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Originalmentepublicadoem: P. Slevicklarg.1. TheTheOlY oFlhe Novel, Novo YOIk,FreePress, 1967. NORMAN FRIEDMAN Tradução de Fábio Fonsecade Meio oponto de vista . na. ficção . odesenvolvimento . deum . . conceDocrídco 166 REVISTA uSP, São Paulo,0.53, p. 166-182, março/maio 2002

Norman Friedman - O Ponto de Vista na Ficção

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Page 1: Norman Friedman - O Ponto de Vista na Ficção

Originalmentepublicadoem: P.Slevicklarg.1.TheTheOlYoFlheNovel, Novo YOIk,FreePress,1967.

NORMAN FRIEDMAN

Traduçãode Fábio Fonsecade Meio

opontode

vista.

na.ficção .

odesenvolvimento. deum

. .

conceDocrídco166 REVISTAuSP, São Paulo,0.53, p. 166-182, março/maio 2002

Page 2: Norman Friedman - O Ponto de Vista na Ficção

UPermitam-me adicionar

apenas que, nesta Me, como

em outras, há e haverá

sempre, independente do

que já tiver sido feito, algo

novo a expressar,.algo novo a

descrever" (Walter Besant,

TheArt ofFiction, 1885).

Idous Huxley, falando através do

"Caderno" de Philip Quarles,

questionou há cerca de vinte e

cinco anos o mau gosto contem-

porâneo pelo autor onisciente na ficção:

"Será que o autor precisa sertão reservado?

Penso que estamos um pouco melindrados

demais a respeito dessas aparições pesso-

ais, hoje em dia", Quatro anos depois,

Joseph Warren Beach escreveria: "Olhan-

do de relance o romance inglês de Fielding

a Ford, a coisa que nos impressionará mais

que qualquer outra é o desaparecimento do

autor". De maneira conforme, Bradford A.

Booth escreveu, em 1950: "Muito se tem

falado que a mudança mais significativa na

ficção de nosso tempo é o desaparecimento

do autor. Inversamente, a marca registrada

do romance vitoriano é a presença do au-

tor, sempre disposto a introduzir um co-

mentário, interpretar os personagens ou es-

crever um ensaio sobre repolhos e reis".

Feliz ou infelizmente, pois, parece que nos-

sos "melindres" se deram bem (I).

Contudo, esses melindres são concebi-

dos por muitos hoje como sendo da maior

importância. "É o recurso técnico mais

eminente desde a época de Henry James",

afirma Beach, "que a estória se conte, con-

duzida pelas impressões dos personagens.

É isso que, por fim, diferencia a ficção da

história e da filosofia e da ciência". A con-

sideração de Mark Schorer é ainda mais

rigorosa; é hora, anuncia, de lermos a fic-

ção como se a técnicá fosse algo mais cru-

cial do que mero adorno, pois "a técnica é

o único meio de que [o escritor] dispõe para

descobrir, explorar, desenvolver sua maté-

ria, transmitir seu significado e, por fim,

avaliá-Io". E fala, sobretudo, da relação es-

tética entre o autor e sua, obra. "Não pode-

mos ,mais considerar séria", continua, "a

crítica de poesia que não assuma essas ge-

neralizações; mas, em ficção, o caso ainda

não foi demonstrado". Se, em ficção, o caso

ainda não foi demonstrado, há forças pode-

rosas trabalhando no processo de demons-

trá-Io. O "ponto de vista" vem se tornando

umas das distinções críticas mais úteis dis-

poníveis hoje ao estudioso da ficção (2).

O propósito deste artigo é resumir o

fundo estético desse conceito e sua emer-

gência como instrumento crítico, delinear

REVISTAUSP, São Paulo, n.53, p. 166-182, março/maio 2002

Huxley,Con/roponto119281.cop.xxii;8eoch,TheTwenlielhCenluryNove/: Sludies inTechnique,NovoYorke lon-dres, 1932, p. 14; 8001h,'Formond Techniquein lheNovel',inTheReinlerprelo/ion01Viclorian litera/ure,ed.JosephE.Boker,Princenlon,1950,p. 79.

2 Beoch,op. cil., pp. 15-6;Schorer, 'Technique osDiscovery', in Essays inlv10dern!ileraryCri/icism,ed.RoyB.WeslJr.,NovoYorkeToronlo,1952, pp. 190-1IreimpressooporlirdoHudsonReview,19481.

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Page 3: Norman Friedman - O Ponto de Vista na Ficção

3 A RepúblicaIPlolãomorreuem347 o c. I. 11I,392.4. Poroobteralgunsponlosaliasrepre-sentativosdohislóriodoestéti-co e docríliconoquetocooessadislinção,consulte:Arisló-leles,RetóricaIco.3300.C.1.11I,xi, 2.4;Quinliliono,Ins/ilu'Ias1Ir.co.88d.q IV,ii, 28.34; VIII,iii, 61,2; Sidney,AnApofogyforPoelryIco. 1583,publicado em 15951. inElizobelhonCri/icolEssoys,ed.G. GregorySmith,Londres,1904, I, 201; JohnHoskins,Direc/ionsforSpeechondStyleIca. 16001, ed. Hoyt H.Hudson,Princelon,1935, p.42; 8acon, De Augmenlis116251.v,v;Dryden,'A Lelter10lhe HonorobleSir Robert

Howord',prefáciode AnnusMirobiljs116661;AlexonderGerord,Essoyon Tosle,Lon-dres,1759,porte11I,seçãovi,pp. 197.8eEssoyonGenius,Londres,1774,porleli, seçãoiii, pp. 169.74;HenryHome,Lord Komes, Elemen/sofCrilicism,Edimburgo,1762,copoxvii,pp.483.4Id. MihoilM. MOIozov,'TheIndividuol-izolian 01 Shokespeore'sChoroclersthroughImagery',inShokespeore Survey 2,Combridge,Inglaterra,1949,pp. 83-1061; Coleridge,'Shakespeore os o PoelGenerolly',publicadoinicio~menteem1836,mosprovove~menleopresenlodorioformodeumapaleslroem1818ouofémesmoem 1808; Keals,emcorloo 80iley,sáb.22/ nov./1817e emcorloo Georgee

Thomos Keats, dom ./21 / dez.

1817;Hozlill,'On Shokespe-oreondMilton',palestrali, inLeclureson lhe EngljshPoe/s118181;Amold,noprefáciooPoems,ed. 1853; Meredilh,corloo srlo.j-H-, 22/nov';-1864, Lel/ersof GeorgeMeredi/h,coligidoseeditadosporseulilho,NovoYork,1912,I, 163. .Agradeçoo meucolega,o Sr.ChorlesA McLoughlin,porler'mechamadooatençãoporoosseteprimeirosrelerênciosocimo.

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e exemplificar seus princípios básicos e,

finalmente, discutir sua significação, de

modo geral, em relação ao problema da téc-nica artística.

A arte da literatura, por oposição àsoutras artes, é, em virtude de seu medium

verbal, a um só tempo amaldiçoada e aben-çoada com uma capacidade fatal de falar.Seus vícios são os defeitos de suas virtu-

des: de um lado, sua amplitude e profundi-dade de significação excedem grandemen-te o escopo da pintura, da música' ou daescultura; de outro, sua aptidão para proje-

tar as qualidades sensoriais de pessoas,lugares e eventos é menor na mesma medi-da. Se pode expressar mais idéias. e atitu-des, apresenta imagens qualitativamentemais débeis. Basta ao pintor servir-se de

sua paleta para obter a nuança certa no lo-cal certo; mas o escritor fica continuamen-te abalado entre a dificuldade de mostrar o

que uma coisa é e a facilidade de dizer comose sente a respeito dela. O escultor podeapenas mostrar; o músico, exduindo-"se amúsica programática, não pode nunca nar-rar. Mas a literatura deriva sua própria vidadesse conflito - básico em todas as suas

formas - e á história de sua estética pôde,

em parte, ser escrita graças a essa tensãofundamental, à qual o problema do pontode vista na ficção se relaciona como partede um todo. Pois a distinção geral foi feita,de Platão e Arist6teles a Joyce e Eliot, para.que o específico tomasseJorma. Das orien-tações tocantes à "vividez" (enargia) dosretóricos antigos até o estudo da "proje.:.

ção" (empatia) dos estetas modernos, arelação entre os valores e atitudes do autor,sua incorporação em sua obra e seus efeitossobre o leitor foram e continuam a ser de

importância crucial.Para nossos propósitos, bastará estabe-

lecer os dois pontos opostos no tempo entreos quais a história deste conceito pode sertramada. Platão, primeiramente, fez umadistinção, ao discutir o "estilo" da poesiaépica (3), entre "narração simples", de um

lado, e "imitação", de outro. Quando o poeta

fala na pessoa de outro, podemos dizer queele assimila seu estilo à maneira de falar dessa

pessoa; essa assimilação dele mesmo a ou-tro, pelo uso da voz ou do gesto, é uma imi-tação da pessoa cujo caráter ele assume.Todavia, se o poeta em todo lugar aparece e

.nunca se oculta, então a imitação é abando-

nada e sua poesia se torná narração simples.

Platão, em seguida, ilustra essa diferença"traduzindo" uma passagem inicial da Ilíada

do discurso direto para o indireto - essenci-almente, colocando "ele disse que" ou "ele

ordenou-lhe que" no lugar dos diálogos en-tre aspas - tornando, assim, uma passagemimitativa em narração simples. Ele vai adi-

ante e observa que o extremo oposto - diá-logos, apenas ~ se aproxima do estilo dodrama, inteiramente imitativo (à exceção,

poderíamos acrescentar, dos comentários docoro e das narrações dos mensageiros).Homero, é claro, mistura ambos - assim

como a maioria de seus sucessores. Temos,

por outro lado, a forma que usa somente avoz do poeta: por exemplo, o ditirambo (lí-.rica). Veremos a seguir, entretanto, que odiálogo não é o único fator que distingue aimitação da narração.

Partindo agora para a extremidade opos-ta da curva da história, recordemos uma

distinção similar desenvolvida por Joycena pessoa de Stephen, entre as formas líricae dramática, tendo o épico como interme-

diário, que não difere de maneira alguma,em linhas gerais, daquela de Platão. Nesteponto, ele fala da evolução daliteratura doclamor lírico para as projeções dramáticas

impessoalizadas: "A narrativa tampouco émeramente pessoal. A personalidade doartista passa para a própria narração, en-chendo, enchendo de fora para dentro as

pessoas e a ação como um mar vital (. . .). Aforma dramática é atingida quando a vita-

lidade que encheu e turbilhonou em voltade cada pessoa enche todas as pessoas comuma força tal que ele ou ela acaba assumin-do uma vida .estética própria e intangível".Segue, então, a hoje famosa passagem so-bre o desaparecimento do autor: "A persb-nalidade do artista, no começo um gri to, OUuma cadência, ou uma maneira [lírica], e

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depois um fluido e uma radiante narrativa

[épica], acaba finalmente se clarificando

fora da existência [drama], despersona-lizando-se, por assim dizer" (4).

Permitam-nos considerar brevemente a

emergência da aplicação específica desta

distinção básica à análise do ponto de vistana ficção, pois o ponto de vista oferece um

modus operandi para distinguir os possí-veis graus de extinção autoral na arte nar-rativa.

No que toca ao problema particular darelação entre autor, narrador e o tema daestória, Edith Wharton lamentou, em 1925:

"Parece, não obstante, que tal questão devepreceder qualquer estudo do tema escolhi-

do, já que o tema é condicionado pela res-posta a ela; mas nenhum crítico parece tê-Ia proposta, e coube a Henry James fazê-lo,

em um daqueles intrincados prefácios àEdição Definitiva da qual os axiomas téc-nicos deverão, um dia, ser piamente des-prendidos" (5). Pelo que se seguiu desdeentão, ela provou-se ainda mais correta doque imaginava, pois não só os prefácios deJames tomaram-se a origem e a fonte dateoria crítica nessa matéria, como também

nada menos que duas exaustivas interpre-tações dos mesmos já haviam surgido quan-do ela escreveu essas palavras - a de Beach,

em 1918, e a de Lubbock, em 1921. Mas,

antes, examinemos alguns dos pronuncia-mentos do próprio mestre.

James, em seus prefácios (1907 -09), nos

diz que se encontrava obcecado pelo pro-blema de encontrar um "centro", um "foco"

para suas estórias, o que foi solucionado,em larga medida, pela consideração decomo o veículo narrativo podia ser limita-do pelo enquadramento da ação na consci-ência de um dos personâgens da própriatrama. "Sempre é uma bela paixão", co-menta, ."0 esforço criativo para entrar napele da criatura. ..". Logo, uma vez que airresponsável quebra das ilusões do gárru-lo autor onisciente - que conta a estóriacomo ele a percebe, e não como a percebeum de seus personagens - é eliminada por

~. esse dispositivo, a estória ganha em inten-sidade, vi videz e coerência. "Não há eco-

nomia de tratamento sem um ponto de vista

".

adotado, relacionado, e embora eu enten-

da, sob certos graus de pressão, uma comu-nidade de visão representada entre várias

partes da ação quando pede concentração,não entendo quebra de registro, sacrifícioda consistência do registro, que antes nãodisperse e enfraqueça" (6).

O professor Beach incumbiu-se de or-

ganizar a teoria desse "método" e aplicá-Ioà ficção do próprio James. Ele faz a distin-

ção 'entre diversos tipos de pontos de vi'stae discrimina entre as calculadas altemân-

cias no foco de James e "aquela altemânciaarbitrária e impensada no ponto de vista

dentro de um capítulo, de um parágrafo,aquela manipulação visível dos títeres a

partir de fora, que representa uma ameaçatão grande à ilusão e à intimidade". O pro-blema como um todo, entretanto, "é mais

difícil e complexo, e à prática dos escrito-res é variada. Seria impossível fazer um breve

resumo do uso comum, mesmo que fossefeita uma pesquisa suficientemente cuida~

dosa desse campo para sentir-se seguro detodos os fatos" (7). A hora era propícia, apa-rentemente, para o próximo passo.

Restou a Percy Lubbock aplicar a dis-tinção geral entre a apresentação direta eindireta - distinção ~omum, como sugeri-mos, em toda a história da estética e da

crítica - à discussão da concepção particu-

lar de James a respeito do ponto de vista naficção. "A arte da ficção", afirma, "não teminício até que o romancista pense sua estó-ria como algo a ser mostrado, a ser tão

exposta que se conte por si mesma [em vezde ser contada pelo autor]. . . ela deve pare-cer verdadeira, e é tudo. Ela não se fàz

parecer verdadeira por simples afirmação".Se a "verdade" artística é uma questão decompelir a expressão, de criar a ilusão da

realidade, então um autor que fale em suaprópria pessoa sobre as vidas e fortunas deoutros estará colocando um obstáculo a mais

entre sua ilusão e o leitor, em virtude de sua

própria presença. Para remover esse obstá-culo, o autor pode optar por limitar as fun-ções de sua própria voz pessoal de umamaneira ou outra: "A única lei que ele deve

obrigatoriamente obedecer, seja qual for ocurso que esteja perseguindo, é a necessi-

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4 Retratodo Artista Quando Jo-

vem Idatada Dublin, 1904,

Trieste, 1914, publicado em

19161. metadedocap. V. CI.Eliot, 'Tradition and lhe Indivi'

dual Talent' 119171. 'Hamletand His Problems' 119191.Paro uma discussão técnico do

'distãncia estética', consultar

Melvin Rader, AModem Booko/ Aesthetics 100. rev., New

York, 1952, pp. 381.4651,onde o trabalho de

Munsferberg, Bullaugh, Ortega

y Gasset, Worringer e Vemon

Lee é apresentada e discutido.

NJ.: j. Jayce, Retraio do Artis..

to QuandoJovem, 4<00., trad.

José Geraldo Vieira, Rio de

Janeiro, Civilização Brasileiro,

1998.

5 The Writing 01 Fiction, Novo

Yorke Londres, 1925, pp.43e segs.

6 The Art o/the Nove!: Cri/ica!

Pre/oces, R. P. Blockmur, Novo

Yark e Londres 1934, pp. 37.

B,300.NJ.: H. James, As Asos doPombo, Irad. Marcos 5anlar'

rila, Rio de Janeiro, Edioura,

1998; poro o prefácio deHenry James o The American,consultei Marcelo P. Parreira,

Os Prefácios de Henty James:

Antologia e Comentário, tesede dissertação de mestrado emTearia Lilerária e Literatura

Comparado, FFlCH.USP,

200 I, sob orientação do prorodrolumna M. Simon.

7 TheMethod o/ Henry Jomes,

New Haven, 1918, pp. 56.71.

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8 TheCralt01Fietion,NovaYork,1921, pp. 62, 66-7, 7\-2,139-43.

9 Consuhor, por exemplo, os ob-servações de MaeKenzie,

Defoe, Riehordson, Fielding eSeoll, in Nove/isls on Nove/s,

00. R.BrimleyJohnson,Londres,1928, pp. 13, 25, 41-5, 58-9,94, 173, 180-4, 199-200;

de Thockeroy e Moupossont,in The Writer's Ar/, 00. Rollo

Waher 8rown, Combridge,Mossoehusells, 1921, pp.202.4, 271; NossouWilliam

Senior,Essoyson Fiction, Lon-

dres, 1864lescrito em 1821-

57I,pp.18gesegs.,349-51,391-2; Sidney Lonier, TheEnglishNovel, Cenlennia!Ed.,vai. IV,005.CloreneeGohdes

e KempMalone, Bohimore,1945, pp. 22, 172-3, 190,220-2; Waher Besanl,TheArt01Fie/ion,Boston, 1885 leon-

ferência realizado no RoyalInslilulion em 18841. p. 3;HenryJames,TheArt 01Fielion

and O/her Essays,00. MorrisRoberts,Nova York, 1948, pp.4-6; cI. 'A HumbleRemonslronee'11884l,de R.L.Stevenson; Doniel Greenlol

Thompson, The PI1i/osophy01Fiefion in litero/ure, Londrese

NovaYork, 1890, pp. 211-2;WilliomDean HoweUs,Oilicisrnin Fielion,Nova York, 1891,pp. 19.21, 75-6; Brander

Mollhews, Aspecls 01 Ficlion,

Nova York, 1896, pp. J85-6,'98-9, 223, 234; BlissPerry,A StudyolProseFiclion,Boslon,1902, pp.48-72;FrankNorris,The Responsibi/i/ies of theNoveIisI,NovaYork,1903,pp.27-8, 206, 246.

10Boston, 1905, pp. 15-21,31-B, 49 e segs., 66-72, 10 1; d.

Eve~n Moy Albright, TheShort-Story, Nova York, 1907, pp.54-5, 66-70.

11CIaytonHamilton,MoleriolsondfvIe/hods 01 Fietion, Nova York,

190BIreimpressocomoA Ma-nual01lheArl 01Fielionem191BI.pp. 120-3B; ChorlesF.

Horne,TheTechnique01 lheNove/.NovaYorke Londres,1908, pp. V, 243-63; J. Berg

Esenwein,Writingthe Shorl-Story,Springlield,Mosí, 1909,pp. 109-24; Woher B. Pitkin,TheAli ond Business01 S/o,,!Wriling,NovaYork,1912,pp.174-B7; Cad H. Grobo, The

Artol lheShortStory,Nova York,1913, pp. 21-36, 159; EthanAllenCross,TheSOOrlS/O"f,Ch~

cago, 1914, pp. Bü-6; HarryT. Baker, The Con/emporo,,!ShorlS/o,,!,Nova York,1916,pp.52, 111-2; BlancheCoItonWillioms, AHandbookonSto"!Writing,NovaYork,191712"00. lev. 19301, pp. 129-66;

HenryBurrowesLathrop,TheArt01lheNove/ist,Londres,1921,pp. 252-B2.

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dadede ser consistente em algum plano, de

seguir o princípio que adotou; e, obviamen-

te, trata-se de um dos primeiros de seus

preceitos, assim como para cada artista, de

qualquer gênero, permitir-se apenas a lati-

tude necessária, nada mais". Um dos prin-

cipais meios para esse fim, aquele que o

próprio James não só anunciou como pôs

em prática, é fazer com que a história seja

contada como que'por um dos personagens

dela mesma, mas na terceira pessoa. Dessa

forma, o leitor percebe a ação à medida que

ela é filtrada pela consciência de um dos

personagens envolvidos, e contudo a per-

cebe diretamente, à medida que ela vibra

sobre essa consciência, evitando, assim,

aquele distanciamento tão necessário à nar-

ração retrospectiva em primeira pessoa: "a

diferença é que, em vez de receber seu re-

lato, nós podemos vê-Io na ação dejulgare

refletir; sua consciência, outrora um rumor,

um ponto a respeito do qual devíamos acre-

ditar em sua palavra, encontra-se agora

diante de nós em sua agitação original" (8).

A consciência mental é, portanto, dramati-

zada de maneira dire~a, em lugar de ser

relatada e explicada indiretamente pela voz

do narrador, muito da me~ma forma quepalavras e gestos podem ser dramatizados

diretamente (cena), em vez de serem resu-

midos pelo narrador (panorama).

Embora, sobre esse ponto, possamos

encontrar várias observações perspicazes

dispersas pelos escritos de romancistas e

críticos antes que os prefácios de James

viessem cristalizar a questão fundamental

- pois seus conceitos não caíram do céu (9)

- devemos forçosamente limitar-nos a uma

breve consideração sobre o que lhes acon-

teceu depois que foram comentados por

Beach e Lubbock. Exceção deve ser feita,

todavia, ao trabalho de Selden L. Whitcomb

intitulado The Study of a Novel (1905), o

primeiro, até onde sei, a dedicar uma seçãoformal à rubrica, "The Narrator. His Point

ofView". Nele se afirma que "a unidade de

uma passagem ou trama depende largamen-

te da clareza e estabilidade da posição [do

narrador]" (10). Essa noção, da forma como

surgiu um ou dois anos antes dos prefácios

de James, parece notavefmente profética

REVISTAUSP, São Paulo, n.53, p. 166-182, março/maio 2002

do que estava por vir, uma vez que, a partirdesse ponto, quase todos os manuais publi-cados sobre a arte da ficção contêm uma

seção similar. Durante os dez anos seguin_tes, aproximadamente, ocorreu uma enxur-rada de manuais que logo se tornou umaavalanche, e a análise específica do pontode vista tomou-se uma propriedade comUm(11).

O trabalho mais significativo nesse cam-

po, depois de Beach e Lubbock, embora,como vimos, pareça curiosamente não terconsciência disso, é o da própria Sra.Wharton, de 1925: "Deveria ser a primeirapreocupação do escritor escolherdeliberadamente a mente que refletirá a sua,como se escolhe o local para uma edifi-cação. .. e, isso feito, viver dentro da menteescolhida, tentando sentir, ver e reagir exa-tamente como faria esta, não mais, nãomenos, e, acima de tudo, não de outra for-

ma; Só assim poderá o escritor evitar aatri-buição de incongruências de pensamento emetáfora ao intérprete escolhido". Desteponto em diante os manuais estão sempreconosco (12).

O restante da segunda década distingue-se pela contestação de E. M. Forster, em1927, que olha ligeiramente para o nossoproblema, apenas para passá-Io adiantecomo um tecnicismo trivial. Dando crédito

total a Lubbock por suas "fórmulas", eleprefere ver o romance de outra maneira: aprincipal especialidade do romancista se-ria a:onisciência desembaraçada por meio'da qual "ele comanda toda a vida secreta, edeste privilégio não deve ser privado.'Como o escritor sabia disso?', se diz às

vezes. 'Qual é seu ponto de observação?Ele não está sendo consistente, está mu-

dando seu ponto de vista do limitado parao onisciente, e agora retornando novamen-te'. Questões como estas têm bastante daatmosfera dos julgamentos feitos a seu res-peito. Tudo o que importa ao leitor é se a

mudança de atitude e a vida secreta sãoconvincentes" (13).

A terceira década é agraciada especial-

mente pelo estudo monumental de Beach,em 1932, sobre a técnica do romance do

século XX, caracterizado, diz ele, princi- .

Page 6: Norman Friedman - O Ponto de Vista na Ficção

palmente em virtude do fato de que "a es-tória conta-se a si mesma; a estória fala porsi. O autor não pede desculpas por seuspersonagens; ele nem sequer nos diz o quefazem, mas faz com que eles mesmos nosdigam. Acima de tudo, faz com que nosdigam o que pensam, o que sentem, queimpressões passam por suas mentes a res-

peito das situações em que se encontram".Aparentemente encorajado pelo trabalhode Lubbock, que 'veio à cena logo após seuestudo inicial sobre James, Beach, nesse

momento, faz uma investida congruente edesconcertante sopre o problema de con-tar/mostrar da maneira como ele apareceem centenas de romances modernos (14).

Em um ensaio datado de 1941, encon-tramos Allen Tate aceitando o desafio de-

clinado por Forster: "A limitada e, portan-to, crível autoridade para a ação, a1cançadacolocando-se o sabedor da ação dentro de

seu espectro de ação, é, talvez, o elementodistintivo do romance moderno; e é, em

todas as infinitas mudanças de foco de queé capaz, o elemento específico que, maisdo que qualquer outro, tornou possível aoromancista construir uma estrutura objeti-va". De maneira conforme, Phyllis Bentley,em 1947, é forçado a observar: "O declíniogradual no uso do comentário direto, até

seu total desaparecimento de um só golpeno século XX, é um estudo fascinante quedeveria merecer mais atenção dos críticos

contemporâneos no interesse... [daquelaestética negligenciada da ficção] que men-cionei em minha introdução" (15).

O avanço verdadeiramente significati-vo na teoria do ponto de vista ocorrido nosanos 40 foi o trabalho de Mark Schorer, de

1948. Se Lubbock via o ponto de vista como

. um meio para uma apresentação coerente evívida, Schorer dá um passo à frente, exa-minando "os usos do ponto de vista nãoapenas como um modo de delimitação dra-mática, mas, mais particularmente, de de-finiçao temática". Um romance, diz ele,revela normalmente um mundo criado de

valores e atitudes. e o autor é assistido nes-

sa busca por uma definição artística dessesvalores e atitudes pelo medium de controleoferecido pelos dispositivos do ponto de

vista; através desses dispositivos, ele é ca-. paz de desenredar seus próprios preconcei-tos e predisposições daqueles de seus per-sonagens e, dessa forma, avaliar os de seuspersonagens dramaticamente entre si den-tro de seu próprio espectro. Nisso, ele tema concordância de Ellen Glasgow. que es-creveu 'em 1943: "Ficar perto demais, aoque parece, é mais fatal, em literatura, doque ficar longe demais; pois é preferívelque o escritor criativo recorra à imagina-

ção do que sucumba à emoção". O ro~an-cista deve "separar o tema do objeto no atoda criação"; isso é feito através da "totalimersão" ou "projeção" nos materiais desua estória. Finalmente, que a distinçãoentre contar/mostrar encontra-se estabele-

cida como um lugar-comum da crítica de

ficção fica evidente nas últimas reiteraçõesa esse respeito, no trabalho de Bernard DeVoto, de 1950, assim como nos compên-dios atuais - não somente naqueles sobre

escritura e leitura de ficção, mas tambémnos lançamentos mais recentes (16).

11

Tendo traçado o desenvolvimento des-te conceito-chave, podemos agora tentaruma definição concreta e coerente de suaspartes e de suas relações. Tal definição,penso, será produzida se conseguirmoscodificar as questões das quais essas dis-tinções são respostas e se pudermos orga-

nizar essas respostas de forma que aparen-tem uma seqüência lógica.

Já que o problema do narradoré a trans-missão apropriada de sua estória ao leitor,as questões devem ser algo como: 1) Quemfala ao leitor? (autor na primeira ou terceirapessoa, personagem na primeira ou osten-sivamente ninguém?); 2) De que posição(ângulo) em relação à estória ele a conta?(de cima, da periferia, do centro, frontal-mente ou alternando?); 3) Que canais de

informação o narrador usa para transmitira estória ao leitor? (palavras, pensamentos,percepções e sentimentos do autor; ou pa-lavras.e ações do personagem; ou pensa-

REVISTAUSP, São Paulo, n.53, p. 166:182, março/maio 2002

12 Whorlon, pp. 11-6, 43-6,7{)

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York, 1926, pp. 47.56.

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15 Tole, "ThePoslof Observolion

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16 Glosgow, A CertainMeosure,

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171

Page 7: Norman Friedman - O Ponto de Vista na Ficção

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17Fronklin,Aulabiagraphy11r.1793emdiante,Franldinmor-reuem17901;Buller,publico-da postumamenteem 1903IBudermorreuem 1902,mosdeixoude trabalhornessero-manceem18841.N. T.:S.Butler,DestinadaCor.00, Irad.Racheide Gueiraz,RiodeJaneiro,JoséOlympio,si d. Friedman,comonãop0-deriadeixardeser,usaexcerlosdeobrasdalileraturadelínguainglesa;poroobterumaanáli-sedesteensaiocomexcerlosretiradosdaliteraturadelínguaportuguesa,consultor:LigiaC.M.Leite,OFocaNarrativa,SãoPaulo,Álica,1985,cap.2 "A Tipolagiade NormanFriedman".

172

mentos, percepções e sentimentos do per-

sonagem: através de qual- ou de qual com-

binação - destas três possibilidades as in-

formações sobre estados mentais, cenário,

situação e personagem vêm?); e 4) A que

distância ele coloca o leitor.da estória? (pró-

ximo, distante o~ alternando?). E, ademais,

já que nossa principal distinção é entre

"contar" e "mostrar", a seqüência de nos-

sas respostas deveria proceder gradualmen-

te de um extremo a outro: da afirmação à

inferência, da exposição à apresentação, da

narrativa ao drama, do explícito ao implí-

cito, da idéia à imagem,

.Autoroniscienteintruso

No que toca aos modos de transmissã()

do material da estória, temos primeiro,

portanto, que definÍr concretamente nossa

principal distinção: sumário narrativo (con-

tar) versus cena imediata (mostrar). Ben

Franklin, quando jovem, a caminho da Fi-

ladélfia, deparou-se com uma edição de A

Jornada do Peregrino em holandês, e co-

mentou, algo anti-histoticamente: "O ho-

nesto John foi o primeiro, dos que sei, a

misturar Narração e Diálogo, um Método

de Escrever bastante cativante para o Lei-tor, que, nas Partes mais interessantes se vê

como que trazido para dentro da Compa-nhia e presente durante o DiscUrso. Defoe

[sic], em seu Cruso [sic], seu MoU Flanders,

Religious Courtship, Family Instructor e

outras Peças, o imitou com Êxito. ERichardson fez o mesmo em sua Pamela,

etc." Se essa é a nossa distinção, n.ão estoutão certo de que, para nossas finalidades, o

diálogo seja o fator crucial. Edward

Overton, o narrador em Destino da Carne,

de Burton, informa-nos, no capítulo deabertura, que "bastava ouvir dizer.o nome

de Pontifex, para que o ros,to de meu pai se

iluminasse: 'Palavra, Edward, dizia-me ele,

o velho Pontifex era não só um homem

notável, como um dos homens mais notá-. ,

veis que eu conheci'. Era uma afirmaçãoexcessiva, para o rapaz que eu era. - Mas

meu pai ,que ~que ele fez?" (17). Mal se

REVISTAUSP, São Paulo, n.53, p. 166-182, mo(ço/maio 2002

pode dizer que o diálogo aqui constitui umacena - outros fatores parecem ser necessá_rios. Observemos que a forma verbal é opretérito imperfeito e que, conseqüente_mente, o tempo e o espaço são indefinidos.

Assim, para que o evento seja colocadoimediatamente diante do leitor, é 'necessá_

rio pelo menos um ponto definido no espa-ço e no tempo. A principal diferença entre

narrativa e cená segue o modelo geral-par_ticular: o sumário narrativo éuma apresen-tação ou relato generalizado de uma sériede eventos cobrindo alguma extensão de

tempo e uma variedade de locais, e pareceser o modo normal, simples, de narrar; acena imediata emerge tão logo os detalhesespecíficos, contínuos e sucessivos de tem-

po, espaço, ação, personagem e diálogocomeçam a aparecer. Não o diálogo tão-somente, mas detalh~s concretos dentro de'

uma estrutura específica de espaço-tempoé o sine qua non da cena.

Butler, mais uma vez, nos oferece um

exemplo de sumário narrativo puro: "Ovelho Mr. Pontifex se casara em 1750;

durante quinze anos, porém, a mulher nãolhe deu filhos. No fim desse período, Mrs.Pontifex assombrou a aldeia inteira, apre-sentando sinais evidentes de que pretendiapresentear o esposo com um herdeiro oUherdeira. Jáhá muito tempo considerava-se o seu caso irremediável; e quando ela foi

. consultar o médico a respeito de certos sin-tomas, inteirando-se do que significavam,chegou a injuriar o doutor, tal foi sua zan-ga" (abertura do capo 11).Notemos aqui que,apesar da data específi.ca (1765), é o tom donarrador, e não. o evento ele mesmo, quepredomina - "sinais. evidentes", "certossintomas", e assim. por diante, revelam o

prazer de Overton pela ironia da situação, .antes que pela situação ela mesma. NãonoSé diretamente mostrada a aparência da Sra.Pontifex (embora possamos inferir seuscontornos gerais), nem sua visita ao médi-co, nem suas palavras de raiva e injúria, eassim por diante.

COmo exemplQ de cena imediata, pode-ríamos igualmente selecionar aóbvia-nela, "

He.mingway é mestre:, "A chuva parou,quando Nick entrou no caminho que atra-

Page 8: Norman Friedman - O Ponto de Vista na Ficção

vessa o pomar. As frutas já haviam sidocolhidas, e o vento outonal soprava atravésdas árvores nuas. Nick parou e apanhou ao

. lado do caminho uma maçã Wagner, que achuva pusera a brilhar no capim escuro.

Colocou a maçã no bolso da japona tipoMackinaw" (18). Aqui, mesmo que nin-guém tenha ainda falado, temos a apresen-tação paciente do detalhe sensorial, típicade Hemingway: cenário (tempo: chuva,vento; elementos de fundo: caminho; árvo-

res, maçã, capim), ação (Nick entrou, pa-rou, apanhou, colocou) e personagem (Nicke sua japona tipo Mackinaw). O próprioevento predomina, não a atitude patente donarrador.

Esses modos de apresentação, um desegunda-mão e indireto, outro imediato edireto, raramente ocorrem em suas formas

puras. De fato, a principal virtude do medium.narrativo é sua infinita flexibilidade, oraexpandindo em detalhes vívidos, ora con-

. traindo em econômico sumário; poder-se-iaarriscar, ainda, a vaga generalização de quea. ficção moderna é caracterizada por suaênfase na cena (mental ou no discurso e na

ação), ao passo que a ficção convencionalcaracteriza-se por sua ênfase. na narração.Porém, mesmo a mais abstrata das narra-

ções trará, incorporada em algum lugar dela,indicações e sugestões de cenas,e mesmo amais concreta das cenas exigirá a exposiçãode algum material sumário. Todavia,a ten~dência no Autor Onisciente IntrUso está lon-

ge da cena, pOIsé a voz do autor que dominao material, falando freqüentemente por meiode um "eu" ou "nós".

"Onisciência" significa literalmente,aqui, um ponto de vista totalmente ilimita-do - e, logo, difícil de controlar. A estória

pode ser vista de um ou de todos os ângu-

los, à vontade: de um vantajoso e como quedivino ponto além do tempo e do espaço,do centro, da periferia qu frontalmente. Nãohá nada que impeça o autor de escolherqualquer deles ou de àlternar de um a outroo muito ou pouco quelhe aprouver.

De modo semelhante, o leitor tem aces-

so a toda a amplitude de tipos de informa-ção possíveis, sendo elementos distintivos

desta categoria os pensamentos, sentimen-

tos e percepções do próprio autor; ele é li-vre não apenas para informar-nos as idéias

e emoções das mentes de seus personagenscomo também as de sua própria mente. Amarca característica, então, do Autor Onis-

ciente Intruso é a presença das intromis-sões e generalizações autorais sobre a vida,

os modos e as morais, que podem ou nãoestar explicitamente relacionadas com a

estóriaàmão. Assim, por exemplo, Fielding,em Tom Jones, e Tolstói, em Guerra e Paz,

interpolaram seus ensaios como capítulosseparados dentro do corpo da obra e, dessaforma, são mais facilmente destacáveis.

Hardy, por outro lado, não faz distinçãoformal ao comentar aqui e ali no meio daação, do modo como achar melhor.

Deve-se, de fato, investigar. essa rela-ção por vezes ambígua entre os comentá-rios do autor e a estória ela mesma. Os re-

sultados são, quase sempre, interessantes,se não esclarecedores. Hardy é um dos ca-sos em questão: em Tess(19), elfdndulgen-cia, em uma de suas características passa-gens editorializantes: "Na imprudente exe-cução do prudente plano de coisas, o apeloraramente traz o esperado, o homem a amarraramente .coincide com a hora do amor". E

ele continua falando da dessemelhançageral dessa situação desigual sempre cres-cente para, em seguida, tentar, explicita-mente, relacionar essa observação com aestória à mão: "Basta dizer que, no presen-te caso, como em milhões, não fora~ as

duas metades de um todo aparentementeperfeito que se defrontaram no momento

perfeito (. . .). Desastrado atraso de que bro..:tariam ansiedades, desapontamentos, sus-tos, catástrofes, e mais que estranhos des- .tinos"(1891, final do cal'. V).

Podemos, portanto, esperar que a estó-. .

ria ilustre essa relação de causa e efeito: se .

a miséria de Tess tem origem na total faltade sorte, deveria, para ser exata, não ter

causa em seu temperamento; pois ou a fa-lha está em nós mesmos ou na estrela com

que nascemos. Hardy, mais uma vez, na

análise da moti vação de seus personagens,parece, algumas vezes, implicar algo mui-to diferente: Tess tomou. coragem, porexemplo, para contar a Angel a terrível

REVISTAUSP, São Paulo, n.53, p. 166-182, março/maio 2002

18 'A Ventaniade TrêsDios'.

NJ.: E. Hemingwoy, Conlosde Hemingwoy, trod. A. VeigaFialhoi Rio de Janeiro, Civil~

zoçõo Brasileira, 1965.

19 NJ.: T.Hardy, Tess;Irad. NeilR. da Silvo, Belo Horizonte,

.Ifolioia, 1984.

173

Page 9: Norman Friedman - O Ponto de Vista na Ficção

verdade, mas termina (como de costume)fugindo do assunto: "No último momento,

tinha-lhe faltado coragem; temia que a cen-surasse por não lhe ter contado mais cedo;e o seu instinto de conservação era mais

forte que a sinceri,dade" (metade do capoXXX). Há um conflito interno, portanto;um conflito que ela não consegue resolver.Aparentemente, há mais aqui do que merae canhestta má fortuna. Mais uma ve~, ela

decide visitar ospaiS dele, em um esforçopara assentar as coisas, e novamente fra-

queja no momento crítico: "seguiu seu ca-minho sem saber que o maior infortúnio desua vida era aquela perda feminina de co-ragem no momento .derradeiro e crítico"(metade do capo XLIV).

As coisas não precisavam ter sido tãoruins para ela, por-outro lado, se o caráterde Angel fosse diferente: "Dentro das pro-fundezas remotas da sua constituição, tãosuave e afetuoso como era em geral, estavaoculta uma dura reserva lógica, como umveio de metal na argila mole, que amassavao corte de tudo que tentasse atravessá-Io.

174 REVISTAUSP, São Paulo, n.53, p. 166-182, março/maio 2002

Bloqueara a sua aceitação da Igreja; blo-queava a sua aceitação de Tess" (metade

_ docap. XXXVI). Trata-se, obviamente, deuma questão aberta se o romancista podecriar personagens totalmente destituídos demotivação significativa, mesmo se a servi-ço de um fatalismo náturalista.

De todo modo, é uma conseqüêncianatural da atitude editorial que o autor não -.

relate o que se passa nas mentes dos perso-

nagens, mas sempre a critique. Logo, Hardyretrata a pobre Tess vagando desconsoladapelo campo após seu desastroso encontrocom Alex, supondo que as paisagens e sonsnaturais a proclamam culpada. Ele, então,informa abertamente ao leitor que a desa-fortunada moça estava errada em se sentir

daquela forma: "Mas aquela abrangência -de personagens da sua própria invenção,baseada em retalhos de convenções, povoa-da de fantasmas e vozes que ]he eram anti-páticas, era uma criação triste e falsa dafantasia de Tess - uma nuvem de duendes

morais pela qual se deixava aterrorizar semrazão" (final do capo XIII). Como ela ja-mais descobre isso, tudo o que poden:tosdizer é que é realmente muito mau que elatenha percepção menor que seu criador.

Norrodoroniscienteneutro

Uma vez que o próximo passo em dire-ção à objetivação difere do Autor Oniscien-te Intruso apenas devido à ausência de intro-missões autorais diretas (o autor fala de modo

impessoal, na terceira pessoa), podemoscontinuar nossa discussão sobre as diversas

media disponíveis para a transmissão domaterial da estória em questão. A ausênciade intromissões não implicanecessariamen-te, contudo, que o autor negue a si mesmouma voz ao usar o espectro do NarradorOnisciente Neutro; personagens como MarkRampion e Philip Quarles, em Contrapon-

to, são, claramente, projeções de uma ououtra das variadas atitudes do próprio Huxley(naquele tempo), como sabemos porevidên-cias externas, mesmo que Huxley nuncaeditorialize em sua própria voz.

Page 10: Norman Friedman - O Ponto de Vista na Ficção

Com relação à caracterização, emboraum autor onisciente possa ter predileçãopela cena e, conseqüentemente, permita aseus personagens falar e agir por eles mes-mos, a tendência predominante é descrevê-los e explicá-los ao leitor com sua voz pró-pria. Assim, Tess encontra Alex pela pri-meira vez, precária e hesitante diante dele:" ... uma figura aproximou-se vindo da es-cura porta triangular da tenda. Era a de umhomem jovem e alto, fumando". Mas, em-

bora Tess estivesse lá observando, Alex é.descrito como visto por Hardy, e não pelaheroína: "Tinha ele a tez quase tisnada desol, com lábios cheios, mal conformados,

embora rubros e lisos, acima dos quais se viaum bigode preto bem frisado, com pontasrecurvadas, embora a sua idade não pudesseser de mais de vinte e três ou vinte e quatroanos. Todavia, apesar dos traços de barbáriedos seus contornos, havia uma força singu-lar no rosto do cavalheiro e nos seus olhos

móvei~ e atrevidos" (metade do capo V).Com vistas a ilustrar de maneira con-

creta, esse procedimento indireto caracte-rístico, reescrevi a passagem colocando adescrição mais diretamente no espectro sen-

sorial de Tess: "Ela viu uma figura apare-cer da escura porta triangular da tenda. Eraa de um homem jovem e alto, fumando.Notou sua tez quase tisnada de sol, com'lábios cheios, mal conformados, embora

rubros e lisos, acima dos quais se via umbigode preto bem frisado, com pontasrecurvadas. Embora sua idade não possaser de mais que vinte e três ou vinte e quatroanos, ela pensou. Todavia, apesar dos tra-ços aparentes de barbarismo de seus con-tornos, ela percebeu uma força singular norosto do cavalheiro e' nos seus olhos mó-veis e atrevidos".

J)e maneira simil~, os estados mentaise os cenários que os evocam são narradosindiretamente, como se já tivessem ocorri-

do - e sido discutidos, analisados e expli-cados - em vez de apresentados cimica-

mente como se ocorressem naquele instan-te. Se retomarmos à passagem em que Tessencontra-se vagando pelo campo, sentin-do-se culpada, leremos: "Por aquelas coli-nas e vales solitários, a sua passagem tran-

qüila e silenciosa calhava bem com o ele-

mento em que se movia (...). Às vezes, asua fantasia caprichosa dava intensidadeaos processos naturais em torno dela, até

parecerem fazer parte da sua própria histó-ria (...). A aragem e a brisa da plena noite,

chorando entre a cortiça e os ramos bemabrigados das ramadas hibernais, eram fór-mulas de amarga censura". Em contraste,

tentei outra vez revisar a cena para apre-sentá-Ia ocorrendo diretamente na mente

de Tess: "Às vezes ela sentia a paisagemcomo parte de sua própria história. Ouvia aaragem e a brisa da plena noite, chorando

entre a cortiça e os ramos bem abrigadosdas ramadas hibernais, censurando-a amar-

gamente" .Por fim, como o sumário narrativo e a

cena imediata estão igualmente disponíveis(a última em grande parte nos discursos eações externos), a distância entre a estória

e o leitor pode ser longa ou curta, e podemudar a seu bel-prazer - com freqüênciapor capricho e sem desígnio aparente. Acaracterística predominante da onisciência,todavia, é que o autor está sempre pronto aintervir entre o leitor e a estória, e, mesmo

quando ele estabelece uma cena, ele a es-creverá como a vê, não como a vêem seuspersonagens.

"Eu"comotestemunho

Nosso progresso em direção à apresen-tação direta cartografa o curso da capitula-ção; um a um, como no descascar dos anéisconcêntricos de uma cebola, sucumbem os

canais de informação do autor e seus pos-síveis pontos de vantagem. Assim comodeclinou comentários pessoais ao mover-

se do Autor Onisciente Intruso para o Nar-rador Onisciente Neutro, ao mover-se paraa categoria "Eu" como Testemunha, ele

. .

entrega completamente seu trabalho aooutro. Muito embora o narrador seja umacriação do autor, a este último, de agora emdiante, será negada qualquer voz direta nosprocedimentos. O narrador-testemunha é

um personagem em seu próprio direito

REVISTAUSP, São P<lulo, n.53, p. 166-182, março/maio 2002

Page 11: Norman Friedman - O Ponto de Vista na Ficção

20 Final do capoVIII119251.ltóli-cos meus.

N.T.:S.Filzgerald,O GrandeGalslJy, Irad. Breno Silveira,São Paulo, Abril Cultural,1980.

21Poderíamosespecular,seassimo desejóssemos,a respeitodarelaçãoentreoespectrodo'Eu'comoTestemunhanaficçãoeaconvençãodo mensageironadramagrego.Parexemplo,orecantardacatóstrofeaofimde

ÉdipoReiouÉdipoemCoIoooporumolesfemunhaocular.

176

dentro da estória, mais ou menos envolvi-

do na ação, mais ou menos familiarizado

com os personagens principais, que fala aoleitor na primeira pessoa.

A conseqüência natural desse espectronarrativo é 'que a testemunha não tem umacesso senão ordinário aos estados mentais

dos outros; logo, sua característica distin-tiva é que o autor renuncia inteiramente àsua onisciência em relação a todos os ou-tros personagens envolvidos, e escolhedeixar sua testemunha contar ao leitor' so-. .

mente aquilo que ele, como observador,

poderia descobrir de maneira legítima. À,

sua disposição o leitor possui apenas ospensamentos, sentimelJ,tos e percepções donarrador-testemunha; e, portanto, vê a es-tória daquele ponto' que poderíamos cha-mar de periferia nômade.

O que a testemunha pode transmitir demaneira legítima ao leitor não é tão restritocomo pode parecer à primeira vista: ele podeconversar com todas as personagens daestória e obter seus pontos de vista arespei-to das matérias concernentes (note-se o

cuidado que Conrad e Fitzgerald tiverampara caracterizar Marrow e Carraway comohomens em quem os demais podiam confi-ar); particularmente, ele pode se encontrarcom o próprio protagonista; e, por fim, podearranjar cartas, diários e outros escritos quepodem oferecer reflexos dos estados men-tais dos outros. No limite último de suas

. .

forças, pode fazer inferências do que osoutros estão sentindo e o que estão pen'san-

.do. Assim, Nick Carraway especula, apósa morte solitária de Gatsby, sobre o quepode ter passado por sua cabeça antes deser alvejado: "Não houve qua,lquer recadotelefônico ( ). Tenho a impressão de quenem mesmo o próprio Gatsby acreditavaque alguém: o fizesse, e talvez isso já nãolhe importasse. Se isto era verdade, ele deve

ter sentido que perdera aquele seu cálido eantigo mundo, pago um preço demasiadoalto por haver vivido com um único sonho.Deve terfitado, através das folhas assusta-doras, um céu desconhecido - e sentido um

arrepio, ao verificar quão grotesca é umarosa, e de que maneira crua caía a luz do solsobre a relva que acabara de brotar" (20).

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Mas B utle'r passeia errante para além deseus limites em Destino da Carne com maisfreqüência do que seria desejável. Seu nar-rador-testemunha, na verdade, informa-nos

explicitamente de seus limites: "Mas quaiseram os sentimentos de Theobald e Cristina

depois que deixaram a .aldeia e enq~anto

rodavam [na carruagem da lua-de-mel]s~avemente através da plantação de abe-tos? (...). O casal ficou algum tempo emsilêncio: deixo ao leitor a incumbência de

adivinhar o que sentiram durante a primeirameia hora, pois estaria acima das minhasforças descrevê-lo". O que, então, havemosde deduzir. desta passagem imediatamenteprecedente? "Ele [Theobald] e Cristina ti-nham se dado tão bem - refletia - durante

anos e anos; então por que - sim, por quê?-não continuariam a se entender do mesmo

modo durante todo o resto da vida?" (início

do capo XIII). Ainda outra vez: '''Espero',dizia Theobald a si mesmo, 'espero que ele

há de se esforçar - ou .então que Skinner o .faça se esforçar'" (início do capo XXIV).

É verdade que Overtoné contemporâ-neo e amigo próximo de Theobald, assim

como o padrasto e guardião ~e Ernest,' e :que Theobald, nessas instâncias, deve ter-lhe dito mais tarde sobre o que se passouem sua mente, mas Overton muito freqüen-temente não nos dá pista de nenhuma espé-cie no que tange à sua autoridade para taisinformações. ,

Uma vez que o narrador-testemunhapode resumir sua narrativa em qualquerponto dado, assim como apresentar umacena, a distância entre o leitor e a estória

pode tanto ser larga ou curta, ou ambas.Podemos notar aqui que as cenas são geral-mente apresentadas de modo direto, comoa testemunha as vê (21).

Narrador-protagonista.

Com a transferência da responsabilida-de narrativa da testemunha para um dos

. personagens principais, que conta a estóriana primeira pessoa, alguns outros canais deinformação são eliminados e mais alguns .

Page 12: Norman Friedman - O Ponto de Vista na Ficção

pontos de vantagem, perdidos (22). Devi-do a seu papel subordinado na própria es-tória, o narrador-testemunha tem uma mo-

bilidade muito maior e, por conseqüência,uma amplitude e variedade de fontes de

informação bem maiores do que o próprioprotagonista, que se encontra centralmenteenvol vido na ação. O narrador-protagonis-ta, portanto, encontra-se quase que inteira-mente limitado a seus próprios pensamen-tos, sentimentos e percepções. De maneirasemelhante, o ângulo de visão é aquele docentro fixo.

E, uma vez que o narrador-protagonistapode resumir ou apresentar de modo diretomuito da mesma forma que a testemunha,a distância pode ser longa ou curta, ouambas. Um dos melhores exemplos destemodo pode ser encontrado em Grandes

Esperanças.

Onisciênciaseletivomúltiplo

Apesar do fato de que tanto o modo "Eu"

como Testemunha quanto o N arrador-pro-

tagonista estejam limitados à mente do

narrador, há, ainda, alguém fazendo a fala,

alguém narrando. O próximo passo em di~

r~ção à objeti vação do material da estória é. a eliminação não somente do autor, quedesaparece com o espectro do "Eu" comoTestemunha, como também de qualquerespécie de narrador. Neste ponto, o leitorostensivamente escuta a ninguém; a estó-ria vem diretamente das mentes dos perso-nagens à medida que lá deixa suas marcas.Como resultado, a tendência é quase intei-ramente na direção da cena, tanto dentro damente quanto externamente, no discurso e

na ação; e a sumarização narrativa, se apa-rece de alguma forma, é fomecida de mododisCreto pelo autor, por meio da "direçãode cena", ou emerge através dos pensamen-

. tos e palavras dos próprios personagens. .

A aparência dos personagens, o que elesfazem e dizem, o cenário -' todos os mate-riais da estória, portanto - podem ser trans-mitidos ao leitor unicamente através da

mente de alguém presente. Assim a idade e

a aparência da Sra. Ramsay são dadas em

Passeio ao Farol, de Virginia Woolf: '~Erapreciso achar um meio de escapar a tudoaquilo. Devia haver uma forma mais sim-ples, menos complicada, suspirou ela.

Quando se olhou no espelho, viu os cabelosgrisalhos, a face abatida, aos cinqüenta anos,e pensou: poderia ter conduzido melhor ascoisas - seu marido, o dinheiro, os livrosdele" (23).

Poderíamos questionar de que maneira,exatamente, este modo de apresentação, emque o autor nos mostra estados internos,difere da onisciência normal, em que o autorperscruta as mentes de seus personagens econta-nos o que está se passando lá. A di-ferença essencial é que um transmite pen-samentos, percepções e sentimentos à me-dida que eles ocorrem consecutivamente eem detalhe, passando através da mente(cena), ao passo que o outro os sumariza eexplica depois .que ocorrem (narrativa).Uma "tradução" de outra passagem da Sra.W oolf ilustrará o ponto preciso da diferen-ça: "Tal ~ra a complexidade das coisas [pen-sa Lily Briscoe]. Pois acontecia-lhe - prin-cipalmente quando ficava com os Ramsays- sentir violentamente duas coisas antagô-

nicas ao mesmo tempo: uma, o que vocêsente; outra, o que eu sinto. E'ambas briga-vam em sua mente, como nesse momento.

É tão emocionante esse 'amor:que tremo noseu limiar" (24). A mudança para a onisci-ência normal é efetivada alternando-se parao discurso indireto, padronizando os pro-nomes pessoais na terceira pessoa (comfreqüência, em pen~amento, nos referimosa nós mesmos na pnmeira, segunda e ter-ceira pessoa) e normalizando a sintaxe: ~'ALily parecia que as coisas eram bastantecomplexas. Ficar com os Ramsays a faziasentir que estava sendo atraída a duas dire-ções antagônicas ao mesmo tempo. De umlado, havia os sentimentos dos outros; e dooutro, havia nossos pr6prios sentimentos.Às vezes o amor parecia tão emocionanteque ela tremia no seu limiar". Um autor

onisciente menos paciente poderia escre-ver, simplesmente: "Lily sentia-se ambi-valente quanto ao amor, especialmente comos Ramsays".

REVISTAUSP, São Paulo, n.53, p. 166-182, morço/maio 2002

22Háumacategoriaintermediá-rio,nãoobstontemenor,o sermencionadoaqui.Eloécoroc'terizodopelo falo de que,emborao protogonistocontesuaplóprioeslória,acantenãoparaa leilol,masaalguémdeseuconhecimentoque,emse-guida,retransmifeoaoleiloremsuaprópriapessoa.Umaespé-ciedecombinoçõodases~trasda"Eu"comaTestemunha

eda Narrador-protoganisIO.

23 Ed. Horbrace Modern

Clossics,1927,pp. 13.4.Itá-licasmeus.NJ.: V. Woolf, Passeio00Foro/,trod.luizolobo,Riodejaneiro,NovoFronteira,1982.

24 klem,ibidem,p. 154.RomonFernondez,em Messages119261,traduzidodo francêspor Montgomery Belgion

. INovoYork,1927,pp.61.91,lozumaagudadistinçõo,opa'rentementedeformaindepen-dente,enlreo"romance"{mas-trarle a "recital"(conlorl.

177

Page 13: Norman Friedman - O Ponto de Vista na Ficção

25final docap.111119161.EstoudeplenoacordocomEllsworthMason, que sustentaque ocônon de Joyce é .dramático'do inícioao fim,nôoexistindoprogressãodo 'lírico'ao 'épi'co' ao 'drama',comaé nor'malmentesuposto.Consultor'Joyce's Categories', in5ewaneeReview,IXI, 1953,pp. 427.32.

26Cf. louisHasley,'TheStream-of.consciousnessMethod', inCalho/icWorld,CXlVl,1937,pp.21().3;lawrenceBowIing,'What is the Slream ofConsciousnessTechnique?', inPMlA,!XV,1950,pp.333-45;RobertHumphrey,"SlreamofCansciousness':TechniqueorGeme?',in PO,XXX,1951,pp. 434.7. Bowlingfaz umadistinçôobastonteúlil entreanálisemental,monólogointe-riore Ruxodeconsciéncia:os

dois últimosrepresentamamaneiramaisoumenosarticu-

ladade expressaresladosin-lemosdiretamente,e o primei'ro,o mododeonisciênciaindi.reta.Consuhartambém:Gleb

Struve,'ManologueIntérieur:TheOrigins01lheformulaandlhe firs Stalement01 ilsPossibilities',in PMLA,IXIX,1954,pp.110),]1; e RobertHumphrey, S/ream 01Consciousnessin lheMedem

Nove/,PerspectivasinCriticism,3, BerkeleyelosAngeIes,1954- ombos vindos o público após

o conclusôodestearligo.

Onisciênciaseletivo

Aqui, o leitor fica limitado à mente de

apenas um dos personagens. Logo, em vez

de ser-lhe permitida uma composição de

diversos ângulos de visão, ele encontra-se

no centro fixo. As demais questões têm as

mesmas respostas dadas nas categoriasanteriores.

Resta a mera ilustração. Um vívido exem-

plo de como, exatamente, os materiais daestória são transmitidos diretamente ao lei-

tor através da mente de um personagem

pode ser encontrado em Retrato do Artista

Quando Jovem, de Joyce: "A consciência

de lugar lhe [Stephen] voltou como maré,

vagarosamente, através dum vasto trato de

tempo apagado, sem sensação, sem vida. A

cena esquálida se ia compondo à volta dele:

os acentos comuns, os bicos de gás acesos

nas lojas, o cheiro de peixe, de álcool, de

serragem úmida, homens e mulheres indo,

vindo. Uma velha ia a atravessar a rua, com

uma almotolia na mão. Aproximando-se,

perguntou-lhe, inclinando-se, onde havia

uma capela por perto" (25).

178 REVISTAUSP, Sõo 'Paulo, n.53, p. 166-182, março/maio 2002

Os começos abruptos e muito da carac-

terística de distorção dos contos e roman_

ces modernos se devem ao uso das Onisci-

ências Múltipla e Seletiva, pois, se o obje-

tivo é dramatizar os estados mentais e;

dependendo de quão "fundo" na mente do

personagem se vai, a lógica e a sintaxe do

discurso comum, normal e cotidiano, co-

meçam a desaparecer. Obviamente, não há

conexão necessária: Henry James, perma-

necendo nos níveis :'superficiais" das men-

tes de seus personagens, que, de todo modo,são geralmente do tipo altamente articula-

do, não pode ser chamado de escritor. de

"fluxo de consciência". W oolf, algu~m que,

poder-se-ia dizer, insiste no nível "médio"

das mentes de seus personagens (que são,

por característica, castos), e Joyce, cuja

profundidade desconhece limites, são,

correspondentemente, mais difíceis (26).

Omododramático.

Tendo eliminado o autor e o narrador,

já estamos prontos para colocar juntos osestados mentais. As informações disponí-veis ao leitor no Modo Dramático limitam-

se em grande parte ao que os personagensfazem e falam; suas aparências e o cenáriodevem ser dados pelo autor como que emdireções de cena: nunca há, entretanto,nenhuma indicação direta sobre o que elespercebem (urri personagem pode olhar pelajanela - um ato objetivo - mas o que ele vê

é da conta dele), o que pensam ou sentem.Isso não significa dizer, claro, que os esta-dos mentais não possam ser inferidos a partir

da ação e do diálogo.Temos aqui, com efeito, um elenco de

uma peça dramática nos moldes tipográfi-cos da ficção. Mas existem algumas dife-.renças: a ficção é para ser lida e o drama,

para ser visto e ouvido, de modo que have-rá uma diferença correspondente de esCO-po, amplitude, fluidez e sutilezas. A analo-gia, todavia, é largamente procedente, noque o leitor aparentemente não ouve nin-guém senão os próprios personagens, quese movimentam como se esti vessem em uIl1

Page 14: Norman Friedman - O Ponto de Vista na Ficção

palco; seu ângulo de visão é o da frente fixa

(terceira linha central) e a distância deve

sempre ser pequena (uma vez que a apre-

sentação é inteiramente cênica). Nisso,

Hemingway tem merecida fama (principal-mente em contos como Colinas Parecendo

Elefantes Brancos) e devemos mencionar

The Awkward Age (1899) de James, que

representa algo como um tour de force -em que os ganhos de imediação esforçam-se por compensar as dificuldades de sus-tentar todo um extenso romance escrito

nesse modo (27).

Acômero

Em grande parte por uma questão desimetria, nosso relato dos tipos de ponto de

vista pode ser concluído com aquele queparece ser o último em matéria de exclusão

autoral. Nele, o objetivo é transmitir, sem

seleção ou organização aparente, um "pe-daço da vida" da maneira como ela aconte-

ce diante do medium de registro: "Sou umacâmara", diz o narrador de Isherwood na

abertura de Adeus a Berlim (1945), "com o

obturador aberto, bem passiva, que regis-tra, não pensa. Que registra o homem sebarbeando na janela em frente e a mulher

de quimono lavando o cabelo. Algum dia,tudo isto precisará ser revelado, cuidado-samente copiado, fixado" (28).

Contudo, talvez com a extinção final doautor, a ficção, como arte, seja também

extinta, pois essa arte, por exigir algum graupelo menos de vividez, também exige, pa-rece-me, uma estrutura, o produto de umainteligência mentora implícita na narrativae que dá forma ao material de modo a inci-tar as expectativas do leitor com relação aoprovável curso dos eventos, a cruzar essas

expectativas com um curso contrário igual-mente provável e, então, apaziguá-Ias demaneira que o desfecho resultante pareça,

. no fim das contas, aquele necessário. Estaafirmação não precisa ser tomada como um

apelo à volta aos romances em que "algoacontece", no sentido da ação melodramá-tica; "eventos" se refere igualmente, como

':t

argumentamos acima, tanto aos estados

mentais quanto à ação patente, e um escri-

tor - como a Sra. Woolf, por exemplo -pode se tornar infinitamente sutil nessamatéria sem abandonar inteiramente a es-

trutura. Argumentar que a função da litera-

tura é transmitir, inalterado, um pedaço davida é conceber erroneamente a natureza

fundamental da própria linguagem: o pró-prio ato de escrever é um processo de abs-tração, seleção, omissão e organização. Maspor que, afinal, precisamos de um romance

para ter um pedaço da vida quando pode-mos simplesmente nos dirigir à esquinamais próxima e experimentar, de primeiramão, um pedaço de vida mais vívido?

11I

Qual, poder-se-ia perguntar, é o resulta-

do de todos esses "melindres"? Será que todoesse lufa-Iufa investigativo da parte de umautor não resulta em frio desinteresse, obje-tividade ciínica e sem paixão? AssimBradford Booth objeta que, "se o autor in-

terferente vitoriano falhou, falhou em gran-de escala, pois tentou muito. Aos olhos demuitos de nós, todavia, ele não falhou. Afir-

ma-se que ele não sustenta um ponto de vis-

ta consistente. Que importa, ~e seus perso-nagens viverem? Anrma-se' que ele vê anatureza humana somente por fora. Queimporta, se sua visão não estiver distorcida?"Não são Scott e Dickens, no fim das contas,mais agradáveis que James, com sua escru-

pulosidade obsessiva? ParaBeach, aresposta

é relativa, uma questão de gosto: "Não po-demos ser ruins para com a sapiência dessesgrandes homens, dessas grandes almas [isto

é, os romancistas vitorianos]. Mas, paramelhor ou para pior, a moda agora é outra;

gostamos da ficção não adulterada; gosta-mos da sensação de fazer parte de uma ex-periência real e presente, sem a interferên-cia de um guia autoral" (29).

Mas será realmente tanto assim uma

questão de "moda"? E por acaso Booth nãolevanta algumas questões cruciais? Indica-

REVISTAUSP, São Paulo, n.53, p. 166.182, março/moia 2002

27 Paraumadiscussãoda rever-sodesleproblema,consulror:HermanM.Weisman,"AnInvesligalion01MelhodsandTechniques' in lheDramatizalion01Ficlion",inSpeechMonogrophs,XIX.1952, pp. 48.59.

28Conla-sequeTalslóiregistrou00 eslilodeumacômera,emsuoprimeirolenlalivocomoauloremmarçode1851,tudoo queviue sentiuemumdia.CI. PrinceD. S. Mirsky,AHistory01Russianliteroture,NovaYork,1934119271.pp.329.30; e Janko lavrin,Talstoy:AoApprooch,londres,1944,p. 21. Chama'seHis'tório[ouRelata]deOntem,mosnôoconseguiumacópia.NJ.: C. Isherwood,AdeusaBer/im,Irad.GeroldoGolvôoFerraz,SôoPaulo,Brasiliense,1985.

29 Boolh, pp. 94.6; Beach,TwentiethCenluryNovel,pp.15-6.Boolhinformo-mequesuoposiçôoa respeilodesseassuntosofreualgumasmodili-caçôesdesdeentôo.

179

Page 15: Norman Friedman - O Ponto de Vista na Ficção

30Consultar,e,g" o PoélicodeArislóteles,1460<5:'Dignodeloovoresporváriosoulrosmoti.vos,Homeroo é, iguolmente,porsero únicoo conheceroquedevefazero poeta,Estedevefoloromínimopossívelemseunome,poissenãodeixodeserumimitador,Oukospoetasinlervêmdirelomentenonarro-tivo, poucoimitando,e empoucosocasiões;já Homero,depoisde brevepreâmbulo,opre,senlologoumhomem,ouumamulher,ou algumoulropersonagem,lodoscomcorá-ler'.INJ.: possagemorigino~menteciladano traduçãodeBywoter;utilizeio koduçãodeBobyAbrão,'Poético',in OsPensadores- Aris/á/eles,XXIV,155,SãoPaulo,NovoCultu-rol,I999.) .

180

mos, acima, que tem sido um lugar-comum

da teoria estética que a apresentação efeti-

va e a "impessoalidade" andem de mãos

dadas (30); e a diferença entre Dickens eJamesno que toca à vivacidade existe tam-

bém em função de suas escolhas caracte-rísticas de materiais, não meramente de téc-

nica. Mas talvez toda a questão possa serreformulada em termos de meios e fins: o

romancista utilizou astécnicas disponíveis

de maneira a produzir o efeito pretendido?

ou ele deixou as oportunidades escapareme surgirem obstáculos entre o leitor e a ilu-

são desejada?

A pressuposição básica, então, daque-

les seriamente interessados pela técnica,

como o próprio James apontou tempos atrás,

é que a finalidade primordial da ficção é

produzir a mais total ilusão possível pela

estória. Determinado material potencial-

mente interessante, concentração e inten-

sidade e, portanto, vividez, são resultantesde um trabalho dentro de limites, embora

auto-impostos, e qualquer lapso daí será,

com toda a probabilidade, resultado ou da

falta de estabelecer um espectro limitativo

com que começar ou da quebra daquele jáestabelecido. Com toda acerteza, este é um

dos princípios básicos da técnica artística

em geral.

Assim, a escolha de um ponto de vista

ao se escrever ficção, é, no mínimo, tão

crucial quanto a escolha da forma do verso

ao se compor um poema; da mesma forma

como há coisas que não se consegue que

sejam ditas em um soneto, cada uma das

categorias que detalhamos possui uma

amplitude provável de funções que conse-

gue desenvolver dentro de seus limites. A

questão da eficácia, portanto, diz respeito à

adequação de uma dada técnica para se

conseguir certos tipos de efeitos, pois cada

tipo de estória reqlier o estabelecimento de

um tipo' particular de ilusão que a sustente.

O Autor Onisciente Intruso, por exemplo,

pode ser chamado de "verso livre" da fic-

ção: seus limites são tão exclusivamente

internos que um romancista incauto tem

mais oportunidades de quebras da ilusão

do que em outros modos. Quanto de

Whitman, Sandburg ou Masters é monóto-

REVISTAUSP, São Paulo, n.53, p. 166-182, março/moio 2002

no e enfadonho? E quanto de Guerra e

Paz - para tratar do maior de todos - po-deria facilmente ser dispensado? Por ou-

tro lado, quando apersonalidade do autor-'

narrador possui uma função definida a

preencher em relação a sua estória - diga-.mos de ironia, compaixão, âmbito e pro-fundidades filosóficas, e assim por diante

- ele não precisa retirar-se para detrás da

obra, na medida em que seu ponto de vista

encontra-se adequadamente estabelecido

e coerentemente s~stentado. É mais umaquestão de consistência do que deste ou

daquele grau de "impessoalidade". Mas o

autor-narrador tem um problema mais

complicado em suas mãos, neste ponto, e

teria que olhar melhor seus dispositivos.O verso livre não é "livre" afinal, como

observou Eliot alhures; mas estabelecer

um padrão interno é mais difícil e, portan-to, mais propenso a rompimentos. A esse

respeito, o Tom Jones de Fielding tem mais

sucesso do que Guerra e Paz: o tom inte-

lectual e o material pedante dos

entrecapítulos de Tolstói divergem, com

freqüência, do teor e do impacto da pró-

pria estória, que tem como tema a glorifi-

cação (em Pedro, Kutuzov, Karataev,-

Nikolai, Natasha) das forças instintivas e

intuitivas da vida. Assim, revela-se, com

toda a majestade, uma ambigüidade fatal-mente irresoluta na essência desse roman-

ce: é normalmente aceito que André ePedro são projeções simbólicas da ambi-valência do próprio Tolstói, e é como se,depois de ter aniquilado André, o autor-

narrador não pudesse permitir que a atitu-

de de André desaparecesse com ele da

estória, de modo que a mantém viva, con-

forme existia, nos entrecapítulos. Seja

como for que os vejamos, eles não têm

basicamente força dramática.

Desse modo, se é essencial aos propó-sitos de um autor que as mentes de muitos

sejam reveladas livremente e à vontade-'

para produzir, por exemplo, o efeito de

um meio social à maneira de Huxley- e se

o tom superior e elucidativo do autor deve

dominar a percepção e a consciência deseus ,personagens - para produzir aqueleefeito típico de Huxley de pequenez, futi-

Page 16: Norman Friedman - O Ponto de Vista na Ficção

lidade e indignidade - então o NarradorOnisciente Neutro é a escolha lógica. Se oelemento de suspense deve vir em primei-ro lugar - como, digamos, em contos demistério e ficção policial -, se a situaçãodeve ser gradualmente armada e revelada.pouco a poÜco - como, por exemplo, emLord Jim -, então o narrador-testemunha

parece mais adequado do que qualqueroutro. Se o problema é traçar o crescimen-to de uma personalidade à medida que elareage a experiências, o narrador-protago-nista se provará mais útil- como em Gran-

des Esperanças - assumindo-se que eletenha sensibilidade e inteligência sufici-entes para desenvolvere perceber a signi-ficância desse desenvolvimento (um pro-tagonista nai"bepode, claro, ser usado paraefeito irônico). Se o autor está interessado

pelo modo como personalidade e experi-ência emergem como um mosaico a partirdo choque com as sensibilidades de diver-sos indivíduos, então a Onisciência Sele-

tiva Múltipla dará esse jeito - como emPasseio ao Farol. Se o intento é apanharuma mente em um momento de descober-

ta - como em Retrato do Artista QuandoJovem - a Onisciência Seletiva é o meio. E,

finalmente, se o propósito do autor é pro-duzir na mente do leitor um momento de

revelação - como em Colinas Parecendo

Elefantes Brancos de Hemingway -, entãoo Modo Dramático, com sua tendência a

implicar mais do que aquilo que afirma,oferece a abordagem lógica. A análise datécnica, então, é crucial, como sustenta

Schorer, quando vista como reveladora dos

propósitos do autor e, ainda mais funda-mentalmente, a estrutura básica de valo-

res que ele incorporou por meio daquelatécnica.

ConsistênCia, e não sangue-frio, é tudo,

pois a consistência - dentro de um espec-

tro determinado, seja ele o quão amplo,diverso e complexo for - significa que as

partes estão ajustadas ao todo, os meios aofim e, por isso, que o efeito máximo foiconseguido. Trata-se, contudo, antes deuma causa necessária do que suficiente; aconsistência geral de um ótimo, porémcanhestro, roI.I1ancista pode emergir ape-

sar das inadequações técnicas, ao passoque a consistência de um talento menornão produzirá obras-primas nela mesma,tendo êxito em um espectro menor do queaquele que o gênio pode tentar. Às vezes,uma nobre falha é mais excitante do queuma minúscula vitória. Mas quantos denossos romancistas mais ambiciosos ebrilhantes teriam tido ainda mais sucesso

se uma atenção mais rente tivesse sidodirigida a esses pontos (31)? Certamente,não há contradição necessária entre o gê-nio e a maestria técnica.

D. H. Lawrence é um desses casos, e

Schorer esboçou a causa básica do curio-so cansaço que recai sobre o leitor após aleitura de, digamos, Filhos e Amantes.

Apesar de seus conceitos "modernos" desexo e inconsciente, essa estória é ainda

narradadentro do espectro sem bordas doAutor Onisciente Intruso fora-de-moda, e

o perigo da identificação autoral com oprotagonista - e, portanto, de partidarismo

e oportunismo - não foi prevenido. O au-tor-:narrador assim analisa os pensamen- .

tos de Miriam: "Assim, chegando o mêsde maio, pediu-lhe [a Paul] que viesse àFazenda Willey, onde encontraria a Sra.Dawes. Ele não' queria outra coisa e elavia-o, sempre que se falava de ClaraDawes, animar-se e zangar-se levemente.Declarou que não a admirava; todavia,estava sempre pronto a ouvir falar dessamulher. Pois bem, submeter-se-ia à pro-va. Miriam calculava que nele existissemsentimentos elevados e outros baixos, e

que os primeiros acabariam por triunfar.Em todo o caso, convinha um ensaio". E

então Lawrence acrescenta: "O pior é que

se esquecia que, em seu conceito, 'alto' e'baixo' podiam ser classificações arbitrá-rias" (32).

Tanto Schorer quanto Diana Trillingapontam que há, por conseqüência, umacontradição no tema do livro: Paul MoreInão consegue ter um relacionamento se-xualsatisfatório ou por causa de suaenervante fixação na mãe ou porqueMiriam abarca apenas os aspectos "espi-rituais" de tal relação. E esses dois temassão mutuamente excludentes - a culpa ou

REVISTAUSP, São Paulo, n.53, p. 166-182, março/maio 2002

31Tenhoem menleaqui, porexemplo,os óbviosinconsis.lênciosno narrativode.DomQuixole,bemcomooscomIre-qüêncioincômodosreferênciaso Cid Homet,o outardomo-nuscrito 'original' lei.WayneC. Booth,1he Sell.ConciousNarrotorin ComicFictionbeloreTristomShondy',inPMIA,IXVII,1952,pp.163-851;ouo rupturaconlinuadeMelvillecom o espectrodonorrodor'lestemunhooriginalemMobyDid; Ouosneqüen-tesabsurdosengendradosnocursodo narrativopelotécni'co epistolóriode RichardsonemPomelo;ouoestruturacurio-samentedividido de MatlF/onders;ouosexcessoselap-sosnoenlôsedosvolumososromancesdeWalle.

32Schorer, 'Technique osDiscaver',op. cil., pp. 197.8; lowrence119131,Medemlibro'YEdition,p. 269.NJ.: D.H.lowrence,FilhoseAmantes,Irad.CobroldoNos'cimento,SôoPaulo,Circulodolivro, 1973. .

181

Page 17: Norman Friedman - O Ponto de Vista na Ficção

ing, 'Introdução' o TheobreD.H.Lowrence,Novok, 1947, pp. 19-20;Irence,citado no mesmoJr; E. T., D. H. Lowrence: A

sonal Record,Londres,35, pp. 201.4. Paraoutrodoinferessonlee deprimei-mãosobreo problemadaetividadenaficção,consul.TheS/oryolaNove/1l9361,ThomasWolfe:'A natureza

meumétodo,odesejototalexplorarmeumaterial,le-me a outroerro.Todooitodaquelescincoanosde:rilo"incessante~elViuparo~eusentissenãoapenasqueo linhaqueserusado,como~tudotinhaqueserdito,quedo podia ficar implícito'.içãoPenguindoscontosdeolfe,NovoYork,19471inli-odo variavelmentecomo

ortSloriese On/ytheDeadow Brook/ynl,pp. 117-8,16.

erton,.TheSevenStoreyountain,NovaYork,Signet,152 119481,pp. 255-56;Jrdon,'SarneReodingsandisreodings', in Sewonee!view,LXI,1953, pp.384-)7.

32

~~~~~~~f,.(G..i...,Q..'eJiara~ ~~q.~~ .~ .~ ~~~~~ ~~...~~~ '$':~~ &~

distinguir-se, daí resultando que ele tentaconsegui-Io de ambas a formas. Mas o lei-tor permanece frustrado; a falta de consis-tência leva à perda do efeito. Mais uma vez,

a ironia é que o próprio Lawrence acredita-va na eficácia da projeção dramática comouma maneira de esclarecer e compreenderseus próprios problemas emocionais: "Noslivros entornamos nossas enfermidades -repetimos e reapresentamos nossas emo-ções, para nos assenhorarmos delas". To-

davia, E.T., a Miriam original, sabia que,nesse caso, ele tinha falhado: ".. .ele aba-

fou a verdadeira questão. Que era sua velhainabilidade em encarar seu problema ho-nestamente. Sua mãe tinha que ser'supre-ma. .. Então, em vez de uma liberação e

libertação do cativeiro, o ca~veiro foi glo-rificado e tornado absoluto. . . O melhor queposso pensar dele é que tanto correu com alebre quanto caçou com os cães" (33).

A título de contraste, podemos obser-var a apresentação de Stephen por Joyce,em Retrato, onde, apesar da tendência co-mum de ser tratada como autobiográfica, aestória do chegar da idade do herói encon-tra-se totalmente objetivada. Uma vez queJoyce limitou estritamente o fluxo de in-

formação apenas àquelas cenas, percep-ções, pensamentos e sentimentos que .amente de Stephen recorda, ele eliminou a

" possibilidade de partidarismo autoral quetanto vicia a estrutura de Filhos eAmantes.

Como resultado, temos um retrato tão cla-

ro do protagonista que i..mde seus amigospode dizer-lhe: "É uma coisa extraordiná-ria, curiosa, digo-te-observou Cranly sem

a menor paixão - como o teu espí~ito estásupersaturado com essa religião em que

dizes não acreditar". Não se pode conceberque Lawrence, dada sua falta de controle,permita a Miriam dizer a Paul: "Que coisacuriosa, digo-te, como seu amor tão exces-sivo por sua mãe faz com que você inadver-tidamente busque um escape sexual com

""""~~~,~~!~~--e, portanto, você reage violentamente quan-do uma mulher pede-lhe ambas as coisas

ao mesmo tempo, acusando-a de querer

roubar-lhe a alma". (Ser-me-á dado, espe-ro, o devido desconto pelo fato de eu não

ser um romancista; mas acredito, pelas

evidências ..çlolivro de E.T., q~e Miriamfosse completamente capaz de tal penetra-ção. Lawrence, contudo, apresenta-a comoagoniadamente desarticulada.)

Tamanho é o êxito da projeção de Joyceque, apesar do fato de que ambos, ele e seuherói, rejeitem deliberadamente o catoli-cismo, os católicos literários podem, nãoobstante, apreciar o retrato da vida religio-sa que faz no livro. Assim comenta Thomas'Merton as farnqsas passagens do Inferno:"O que me impressionou não foi o medo doinferno, mas a habilidade do sermão...

Então continuei a ler Joyce, cada vez maisfascinado pelas descrições de padres e da

vida. católica que salta aqui e ali em seuslivros". De modo semelhante, Caroline

Gordon pode dizer: "Suspeito que este li-vro foi lido de maneira equivocada por toda

.uma geração. Não é essencialmente o re-trato do artista rebelando-se contra a auto-

ridade constituída. É, antes, o retrato de

uma alma em danação, pois o te"mpo e aeternidade o pegaram no ato de ver e saberde sua danação de antemão" (34). Ao mes-mo tempo que penso que seja um sofismaperverso, penso também que se trata de um .

tributo ao gênio dramático de Joyce queum católico possa simpatizar com o retratode valores católicos rejeitados' pelo heróido romance.

Tudo isso para dizer simplesmente que,quando um autor capitula na ficção, o fazpara conquistar; ele abre mão de algunsprivilégios e impõe certos limites para cri-ar a ilusão da estória de maneira mais efi-

caz, o que constitui verdade artística emficção. E é a serviço dessa verdade que elepõe toda a sua vida criativa.

REVISTAUSP, São Paulo, n.53, p. 166-182, março/maio 2002

Page 18: Norman Friedman - O Ponto de Vista na Ficção

33Trilling, "Introdução"o ThePorlobleD.H.lowrence,NovaYork, 1947, pp. 19.20;Lawrence,cilada no mesmolugar;E.T.,D.H.lowrence:APersonalRecord,Londres,1935,pp. 201.4.Paraoulro

, relatointeressantee deprimei-ra mãosabreo problemadaobjefividade.naficção,consul.lar1heSlotyofaNove/(1936I,deThomosWolfe:"Anatureza

domeumétodo,odesejo10101de explorarmeumaterial,Ia-vou-mea outroerro.TodooefeitodaquelescincoanosdeescritaIncessante~iu poroqueeusentissenãoapenosquetudotinhaqueserusado,comoqueludotinhaqueserdito,quenada podia licor implicito".EdiçãoPenguindoscontosdeWolfe,NovaYork,19471inti-tulado variavelmentecomo

ShorlS/oriese OnlylheDeadKnowBrooklynl.pp. 117.8,146.

34Merlon,. TheSevenSloreyMovn/ain,NovaYork,Signel,1952119481,pp. 255.56;Gordon,"SomeReodingsandMisreodings", in SewaneeReview,IX!. 1953,pp. 384.407.

182

é da mãe ou de Miriam -'e o problema é

que Lawrence foi inábil o' suficiente para

dissociar a si mesmo de Paul, para dele

distinguir-se, daí resultando que ele tenta

consegui-Io de ambas a formas. Mas o lei-

tor permanece frustrado; a falta de consis-

tência leva à perda do efeito. Mais uma vez,

a ironia é que o próprio Lawrence acredita-

va na eficácia da projeção dramática como

uma maneira de esclarecer e compreender

seus próprios problemas emocionais: "Noslivros entornamos nossas enfermidades-

repetimos e reapresentamos nossas emo-

ções, para nos assenhorarmos delas". To-

davia, E.T., a Miriam original, sabia que,nesse caso, ele tinha falhado: ".. .ele aba-

fou averdadeira questão. Que era sua velha

inabilidade em enCarar seu problema ho-

nestamente. Sua mãe tinha que ser'supre-

ma. .. Então, em vez de uma liberação e

libertação do cativeiro, o ca~veiro foi glo-rificado e tomado absoluto... O melhor que

posso pensar dele é que tanto correu com a

lebre quanto caçou com os cães" (33).

A título de contraste, podemos obser-

var a apresentação de Stephen por Joyce,

em Retrato, onde, apesar da tendência co-

mum de ser tratada como autobiográfica, a

estória do chegar da idade do herói encon-

tra-se totalmente objetivada. Uma vez queJoyce limitou estritamente o fluxo de in-

formação apenas àquelas cenas, percep-

ções, pensamentos e sentimentos que .a

mente de Stephen recorda, ele eliminou a

.possibilidade de partidarismo autoral quetanto vicia a estrutura de Filhos eAmantes.

Como resultado, temos um retrato tão cla-

ro do protagonista que i.Jmde seus amigos

pode dizer-lhe: "É uma coisa extraordiná-

ria, curiosa, digo-te - observou Cranly sem

a menor paixão - como o teu espírito está

supersaturado com essa religião em que

dizes não acreditar". Não se pode conceber

que Lawrence, dada sua falta de controle,

permita a Miriam dizer a Paul: "Que coisa

curiosa, digo-te, como seu amor tão exces-

sivo por sua mãe faz com que você inadver-

tidamente busque um escape sexual com

mulheres mais jovens, que serão destituí-

das de conteúdo sexual. Paixão e devoção

estão separadas em seu espírito pela culpa,e, portanto, você reage violentamente quan-

do uma mulher pede-lhe ambas as coisas

ao mesmo tempo, acusando-a de querer

roubar-lhe a alma". (Ser-me-á dado, espe-ro, o devido desconto pelo fato de eu não

ser um romancista; mas acredito, pelas

evidências ,do livro de E.T., q~e Miriamfosse completamente capaz de tal penetra-

ção. Lawrence, contudo, apresenta-a como

agoniadamente desarticulada.)

Tamanho éo êxito da projeção de Joyce

que, apesar do fato de que ambos, ele e seu

herói, rejeitem deliberadamente o catoli-

cismo, os católicos literários podem, não

obstante, apreciar o retrato da vida religio-

saque faz no livro. Assim comenta Thomas

Merton as farnqsas passagens do Inferno:

"O que me impressionou não foi o medo doinferno, mas a habilidade do sermão...

Então continuei a ler Joyce, cada vez mais

fascinado pelas descrições de padres e da

vida católica que salta aqui e ali em seuslivros". De modo semelhante, Caroline

Gordon pode dizer: "Suspeito que este li-

vro foi lido de maneira equivocada por toda

.uma geração. Não é' essencialmente o re-trato do artista rebelando-se contra a auto-

ridade constituída. É, antes, o retrato de

uma alma em danação, pois o tempo e a

eternidade o pegaram no ato de ver e saber

de sua danação de antemão" (34). Ao mes-

mo tempo que penso que seja um sofisma

perverso, penso também que se trata de um ,

tributo ao gênio dramático de Joyce que

um católico possa simpatizar com o retrato

de valores católicos rejeitados pelo heróido romance.

Tudo isso para dizer simplesmente que,

quando um autor capitula na ficção, o faz

para conquistar; ele, abre mão de alguns

privilégios e impõe certos limites para cri-ar a ilusão da estória de maneira mais efi-

caz, o que constitui verdade artística em

ficção. E é a serviço dessa verdade que ele

põe toda a sua vida criativa.

REVISTAUSP, São Paulo, n.53, p. 166-182, março/maio 2002