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Campinas-SP, (34.2): pp. 567-572 , Jul./Dez. 2014 NOTAS SOBRE O ENSINO DE CLÁSSICOS LITERÁRIOS PORTUGUESES Maria do Socorro Fernandes de Carvalho [email protected] Uma reflexão sobre o ensino de literatura clássica no sistema escolar pode revelar oportunidades de revisar alguns conhecidos problemas vivenciados pelo professor de literatura no Brasil. Sabe- se do desinteresse institucional e, ao que parece por consequência, também por parte do alunado, em relação à matéria da literatura, seja ela brasileira ou “universal”, quando apresentada em sala de aula no ensino formal. Embora depoimentos pessoais de jovens e adultos saídos dos quadros escolares registrem, em sua maioria, certa simpatia pelos livros da disciplina de literatura, os quais trazem aquela conhecida dose de amenidade ou fantasia face às agruras experimentadas nos estudos forçados de física, química ou matemática, embora esse alento, eu dizia, comenta-se o progressivo esvaziamento dos estudos literários nos currículos escolares de hoje em dia e o alheamento dos alunos diante do patrimônio literário. Contrariamente ao efeito esperado, também é verdade que, segundo a experiência de educadores, a disciplina escolar gera no aluno, por vezes, uma notória aversão pela literatura. Ou seja, o que era para unir, acaba por separar. Dado que este debate envolve toda série de fatores - educacionais, mercadológicos, sociológicos e vários outros, destacarei apenas um aspecto desse universo complexo e labiríntico: a defesa do estudo do cânone das letras constituído em tempos históricos diversos de nossa atualidade. Pela certeza de que constitui uma possibilidade de conhecimento privilegiado

Notas Sobre o Ensino de Clássicos Literários Portugueses

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  • Campinas-SP, (34.2): pp. 567-572 , Jul./Dez. 2014

    NOTAS SOBRE O ENSINO DE CLSSICOS LITERRIOS PORTUGUESES

    Maria do Socorro Fernandes de [email protected]

    Uma reflexo sobre o ensino de literatura clssica no sistema escolar pode revelar oportunidades de revisar alguns conhecidos problemas vivenciados pelo professor de literatura no Brasil. Sabe-se do desinteresse institucional e, ao que parece por consequncia, tambm por parte do alunado, em relao matria da literatura, seja ela brasileira ou universal, quando apresentada em sala de aula no ensino formal. Embora depoimentos pessoais de jovens e adultos sados dos quadros escolares registrem, em sua maioria, certa simpatia pelos livros da disciplina de literatura, os quais trazem aquela conhecida dose de amenidade ou fantasia face s agruras experimentadas nos estudos forados de fsica, qumica ou matemtica, embora esse alento, eu dizia, comenta-se o progressivo esvaziamento dos estudos literrios nos currculos escolares de hoje em dia e o alheamento dos alunos diante do patrimnio literrio. Contrariamente ao efeito esperado, tambm verdade que, segundo a experincia de educadores, a disciplina escolar gera no aluno, por vezes, uma notria averso pela literatura. Ou seja, o que era para unir, acaba por separar.

    Dado que este debate envolve toda srie de fatores - educacionais, mercadolgicos, sociolgicos e vrios outros, destacarei apenas um aspecto desse universo complexo e labirntico: a defesa do estudo do cnone das letras constitudo em tempos histricos diversos de nossa atualidade. Pela certeza de que constitui uma possibilidade de conhecimento privilegiado

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    de valores, gneros, lugares, signos e saberes desses outros tempos pelo trabalho artstico com a linguagem, a chamada literatura clssica em lngua portuguesa apresenta ao estudante fecunda possibilidade de experincia de leitura das tradies brasileira, europia e ocidental. Esse o lado bom da histria, o qual deveria ser apropriado pelos estudos literrios do ensino bsico. Com efeito, o conhecimento das letras portuguesas dos sculos XVI, XVII e meados do sculo XVIII significa ao estudante brasileiro a possibilidade de insero no mundo europeu totalmente diferenciado de nossa atualidade e at mesmo de nossa modernidade literria. Para estudantes brasileiros, trata-se de conhecer um mundo anterior formao de nosso sentido de nacionalidade literria e mesmo de nacionalidade civil. Se tomarmos um conceito de tradio, segundo Joo Adolfo Hansen, como um valor de uso, entre outros, que determinado material passado passa a ter num determinado presente que dele se apropria e o transforma imprimindo-lhe determinada deformao1, teremos na matria da literatura portuguesa, melhor, escrita em lngua portuguesa, um leque abrangente de saberes e informaes, bastantes edificantes ao estudante lusfono do Brasil contemporneo.

    O cnone um lugar onde transitam vrias tradies. Apesar de, aos olhos de algumas pedagogias hodiernas, apresentar um aspecto passadista a defesa de seu ensino, inegvel que, sendo o cnone um lugar prestigiado da memria literria, a defesa de seu estudo no ensino bsico tem de vir acompanhado da prescrio de apropriao pela escola de nossos dias. Embora todos saibam que, do ponto de vista pragmtico, estudar o cnone literrio significa ler e interpretar livros de antemo escolhidos pelas instituies escolares, no desconhecido que todo cnone implica uma seleo valorativa que se impe com autoridade e aspira a modelar de maneira durvel a compreenso da herana literria2. O que implica igualmente rejeies de vrios setores: do domnio de algumas vertentes da pedagogia, da juventude naturalmente reativa do aluno virtual do ensino bsico, de algumas geraes de professores brasileiros que identificam tradio a conservadorismo poltico ou dominao pelas ideologias, enfim, o cnone aparece revestido de vrios signos que lhes trazem vantagens e alguns efetivos preconceitos.

    1 Cf. Joo A. Hansen. Autor. In: Palavras da crtica: tendncias e conceitos no estudo da literatura. Org. Jos Lus Jobim. Rio de Janeiro. Editora Imago, 1992.

    2 Gustavo Guerrero. Potique et posie lyrique: essai sur la formation dun genre. Trad. Anne-Jolle Stphan et lauteur. Paris: ditions du Seuil, 2000, p. 37. (Traduo livre.)

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    O certo que, apesar de haver certa dificuldade no estudo das letras mais distantes de nosso tempo, vivenciada por parte dos professores e pesquisadores em razo das diferenas de linguagem, moral, composio sociocultural e sensibilidade, de modo geral, e do hodierno desprestgio dessa matria na historiografia literria dos sculos XX e XXI, existe, por outro lado, corrente a ideia de que tal estudo pode ser realizado nos vrios nveis escolares definidos pelo sistema educacional brasileiro. Difcil convencer os professores e os alunos de que estudar sermes, poesias, cartas, dilogos, tratados ou sonetos religiosos pode ser to instigante quanto, entre jovens, ler poesia concreta ou poemas de lvaro de Campos.

    Embora os parmetros educacionais em vigncia tenham desprestigiado o estudo da literatura portuguesa em sua unidade disciplinar, minando paulatinamente essa matria dos currculos obrigatrios e, por consequncia, a abertura desse conhecimento que presentemente defendo, o estudo das letras escritas em lngua portuguesa sob o sistema retrico classicista (por assim dizer) continua a oferecer, nos nichos sobreviventes, lugar de aquisio, debate e atualizao de vrias tradies literrias, desde a poesia de imitao dos grandes autores das latinidades e antiguidades gregas, at os versos convencionais da medida velha, na melhor tradio ibrico-portuguesa, para ficar apenas com a ilustrao dessas principais convenes poticas. A lngua portuguesa pode no constituir a nao lingstica idealizada pelos defensores da manuteno da unidade do ensino das duas literaturas numa mesma disciplina, como ocorreu no incio do sculo XX no Brasil, e perdurou sob o argumento de uma suposta nacionalidade lingstica, segundo o depoimento de estudantes de ento, por toda a dcada de 1950, alcanando at o incio da dcada seguinte. Todavia, o estudo dessas letras, convencionalmente cingidas na rubrica de literatura portuguesa, continua a prover ao seu estudante experincias de linguagem especiais que s a arte da palavra pode oferecer de forma particular e insubstituvel. Se no mais possvel pensar numa suposta nao da lngua portuguesa, pois esta se mostra diferenciada tanto nos seus muito diversificados usos no Brasil, em Portugal e nos pases africanos lusfonos, quanto nas especificidades dos cdigos literrios de cada pas, e - ademais, os estudos literrios constituem progressivamente esmiuada especificidade para ser instrumento nico de anlise dos signos e valores literrios de produes artsticas diversas, mesmo escritas por uma lngua comum - se no possvel tal unidade disciplinar, como dizia, muito visvel a possibilidade e os ganhos que seu estudo especfico traz ao leitor que se v ingressar num universo literal ingente, multiforme e sedutor dos textos clssicos escritos em nossa lngua; significa enfim ter acesso a certas tradies.

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    Acredito que o estudo das letras em lngua portuguesa escritas entre os sculos XVI, XVII e XVIII, tomadas como classicistas, para alm de especfico no sentido disciplinar, deve manter sua especificidade instrumental terica, pois, como sabido, uma das caractersticas fundantes das letras classicistas sua diferenciao em relao ao sistema literrio subseqente, a modernidade artstica, que aportou um sistema de representao totalmente diferenciado dos modelos anteriores. No lugar da imitao de modelos tem-se uma srie de novos valores, dentre eles o da originalidade: trazer o novo deixou de ser tomado como ndice de incapacidade de insero numa tradio verbal, como era antes visto, para tornar-se signo de excelncia da imaginao criadora, ncleo da potica da modernidade nas letras ocidentais, difundidas primeiramente pelo pensamento romntico e assimilado por toda a produo literria posterior na Europa e no Novo Mundo at pode-se dizer nossos dias, guardadas as diferenas de tempo e lugar. Outros valores so visivelmente diferenveis e no necessrio aqui refletir sobre suas naturezas, bastando elenc-los para que suas constituies diversas apaream: a noo de modelo cede ao valor da originalidade, a noo de autoridade minada pela normatizao dos direitos autorais, a noo de obra recebe os matizes de mercadoria, a subjetividade anula a aplicao de lugares-comuns, a retrica como sistema que instrui e ordena os usos da linguagem decai em nome do surgimento da literatura, em si mesma moderna, dentre outros importantes aspectos. Portanto, o ensino dessas letras deve estar atento e adaptado a tais condicionamentos histricos. Sua prtica deve considerar sempre, do ponto de vista do aluno, a possibilidade da construo de conhecimentos do discurso literrio pela busca de verossmeis textuais. Assim, pela possibilidade de compreenso do fazer, leitura, circulao e por vezes rejeio de tradies letradas que se constroem em sala de aula verossmeis possveis de leitura de poemas, cartas, autos, dilogos, tratados, stiras ou qualquer gnero discursivo hoje tomado como clssico. Sem a iluso de aportar ao estudante, pela leitura de obras, certa reproduo da realidade de um tempo, defendo a leitura conjunta, professor e aluno, pela busca de construo de um (ou de vrios) sentidos possveis e verossmeis ao texto, atendendo ao saber de suas muito especficas condies de produo e alcance no seu tempo e lugar histricos3. Isto porque tal alcance histrico depende, sabe-se igualmente, de linhas de pensamentos constitudas por valores, hierarquias, costumes, representaes e signos somente operveis e atuantes naquele determinado momento e lugar histricos.

    3 Cf. tese de Joo Adolfo Hansen. HANSEN (1992).

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    Este fator originrio da teoria da literatura deriva contudo ao didtica que interfere no cotidiano dos cursos de literatura de lngua portuguesa. Compondo portanto certo contedo historicamente anterior modelagem da autonomia da literatura brasileira em relao portuguesa, dado que nascemos literariamente quando o Ocidente formulava e praticava letras e artes j modernas, sobretudo pela divulgao operada pela prosa e poesia romnticas, o ensino das letras clssicas em lngua portuguesa no Brasil estaria isento ou neutralizado em relao a uma das razes mais profcuas de reflexo e motivo de reincidentes objees na discusso sobre a manuteno ou no da autonomia da disciplina de literatura portuguesa no sistema educacional nacional: a independncia de nossa literatura, prpria e a partir dessa compreenso madura como disciplina nica nos programas. Anterior problemtica brasileira de afirmao de sua soberania cultural, um dos principais fatores de afirmao da separao entre as matrias portuguesa e brasileira nos vrios nveis escolares, segundo reflexo feita por Haquira Osakabe sobre o ensino de literatura portuguesa no Brasil, os estudos clssicos em lngua portuguesa tendem a ficar alijados dos interesses nos programas e currculos constitudos no decorrer do sculo XX, at hoje. Com isso, surgem argumentos como os de que a literatura portuguesa de outros tempos no serve aos interesses e sensibilidades de nossos estudantes, mais voltados e abertos ao estudo de outras ordens discursivas, mais prximas de ns4.

    Grande desafio didtico configura-se, portanto, pela capacidade do professor de, mantido primeiramente seu espao disciplinar, apresentar ao estudante-leitor um universo discursivo de composio com dimenses estrelares, rico e salutar como os de nossos clssicos autores, de modo que a ele seja possvel buscar sentidos de leituras verossmeis na historicidade dos muito variados gneros (epigramas, voltas, cantigas, clogas, epstolas, trovas, elegias, epopias, tragdias, sermes, sonetos, canes, vilancetes, dcimas, stiras, discursos hericos, comdias, redondilhas, tercetos, discursos acadmicos, oitavas e muitos, muitos outros subgneros poticos e prosaicos de larga produo em Portugal e no Brasil neste perodo). precisamente pela diversidade em relao ao grande sistema da modernidade das artes (e portanto das literaturas) que o texto classicista deve ser trazido para a sala de aula. precisamente pelo conhecimento, debate, refutao ou apreciao de suas caractersticas genricas prprias que devemos aportar as letras dos sculos XVI, XVII e XVIII ibricos, europeus, portugueses e por isso brasileiros.

    4 Cf. Haquira Osakabe, in: Voz lusada, revista da Academia lusada de cincias, letras e artes. O ensino de literatura portuguesa, n. 18, 2002, passim.

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    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    GUERRERO, Gustavo. Potique et posie lyrique: essai sur la formation dun genre. Trad. Anne-Jolle Stphan et lauteur. Paris: ditions du Seuil, 2000.

    HANSEN, Joo Adolfo. Autor. In: Palavras da crtica: tendncias e conceitos no estudo da literatura. Org. Jos Lus Jobim. Rio de Janeiro. Editora Imago, 1992.

    LOURENO, Eduardo. A Nau de caro e Imagem e miragem da lusofonia, So Paulo: Companhia das Letras, 2001.

    Vrios Autores. Literatura portuguesa: histria, memria e perspectivas, So Paulo: Ed. Alameda, 2007.

    VERNEY, Lus Antnio.Verdadeiro mtodo de estudar: cartas sobre retrica e potica. (1746). Lisboa: Presena, 1991.

    OSAKABE, Haquira. In: Voz lusada, revista da Academia lusada de cincias, letras e artes. O ensino de literatura portuguesa, n. 18, 2002.