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1 Nota Técnica: Restos a Pagar e Artifícios Contábeis. Mansueto Almeida (24 de fevereiro de 2011) 1 1. No início do governo Lula, em 2003, o mercado financeiro e analistas econômicos foram surpreendidos com o anúncio de uma meta de superávit primário de 4,25% do PIB, ante a meta de 3,75% do PIB do governo anterior. A mensagem que o governo queria passar era clara: continuaria com o esforço fiscal do governo anterior e, na margem, seria até mais prudente e fiscalmente mais responsável do que o governo Fernando Henrique Cardoso. Em 2003, a meta de superávit primário foi alcançada e, em 2004, o Ministro da Fazenda, Antônio Palloci, anunciou a elevação do superávit primário do governo consolidado para 4,5% do PIB. 2. Apesar desse início auspicioso do governo Lula, sabe-se hoje que (1) mais da metade do esforço primário do governo federal, em 2003, veio do aumento dos valores inscritos na rubrica “restos a pagar” de um ano para o outro. Essa última operação é neutra do ponto de vista da Dívida Líquida do Setor Público (DLSP), mas melhora o resultado primário do ano em que a despesa é liquidada, mas não é efetivamente paga (restos a pagar processados); e (2) o esforço fiscal do início do governo Lula foi revertida ao longo dos anos posteriores, deixando para a sua sucessora um problema fiscal aliado a um problema de inflação em alta. 3. O que são restos a pagar? O gasto público passa por várias fases: gasto planejado, autorizado, empenhado, liquidado e pago. Quando a despesa pública é liquidada, significa que o serviço que deu origem a esse gasto já foi efetuado e reconhecido pelo ordenador de despesas, faltando, apenas, o desembolso efetivo do dinheiro. Os Restos a Pagar Processados (RAP processados) são as obrigações das despesas, com fornecedores de bens e serviços, classificadas como Investimentos e Outras Despesas Correntes, que foram liquidadas no exercício anterior, mas que não foram efetivamente pagas naquele exercício. Visto que as despesas só afetam o primário quando são efetivamente pagas, o governo costuma segurar o pagamento de um ano para o outro para gerar, temporariamente, um superávit primário mais elevado. 4. No caso dos Restos a Pagar Não Processados (RAP não processados) a despesa foi planejada, autorizada e empenhada, mas o ordenador de despesas ainda não reconheceu a prestação do serviço ou a execução do investimento, ou seja, o gasto ainda não foi liquidado. Normalmente, como explicaremos em seguida, para 2003, o truque de inflar o primário com Restos a Pagar ocorreu com o RAP processado, já que a despesa já havia sido liquidada, mas não foi paga. No entanto, como o saldo do RAP não processado vem aumentando muito é possível que parte do saldo dessa conta esteja sendo utilizada para dar “maior flexibilidade” as contas públicas, mas é muito difícil identificar qual parcela do RAP não processado refere-se 1 Mansueto Almeida é economista e técnico de pesquisa e planejamento do IPEA. Minha compreensão sobre o tópico desta nota foi beneficiado por várias discussões com Alexandre Manoel Ângelo da Silva (IPEA), José Roberto Afonso (BNDES) e Samuel Pessoa (IBRE-FGV e Tendências Consultoria).

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Nota Técnica: Restos a Pagar e Artifícios Contábeis. Mansueto Almeida (24 de fevereiro de 2011)1 1. No início do governo Lula, em 2003, o mercado financeiro e analistas econômicos foram surpreendidos com o anúncio de uma meta de superávit primário de 4,25% do PIB, ante a meta de 3,75% do PIB do governo anterior. A mensagem que o governo queria passar era clara: continuaria com o esforço fiscal do governo anterior e, na margem, seria até mais prudente e fiscalmente mais responsável do que o governo Fernando Henrique Cardoso. Em 2003, a meta de superávit primário foi alcançada e, em 2004, o Ministro da Fazenda, Antônio Palloci, anunciou a elevação do superávit primário do governo consolidado para 4,5% do PIB. 2. Apesar desse início auspicioso do governo Lula, sabe-se hoje que (1) mais da metade do esforço primário do governo federal, em 2003, veio do aumento dos valores inscritos na rubrica “restos a pagar” de um ano para o outro. Essa última operação é neutra do ponto de vista da Dívida Líquida do Setor Público (DLSP), mas melhora o resultado primário do ano em que a despesa é liquidada, mas não é efetivamente paga (restos a pagar processados); e (2) o esforço fiscal do início do governo Lula foi revertida ao longo dos anos posteriores, deixando para a sua sucessora um problema fiscal aliado a um problema de inflação em alta. 3. O que são restos a pagar? O gasto público passa por várias fases: gasto planejado, autorizado, empenhado, liquidado e pago. Quando a despesa pública é liquidada, significa que o serviço que deu origem a esse gasto já foi efetuado e reconhecido pelo ordenador de despesas, faltando, apenas, o desembolso efetivo do dinheiro. Os Restos a Pagar Processados (RAP processados) são as obrigações das despesas, com fornecedores de bens e serviços, classificadas como Investimentos e Outras Despesas Correntes, que foram liquidadas no exercício anterior, mas que não foram efetivamente pagas naquele exercício. Visto que as despesas só afetam o primário quando são efetivamente pagas, o governo costuma segurar o pagamento de um ano para o outro para gerar, temporariamente, um superávit primário mais elevado. 4. No caso dos Restos a Pagar Não Processados (RAP não processados) a despesa foi planejada, autorizada e empenhada, mas o ordenador de despesas ainda não reconheceu a prestação do serviço ou a execução do investimento, ou seja, o gasto ainda não foi liquidado. Normalmente, como explicaremos em seguida, para 2003, o truque de inflar o primário com Restos a Pagar ocorreu com o RAP processado, já que a despesa já havia sido liquidada, mas não foi paga. No entanto, como o saldo do RAP não processado vem aumentando muito é possível que parte do saldo dessa conta esteja sendo utilizada para dar “maior flexibilidade” as contas públicas, mas é muito difícil identificar qual parcela do RAP não processado refere-se

1 Mansueto Almeida é economista e técnico de pesquisa e planejamento do IPEA. Minha compreensão sobre o tópico desta nota foi beneficiado por várias discussões com Alexandre Manoel Ângelo da Silva (IPEA), José Roberto Afonso (BNDES) e Samuel Pessoa (IBRE-FGV e Tendências Consultoria).

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ao gasto que ainda não foi de fato liquidado e qual a parcela que teve sua liquidação atrasada para “atrasar a despesa fiscal” e o seu impacto fiscal. 5. Qual a vantagem de um governo aumentar o saldo dos restos a pagar? O ganho que o governo tem em aumentar os restos a pagar é conseguir melhorar o resultado do superávit primário para um determinado ano, pois os restos a pagar serão contabilizados como Dívida Flutuante que não entram na contabilidade da Dívida Líquida do Setor Público (DLSP). O resultado desse artifício contábil é aumentar a Dívida Flutuante com fornecedores para alcançar um superávit primário maior e cumprir a meta daquele ano. Isso permite ao governo mostrar que está sendo feito um esforço maior de contenção de despesas, quando o que de fato ocorreu foi a postergação de pagamentos de despesas. 6. Na verdade, no futuro, os restos a pagar podem se transformar em Dívida Fundada, o que levaria a um absurdo de se gerar um superávit primário maior no ano anterior que termina por aumentar a DLSP no ano seguinte. Isso pode ocorrer por que existem duas formas de pagar os “restos a pagar”. Uma forma é utilizar receita corrente primária, o que significa que esse pagamento vai ser contabilizado como uma despesa e pressionar o resultado primário e, possivelmente, comprometer gastos que haviam sido autorizados para o ano corrente que deverão ser postergados caso não haja um aumento substancial da receita. A outra forma é através de operações de crédito, quando o governo lança títulos no mercado para pagar os restos a pagar, que estão contabilizados como dívida flutuante. Esta última operação transforma uma dívida flutuante em dívida fundada e aumenta a DLSP2. É por isso que o aumento do superávit primário via aumento dos restos a pagar é artificial, pois ou se tem um impacto negativo no primário do ano seguinte ou se aumenta a DLSP. 7. O que aconteceu em 2003? Em 2003, o crescimento do superávit primário do governo federal dependeu excessivamente do uso dos Restos a Pagar. Naquele ano, o governo federal aumentou o saldo do restos a pagar processados em quase 100% para elevar o saldo primário3. Conforme se pode observar na tabela 1 abaixo, o saldo dos restos a pagar processados de 2003 a 2004 passou de R$ 4,2 bilhões para R$ 7,95 bilhões. Isso significa um acréscimo de R$ 3,7 bilhões, equivalente a 0,25% do PIB de 2003, de gastos liquidados, em 2003, que passaram para 2004 para que o governo pudesse alcançar a meta de superávit primário prometido para 2003. Isso implica dizer que o equivalente a 0,25% do esforço adicional de 0,5% do PIB 2 É importante destacar que o governo, do ponto de vista legal, pode efetivamente pagar “restos a pagar” com aumento de receita e/ou redução de despesa. No entanto, se o aumento da receita do próximo ano não for suficiente para cobrir os restos a pagar do ano anterior, o governo pode utilizar receita proveniente de operações de crédito para cobrir pagamentos diversos, deslocando o crescimento da receita aprovada na LOA para pagar as despesas do ano anterior. Na prática, essa operação ocorre como se o governo tivesse gerando dívida para pagar os gatos liquidados e não pagos do ano anterior. 3 Uma confusão comum entre aqueles que trabalham com contas públicas é confundir “restos a pagar” com despesas de exercícios anteriores previstas na LOA. Esses conceitos são diferentes. O primeiro corresponde a despesas empenhadas (não processados) e liquidadas (processados), mas que não foram pagas no exercício. Esse tipo de gasto não é previsto para o orçamento do exercício seguinte. O segundo conceito, despesas de exercícios anteriores, corresponde a despesas que foram geradas em exercícios anteriores e que foram fixadas, por exemplo, na Lei Orçamentária deste ano. Para os nossos propósitos, o que precisa saber é que as Despesas de Exercício Anteriores é fixada na Lei Orçamentária Anual, enquanto os Restos a Pagar não é fixado, de modo que, quando é pago, contribui para pressionar as despesas primárias. Uma saída para o governo não exercer essa pressão é utilizar operações de crédito e, então, aumentar a DLSP.

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prometido naquele ano decorreu de mera postergação de despesa: aumento do saldo dos restos a pagar processados. Em 2011, (ver tabela 3 no final desta nota), já descontado o efeito previdência no RAP processado (ver nota da tabela 1), houve uma postergação de gasto já liquidado de R$ 2,8 bilhões, valor que deveria ter sido contabilizada como despesa em 2010.

Tabela 1 - Restos a Pagar (RAP) - R$ Mil

Fonte: Tesouro Nacional, Elaboração: Mansueto Almeida OBS: 1/ a variação do item restos a pagar é calculada pela diferença do saldo do quanto estava inscrito

em um ano em relação ao valor inscrito no ano imediatamente anterior. Isso mostra quanto das despesas de um ano foram transferidas para serem pagas no ano seguinte.

2/ A partir de 2009, a ultima folha do ano do INSS passou a ser contabilizada como Restos a Pagar Processados. Mas para esse caso especifico, essa mudança de metodologia não afetou o cálculo do primário. Assim, a partir de 2009 o saldo do RAP processado passou a ser maior em decorrência dessa mudança metodológica.

8. Sempre que o saldo dos restos a pagar aumenta de um ano para o outro, principalmente no caso do RAP processados, isso significa postergação de despesa e, logo, aumento “contábil” do resultado primário. Como já destacado, é possível que parcela do gasto empenhado e não liquidado (RAP não processado) seja utilizado com a mesma finalidade, mas é difícil calcular exatamente quanto apenas olhando o dado agregado. É possível, no entanto, fazer vários tipos de “proxy” para captar esse efeito. Uma proxy possível seria acompanhar o valor efetivamente pago de RAP Não Processado ao longo do ano, que poderia refletir despesas que deveriam ter sido liquidadas e pagas no exercício anterior (ver gráfico 1).

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Gráfico 1 – Restos a Pagar Não Processados Pagos (R$ bilhões)

Fonte: Tesouro Nacional

9. Como se observa na tabela 1 e gráfico 1 acima, a partir de 2006, o governo passa a aumentar, consistentemente, o saldo dos restos a pagar não processados e também o pagamento do mesmo no ano seguinte. Como esses valores são cada vez maiores, é possível que o governo esteja utilizando cada vez mais essa conta para ganhar flexibilidade fiscal, seja para definir quais gastos de investimento serão executados à margem do orçamento aprovado no ano, seja para “pedalar” despesas para o ano seguinte e inflar o primário. Por exemplo, em 2010, foram pagos R$ 44 bilhões de RAP não processados, despesas que haviam sido autorizadas e empenhadas em 2009, mas executadas apenas em 2010. Dado que, em 2010, o governo já tinha um problema fiscal, a transferência de parte de despesas do orçamento de 2009 para 2010 ao invés de ajudar o governo a fechar as contas, piorou mais ainda o resultado fiscal e levou a vários truques contábeis com a venda de R$ 31,9 bilhões de ações da Petrobrás para o BNDES e Fundo Soberano para gerar uma receita primária fictícia. 10. Essa estratégia de “pedalar gastos fiscais” para inflar o resultado primário só faz sentido em duas circunstâncias: (1) quando o governo já trabalha com uma redução do resultado primário para o ano seguinte; ou (2) quando o governo projeta um aumento de receita, no futuro, suficiente para pagar parte das despesas que são postergadas para o exercício fiscal do ano seguinte. O que deve acontecer em 2011? Para este ano, o governo deixou uma conta de RAP não processado acima de R$ 100 bilhões e, assim, há uma pressão adicional nas contas públicas que não está incorporada nas projeções do orçamento da união. Mas o governo não poderia, simplesmente, atrasar mais ainda o pagamento dos Restos a Pagar de 2010, por exemplo, para 2012? Sim, isso é possível, mas neste caso o saldo do restos a pagar teria que ser transformado em “despesas de exercício anterior” e entrar na proposta orçamentária de 2012. 11. E se o governo simplesmente cancelar o empenho de obras que estão inscritas em Restos a Pagar e desistir de fazer o investimento, como, por exemplo, a recuperação de uma rodovia ou a construção de uma escola., etc.? sim, é possível que simplesmente o investimento não seja executado, mas há ainda outro problema nem sempre identificado pelos analistas. Atualmente, como se pode ver nas tabelas 2 e 3 abaixo, uma parcela muito grande do RAP refere-se a despesas de custeio (outras despesas correntes). É possível que esse tipo de despesa

0,00  5,00  10,00  15,00  20,00  25,00  30,00  35,00  40,00  45,00  

2003   2004   2005   2006   2007   2008   2009   2010  

6,53   5,67  9,93  

18,03  21,88  

31,31   33,17  

44,18  

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esteja sujeita a contratos de fornecimento de serviços para o governo que nem sempre são fáceis de serem cancelados. Como se observa na Tabela 2, do total de Restos a Pagar não processados inscritos em 2011, R$ 42,3 bilhões são despesas de custeio e R$ 48,3 bilhões são despesas de investimento. Para se ter uma ideia da magnitude desse valores, vale lembrar que, em 2010, o governo investiu (investimento pago) exatamente R$ 48 bilhões. Ou seja, o montante de restos a pagar apenas da rubrica “investimento público” deixado pelo governo do orçamento de 2010 para 2011 é equivalente ao todo o investimento público da união (exclui estatais) de 2010. Tabela 2 – Saldo dos Restos a Pagar Não Processados Inscritos – Categoria da Despesas

(R$ mil)

Fonte: Tesouro Nacional Elaboração: Mansueto Almeida

Tabela 3 – Saldo dos Restos a Pagar Processados Inscritos – Categoria da Despesas (R$ mil)

Fonte: Tesouro Nacional Elaboração: Mansueto Almeida

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12. Em resumo, a mensagem desta nota é simples: o governo tem, consistentemente, elevado o saldo da conta de Restos a Pagar, uma estratégia que implica em: (1) em maior flexibilidade para executar despesas de investimento à margem das prioridades discutidas no orçamento do ano corrente; e (2) maior possibilidade de postergar o pagamento de despesas, adiando o problema para anos seguintes, quando então essas despesas postergadas terão que ser pagas por meio de (a) aumento de receita além do previsto no orçamento aprovado, (b) aumento da dívida; ou (c) postergação de despesas aprovadas, em 2011, por exemplo, para pagar despesas de 2010. 13. No último ano do governo Fernando Henrique Cardoso, em 2002, a Lei de Diretrizes Orçamentária (LDO) Lei 10.524 de 25 de julho de 2002 (LDO de 2003), estabelecia no §3o do Art. 39, subseção II (Das Vedações), da seção I do Capítulo III que:

“Art. 39: São vedados quaisquer procedimentos pelos ordenadores de despesa que viabilizem a execução de despesas sem comprovada e suficiente disponibilidade de dotação orçamentária. ............. “§ 3o Os Restos a Pagar não processados, relativos a despesas discricionárias e não financeiras, inscritos no exercício de 2003 não excederão a 50% (cinqüenta por cento) do valor inscrito no exercício de 2002.”

14. Infelizmente, esse parágrafo foi retirado da LDO nas suas edições posteriores e, desde 2006, o saldo do RAP não processado passa a crescer de forma contínua, o que mostra um evidente descontrole desta conta. Além do dispositivo acima da LDO de 2003, outra possibilidade de controlar o crescimento continuo o saldo dos Restos a Pagar é o dispositivo introduzido no Projeto de Lei Complementar 229, de 2009, de autoria do senador Tasso Jereissati (ver anexo I), que limita a inscrição de Restos a Pagar por fonte de recursos ao saldo da disponibilidade financeira da respectiva fonte e estabelece regras diferenciadas para cancelamento do RAP para as despesas correntes (três meses) e de capital (seis meses, exceto operações de crédito, licitação internacional ou gasto plurianual). 15. Em resumo, hoje, estamos trabalhando com um quase orçamento paralelo, já que o saldo do RAP é um tipo de dívida (flutuante) que não entra no conceito de DLSP e, assim, não aparece nas estatísticas fiscais nem no conceito “acima da linha” nem tão pouco no conceito “abaixo da linha”, o que permite que se use essa conta para “fabricar parte do resultado primário”. Dado os crescentes pagamentos referentes aos Restos a Pagar Não processados, tudo indica que essa conta está sendo utilizada também como mecanismo de postergação de despesa. Assim, o governo tem um problema com a sua gestão fiscal ainda maior do que aquele que aparece nas análises do orçamento aprovado.

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ANEXO I – PROJETO DE LEI COMPLEMENTAR Nº 229, DE 2009

CAPÍTULO III DOS RESTOS A PAGAR E DO RECONHECIMENTO DE OBRIGAÇÃO DE

EXERCÍCIO ANTERIOR

Art. 63. A despesa empenhada no exercício financeiro e não paga até o final do exercício financeiro será inscrita em restos a pagar, desde que atendido ao seguinte:

I – comprovado que os compromissos correspondentes cumprem o preceito definido no art. 42 da Lei Complementar nº 101, de 2000;

II – o montante das inscrições por destinação dos recursos não ultrapasse o saldo da disponibilidade financeira, da referida destinação dos recursos, existente na mesma data de encerramento do exercício financeiro, apurado pelo órgão responsável pela gestão financeira do Poder Executivo.

§ 1o Na inscrição em restos a pagar terá preferência a despesa empenhada que já tenha sido liquidada antes do encerramento do exercício, até o montante estabelecido no caput, inciso II, deste artigo.

§ 2o Serão automaticamente cancelados os empenhos não liquidados até o final do exercício financeiro e que não tenham sido inscritos em restos a pagar por não atender as condições e os limites definidos neste artigo.

§ 3o Na hipótese de persistir o interesse da administração pública ou o direito do credor relativamente a empenho cancelado na forma do parágrafo anterior, é facultado que a despesa orçamentária, identificada especificamente à conta de despesas de exercícios anteriores, seja incluída na LOA do exercício financeiro em curso por intermédio de crédito adicional.

§ 4o Sem prejuízo do cumprimento das condições e limites previstos no § 1º deste artigo, serão automaticamente cancelados os restos a pagar inscritos no encerramento do exercício financeiro:

I – relativos a despesas correntes e que não tiverem sido pagos até o final do terceiro mês seguinte ao do encerramento do respectivo exercício;

II – relativos a despesas de capital e que não tiverem sido pagos até o final do sexto mês seguinte ao do encerramento do respectivo exercício, ressalvados aqueles que compreendem investimentos de caráter plurianual, fixados ao amparo do disposto no art. 26, inciso VI, desta Lei Complementar, e que forem financiados por vinculações constitucionais ou legais, quando o prazo será o encerramento do segundo exercício financeiro seguinte ao de sua inscrição.

§ 5o Excetuam-se do prazo para cancelamento previsto no parágrafo anterior aquelas despesas que forem financiados por operações de crédito efetivamente realizadas ou que exijam a realização de licitação internacional para a sua concretização, quando o prazo será até o encerramento do exercício financeiro seguinte ao de sua inscrição.

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§ 6o Constatado o descumprimento das condições e dos limites previstos neste artigo será considerado irregular e gravemente lesiva à economia pública o ato de empenhar e inscrever e a omissão no cancelamento do empenho ou de resto a pagar.

Art. 64. As despesas de exercício financeiro encerrado, para as quais a LOA respectiva consignava crédito próprio, com saldo suficiente para atendê-las, que não tenham sido inscritas em restos a pagar, nem empenhadas na época própria, por erro de gestão, bem como os restos a pagar com prescrição interrompida e os compromissos reconhecidos pelo ordenador de despesa após o encerramento do exercício correspondente, poderão ser pagos à conta de dotação específica consignada na LOA.

§ 1o Em quaisquer casos, a execução financeira identificará regularmente a classificação das despesas empenhadas no exercício seguinte à conta de Despesas de Exercícios Anteriores, bem como do exercício a que pertencem, para fins de ajuste das estatísticas fiscais.

§ 2o O disposto neste artigo não autoriza a quebra de contratos ou o desrespeito a direitos de credores, passíveis de sanção na forma da lei.