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Relato da 20ª Caminhada de Bragança Paulista a Pedra Bela, realizada entre os dias 14 e 15 de Março de 2015, romaria ao Santuário de Nossa Senhora de Aparecida, no alto da pedra!
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NOITE RENITENTE
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(Diego de Toledo Lima da Silva – E-mail: [email protected])
Romeiros: Diego de Toledo Lima da Silva, Benedito Aparecido da Silva e muitos
outros, anônimos no relato, mas peregrinos de grande valor
Joanópolis – Bragança Paulista – Pedra Bela
14 e 15 de Março de 2015
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Embriagados pelas mágoas e desaforos da convivência com outras pessoas, o
descanso da tarde foi breve e com bruscas interrupções. O cansaço não seria motivo de
impedimento para a romaria noturna, nem a chuva que ameaçava cair o dia todo.
A noite de sábado chegou e preparamos nossas coisas, duas mochilas e um
objetivo apenas: seguir pelo caminho. De carro fomos até o ponto de partida, onde
centenas de outros peregrinos já estavam concentrados.
A benção inicial abriu as porteiras do caminho, pontualmente às 21:30 hs, primeiros
trechos cortando a densa área urbana bragantina. Como na canção Romaria, o som de
pequenos sinos nos guiou por àquelas ruas movimentadas. O caminho nos mostraria
muitas coisas, entre elas a capacidade de renovação e mudança que a fé e uma
caminhada podem proporcionar ao ser humano.
Vencido o asfalto, a estrada de chão e a escuridão trouxeram um novo ambiente,
iluminado precariamente por nossas lanternas. Os barulhos da noite eram como música
aos nossos ouvidos, atrapalhado apenas por exaltados jovens e alguns celulares. No
exagero da pressa desses jovens dialogávamos que à frente faltaria perna para eles
superarem as subidas, verdadeiras provas de superação.
No eucaliptal da Melhoramentos o grupo se reuniu, havia chegado a hora da reza
do terço. Acendemos nossas velas, chamas da vida e do poder do fogo. Lentamente,
prosseguimos em procissão renovando nossos votos, intercalados por orações e vivas a
Nossa Senhora. Nesta altura do caminho, as mágoas e outros frágeis sentimentos haviam
se perdido, esquecidos para sempre em algum ponto da estrada.
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O final do terço possibilitou um aumento da velocidade horária, passos largos
ditavam as horas da noite, entre uma ultrapassagem e outra. No quilômetro dez uma
pequena gruta trouxe a simplicidade do campo, suas tradições, cultura e arte.
Chegado ao primeiro pouso, um bar rural na beira da estrada, sentamos num bloco
encostado ao muro lateral e o sono deu seu primeiro sinal de presença. Resolvemos
seguir antes do grupo e fomos recompensados com o aparecimento da lua minguante,
mágica e misteriosa naquele pedaço de sertão.
Morros de terra boiadeira foram o desafio durante uma hora e vinte minutos, pouco
mais de duzentos metros de desnível. De notável sinuosidade, as subidas marcaram o
ponto final de alguns caminhantes, resgatados pelos veículos de apoio. Após uma grande
subida vem uma grande descida, sempre... Verdade que não falha. Dores, sono e
cansaço foram minimizados pelo barulho das cachoeiras correndo entre a mata.
Alcançando a rodovia, um precário acostamento nos carregou até a última parada,
um posto de gasolina na entrada da pequena Pedra Bela. Nesse ponto, às 4:00 hs, o
cansaço e o sono nos venceram por nocaute. Passado pouco mais de uma hora, as luzes
se apagaram e fomos obrigados a abandonar o pouso.
Negando caronas, a romaria de cada um se aproximava de seu destino final, o
Santuário da Pedra. Canários alegravam a extensa subida, por uma estrada asfaltada
com carros em alta velocidade, sentido às terras altas. Dialogando com os passarinhos
assobiava alegremente, era notícia de um novo dia, de um novo amanhecer e de muitas
possibilidades.
Ao longe avistamos o Morro do Lopo, tendo à frente um denso nevoeiro. Logo
voltaríamos para os braços e a proteção do velho Gigante Adormecido. Abrimos a janela
da mente e a porta do coração, suspiramos de emoção com o nascer do sol, uma pintura
da mãe natureza. Este é o sertão, esta é a vida. No portal da entrada avistamos a igreja e
a cruz, símbolos do que somos e buscamos ser.
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Tiramos nossos chapéus e reverenciamos a chegada, levados por um vento frio até
a escadaria. Preparando-nos para o topo, numa gruta natural, Nossa Senhora de Lourdes
abençoou a respiração ofegante, símbolo do ser caminheiro.
Vencidos os últimos degraus, o Cristo Redentor abraçou o destino às 6:30 hs,
seguido da igreja. Ao nosso redor, a emoção tomou conta de muitos outros,
agradecimentos retribuídos de joelhos. Toda a igreja e a imagem santa estavam tomadas
por pequenas borboletas, uma cena marcante e memorável. Em pensamento, o sino e a
canção caipira entoavam o visual serrano:
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Romaria (Renato Teixeira)
É de sonho e de pó, o destino de um só Feito eu perdido em pensamentos Sobre o meu cavalo É de laço e de nó, de gibeira o jiló Dessa vida cumprida a sol
Sou caipira, Pirapora Nossa Senhora de Aparecida Ilumina a mina escura e funda O trem da minha vida
Sou caipira, Pirapora Nossa Senhora de Aparecida Ilumina a mina escura e funda O trem da minha vida
O meu pai foi peão, minha mãe, solidão Meus irmãos perderam-se na vida Em busca de aventuras Descasei, joguei, investi, desisti Se há sorte eu não sei, nunca vi
Sou caipira, Pirapora Nossa Senhora de Aparecida Ilumina a mina escura e funda O trem da minha vida
Sou caipira, Pirapora Nossa Senhora de Aparecida Ilumina a mina escura e funda O trem da minha vida
Me disseram, porém, que eu viesse aqui Pra pedir em romaria e prece Paz nos desaventos Como eu não sei rezar, só queria mostrar Meu olhar, meu olhar, meu olhar
Sou caipira, Pirapora Nossa Senhora de Aparecida Ilumina a mina escura e funda O trem da minha vida
Sou caipira, Pirapora Nossa Senhora de Aparecida Ilumina a mina escura e funda O trem da minha vida
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Reza a história que, por volta de 1930, a Virgem Mãe de Deus se manifestou sob a
forma de uma imagem ali no alto da pedra. A crença e a fé daquele povo levaram à
construção de uma capela no local, milagres que continuam acontecendo, movidos pela
tradição e cultura popular da região bragantina.
Todo caminho, novo ou velho, traz lições valiosas e aprendizados. O espírito
peregrino, a paz e a disposição de ajudar o próximo são o combustível que nos faz
caminhar em frente. Não existe explicação nem a buscamos. Não existe caminhante e
caminho separados, estes são indivisíveis. Não existe melhor nem pior, derrota nem
vitória, apenas àquele que segue pelo caminho, muitas vezes sem destino e direção.
Suas recompensas são a natureza e a fé, e, se possível, um banho quente no final da
jornada diária.
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Encostados numa paineira acompanhamos a missa, sendo que próximo à benção
final a chuva chegou, o céu esperou até o último romeiro alcançar o destino para derrubar
suas lágrimas, emocionado com a disposição e fé daqueles homens e mulheres, idosos e
crianças, simplesmente renitentes de uma velha tradição.
Referências AMILCAR DONATO BARLETTA. Conhecendo a região bragantina. Bragança Paulista: EDUSF, 2000. 272p.