estar aassistir do que a atuar, uma vez que deveter sido de rir à gargalhada. Se nãoatente-se: eu, a maior parte do tempocom o enorme sobretudo de Jude, deviaparecer um vagabundo, Coco uma noivaesquelética de Frankenstein, e Jude,conformado mas incapaz de resisitir auma ligeira paródia das suas falas, noseu manto de veludo azul e bigodeimaginário.

Michael desempenhou a sua parte deforma séria, mas não sobressaiu,

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provavelmente para impedir que osrestantes de nós fizessem uma figuraainda pior: mas, se assim foi, nãoresultou, em especial nas partes quedependiam do facto de Sebastian e Violaparecerem idênticos: «De uma maçã,partida ao meio, não se assemelhammais as metades do que estas duascriaturas: qual de vós é Sebastian?»

Era impossível encontrar duaspessoas mais diferentes do que Michaele eu, por isso, quem podia censurar agargalhada que se ouviu do canto da salaonde Guy estava sentado?

Contudo, o resto da plateia aplaudiucada cena entusiasticamente, se bem quetal talvez se devesse ao xerez.

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Michael disse as suas linhas finaismuito bem, considerando que já tinhaentretanto Coco enamoradamenteagarrada a ele, e depois foi a vez deJude declarar o seu amor por mim, ou láo que era:

– «Vinde, Cesário, porquecontinuareis a ser Cesária enquantofordes homem.»

Na minha opinião, aquela declaraçãoé tão romântica quanto o que o príncipeCarlos dissera quando interrogado seestava apaixonado por Diana: «Sim...seja o que for que o amor signifique»,ainda que Jude tenha feito acompanharas palavras de um olhar de promessalatente. Penso que subestimei as

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capacidades de ator, bem como asartísticas.

Seguiu-se nova ronda de aplausos e aOld Nan secou os olhos com um lençocor de rosa e declarou sentimentalmenteque fora muito comovente e que adoravaum final feliz.

– E hei de tricotar-vos uma bonitamanta como presente de casamento –prometeu ela, sorrindo de orelha aorelha para mim e para Jude.

– Nós não vamos casar, Nan, aquiloera só uma peça – expliquei.

– Eu não sou a favor desta mania daspessoas de viverem juntas sem secasarem – declarou ela num tom severo.– Nem penses que vês a manta até dares

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o nó com esta pobre rapariga, JudeMartland!

– Está bem, Nan – disse ele. – Eu nãome esqueço disso.

– Uma peça muito interessante, não é?– comentou o vigário, permitindo queGuy lhe servisse mais um copo de xerez.– Nada é o que parece até mesmo aofinal e deve ter sido ainda mais confusonos tempos de Shakespeare, quando ospapéis femininos eram desempenhadospor rapazes.

– Pois é, portanto, um rapaz fazia derapariga que se fazia passar por rapaz!

– Isso mesmo. Tudo remonta àsfolclóricas pantomimas e a vetustosrituais pagãos e travestistas de

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fertilidade, como a personagem doHomem-Mulher dos Revels, comodepois irá ver.

– Se ainda cá estiver – fiz notar. – Ogelo parece estar lentamente a derreter-se, portanto, é possível que já tenhapartido.

– É claro que cá estará – barafustou aOld Nan com irritação, acordando derepente de uma cabeceadela a tempo deme ouvir. – Onde mais haveria de estar?

«Muito possivelmente numa elegantecasa londrina a cozinhar falafels», se aEllen conseguisse levar a dela adiante,pensei!

Pouco depois, Guy levou a Old Nan eRichard de volta a casa. Para minha

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surpresa, ninguém parecia interessadoem ficar acordado até à meia noite paraver chegar o Ano Novo, uma vez que, talcomo Noël explicou quando lheperguntei, a Noite de Reis sempre foraem Little Mumming a noite de transiçãodo velho ano para o novo e não seprevia que tal alguma vez mudasse.

Toda a gente se foi deitar, exceto Jude,que me seguiu até à cozinha onde mepreparava para lavar os copos de xerez.

Achei que ele ia deixar Merlin ir àrua e dar uma última vista de olhos aoscavalos, mas ao invés dirigiu-se a mim evirou-me pelos ombros, olhando-mefixamente como se o meu rosto fosse um

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mapa estranho que tentava ler paraencontrar um destino que não tinha acerteza de querer atingir.

– Que se passa? – perguntei, pouco àvontade.

– É aquilo que o Richard estava adizer: porque você também não érealmente quem afirma ser, não é,Holly?

– Como assim? É claro que sou HollyBrown! – defendi-me.

– Oh, tenho a certeza que é esse o seunome, mas praticamente desde oprimeiro momento em que lhe pus osolhos em cima que suspeitei que eraaparentada connosco, provavelmente deforma ilegítima. Tendo em conta o

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caráter do meu tio Ned e a forma comotentou conduzir a conversa para ele acada oportunidade, ele pareceu-me ocandidato mais provável. Depois,quando vi aquela fotografia dele na suamesa de cabeceira, as peçasencaixaram-se e dei-me conta de que asua avó deve ter sido a...

– «Rapariguinha operária» de que oNoël nos falou, a que Ned engravidou? –terminei amargamente. – Sim, era, mas aminha avó não era uma operária, eraenfermeira.

– Lamento muito – desculpou-se ele,embora a culpa não fosse minimamentedele. – Que sucedeu com ela?

– Está tudo nos diários dela, os que

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ando a ler desde que aqui cheguei: Nedseduziu-a e depois, quando ela ficougrávida, abandonou-a e correu paracasa. A minha avó descobriu que durantetodo esse tempo ele estiveracomprometido com outra rapariga –contei. – E depois os pais delarenegaram-na e ela ficou tãodesesperada que até pensou em suicidar-se.

– Oh, meu Deus, isso é terrível! –exclamou ele.

– Sim, mas entretanto o pastor daigreja batista estranha localcompadeceu-se dela e desposou-a... omeu avô.

Perturbado, Jude passou a mão pelo

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cabelo escuro, deixando-o no ar.– Não fazia ideia! Não dá nada boa

imagem do meu tio Ned... ou sequer daminha família, não é?

– Não, ninguém pareceu preocupar-secom o que sucedera à minha avó.

– Ela alguma vez soube que elemorrera?

– Sim, mas apenas porque viu anotícia no jornal local. Deve ter sidouma forma horrível de descobrir.

– Então, a minha família não quismesmo saber dela ou do bebé, nuncaofereceu qualquer apoio financeiro oude outro tipo qualquer? Acho isso tãodifícil de acreditar!

– Até onde cheguei na leitura do

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diário, ela não teve quaisquer notíciasdele. E, seja como for, ela também nãohaveria de querer o dinheiro deles,ainda que não tivesse casado com o meuavô. E, se acha que vim para aqui naesperança de cair nas boas graças dafamília para conseguir algum tipo delucro financeiro, está muito enganado! –acrescentei num tom indignado.

– Esse pensamento passou-me pelacabeça a princípio – admitiu ele –, masnão durante muito tempo. Quero dizer, amaior parte do tempo parecia embirrarconnosco, em especial com o Guy, alturaem que percebi que era suposto eleparecer-se com Ned e comecei a juntardois mais dois.

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– Acredite ou não, eu não fazia amínima ideia de que éramos parentes atéter começado a ler os diários da minhaavó.

– Então, nunca antes tinha ouvidosequer falar dos Martland?

– Só umas duas semanas antes de virpara cá. – Contei-lhe o episódio dasúltimas palavras da minha avó. – Depoisa Ellen disse-me o nome da família paraa qual queria que eu viesse trabalharcomo house-sitter e achei que eraapenas uma daquelas estranhascoincidências: que probabilidades haviade que estes Martland fossem osmesmos com que a minha avó se cruzaradurante a guerra? Na verdade, o que eu

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esperava era que o amor perdido davida dela tivesse sido um dos médicosdo hospital!

– Percebo porque se sente amarga emrelação ao sucedido, mas o meu tio Nedsempre me pareceu mais uma pessoafraca do que propriamente má, portanto,talvez se não tivesse morrido noacidente, tivesse assumido asresponsabilidades dele – aventou Jude.

– Não me parece e a minha avótambém achava que não. Caso contrário,não se teria sentido tão abandonada aponto de pensar em suicidar-se.

– Bom, graças a Deus que não o fez –comentou ele e depois acrescentou,franzindo a testa: – E suponho que isto

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faz de nós primos em algum grau,embora não em primeiro, e ainda bem...

Ainda com as mãos nos meus ombros,cravou-me os dedos na carne e, ao ver aintenção dele, disse apressadamente:

– Demasiado aparentados para beijos.– Ora, mas o parentesco é afastado –

argumentou ele, erguendo umasobrancelha e lançando-me aquelesorriso de cortar a respiração.

– Não é assim tanto, ainda que o quenos ligue seja um laço ilegítimo... E,seja como for, não pretendo seguir omesmo caminho da minha avó,apaixonando-me por um Martland!

– Mas eu não sou nem de longeparecido com o meu tio Ned! – referiu

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ele com um ar ligeiramente magoado. –E não me parece que o laço familiar quenos une seja assim tão próximo quetenha qualquer importância, só a que lhequisermos dar.

– Olhe, pode haver alguma atraçãofísica entre nós, mas o Jude não faz omeu género e eu sem dúvida que tambémnão faço o seu, por isso, o parentescoque partilhamos nunca irá constituir umproblema. E ninguém precisa de saberacerca disto: daqui a uns dias terei idoembora e será como se nunca aquitivesse estado.

– Precisam, sim. O Noël precisa desaber – declarou ele teimosamente. –Vai ficar encantado, tal como a Tilda e a

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Becca, já para não falar da Jess, poistêm muita estima por si. Penso que nãoconseguirá escapar-nos tão facilmentedepois disso.

– Não vai mesmo dizer-lhe!– Espere e verá! – afirmou ele e

depois olhou-me pensativamente eperguntou-me em meia voz: – Há maisalguma coisa que quisesse dizer-me,Holly... em confidência?

– Não, nada de nada! – exclameizangada e ele fez um ar estranhamentedesapontado.

Mas que mais estaria ele à espera queeu confessasse? Que era a herdeiraperdida dos Romanov, talvez?

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Fugi para a cama depois disso, ondetentei distrair-me do sucedido nacozinha lendo um pouco mais do diárioda avó, embora não estivesse à esperade mais revelações: já sabia o resultado.

A avó parecia ter abraçadoestoicamente o papel de mulher depastor e se na congregação surgiu algumfalatório acerca do súbito casamento eda diferença de idades parecem tê-loaceitado.

Estava a começar a adormecer noutralonga passagem acerca da imerecidasorte da avó e da misericórdia de Deus,quando ouvi um grito vindo do quarto aolado, o de Michael, seguido de algo acair e a partir-se e de um grito mais

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feminino e exclamações.Saltei da cama e corri para o patamar

e detive-me com a mão na maçaneta doquarto dele, interrogando-me de repentese não iria interromper algo que nãodevia!

Jude, que estava mais perto, chegouvindo da direção oposta e percebi pelaexpressão dele que ficara com a mesmaideia, e que achava que eu estava a sairdo quarto de Michael, não a entrar!

– Desculpe – apressou-se ele a dizer.– Pareceu-me ouvir um grito.

– E ouviu, mas não fui eu.A porta do quarto de Michael abriu-se

de par em par e Coco emergiu de lá,agarrando as abas quase transparentes

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do négligé à frente dela.– Esquece! – exclamou ela

rancorosamente por cima do ombro.– Coco? – ouvi Michael dizer antes de

ela fechar com estrondo a porta atrásdela, cortando-lhe a palavra.

– Que foi? – perguntou ela, vendo-nosa ambos. – Eu estava sonâmbula, estábem? – E passou de raspão por Jude edesapareceu.

Ele lançou-me mais um dos seusenigmáticos olhares e seguiu-a.

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Capítulo 36

Lúcio

Joseph pediu para sertransferido para uma capeladiferente, uma vez que Ormskirkcontinha agora demasiadasmemórias tristes. Por outrolado, seria uma oportunidadepara começarmos de novo. Ameu pedido, anda a ler-me ThePilgrim’s Progress ao serãoenquanto eu tricoto ou costuro,

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para que assim a minha cabeça,coração e mãos estejamocupados.

Junho de 1945

Quando Jude desceu esta manhã, nãomencionou o episódio de ontem comCoco – e eu tão-pouco. Esperavatambém que, em retrospetiva, eleresolvesse manter a sua descobertasobre quem eu era em segredo.

Quando voltou dos estábulos, euestava a fazer um recheio para o lúcio,seguindo uma receita inglesa antiga queencontrara num dos meus livros. Nuncaantes cozinhara lúcio, mas guarda o quenão presta e terás o que precisas. Já não

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tinha carne de salsicha para o recheio,mas descongelara algumas dasexcelentes salsichas de porco e retirara-lhes a pele, o que serviria na perfeição.

Jude devia vir quente da atividade delimpar duas cocheiras, pois assim quechegou à cozinha despiu a camisola e aT-shirt que estava por baixo veioagarrada... Eu estava ainda a olhá-lofixamente, hipnotizada pela firmemusculatura das largas costas dele,quando ele se virou e me surpreendeu.

– O degelo parece ter-se instalado devez – apressei-me a dizer, concentrandode novo a minha atenção no que estava afazer, se bem que, quando arrisquei novovislumbre, ele me estivesse a olhar com

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aquela expressão atenta e séria e com atesta franzida – o ar de suspeita que jáse devia ter dissipado agora que sabia averdade.

– Holly, espero que se recorde do quelhe disse a noite passada: se quiser falarcom alguém, pode confiar em mim.

– Mmm... – devolvi, perplexa.Confidenciar o quê ao certo? Ele jáconhecia todos os meus segredos, atéque tinha uma atração física por ele!

– Que raio é isso que está a rechear? –perguntou-me num tom totalmentediferente.

– É um lúcio que a Becca pescou oano passado e enfiou no fundo da arca.Sou uma firme crente de que, quando

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matamos um ser vivo, então devemoscomê-lo. Portanto, é o que vamos fazer.

– Eu nem sequer sabia que isso estavalá!

– Isso é porque apenas mexe nasrefeições de conveniência que tem nacamada superior.

– Tem razão. A propósito, hoje venhoalmoçar – anunciou ele, o que foi umasurpresa. Talvez estivesse menosinspirado.

Depois do pequeno-almoço, voltámosa sair com os trenós – Guy, Jess eMichael –, pois, como Jess fez notar, embreve desapareceria. E tinha razão.Estava a ceder mais depressa que um

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exuberante suflê vítima da sua própriapresunção.

Coco descera tarde, meio calada eamuada, o que atribuí a uma combinaçãode tédio pós-atuação e o resultado doque quer que acontecera – ou nãoacontecera – entre ela e Michael nanoite anterior. Era certo que estava atratá-lo com indiferença.

Michael aproveitou um momento paradesabafar enquanto subíamos até aocimo do cercado com os trenós.

– A Coco entrou no meu quarto a noitepassada!

– Eu sei. E o Jude também. Ouvimosos gritos e corremos ao patamar. Elaafirmou que estava sonâmbula!

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– Sonâmbula uma ova! – respondeuele. – Num minuto estava a dormirprofundamente e no momento seguinteela arranca-me o edredão e salta paracima de mim, completamente nua!

– Não! – arquejei. – É muitodescaramento!

– Por isso gritei, o que é muito naturalquando alguém nos surpreende a meiodo sono, e empurrei-a para fora da camanum impulso. Ela caiu ao chão e gritou...e isso fez-me despertar e dar conta doque estava a acontecer e tentei acalmá-la.

– Acho que não resultou, Michael!– Não, em especial quando ela se

voltou a fazer a mim e eu deixei bem

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claro que não gostava dela nem umpouco – confessou ele lugubremente.

– Presumo que isso a tenha irado –concordei. – Poucos homens a teriamrejeitado!

– Talvez não... – Deteve-se e olhoupara mim. – Mas a verdade, Holly, éque... Bom, sou homossexual –confessou ele. – Foi por isso que o meucasamento terminou.

– A sério? Pois, suponho que issoconstitua de facto uma dificuldadeirreconciliável – referi, surpreendida, eele riu.

Chegáramos entretanto ao cimo docercado e eu pousei o meu trenó.

– Mas, se não leva a mal a pergunta,

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Michael, porque casou sequer?– A Debbie sabia que eu era

homossexual, pois era a minha melhoramiga e partilhávamos um apartamento...Mas depois ela mudou de repente eachou que conseguia mudar-me também.Eu queria muito uma família, por issoacho que me deixei persuadir de queresultaria, e então casámos e tivemos anossa menina. – Fez um sorriso triste. –Durante um tempo, achei que atéconseguiríamos. Mas depois elaapaixonou-se por outra pessoa, e eutambém. E não faço ideia por quemotivo lhe estou a contar tudo isto –observou ele, parecendo surpreendido. –O facto de ser gay ainda é relativamente

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um segredo.– Presumo que não terá conversado

acerca disso com mais ninguém ainda, épor isso. E é claro que não falarei distocom ninguém, mas porque tem o facto deser gay de ser um segredo?

– De uma forma geral, calham-me ospapéis de herói romântico e penso que opúblico não me levaria tão a sério sesoubesse que eu era assumidamente gay,embora tenha a certeza que muitaspessoas do ramo já perceberam. –Passou a mão pelo cabelo castanho-claro e sorriu lugubremente. – Não sei!Apenas tenho a certeza de que não estouainda preparado para sair do armário.

– Compreendo. E, seja como for, a sua

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vida privada deverá ser isso mesmo.Mas pobre Coco!

– Pobre de mim, quer a Holly dizer!– Ela está furiosa consigo, embora eu

supusesse que seria do melhor interessedela manter boas relações consigo, porcausa da carreira de atriz.

– Pois, mas ela não é muito esperta,pois não? – Suspirou. – Acho que elavai ficar realmente impossível, agoraque a peça terminou e eu a rejeitei. Mastalvez com este degelo as estradasfiquem transitáveis em breve.

– E então poderemos todos regressara casa – acrescentei com vivacidade eele lançou-me um olhar.

– Nem todos nós, parece-me, se o

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Jude tiver voto na matéria!Senti-me corar ligeiramente.– Se com isso está a insinuar que há

alguma coisa entre o Jude e eu, estámuito enganado!

– Não me parece que esteja. A formacomo vocês os dois cruzamconstantemente olhares é um indício bemclaro, já para não falar das horas quepassam sozinhos no estúdio dele, tendoele deixado bem claro que não queriaoutras visitas. Não percebo porque estãoambos em negação.

– Não diga disparates!– Estou a falar a sério! Na verdade,

acho que corro perigo iminente de levarum murro no nariz se ele me voltar a

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apanhar em algo que se assemelhe, aindaque remotamente, a uma situaçãocomprometedora consigo.

Recordei a expressão de ira de Judequando por breves instantes achara queeu vinha a sair do quarto de Michael nanoite anterior e estremeci.

– Talvez haja alguma atração físicaentre nós...

– Como a forma como o ar crepitaentre vocês dois sempre que estãojuntos? – disse ele de forma muitoprestável.

– ... mas é só isso – terminei. – Naverdade, ele disse-me mais ou menos nooutro dia que perder a mulher o fizeranão voltar a querer apaixonar-se. E eu

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sinto exatamente o mesmo. É muitodoloroso quando perdemos a pessoaamada.

– Mas vocês não descem? – chamouGuy do fundo da colina e eu sentei-meno trenó encarnado e dei um impulso tãoforte que passei a alta velocidade pelosespantados cavalos e quase embati nacerca lá em baixo.

Fizera a sopa de ervilhas e presunto eo pão rápido, e foi isso o almoço,juntamente com queijo, picles e chutney.As provisões de bens como queijo emanteiga estavam a diminuirrapidamente, portanto, ainda bem que odegelo já começara.

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Apesar de toda a minha lisonja, Cocorecusou-se a ir para a cozinha e comer,afirmando que devia ter engordadodurante o Natal devido à minha maldadee que precisava de voltar a ficar emforma para o próximo trabalho demodelo, portanto, à exceção de Michael,em redor da mesa estava apenas afamília... da qual eu faço parte, emboraparecesse que Jude achara melhor nãocontar nada aos outros.

Porém, como se tivesse lido o meupensamento, ele olhou de repente emredor da mesa e anunciou:

– Há uma coisa que eu acho que éimportante que vocês todos saibam,muito embora a Holly não queira que eu

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vos diga.– Vocês vão casar, viva! – gritou Jess

e a pele pálida dele enrubesceu-se umpouco.

– Não, não é nada disso, Jess – disseele. – Não vou começar a anunciarnoivados anualmente. Na verdade,talvez seja melhor ires para o teu quartoenquanto nós discutimos isto. É umassunto muito pessoal para Holly.

– Oh, não, eu fico calada, prometo!– Se vai mesmo contar a toda a gente,

mais vale incluir a Jess – cedi euresignadamente.

– Está bem – concordou ele. – Bom, aHolly tem andado a ler os diários da avódela e descobriu que é a neta de Ned

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Martland.– O quê, a avó da Holly é a operária

que o Ned... – começou Noël,estupefacto, e depois deteve-se derepente.

– Seduziu e abandonou, sim –concordei–, embora, na verdade, elatenha cuidado dele quando se feriu naguerra. Não era operária, masenfermeira.

– Oh, valha-nos Deus – comentouTilda, assaz inadequadamente.

– Isso é a subestimação do ano, Tilda– referiu Becca.

– Portanto, já estão a ver por quemotivo ela estava um pouco relutante emmencionar o facto e reclamar um

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parentesco com uma família como anossa – fez notar Jude.

– Não é que vos culpe pelo que NedMartland fez – apressei-me a dizer –,embora, é claro, por vezes tenhasentido...

– Não era minha intenção parecerdepreciativo em relação à sua avó –desculpou-se Noël. – E, na verdade,estou extremamente feliz por conhecê-lapor fim, minha querida! – Trocou umolhar expressivo com Tilda e continuou:– Muitas vezes disse a Tilda quedesejava ter encontrado a namorada doNed depois de ele ter morrido.

– Então, porque não o fez? – pergunteisem rodeios.

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– Bom, sabe, foi um rebuliço enormequando ele falou aos meus pais acercadela e do bebé, em especial porque naaltura estava noivo da filha de lordeLennerton, que ia dar-lhe um emprego deforma a ele iniciar uma carreira. Pareciaque Ned ia finalmente assentar e osmeus pais estavam muito satisfeitos, porisso foi um golpe ainda maior quandosouberam da existência da sua avó.

– Mas ele baixou a cabeça e fez o queeles queriam?

– Não exatamente. Não sabíamosmuito acerca desta rapariga, exceto queera oriunda da classe trabalhadora, nemsequer sabíamos o nome dela. Mas omeu irmão Alex e eu percebemos que o

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Ned se apaixonara genuinamente por elae achávamos que ele devia casar comela, e não passar-lhe dinheiro para asmãos, como os nossos pais queriam queele fizesse.

– Ele amava-a de verdade?– Oh, sim, tenho a certeza que sim,

embora só se tenha dado conta dissoquando voltou para casa e começou asentir a falta dela. Mas o Ned era umrapaz fraco, indeciso e hesitante, porisso só depois de semanas de vacilaçãose resolveu a escrever à noiva a rompero relacionamento. Depois, foi dizer àsua avó que queria casar com ela.

– É mesmo? Mas nem sequer a deveter visto, pois, caso contrário, ela tê-lo-

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ia escrito! Viu a notícia no jornal quedava conta da morte dele, mas por essaaltura já estava casada com o meu avô.

– Provavelmente, foi nessa altura quedescobriu que ela casara com outro eteve o acidente no regresso a casa.Suponho que nunca saberemos ao certoo que aconteceu. Mas depois disso,parecia não haver forma de aencontrarmos.

– Penso que todos esperámos que elaaparecesse um dia – disse Becca. – Osnossos pais ter-se-iam sentido obrigadosa sustentá-la e ao bebé, caso ela tivesseaparecido.

– Todos estes anos me senti tãoculpado por ela não ter pedido ajuda... e

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também por ter sido eu, ao convencê-loa voltar para ela, que fiz o Ned meter-seao caminho naquele dia, conduzindo àmorte dele – disse Noël num tomlamentoso.

– Mas não tinhas forma de saber que oresultado seria aquele e, pelo menos, eleestava a fazer a coisa mais acertada –fez notar Becca.

– Se ele descobrira que ela casaracom outro, talvez estivesse demasiadoperturbado para se concentrar nacondução e isso possa ter provocado aacidente – aventei, suavizando um poucoa minha opinião acerca de Ned.

– Mas ele sempre conduziu de formatemerária e demasiado depressa, não é?

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– argumentou Jude. – Sempre se disseisso.

– E este é o tio com o qual estãosempre a comparar-me! – disse Guy numtom amargo. – Fraco, vacilante...

– Na verdade, não és assim tão mau –concedeu Tilda.

– Obrigado!– Bom, mas tudo isso agora são águas

passadas – fez notar Noël. – Espero quea sua avó tenha sido feliz no casamentodela.

– O meu avô era o pai do namoradode infância dela, um pastor batistaestranho. Pouco me lembro dele, masera um homem de bom coração eamável. Toda a gente gostava dele.

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– Graças a Deus – disse Noël comsinceridade. Parecia de facto que umpeso lhe fora levantado dos ombros eTilda, ao lado dele, deu-lhe umapalmadinha na mão.

– Levas as coisas demasiado a peito,Noël.

– Obrigada por me ter contado tudoisso – disse eu. – Sinto-me muito melhorem relação a Ned agora que compreendoque ele a amou de facto, à maneira dele.E ela nunca o esqueceu, sabe? Mesmoantes de morrer, disse o nome dele esorriu e tenho a certeza que estava a vê-lo ali perto dela.

Jess, que permanecera obedientementecalada, acrescentou agora:

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– Isso faz de ti minha tia, ou assim,ainda que não cases com o tio Jude,Holly?

– Suponho que sim, mas de uma formadistante – concordei. – Mas está fora dequestão eu casar com o Jude, ainda quenão fôssemos primos.

– Mas não é invulgar as pessoascasarem com os primos, pois não? –insistiu ela, mas, por sorte, por essaaltura Noël, Becca, Tilda e até Guyhaviam-se reunido em torno de mim paracarinhosamente me darem as boas-vindas à família, a Martland perdida quevoltara a casa. Um pouco como aparábola da ovelha de estimação que aavó costumava contar-me quando eu era

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pequena.Jude foi para o estúdio e levou Jess

com ele, embora a tenha feito prometerque não se aproximaria dele enquantoestivesse a soldar. Esperava queaproveitasse para lhe tirar da cabeça aideia de nos ver casados, pois, caso eletivesse algum interesse em mim, não eraprovavelmente conjugal, mas mais dogénero de um relacionamento breve einconsequente. Deixara bem claro quenão estava à procura de nada mais... e eutambém, pensando bem.

Ainda assim, imbuída de uma súbitacompaixão pelo mundo, fiz uma omeletade claras para Coco, que tinha umaspeto horrível, e levei-lha com um

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copo de água com gás. Ela estava nasaleta, aninhada com um ar infeliz frenteà televisão, embora, devido a umainterferência, fosse difícil perceber oque estava a ver. Agradeceu-me, pasme-se, pela omeleta, embora tenha dito quea água mineral engordava.

– Ora, mime-se – argumenteiencorajadoramente, deixando-a com acomida enquanto eu regressava àcozinha para estudar as minhas receitase preparar uma sobremesa quecombinasse com a vitela engordadadesta noite – ou com o lúcio engordado,neste caso.

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Capítulo 37

Amolgadelas

Mudámo-nos para Merchester ehoje a Hilda veio visitar-nospela primeira vez e confessouque o N veio à minha procura nodia do acidente dele, com aintenção de me pedir emcasamento, mas ela e Pearldisseram-lhe que eu tinha jácasado com outra pessoa... Nãotinham querido causar-me mais

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sofrimento, mas, depois dediscutirem o assunto, acharamque era importante que eusoubesse disto.

Agosto de 1945

O caminho de acesso à casa está agoralivre de neve, ainda que continueacumulada em ambas as bermas, e logoa seguir ao pequeno-almoço ouvimosuma orquestra de buzinas e corremostodos à rua para constatar que Liam eBen haviam rebocado o carrodesportivo de Coco até à porta.

Estava visivelmente amolgado emredor do para-choques traseiro e amatrícula fora colada com fita para que

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não caísse por completo.– Oh, meu Deus! – exclamou Coco,

segurando um casaco encerado – comotombam os heróis! – e agarradoapressadamente em redor dos estreitosombros. – Meu pobre carro!

– É melhor mandar a oficina de GreatMumming dar uma vista de olhos antesde tentar conduzi-lo para Londres –aconselhou Liam.

– Sim, estes carros desportivos nãoprestam para a neve e, ainda queconseguisse chegar à autoestrada, a nevelevantada pelos outros carros tapar-lhe-ia a visibilidade – acrescentou Ben.Depois, reparou em Jess, com um artímido, e disse amavelmente: – Olá!

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Ouvimos dizer que iniciaste uma novamoda, mergulhar em buracos no gelo,como fazem os suecos!

Ela corou.– Caí lá para dentro. Achei que a

represa estava completamentecongelada, mas no meio não estava.

– Fiz o mesmo há vários anos, quandotentámos patinar na represa – admitiuBen. – Lembras-te, Liam? Fiqueiencharcado até aos ossos e fui para casacongelado.

Jess animou-se.– Então, fizeram o mesmo?– Ainda assim, ela não deveria ter ido

para o ribeiro sozinha – fez notar Jude.– Bom, presumo que ela não voltará a

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fazê-lo... Eu não voltei – referiu Ben.– Como estão as estradas? – perguntou

Jude.– Suponho que a estrada principal não

terá sido desimpedida e o meu carrodesenterrado? – inquiriu Michael numtom esperançoso. – Não é que estejacom pressa de me ir embora, mas nãoquero ser um fardo para si durante maistempo que o estritamente necessário,Jude... Tem sido muito amável.

– Eu estou com pressa – declarouCoco. – Estou desejosa, desesperadamesmo, para sair daqui!

– Vimos o limpa-neve passar naestrada de Great Mumming, mas otrânsito ainda não circula. Talvez mais

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para o final do dia – disse Liam. – Mas,seja como for, também não poderádescer até ela, porque o caminho abaixode Weasel Pot está carregado de neve.Talvez amanhã já esteja transitável, se otempo se mantiver assim.

– Eu e o meu pai fomos a pé até láabaixo hoje de manhãzinha e a partefinal de Weasel Pot Lane é um enormemonte de neve, embora esteja a derreter.Dá para ver o tejadilho encarnado doseu carro – acrescentou Benencorajadoramente para Michael –, porisso o limpa-neve não foi contra ele porengano. É coisa que acontece muitasvezes.

– Ah... ainda bem – comentou

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Michael, aliviado. – Ainda bem que nãocomprei um carro branco. E nunca maissigo as direções do GPS!

– Se os Três Reis Magos tivessemtido GPS, só Deus sabe onde teriam idoparar – concordou Noël, que ficara paratrás para se agasalhar com o seusobretudo, chapéu de caçador com abaspara as orelhas e cachecol.

– Se amanhã a neve tiver derretidomais, podemos ir até lá abaixodesenterrar o seu carro – sugeriu Guy. –Assim será ainda mais fácil de avistar.Foi empurrado para a berma, não foi?

– Sim, o Jude ajudou-me a fazê-lo,empurrámo-lo para o mais longe daestrada que pudemos, tendo em conta a

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visibilidade na altura.– Eu poderia regressar consigo a

Londres no seu carro quando as estradasforem limpas, não podia? – sugeriuCoco, batendo as falsas pestanas paraMichael, a rejeição dele obviamenteesquecida na ânsia de escapar dali. – Oreboque poderá vir buscar o meu carrodepois.

– Primeiro, vou visitar os amigos comos quais ficara de passar o Natal e,sinceramente, tinha pensado emencontrar um lugar algures nasredondezas para ficar e poder assistiraos Revels. Ouvi falar tanto dacelebração que não posso ir-me emborasem primeiro ver. Embora, é claro,

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depois não vá contar a ninguém.– É assim mesmo! – exclamou Noël.– É um de nós – concordou Becca.– E é claro que pode ficar aqui em

Old Place – disse Jude, embora nãodemasiado entusiasticamente.

Coco fazia beicinho.– Eu não quero ficar aqui para ver

danças folclóricas para as quais toda agente se está borrifando. Terás de melevar a casa, Guy, não há outra hipótese.Depois, nunca mais quero voltar a pôr-tea vista em cima.

– Eu também não me vou emboradaqui antes da Noite de Reis – fez notarGuy.

– Mas o ano passado fomos!

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– Sim, mas isso foi porque me zangueicom o Jude. Só depois do dia de Reis éque tenho de voltar ao trabalho, por issoprefiro ficar.

– Vocês são todos doidos... Eu sóquero ir para casa! – lamentou-se ela.

– Eu acho que o mínimo que podiasfazer era levar a Coco a casa, Guy –disse Jude. – Afinal de contas, a culpa étua que ela tenha ficado aqui retida e,seja como for, tu nunca participas nosRevels.

Guy ergueu uma sobrancelhainquiridora na direção do irmão.

– Estás a tentar livrar-te de mim?– Pode dizer-se que os meus dias já

foram animados pela tua companhia

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durante o tempo suficiente.– Amanhã também podíamos

desenterrar o meu carro... – sugeri.– Porquê? Não vai a lado nenhum para

já – barafustou Jude grosseiramente, edepois passou de raspão por mim emdireção a casa, reaparecendo minutosdepois, pronto para ir para o estúdio. –Espero por si depois do almoço –ordenou-me ainda de passagem.

– A Holly é a musa do Jude – explicouBecca aos rapazes, que ficaram com amesma expressão.

– E é uma prima afastada –acrescentou Noël. – Não é maravilhoso?Um membro da família.

– Toda a gente já o adivinhava – disse

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Liam.

* * *

Fui até ao estúdio como ele meordenou, mas aproveitei a viagem paratelefonar a Laura e lhe dar conta do queacontecera, em especial dos eventosmais importantes, como ter sidorevelada a toda a família como umaparente ilegítima. Contei-lhe também doacidente.

– Mas podiam ambas ter morrido! –exclamou ela, horrorizada. – Ainda bemque o Jude vos ouviu! Estás mesmobem?

– Ótima, mas depois fiquei um caco,pois dei-me conta de que o Alan não

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podia ter impedido o impulso de correrpara o lago para salvar o cão... Eu teriafeito o mesmo pelo Merlin. Bom, foi...catártico. Chorei baba e ranho no ombrode Jude Martland e mostrou-se muitoreconfortante.

– Ora aí tens, o homem tem um bomcoração!

– E depois ele beijou-me. Ou eu é queo beijei... Ele pusera demasiado uísqueno meu chá e eu estava alterada. Elepodia dar umas lições ao George –acrescentei pensativamente.

– Holly!– Não te excites: foi ele que pôs

travão ao desvario. Disse que não foraintenção dele aproveitar-se de mim num

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momento de fraqueza... mas o mais certoé que tenha pensado melhor. Euargumentei que não tinha importância,que fora apenas do choque e do uísque eque era melhor pormos uma pedra sobreo assunto.

– Isso é possível?– Sim – respondi com firmeza. – Para

além de ser meu primo, já deixou bemclaro que não está à procura de umrelacionamento de longo prazo e eutambém não quero repetir os erros daminha avó com outro homem da famíliaMartland.

Não repisei os meus sentimentos, cadavez mais confusos, em relação a Jude,mas tenho a certeza que ela os leu nas

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entrelinhas, uma vez que me conhecebem de mais.

Jude parou de trabalhar assim que eucheguei ao estúdio e devorou o almoçoem três tempos, portanto, devia estarcom fome. Depois disso, desenhoufreneticamente esboço atrás de esboçode mim com Merlin, quase como sesuspeitasse que eu pudesse desaparecer,antes de regressar às suas soldaduras.

Estava de novo apenas de T-shirt... enão vale a pena: posso até saber que elenão faz o meu género e que está fora dequestão por ser meu primo, mas, meuDeus, tenho de admitir que há qualquercoisa de terrivelmente sensual em

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relação a ele quando está a soldar!Comecei a ficar tão quente que, se me

tivesse rebolado na neve lá fora, estateria silvado.

Talvez seja apenas uma reaçãoclaustrofóbica por estar aqui encafuadahá tanto tempo. Quanto mais depressame for embora, melhor!

Naquela noite, o diário da avópresenteou-me com mais um compridosolilóquio acerca dos desígnios de Deuspara ela e sobre o perdão compassivo.Nem toda a gente, porém, partilhava dasideias dela:

Os meus pais ainda não meperdoaram, apesar de já estar

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casada: talvez achem queenganei o Joseph, levando-o acasar comigo. Tomámosprovidências para que eu vápara casa de uma irmã doJoseph na Cornualha bem antesde o bebé estar previsto nascer,algo que parecerá bastantenatural. O Joseph contou-lhe averdade e ela escreveu-me umacarta extremamente amável...

Não acreditava que fosse domingo denovo! Para onde voou o tempo?

Richard mandou notícia de queoficiaria mais uma missa, poisobviamente o vigário não poderia lá

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chegar. Segundo Becca, assim comoassim, o novo vigário também só davamissa na aldeia duas vezes por mês.

– Não é o mesmo de quando o Richardera o vigário local, antes de teremjuntado as duas paróquias. Ele não fazparte da comunidade – resmungou ela. –Embora, é claro, o Richard faça oserviço religioso nos domingos em queele não vem, por isso não sentimosassim tanto a mudança.

Guy e Michael ficaram de os deixar naigreja antes de irem desenterrar o carrode Michael, mas eu declinei ir com elespois queria experimentar os bolos dosRevels e tinha já deixado um pouco deaçafrão de molho na noite anterior. Jude

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decidiu ajudá-los, ao invés de ir logopara o estúdio, mas Coco, que estavaentediada de morte, preferiu mimar-secom uma espécie de supertratamento debeleza no piso de cima.

Não lhe disse que pusera o seu casacobranco na máquina de lavar a roupa,num programa de delicados. Tinha um artão sujo que parecia não restar outrapossibilidade e eu estava crente de quenão lhe sucederia mal nenhum... Assimcomo assim, mesmo que a lavagemcorresse mal, ela provavelmente,chegada a casa, espetaria com ele nolixo.

– Tem ideia de como se limpa umchapéu de pelo? – perguntei a Tilda um

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par de horas mais tarde quandoregressaram da igreja de boleia comGeorge e uma fornada de deliciososbolos dos Revels arrefeciam já nagrade, amarelo-dourados por causa doaçafrão e estaladiços.

– Pó de talco e uma boa escovadela?– aventou ela.

– Pensei que seria bom mandarmosamanhã a Coco para casa com menos arde pedinte – expliquei. – Lavei o casacodela e saiu bem. Está no secador agora.

– Será tão bom se conseguirmos ver-nos livres dela – concordou Tilda. –Que cheirinho maravilhoso é este?

– Bolos dos Revels, embora naverdade sejam mais uns pequenos

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pãezinhos com uma cobertura de fruta,não é? Encontrei a receita numa caixa nacozinha, mas achei que era melhor fazeruma experiência primeiro antes de fazeruma quantidade grande, porque só tinhafermento seco e não do fresco. Querprovar um?

– Acho que todos queremos – feznotar Becca. – Vou ter saudades dos seuscozinhados quando for para casa...

– E agora que o caminho até à aldeiaestá a ficar transitável, não tenho muitadesculpa para ficar, não é?

– Nenhum de nós quer abusar dagentileza do dono da casa – disse Noël –e tivemos um Natal verdadeiramentemaravilhoso, graças a si, Holly! Mas se

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a Edwina conseguir aqui chegar amanhã,como ela inicialmente planeou, tambémpoderemos regressar a nossa casa.

– A Edwina faz as minhas comprasjuntamente com as deles e enche-me ocongelador de refeições prontas –contou Becca. – É uma autênticamáquina, aquela mulher! Até o Jude porvezes lhe entrega a lista de comprasdele.

A expedição de salvamento do carrochegou mais tarde para almoçar, mas porfim lá chegou o carro encarnado deMichael, que só pegou de empurrão.

– O Ben conseguiu limpar a neve até àestrada principal e o trânsito lá jácircula – disse Guy. – Não tinha a

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certeza se o carro do Michaelconseguiria subir o monte, mas láconseguimos, depois de o Ben terdespejado alguma areia e colocado umconjunto de correntes suplentes nospneus.

Pela forma como todos falavam, dir-se-ia que tinham regressado de umaperigosíssima expedição ao Ártico!

Coco descera para almoçar – ou paranão almoçar –, basicamente com omesmo aspeto de antes do tratamento debeleza e foi informada de que talvez nodia seguinte já pudesse ir embora.

– Comigo a servir de condutor, massob protesto – explicou Guy.

– E com o seu bonito casaco branco

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vestido – acrescentei eu. – Lavei-o eficou como novo!

– Lavou-o? – espantou-se ela,olhando-me com os seus olhos azul-geloesbugalhados.

– É surpreendente o que o ciclo dosdelicados consegue lavar. Tambémescovei o seu chapéu de pelo, mas émelhor mesmo pô-lo a lavar num sítioespecializado.

Como seria de esperar, Coco nãoagradeceu os meus esforços, masexaminou o seu casaco como, incrédula,que tivesse sobrevivido aos maus tratosa que o sujeitara.

Tilda dissera que tinha uma pacote de

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açafrão em casa e eu precisava de maispara os bolos dos Revels. Assim, depoisde arrumada a cozinha no final doalmoço, Jude e eu descemos o caminhojuntos, embora tal tenha ocorrido pormera coincidência: ele saiu para oestúdio ao mesmo tempo que eu.

Ia bastante calado, mas, pensandobem, ele não é muito conversador.

– Quantos bolos dos Revels é queacha que precisarei de fazer? –perguntei-lhe quando íamos a atravessara mata de pinheiros, passado o desviopara a nora. Jude decidira acompanhar-me primeiro até à casa de Nöel, parafazer exercício, embora, diria eu,desenterrar o carro de Michael fosse o

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suficiente para um dia.– Uns quarenta ou cinquenta? Toda a

gente da aldeia e das quintas em redorestará presente e comerá pelo menosdois, diria eu. Mistress Jacksoncostumava levar um cesto de vimegrande e plano cheio deles... Penso queainda está pendurado na copa.

– Bom, fazer essa quantidade deveráocupar-me uma grande parte do dia deamanhã – comentei. Chegáramosentretanto à casa de Nöel e ele deu meiavolta para voltar para cima. Estavabastante escuro sob as sombras lançadaspelos pinheiros e o sol não derreteraainda o caminho empedrado até à portada frente, facto do qual só me apercebi

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quando escorreguei nas pedras e caí decu. Após o primeiro momento dechoque, a dor atingiu-me e trouxe-meuma onda de lágrimas aos olhos.

Jude pegou-me como se eu nãopesasse nada e, tirando-me a chave damão, transportou-me até dentro de casa edepositou-me no sofá.

– Tenho o traseiro encharcado, voumolhar o sofá – protestei, voltando apôr-me de pé. – Au, a queda parece quese repercutiu por todas as vértebras!

– Espero que não se tenha magoado –disse ele, olhando para mim com umasurpreendente ansiedade. – Quero dizer,no seu estado, devia ter mais cuidado epensar no bebé.

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– Bebé, que bebé? – pergunteiestupefacta e olhando esbugalhada paraele, achando que perdera um parafuso. –De que raio está a falar?

– Olhe, Holly, eu vi aquele livro sobregravidez e cuidados infantis que recebeuno dia de Natal, por isso sei que estágrávida.

– Ah, isso!– Suponho que o pai seja esse tal Sam

que mencionou uma vez ou duas? Epresumo que seja por isso que estava tãointeressada em descobrir quem era o seuverdadeiro avô. O Michael sabe?

– Chamaram-me? – disse Michael,enfiando a cabeça na porta neste poucoauspicioso momento. Foi então que nos

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viu, a poucos centímetros um do outro eolhando-nos hostilmente. Ficouembaraçado.

– Como chegou aqui? – interroguei.– Lembrei-me de andar com o carro

para cima e para baixo durante uns dezminutos para carregar a bateria –explicou ele – e reparei que a portaestava aberta, o que me pareceuestranho.

– Entre, entre – convidou Jude com umar especialmente carrancudo, ainda maisque no seu estado normal. – Estavamesmo agora a perguntar à Holly se oMichael sabia que ela estava grávida?

– Perdão? – respondeu Michael.– É claro que não sabe, seu

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desmiolado, porque não há gravideznenhuma – zanguei-me eu.

– Não está grávida? – Jude lançou-meum olhar inquiridor. – Então... e o livro?

– Embora seja assunto que não lhe dizrespeito, decidi que esta primavera voutentar ter um bebé, por IA.

– IA?– Inseminação artificial.– Não poderia fazê-lo de outra forma

qualquer? – perguntou ele num tomincrédulo. – Qual é o problema doshomens no sítio onde mora?

– É claro que podia, mas não quisfazê-lo de nenhuma outra forma!

– O Michael não lhe fará esse favor?Afinal de contas, vocês os dois parecem

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unha com carne... e foi por isso queperguntei se lhe contara, quando acheique estava grávida.

– Olhe, Jude – disse Michaelpacientemente –, a Holly e eu tornámo-nos bons amigos, mas não há maisnada... nem nunca haverá. E vou dizer-lhe porquê: sou gay. A Holly já sabe.

– É gay?– Mas, mas oficialmente ninguém sabe

– explicou ele. – Apenas os amigos maischegados.

– Mas... você foi casado. Tem umafilha!

– Isso foi um erro.– Está bem... Mas, então, porquê

manter segredo?

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– Já expliquei isso à Holly: sentir-me-ia estranho a desempenhar papéis deherói romântico com toda a gente asaber.

– É gay – repetiu Jude... – Então, umdaqueles súbitos sorrisos transformou orosto dele. – Isso é maravilhoso.

– Obrigado pelo seu apoio – comentouMichael secamente.

O sorriso de Jude tranformou-se numesgar matreiro.

– Pobre Coco! Andou a esforçar-sedebalde.

– Pobre Michael, quer você dizer! –corrigi num tom indignado. – Bem quevocê e o Guy o lançaram à fera.

– Lamento – desculpou-se ele, embora

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não parecendo muito arrependido.– Não tem importância – respondeu

Michael. – Bom, deixo-vos então e voltopara o carro. Deixei o motor a trabalhar.Provavelmente, amanhã já me poderei irembora – acrescentou acanhadamente.

– Ora essa, fique o tempo que quiser –argumentou Jude todo expansivo, o seubom humor de regresso.

– Aproveito a sua boleia de volta acasa – apressei-me a dizer. –Escorreguei no gelo e dei um bate-cu.Amanhã terei umas belas nódoas negraspara me recordar do sucedido.

Jude partiu para o estúdio enquanto euia buscar o açafrão e trancavacuidadosamente a porta.

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– Ufa, sinto-me muito mais seguroagora que o Jude sabe o meu segredo –admitiu Michael, dando meia volta aocarro para regressarmos a casa. – Jáandava convencido de que um destesdias ele me amassaria a cara. Vai mesmotentar a IA, Holly?

– Sim, já tinha decidido fazer istosozinha antes de vir para aqui –expliquei. – Sabia que nunca maisencontraria outro homem como o Alan.

– Talvez não, mas podia encontraralguém muito diferente, se procurasse...como o Jude – sugeriu ele.

– Ele é seguramente diferente e realçao que há de pior em mim.

– Sentem-se atraídos um pelo outro, já

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é um começo.– Isso é apenas uma coisa física... e,

seja como for, ainda que não fosse, achoo nosso parentesco demasiado próximopara esse tipo de relacionamento.

– Está bem... – Lançou-me outro dosseus sorrisos de esguelha. – Nesse caso,pode sempre contar comigo se quiser umdador voluntário que conheçapessoalmente. E posso assegurar-lhepela minha filha que faço bebés muitobonitos! Mas, por amor de Deus, nãodiga ao Jude que eu me voluntariei!

– É muito amável da sua parte –agradeci, enternecida. – Tomarei issoem consideração.

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Capítulo 38

Photo-Finish

O bebé chegou, felizmente tardee bastante pequeno, massaudável. É uma menina echamámos-lhe Anne. É o centrodas nossas vidas e o Josephenternece-se com ela como sefosse dele. Diz que ela é umadádiva de Deus.

Janeiro de 1945

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O diário da avó começa lentamente ararear pouco tempo depois de o bebé – aminha mãe – ter nascido, mas presumoque tenha encontrado outras coisas comque ocupar o tempo e estivessedemasiado ocupada. Sabia que ela forauma esposa de pastor muito ativa.

Eu estava ainda bastante perra edorida da queda e tinha provavelmente otraseiro roxo – mas talvez tambémverde, do linimento que Becca me deupara esfregar depois de um banho longoe quente. Disse-me que tinha grande fénele, por isso resolvi experimentar,embora exalasse um cheiro muitoesquisito e me parecesse que era paracavalos. De facto, pareceu tirar-me

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grande parte do dorido. Talvez não fossemal pensado experimentá-lo nos topetesdepois de um dia complicado nacozinha!

Não fui porém tão rápida quanto decostume a descer e já sabia que Jude meganhara nessa corrida, pois ouviu-o nopátio enquanto me vestia. Quando fuiver, também já tinha limpo a lareira dasala de estar... e restava apenas umpequeno e tantalizante canto do puzzlepara completar. Antes que me pudesseconter, as peças foram colocadas nolugar e a cena natalícia vitoriana estavacompleta.

Colocara o açafrão de molho na noiteanterior, para os bolinhos dos Revels, e

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o líquido resultante exibia um magníficotom de amarelo-dourado. Depois defazer uma caneca de café, fui buscar amaior tigela que encontrei, uma coisaenorme com um vidrado azul por dentro,e preparei a massa. Amassá-laenergicamente durante dez minutosajudou-me a libertar algumas emoçõesreprimidas. Quando Jude voltou paradentro, eu estava a socar a massa e eleolhou-me surpreendido.

– Bolos dos Revels – expliquei. – Sãomais uma espécie de pãezinhos comfruta e especiarias, na verdade, por isso,o fermento precisa de atuar durante umasduas horas ou três antes de os poderfazer.

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Tapei a tigela com película aderente ecoloquei-a perto do Aga para que amassa levedasse.

– Peço desculpa por ontem ter geradoaquele mal-entendido – desculpou-seele, colocando a chaleira ao lume efazendo mais café sem que ninguém lhopedisse, um dos seus principais pontospositivos matutinos, enquanto eu davainício à minha próxima tarefa, umarobusta caçarola de veado para o jantardaquela noite, que comeríamosacompanhada de batatas assadas dasafra de Henry, seguida de bakedcustard. Este creme de ovos e leitecozido no forno em banho-maria eraaparentemente a sobremesa preferida de

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Noël, e fora também a da minha avó.– Tirou de facto umas conclusões

muito apressadas em relação a mim...Mas, pensando bem, está sempre a fazê-lo!

– Tem razão – admitiu ele. – Julguei-amal desde o início. Mas desta vez éverdade que é ainda mais estranha!Holly, não acredito que estejaseriamente a pensar em ter um filhosozinha por IA! De certeza que nãopensou...

– Pensei em tudo – interrompi-o. –Tenho tudo planeado... e, seja como for,não é um assunto da sua conta, pois não?

Ele suspirou e passou os dedos peloescuro cabelo que começava a

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encaracolar e a precisar de um corte.– A mim parece-me que é, mas

podemos discuti-lo mais tarde.– Não, não podemos: vou estar

ocupada o dia todo e depois tenho asmalas para fazer.

– Mas, Holly, seguramente que nãopretende mesmo ir-se embora amanhã demanhã se as estradas já estiveremtransitáveis, pois não? Porque não ficapara os Revels? Parece um disparate irperdê-los agora e a família ficará muitodesapontada se não estiver cá. Podiaficar mais uma noite, não podia?

Olhei para ele e cedi ligeiramente,pois queria muito assistir aos Revels,uma vez que ouvira falar tanto da

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cerimónia... E em especial de Jude nopapel de São Jorge!

– Presumo que pudesse... Mas nãotenho de ficar depois disso, possocarregar o carro e ir embora assim queos festejos terminarem, como o Michaelvai fazer.

– Mas a viagem dele será curta, atécasa dos amigos dele, em Leeds, e aHolly terá pela frente uma viagem muitomaior. Seja como for, se for emboralogo a seguir ao espetáculo, perderátodo o divertimento.

– Que tipo de divertimento? –perguntei meio desconfiada, recordandoas insinuações de Sharon acerca de umsacrifício de uma boneca de vime.

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– Bom, o wassail, para começo.– Wassail?– Uma espécie de ponche quente de

maçã e cerveja que a Nancy prepara.– Oh, sim, acho que ela mencionou

isso.– E a Old Nan, o Richard e o Henry

hão de estar à espera que lá estejatambém, mesmo até ao final, com o restoda família. Portanto, como vê, mais valeficar cá nessa noite.

Aquele fugaz mas maravilhoso sorrisoiluminou-lhe o rosto como um cometararo e a minha firmeza dissolveu-semais depressa que açúcar em águaquente...

Mais uma noite também não me

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mataria.– Está bem – ouvi-me dizer.– Ótimo. – Ele ficou com um ar

satisfeito, mas talvez porque sabia queteria direito a mais um jantar bemcozinhado antes de se ver forçado aregressar à sua habitual dieta derefeições de conveniência.

Ele começou então a tratar do baconpara o pequeno-almoço enquanto euterminava a caçarola e a colocava noforno. O creme de custard podia irdepois, quando pusesse os pãezinhosdos Revels também, e talvez um bolo decenoura. Dessas tínhamos com fartura,pois claramente Henry era o ReiCenoura.

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Por uma vez, toda a gente desceu parao pequeno-almoço mais ou menos aomesmo tempo, exceto Coco, que chegouatrasada e a exigir café apenas – emboraeu a tenha obrigado a comer umaomeleta também – e voltou a subir paraacabar de fazer as malas. Seria depensar que já as teria prontas, uma vezque estava tão desesperada por irembora!

Guy partiu no seu enorme jipe logo aseguir ao pequeno-almoço, com Coco aseu lado, o casaco branco dela umtestemunho das minhas capacidades delavadeira. Ela deixara tão poucocativantemente claro que estava ansiosa

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por sacudir o pó da casa dos seussapatos de salto alto, que nos reunimostodos à porta, preparados para lheacenarmos adeus com um enormeentusiasmo.

– Adeus, Banana! – gritou Jessalegremente, mas ela fez de conta quenão ouvira.

Guy despediu-se com beijos de toda agente, eu incluída, e desejou-me sorte,embora não perceba porque raio achouque eu iria precisar dela mais do que osrestantes.

– E, a propósito, eu perdoo-lhe por terfeito aquele último canto do puzzle! –acrescentou ele.

– Era demasiado tentador e não achei

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que o Guy fosse ter tempo esta manhã.Mas agora o Jude pode levá-lo de voltaà loja da Oriel e receber metade do quepaguei por ele.

– Bagatela é mesmo o seu apelido –comentou Jude olhando para mimdivertido ao mesmo tempo queacenávamos ao jipe. – Mais tarde vai tercomigo ao estúdio?

– Posso levar-lhe o almoço, mas nãopoderei demorar-me. Tenho cinquentapãezinhos espiralados para fazer. Amassa já terá levedado por essa altura.

Ou pelo menos eu esperava que sim.

Fiz as tigelinhas de custard e o bolode maçã, saí até ao cercado para ter uma

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longa conversa com Lady e depois deiuma boa escovadela a Merlin, que seriaa última antes de me ir embora.

Esse pensamento entristeceu-me:afeiçoara-me tanto a ele que me iriasentir perdida sem a minha fiel sombraseguindo-me para todo o lado. Tambémsentiria saudades de Lady e até deBilly...

Almoçámos cedo, Jess não comeumuito porque se encarregara de procurare devorar os últimos enfeites dechocolate da árvore enquanto toda agente estava de costas viradas. Os maisvelhos estavam enfiados na saleta a verRoad to Rio e Michael, uma verdadeirafada do lar, lavara, secara e engomara a

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sua roupa na lavandaria.Estava tão ocupada que devia ter

pedido a Jess ou a Michael quelevassem o almoço a Jude, mas ao invésdisso dei por mim atraída ao estúdiouma última vez, como o metal a umíman.

E ainda bem que fora, pois a esculturaestava realmente a tomar forma! Pareciamais que um tornado redemoinharaenormes folhas de metal, dando-lhes aaparência de um cavalo e de umamulher, do que obra de mãos humanas:suponho que fosse isso que Judepretendia.

Ele estava como de costume absortono que estava a fazer e eu pousei o cesto

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num local onde ele não tivessedificuldades em reparar nele quandodescesse à Terra e afastei-me em bicosde pés.

Moldar massa em cinquenta pequenassalsichas, transformá-las em apertadoscaracóis e salpicá-los com casca defruta cristalizada e açúcar demorou umaeternidade.

Quando estava a transferir a últimafornada do tabuleiro para a grade, paraque arrefecessem, Noël entrou nacozinha para me dizer que a empregadadeles, Edwina, conseguira chegar aliacima no carro dela, trazendo produtosfrescos para eles e para Becca, por isso,

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preparei um tabuleiro com chá e umpouco do bolo de cenoura e levei-o àsala de estar.

Edwina era uma mulher de meia-idademagra e seca, com o cabelo louropenteado violentamente para trás e aexpressão de um saguim marcial.Parecia ter tudo organizado, para bemdela e deles, e percebi que era muitoeficiente.

– Encontrei o Jude no estúdio e elecontou-me o que aconteceu e estavamtodos aqui em cima – disse ela. – Enchi-lhe o frigorífico e o congelador, Becca,e deve-me cinquenta e sete libras eoitenta e cinco pence. A conta está emcima da bancada, ao lado do micro-

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ondas.– Oh, obrigada, Edwina – disse

Becca, obviamente grata. – Amanhã,depois do pequeno-almoço regressocom o Nutkin a casa, e depois talvezalguém me pudesse levar as malas.

– O Jude é capaz de fazê-lo – referiuNoël.

– O Jude sugeriu que você e a Tildaficassem aqui esta noite e apenasvoltassem para casa amanhã de manhã, eeu disse que era boa ideia – relatouEdwina. – Assim posso tirar asdecorações e dar uma limpeza à casa.

– Oh, ótimo – comentou Noël. – AHolly fez baked custard para hoje ànoite e estava mesmo com o dentinho

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afiado para o comer.

Estando o jantar adiantado, faltavaapenas meter as batatas já lavadas noforno, subi ao meu quarto para pôr ovestido de veludo encarnado: era, afinalde contas, o último jantar em família deque desfrutaria ali. Achei, portanto, quesó me ficaria bem esforçar-me umpouco.

E, ao pensar nisso, ocorreu-mesubitamente que no dia seguinte à noiteficaria sozinha com Jude em Old Place–, sem contar com Merlin e Lady eBilly, é claro... Não percebo porque nãome ocorreu isso antes! Ainda assim, eleestaria numa ala e eu na outra...

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Tinha ainda muito tempo, por issocomecei a arrumar algumas coisas,como o computador e as notas para olivro e a colocar os diários da avó devolta no baú... embora primeiro tenharelido a última entrada. Então, poralguma razão, ocorreu-me virar apágina, e aí deparei-me com outrafotografia pequenina a preto e branco,presa com uma espécie de papeladesivo.

N com os pais dele, escreveraela por baixo. Ele mostrou-ma edepois deve tê-la deixado cair,pois encontrei-a um dia depoisde ele ter desaparecido, meti-a

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na mala e nunca mais melembrei dela.

Em páginas subsequentes elaacrescentara mais tarde uma ou duasentradas fortuitas, principalmente paramarcar eventos trágicos – e nãoenfrentara ela ainda os suficientes? Oque falava da minha mãe levou-me àslágrimas:

Foi muito difícil perder a minhaúnica filha e um golpe cruelpara o Joseph. Mas ele disseque temos de aceitar a vontadede Deus e não vê-lo como umcastigo por qualquer pecado.Ele acredita firmemente que o

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Todo-Poderoso não é um Deusvingativo.

Dezembro de 1972

– A Holly vai ficar até depois deamanhã – anunciou Jude a toda a genteao jantar.

– Oh, que bom. E depois regressaráem breve, agora que nos encontrou, nãoé verdade, minha querida? – perguntouNoël.

– É claro, vou ter saudades vossas –respondi, embora fosse pouco provávelque os voltasse alguma vez a ver...

– Na Páscoa – sugeriu ele –, se nãoantes.

– Não há Revels de Páscoa, pois não?

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– Não, apenas o tradicional paceegging.17

– Esse tipo de coisa – disse elevagamente. – Mas agora pertence àfamília, devia estar cá.

– A propósito – disse eu, pegando nafoto, que colocara dentro de um pedaçode cartão dobrado ao lado do meu prato.– Encontrei outra fotografia no últimodiário da minha avó. É do Ned, com osseus pais.

Estendi a fotografia a Noël e eleacenou com a cabeça.

– Ah, sim... Lembro-me de esta fototer sido tirada. Foi logo depois de o Nedter vindo viver connosco.

– Viver connosco? Como assim? –

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inquiriu Jude, confuso. – Onde maishaveria ele de viver?

– O Nöel quer dizer, depois de o Nedter ficado órfão – explicou Becca.

– Não estou a entender! – exclamouJude. – De que raio estão vocês a falar?

– Pensei que sabias! Os nossos paisadotaram o Ned, que era um primo emsegundo grau. Na altura, ele devia serdois ou três anos mais novo que a Jess –contou Noël.

– Então... a Holly é apenas neta de umfilho adotado dos Martland? – perguntouJude, estupefacto.

– Bom, lá Martland era ele, qualquerpessoa podia constatá-lo, embora

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apenas pelo lado da mãe, mas nóssempre o encarámos como nosso irmão.Mas, sim... e, na verdade, penso queisso explica por que motivo a Holly separece mais com ele do que qualqueroutra pessoa da família.

– Diria o mesmo – concordou Jude. –Ora, ora!

Jess perguntou, confundida:– Então, a Holly continua a ser minha

tia?– Só de nome, embora a ligação

sanguínea esteja tão diluída que é quaseinexistente – disse Jude alegremente.

– Mas continua a ser, e será sempre,membro desta família – declarou Noël, edepois, enquanto eu digeria lentamente

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as implicações desta revelação, eledivagou acerca dos Revels e sobrecomo a minha chegada representara ofim de uma coisa e o começo de outranova, tal como os Revels simbolizavamo fim do ano velho e o começo do novo.– E depois, no próximo Natal, estaremostodos juntos de novo, um novo ciclocompletado – terminou ele.

– Com exceção da Coco, espero –comentou Tilda com acerbidade.

– Ela até que não era assim tão má,minha querida.

– Caramba! – exclamou Tildadeselegantemente.

– E de mim – disse Michael, queestivera a ouvir com todo o interesse. –

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Não estarei aqui.– Oh, será sempre bem-vindo também

– disse-lhe Jude. – Para mim, é tambémcomo se fosse da família – e Michaelsorriu-lhe.

– Tio Jude, se tu e a Holly afinal nãosão primos, quer isso dizer... – começouJess, mas eu apressei-me a mudar deassunto apelando à gula dela.

– Jess, porque não vais buscar aquelacoisa de Desejos de Chocolate que osChirk cá deixaram? Já me tinhaesquecido deles. São uma espécie debolinho da sorte de chocolate.

– Fixe! – guinchou ela, saindo da salaa correr.

O desejo dentro do meu rezava: Segue

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o teu coração: estás já onde é supostoestares.

Se o chocolate não tivesse já sidofeito e embalado, teria suspeitado quefora a Jess quem escrevera a sorte e aenfiara lá.

– Pelos vistos, já não somos sequerprimos afastados – disse Jude, seguindo-me até à cozinha mais tarde quando euestava a colocar a louça suja namáquina.

Ao dar meia volta, deparei-me comele demasiado perto de mim e a olhar-me com um ar muito sério.

– São boas notícias, seja como for,pois desde que nos beijámos que não

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consigo parar de pensar em si, Holly.Está a dar comigo em doido!

– Também anda a dar comigo emdoida, Jude Martland, mas não de umaforma boa! – barafustei, na defensiva,como de costume. Porém, desta vezsabia que era porque não queria ver omeu coração destroçado de novo, e Judepoderia perfeitamente fazê-lo, se eudeixasse.

Aquele sorriso repentino reapareceu.– Não podíamos tentar aquele beijo de

novo? Talvez mudasse de ideias!– Não! Tem sido uma montanha-russa

de emoções, primeiro descobrir opassado da minha avó... e agora, parafinalizar, isto! Já não sei o que pensar

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acerca do que quer que seja: estoucompletamente baralhada.

– Pobre Holly – disse ele num tomcompassivo e, nesse preciso momento,Jess entrou na cozinha a perguntar sealgum de nós queria o último Desejo deChocolate.

– Não, acho que o meu me deuprecisamente a resposta que eu queria –disse-lhe Jude.

17 Festividade pascal tradicional do condado deLancashire durante a qual os ovos decorados emfamília são entregues numa espécie de tributo aosPace-Eggers, personagens mascaradas que no finaldesempenham uma pequena peça teatral. (N. da T.)

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Capítulo 39

Sinais e Presságios

Mesmo no final do diário, numaentrada datada simplesmente Natal de2001, a avó escrevera pungentemente:

É a vez da pobre Holly sofreruma grande perda – a domarido. Porém, ela é aindajovem e rezo para que um diaencontre ao lado de outra

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pessoa uma felicidade longa eduradoura.Tal como outrora soube, semsombra de dúvida, que Deusainda tinha uma missão paramim, tenho a certeza de que asminhas preces pela Holly serãoatendidas, como uma VerdadeiraCruz no mostrador da minhavida.

Não me parece que ter o coraçãodestroçado por outro Martland fosseexatamente aquilo por que a avó rezavae Jude sem dúvida que não se encaixavano padrão do mostrador da minha vida.Na verdade, ele assemelhava-se mais a

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um enorme e emaranhado nó que a umaVerdadeira Cruz, e tenho a certeza queela mesma o teria descrito como umgrande pedaço de nada – até parecia queestava a ouvi-la dizê-lo.

Mas onde raio tinha eu a cabeça aoaceitar ficar até à Noite de Reis?

* * *

Becca levantou-se cedo esta manhã, oque foi uma bênção, pois assim nãoficaria sozinha com Jude. Depois de umanoite em grande medida insone, sentia-me igualmente confusa em relação aosmeus sentimentos por ele – e acerca dasintenções dele.

Quando voltaram dos estábulos,

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trazendo com eles aquele cheiro, agorajá familiar, a cavalos, Jude não sedemorou na cozinha a ajudar-me,subindo logo de seguida para tomarbanho e mudar de roupa. Quando voltoua descer, o resto da família tinha tambémjá começado a aparecer.

Reinava aquela estranha sensação deúltimo dia de festa que eu muitas vezestestemunhara: uma relutância em partirmisturada com uma vontade de voltarpara casa. Contudo, tendo em conta quepor uma vez eu partilhava essasensação, achava-a perturbadora...

– Não pusemos os cavalos no cercadoporque a Becca e o Nutkin se vãoembora depois do pequeno-almoço –

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disse Jude, construindo uma enormesanduíche de ovo e bacon.

– Achámos que mais valia elespassarem mais algum tempo juntos noestábulo antes de nos irmos embora, edepois o Jude pode levar a Lady e oBilly para o cercado – acrescentouBecca. – Limpei as cocheiras ontem, porisso depois é só dares uma varridela.

– Está bem, eu faço isso, e depoislevo-lhe as malas – combinou Jude.

– E não tarda a Edwina virá buscar-nos também – disse Noël.

Tilda por uma vez descera para opequeno-almoço e eu estava crente deque agora que Edwina estava de voltapara cuidar deles, estariam contentes

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por regressar a casa, ainda que Jesspreferisse obviamente ficar em OldPlace!

– Eu podia ao menos ficar esta noite,não podia? – suplicou ela. – É a últimanoite da Holly!

– É claro, se o teu tio concordar –apressei-me a dizer e ele lançou-me umdos seus insondáveis olhares.

– O teu tio também tem direito aalguma paz e sossego! – respondeu-lheele.

– Ooh! Queres ficar sozinho com aHolly! – exclamou Jess com um ar degrande descoberta e eu senti-me corar.

– Quero, mas não imagino comoadivinhaste – disse ele sardonicamente.

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– Jess, não importunes o teu tio –admoestou Tilda. – É claro que voltaspara casa connosco.

– Assim como assim, mais tardeencontrar-nos-emos todos na aldeia,para os Revels – fez notar Noël. – Malposso esperar!

Depois de terem partido, a casaparecia estranhamente vazia. Presumoque Lady e Billy também estivessem jácom saudades de Nutkin.

Jude estava ocupado a carregaralguma da bagagem e depois a limpar acocheira vazia de Nutkin, e Michael,que já tinha as malas feitas, fez-mecompanhia na cozinha enquanto eu

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tratava de algumas tarefas de últimahora.

Decidira que o jantar daquela noiteseria caril de peru e tirei uma porçãopara descongelar e depois dividi o querestou da caçarola de veado empequenas doses – fizera o dobro daquantidade já a pensar nisso – cominstruções de aquecimento simplesescritas nas tampas. A dieta de Judeantes de eu chegar era horrível e nãoqueria que ele voltasse a ela assim queeu virasse costas...

Era estranho ver apenas três pessoas aalmoçar à mesa da cozinha e penso queMichael se sentiu um pouco pau decabeleira, muito embora eu estivesse

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muito satisfeita por ele estar ali, e Judenão parecia nem um pouco incomodadocom a presença dele! Na verdade,parecia extraordinariamente alegre,portanto, talvez até preferisse estarsozinho e estivesse ansioso por ter acasa toda só para ele.

– Michael, importava-se de levar aHolly consigo hoje à tarde, quando forpara os Revels? – perguntou Jude. – Éque eu tenho de ir mais cedo para mepreparar e a Edwina vai levar o Noël, aTilda e a Jess.

– Tem espaço para aquele enormecesto de bolos dos Revels? – inquiri. –Se não tiver, eu levo o meu carro.

– Sem problema: podem ir no banco

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de trás – disse ele. – As minhas malascabem todas na bagageira.

– E o Merlin? Fica aqui? – pergunteia Jude.

– Sim, ele não aprecia muito abarulheira.

Desapareceu depois do almoço, masdesceu mais tarde com uma braçada defantasias do baú do sótão, que guardoucuidadosamente no Land Rover antes departir com um ar despreocupado:

– Vemo-nos mais logo!A cabeça dele parecia estar noutro

lugar qualquer: mas com o Jude jáaprendi que não é habitual.

Enfiei o vestido encarnado, as botas eo casaco comprido de inverno, adornado

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com o lenço verde que Laura me dera...Se chegássemos à aldeia cedo, esperavater oportunidade de me esgueirar paralhe telefonar, pois precisava mesmo defalar com ela!

Quando carreguei o enorme cesto debolos dos Revels para o AuldChristmas, Tilda, Noël, Becca e Oldestavam já lá frente à lareira, mas nãohavia sinal do residente habitual.Provavelmente estava a vestir o seutrajo.

– Onde está a Jess? – perguntei.– Foi buscar os óculos de ver ao longe

da Nan, de que ela se esqueceu em casa– explicou Tilda. – E a Edwina foi

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visitar a Oriel, são velhas amigas, masregressa a tempo do espetáculo. Nós, osvelhos, ficamos de fora, sentados e bemagasalhados.

– Tinha-me interrogado para quemeram as cadeiras – disse Michael.

– Não gosto de ficar de fora. Quem medera poder ainda participar – queixou-seNoël num tom anelante.

– Também me sinto assim um poucode parte – concordou Michael –, maspresumo que seja pelo facto de ser ator!

Nancy estava a reunir ingredientes aolado da dorna onde tencionava prepararo wassail e eu fui ver o que ela lhe iaadicionar.

– Já tenho outro tanto feito na cozinha

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– disse-me ela. – É melhor preparar comantecedência.

– Sim, também sempre achei que issoera um bom plano – concordei, emboraquanto mais pensasse nisso, menospreparada me sentisse para passar umanoite sozinha em Old Place com JudeMartland!

– Esta dorna é tipo uma garrafatérmica – disse ela, batendo no lado davasta tina com uma colher de madeira dotamanho de um pequeno remo. – Dantes,o wassail era mantido quente comatiçadores em brasa, mas os temposmudaram e assim é muito mais fácil.

– Parece ser uma mistela bastantealcoólica... O que leva?

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– Cerveja, sumo de maçã turvo e umamaçã assada ou duas, canela e noz-moscada... Um bebé podia bebê-la –assegurou-me ela. – Mas mantém toda agente quente e dá-lhes vigor.

– Vigor?– Sim, para a dança.– Certo... – respondi eu, achando que

isso soava bastante inofensivo.– Bom, vou só dar um pulinho à igreja

por uns minutos. Quero telefonar a umaamiga e no alpendre a rede é boa.

– Eu sugeriria o celeiro, a rede látambém é boa, mas é onde estão todos avestir os trajos. Espero que se tenhamlembrado de fazer os aros: interrogo-mese receberá um este ano. – Observou-me

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atentamente.Que aros, interroguei-me também ao

mesmo tempo que estugava o passorumo à igreja e ligava para Laura,fazendo figas com força para que elaatendesse. Quando ela o fez, mal adeixei dizer uma palavra e despejei asminhas novidades de supetão.

– Laura, afinal de contas não souprima do Jude! Bom, na verdade, achoque sou, mas de tal modo afastada quequase nem da mesma família somos!

– Como assim?Expliquei que Ned, o meu avô, fora

adotado pelos Martland e ela respondeu:– Ótimo! Então, agora que a tua alma

puritana se sente expiada, já estás livre

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para te lançares nos braços do Jude?– E vice-versa... Não que a ideia de

que fôssemos parentes parecesse estar arefreá-lo antes de se fazer a mim.

– Então, pronto, vai em frente –encorajou-me ela. – Estou a ver que é oque queres.

– Sim – admiti –, só não sei o que elequer!

– Eu acho que não é difícil adivinhar– disse ela secamente.

– Pois, mas ele já deixou claro quenão quer apaixonar-se de novo, e eutambém não. Mas, por outro lado, nãosou uma pessoa de relacionamentosleves, quanto mais de coisas de uma sónoite! E... bom, ele é uma pessoa difícil.

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Há uma grande atração entre nós, não hácomo negá-lo, mas estamos sempre adiscutir e a mandar farpas um ao outro e,embora ele uma vez me tenha dito quegostaria que eu ficasse por cá, não sei seme queria como cozinheira, lavadora degarrafas e modelo não remunerado ouqualquer outra coisa!

– O quê, diria eu, pelo que tu mecontas – disse ela, divertida. – Porquenão deixas a coisa correr o seu cursonormal esta noite e logo vês o queacontece? Coloca a tua educação batistaestranha e todos os teus planos de vidacuidadosamente elaborados de lado emanda-te de cabeça.

– Estás a aconselhar-me a ter uma

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noite de paixão?– Se a coisa se proporcionar dessa

forma e tu quiseres. Depois, amanhã,poderás simplesmente afastar-te... ounão. Vai em frente! – incitou-me ela.

– Receio que, se o fizer, acabe por memagoar – confessei.

– É melhor do que manteres o coraçãonum bloco de gelo para o resto da tuavida, não achas?

– Acho que és doida varrida! –exclamei, embora sentisse um ténuesorriso arqueando-me os cantos da boca.– Sabes, a avó disse que esperava queeu conhecesse outro homem simpático eamável e assentasse. Estava no final doúltimo diário dela.

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– Ora aí tens, então.– Tenho a certeza que Jude Martland

não está a pensar em assentar e, sejacomo for, não é um homem simpático eamável, é carrancudo e mandão a maiorparte do tempo.

– Temperamento artístico? – aventouela. – E pelo que tu contas, ele pareceter também muitas qualidades. Adoraanimais, para começo.

– Suponho que sim – admiti comrelutância, e suspirei. – Não são apenasas circunstâncias, como os sinais epresságios que parecem estar aconspirar contra mim também: depois dojantar ontem comemos uns Desejos deChocolate e a mensagem no meu

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insinuava que eu já encontrara o queprocurava.

– Então, de que estás à espera?– E eu acredito lá em sinais e

presságios!– Então, talvez devesses começar! –

devolveu ela. – Onde está o Jude agora?– Não o vejo desde depois do almoço

e achei-o um pouco distante, masprovavelmente estava apenas a entrar napersonagem para a sua atuação maistarde.

– Parece promissor!– Refiro-me à atuação dele nos

Revels, palerma – disse. – Faz de SãoJorge... e por falar nos Revels, é melhorir andando, devem estar quase a

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começar.– Telefona-me amanhã, para eu saber

se estás bem – pediu ela num tom maissério.

– Regresso amanhã, portanto, poderásver por ti mesma – lembrei-a.

O meio da tarde aproximava-se e a luzcomeçava a desvanecer. As pessoasreuniam-se em redor do parque e frenteao pub, para onde a dorna de wassailfora transportada e colocada em cima deuma mesa robusta, juntamente com omeu enorme cesto de bolos dos Revels.

Tilda, Noël e Old Nan estavamsentados ali por perto, embrulhados emmantas de viagem e apaparicados por

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Edwina, mas eu, Becca, Nancy, Jess eMichael fomos para a erva, para juntodos restantes espectadores, depois determos bebido uma reconfortante taça dewassail, embora por esta altura Jessestivesse já a amuar porque Nancy não adeixara beber.

A multidão murmurou e silenciou-sequando uma tocha foi acesa na enormefogueira e depois transportada em redorpara acender o círculo de doze braseirasespetadas no chão. Reparei então pelaprimeira vez que havia também um anelinterior de cabeças de cavalo em metalestranhamente forjado, obra de Judeinegavelmente, às quais haviam sidopresos ramos de azevinho, visco branco

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e hera e tiras encarnadas de tecido quese agitavam na brisa: o relvado pareciaum círculo de fogo bárbaro.

Depois, vindo da direção do celeiropor trás do pub, ouvi o som de umarabeca e Richard apareceu, tocando umaanimada ária enquanto caminhava eenvergando um comprido roupão develudo verde debruado a pelo por cima– esperava – de várias peças de roupaquentes.

Até ao meio do círculo de braseirasseguiram-no seis dançarinos de Morrisvestidos de branco, como é tradicional,com sininhos a tinirem e fitasencarnadas a voarem, mas transportandoespadas compridas e com as caras

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pintadas de preto, o que lhes dava umaspeto estranho e ligeiramente sinistro.

– Aqueles são os Rappers – sussurrouBecca.

Reconheci George Froggat e o maridode Nancy, Will, mas não os restantes.Formaram um grupo e dançaram, usandoas espadas um pouco como bordões –por isso espero que estivessem rombas!– e depois recuaram e juntaram-se emduas filas, deixando o centro livre paraas estranhas figuras que entretantoavançavam em fila, cada qualapresentando-se aos espectadores comuma curta copla.

Na procissão vinha Auld ManChristmas, o diminuto Nicholas Dagger,

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num roupão de veludo azul, uma coroade plantas sempre-verdes e carregandouma clava que era quase tão grandecomo ele; um assustador Red Hoss,pintado de escarlate e com mandíbulasque se abriam e fechavam com estrondo;o Dragão, verde e escamoso, com umacabeça temível e uma comprida caudaque arrastava pelo chão, e a estranhafigura do Homem-Mulher. Pela frente –ou o que parecia a frente – assemelhava-se a um dos Rappers, de camisa brancae chapéu de palha, mas, quando sevirava, revelava uma máscara de mulhera tapar-lhe a parte de trás da cabeça euma saia comprida.

– É o Liam, a fazer de Homem-Mulher

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– informou-me Jess às risadinhas,quando ele começou a andar em redor,entregando grinaldas de hera e visco aqualquer mulher de quem se agradava, oque incluiu Jess, Nancy e Oriel Comfort.Porém, não me deu nenhuma a mim e eusenti-me bastante posta de lado!

Richard parou de tocar o temposuficiente para fazer uma vénia eapresentar-se à multidão como o Doutor.E depois, por fim, Jude, no seu disfarcede São Jorge, emergiu da escuridão e foiacolhido por aplausos e vivas: umafigura enorme e assustadora, envergandoum manto branco com uma cruzvermelha e um elmo com proteção parao nariz. Trazia uma espada ainda maior

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que as dos Rappers... e na outra mão umaro dourado e brilhante de hera e visco.Avançou na sua passada larga e colocoua grinalda na minha cabeça e eu fiqueitão surpreendida com aquilo quepresumo que o meu queixo tenha caídomais que o do Red Hoss, representadopor Henry, a propósito, vira-o dentro damáscara quando ele viera de boca abertana minha direção.

Depois Jude regressou ao meio docírculo e Nancy, que estava perto demim, soltou uma risadinha.

– Ele costumava dar-mo a mim, umavez que não tinha uma dama só dele!

– Eu sou São Jorge – rugiu Jude –,cavaleiro valente da cruz escarlate. No

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Egito com um dragão me envolvi emcombate.

– Porquê o Egito? – perguntei numsussurro a Becca.

– As cruzadas fizeram alguns doselementos mudar: noutras terras, SãoJorge mata um cavaleiro turco, mas nósmantivemos o dragão... e aí vem ele.

De algures das entranhas da enormebesta verde, uma voz, que pertenciainegavelmente ao jovem Ben de WeaselPot, gritou depois de um par de rugidosà laia de abertura:

Sou o DragãoE com um rugido matarei,E aquele valente cavaleiro

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acolá,Com a sua vida pagará!

Então, ele e Jude lançaram-se um aooutro num combate encenado, no final doqual o Dragão mata São Jorge. Amultidão soltou um gemido de desilusão.

– Aquilo não devia ter acontecido,pois não? – perguntei preocupada aBecca, olhando para Jude estendido nochão.

– Está tudo bem – sussurrou Jess, quese esgueirara para o meu lado. – Esperae verás!

Auld Man Christmas, Red Hoss e oHomem-Mulher, cujos papéis até aqui sehaviam resumido a interagir com a

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assistência e a assustar as crianças,viraram-se naquele momento para ocentro do círculo para testemunhar atrágica cena e disseram em uníssono:

– Ai, pobre São Jorge!O Dragão deslocou-se para o meio do

círculo, deixando o pobre Jude deitadona turfa quase gelada, embora atébastante próximo da fogueira – por issotalvez não fosse morrer congelado.

Richard fez soar nova ária na rabeca eos seis Rappers começaram a dançar denovo, desta vez entrelaçando as espadase formando uma série de intrincadospadrões que culminaram numa espéciede nó com um buraco no centro. ODragão aproximou-se e eles de repente

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fizeram baixar o nó de espadas sobre acabeça dele, apertaram-no com ruído demetal a entrechocar com metal e acabeça do Dragão saltou, aterrando comum baque surdo perto dos meus pés.

Quase tive um ataque de coração e foium enorme alívio quando me dei contade que estava vazia!

Os dançarinos voltaram a formar duasfilas, mostrando o decapitado Dragãojazendo morto, e todos aplaudiram ederam vivas.

Richard deu meia volta sobre oscalcanhares e apontou com a sua rabecapara o inerte São Jorge, declamandobem alto:

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Eu sou o Doutor,Os vossos receios afastemCom a minha fiel poçãoTudo de novo ficará bem!

Depois tirou um pequeno frasco dobolso e fez de conta que aspergiaqualquer coisa sobre o recumbentecavaleiro. Presa ao meu lugar, vi Judemexer-se lentamente, levantar-se edepois pôr-se de pé e fazer uma vénia,ao som de arrebatados aplausos.

– É agora, venham! – disse Becca, eela e Jess, e toda a restante audiência,levantaram-se e avançaram para ocírculo e deram as mãos, arrastando-mecom elas. No meio do aperto, não sei

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como, deparei-me com Jude à minhaesquerda, e o Dragão, sem cabeça, mascom a cauda na volta do braço, à minhadireita. Demos as mãos e dançámostodos de roda. Vi Michael, Jess e Beccano meio da roda de dançarinos – eGeorge, segurando a mão de Oriel. Elatinha um ar corado e feliz, o seu aro dehera e visco inclinado por cima de umolho.

Mais ninguém parecia ter umdourado... e ainda bem que Jude ocolocara firmemente na minha cabeça,pois de repente começou a rodopiar-mee a rodopiar-me, até eu ficar demasiadoarquejante para continuar.

– Não aguento mais, tenho de

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descansar! – supliquei, arfando, e ele riue caminhou comigo até ao pub, o braçoainda em redor da minha cintura, emboratenha primeiro tirado o assustador elmoda cabeça, o que foi um alívio. Pusemo-nos à conversa com Noël, Tilda e OldNan e acabei por aceitar uma caneca doponche quente... e talvez depois maisuma. Na verdade, perdi a conta dequantas bebi, mas o ponche tinha umsabor tão inócuo a maçãs quentes eNancy asseverara que era uma coisa quepodia dar-se a um bebé...

O meu pé começou a bater ao ritmo damúsica e o braço de Jude cingiu-me commais firmeza ao mesmo tempo queNancy me tirava a caneca vazia da mão

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e me dava outra.– Nancy – perguntei

desconfiadamente, tentando focar comesforço o rosto animado e enrubescidodela –, quando disse que o ponche podiaser bebido por um bebé estava a falar asério?

– Sim, se o objetivo for o bebé dormirum bom par de horas.

Richard tocou a rabeca durante maisum bocado e depois entregou oinstrumento a outro e veio juntar-se anós.

Michael, que o seguira, disse:– Foi deveras fascinante assistir ao

espetáculo. É uma mistura muitointeressante de cerimónia pagã de

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fertilidade e de uma representaçãomedieval de uma cena da vida de umsanto.

– Muito astuto da sua parte –comentou Richard. – As fitasencarnadas, o azevinho, a hera, e emespecial as coroas de visco com que asmulheres são presenteadas, têm tudo aver com renascimento e fertilidade.

– E o triunfo do bem sobre o mal, éesse o significado das cenas entre SãoJorge e o Dragão – acrescentou Noël.

– O elemento pagão não o incomoda,vigário? – perguntou Michael.

– Oh, nada mesmo – respondeu elealegremente.

Mas começava agora a perturbar-me a

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mim, apesar dos efeitos mitigantes daquantidade de ponche que já bebera!

Despedimo-nos de Michael e depoisos atores foram para o celeiro paradespirem os trajos, reaparecendo com oseu aspeto costumeiro. Por essa altura, oque restava do wassail e dos bolos dosRevels já tinha sido consumidos e aspessoas começaram a dispersar, umaspara casa e outras para o pub. Edwinareuniu Tilda, Jess e Noël, enfiou-os nocarro e levou-os para casa, mas Beccaresolveu ir a pé, um bolinho dos Revelsembrulhado num guardanapo e guardadono bolso para mais tarde.

– É suposto serem um talismã dasorte, se forem mantidos ao longo do

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ano – contou-me ela –, mas eu acho queprefiro comê-lo. – Depois olhou paramim e acrescentou: – E talvez sejamelhor a Holly comer também qualquercoisa assim que o Jude a levar paracasa. O wassail é mais alcoólico do quepossa pensar.

– Também já cheguei a essa conclusão– disse eu e larguei uma risadinha.

– Eu olho por ela – prometeu Jude,colocando o braço em redor de mim denovo, uma vez que eu balançavaligeiramente.

– Pois, é isso que me está a preocupar– disse Becca num tom sinistro e elesoltou uma gargalhada.

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Capítulo 40

Noite de Reis

No jipe, de regresso com Jude, sentia-me quente e confortável, mas tambémestranhamente mole e privada deenergia.

– Foi muito giro – disse num tomdevaneador.

Então, o telemóvel no meu bolsotocou, despertando-me ligeiramente.

– Importa-se de parar aqui? É queperderei o sinal se passarmos da casa

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dos seus tios e deve ser a Laura.– Ou o Sam? – barafustou ele num tom

desconfiado, desviando-se para aberma.

– Por que raio haveria de ser o Sam?– pestanejei, tentando focá-lo. – Ele nemsequer tem o meu número. – Conseguiraentretanto arrancar o telemóvel do bolsoe atendi: – Estou?

– Holly, estás aí? – inquiriu uma vozestridente.

– Oh, és tu – suspirei. – Sim, estouaqui, Ellen... mas não estou totalmenteem mim.

– Porquê, não estás doente, pois não?A Laura falou-te do trabalho emLondres? É para a semana e tenho de

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saber agora se aceitas. Aceitas, nãoaceitas?

– Na próxima semana? – murmurei,voltando a mergulhar numa bruma quentee sonolenta.

Jude arrancou-me o telefone da mãofrouxa e perguntou num tom descortês:

– O que quer?Ouvi Ellen cacarejar do outro lado.– Não – rosnou ele –, ela não vai

cozinhar para lado nenhum... Vai ficaraqui. – E desligou o telefone, voltou aenfiar-mo no bolso e ligou o motor docarro.

– Isso foi a modos que indelicado –protestei, recuperando ligeiramente ovigor – e não pretendo ficar.

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– Pode ligar-lhe de volta amanhã, sequiser, quando estiver mais capaz detomar decisões.

Chegados a casa, entrámos pelacozinha, onde Merlin ficou encantadopor nos ver. Sob as brilhantes luzes,Jude agarrou-me pelos ombros e olhou-me com um ar preocupado.

– Penso que o melhor é curar-lhe aembriaguez com café, não está habituadaao nosso wassail. Ou talvez sejapreferível ir para cama...

– Sim, foi exatamente o que a Lauradisse que devíamos fazer – concordeisem me dar conta do que dizia.

– Cada vez gosto mais dessa suaamiga. – O canto da boca dele curvou-se

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um pouco.– É mesmo? Ela é mais bonita que

eu... baixa e loura.– Pode ser bonita, mas tu és linda, e

tens precisamente a altura certa.– Só para um gigante.– Por sorte, tens um à mão, não é?– E não preciso de curar nenhuma

bebedeira, estou sóbria – declarei. –Sinto-me apenas... bem. Descontraída. –Na verdade, relaxei ali mesmo naquelepreciso momento contra o peito largodele e ele suspirou e rodeou-me com osbraços, encostando a face ao meucabelo.

– Isso é bom – disse eu, aninhando-memelhor. – Jude, quando dizes que não

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queres que eu vá embora... referes-te aum emprego permanente aqui? Ou a umcaso fortuito e passageiro? É que eunão...

Ele abanou-me ligeiramente e a minhaboca calou-se.

– Refiro-me a casamento, suapalerma! Tu, eu... e filhos, também, setivermos sorte. E devemos ter, depoisdesta noite. – O canto da boca delecurvou-se então por completo, desatisfação. – A grinalda de São Jorgenunca falha, pergunta à Nancy! Já tevetrês, nove meses precisamente depoisdos Revels.

Isto dispersou os vapores do wassailum pouco e, indignada, tentei libertar-

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me dele, empurrando-o.– Queres dizer que tu e a Nancy...– Não, palerma, a Nancy e o marido

dela.– Ah! – Voltei a encostar-me a ele e

Jude abraçou-me com mais força. – Issodo casamento é a sério?

– A Old Nan teve outra palavrinhacomigo acerca da tal manta que ela estáa tricotar para nós esta noite, mas, sejacomo for, sou um homem decompromissos e apaixonei-me por tiassim que te vi. Só que não queriaadmiti-lo, em especial quando achavaque andavas a tramar alguma!

– Pois, mas não andava.– Agora sei que não, mas amava-te à

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mesma, embora isso talvez me tenhadeixado um pouco mal-humorado.

– Apenas um pouco, mas talvez tentardizer a mim mesma que não estava aapaixonar-me por ti me tenha tornadotambém um pouco rabugenta! Mas, secasarmos, vamos passar o tempo todo àbulha, não vamos?

– Sim, estou ansioso por isso.– Eu ainda não disse que aceitava –

fiz notar. – Mas talvez o faça, masapenas porque não suporto separar-meda Lady e do Merlin.

– É bom que aceites – murmurou ele,beijando-me e depressa se tornou claroque o nosso último beijo escaldante nãopassara de um pequeno aquecimento

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preliminar.Quando desviei os lábios para

respirar, tentei libertar-me dele.– É melhor pôr o jantar no forno, Jude.

Está tudo pronto, só falta cozer o arroze...

– Esquece o jantar, esta noite não vaispôr nada no forno – contradisse ele,segurando-me. – Mas eu sou capaz depôr, se me tentares demasiado.

– Isso foi muito descortês! – reclameinum tom sério, e ele fez uma careta.

– Na verdade, apenas te quero pelosteus cozinhados... e pelo teu corpo demodelo – argumentou ele, fazendodeslizar as mãos por mim abaixo.Depois beijou-me de novo e eu perdi

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por completo o interesse em tudo oresto, até em comida.

Mais tarde, muito mais tarde,comodamente aninhada no corpo dele,na sua cama de dossel, disse num tomsério:

– Não percebo o que faço aqui!Apaixonar-me por ti não estavadefinitivamente nos planos que traçarapara a minha vida.

– Então inclui-me no teu cardápio eescreve uma receita em que eu figurecomo prato principal – sugeriu ele.

– Não penses que serei sempre umasubmissa Viola para ti, Orsino! – avisei-o.

– Nunca foste. Mas está bem... penso

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que a nossa representação terminou.– Ou talvez apenas o primeiro ato? –

argumentei seriamente. – Começo avislumbrar aqui um padrão, com o finalde uma coisa tornando-se o início dapróxima, tal como o Richard dizia...Parece-te disparatado?

– Não, mas pode ser os efeitossecundários do wassail.

Puxou-me de volta para os braçosdele e perguntou, esperançosamente:

– Vai mais uma folia?

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Algumas das deliciosasreceitas de Trisha

Wassail

Um ponche muito antigo de cerveja,maçãs e especiarias. Era populardurante a quadra natalícia, em especialna Noite de Reis. Esta receita dará paraseis pequenos copos. Aumente asquantidades conforme desejar.

Ingredientes:

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500 ml de cerveja200 ml de sumo de maçãSumo e casca de um limão1 colher de sopa de mel¼ colher de chá de gengibre, noz-moscada, cravinho e canela em pó

Coloque o sumo de maçã numa panelaem conjunto com o sumo e a casca delimão e as especiarias e leve ao lumeaté atingir o ponto de ebulição, semdeixar ferver por completo, mantendoassim durante cerca de dez minutos.

Acrescente a cerveja e o mel,mexendo para o dissolver, e deixeaquecer bem. Mais uma vez, assegure-sede que a mistura não ferve.

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Este ponche é bebido quente e podeacrescentar uma rodela de limão a cadacopo/caneca.

Biscoitos de Gengibre e Especiarias(para a árvore de Natal)

O resultado será uma bolachinha fininhaque se manterá estaladiça durantebastante tempo na árvore; se dobrar areceita, poderá guardar também algunsnuma caixa para ir mordiscando!

Ingredientes:

100 g de manteiga225 g de farinha175 g de açúcar amarelo

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1 ovo pequeno, batido1 colher chá rasa de gengibre em pó½ colher de chá rasa de canela em pó¼ colher de chá de cravinho em pó(opcional)

Peneire a farinha e as especiarias parauma tigela e adicione a manteiga partidaaos pedaços. Com a ponta dos dedos,misture-a com a farinha até obter umamistura semelhante a migalhas de pão.

Adicione o açúcar e a maior parte doovo e amasse ligeiramente até obter umamassa firme. Junte o resto do ovo, senecessário.

Coloque a massa numa tigela, cubra-acom película aderente e leve ao

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frigorífico durante pelo menos meiahora. Isto tornará mais fácil estendê-lacom o rolo e cortá-la.

Aqueça o forno a 190 ºC. Unte um parde tabuleiros.

Numa superfície enfarinhada, estendaa massa com o rolo, deixando-a fininha.Corte então a massa com cortadores commotivos natalícios. Se apenas quiserbiscoitos redondos, rebole a massa atéobter um cilindro e corte fatias fininhas.

Fure cada biscoito de modo a quepossa ser pendurado na árvore com umafita ou cordel – eu uso um pauzinhochinês –e coloque-os no tabuleiro, bemespaçados.

Leve ao forno durante dez minutos, até

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começarem a dourar nas extremidades –mas mantenha-os debaixo de olho!

Retire-os do tabuleiro e coloque numagrade para arrefecerem.

Costumo decorar os meus misturandoum pouco de açúcar em pó e água comcorantes alimentares naturais numatigelinha – adicione a água às gotas, poisa mistura deve ficar espessa e depoisuso um pequeno pincel, que guardoapenas para este propósito – se usar umnovo, lave-o antes –, para pintalgar ouescrever nos biscoitos. Esta é a partedivertida... Deixe a decoração endurecerantes de pendurar as bolachinhas naárvore.

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Bolos dos Revels

Apesar do nome, os bolos são naverdade uns pãezinhos com fruta eespeciarias. A Holly embebeu açafrãoem água para lhes dar um tomamarelado, mas este passo não é crucial.Porém, se demolhar o açafrão da noitepara o dia, precisará de aquecer de novoa água no dia seguinte. A Hollyadicionou também casca de frutacristalizada à massa.

Ingredientes (para cerca de uma dúziade pequenos pães, para uma maiorquantidade dobre a receita):

375 g de farinha tipo 65

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1 colher de chá de açúcar granulado20 cl de água quente – demolhe duasboas pitadas de açafrão em 15 cl daágua se decidir usar o açafrão1 colher de chá de sal20 g de manteiga½ colher de chá de mistura deespeciarias¾ pacote de fermente seco75 g de casca de fruta variadacristalizada

Numa tigela, misture o açúcar, 7 cl deágua quente e o fermento e reservedurante cinco minutos ou até a misturacriar espuma.

Peneire a farinha, o sal e as

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especiarias para uma tigela grande.Acrescente a manteiga, misturando, edepois abra um buraco no centro dafarinha e verta para aí a mistura dofermento e a maior parte da restanteágua quente. Misture tudo muito bem atéformar uma massa, adicionando maiságua se necessário.

Amasse durante dez minutos e no finaltransfira a massa para uma tigela untada,cubra com película aderente e coloquenum local quente duranteaproximadamente duas horas, ou até quea massa tenha dobrado o seu tamanho.

Coloque a massa numa superfícieenfarinhada e aplique-lhe um soco oudois para que liberte algum ar

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encurralado. Amasse durante mais doisou três minutos. Se decidir usar a cascacristalizada, estique a massacuidadosamente para formar umquadrado espesso e espalhe a massa nocentro. Dobre a massa por cima da frutae amasse de novo por mais dois minutos.

Volte a colocá-la na tigela por dezminutos. Entretanto, pré-aqueça o fornoa 220 ºC e unte os tabuleiros.

Sobre uma superfície enfarinhada,transforme a massa em rolinhos comcerca de quinze centímetros decomprimento e enrole-os em caracóiscomo a Holly fez e coloque-os notabuleiro. Em alternativa, formepequenas bolas e obterá uns pãezinhos

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tradicionais.Cubra os tabuleiros com um pano de

cozinha lavado e coloque-os num localquente durante meia hora ou até quedupliquem de tamanho. Leve ao fornodurante cerca de quinze minutos.Deverão ficar douradinhos, leves, efarão um som ligeiramente oco se lhesbater por baixo.

Transfira para uma grelha para quearrefeçam.

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Agradecimentos

Gostaria de agradecer a PaulineSheridan os seus inestimáveis conselhoscomo perita em cavalos árabes e a suaexcelente receita de farelada quente paracavalos; o meu obrigada também a CarolWeatherill pelas luzes sobre criação decabras, em especial pela torrada e omelaço!

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ÍndiceCAPAFicha TécnicaPara as minhas grandes amigas e colegasdo 500 Club,PRÓLOGO

O Fantasma do Natal PassadoCapítulo 1

Pausa FecundaCapítulo 2

Little MummingCapítulo 3

Weasel PotCapítulo 4

Rosa de SaronCapítulo 5

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Farelada QuenteCapítulo 6

Cavalo DadoCapítulo 7

De Fio a PavioCapítulo 8

Frio de RacharCapítulo 9

AdagasCapítulo 10

TramadaCapítulo 11

Não Há MalCapítulo 12

FrutadoCapítulo 13

Espíritos NatalíciosCapítulo 14

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Torradas e MelaçoCapítulo 15

AdventoCapítulo 16

ConsoloCapítulo 17

RappingCapítulo 18

Rainha do GeloCapítulo 19

Coco RaladoCapítulo 20

ApagãoCapítulo 21

Ódio à Primeira VistaCapítulo 22

ResultadosCapítulo 23

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Juntar as PeçasCapítulo 24

A Mala da IraCapítulo 25

Cântico de NatalCapítulo 26

PresentesCapítulo 27

TricotarCapítulo 28

Natal PresenteCapítulo 29

AbominávelCapítulo 30

Um Pequeno EnigmaCapítulo 31

Ouro dos TolosCapítulo 32

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Peças do PuzzleCapítulo 33

Peru a RodosCapítulo 34

Ligeiro DegeloCapítulo 35

AçãoCapítulo 36

LúcioCapítulo 37

AmolgadelasCapítulo 38

Photo-FinishCapítulo 39

Sinais e PresságiosCapítulo 40

Noite de ReisAlgumas das deliciosas receitas de

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TrishaAgradecimentos