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NOTA DA AUTORA

Pezinhos de Coentrada é, como já acontecera com Bica Escaldada, uma recolha de crónicas e pequenas histórias publicadas nos jornais e revistas onde trabalho.

Estas nasceram, mais exactamente, nas páginas do Jornal de Notí-cias, Tempos Livres, Audácia mas sobretudo na revista Activa, que há uns bons anos me acolhe, e a quem este livro é dedicado.

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PEZINHOS DE COENTRADA

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UMA SOPA QUENTE

A minha tia Clara tem um coraçãozinho de oiro, não desfazendo. Sempre me lembro dela a contribuir para tudo o que é peditório e campanha de bem-fazer, a comprar lençóis de linho e panos de tabuleiro bordados «pelas meninas do orfanato, coitadinhas», que umas freiras de vez em quando iam mostrar lá a casa, indiferente aos resmungos do meu tio Ernesto que, na sua qualidade de velho republicano, socialista e ferozmente laico, a queria fazer entender que não era assim que as coisas se resolviam.

Todos os meses a minha tia Clara sentava-se à mesa da casa de jantar a separar o dinheiro que destinava às meninas do orfanato, à Senhora Belmira que era a pobrezinha que às quartas-feiras lhe batia à porta, aos pobres da Conferência de São Vicente de Paula, a uma prima afastada que ia lá jantar aos domingos, a cada uma das dezassete afilhadas que logo no princípio de cada mês lhe entravam porta dentro a pedir a bênção e, se possível, mais qualquer coisita — isto para não falar das moedas que me mandava deitar, sempre que à nossa frente a gente encontrava uma horrorosa estatueta de gesso com um menino loiro ao lado de um menino preto, abanando a cabeça à medida que as moedas caíam pela ranhura, sob a qual se lia «Ajudai as Missões».

Hoje os tempos são outros, outras as desgraças, mas o ouro do coração da minha tia continua com o brilho de sempre: contribui

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para o Banco Alimentar, para a Unicef, para as Aldeias SOS, para a AMI, para a Cruz Vermelha, para as crianças de Moçambique, e não falha na compra de um exemplar da Cais. De cada vez que liga a televisão para ver os telejornais, é um desassossego. A cada notícia de encerramento de fábrica, de despedimento, de reportagem sobre pessoas despejadas de suas casas ou de gente que tem de aguentar com reformas de miséria os 30 dias que os meses têm, quer seja para ricos quer seja para pobres, a minha tia Clara não pára, telefona para este mundo e o outro a saber o que pode fazer, como é que pode ajudar, e tem sempre imensos pesadelos durante a noite.

Foi assim que a encontrei há dias, de cá para lá no corredor, re-petindo «coitadinhos, coitadinhos», e eu sem entender nada, teria havido uma nova empresa fechada? Algum despedimento colectivo que me tivesse passado despercebido? Teria ruído mais algum pré-dio velho da nossa freguesia? Ela não respondia, continuava num desvario, «coitadinhos, coitadinhos», até que por fim lá explodiu, que não se admitia, ao que nós tínhamos chegado santo Deus! Ela tinha lido uma entrevista com alguém muito importante, quem, ao certo, já não se lembrava que ela nunca fora muito boa para nomes, mas era importante, isso era, e esse alguém importante afirmava que havia deputados e ministros a passar muitas dificuldades porque, coitadinhos, coitadinhos, tinham tido de abdicar de imensos outros empregos para se dedicarem em exclusivo ao bem da Pátria.

E então era assim que a Pátria lhes pagava, era? A minha tia Clara arfava, passava a mão pela testa, enfiava com duas bombadas de Ventilan pela boca abaixo por causa da asma. Ela não podia admitir tal coisa.

Deputados e ministros a contarem os tostões a ver se eles davam para o leite dos filhos, ou para porem fruta na mesa todos os dias.

Deputados e ministros a deverem ao senhorio, a adiarem consul-tas médicas e tratamentos necessários, aquelas coisas todas que ela ouvia constantemente na televisão quando se falava de dificuldades e privações.

Não, ela sempre fora pessoa de não fazer discriminações, muito

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menos quando se tratava de ajudar o próximo.Quando a deixei, estava sentada à secretária, escrevendo uma car-

ta para São Bento, informando que em sua casa haveria sempre um pratinho de sopa quente e um copinho de leite à disposição dos se-nhores. Poucochinho mas dado de boa vontade. À fome, pelo menos, já não morreriam. E sempre ficariam um bocadinho mais reconfor-tados para poderem continuar a salvar a Pátria.

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A DOENÇA DO SÉCULO

Entrou no café como sempre faz, a meio da manhã, olhou em vol-ta até descobrir a amiga, já a meio do galão e da torrada, sentou-se na cadeira vaga, suspirou muito fundo e esperou que lhe pusessem na frente o carioca de limão a escaldar. Todas as manhãs a mesma cena, todas as manhãs a dona do café a perguntar se está melhorzi-nha, e ela a murmurar que são os nervos, os nervos, D. Emília, não há nada pior do que os nervos, se visse o monte de remédios que tenho lá em casa, e para quê?, sim, para quê?, ao terceiro dia já não me fazem efeito nenhum, tomá-los ou não é a mesma coisa, o meu marido até me diz, ó mulher isto é dinheiro deitado à rua.

A dona do café limita-se a acenar com a cabeça, enquanto vai despachando a freguesia ao balcão.

A amiga acaba o galão e também suspira muito fundo, a mim é a espondilose que não me larga, e leva a mão às costas num trejeito dorido, mas logo ela interrompe, diga-me isso a mim, que no outro dia era uma dor que me vinha assim pela espinha abaixo que nem me podia mexer, e este tempo também não ajuda nada, chove de manhã, estão trinta graus à tarde, Jasus!, nem já no tempo uma pessoa pode confiar.

A dona do café pergunta se alguma delas, por acaso, tem visto a D. Ricardina, que já há dias não aparece, e ela diz que a viu na sema-na passada e a achou com muito má cara, depois da trombose nunca ficou bem, murmura a amiga, a manteiga da torrada a pingar-lhe levemente para o queixo, e logo ela acrescenta, não sei se sabem mas

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quem também teve uma trombose foi a mãe da Celestinha.A dona do café abre os olhos de espanto, até se engana no troco

do freguês que bebeu a bica, a mãe da Celestinha?, mas ainda a se-mana passada a vi e parecia vender saúde!, eu até pensei, mas logo ela lhe corta a conversa, pois é, é como diz o meu médico, a gente para adoecer é só preciso estar boa, que a gente, boa, boa nunca está, não é?

A dona do café ainda não quer acreditar, a mãe da Celestinha?, e ela ofende-se, e então?, que tem a mãe da Celestinha a mais do que nós?, eu ando para aqui toda cheia de dores, cheia de palpitações, e os nervos, os nervos é que dão cabo de mim.

A amiga limpa o queixo e murmura que toda a gente agora sofre dos nervos, e ela suspira muito fundo, recosta-se na cadeira e afirma, com ar solene, o meu médico já me disse que é a doença do século.

A dona do café abana a cabeça, o cancro, diz, o cancro é que é a doença do século, ou então essa outra, essa, parece ter medo da palavra, a sida, diz a amiga, puxando o espelho de dentro da mala.

Nada disso, diz ela, nada disso, os nervos é que são, foi o meu médico que disse.

Olha para o relógio, mete a mão dentro da mala e tira uma am-pola, parte uma das extremidades primeiro, depois a outra, e um líquido amarelado cai para dentro da chávena ainda com um resto de carioca de limão.

Já sei que não me faz nada, mas o médico manda, o que é que hei--de fazer, e antes do almoço são dois comprimidos, e à tarde mais dois, e o calmante quando me deito, diz que é para ver se arrebito, se não entro em depressão.

Bebe o líquido de uma só vez, olhos fechados, e diz que o que lhe vale é aquela meia hora no café, palavra de honra, D. Emília, isto é o que ainda me anima, estas conversas, esta alegria, mas depois vol-to para casa e lá me vou abaixo, os meus nervos estão mesmo uma desgraça.

Procura o dinheiro no porta-moedas, a despesa é sempre igual, o carioca de limão e mais nada, volta a suspirar e murmura, tenho a

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doença do século.E sente, orgulhosamente, uma enorme responsabilidade a pesar-

-lhe nos ombros.

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A MÚSICA QUE NOS DÃO

Vivemos atordoados pela música. Não pensem que são apenas os enclausurados da casa mais famosa do país que passam vinte e quatro horas por dia ao ritmo do batuque generalizado. Há quem lamente a sorte daqueles desgraçados, mas ninguém parece parar um bocadinho para pensar que o silêncio, o magnífico, o único, o imprescindível silêncio há muito desapareceu das nossas vidas. To-dos, nesta sociedade, desde os governantes aos elevadores, parecem apostados em nos dar música.

Música a todas as horas, por todos os motivos, em todos os luga-res.

Nas lojas, fora das lojas, nas ruas, nos cafés, ao telefone, no eleva-dor, nos consultórios, nos aviões, no aeroporto, nas casas de banho, nas esplanadas, na praia, nas salas de espera, a música é tanta que não podemos pensar em nada e só desejamos chegar depressa a nos-sa casa onde, no andar de baixo, o vizinho sonha em pertencer ao coro do São Carlos, e, no andar de cima, um bando de adolescentes arrasa o prédio inteiro berrando «és a rainha da noite...».

Em Julho, tentando aproveitar o melhor possível uma semana de férias, procurei a minha velha praia nortenha de sempre, confiante de que ali teria a tranquilidade desejada. Puro engano: de manhã à noite, roufenhos altifalantes anunciavam todas as lojas de arti-gos domésticos e todas as churrascarias da zona, misturadas com Ágatas, Mónicas, Romanas, e meninos perdidos à espera de serem resgatados na cabine de som. Por mais que tentasse ouvir o som

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das ondas e das gaivotas da praia, vozes aos berros nos altifalantes de todas as esquinas da única avenida da terra lá estavam para me lembrar que, afinal, havia outra e que, definitivamente, ele não era homem para mim nem era homem para ninguém.

Foi por isso que nestes primeiros dias de Outono, tentei buscar a calma do Luso. Há bem quarenta anos que para lá vou e, ao menos aí, tenho a certeza de que nada muda, e que é o mais parecido com um oásis de paz que se pode encontrar à face da terra. No café do Casino (onde nunca ninguém jogou fosse o que fosse) lia-se, conver-sava-se e, em época termal, o maior barulho que por lá se ouvia era o das agulhas de tricot das senhoras, sentadas naquelas lindíssimas cadeiras de verga branca, olhando as gravuras do Mucha nas pare-des. Eu tinha, lá estado, a última vez há uns dois ou três anos — e ti-vera, então, a triste surpresa de ver que o mobiliário de verga branca tinha desaparecido todo. Explicaram-me que o bicho tinha entrado nas cadeiras e nas mesas, e que fora tudo para o lixo. Fazer igual nem pensar!, nos tempos de hoje já viu em quanto é que isso ficava? Resultado: vieram cadeiras e mesas de madeira iguais a todas, ainda por cima sem braços, o que nos provoca um desconforto de todo o tamanho.

E desta vez, quando lá chego descubro que não só as mesas e as cadeiras de verga desapareceram, como também desapareceu a pequena estufa que havia no fundo, onde o verde das plantas nos enchia de tranquilidade. Agora, decerto para rentabilizar o espaço, tiraram-se as plantas, e a estufa foi transformada em tabacaria.

Mas — pensei — ainda é possível estar aqui em silêncio! Qual quê... Para além da música pelo altifalante, a minha alma parvíssi-ma descobria dois televisores, dois, e ambos, naquele dia, a funcio-nar! Quer-se dizer: pelo olho esquerdo, em ecrã normal, eu tinha o Carlos Daniel a debitar-me os resultados das eleições nos Açores; pelo olho direito, em ecrã gigante, entrava-me o Porto-Guimarães na Sport-TV... Saio a correr, lembrando-me de repente daquele poema do Manuel Bandeira:

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De vez em quando me diziam:“Sua terra está completamente mudada, tem avenidas, arranha-céus... É hoje uma bonita cidade!”Meu coração ficava pequenino... Revi afinal o meu Recife.Está de facto completamente mudado.Tem avenidas, arranha-céus. É hoje uma bonita cidade.Diabo leve quem pôs bonita a minha terra!

E também — agora acrescento eu — quem dela tirou o silêncio, que ainda nos deixava sonhar com mundos melhores e dias felizes.

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